Dra. Mônica Aparecida Del Rio Benevenuto
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Dra. Mônica Aparecida Del Rio Benevenuto
A ECONOMIA DOMÉSTICA COMO CIÊNCIA DO COTIDIANO: A PRODUÇÃO CIENTÍFICA EM ECONOMIA DOMÉSTICA Monica Aparecida Del Rio Benevenuto8 Saudações Ao saudar a profª Dra. Karla Maria Damiano Teixeira e profª Dra. Francisca Silvânia de Sousa Monte, companheiras dialógicas nesta mesa, saúdo os demais congressistas. Agradeço à Comissão organizadora do XX CBED, na pessoa da presidente profª Sande Maria Gurgel D'Ávila pelo convite para participar da mesa “A economia doméstica como ciência do cotidiano: a produção científica em economia doméstica” e parabenizo pela escolha do tema cuja pertinência despertou em mim uma série de possibilidades para desenvolvê-lo. Pretendo resgatar a estrutura conceitual do conceito de ciência para nos ajudar a entender porque as ações do cotidiano – entendido o conjunto de realização de ações diárias, de forma pragmática, portanto irrefletida (HELLER, 1972) ficaram por longo tempo sem alcançar a visibilidade necessária para despertar o interesse como objetos de estudo, ficando fora do domínio científico. Minha reflexão está dividida em 3 partes. A primeira resgata, brevemente, o desenvolvimento histórico do paradigma da era moderna, aqui entendido por pensamentos, percepções e valores que formam uma determinada visão da realidade, que consolidou a crença de que o “método científico seria a 8 Economista Doméstica - Dra. em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (UFRRJ) - Profª do Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal rural do Rio de Janeiro - UFRRJ - Seropédica, Rio de Janeiro – Brasil 47 única abordagem válida do conhecimento, bem como a crença da concepção do universo como um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares, da concepção da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência; e do progresso material ilimitado, a ser alcançado através do crescimento econômico e tecnológico” (CAPRA, 1982:28). A segunda parte busca localizar o espaço da Economia Doméstica na seara científica. A terceira se dedica à ciência no/do cotidiano e suas possibilidades para o profissional de Economia Doméstica. Tenho consciência de que esta reflexão é indubitavelmente superficial, dadas as limitações de espaço e tempo e de meus conhecimentos. Entretanto, penso que seja um bom caminho para pensar a atuação do profissional de Economia Doméstica e espero que contribua para sustentar um debate importante e necessário sobre o pensar e o fazer científicos dessa categoria. I - O conhecimento científico Aqui pretendo realizar um breve resgate da formação das bases da ciência moderna a fim de caracterizar o que passou a ser concebido e consagrado como conhecimento científico. Entendendo que a natureza do conhecimento científico e a maneira como ele deve ser concebido e justificado muda historicamente, este exercício traça uma pequena trajetória de constituição da ciência, mostrando que aquilo que hoje se concebe como ciência, um efeito bastante homogêneo, passou por grandes transformações até que se tornasse a voz de autoridade tal qual a conhecemos. A perspectiva histórica é aqui realizada com intuito não de estabelecer uma cronologia de eventos e fatos, mas antes para tentar voltar-se para um contexto muito mais complexo: teorias, experimentos, instrumentos e interpretações não são produtos de um pensamento isolado - refletem um momento histórico. Nesse sentido, nossa interpretação também tem uma dimensão histórica, que varia de acordo com o corpo de conhecimentos que auxilia a interpretar o que é observado (BARROS, 1998 apud ROGADO, 2007). Dessa forma, o trabalho com os conceitos e conhecimentos científicos permeados pela história, permite o entendimento da evolução dos conhecimentos, possibilita maior percepção da influência da ciência na tecnologia, sociedade, política e economia e destas sobre a própria 48 ciência, suscitando entendimento mais complexo da realidade (ROGADO, 2000, apud FILHO, 2008:3). 