Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X
PSICANÁLISE
– REVISTA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional desde
1992, à FEPAL e à Associação Brasileira de Psicanálise
v. 9, n. 1, 2007
EDITORA
Laura Ward da Rosa
CONSELHO EDITORIAL
Alicia Beatriz Dorado de Lisondo • Ana Rosa C. Trachtenberg • André Green •
Antonino Ferro • Carmen Médici de Steiner • Cesar Botella • Didier Lauru • Elfriede
Susana Lustig de Ferrer (in memoriam) • Franco Borgogno • François Marty •
Gildo Katz • Heloisa Helena Poester Fetter • João Baptista Novaes Ferreira França
• Leopold Nosek • Leonardo Wender • Marcelo Viñar • Marco Aurélio Rosa • Marta
Petricciani • Miguel Leivi • Nilde Parada Franch • Raquel Zak de Goldstein •
Rómulo Lander • Samuel Zysman • Sara Botella • Sara Zac de Filc • Sebastião
Abrão Salim • Stefano Bolognini • Suad Haddad de Andrade
COMISSÃO EDITORIAL
Carmen Lúcia M. Moussalle • Carmen Saile Willrich • Helena Surreaux • Laura
Ward da Rosa • Rosa Beatriz S. Squef f
BIBLIOTECÁRIA
Ana Maria Bernal • Daniel de Souza Cunha – Estagiário
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
PRODUÇÃO GRÁFICA E CAPA
Metrópole Indústria Gráfica
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Prof. Antônio Paim Falcetta
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Tel./Fax 55 51 3330-3845 • 3333-6857
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
1
Capa:
“Balsamarium
87
Etrúria, século III a.C.
Bronze, alt. 9,4 cm
Este recipiente para óleo perfumado, incenso ou ungüento, fundição oca em várias partes, tem a
forma de duas cabeças unidas pela parte posterior. As cabeças são de um sátiro e de uma bacante,
seguidores masculino e feminino de Dionísio, deus do vinho. Os sátiros são criaturas turbulentas e sensuais,
parte homens, parte animais, as bacantes são sua contrapartida feminina, que simbolizam o ímpeto e o
abandono. Ambas as cabeças são cuidadosamente moldadas e bem-acabadas. A bacante usa uma faixa
torcida em volta da cabeça, uma tira em torno da testa e um colar em volta do pescoço. Suas feições são
simples mas fortemente definidas – um nariz reto, olhos proeminentes, boca larga e queixo cheio. O rosto
do sátiro é caracteristicamente feio, com sobrancelhas agudamente inclinadas, esta fortemente enrugada,
orelhas grandes, nariz arrebitado e cabelos, bigode e barba encaracolados. Ele também usa uma faixa
torcida em volta da cabeça, e um cacho de uvas pende no centro de sua testa. No lado em que as duas
cabeças se unem há um cacho de uvas sobre uma folha de videira.
Vasos de bronze como este são encontrados comum e regularmente em tumbas etruscas do
século III a.C. Alguns podem ter sido usados para perfumar o ar, pois muitos deles têm correntes ou, como
na peça de Freud, furos para fixação de correntes, pelas quais devem ter sido suspensos. Outros podem
ter simplesmente guardado cosméticos. Alguns dos vasos são moldados na forma de uma única cabeça,
em geral feminina, mas muito freqüentemente apresentam este arranjo com duas cabeças, e a combinação
mais popular era a de cabeças de sátiro e bacante. A atração desta combinação está, talvez, na justaposição
de opostos – belo e feio, feminino e masculino.
Freud, o profundo dualista, tinha várias figuras de duas faces. Já em 1899 ele possuía uma cabeça
de Jano em pedra, e em seus últimos anos mantinha este balsamarium de duas cabeças sobre sua
escrivaninha. O dualismo permeia todo o pensamento de Freud, aparecendo em dicotomias fundamentais,
como o princípio do prazer versus o princípio da realidade, Eros versus Tanatos, libido versus agressão,
assim como na noção do mecanismo de transposição próprio dos sonhos – a representação de uma idéia
pelo seu oposto.
Do mesmo modo, o ponto central deste objeto é a noção da bissexualidade básica de todos os
seres humanos, que Freud discutiu em sua obra fundamental, Three Essays on the Theory of Sexuality, de
1905 (SE, 7, pp.135-243)”
Esta peça pertence ao Freud Museum de Londres e fez par te das exposições da coleção de
Antiguidades de Freud, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1994; está retratada no livrocatálogo da exposição “Sigmund Freud e Arqueologia – sua Coleção de Antiguidades”. Rio de Janeiro,
1994, Salamandra Consultoria Editorial S.A. Direitos autorais pagos ao Freud Museum – The Bridgeman
Art Library – Londres, sob a forma da lei.
Os artigos são de inteira responsabilidade dos autores.
P975
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. – v. 9, n. 1, 2007 –.
Porto Alegre: SBPdePA, 1999 –
1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
ISSN 1518-398X
CDU: 616.891.7
Tiragem: 300 exemplares
Bibliotecária Responsável: Ana Maria Bernal
2
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
CRB 10/1667
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à Associação Psicanalítica Internacional
DIRETORIA
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Presidente
Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
Diretor
Dr. Leonardo A. Francischelli
Secretário
Dr. New ton Maltchik Aronis
Secretário
Dra. Izolina Fanzeres
Tesoureiro
Dr. Fernando Linei Kunzler
Coordenador da Sub-Comissão
de Formação
Dr. Júlio Roesch de Campos
Coordenador da Comissão
Científica
Dr. Flávio Roithmann
Coordenador da Comissão Publicações,
Divulgação e Informática
Dra. Heloisa Helena Poester Fetter
Coordenador da Sub-Comissão
de Seminários
Dra. Ana Paula Terra Machado
Coordenador da Comissão de Relações com a Comunidade
Dr. José Ricardo Pinto de Abreu
Coordenador da Comissão Centro de Atendimento Psicanalítico
Dr. Lores Pedro Meller
NÚCLEOS
Núcleo de Infância e Adolescência
Dra. Mayra Dornelles Lorenzoni
Núcleo de Vínculos e Transmissão Geracional
Dra. Vera Dolores Mainieri Chem
Núcleo de Pesquisa em Psicanálise
Dr. New ton Maltchik Aronis
Núcleo Psicanalítico de Florianópolis
Dr. Márcio José Dal-Bó
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
3
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
New ton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann (Falecido)
LINHA EDITORIAL
A revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre é uma publicação
semestral editada regularmente desde 1999. Recentemente foi indexada na Base
de Dados INDEX PSI. Tem como finalidade publicar trabalhos selecionados de
psicanalistas brasileiros das Sociedades Psicanalíticas e Grupos de Estudos filiados
à Associação Psicanalítica Internacional e de autores de notório saber, visando
aprofundar, divulgar, ampliar e atualizar conhecimentos na área da psicanálise. A
Revista publica também artigos originais ou traduções de trabalhos de analistas
estrangeiros, ainda de candidatos em formação do Instituto de Psicanálise. São
aceitos artigos de profissionais ligados a Universidades e articulistas de comprovado
saber, ligados de alguma forma à psicanálise e às ciências humanas.
4
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 9, n. 1, 2007
Revista da SBPdePA
SUMÁRIO
SAUDAÇÕES
Palavras da Presidente • 11
Ana Rosa Chait Trachtenberg
EDITORIAL
Palavras da Editora • 15
Laura Ward da Rosa
ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES
Manejo dos Distúrbios Apáticos do Vínculo Transferencial • 19
Abram Eksterman
O Candidato e a Instituição Psicanalítica: um quarto eixo na formação
analítica? • 47
Ane Marlise Port Rodrigues, Léia Maria Silva Klöchner, Rosalda
Iturbide Puiatti, Sílvia Brandão Skowronsky
Reflexões sobre a Bissexualidade em Freud e Winnicott • 77
Celso Halperin, Lisiane Milman Cervo, Caroline Milman, Astrid Ribeiro,
Eliane Nogueira, Ester Lit vin
Vértices e Convergência • 95
Cynthia Esteves Delpizzo, José Luiz F. Petrucci
Narciso no Vestíbulo do Segundo Milênio • 107
Donaldo Schüler
O Encurtamento da Latência e a Puberdade Precoce: um problema dos tempos
atuais • 119
Eluza Maria Nardino Enck
Vicissitudes das Sementes de Narciso e Clínica Psicanalítica • 139
Fernando Rocha
Família, Escola e Sociedade: uma reflexão psicanalítica • 155
Gley P. Costa
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
5
Novos Tempos, Velhas Recomendações (Sobre a Função Analítica) • 175
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
O Inconsciente: “Mensageiro da Verdade” sob a Perspectiva da Interação
Continente-Conteúdo de W. R. Bion • 189
Rafael E. López Corvo
Sobre o Desenvolvimento do Pensamento Humano • 213
Ricardo Avenburg
Como Alguém Pode Ser Psicanalista? • 229
Rosa Broner Worcman
Encontros e Desencontros nas Relações Amorosas • 253
Tânia Leão Pedrozo
Solidão, Desamparo e Criatividade • 265
Telma Barros
CONFERÊNCIA na SBPdePA
A Importância e a Validade da Psicanálise Hoje • 285
Cláudio Laks Eizirik
6
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 9, n. 1, 2007
Revista da SBPdePA
CONTENTS
ARTICLES/ESSAYS/MEDITATIONS
Management of Apathetic Disorders in Transferencial Bond • 19
Abram Eksterman
The Candidate and the Psychoanaly tical Institution: a fourth a xle in the analytical
formation? • 47
Ane Marlise Port Rodrigues, Léia Maria Silva Klöchner, Rosalda
Iturbide Puiatti, Sílvia Brandão Skowronsky
Reflexions about Bisexuality in Freud and Winnicott • 77
Celso Halperin, Lisiane Milman Cervo, Caroline Milman, Astrid Ribeiro,
Eliane Nogueira, Ester Lit vin
Vertex and Convergence • 95
Cynthia Esteves Delpizzo, José Luiz F. Petrucci
Narcissus in the Second Millennium Atrium • 107
Donaldo Schüler
Shortened Latency and the Precocious Puberty: a current problem • 119
Eluza Maria Nardino Enck
Vicissitudes of Narcissus’ Seeds and the Psychoanaly tic Clinic • 139
Fernando Rocha
Family, School and Society: a psychoanaly tic consideration • 155
Gley P. Costa
New Time, Old Recomendations (About Analy tical Function) • 175
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
The Unconscious: “Messenger of Truth” Under Bions’ Perspective of the
Continent-Content Interaction • 189
Rafael E. López Corvo
About Human Thought Development • 213
Ricardo Avenburg
How Can Anybody be a Psychoanalyst? • 229
Rosa Broner Worcman
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
7
Agreements and Disagreements in Love Relations • 253
Tânia Leão Pedrozo
Loneliness, Abandonment and Creativity • 265
Telma Barros
LECTURE at SBPdePA
The Importance and Validity of the Psychoanalysis Today • 285
Cláudio Laks Eizirik
8
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Saudações
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Caros leitores,
É com muita satisfação que aprecio mais um excelente
número de Psicanálise – Revista da SBPdePA, fruto do esforço, dedicação e competência dos colegas que compõem a
Comissão Editorial: Carmen Saile Willrich, Carmen Lúcia
Moussalle, Helena Surreaux e Rosa Beatriz Squeff, sob a
tutela da Editora, Laura Ward da Rosa.
No presente volume observa-se uma presença marcante
de autores da casa, representando as várias gerações de Psicanalistas da Brasileira, desde seus Membros Titulares Fundadores até seus Membros do Instituto (nova denominação
para candidatos), bem como por Membros Associados, que
também participam com entusiasmo.
Igualmente aparece o registro daqueles que nos visitaram, tal como o Prof. Donaldo Schüler, o Professor, que já
se constitui num amigo da casa, bem como Telma Barros, a
prestigiada e criativa colega do Recife, que nos visitou em
2006, assim como o Presidente da IPA, Dr. Cláudio Eizirik,
que encantou a todos na aula inaugural do Instituto, em março deste ano.
Este exemplar se constitui também num registro dos
olhares e dos ouvidos atentos dos colegas da Comissão Editorial, pois souberam selecionar com maestria uma variedade notável de trabalhos apresentados no Congresso Brasi-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 11
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Palavras da Presidente
PALAVRAS
DA
PRESIDENTE
leiro de Psicanálise, que Porto Alegre teve a honra de sediar em maio de
2007.
Igualmente presentes, autores latinoamericanos de primeira linha:
Ricardo Avenburg e Lopez Corvo. E, the last but not the least, contamos
com a publicação do trabalho premiado no Congresso da Fepal em Lima
(outubro de 2006), como o melhor trabalho de candidatos da América Latina, que muito nos honrou e nos honra, produzido pela anterior gestão da
Associação de Candidatos da Brasileira.
Assim sendo, recomendo a leitura a todos e felicito novamente aos
colegas que arduamente trabalharam para que mais este número fosse possível, enriquecendo a Instituição e a nós, seus leitores.
Um abraço a todos,
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Presidente
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Psicanálise v. 9, n. 1, p.11-12, 2007
Editorial
Laura Ward da Rosa
Nesta edição estamos duplamente gratificados. Não só
é a edição da revista “Psicanálise” na qual maior número de
membros da SBPdePA e de seu Instituto colabora com artigos, como, após o sucesso do XXI Congresso Brasileiro de
Psicanálise, realizado em maio último em Porto Alegre,
muitos colegas nos escolheram para que publicássemos seus
trabalhos, apresentados naquele evento. Assim, contamos
com Abram Eksterman e Fernando Rocha, da Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, Tânia Leão
Pedrozo, da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, Rosa
Broner Worcman, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo e Telma Barros, da Sociedade Psicanalítica do
Recife e Diretora Científica da Associação Brasileira de Psicanálise. De nossa Sociedade participam: Ane Marlise
Rodrigues, Astrid Ribeiro, Caroline Milmann, Celso
Halperin, Cynthia Delpizzo, Ester Litvin, Eluza Nardino
Enck, Eliane Nogueira, Gley de Pacheco Costa, Ignácio
Paim Filho, José Luiz Petrucci, Lísia Leite, Leia Klöchner,
Lisiane Cervo, Rosalda Puiatti e Silvia Skowronsky. Também contamos com o Professor Donaldo Schüler, nosso
consultor em cultura grega e literatura. Ricardo Avenburg
da Associação Psicanalítica de Buenos Aires e Rafael Lopez
Corvo da Associação Venezuelana de Psicanálise e da Sociedade Psicanalítica Canadense nos prestigiam também
nesta edição.
O Dr. Cláudio Laks Eizirik, Presidente da IPA, aborda
a “Importância e a Validade da Psicanálise Hoje”, tema de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 15
Laura Ward da Rosa
Palavras da Editora
PALAVRAS
DA
EDITORA
sua conferência, pronunciada em nossa sede, por ocasião da abertura das
atividades do Instituto de Psicanálise da SBPdePA, em março do corrente
ano. É motivo de honra para nós publicarmos seu trabalho in totum.
Todas as contribuições atestam o quanto o trabalho clínico nos compromete com a palavra, tanto falada quanto escrita. O psicanalista, ao fechar a porta do consultório, ao término da sessão, guarda consigo aquele
encontro único, que o impele a sentar-se e refletir sobre ele, para depois
escrevê-lo. Entregá-lo para publicação consiste em partilhá-lo com os colegas, num ato generoso de troca de experiências. Assim, neste número,
contamos com os temas comuns à nossa prática clínica, porém com roupagens variadas, olhados por novos vértices: o inconsciente como mensageiro da verdade; transferência em distúrbios apáticos; a bissexualidade; as
recomendações técnicas de Freud à luz da clínica contemporânea; o desenvolvimento do pensamento humano; as complexidades da supervisão; as
vicissitudes do narcisismo; o encurtamento da latência; os desafios do
mundo pós-moderno para a família e a escola; a solidão e o desamparo e a
importância da criatividade; a formação psicanalítica examinada desde o
ponto de vista do candidato; como tornar-se psicanalista; as dificuldades
das relações amorosas na pós modernidade e, finalmente, a importância e
validade da psicanálise no mundo atual. Estamos profundamente gratos
aos autores por sua participação e pela excelência dos trabalhos que, certamente, qualificarão ainda mais este volume 9, número 1, da nossa Revista,
na profícua gestão da Presidente Ana Rosa Trachtenberg e da Coordenadora de Publicações Heloísa Fetter.
Aos leitores desejamos, que o cuidado na revisão e organização dos
textos pela Comissão Editorial, constituída por Carmen Saile Willrich,
Carmen Lúcia Moussalle, Helena Surreaux e Rosa Beatriz Squeff, preencha suas expectativas e lhes proporcione enriquecedora leitura.
Laura Ward da Rosa – Editora
Porto Alegre, agosto 2007
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Psicanálise v. 9, n. 1, p.15-16, 2007
Artigos/Ensaios/Reflexões
Abram Eksterman**
Resumo: O fenômeno da transferência, analisado dentro de um contexto lingüístico e psicossocial, é reconceituado como um significante em
busca de significado e parte da dinâmica do processo primário do pensar. Ressalta-se como fenômeno básico da construção da vida simbólica, assim como é enfatizado seu papel essencial na intervenção psicanalítica. Os distúrbios da transferência, especialmente os apáticos, são
destacados como situações bloqueadoras e impeditivas do processo psicanalítico, fundamentais para alimentar resistências. Também é destacado
que tais distúrbios são sintomas de dificuldades no vínculo terapêutico.
Cinco exemplos clínicos ilustram a argumentação bem como apresentam soluções técnicas.
Palavras-chave: Psicanálise. Transferência. Apatia no Vínculo Transferencial. Processo Psicanalítico.
Introdução
Dentre as múltiplas certezas que os incontáveis teóricos da psicanálise afirmam e que lastreiam minha vida profissional, pelo menos três ficaram-me bem marcadas e não
posso garantir que jamais tenha lido em algum deles o que
vou expor a seguir. Reconheço que me falta a necessária
* Comunicação à mesa redonda sobre o tema “Analisando formas de vitalidade e desvitalização da transferência-contratransferência” do XXI Congresso
Brasileiro de Psicanálise, Porto Alegre, 2007.
** Membro Titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro;
Professor Titular de Psicologia Médica; Diretor do Centro de Medicina
Psicossomática do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia, Rio de Janeiro.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 19
Abram Eksterman
Manejo dos Distúrbios
Apáticos do Vínculo
Transferencial*
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
segurança para um trabalho de depuração do emaranhado de conceitos que
tentam dar conta da imensa quantidade de dados empíricos que foram
colecionados ao longo deste século de existência da psicanálise. Muitos
desses conceitos efetivamente iluminam a prática; outros, ou confusos ou
conflitantes, ora tangenciam para uma nova escola, ora apenas constituem
uma modesta dissensão. Servem freqüentemente mais à vaidade de seus
autores que aos trabalhadores da clínica, e esperam, enfim, um crítico do
porte de Freud para reinventar a psicanálise. Como clínico, baseio-me em
pelo menos três certezas: (1) o ato psicanalítico é um instrumento que serve para desfazer mitos e produzir consciência; (2) a psicanálise age sobre
pessoas singulares e qualquer tipificação ou tentativa taxonômica serve
quando muito como roteiro para se chegar apenas ao umbral da singularidade pessoal; (3) todo processo terapêutico se passa no âmbito de uma
relação, de uma experiência de vínculo que transcende nossos conhecimentos habituais de psicologia individual.
Transferência faz parte, enquanto experiência humana, dessa
transcendência que é o conhecimento do vínculo humano, singular e específico para os muitos momentos em que ele ocorre, e com os quais o observador, no caso o psicanalista, está obrigatoriamente comprometido, sendo
simultaneamente observador e observado, platéia e ator. Conciliar tal convicção antitipificante com o tema em discussão nesta mesa redonda, que
deve abordar a análise de formas de vitalizar ou desvitalizar a transferência, portanto, parece-me evocar aquelas discussões escolásticas que serviam, na Idade Média, para preencher o tédio conseqüente à falta do que
fazer. Salvo num aspecto que merece, no meu entender, discussão exaustiva, tema central do processo psicanalítico: a transferência.
Lembro Michael Balint, em visita à nossa Sociedade, há mais de quarenta anos, em encontro memorável. Quando perguntado sobre como se
deveria proceder em tal ou qual situação clínica, ele sabiamente respondia
quase como um refrão: Quem é o paciente?
Para ele não havia tipos ou situações típicas. Com ele aprendi a perguntar quem, em vez de o quê. É verdade que ele também descreveu dois
20
Psicanálise v. 9, n. 1, p.19-45, 2007
Conceito de transferência
Ocorreu há um ano o sesquicentenário de Sigmund Freud. Estive em
Praga para o Congresso comemorativo, reunindo cem participantes de quase todas as partes do mundo. Tive o atrevimento de apresentar o trabalho
intitulado “Dez equívocos psicanalíticos na teoria de Freud”, pensando que
a melhor maneira de homenagear o mestre é continuá-lo, e não apenas segui-lo. Foi Freud quem decifrou a linguagem das emoções, pesquisando
sonhos e criou a primeira e fundamental panorâmica da psicologia
bipessoal através dos conceitos de transferência. Criando novos termos
para uma ciência nova, usou conceitos descritivos, fenomenológicos e temporais para descrever seus achados, quando, segundo ele mesmo, os conceitos psicanalíticos são basicamente atemporais, fazendo parte do que ele
designou de “processo primário de pensar”. Esse é claramente o lugar da
psicologia psicanalítica. Portanto, transferência não pode ser uma reedição
histórica de pautas infantis revividas no presente. O passado, na perspectiva psicanalítica, é presente. Na verdade, toda experiência é presente, é ahistórica. Não um presente temporal e descritivo, mas um presente
vivencial, bem dentro da fenomenologia hüsserliana, um einfühlung. Esse
me parece ser o ponto de encontro da psicanálise com a fenomenologia de
Hüsserl e também de Karl Jaspers; em decorrência, o ponto de encontro da
psicanálise com o existencialismo. O foco psicanalítico, afinal, não é o
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 21
Abram Eksterman
tipos caracterológicos: o filobático e o ocnofílico. Ninguém é perfeito.
Espero que meus ouvintes e eventuais leitores compreendam minha
dificuldade de fazer face ao desafio proposto pela Comissão Científica do
Congresso e me perdoem por ter de retomar o roteiro essencial da psicanálise, que é o encontro com a intimidade mental de um paciente em comunhão, no espaço terapêutico, com nossa própria intimidade; espaço este
que costumamos chamar de campo transferencial, seguindo W. Baranger.
Para tanto, necessito de um breve passeio pelos conceitos essenciais de
vínculo, transferência e seus distúrbios, para entrar na discussão do tema,
designando-o, como o fiz, distúrbio apático da transferência.
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
dasein? A semântica da vida afetiva, que é a grande exposição de Freud,
nos obriga a situar a transferência nesse contexto a-histórico, vivencial,
entendendo então que estamos visualizando o processo de uma experiência
mal elaborada, especialmente no período infantil, no qual as experiências
são mesmo mal elaboradas, como downloads necessitando do execute. O
execute que se dará em novo contexto, mercê dessa aquisição humana a
que chamamos consciência. Lingüisticamente podemos dizer que transferência é um significante buscando um significado. O intermediário na produção de significado é o vínculo humano daí por que precisamos diferençar
a aquisição de informações de aquisição de conhecimento. Para esta, é indispensável a intermediação do outro, da companhia, do professor, do parente, do amigo, do médico, da comadre, do cônjuge, do psicanalista, com
os quais possam se estabelecer relações de significado. O homem, enquanto animal, pode ser descrito como gregário; como ser humano, dotado de
consciência, é dependente de vínculo emocional e, para ser dotado de consciência, é obrigado a estabelecer vínculo com um outro.
Transferência é um fenômeno universal na aquisição de consciência.
Faz parte da utilização de um objeto de vínculo para dar significado à informação recebida. É o lugar onde se dá a transformação da senso-percepção em palavra. Foi dessa forma que Freud, nos primórdios da descoberta
psicanalítica em seu trabalho sobre Afasias, descreveu a dissociação entre
representação de coisa (Dingvorstellung) e representação de palavra
(Wortvorstellung) – mecanismo de dissociação responsável pela transformação de um conteúdo mental consciente em inconsciente, ao que chamou
de ‘repressão’. O psicanalista é um especialista na intermediação psicológica da elaboração de estímulos neurosensoriais em conteúdos da consciência, sendo estes estruturas significativas. O pólo neurosensorial, tão atraente nos dias de hoje para muitos psicanalistas, faz parte da ciência biológica, e não da psicanálise, que se dedica ao pólo da formação da consciência.
Nesse sentido, transferência é um fenômeno geral da construção da
vida simbólica. É através da transferência que aprendemos a falar, apren22
Psicanálise v. 9, n. 1, p.19-45, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 23
Abram Eksterman
demos a ler, nomeamos o input neurosensorial e o afetivo, mapeamos nosso espaço de segurança. O vínculo transferencial é o elemento catalisador
da integração simbólica, permitindo o desenvolvimento de adaptações criativas e exitosas, nos facilitando enfrentar novos desafios. Toda criatividade
depende da qualidade do vínculo transferencial, sem o qual ficaríamos sujeitos aos limites dos programas cromossomiais herdados, sem o arbítrio
que nos faculta a consciência. Aqui pode caber a crítica de que estou expandindo o conceito de transferência muito além do uso tradicional da psicanálise. Quando procuramos compreender o que os incontáveis autores
procuraram afirmar sobre esse tão polêmico conceito, essencial à prática
psicanalítica, ficamos, contudo, com a impressão de que existem tantas
práticas psicanalíticas quantos conceitos de transferência. Há inclusive
confusões com termos como aliança terapêutica, vínculo, não-transferência, relação terapêutica, num esmiuçamento que lembra aquele que levava
os médicos a descrever dezenas de tipos de febre quando se ignorava a
patologia da tuberculose.
Devo, portanto, explicações sobre por que estou ampliando o conceito
de transferência bem como o identificando como agente catalisador, por
excelência, da formação do símbolo. Quem lê os relatórios sobre seres humanos abandonados ou criados eventualmente fora do círculo humano,
como o foram, por exemplo, Kaspar Hauser e o garoto selvagem de Itard
percebe que, o que lhes permitiu acrescentar recursos simbólicos para a
convivência humana, foi a utilização do vínculo com seus protetores, no
caso ambos médicos (Itard, inclusive, discípulo de Pinel), como egos auxiliares que atuavam simultaneamente desfazendo conflitos e propiciando a
comunicação pela linguagem. Como isso se dava? O ego auxiliar era o
receptor dos elementos primitivos do processo primário capaz de elaborálos e devolvê-los como conteúdos mentais capazes de organizar melhores
recursos adaptativos, desfazer os terrores da experiência primitiva, ampliar
o espaço de segurança e estabelecer convivência humana criativa. Não é
isso o que Bion descreve como processamento das partículas beta? Da
mesma forma, nossa experiência de quase cinqüenta anos aplicando co-
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
nhecimentos psicodinâmicos em Psicologia Médica em atendimentos em
Hospital Geral (Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro) mostrounos que os vínculos transferenciais constantes e inevitáveis do espaço
terapêutico organizam, através de novos significados, o terapeuta como
ego elaborador e mitigador da crise existencial pela qual passa o paciente.
Enfim, o processo da transferência.
Também no desenvolvimento humano, os pais e professores, assim
como amigos e parentes, funcionam como egos auxiliares, receptores de
tensões inominadas, devolvendo-as como conteúdos mentais geradores de
ego e, quando incapazes de realizarem tais tarefas, a criança padece dos
defeitos emocionais e simbólicos que a tornam menos capaz de viver experiências humanas e, portanto, forte candidata à intervenção psicanalítica.
Nesse contexto, revelam-se as deficiências, os conflitos, as defesas geradoras de estruturas neuróticas e os sintomas típicos, descritos na
fenomenologia psiquiátrica, sustentados por mecanismos neurobiológicos.
Como compreender a contratransferência, face a essas formulações da
transferência? Para tanto, já não nos serve o modelo descritivo da psicologia unipessoal que, embora imperfeito, vínhamos utilizando até agora para
descrever as sutilezas das transformações psíquicas intermediadas pela dinâmica transferencial. Na realidade, a mente não existe em alguém, mas na
relação com alguém, em um espaço virtual de vínculo ainda bastante mal
compreendido. Kurt Lewin utilizou esse tipo de conceito para entender
fenômenos sociais; Willi Baranger utilizou a noção de campo transferencial-contratransferencial como um lugar virtual onde se processaria a experiência transferencial (do analisando) e contratransferencial (do analista).
Comprometidos como estamos com descrições materializadas, é difícil
concebermos a imaterialidade do espaço virtual, mesmo em plena era da
informática, para a qual esse conceito é basilar. Daí a atração que as
neurociências exercem no psicanalista que necessita pensar suas hipóteses
com lastros concretos. Obviamente o analista também padece de tensões
transferenciais e se espera que ele as tenha reduzido a níveis aceitáveis
dentro de uma análise formativa bem conduzida. Tensões transferenciais
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Abram Eksterman
do analista que se traduzem na prática como a utilização do analisando
como fonte elaboradora de significantes para significados (embora sempre
haja algum aproveitamento analítico para o próprio analista dentro de sua
tarefa), eventualmente reencenando cenas pendentes de realização, como
as seduções eróticas no campo terapêutico. Aprendemos com a experiência
clínica que os elementos afetivos de nossa história não são deletados no
curso de uma análise, mas passam a ser mais bem administrados por um
ego eficiente. O analista está, como qualquer outro ser humano, sujeito às
crises da vida e, em meio a elas, podem recrudescer antigos sofrimentos.
Acrescente-se a isso sua tarefa profissional como elaborador de transferências e ego auxiliar de um número expressivo de pacientes – o que, por sua
vez, é evocador de suas próprias fragilidades. Tudo isso se interpenetra
nesse campo transferencial-contratransferencial.
Melhor seria chamar esse campo de simplesmente “espaço
terapêutico”, em justiça a todos os demais espaços terapêuticos que igualmente contêm tensões transferenciais, em maior ou menor grau, distinguindo o espaço terapêutico de qualquer outro encontro humano que também
contenha tensões transferenciais. Este, no entanto, diferentemente, não tem
explicitado o objetivo de intervir sobre os processos vitais, mentais e de
produção de consciência, como ocorre na intervenção médica,
psicoterápica e psicanalítica respectivamente. Entenda-se também que a
designação “espaço” não estipula fisicalidade, mas um lugar virtual onde
ocorrem os fenômenos mentais psicanalíticos, objeto de estudo. Finalmente, um atrevimento maior: considero inteiramente desnecessária a palavra
“contratransferência”, se utilizarmos a noção de “espaço terapêutico” dentro da moldura de uma psicologia de encontro ou uma psicologia bipessoal.
Nele – espaço terapêutico – ocorrem simplesmente fenômenos
transferenciais, indistinguíveis se pertencem ao analista ou ao analisando,
mesmo porque um influencia o outro na evocação de memórias, relatos,
observações, comentários, interpretações, associações. E quando essa comunhão não ocorre podemos desconfiar de que estamos diante de uma
retração narcísica de um, de outro, ou de ambos, produzindo um vínculo
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
que resolvi chamar de “apático”, que quer dizer “sem afeto” ou “sem vínculo”, tema sobre o qual devo me estender adiante. Creio, inclusive, que a
designação “contratransferência” denuncia uma necessidade inconsciente
de o analista se diferençar do analisando, distinguindo o “meu” do “seu”,
tentando evitar angustiantes sentimentos de despersonalização e confusão
de identidades – ameaça comum na prática médica corrente, na qual essas
defesas se denunciam flagrantemente na substituição da relação do médico
com seu paciente pela relação com a máquina de diagnóstico, com a distância afetiva recomendada inclusive nos textos tradicionais de Clínica Médica.
Há bastante tempo, bem mais de vinte anos, vi-me confrontado com o
desafio de explicar a alunos, em aulas e seminários, ou em supervisões, o
que era a “situação analítica” e como extrair dela comunicações terapêuticas para o analisando. Na época, chamávamos essas comunicações de “interpretações operativas”. Lembro que recorri aos estudos que vinha fazendo de Konstantin Stanislawsky, que aparentemente nada tinham a ver com
psicanálise. Para mim, no entanto, tinham, sim, muito a ver, especialmente
em “A Construção do Personagem”. Nesse trabalho do teatrólogo pude
visualizar a cena do processo primário de pensar, identificá-la efetivamente com a cena que se abre nos sonhos, nas fantasias e devaneios, e entender
o que alguns eminentes supervisores tentaram me dizer, quando me recomendavam ver no material do analisando uma espécie de sonho. Assim
insistia que meus alunos, ou supervisionandos, “entrassem na cena” do
analisando e participassem e vivessem o enredo como personagem, e não
como platéia passiva. E aí, presentes ao conflito, ao sofrimento, à desintegração mental ou à confusão da cena, pudessem criar situações ou palavras
capazes de restaurar a harmonia, diminuir o sofrimento, confortar como
um ego administrador a perplexidade diante do inominado, recuperar faculdades perdidas, resgatar do silêncio do esquecimento e do congelamento do afeto provocado pelo ódio personagens essenciais à integridade do
eu. Passei a considerar a visão da “cena mental” um recurso essencial, qua-
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A transferência como eixo do manejo técnico da psicanálise
A transferência faz parte de um complexo processo de acontecimentos
inerentes ao encontro humano, que só é “humano” quando adquire sentido.
O encontro biológico faz parte do reino animal e situa o ser humano dentro
dos estudos da etologia; o encontro humano, por sua vez, situa o ser humano dentro da história e, em conseqüência, dentro da cultura. Com isso, não
nos tornamos diferentes dos demais animais, apenas específicos na construção de um mundo cultural próprio, único, em função do qual vivemos e
dentro do qual adquirimos uma existência. Essa ênfase epistemológica é
necessária diante das constantes investidas reducionistas da condição humana à generalidade animal. Se, por um lado, tais tentativas nos ajudam a
compreender nossa biologia, por outro nos distanciam do que é específico
no ser humano: um ser submerso em seus próprios símbolos e dependente
deles. Até para se encontrar com o outro. Como já assinalava Martin Buber,
o encontro se faz entre “Eu e Tu”. Não encontramos nenhuma similaridade
a esse tipo de encontro em todo o reino animal, embora ainda estejamos
longe de conhecê-lo plenamente, e qualquer tentativa de dar um “eu” a um
bicho realiza o reducionismo inverso: apenas antropomorfiza o bicho. São
muito românticas essas tentativas, como o fez Disney e tantos outros; servem muito bem à conservação das espécies e da comunidade etológica,
bem como ao equilíbrio ecológico, mas não nos ajudam a configurar o ser
humano. Quando muito, ajuda a situá-lo dentro da Natureza e a ser menos
predador.
Especialmente para o psicanalista, o encontro humano é o lugar essencial de seu trabalho e, portanto, de seu estudo. Tudo o mais pode ser importante, mas, certamente, é apenas complementar. O encontro psicanalítico é,
no estilo de Buber, um encontro eu-tu; duas histórias que se interpenetram,
eventualmente se confundem, mas objetivam, graças aos recursos e ao preparo do psicanalista, extrair delas novos significados, maior estrutura e
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Abram Eksterman
se uma precondição, a uma intervenção psicanalítica eficaz. Creio que o
recurso da cena mental poderá nos ajudar na discussão do presente tema.
MANEJO
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DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
coerência, maior harmonia ao contexto humano geral, maior capacidade de
criar novas soluções para os impasses de desenvolvimento e transformações inevitáveis no curso do viver a experiência humana. O que propicia
esse encontro? O afeto. Afeto não é instinto; é a representação do instinto,
portanto, a simbolização do impulso biológico. O que nos leva ao outro, ao
encontro, é o resultado do amálgama entre impulso biológico e história. O
psicanalista é um especialista em intervenções nesse espaço de encontro
humano, no qual significantes (como experiências não elaboradas em estruturas simbólicas) ressurgem como impulsos tendentes a reencenar (para
produzir um dastellung), como recurso primitivo de elaboração. Reencenar
também é a chave para se compreender a compulsão à repetição, tornando
desnecessário incluir-se nesse processo o instinto de morte, que, desde
Freud, vem assombrando quase toda comunidade psicanalítica.
O trabalho psicanalítico torna-se, assim, mais compreensível e específico. Sua especificidade consiste em dar sentido aos elementos obscuros da
experiência humana, em virtude de defesas repressivas, de ignorâncias
afetivas, de lacunas cognitivas ou de incompetências biológicas congênitas; essas últimas praticamente irreversíveis. Nosso sofrimento psíquico,
nosso pathos de origem mental decorre de insuficiências ou transtornos de
nossa dinâmica simbólica promovida pelo encontro humano. Dentre esses
encontros, a psicanálise é o laboratório no qual se corrigem esses transtornos e insuficiências. Naturalmente não é o único, mas o que conta com
mais recursos de intervenção.
Compreende-se, assim, por que transferência é o conceito mais importante da intervenção psicanalítica. O campo transferencial é aquele onde se
apresentam as relações mal resolvidas, os vínculos regressivos e obsoletos,
mas ainda operativos, os sentimentos irracionais, os interesses deslocados,
os resíduos de identificações, como se fossem restos de arquivos de programas perdidos no espaço mental buscando validar sua importância e sua
existência. São tais elementos simbólicos que necessitam de revisão e atualização, permitindo à vida mental recuperar seu fluxo histórico, despren-
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O distúrbio apático na transferência
Peter Sífneos ficou conhecido como tendo descrito a alexithymia, forma de comunicação em que o paciente, particularmente o portador de doença somática, mostra uma incapacidade de falar de seus sentimentos.
Igualmente, na prática psicanalítica, é comum um espaço terapêutico semiestéril, ou mesmo esterilizado de elementos transferenciais, o que torna o
trabalho terapêutico enfadonho, opaco, condenando o esforço psicanalítico
ao fracasso. Freud descreveu tais situações nas neuroses narcísicas, que ele
considerou sem transferência, e roçou a questão ao abordar o problema da
reação terapêutica negativa. A abordagem de pacientes narcísicos, sejam os
acometidos de graves distúrbios psicóticos, sejam os descritos como perSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 29
Abram Eksterman
dendo-se da compulsão a repetir e da estagnação em significantes órfãos de
seus significados.
Afinal, por que o estudo e a transformação dos elementos
transferenciais, além de suas participações na técnica da prática psicanalítica, são tão importantes? Tão importantes que se tornam essenciais na
assistência ao doente em geral, na educação, e, grosso modo, nos processos
de desenvolvimento humano – inclusive em suas práticas sociais. A resposta é: porque produzem novos significados e libertam. Libertam do passado, permitem a inserção no presente, desenvolvem estruturas simbólicas
capazes de fazerem a pessoa transcender alguns de seus imperativos biológicos e recriar seu mundo. Não é decididamente pouca coisa a aventura
humanística ensejada pela psicanálise! Lá no mito bíblico já estava, de
forma alegórica, descrita essa tendência humana à liberdade, quando o ser
humano desafia a ordem divina e se alimenta do fruto da árvore do conhecimento, mesmo à custa de sacrificar seu universo encantado no Jardim do
Éden e de saber de sua finitude e condenação ao trabalho incessante. É essa
mesma liberdade que está no âmago do impulso epistemofílico descrito
logo no início da carreira psicanalítica de Freud e pouco mencionado posteriormente, embora representado de forma magistral por Erich Fromm em
seu volume “Medo à Liberdade”.
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
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VÍNCULO TRANSFERENCIAL
sonalidades borderlines, todos igualmente classificados dentro dos estados
que Brice-Boyer identificou como “regressivos”, podem apresentar grandes dificuldades de realizar o que Freud designou neurose transferencial e
que possibilitava a acessibilidade psicanalítica. Tais dificuldades, mediante novas perspectivas teóricas, permitiram uma visualização diferente e
menos pessimista quanto ao acesso aos elementos transferenciais e, em
conseqüência, um melhor êxito terapêutico. Ressaltem-se, nesse sentido,
os elementos da psicanálise que se alinham aos descritos por Bion, e as
novas abordagens do fenômeno transferencial, como as descritas por Hans
Kohut. Também os franceses liderados por Lacan abriram perspectivas
importantes. E com isso ficou a esperança de analisabilidade de qualquer
paciente em busca de ajuda, eliminando critérios diagnósticos para indicações em psicanálise – o que pode gerar um clamor crítico contra essa indicação indiscriminada, uma vez que terapia ainda se confunde com sucesso
na eliminação de mal-estar ou sofrimento (
), enfim, no bom estilo
hipocrático.
A ampliação do conceito de transferência e do reconhecimento dos
elementos constitutivos de seu conteúdo permitiu-me chegar à idéia de que
são significantes em busca de significados, promovidos pela necessidade
básica da condição humana de adquirir consciência dentro dos vínculos
que desenvolve em sua trajetória de vida. Com isso, amplia-se a capacidade de o ego administrar as tensões resultantes do contato existencial da
pessoa com a realidade – e insisto na palavra pessoa (como unidade existencial biopsicossocial), porque é esta, e não um corpo (ou uma mente),
que enfrenta esse desafio. É supérfluo também tentar diferençar o modelo
psicanalítico do modelo médico. Ambos se encontram no esforço preventivo e constitutivo. O que representa para a medicina, na pediatria, a puericultura (medidas auxiliares no desenvolvimento sadio da criança), na psicanálise representa a estruturação do ego, instrumento simbólico necessário à estruturação social e à organização dos vínculos humanos indispensáveis à manutenção e às contínuas reformulações de seu conteúdo.
A rarefação do conteúdo transferencial no espaço terapêutico é resul30
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tado de dificuldades na consolidação do vínculo e, bem menos freqüente,
devido a elementos constitutivos do próprio analisando, sejam eles
neurobiológicos ou por tensões instintivas, como alguns imaginam,
deflagradas pelo instinto de morte – daí a idéia de vivificar (certamente
algo que foi amortecido). Em medicina biológica, conseguimos observar
em grande número de pacientes graves uma tendência à “desistência”, uma
espécie de decatexis, na expressão de E. