as universidades populares de Madres de Plaza de - NIEP-MARX

Transcrição

as universidades populares de Madres de Plaza de - NIEP-MARX
Marx e o Marxismo 2015: Insurreições, passado e presente
Universidade Federal Fluminense – Niterói – RJ – de 24/08/2015 a 28/08/2015
TÍTULO DO TRABALHO
MÃES DA PRAÇA E FILHOS DA TERRA: as universidades populares de Madres de Plaza de Mayo e MST na
década de crise do neoliberalismo na América Latina
AUTOR
INSTITUIÇÃO (POR EXTENSO)
Sigla
Vínculo
Carlos Eduardo Rebuá Oliveira
Universidade Federal Fluminense
UFF
Doutorando
RESUMO (ATÉ 150 PALAVRAS)
Entre 2000 e 2005, dois dos mais importantes movimentos sociais latino-americanos – Madres de Plaza de
Mayo e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – erigiram espaços populares de ensino superior que,
a partir de suas experiências de luta de mais de trinta anos, ressignificam o papel da dimensão pública nos
processos político-educativos e o caráter estratégico dos par educação-cultura nas lutas anti-sistêmicas do/no
continente latino-americano. Fruto de nossa tese de doutorado (em fase de término) de matiz gramsciana, o
trabalho objetiva esmiuçar estas iniciativas tendo como preocupação os vínculos entre a formação acadêmica
e a formação política e como lastro os objetivos e princípios destas duas universidades.
PALAVRAS-CHAVE (ATÉ 3)
Madres de Plaza de Mayo – MST – Universidades Populares
ABSTRACT (ATÉ 150 PALAVRAS)
KEYWORDS (ATÉ 3)
Madres de Plaza de Mayo – MST – Popular Universities
EIXO TEMÁTICO
Eixo 6 [Educação, classe e luta de classes]
MÃES DA PRAÇA E FILHOS DA TERRA:
as universidades populares de madres de Plaza de Mayo e MST na década de crise do neoliberalismo
na américa latina
Proponente: Carlos Eduardo Rebuá Oliveira1
Eixo: 6 [Educação, classe e luta de classes]
Resumo:
Entre 2000 e 2005, dois dos mais importantes movimentos sociais latino-americanos - Madres
de Plaza de Mayo e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - erigiram espaços populares de
ensino superior que, a partir de suas experiências de luta de mais de trinta anos, ressignificam o papel
da dimensão pública nos processos político-educativos e o caráter estratégico dos par educação-cultura
nas lutas anti-sistêmicas do/no continente latino-americano. Fruto de nossa tese de doutorado (em fase
de término) de matiz gramsciana, o trabalho objetiva esmiuçar estas iniciativas tendo como
preocupação os vínculos entre a formação acadêmica e a formação política e como lastro os objetivos
e princípios destas duas universidades.
Abstract:
Between 2000 and 2005, two of the main latin-american social moviments - Madres de Plaza
de Mayo and Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - started popular spaces for high
education beginning with their experiences of thirty years of fighting, outstanding the public dimension
of the political-educative processes and the strategic position of the duet education-culture inside the
anti-systemic fights in latin-american continent. As a result of our gramscian model thesis (in its last
part) this work aims to go deep in these iniciatives preocupating with the links between academic and
political education and having as the main result the objectives and principles of these two universities.
1
Licenciado e bacharel em História pela UFF, mestre em Educação pela UERJ (ProPEd), doutorando do Programa de PósGraduação em Educação da UFF (PPGE). Professor substituto da UERJ - FFP. Bolsista Capes. Membro do NUFIPE
[Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação]. Email: [email protected]
2
Introdução
Na última década, não são poucos os movimentos sociais, sobretudo latino-americanos, que
têm empreendido frentes culturais no campo da educação no sentido de construírem novos espaços de
luta, novos consensos e amealharem forças diante do neoliberalismo e sua barbárie cotidiana. A
formação não é algo surgido nos últimos dez anos no seio destes variados sujeitos coletivos (mulheres,
camponeses, piqueteros, operários, defensores dos direitos humanos, ambientalistas, movimentos de
gênero, dentre outros), mas ganhou novo ímpeto no período (2000-2010) que intitulamos de crise
neoliberal na América Latina. Mapear e compreender as demandas e dinâmicas dos movimentos
sociais na contemporaneidade não é tarefa fácil. Sua enorme variedade e complexidade apresentam ao
pesquisador grande desafio teórico-prático-epistemológico. Dos zapatistas ao movimento indigenista
do Equador, das Madres de Plaza de Mayo ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra uma
soma diversa de grupos tem construído lutas que numa perspectiva mais global exigem um mundo
com mais justiça, democracia e humanidade.
A partir de Semeraro (2014) é possível afirmar que as práticas político-pedagógicas populares,
principalmente na América Latina contemporânea pós regimes ditatoriais, representam corajosas
experiências (2011a, p. 63) de educação dos (para os) subalternos, não sem contradições e tensões.
Tais experiências foram e são decisivas nas lutas contra os simulacros pós-modernos e contra o
neoliberalismo e sua máquina de moer pobre2. Cientes da imperiosa necessidade de se
autoorganizarem e autoeducarem como antídoto contra o transformismo, contra as investidas materiais
e simbólicas das classes hegemônicas, contra a acomodação ideológica e política, MST (há mais
tempo) e Madres têm empreendido, como leitores (direta ou indiretamente) de Gramsci, vigorosas
ações no campo da formação/educação, assumindo seus lugares de sujeitos pedagógicos (CALDART,
2004, p. 315) permanentes, funções que como salientou o filósofo sardo, são imprescindíveis nas
tarefas do presente, sobretudo para aqueles que almejam ser dirigentes e elevar intelectual, cultural e
socialmente as camadas populares.
Tanto a ENFF quanto a UPMPM, de pés fincados na sociedade civil e em suas dinâmicas,
passaram a estabelecer, nesta mesma década em que são inauguradas, vínculos formais (econômicos,
políticos, institucionais) com seus respectivos Estados, que deram origem a uma série de tensões,
transformismos, metamorfoses, debates, questões que analisamos de forma mais detida na tese. A
despeito dessas relações e de todos os desafios e embates internos, tais movimentos foram capazes de
acender um fogo de cultura – como disse o marxista sardo num texto de juventude intitulado A
2
Trecho da letra de Samba do fim do mundo¸ do rapper Emicida, no álbum O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui
(2013).
3
universidade popular - vívido e capaz de aquecer de verdade as dinâmicas educativas e políticas, bem
como os anseios e expectativas de seus partícipes:
Perguntamo-nos, às vezes, porque é que não foi possível solidificar em Turim um
organismo para a divulgação da cultura, porque é que a Universidade Popular é aquela
mísera coisa que é e não conseguiu impor-se à atenção, ao respeito, ao amor do
público, porque é que não conseguiu formar um público. A resposta não é fácil, ou é
muito fácil. Problema de organização, sem dúvida, e de critérios informativos. A
melhor resposta deveria consistir em fazer alguma coisa de melhor, na demonstração
concreta que se pode fazer melhor e que é possível reunir um público em volta de um
fogo de cultura, contanto que esse fogo seja vivo e aqueça de verdade. Em Turim, a
Universidade Popular é uma chama fria. Não é nem universidade nem popular. Os
seus dirigentes são diletantes em matéria de organização de cultura. O que os faz
operar é um brando e pálido espírito de beneficência, não um desejo vivo das massas
através do ensino. Como nas instituições de vulgar beneficência, aqueles distribuem,
na escola, uma quantidade de víveres que enchem o estômago, produzem (quem
sabe!) indigestões de estômago, mas não deixam um sinal, não têm um seguimento de
nova vida, de vida diferente (GRAMSCI apud MONASTA, 2010, p. 61).
Passados quinze anos da fundação da UPMPM (2000) e dez da ENFF (2005), é inegável que
estas universidades populares alcançaram o amor do público, formado a cada curso, seminário,
palestra, marcha, ocupação, convocação. Entendemos que do par citado por Gramsci (ser universidade
e ser popular) no trecho acima, não há dúvidas de que estes lugares – de ensino, de memória, de luta –
são universidades. Todavia, cabe ao investigador interessado em suas dinâmicas, limites e perspectivas
analisar até que ponto estes espaços são efetivamente populares (representando um desejo vivo das
massas através do ensino) e, logo, contra-hegemônicos. O espaço diminuto deste trabalho não
permitirá que reproduzamos aqui elementos e análises que tecemos na tese sobre o tema. Apesar disso,
entendemos ser possível costurar reflexões pertinentes no esforço de mapear estas tensões e pelo
menos começar a responder tais inquietações.
ENFF: entre a formação política e a formação acadêmica, a semeadura universitária campesina
A frente de cultura que é a ENFF, experiência única não apenas no Brasil, mas no mundo, de
“pedagogia popular de formação de quadros de movimento social, num espírito crítico, num espírito
radical” como salienta Michael Lowy3, tem como um de seus mais imprescindíveis pilares a formação
3
Em vídeo gravado para a AAENFF. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=A-vf6z3ucfY&list=PLOMQ7wZaTq586xhuXSDsY2CGUiRPwy0m. Acesso em: jan. 2015.
4
política, um processo sempre num constante “fazer-se”. Ao longo de seus trinta anos de trajetória o
MST vem ampliando seu processo de formação política (da base assentada/acampada até seus
dirigentes nacionais), entendida ao mesmo tempo como obrigação e como responsabilidade, visando
construir uma unidade político-ideológica, desenvolver a consciência político-organizativa e enfrentar
com mais vigor os embates e desafios do real. Se no início era fundamental a parceria com
organizações do mundo sindical e da educação popular, com o passar do tempo o Movimento foi
entendendo que “formar a partir de dentro”, a partir da práxis militante do MST e de suas experiências
concretas de luta e de auto-organização.
Segundo Adelar Pizetta, integrante da coordenação pedagógica da escola e dirigente do MST,
a formação política representa um processo amplo e abrangente, realizado de forma integral, através
de cursos, ações coletivas, reuniões ordinárias etc. Assim, compreende distintos momentos e caminhos
e se forja no dia-a-dia das lutas travadas pelo Movimento, sendo imprescindível a preocupação com o
todo: base, militantes e dirigentes. A ENFF, segundo ele, atua estrategicamente neste processo,
constituindo-se como “espaço de articulação e planejamento dessas ações formativas” (PIZETTA,
2007, p. 242). Ainda de acordo com o autor (Ibidem, p. 244-246) é possível elencarmos sete tarefas
principais dos processos de formação, quais sejam: 1) o conhecimento da formação, dos fundamentos
e das contradições do capitalismo e do imperialismo em sua fase hodierna; 2) a análise acurada da
realidade brasileira, de sua dinâmicas políticas, sociais, políticas, culturais; 3) forjar um instrumento
político-revolucionário dos trabalhadores que seja capaz de dirigir o processo da revolução brasileira,
popular e democrática; 4) avaliar as diversas possibilidades de alianças entre os vários setores da classe
trabalhadora; 5) avançar na pedagogia das massas (sobretudo em relação à juventude); no método de
trabalho de base, de organização e direção; na formação contínua de militantes/dirigentes dos
diferentes movimentos sociais, bem como nas formas de comunicação com as bases e com as massas;
6) produzir uma nova cultura que seja capaz de forjar outras relações sociais e com a natureza, assim
como novos valores, apontando para novos horizontes sintonizados com a perspectiva socialista; 7)
formar revolucionários alicerçados no materialismo histórico, especialistas e dirigentes. A referência
ao Caderno 12 da obra mais célebre de Gramsci nos parece quase obrigatória: “a escola é o
instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis” (GRAMSCI, 2010, p. 19).
No que tange aos vínculos entre formação política e educação escolar, Bogo (2011, p. 182)
pontua que hoje, pelo nível de acirramento da luta de classes, perseguição política e desintegração
social em diversas partes do mundo, os movimentos sociais não podem forma alguma prescindir de
militantes e direções qualificados em termos de formação intelectual e grau de escolaridade, sendo
inegociável o “preparo” interno da organização em relação à “construção” de seus quadros. Um partido
ou movimento social “que não produz seu próprio conhecimento nunca será autônomo. O caminho é
5
evoluir extraindo das próprias fileiras o material humano para transformá-lo em dirigentes e quadros
políticos”.
Bogo entende que a escola e o processo formativo devem estar alicerçados sobre três “pares
dialéticos”: 1) Educação e atividade humana; 2) Ensino e pesquisa; 3) Função da escola e objetivos da
organização. Em relação ao primeiro par, o intelectual afirma que a escola precisa transformar prática
educativa em atividade política, tornando-a cultura, com o processo educativo sendo entendido como
atividade humana fundamental, uma vez que o conhecimento é produto da ação de homens e mulheres,
na vida e, logo, na escola também. No que se refere ao segundo par, Bogo salienta a indissociabilidade
entre ensino e pesquisa, sendo esta última atividade primordial em qualquer organização, movimento,
partido, tendo impacto direto em seu desenvolvimento (quantitativo e, sobretudo, qualitativo). A
pesquisa corresponde à mediação entre a organização e a superação dos entraves surgidos na busca
organizada do conhecer. Finalmente, no debate do último par o autor enfatiza o caráter imprescindível
da formação escolar a partir da escola primária, já que uma função primordial da escola é elevar o
nível cultural e a capacidade organizativa da juventude, contribuindo para o desenvolvimento do
raciocínio, da disciplina, dos sentidos, da responsabilidade, da prática de valores, do gosto pelo estudo
e pela pesquisa, da compreensão da relação teoria-prática etc.
Se a ENFF não se restringe às instalações de Guararema, também não se vincula apenas às
demandas e lutas dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil, mas é aberta à integração com outros
países e seus movimentos sociais, populares, de matiz rural e urbana, sobretudo com os povos da
América Latina e do Caribe. No decorrer de sua caminhada política o MST entendeu que articular-se
com outras experiências sintonizadas com o enfrentamento do neoliberalismo e do imperialismo é
condição primordial para se avançar na construção contra-hegemônica. Esta concepção da importância
dos laços de unidade e solidariedade com os demais povos em luta do continente coloca o Movimento
num lugar de proeminência política não apenas em terras americanas, mas no mundo.
Por ser orgânica (PIZETTA, 2007, p. 247) à luta dos subalternos a ENFF desempenha nacional
e internacionalmente um papel estratégico na luta de classes, formando, preparando, renovando
quadros políticos (em seus cursos, seminários, encontros) e fornecendo aos lutadores sociais, seja no
Brasil ou na Guatemala, ferramentas teóricas e políticas para o embate de classe, cada vez mais difuso
e complexo. Em relação ao método de análise, estudo e interpretação da História salienta Pizetta, a
ENFF tem como fundamento o método dialético e o materialismo histórico, herança teórica mais
robusta e radical produzida pela humanidade nos últimos duzentos anos.
Pensar uma escola que se pretenda um “arsenal” teórico e prático para os subalternos significa
antes de mais nada estabelecer objetivos e traçar princípios (políticos, filosóficos, pedagógicos). Em
relação aos objetivos, novamente Pizetta nos ajuda expondo de forma didática os mais importantes
6
(destacamos apenas quatro): (i) impulsionar, através de suas ações, o desenvolvimento da consciência
política/organizativa dos militantes e dirigentes envolvidos nos processos de lutas e organização,
fortalecendo-as, tanto nos aspectos internos do MST como de outros movimentos que se articulam no
continente; (ii) organizar e promover atividades de formação com caráter de estudo, reflexão, análises
e debates sobre temas conjunturais e estratégicos, em que estes poderão ser realizados em parcerias
com instituições de ensino superior ou outras entidades e movimentos de diversas partes do mundo,
priorizando a articulação latino-americana; (iii) formar quadros políticos para o conjunto da classe
trabalhadora, independente do setor ou área de atuação dos militantes. Ser também um espaço de
articulação e intercâmbio com movimentos da Via Campesina, CLOC 4, movimentos sociais urbanos
da América Latina e Caribe, sempre na perspectiva da transformação social; (iv) desenvolver análises
profundas sobre a realidade, tanto local, como geral, tendo como meta a qualificação do (dos)
instrumentos (organização e lutas), visando a transformação das realidades em que os dirigentes atuam
(PIZETTA, 2007, p. 248-249).
Como é possível notar, alguns pontos são claramente caros ao Movimento, costurando os
diversos objetivos acima apresentados. Dentre eles destacamos: atuar como um espaço pedagógico,
formativo, político e organizativo não apenas interno, mas também dos inúmeros movimentos,
organizações, partidos de nuestra América, numa articulação ampla e intensa; estabelecer trocas com
as universidades públicas sobretudo brasileiras, num diálogo profícuo entre ciência e práxis política;
formar quadros políticos de forma constante de forma integral; preservar a unidade política e
ideológica do MST; promover saberes, programas, ideias que sejam dinâmicas e sintonizadas com o
projeto político dos subalternos; analisar a realidade em suas múltiplas dimensões sempre soba
perspectiva da transformação do mundo que temos hoje; ser um espaço de zelo da memória das lutas
dos povos oprimidos, com destaque para os latino-americanos; intercambiar experiências com outros
sujeitos coletivos, ampliando as possibilidades contra-hegemônicas.
Em seus recém-completados (2015) dez anos de existência, a ENFF pode se orgulhar de ter
alcançado, em maior ou menor grau, todos os objetivos elencados anteriormente, obtendo conquistas
importantes. Para Pizetta (2010, p. 1-2) funcionar ininterruptamente, com o enorme número de
educandos e educadores – passando por períodos de grande refluxo dos movimentos e das lutas, bem
como de crise econômica e de fortes tensões políticas -, e se manter como um espaço plural,
sintonizado com o sonho e a liberdade, comprometido com uma educação efetivamente emancipatória,
democrática e fraterna, representam as duas conquistas mais importantes da Escola, lugar de formação
da militância, de troca de experiências entre povos do Brasil e do mundo, de saberes (formais e
4
Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo: http://www.cloc-viacampesina.net/.
7
“informais”), referência de práxis transformadora forjada pelos de baixo. Ainda de acordo com Pizetta,
é possível afirmarmos que a ENFF vem cumprindo o papel para que foi idealizada, uma vez que
desempenha um protagonismo inconteste na formação de lideranças e de dirigentes de vários
movimentos sociais brasileiros e latino-americanos, comprometidos em maior ou menor grau com uma
perspectiva socialista de mundo. Através dela um grande número de trabalhadores do campo e da
cidade logram acesso a elementos que os permitem entender de que forma, historicamente, vem
funcionando a sociedade e quais são as medidas que devem ser tomadas, a partir de cada contexto
específico, a fim de superar as amarras que nos prendem a todos e consolidar um processo efetivamente
transformador, revolucionário.
Se possui traços alguns traços comuns com as universidades tradicionais (públicas, sobretudo)
- indissociabilidade entre teoria e prática; oferta regular de cursos (graduação, especialização, livres
etc.); promoção de atividades de cunho acadêmico (seminários, congressos, encontros etc.);
intercâmbio com instituições e movimentos de dentro e de fora do país -, a ENFF representa um novo
espaço de saber, sobretudo porque é uma Escola de um movimento social profundamente
comprometido com a mudança social; uma Escola que pensa os processos formativos, pedagógicos a
partir de um projeto político contra-hegemônico, do trabalho; que se vincula política e ideologicamente
às lutas dos subalternos e à uma nova hegemonia, uma escola que, como afirmou Gramsci, só pode
existir se for ligada à vida (GRAMSCI, 2010, p. 45). Pizetta defende que uma diferença significativa
entre a ENFF e as demais universidades é a busca por se trabalhar com sujeitos e não com indivíduos,
tendo no tripé coletividade-trabalho-solidariedade um norte inegociável.
Para além da compreensão gramsciana do trabalho como princípio educativo (GRAMSCI,
2010, p. 43; MANACORDA, 2008, p. 14), Caldart defende que é possível compreendermos o MST,
ao mesmo tempo, como princípio educativo5 (2004, p. 21) e como sujeito educativo6/educador7
(Ibidem, p. 10), a partir da concepção do Movimento enquanto dimensão/agente social e cultural. De
acordo com os elaboradores do Setor de Educação do MST, em sua caminhada histórica o MST foi
elaborando uma concepção de educação que foi capaz de hibridizar o novo e o velho. Em relação a
este último, foram resgatadas matrizes pedagógicas “descartadas” pela sociedade do capital
cotidianamente: as pedagogias do trabalho, da terra, da história, da organização coletiva, da luta social
(MST, 2005a, p. 233). Em Caldart (2005) encontramos estas “pedagogias” que conformam a
Pedagogia do Movimento em sua forma completa: às já citadas somam-se a pedagogia da cultura, da
Também presente em outro texto da mesma autora intitulado “Pedagogia do Movimento Sem Terra: acompanhamento
às escolas”, de 2001 (MST, 2005c, p. 235-237).
6
Ver MST (2005c, p. 240).
7
Ou ainda “sujeito pedagógico” (MST, 2005c, p. 241).
5
8
escolha e da alternância. Esta última representa um pilar para o Movimento, pedagogia surgida na
França (numa experiência que deu origem às “Casas Familiares Rurais”) na primeira metade do século
XX e cuja metodologia caracteriza-se pelo desenvolvimento modular dos cursos, compreendendo um
período intensivo de aula e outro de estudo, pesquisa e elaboração, quando os alunos retornam para
suas comunidades (PIZETTA, 2010, p. 3). Na alternância garante-se que o processo de escolarização
não seja um deslocamento da realidade e do modo de vida dos homens e mulheres do campo,
respeitando a seu modo o calendário agrícola, concentrando as aulas em um período e a volta para suas
comunidades em outro, permitindo que estes sujeitos desempenham atividades agrícolas e também
políticas e organizativas (LERRER, 2012, p. 467).
Para Caldart a escola não é capaz de comportar todo o “tamanho” do movimento pedagógico
encarnado pelo MST, que como dissemos, dá a escola o lugar privilegiado de primeira barraca de uma
terra ocupada. A experiência de educação do MST, neste sentido, antecede a própria escola enquanto
espaço físico reconhecido pela comunidade. Qual movimento social tem hoje vínculos tão profundos
com a educação em sua concepção mais dilatada, ou seja, enquanto dimensão fundamental da vida
humana? Qual outro movimento associa de forma tão pujante suas tarefas políticas às suas tarefas
pedagógicas? Que organização é hoje capaz de possuir uma pedagogia própria, sistematizada e
largamente debatida internamente? O “sentido educativo do MST” (CALDART, 2004, p. 30) tem
reverberado - a despeito de todas as investidas do pensamento hegemônico e seus projetos empresarialeducativos – em diversas dimensões da sociedade brasileira e estrangeira, notadamente a dos estudos
pedagógicos. Luta, construção e contra-hegemonia representam uma “tríade” do processo
“cronológico” de construção da escola no MST.
Se a escola do Movimento – e estamos sempre entendendo a ENFF como uma escola, ainda
que com outras especificidades e um escopo mais ampliado – se pretende um “novo lugar” é necessário
que tenha como orientação princípios sintonizados com sua forma particular de enxergar o real
concreto e vinculados a outras perspectivas políticas, filosóficas, pedagógicas, que não as típicas das
universidades públicas formais, que oferecem vestibular como numa linha fordista e aparecem nos
banners de ônibus ou em estacionamentos de shoppings centers oferecendo vagas em suas
especializações pagas. Assim, é necessário apresentarmos de forma mais detida tais princípios, como
materialização – ainda que necessitem da prática concreta para que isto se efetive – dos objetivos que
a Escola Nacional Florestan Fernandes defende. É importante frisar que tais princípios não estão todos
sistematizados com o “carimbo exclusivo” da ENFF, ou seja, sendo vinculados apenas a ela e às suas
dinâmicas. Correspondem a princípios norteadores de toda a pedagogia do MST (presente
sobremaneira na ENFF), construída nestas três décadas de história. Abordaremos mais à frente a
questão do projeto político-pedagógico da escola. Por hora, apresentamos os princípios filosóficos e
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pedagógicos, ideias, convicções e formulações que são balizas para o trabalho de educação que o MST
realiza de forma vigorosa (MST, 2005b, p. 159).
Os Princípios Filosóficos do MST (MST, 2005b, p. 161-165) são: Educação para a
transformação social; Educação para o Trabalho e a Cooperação; Educação voltada para as várias
dimensões humanas; Educação com/para valores humanistas e socialistas; Educação como processo
permanente de formação/transformação humana. Por sua vez, os Princípios Pedagógicos do
movimento (Ibidem, p. 165-177) são sintetizados em treze pontos: Relação permanente entre a prática
e a teoria; Combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação; A realidade como
base da produção do conhecimento; Conteúdos formativos socialmente úteis; Educação para o trabalho
e pelo trabalho; Vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos; Vínculo orgânico
entre processos educativos e processos econômicos; Vínculo orgânico entre educação e cultura; Gestão
democrática; Auto-organização dos/das estudantes; Criação de coletivos pedagógicos e formação
permanente dos educadores/ das educadoras; Atitudes e habilidades de pesquisa; Combinação entre
processos pedagógicos coletivos e individuais.
O MST possui uma obra educativa que, segundo o próprio Setor de Educação do Movimento
(MST, 2005c, p. 240), orbita em torno de três dimensões: (i) recuperar a dignidade de milhares de
famílias excluídas em todos os sentidos, despossuídos de sua condição de sujeitos e privados da
possibilidade de serem efetivamente livres; (ii) construir uma ampla identidade coletiva que
compreende cada pessoa, família, ocupação, assentamento, escola: a “identidade de Sem Terra”; (iii)
elaborar um projeto educativo das distintas gerações de família Sem Terra, focado tanto na
escolarização, quanto na formação humana e na construção de quadros para as lutas cotidianas. Ter
uma pedagogia significa ter uma práxis (Ibidem, p. 241), afirmam os dirigentes-educadores do MST.
Os Princípios Filosóficos e Pedagógicos reunidos no Caderno de Educação nº 08 (MST, 2005b,
p. 159-179), publicado em 1996, foram escritos como uma sistematização das experiências educativas
do Movimento, sendo tais princípios o ponto de partida das ações: não como etapa anterior a elas, mas
como resultado das práticas realizadas. Os Princípios Filosóficos correspondem à visão de mundo que
norteia o Movimento, suas concepções em relação ao ser humano, à sociedade e à educação: “(...)
remetem aos objetivos mais estratégicos do trabalho educativo no MST” (Ibidem, p. 160). Por sua vez
os Princípios Pedagógicos são aqueles relativos ao jeito de pensar e fazer a educação com vistas à
materialização dos próprios princípios filosóficos. Abordam os elementos considerados primordiais na
proposta educativa do MST, incluindo, sobretudo, “a reflexão metodológica (grifo dos autores) dos
processos educativos, chamando a atenção de que podem haver práticas diferenciadas a partir dos
mesmos princípios pedagógicos e filosóficos” (Ibidem).
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Neste documento – pouco antes de apresentarem os Princípios – é explícita a afirmação acerca
das duas dimensões da/de educação presentes no MST: “consideramos a educação uma das dimensões
da formação, entendida tanto no sentido amplo da formação humana, quanto no sentido mais restrito
de formação de quadros para a nossa organização e para o conjunto das lutas dos trabalhadores”
(Ibidem, p. 161). Formar sob estas duas perspectivas é algo muito claro tanto na produção teórica do
movimento e de seus intelectuais orgânicos – ao defenderem o combate da ignorância e a preparação
de pessoas para as frentes de luta (BOGO, 2011, p. 186) -, quanto na concretude do cotidiano
pedagógico do Movimento, com pudemos comprovar na pesquisa de campo, conversando com
estudantes, militantes, dirigentes.
Nos Princípios Filosóficos nos parece bem evidente a perspectiva contra-hegemônica do
Movimento: transformação (que aparece duas vezes), trabalho e socialismo são “palavras-chave”
importantes presentes nestes cinco pontos, também bastante “influenciados” pelas concepções
políticas e também pedagógicas de Marx (omnilateralidade, humanismo, processo). O primeiro deles
denota a íntima ligação entre processo político e pedagógico, explicitando que o horizonte primeiro do
movimento é a mudança social, a construção de uma sociedade mais democrática, porque efetivamente
livre em todos os aspectos. Este princípio se desdobra em seis características substantivas da proposta
de educação que o MST defende e difunde: (i) Educação de Classe (vinculada ao projeto contrahegemônico dos subalternos); (ii) Educação Massiva (a ênfase na importância da escolarização e da
educação como um direito de todos) e (iii) Educação organicamente vinculada ao Movimento Social
(construir uma proposta de educação “do Movimento”); (iv) Educação aberta para o mundo (não se
fechar em sua realidade interna, dialogando com outras dinâmicas sociais, sujeitos políticos,
perspectivas pedagógicas); (v) Educação para ação (preparar pessoas capazes de intervir e transformar
praticamente a realidade); (vi) Educação aberta para o novo (sintonizada com novos valores, relações,
pedagogias).
O segundo princípio assume a mirada marxista da categoria trabalho como princípio educativo,
compreendendo-a como dimensão ontológica fundante do ser social e como espaço que compreende
– numa realidade de movimento social do campo que lida basicamente com ocupações e assentamentos
– a cooperação como forma e dinâmica organizativa. Como afirma Princeswal (2007, p. 91), a
cooperação é pensada de maneira intersetorial, uma vez que compreende outros setores (educação e
formação, por exemplo). O princípio da Educação voltada para as várias dimensões humanas (terceiro)
mais uma vez recupera uma concepção cara ao materialismo histórico, a omnilateralidade (oposta à
unilateralidade), pensada a partir das relações pedagógicas, ou seja, uma educação que tenta dar conta
das múltiplas faces do real, dos vários saberes e práticas. O quarto princípio planteia os valores
humanistas/socialistas como norte para uma educação comprometida com a transformação social, onde
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a forja de novos homens e mulheres – na acepção guevarista mesmo da expressão – se dá no
enfrentamento das formas de sociabilidade capitalistas e na defesa de valores como o sentimento de
indignação, o companheirismo, a solidariedade, a disciplina. O último princípio filosófico (quinto)
reafirma a imperiosa necessidade da formação ser um processo contínuo, que transforma
dialeticamente educadores/educandos, base/militantes/direção, sempre apontando para a construção de
ações e saberes comprometidos com a transformação do mundo eu temos naquele que queremos.
Nos Princípios Pedagógicos também é bastante clara a perspectiva contra-hegemônica da ação
política e da pedagogia do MST. Como palavras e/ou expressões/ideias centrais neste sentido
destacamos: vínculo contínuo entre teoria e prática, ensino e capacitação; o real concreto como alicerce
da produção de saberes; a perspectiva totalizante que busca conteúdos formativos úteis à sociedade; o
trabalho como “chão” teórico-epistemológico fundamental; a educação como dimensão
imprescindível da vida social e que se vincula de forma orgânica às demais dimensões: política,
econômica, cultural; a democracia e o trabalho coletivo como “nortes” nas relações intra e
extrainstitucionais; a auto-organização e por último a pesquisa.
A partir de referências em autores marxistas que dedicaram atenção especial à educação e aos
processos formativos – Pistrak, Gramsci, Makarenko, Freire, por exemplo -, os treze Princípios
Pedagógicos da educação do/no Movimento são o “jeito de fazer e de pensar a educação, para que os
princípios filosóficos sejam concretizados. (...) eles devem ser analisados a partir da sua relação
complementar uns com os outros” (PRINCESWAL, 2007, p. 93). O primeiro princípio explicita a
constante preocupação do MST em dialogar teoria e prática, com esta última sendo a base do processo
formativo de seus educandos e o destino da educação que constroem, numa mirada que afirma o
primado da prática social sobre a teoria (MST, 2005b, p. 165), a fim de que a educação faça “mais
sentido”.
O segundo princípio pedagógico defende a combinação constante entre processos de ensino –
onde o momento do conhecimento (teoria) vem antes da ação – e processos de capacitação – onde a
ação antecede o conhecimento sobre ela. Para o MST quem ensina é o educador (pais, professores,
intelectuais) e quem capacita é uma atividade objetivada. O ensino, nesta perspectiva, tem como
resultado saberes teóricos, enquanto a capacitação tem os saberes práticos ou o “saber-fazer” (Ibidem,
p. 166). O terceiro princípio vincula-se profundamente ao primeiro: o conhecimento produzido e
reproduzido por um movimento social da envergadura do MST não pode prescindir do real concreto
como ponto de partida (e de chegada!), articulando o local e o global dialeticamente e não perdendo
de vista dois aspectos: educadores e educadoras que desconhecem a realidade não são capazes de
desenvolver um ensino que a tenha como alicerce; os assentados muitas vezes não conhecem sua
própria realidade (Ibidem, p. 168).
12
Buscar trabalhar conteúdos socialmente úteis é o quarto princípio pedagógico do MST, partindo
do pressuposto que o caráter de utilidade tem relação direta com os objetivos políticos, estratégicos do
movimento e, logo, com as classes com as quais se vincula (subalternos). Segundo Princeswal (op.
cit., p. 95), ao decidir que a seleção destes conteúdos úteis socialmente não é neutra, “o MST assume
que busca eleger aqueles que estejam em consonância com os seus princípios, destacando-se a
necessidade de consolidar constantemente sua organicidade”. O quinto princípio pedagógico – a
Educação para o trabalho e pelo trabalho – representa uma clara alusão ao segundo princípio filosófico
da educação no/do MST, uma vez que defende novamente uma educação organicamente vinculada ao
mundo do trabalho e o trabalho como método pedagógico: “nesta perspectiva, o trabalho ganha
destaque por seu potencial educativo, ou melhor, como princípio educativo na formação da
consciência de classe” (Ibidem, p. 96).
O princípio seis, sete e oito correspondem, na verdade, a um princípio com três eixos: os
vínculos orgânicos entre educação e política, economia e cultura, nesta ordem. Sob forte inspiração
marxiana (novamente a omnilateralidade) e gramsciana (a perspectiva da Escola Unitária) a educação
no/do MST compreende a realidade em seus distintos âmbitos, entendendo que o “fatiamento” pósmoderno do real é uma forma de sepultar a organicidade existente entre a educação, a prática política,
os processos produtivos e as formas de representação/significação do mundo, objetivando a
neutralização do projeto societário contra-hegemônico das classes subalternas, bem como de seus reais
ou potenciais aliados/entusiastas, na extensa guerra de posição de nosso mundo atual (SEMERARO,
2006, p. 145).
O nono princípio apresenta uma cara bandeira do MST, empunhada desde sua gênese e
renovada/reforçada a cada nova etapa de seu desenvolvimento histórico como movimento social e
político: a democracia. Defender a gestão democrática – presente nos discursos de pedagogos,
gestores, intelectuais orgânicos às classes hegemônicas e sempre ausentes de suas práticas
comprometidas com a não-transformação da escola – significa materializar o “carimbo” contrahegemônico do movimento, forjado a partir da luta dos despossuídos e por ela animado
cotidianamente. Uma escola dos subalternos (e para eles) tem obrigatoriamente que ser democrática,
plural, coletiva, sintonizada com a diversidade de projetos, opiniões, perspectivas e nutrida pela defesa
intransigente da participação de todos no processo de produção e difusão de saberes. De acordo com
Princeswal (2007, p. 98) o MST objetiva com a gestão democrática de seus espaços educativos a
participação efetiva dos sujeitos envolvidos no processo de formar, “através da direção coletiva - que
abrange não só os participantes diretos, mas a comunidade de um modo em geral. Neste caso, a gestão
democrática não significa apenas ser teorizada e discutida, mas vivenciada na prática coletiva.
13
O décimo princípio pontua a questão da auto-organização como “metodologia” imprescindível
nos/dos processos educativos do MST, a partir sobretudo das reflexões de Pistrak. Para o Movimento
a auto-organização – de forte caráter (e conteúdo) pedagógico -, também compreendida como
“autogestão pedagógica” corresponde a uma das dimensões da gestão democrática, sendo aquilo que
a torna “mais verdadeira” (MST, 2005b, p. 173). A criação de coletivos pedagógicos e formação
permanente dos educadores/das educadoras – o décimo primeiro princípio – planteia que sem uma
coletividade de educadores não existe processo educativo (Ibidem, p. 174), numa clara alusão à teoria
de Makarenko. Como afirma o Setor de Educação do Movimento o princípio dos coletivos
pedagógicos relaciona-se com outro importante princípio que é a necessidade de quem educa também
ser educado, numa “autoformação permanente (Ibidem, p. 175).
O penúltimo princípio (décimo segundo) demarca a importância da prática de pesquisa – outra
ação que deve ser constante – como metodologia de educação e também como (...) um princípio
educativo, que inclusive pode ficar nas séries iniciais, quebrando esse parâmetro da pesquisa, só no
mestrado e doutorado, (...) a pesquisa ela é estratégia para a formação, no sentido da autonomia do
indivíduo (LOBO apud PRINCESWAL, 2007, p. 100). É entendida em seu sentido amplo
(investigação sobre uma realidade e não apenas como análise de corte acadêmico), ainda que ao
afirmarem que a pesquisa implica determinadas habilidades e “competências”, tornem a compreensão
do termo muito parecida com a forma limitada e pragmática dos manuais de “pedagogês”. O décimo
terceiro e último princípio busca dar conta do diálogo entre os processos pedagógicos em âmbito
individual e coletivo, ressaltando que a despeito das “acusações” sobre a demasiada atenção ao coletivo
em detrimento do individual, o MST enfatiza que todos os seus princípios pedagógicos têm como
centro a pessoa humana, mas não numa abordagem isolada do conjunto social, mas integrada a ele.
Numa clara influência da pedagogia de Paulo Freire, da noção do processo educativo como relação
dialética, afirmam que “a partir de nossas práticas pedagógicas já pudemos verificar a verdade do
princípio que diz: ninguém aprende por ninguém, ninguém se educa por alguém; mas também ninguém
se educa sozinho” (MST, 2005b, p. 176). Este princípio ainda aborda as questões do acompanhamento
pedagógico sistemático de cada aluno e aluna e, ainda que sucintamente, da avaliação, assunto que o
documento como um todo fica devendo.
UPMPM: entre a formação acadêmica e a formação política, parir rebeliões perpetuando a
maternidade
14
A UPMPM é fundamentalmente uma universidade de luta e de resistência que objetiva
contribuir para a formação de pensamento crítico, latino-americano, engajado em um profundo
compromisso político de transformação da realidade, como assinalam as próprias Madres na
apresentação da universidade em sua página oficial. Assim como na ENFF, sua existência materializa
o comprometimento do Movimento com a formação política – com vistas a perpetuá-lo, renová-lo,
coesioná-lo – e com a formação em nível acadêmico, fortalecendo os saberes e práticas que se
pretendem contra-hegemônicos e avançando na elaboração de espaços de educação popular que sejam
verdadeiramente capazes de oferecer aos subalternos, aos estudantes excluídos das grandes
universidades (chamadas na Argentina de Universidades Nacionais), aos que almejam uma formação
crítica, integral, o acesso ao nível superior.
Na universidade das Madres há tamanha atenção para o vínculo formação política-formação
acadêmica que na grade de todos os cursos há a disciplina obrigatória “Formação Política” na chamada
Formação Geral Básica (que trataremos mais à frente), ciclo inicial de formação das graduações. Junto
à disciplina também obrigatória e presente em todos os cursos - “História das Madres de Plaza de
Mayo” - a “Formação Política” materializa um objetivo original do Movimento: formar quadros
políticos-culturais-profissionais comprometidos com as lutas do povo argentino, objetivando disputar
a hegemonia intelectual e fortalecer as classes populares e os novos movimentos sociais, como
salientado no trecho que destacamos.
Se a UPMPM não é a única iniciativa das Madres em seu processo de “dilatação” institucional
(Periódico Madres de Plaza de Mayo, Rádio Madres, Televisão Virtual, Livraria etc.), é aquela
responsável diretamente pela reprodução de seus quadros e do legado daquelas mães, que se voltam à
sala de aula num duplo movimento - recordar seus filhos e tornar possíveis bandeiras empunhadas por
eles, “encontrando-os” finalmente naquele espaço de memória, de saber e de luta. Como dizem as
próprias Madres, “como quien engendra un hijo, así nació la Universidad Popular Madres de Plaza
de Mayo”8. Com Basile (2002, p. 67), afirmamos que este passo representa uma nova modalidade de
luta dos movimentos sociais argentinos na conjuntura de uma democracia pós-ditatorial ainda
“deficitaria” que aceita e tolera atos de protesto e não mais a luta armada; uma prática que requer o
conhecimento e o manejo de novos espaços de legalidade que carregam em si demandas por justiça e
memória, culminando na construção da UPMPM: “las prácticas transformadoras ensayan otras
vías”.
Ainda de acordo com Basile (Ibidem, p. 68), o projeto da UPMPM se liga a uma tradição latinoamericana – de onde Paulo Freire é um dos grandes expoentes, com sua concepção da educação
8
Disponível em: http://www.madres.org/navegar/nav.php?idsitio=2&idcat=237&idindex=73. Acesso em: fev. 2015.
15
popular como uma pedagogia da libertação – que representa um antecedente na qual as práticas
pedagógicas se vinculam com os processos de mudança social. Para a autora esta universidade propõe
um tipo de conhecimento que, em oposição ao que existe nas universidades ditas tradicionais, se baseia
na experiência – tema que trabalharemos posteriormente – e aprofunda suas dimensões políticas. A
origem da UPMPM está justamente na experiência sofrida pelas Madres nos anos do Proceso, uma
experiência onde convergem tanto a herança revolucionária de seus hijos quanto seus próprios esforços
por recuperá-los: “(...) las Madres rescatan el legado revolucionario de ellos para convertirlo en una
utopia que guíe la praxis de sus luchas, protestas y reclamos (Ibidem, p. 69). A memória, nexo entre
mãe e filho, resgata os 30.000, lembrando-os e homenageando-os, mas não os sepulta, uma vez que
enterrar os filhos significa enterrar suas utopias, ressignificadas para as questões do presente, assim
como o termo subversão.
Así, nuestra Universidad Popular tiene el propósito de estimular el pensamiento
crítico y organizar ámbitos grupales de reflexión creativa. Articular la teoría y la
práctica, generar herramientas para disputar la hegemonía intelectual, abrir un espacio
para que los sectores populares y los nuevos movimientos sociales puedan participar
y crear formas de construcción política. Esta aventura cultural se propone superar las
prácticas educativas del sistema, legitimadoras de la opresión. Pretendemos recuperar
las tradiciones de resistencia popular, transformar la sociedad y a nosotros mismos,
en el saber y la lucha. Todos los espacios de discusión político-académica que
construye la Universidad Popular encuentran su validez en la praxis fértil sostenida a
lo largo de estos años de experiencia y aprendizaje junto a las Madres de Plaza de
Mayo9.
Da luta pela memória e seus correlatos “justiça” e “verdade” decorre uma preocupação
constante e explícita com os direitos humanos, que é um dos eixos políticos, ideológicos e formativos
mais vigorosos daquela universidade. Tal importância e centralidade dos Direitos Humanos na
UPMPM é uma das marcas mais notórias da forma em que a luta revolucionária se articula no presente
argentino: não é fortuita a criação de uma universidade popular no contexto do aprofundamento
truculento do neoliberalismo na Argentina da Alianza e de Fernando De la Rúa (1999-2001). Nenhum
outro movimento argentino tomou em suas mãos a difícil tarefa da continuação da luta e da ampliação
da concepção de direitos humanos (direito à educação, saúde, lazer, moradia, e não apenas direito à
vida em contextos ditatoriais) durante a abertura política de 1983 e, sobretudo, nos anos que se
seguiram ao governo de Alfonsín. Lutar pelos direitos humanos, por educação popular, por democracia
num contexto institucionalmente democrático é tarefa árdua dada a “dissolução” aparente do inimigo
9
Disponível em: http://www.madres.org/navegar/nav.php?idsitio=2&idcat=237&idindex=73. Acesso em: fev. 2015.
16
e os “novos ares” de liberdade e juízos: a luta continua em outras frentes e a criação da UPMPM nos
parece ser a trincheira primordial escolhida pelo Movimento para seguir, sendo capaz de aglutinar
intelectuais da esquerda ao convocá-los a fazer parte de um projeto comum (BASILE, Ibidem, p. 77).
Mauersberger (AMPM, 2009, p. 68) afirma que a universidade das Madres desempenha um
papel de “lugar de encuentro” no atual contexto dos movimentos sociais na Argentina, exercendo a
função primordial de ser um aglutinador, um mediador, um ugar de encontro para as demais
organizações sociais do país. Um lugar de encontro seria o oposto do lugar interno: tem um caráter
mais aberto e uma ideia multisetorial. O autor também reforça a preocupação das Madres, quando da
criação da UPMPM, em criar um espaço que sirva para a formação de quadros político-culturais (que
seria sua meta principal de acordo com ele), além de elencar alguns êxitos da instituição: não ser
percebida como um local interno das Madres; ter conseguido reunir um público heterogêneo (jovens,
trabalhadores, militantes, organizações das classes subalternas, pessoas de classe média, intelectuais);
não estar limitada a um tema /ou movimento em particular (pessoas e organizações da área de cultura,
saúde, economia; piqueteros, movimentos indígenas, estudantes de outras universidades, políticos).
Para Mauersberger (Ibidem, p. 71) “lo que los une [o público da UPMPM] es más bien una idea difusa
de querer uma sociedad más justa”. A universidade desempenha o papel de “fonte”, fomentando o
desenvolvimento de laços livres entre as organizações de diferentes movimentos sociais: “existe como
una institución a la cual los actores pueden recurrir sin tener que estabelecer relaciones
institucionalizadas que perjudicarían su propia autonomía”.
Numa análise cuidadosa dos desafios da formação acadêmica e política em uma universidade
popular – mesmo título do artigo – Cortizo (AMPM, 2008, p. 5) afirma que a primeira universidade
popular argentina foi fundada em 1900 sob a condução do Partido Socialista, sendo abortada pela
ditadura de 1976. Todavia, como contraponto às chamadas “universidades nacionais” (tradicionais),
continuam existindo, como estas que citamos: Universidad Popular de La Boca (1917, Buenos Aires),
Universidad Popular de Resistencia (1929, Província do Chaco), Universidad Popular de Belgrano
(1930, Buenos Aires), Universidad Popular Alejandri Korn (1937, La Plata), Universidad Popular de
Paraná (1942, Província de Entre Ríos), Universidad Popular de Villa María (Província de Córdoba),
Universidade Popular de Catamarca. Hoje, sem dúvida, a mais conhecida universidade popular
argentina é a UPMPM, como o próprio autor frisa no artigo. Cortizo elenca, a partir do Estatuto
Acadêmico da universidade, quatro pontos acerca do que pretendem as Madres com esta instituição:
(i) sostener el desarollo de uma huella histórica, política y simbólica como lo son las
Madres de Plaza de Mayo; (ii) contribuir a la formación de cuadros políticosculturales con capacidade crítica, analítica y propositiva tendiente al cambio social;
(iii) propender a fortalecer la mirada dentro de un recorte de área disciplinar vinculada
17
a los derechos humanos como totalidade académica, investigativa y de extensión; (iv)
priorizar la construcción colectiva de conocimiento y valorar la cultura popular de
nuestro país y del continente (Ibidem, p. 9).
O diretor da carreira de Serviço Social da UPMPM pontua que não há educação popular
apartada da prática social: a educação é popular quando é capaz de se ligar profundamente à prática
dos setores populares, para além dos conhecimentos especializados, como uma prática “intra
generada” nas matrizes do próprio povo. A formação universitária popular deve se pensar a partir de
algumas alguns referenciais importantes: os sujeitos que nela se formam; os conteúdos que nela são
utilizados para formar estes sujeitos; as práticas sociais e políticas que nela se realizam; a inclusão no
campo do trabalho, dos (das) intelectuais que ali se formam.
A formação política – uma das tarefas organizativas constitutivas dos movimentos sociais
(KOROL apud BASILE, op. cit., p. 71) - e acadêmica da UPMPM configura um campo de luta por
uma autonomia intelectual que permita a organicidade com a classe trabalhadora, recuperando desta
maneira o compromisso político com a construção de uma sociedade igualitária e democrática. De
acordo com Cortizo a formação acadêmica nas universidades populares deve tender a forjar novos
intelectuais alicerçados nos interesses populares, cuja prática social e política (e pedagógica,
acrescentaríamos) dê origem a novos modos de pensar e atuar na solução das situações de iniquidade
e exclusão dentro do campo dos direitos humanos e sociais (Ibidem, p. 12). Intelectuais comprometidos
pedagógica e politicamente com a construção de uma universidade que instale o debate e a articulação
crítica com o Estado; que promovam e sustente a formação de profissionais cuja prática social e política
se dê a partir do reconhecimento dos interesses e projetos populares e dos próprios saberes do povo;
que sejam um agente formador dos sujeitos do campo popular, com plena consciência – a despeito de
reunir em suas fileiras pessoas da classe média, de onde muitas Madres provêm – de que os
trabalhadores “ocupados” ou “desocupados” podem e devem ter acesso à formação de alto nível,
geralmente reservadas às classes que ocupam as duas primeiras letras do alfabeto (Ibidem, p. 13).
Para Basile (op. cit., p. 74), a articulação entre conhecimento e práxis social é uma constante
preocupação em todas as graduações da UPMPM, uma vez que é evidente que a universidade nasce
de um movimento de protesto, de luta como as Madres; um espaço que surge como expansão daquelas
mães, daí seus interesses e objetivos específicos, seu marcado caráter político e sua proximidade com
a luta política. No contexto de saída da ditadura mais atroz dentre as seis ocorridas no século XX na
Argentina, tanto as Madres “(...) como su Universidad popular emergen como instituciones
organizadas y com presencia em la esfera pública, capaces de articular una acabada síntesis de este
perfil crítico” (Ibidem, p. 76).
18
A UPMPM está alicerçada em sete Princípios (Artigo 6) gerais, os quais traduzimos livremente:
(i) A origem histórica, política, material e simbólica da universidade se encontra na vontade e na ação
da Fundação Madres de Plaza de Mayo e a comunidade universitária se orgulha de honrar sua luta,
sendo esta uma fonte contínua de responsabilidade social, energia criadora e esperança de
transformação; (ii) Os processos de ensino e de aprendizagem são o resultado de uma construção
coletiva, que se enriquece pelo intercâmbio de conhecimentos e experiências que são fruto da
contribuição de todos os (as) integrantes da comunidade universitária; (iii) O ensino é teórico e prático,
sustentado em bases científicas e éticas que tendem a desenvolver o pensamento crítico dos (das)
estudantes, a atitude de observar e analisar, a sensibilidade social e seu compromisso ativo para com
as transformações das situações de desigualdade e opressão, com juízo, iniciativa própria e
responsabilidade social; (iv) Professores, estudantes e trabalhadores das áreas de apoio à atividade
acadêmica são sujeitos de aprendizagem e de transformação, estreitamente vinculados ao processo
histórico-político que atravessam e ajudam a construir; (v) Os docentes da UPMPM tornam seu o
princípio de banir de sua prática todo vestígio autoritário e promover hábitos de diálogo e intercâmbio
grupal na tarefa educativa; (vi) Para estudar na UPMPM é preciso profundo amor pelo saber e
compromisso com a mudança social; (vii) A formação é integral, interdisciplinar, inovadora e criativa,
tendendo a produzir processos educativos libertadores da pessoa e da sociedade, num clima de respeito
pela diversidade cultural, religiosa, étnica, política, racial, de gênero, de capacidades e de opinião.
Dos Princípios (que não distinguem, como no caso do MST, os aspectos filosóficos dos
pedagógicos) da UPMPM emerge uma perspectiva contra-hegemônica da ação política e da pedagogia
das Madres, uma pedagogia não-sistematizada como a do Movimento dos Sem-Terra - com vasta
produção e inúmeros debates sobre sua própria maneira de entender a educação -, mas nem por isso
“menor”. Como palavras e/ou expressões/ideias centrais neste sentido é possível apontar: a luta das
Madres impregnando todo o ambiente da universidade; o compromisso de todos com a transformação
da realidade social; a educação como dimensão destacada da vida em sociedade e como processo
coletivo e sempre em construção; o vínculo dialético entre saber teórico e saber prático; o estímulo ao
pensamento crítico; a compreensão de que professores, alunos e trabalhadores da instituição são todos
sujeitos da aprendizagem; a relação direta entre os sujeitos históricos e os contextos históricos; a
potência da educação como prática da liberdade, como antítese do autoritarismo; a necessidade de se
colocar amor naquilo que se faz e no que se pensa; a defesa de uma formação integral, omnilateral,
que dialogue as distintas áreas do saber e que promova inovação e criatividade, norteada pela alteridade
comprometida com uma nova sociedade, livre, porque justa e justa, porque livre.
Analisando de forma mais ampliada estes princípios, é possível afirmar que o primeiro
princípio explicita a ligação profunda entre a universidade e o movimento que a funda, numa relação
19
filho-mãe que as Madres não cansam de repetir como insígnias: “parir rebeliones” e “nuestros hijos
nos parieron”. Compreender a universidade como o filho mais querido das Madres é quase que uma
constatação automática de quem visita suas instalações. As mães estão lá em todos os lugares, desde a
decoração até os currículos, dos eventos às homenagens, dos graduandos aos docentes. A socialização
da maternidade como forma singular de solidariedade encontra naquele espaço diminuto sua expressão
mais pungente.
O segundo princípio – assim como parte do primeiro – indica a importância dos vínculos entre
comunidade a comunidade universitária, a sociedade argentina e o próprio movimento. Enfatiza a
dimensão coletiva do trabalho ali realizado, que não dicotomiza saberes, experiências, origens, teoria
e prática, como diz o terceiro princípio da UPMPM, onde ciência, ética e criticidade não transitam em
separado, mas conformam uma sinergia fundada na sensibilidade da maternidade, cujo sentido da vida
é dado pela existência dos filhos e de um mundo melhor para eles, daí a atenção especial com o par
desigualdade-opressão.
No princípio 4 é reivindicada a relação intrínseca entre conjuntura e pessoas ou entre contexto
e sujeitos, assim como se defenda a o caráter indissociável dos vínculos entre todos aqueles homens e
mulheres, jovens e velhos, indígenas ou brancos, alunos ou professores, serventes ou coordenadores,
que atuam constantemente no fazer cotidiano da universidade. Sobre os docentes, especificamente, no
quinto princípio é enfatizado o cuidado constante para extirpar qualquer traço autoritário na/da relação
de ensinar-aprender, como um “recado” nítido das lutas encampadas por aquelas mães do lenço braço
que entraram na praça em 1977 e de lá não mais saíram, levando-a para a universidade.
O penúltimo princípio integra duas dimensões primordiais da vida em sociedade: o amor pelo
saber e o compromisso com a transformação do mundo, que encontram numa educação contrahegemônica – porque pensa o mundo a partir da perspectiva dos oprimidos, dos subalternizados,
ensaiando alternativas e atuando firmemente na construção de novas epistemes e práticas – uma
expressão fundamental e fundante de outras perspectivas, sobretudo num contexto universitário latinoamericano de expansão dos mercados sobre as pedagogias e de atuação das pedagogias em favor do
mercado, comodificando a educação e consagrando cada vez mais a ideia de que educação boa é
educação paga. No sétimo e último princípio reivindica-se a integralidade e a interdisciplinaridade
da/na formação como elementos inegociáveis quando se pretende uma educação livre, ampla, plural,
porque acolhedora da diversidade em suas múltiplas expressões. Uma educação pensada a partir de
um movimento social de mães que encampou as lutas (sem armas) contra um regime civil-militar atroz
não pode prescindir do uso – sem moderação – do duplo libertação-liberdade e do diálogo entre
inventividade e criatividade.
20
Contra-hegemonia e universidades populares: UPMPM e ENFF
Ao contrário de que é comum imaginar o conceito de contra-hegemonia não foi formulado por
Gramsci, como defende Netto (2008, p. 119). Corresponde a uma interpretação do conceito de
hegemonia do filósofo sardo a partir de uma perspectiva crítica, atualizada e, sobretudo estratégica,
por parte de inúmeros marxistas, dentre os quais destacamos os brasileiros Carlos Nelson Coutinho
(2007), Gaudêncio Frigotto (2010), Virgínia Fontes (2008), Lúcia Neves (2005), José Paulo Netto
(2008), Dênis de Moraes (2008), Emir Sader (2004) e os britânicos Raymond Williams (1979) e Terry
Eagleton (1997), objetivando traduzir/demarcar, em termos de luta ideológica e material, um projeto
antagônico de classe, em relação à hegemonia burguesa. O termo, que se consolidou pelo uso, significa
que a luta é contra uma hegemonia estabelecida, uma luta que objetiva a construção de uma nova
hegemonia, e que por isso, corresponde a um projeto de classe distinto. Como corresponde a uma
interpretação, tal conceito oferece muitas dificuldades para quem se “aventura” a explorar seu (s)
significado (s). Além de escassa na literatura marxista, a definição do conceito pode ser encontrada
sob os mais distintos espectros político-ideológicos.
Longe de incorporar um neologismo, utiliza-se um conceito legitimado por diversos
intelectuais importantes dentro do campo marxista (ainda que poucos o definam), que fazem uso da
“contra-hegemonia” querendo apontar para outro projeto de classe, outro mundo possível e urgente. É
importante frisar que há debates em torno da questão, com outras expressões diferentes de contrahegemonia - “outra hegemonia” (SEMERARO, 2009, p. 175), por exemplo – que representam
interpretações diferentes sobre o conceito de hegemonia em Gramsci. Nos valemos de contrahegemonia entendendo que não é o único nem a “melhor” utilização de um conceito derivado de
hegemonia, apenas a mais utilizada na literatura marxista.
Daniel Campione (2003, p. 53) utiliza a expressão “hegemonia alternativa10” como sinônimo
de contra-hegemonia, afirmando que só é possível a conversão dos grupos dominados em hegemônicos
se estes passarem do plano econômico-corporativo ao plano ético-político (com o vetor “ético”
indicando a dimensão intelectual e moral e o vetor “político” o controle do aparato de Estado). De
acordo com Eduardo Granja Coutinho (2008, p. 77), parafraseando Marx, é possível afirmar que toda
hegemonia “traz em si o germe da contra-hegemonia. Há, na verdade, uma unidade dialética entre
ambas, uma se definindo pela outra. Isto porque a hegemonia não é algo estático, uma ideologia
pronta e acabada. Uma hegemonia viva é um processo. Um processo de luta pela cultura”. E
recuperando Raymond Williams, a partir de Chauí (1986, p. 22), frisa que a hegemonia “deve ser
10
Também Emir Sader utiliza esta expressão, ao abordar a questão da luta dos “de baixo” (2005, p. 10).
21
continuamente renovada, recriada, defendida e modificada e é, continuamente, resistida, limitada,
alterada, desafiada por pressões que não são suas” (Ibidem). Para Williams (1979, p. 115-116 “temos
então de acrescentar ao conceito de hegemonia o conceito de contra-hegemonia e hegemonia
alternativa, que são elementos reais e persistentes na prática”. Por sua vez, Terry Eagleton afirma
que “qualquer poder governante é forçado a travar combate com forças contra-hegemônicas de
maneiras que provam ser parcialmente constitutivas de seu próprio domínio” (1997, p. 107).
Assim, a hegemonia corresponde à liderança de uma classe e suas frações sobre as demais;
corresponde a uma direção política, cultural que é exercida por uma classe em aliança ou não com
outras. Logo, um movimento contra-hegemônico sempre compreenderá a luta de classes, significando
um projeto distinto de sociedade, como por exemplo, o comunismo em relação ao capitalismo. Desta
forma, é fundamental a compreensão de que toda contra-hegemonia é uma luta em duas frentes: a
material (que Gramsci chama de “conteúdo”11) e a ideológico-cultural (que Gramsci chama de
“forma”). Conquistar a hegemonia significa, para Gramsci, estabelecer uma liderança moral,
intelectual, política, difundindo sua própria “concepção de mundo” por toda a sociedade.
Esta breve digressão sobre o conceito de contra-hegemonia nos é cara, na medida em que na
tese que desenvolvemos - a partir de uma releitura do conceito de experiência em Walter Benjamin e
E. P. Thompson, entendidas respectivamente como construção de sentidos e como sentimento -,
defendemos que Madres e MST, na UPMPM e na ENFF, a despeito das metamorfoses, tensões, recuos,
têm ressignificado de forma vigorosa os sentidos da educação popular e questionado profundamente
os alicerces (e os telhados) das universidades tradicionais latino-americanas, uma vez que renovam o
debate sobre o caráter público da educação, reafirmam o direito dos subalternos à educação, à cultura,
sob epistemologias que, se não rompem integralmente com velhas pedagogias, são capazes de apontar,
a partir da práxis política destes dois grandes movimentos sociais, práxis pedagógicas há muito
negligenciadas pelos sujeitos políticos mais clássicos, como os partidos e os sindicatos.
Se os movimentos sociais combativos do continente entenderam, num contexto de crise do
neoliberalismo e ao mesmo tempo da esquerda tradicional no continente, que nas frentes das lutas
contra-hegemônicas - as lutas das classes subalternas – é imperioso robustecer os espaços de saber e
cultura, não de uma forma endógena apenas, mas abrindo estes movimentos para o conjunto da
sociedade civil, notadamente seus setores subalternos. Em nossa análise (e na tese isto também é
explicitado com mais calma), a UPMPM largou na frente neste sentido, em relação à ENFF, não
apenas por ser uma universidade com carreras de grado formais, mas pela própria concepção das
Madres acerca da importância desta abertura, que não é somente estar aberto à entrada de pessoas, mas
11
EAGLETON, 1997, p. 109.
22
à crítica de fora. Ambas as universidades, como fizemos questão de destacar neste artigo, manejam
duas dimensões complexas do saber em seus vínculos com a luta política: a formação de quadros e a
formação acadêmica. Na ENFF, em nossa opinião mais opaca à crítica externa, menos acessível em
distintos aspectos12, a formação de quadros é muito mais evidente e constante, sobretudo por conta do
tamanho do MST em relação às Madres.
Recuperar Marx em Crítica ao Programa de Gotha é estritamente necessário, não apenas em
sua afirmativa categórica de que “cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia
de programas” (2012, p. 20), mas principalmente quando o filósofo alemão defende veementemente
que não pode ser o Estado o agente da educação popular, mas o contrário: é justamente o Estado que
necessita receber do povo uma educação muito rigorosa (Ibidem, p. 46). Madres e MST, espaços
oriundos da plaza e do solo, na cidade e no campo, de mães órfãs de seus filhos e de camponeses
despossuídos de sua terra (a despeito das transformações nestas/destas instituições em nível político,
estratégico, organizativo), através de suas universidades populares, ao mesmo tempo que ensaiam
novas epistemes e outras pedagogias – que emergem do seio das velhas pedagogias -, forjando “uma
unidade viva que em vão se procura criar nas escolas burguesas” (GRAMSCI, 1976, p. 97-98)13,
concretizam (não sem problemas, equívocos e disputas), a urgência de se construir praticamente outros
lugares de saber, outras formas de saber, renovando os vínculos indeléveis entre educação e sociedade.
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12
Em nosso trabalho de campo detalhamos estas questões de forma minuciosa, apresentando nossas impressões, os relatos
e materiais obtidos in loco.
13
Texto originalmente escrito em 1919 sob o título A escola de cultura e publicada em L’Ordine Nuovo em 20 de dezembro
daquele ano.
23
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