1.1 - Ciência e cotidiano Para a sociedade feudal, a erudição e o conhecimento eram detidos por grupos privilegiados e a vida cotidiana encontrava-se muito distante da ciência (VALVERDE, 2004:63). A ciência renascentista revelou uma novidade: o fato de emergir de necessidades da vida cotidiana comum. Entretanto, a visão cotidiana do conhecimento também sofreria alteração, pois as grandes descobertas se acumulavam, sobretudo, as de caráter científico. Para sintetizar o processo que culminou com a adoção do paradigma mecanicista pela ciência moderna é suficiente destacar alguns de seus impulsionadores e introdutores do método científico. Inicio essa transformação com a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico. Galileu Galilei, com uma incipiente luneta e cálculos matemáticos sofisticados para a época, confirma a teoria de Copérnico e descobre, ainda, as leis da queda dos corpos. Considerado o “pai da ciência moderna” por combinar a experimentação científica com a linguagem matemática para formular leis da natureza, Galileu abalou o conhecimento da época desaparecendo a idéia tradicional do Cosmo grego hierarquicamente ordenado, dando lugar à idéia de um espaço aberto e infinito marcado por leis universais. Para Koyré (sd:17)a destruição do Cosmo seguida pela geometrização do espaço são traços fundamentais para caracterizar a atitude mental da ciência moderna. Kepler expôs em as três leis do movimento dos planetas. Michel Servet concebeu a idéia da circulação do sangue. A matemática pura avançou com o matemático italiano Tartaglia que resolveu equações do 3º grau. Viète, antes mesmo de Descartes e Fermat, entrevê o princípio da aplicação da álgebra à geometria. A descoberta da pólvora, a invenção das armas de fogo, da bússola altera o cenário das guerras, conquistas e da navegação marítima. Se a tudo isso for acrescida a invenção da imprensa e a difusão da cultura humanista compreende-se a efervescência intelectual e a expectação da época do Renascimento (VALVERDE, 2004:63-4). 49 René Descartes ofereceu à ciência moderna o método analítico de raciocínio que consiste em decompor pensamentos e problemas em suas partes constituintes e dispô-las em ordem lógica. O método cartesiano operou uma separação radical entre corpo e mente, ou seja, entre o material e o imaterial, sendo a realidade material o objeto de reflexão científica. O entendimento racional e objetivo excluiu outras manifestações mentais e espirituais consideradas como subjetividades. A realidade ficou reduzida a um de seus aspectos, os demais foram relegados a outros domínios: religião, senso comum, filosofia, crenças, etc. Este reducionismo ainda se prolongou na maneira de analisar o objeto, compreendendo-o como fenômenos complexos reduzíveis a uma série de elementos constituintes. Essa atitude ficou tão arraigada em nossa cultura, sendo identificada como método científico (CAPRA, 1982:44) que possibilitou e ainda possibilita grandes descobertas e avanços científicos espetaculares. Isaac Newton, que realizou uma grandiosa síntese das obras de Copérnico, Kepler, Bacon, Galileu e Descartes, desenvolveu uma formulação da concepção mecanicista do mundo. A teoria newtoniana do universo e a crença na racionalidade se estabeleceram nas ciências dos séculos seguintes. A tentativa de escapar das tradições “não científicas” pode ser a razão pela qual as disciplinas submeteram-se aos critérios científicos com a finalidade de garantir a base necessária para se firmarem como ciência e, portanto, adquirirem respeitabilidade uma vez que os termos “científico“ e “não científico” passaram a significar “ verdadeiro” e ‘falso” ou “racional” e “irracional” para a comunidade científica que se construía. Capra (1982) apresenta, de forma detalhada, como o método científico referenciado pelo paradigma reducionista-mecanicista, foi adotado como modelo pelas várias áreas do conhecimento: na biologia, na medicina, na psicologia e na economia, entre outras. A ciência, na consciência cotidiana, tem um crédito tão elevado que até mesmo ideologias completamente não-científicas (isso é, com conteúdo de valor negativo) esforçamse para deter uma base "científica" e, assim, legitimarem-se (como é o caso, por exemplo, das teorias raciais biológicas geradas sob o fascismo). Na consciência cotidiana atual, a ciência tanto a natural como a social - é a autoridade máxima (PATTO, 1993:129). Aqui vale marcar a concepção de cotidiano que se construía: uma realidade material a ser conhecida e dominada pela ciência. II – Ciência e Economia Doméstica 50 Na concepção moderna a ciência foi considerada como um conjunto de conhecimentos produzidos por métodos rigorosos, comprovados e objetivos. Sua função, o aperfeiçoamento, através do crescente acervo de conhecimento, da relação do homem com seu mundo (LAKATOS, 1992:24). O pensamento científico é uma das formas da racionalidade, um método, uma atitude, uma forma de abordar e tratar os problemas, de interrogar a realidade, de duvidar das explicações, é a busca permanente do porquê das coisas e a reconstrução de um sistema que permita organizar o mundo (DELVAL, 1998 apud MOURÃO,2008:3). Há que se considerar também que o conhecimento é constituído por diferentes campos do saber. A própria ciência assumiu diferentes recortes para existir. A título elucidativo, pode-se postular duas formas de conhecimento no campo das ciências: o “puro”/ “básico”/ “duro” e o “aplicado”/ “mole” que possibilitam a classificação de ciências formais (estudo das idéias sem contato direto com a realidade para convalidar suas fórmulas), como as ciências exatas - campo da ciência capaz de expressões quantitivas e predições precisas e métodos rigorosos de testar hipóteses, especialmente os experimentos reprodutíveis envolvendo predições e medições quantificáveis. De certa forma admite certa independência dos fenômenos em relação aos seres humanos: lógica e matemática, por exemplo. As ciências factuais (estudo dos fatos que devem ser ordenados, interpretados e explicados) (BUNGE apud LAHKATOS, 1992:27), como as ciências aplicadas - ramo das ciências que visam à aplicação do conhecimento para a solução de problemas práticos (GÜNTHER, 2006:204). As ciências naturais - que estudam o universo, que é entendido como regulado por regras ou leis de origem natural, ou seja, os aspectos físicos e não humanos. As ciências humanas partem do pressuposto de que o ser humano é o centro das atenções de estudo. As ciências sociais estudam os aspectos sociais do mundo humano, ou seja, a vida social de indivíduos e grupos humanos. Existe uma longa controvérsia sobre o valor relativo da natureza da ciência básica versus aplicada onde a realização de uma se dá em contraponto à outra, sendo apresentados seus contrastes e comparações. Os argumentos vão desde “pesquisa sem aplicação é um desperdício” até “gerar conhecimento é um fim em si, qualquer utilidade é secundária” 51 (GÜNTHER, 1986). Por alguma razão pouco clara, a posição da primazia da pesquisa aplicada é associada à pesquisa qualitativa e da pesquisa básica à pesquisa quantitativa. No plano científico a Economia Doméstica, enquanto disciplina das ciências sociais aplicadas, ocupa dois espaços: como produtora de conhecimentos científicos e como interventora na realidade estudada. Aqui se identifica o pensar e o fazer dessa profissão. Há um tempo fui convidada a escrever o editorial da revista OIKOS - Revista Brasileira de Economia Doméstica, e considerei que aquele era um momento oportuno para buscar entender como o conhecimento científico interage com essa profissão. Naquele momento a produção intelectual do economista doméstico foi o ponto de apoio para desenvolver meu argumento central instigado por investidas de que o economista doméstico volta-se mais para o “fazer” que para o “pensar”. Ou seja, sua produção científica, fruto da pesquisa, estaria em desvantagem em relação à atuação prática. Para explorar a concepção dessas ações em pólos distintos, resgatei em Hannah Arendt (1991) a distinção entre labor e trabalho, sua associação comum com a antiga distinção entre as artes liberais e servis, e a relevância que o trabalho intelectual ganhou na sociedade moderna. Um ponto que me interessava ressaltar é que o pensar ganha mais valor e reconhecimento social que o fazer, a existência do grande contraste entre o pensar e o agir, entre teoria e prática, embora deva haver articulação dialógica entre eles. De fato, o “saber fazer” constituiu condição indispensável da prática desta profissão que surgiu como prestadora de serviço, com o propósito de atuar na melhoria da qualidade de vida das famílias. Mas este fazer é fruto de um saber que articula formação teórica e intervenção social. Ao se observar a estrutura curricular desse curso, com a áreas do conhecimento que compõem a formação profissional, depara-se com um certo “equilíbrio” entre conteúdos que contemplam as ciências exatas, tecnológicas, humanas e sociais, o que justifica essa articulação. O desafio é tomar as ações como objeto de investigação científica. A realização de pesquisação, realizar investigações que contribuam, ao mesmo tempo, para o avanço científico e à transformação social, pode ser um caminho. O que constitui uma “pesquisa bem feita”, confiável, merecedora de ser tornada pública para contribuir para o manancial de conhecimento sobre um determinado assunto? Podem ser citados vários critérios: objetividade, fidedignidade, validade, utilidade, economia de esforço, normatização e comparabilidade. Destaco aqui a competência do pesquisador que 52 deve incluir a sabedoria de não realizar uma pesquisa por extrapolar determinadas habilidades, ao invés de modificar a pergunta em função da sua competência. Somam-se a isso considerações mais objetivas que incluem recursos disponíveis: tempo para realizar a pesquisa, recursos financeiros disponíveis e recursos materiais (gravadores, máquinas fotográficas, filmadoras, computadores), o acesso à população a ser estudada. Em suma, a questão tem implicações de natureza prática, empírica e técnica. Considerando os recursos materiais, temporais e pessoais disponíveis, coloca-se para o pesquisador a tarefa de encontrar e usar a abordagem teórico-metodológica que permita chegar a um resultado que melhor contribua para a compreensão do fenômeno (GUNTHER, 2006:207). Outra questão importante diz respeito aos órgãos financiadores de pesquisa. Embora vários Editais sejam lançados deve-se ressaltar o crivo cada vez maior para a seleção da pesquisa e do perfil acadêmico/científico do pesquisador (qualificação, número de publicações, qualificação das revistas, etc.). Soma-se a isso a diretriz científica por esses órgãos, a esse respeito Fisher argumenta que: infelizmente, essa é a direção para qual as coisas parecem estar caminhando. O rumo da ciência hoje em dia encontra-se amplamente sob o controle de comissões que distribuem verbas para projetos específicos. A pressão dos que dão dinheiro (principalmente o governo e a indústria) significa cada vez mais que o apoio não vai chegar, a não ser que o candidato consiga demonstrar um perspectiva razoável de obter um resultado “útil”. A consequência inevitável é o foco em problemas para os quais a resposta é conhecida, ou previsível com tal segurança que mal vale a pena verificar. Questões genuinamente importantes são relegadas à margem, acabando por extinguir. (FISHER, 2004:160) III - Ciência no/do cotidiano 3.1 - Ciência no cotidiano Um gesto isolado ou um amontoado de números só ganham sentido se, por trás deles, estiver o desejo humano de modificar e interagir com o meio social. Ações que para alguns são realizadas de forma natural, como um simples hábito cotidiano, tornam-se, para outros, as matérias-primas de trabalho e pesquisa e tecnologias que beneficiam o dia-a-dia das pessoas, melhoram nossas vidas e promovem a evolução da sociedade considerando toda a sua diversidade. De fato a Ciência, a Tecnologia e a Inovação estão presentes em nossas vidas procurando resolver problemas dos mais simples aos mais complexos. 53 Um objetivo que tem sido comum nos eventos que tratam da relação ciência x cotidiano é o de fortalecer as ações de popularização da ciência que está presente no dia-a-dia das pessoas, sem que elas se dêem conta, chamando atenção para a importância da ciência, da tecnologia e da inovação no dia-a-dia da sociedade. Vasculhando os objetivos desses eventos percebi ser ponto comum o de levar as pessoas, geralmente estudantes a uma vivência significativa e prazerosa da ciência, por meio de experiências, observação de fenômenos, testes, verificação e comprovação de hipóteses e teorias, fatos que estão presentes no cotidiano, mas sem relação alguma com seus interesses. Com essa perspectiva, são várias as exposições e experiências que apresentam temas científicos presentes no dia-a-dia nos campos da biologia, física, química, matemática e ciências da Terra, etc., com o objetivo de instigar a curiosidade científica em mostras de “Ciência e Cotidiano” onde se pode observar, manipular e fazer experimentos em equipamentos diferentes permitindo realizar relações entre as experiências e os conteúdos estudados e vividos. Da mesma forma, são várias as produções bibliográficas que pretendem despertar nas pessoas comuns o interesse pelo conhecimento da ação da ciência nas situações cotidianas. Talvez isso tratuz em olhar a ciência no cotidiano. 54 Essa tendência, chamada também por Fischer (2004) como a “ciência do familiar” , é considerada pelo autor como uma das maneiras mais eficazes de apresentar a ciência a não cientistas. Seu trabalho mostra como a ciência pode ser aproveitada em muitas atividades do dia-a-dia, como a prática de mergulhar um biscoito no chá –explicada pela ciência da absorção (idem:42); como cozinhar um ovo - para entender como o calor afeta o sabor e a textura dos alimentos (idem:13); fazer compras – cuja verificação rápida da soma de uma conta de supermercado tem base na estatística (idem:78); executar tarefas domésticas, praticar esportes, tomar banho, fazer sexo, introduzindo sempre um conceito científico importante e fundamental para essas atividades (idem:7). Essa iniciativa gera opiniões contraditórias na comunidade científica. Para alguns cientistas experiências realizadas sobre situações corriqueiras podem banalizar a ciência. Outros, julgam que não há que se levar a ciência a áreas que não têm relação com elea, ou seja o cotidiano. Outros, ainda defendem que se a tarefa da ciência é tentar compreender o mundo, essa compreensão pode vir tanto do pequeno e insignificante como da contemplação de grandes temas (grifos meus entendendo que o cotidiano esteja inserido no rol dos pequenos temas). Acredito que o crescente investimento na qualificação pelo profissional de economia doméstica tem instigado a realização e inúmeras pesquisas que também contribuem para a aproximação da ciência com o cotidiano, considerando dentre as especificidades das áreas de concentração a linha escolhida por cada profissional. Isso, sem dúvida, já constitui uma grande contribuição desse profissional cuja sensibilidade do olhar o leva à percepção de aspectos da vida cotidiana como objetos de estudo, antes e ainda, como se viu, menosprezados e inconcebíveis como objetos de interesse científico. Contudo, penso que para a Economia Doméstica, que também atua diretamente com os excluídos sociais que se relaciona com a questão da desigualdade social e, sobretudo, com a pobreza que cresce simultaneamente com a expulsão do mundo do trabalho e cultural, a representação específica do não reconhecimento, enquanto negação de direitos à moradia, à saúde, à educação e à segurança, essa perspectiva pode e deve ser ampliada para a ciência do cotidiano cujos dados estão ali clamando para serem iluminados, descritos, vistos, isto é, tornarem-se visíveis. O tema do cotidiano tem aparecido com freqüência nas pesquisas e nos estudos da Educação e das Ciências Humanas em geral, evidenciando-se um interesse crescente dos 55 pesquisadores pelas chamadas “questões do dia-a-dia, pelas questões mais rotineiras que compõem os acontecimentos diários da vida e os significados que as pessoas vão construindo, nos seus hábitos, nos rituais em que celebram no recinto doméstico, nas ruas ou nas igrejas, na escola, etc. e todo o sentido social e político dessas práticas e comportamentos que se expressam “na penumbra”, num cotidiano tão carregado de contradições. O estudo das realidades que formam o cotidiano tem se realizado por óticas diferentes. 3.2 - Ciência do/com cotidiano. A crítica ao modelo positivista de produção de conhecimento nas ciências humanas e sociais, em seu formato experimental ou em suas versões não-experimentais, baseia-se na argumentação de que esse conhecimento produz resultados que não dão conta da complexidade do que quer que se proponha elucidar a respeito da vida humana. Essa crítica e a busca teórica de aproximação das esferas social e individual, tradicionalmente separadas pela ciência, convergem para uma área recente do conhecimento sociológico: o estudo da vida cotidiana (PATTO, 1993:122). A ciência do cotidiano exige do pesquisador o exercício de ampliar/alterar concepções e comportamentos já consolidados pelo método científico praticado pela academia. Assim, passa por uma ampliação de foco presente nos estudos tradicionais baseados no modelo experimental de pesquisa, que estabelecem relações estatisticamente verificáveis entre dados empíricos referidos como variáveis dependentes e independentes, ou de conceitos que não permitiam aproximar o foco de análise da realidade enquanto realidade complexa (dialética), intersubjetiva e específica. Em outras palavras, conceitos, cuja acuidade não alcançava o indivíduo, não permitia dar conta da questão do sujeito social que ao mesmo tempo faz história e é feito por ela (PATTO, 1993:120) Essa mudança de foco põe a pesquisa às voltas com uma questão de método. Não por acaso, nas últimas décadas, as publicações especializadas têm se mostrado férteis em artigos que discutem os temas do quantitativo x o qualitativo, do empírico x o concreto, do formal x o dialético. (PATTO, 1993:119) 56 Para apresentar as bases conceituais do estudo do cotidiano destaco dentre os vários autores que propõem desvelar o cotidiano, Michel de Certeau (1994), Agnes Heller (1972) e José Machado Pais (2003). No marco da sociologia da vida cotidiana, tal como elaborada por Agnes Heller, a análise da realidade investigada vai além da mera descrição da rotina das práticas sociais, em geral, e das relações interpessoais, em particular. Trata-se "de uma investigação ampla, que focaliza aspectos da vida social menosprezados pelos filósofos ou arbitrariamente separados pelas ciências sociais", na qual esses aspectos, aparentemente informes, passam a fazer parte do conhecimento. Nesse projeto de valorização do desvalorizado e de reunião do que as ciências parcelares fragmentaram, uma atitude é fundamental: a de distanciamento e estranhamento do que é conhecido, familiar, "natural", o que permite a recuperação, pelo pensamento reflexivo, de fatos conhecidos, mas mal-entendidos, familiares, mas desconsiderados ou apreciados ideologicamente. Em suma, trata-se de pensar a vida cotidiana de uma forma não-cotidiana. Abstraída de seus determinantes sociais, toda vida cotidiana é heterogênea e hierárquica (quanto ao conteúdo e à importância atribuída às atividades), espontânea (no sentido de que, nela, as ações se dão automática e irrefletidamente), econômica (uma vez que, nela, pensamento e ação manifestam-se e funcionam somente na medida em que são indispensáveis à continuação da cotidianidade; portanto, as idéias necessárias à cotidianeidade jamais se elevam ao nível da teoria, assim como a ação cotidiana não é práxis), baseia-se em juízos provisórios, é probabilística e recorre à ultrageneralização e à imitação (HELLER, 1975 apud PATTO, 1993:214). Na perspectiva de Pais a sociologia do cotidiano procura mais os significantes do que os significados, juntando pequenas peças de sentido num sentido mais amplo ( PAIS, 2003:29) - Concepção de cotidiano A "vida cotidiana" é a ordinária, independente do modo de produção vigente. È a vida de todo homem, pois não há quem esteja fora dela, e do homem todo, na medida em que, nela, são postos em funcionamento todos os seus sentidos, as capacidades intelectuais e manipulativas, sentimentos e paixões, idéias. 57 No cotidiano helleriano, há a alienação, sendo necessário sair desse espaço de repetição mecanizada, objetivando apreender opressões e estratégias do dominador. A autora resgata a questão do homem-natureza e do homem-homem, isto é, a questão da humanização do homem no decorrer do processo histórico; nesse processo, Heller atribui especial importância aos comportamentos cujo conteúdo axiológico seja positivo, isto é, que contribuam efetivamente para esta humanização. É por essa via que a ética ocupa um lugar central em sua obra (PATTO, 1993:121) Michel de Certeau reconhece a capacidade que existe na ação ou prática do Homem Ordinário (ou o homem da rua ou homem comum; um praticante) que com seu modo de ser de astúcias (táticas de invenção no espaço; criador de artimanhas, de embates, de projetos etc.), diante das estratégias (ações próprias do dominador), recria no cotidiano práticas de vida, deixando desvelar seus desejos e seus sonhos, um “fazer com". O cotidiano do ser ordinário revela seres não passivos, seres críticos, seres criativos. Assim, o cotidiano de Certeau é o espaço de criatividade, de belas práticas que clamam por serem desveladas e mostradas no que nelas contém da humanidade humanamente vivida para com. Diante das estratégias do dominador, se desvelam as táticas do homem mergulhado no cotidiano (COLODETE e PINEL, 2004). "O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime,pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã,aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, adificuldade de viver, ou de viver nesta ou noutra condição,com esta fadiga, com este desejo. O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. É uma história a meio de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada” (CERTEAU ,1996). Para Pais o cotidiano não é apenas espaço de realização de atividades repetitivas; é também lugar de inovação. Mesmo que a cotidianeidade possa se aproximar da idéia de “rotina” o autor insiste que dele também fazem parte o excepcional, a aventura, o inesperado, o sonho. Considerado do ponto de vista da regularidade, normalidade e repetitividade, o cotidiano manifesta-se como um campo de ritualidades a serem reveladas. - O papel do sujeito Uma das principais contribuições do estudo do cotidiano é a colocação da temática do indivíduo no centro das reflexões. E o indivíduo a que se refere não é um indivíduo abstrato 58 ou excepcional, imaginário, criado e diagnosticado em classificações categoriais, desrespeitadoras das singularidades, das diferenças, mas sim o indivíduo da vida cotidiana, isto é, o indivíduo voltado para as atividades necessárias à sua sobrevivência. Isso significa buscar compreender como os sujeitos ou pessoas mergulhadas na existência cotidiana (re)começam, (re)criam, (re)tomam ali mesmo a transformação (de si e do cotidiano de si) e por quais caminhos (modificações graduais ou por saltos arriscados). - O papel do pesquisador Considerando as várias possibilidades de se estudar o cotidiano, Alves, Azevedo e Oliveira (2002 apud COLODETE e PINEL, 2004) descrevem quatro movimentos: Sentimento do mundo = onde o pesquisador deverá superar o modo dominante/moderno de ver o mundo. Impõe um mergulho ou envolvimento com todos os sentidos, enfocando o que se deseja estudar. “Virar de ponta cabeça” = “Necessitamos do entendimento de que o conjunto de teorias, categorias, conceitos e noções herdados não são e não fornecem a rota, mas sim estabelece limites ao que precisa ser tecido” Beber em todas as fontes = o pesquisador deve redimir-se de preconceitos e lidar com a diversidade, que é diferente de heterogêneo. Literaturizar a ciência = o pesquisador deve saber/sentir modos de comunicar sua pesquisa recorrendo sobre modos alternativos de escrever e a literatura tem muito a ensinar e nos tocar. Para Certeau o pesquisador, mergulhado no cotidiano, deve crer para ver e não ver para crer. Isto implica em uma postura ou uma atitude, de envolvimento e pertencimento, frente ao cotidiano vivido. O cotidiano certeauneano belo, ambíguo e prazeroso etc. não nega as injustiças emergidas no cotidiano repetitivo, cansativo, embotador, sabotador, alienador etc. descritos por Heller. (COLODETE e PINEL, 2004) O pesquisador deve ser um observador sensível e delicado, apaixonado por tudo aquilo que vê e sente a uma só vez. Entretanto, nada impede que trabalhe com fotografias, imagens em movimentos (vídeos), depoimentos, entrevistas etc. (COLODETE e PINEL s/d). 59 O pesquisador produz seu trabalho a partir do presente, das preocupações de sua realidade, fazendo de seu discurso um "discurso particularizado", que tem um emissor, o pesquisador, e um destinatário. Assim, não se pode falar de uma verdade, mas de verdades. Evidentemente, muito do que acontece na presença e na ausência do pesquisador fica sem registro. Por isso, alguns pesquisadores falam nesse tipo de pesquisa como um trabalho de "reconstrução de um processo" com base em elementos que informem a construção de um padrão abrangente, no qual todas as situações registradas - mesmo as que inicialmente pareçam incoerentes, irrelevantes e incompreensíveis - encontrem seu lugar. Este padrão é alcançado quando "as situações observadas possam ser entendidas como parte de um todo que é, por sua vez, parte integrante de uma totalidade mais ampla que lhe dá sentido" (PATTO, 1993:139). O texto descrito deve ser minucioso sendo fidedignos aos acontecimentos que são percebidos de acordo com as próprias vivências (intencionalidade), sem abandonar os fatos jurídicos. Os fatos é que irão viabilizar nas inferências interpretativas. Os fatos jurídicos devem vir na íntegra para que o leitor comum ou futuros cientistas (ou cientistas) façam também suas interpretações. - Exemplos de pesquisas do cotidiano - Cotidiano x creche Ramos e Flores (2002 apud COLODETE e PINEL, 2004) estudaram um cotidiano de uma creche9 e descreveram as práticas dos atores sociais dali. O objetivo da pesquisa foi o de analisar e discutir a relação que se estabelece entre o espaço organizado na creche e a apropriação deste no cotidiano pelos atores sociais. - Cotidiano nos movimentos sociais Rodrigues (2002 apud COLODETE e PINEL, 2004) dedicou-se em mostrar as táticas de citadinos no cenário da cidade onde surgem as possibilidades de recriar, reinventar, deixar fluir os sonhos e desejos, e também medos. Nas cidades os movimentos sociais se apresentam 9 Eles, Barboza Ramos e Gerusa Valeria Flores (2002) apresentam seu estudo, cujo título é “O espaço e o cotidiano: relação dialética marcando a prática pedagógica”. 60 como alternativas marcadas por enfrentamento de questões preocupantes, saneamento público inexistente ou inadequado, por exemplo. O movimento Hip Hop (grafitos; rap; dança) revelam novos elementos nas artes de fazer denúncia e terminalizar no micro- espaço com as desigualdades e exclusões sociais e outros elementos do Hip Hop, revelaram novas formas na produção e consumo alternativos aos das estratégias dominantes, gerando uma nova maneira de sociabilidade e inserção cultural. - Cotidiano e economia solidária Percebendo os movimentos sociais como táticas inventivas dos homens ordinários, e vem se desenhando de forma discreta e progressiva nos bairros e periferias, são os pequenos empreendimentos econômicos marcadamente sob o signo da solidariedade. Essas táticas, diante das injustiças econômicas e da miséria, estão voltadas para a necessidade que da re- apropriação dos espaços da vida cotidiana (saúde, habitação, educação), ou ainda atividades econômicas. Segundo princípios da autogestão e cooperação, microexperiências inovaram pelo fato de visarem soluções, apropriando-se de modelos já dados socialmente, repensados a partir de novos valores, constituídos pela comunidade ou bairro, o que Certeau chamou de reinvenção do cotidiano, ou o fazer com. - Finalizando A Economia Doméstica é uma profissão que avança, estuda, pesquisa, ousa vencer preconceitos, que se envolve num processo constante de repensar sobre sua atuação, de definir o que é e o que faz, de consolidar espaços e descobrir caminhos. O universo tão abrangente de estudos no qual este profissional se envolve permite a ampliação e o reconhecimento de suas ações em diferentes áreas do conhecimento. Aspectos diversos da vida familiar, social, institucional e tecnológica são focalizados em suas análises por meio da concentração em áreas de interesse. Um elemento comum na diversidade dos olhares sobre temas variados é, sem sombra de dúvida, a tentativa de compreender a realidade e o esforço, tanto pessoal como institucional, de compartilhar e repassar, para além dos limites acadêmicos, idéias resultantes de experiências de investigação, de produção e de discussão realizadas por profissionais, graduandos e pós-graduandos e pós-graduados em diferentes regiões do Brasil. 61 A produção científica deve ser estimulada já na graduação e sempre ampliada para possibilitar a esse profissional condições positivas para sua avaliação enquanto pesquisador. São vários os meios de divulgação científica disponíveis onde este profissional marca presença. Mas, sobretudo, destaco a revista OIKOS que surgiu com a proposta de servir como lugar de convergência da produção intelectual própria à economia doméstica, de revitalizar seu conhecimento, voltando-se para as demandas da sociedade. Com esta perspectiva, consolidou-se como revista de divulgação técnico científica da classe, mantendo como marca distintiva a interdisciplinaridade no âmbito do conhecimento. Ao longo dos anos, ela vem cumprindo seu ideal de constituir-se como um canal de expressão e aprimoramento de temas e de reflexão sobre o fazer e o pensar economia doméstica, norteados pelos rumos que a sociedade está tomando. Espero que essas considerações tenham contribuído para estimular esse profissional a ampliar suas perspectivas analíticas e metodológicas e se lançar no estudo do/com o cotidiano. Obrigada. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah, A condição humana. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982. CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. COLODETE, Paulo Roque e PINEL, Hiran. Pesquisa no / do cotidiano: uma proposta fundamentada em Michel de Certeau. 2004 (mimeo). FILHO, Adhemar Avilla. Cotidiano, experimentação e história da ciência no ensino das transformações químicas envolvendo transferências de elétrons. 6ª Mostra acadêmica UNIMEP. Piracicaba,SP de 30/09 a 02/10 de 2008. FISHER, Len. A ciência no cotidiano: como aproveitar a ciência nas atividades do dia-a-dia. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. 62 GÜNTHER, Hartmut. Pesquisa Qualitativa Versus Pesquisa Quantitativa: Esta É a Questão? Psicologia: Teoria e Pesquisa, Mai-Ago 2006, Vol. 22 n. 2, pp. 201-210 HELLER, Agnes. O quotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. KOYRÉ, Alexandre. Galileu e Platão. Lisboa: Gradiva,s/d. LAKATOS, Eva. M e MARCONI, Mariana A. Metodologia científica. São Paulo: Atlas, 1992. MOURÃO, Marisa Pinheiro et al. Popularização da ciência: a física no cotidiano escolar de alunos das séries iniciais do ensino fundamental. 4ª Semana do Servidor e 5ª Semana Acadêmica – UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA. 2008 PAIS, José Machado. Vida cotidiana: enigmas e revelações. 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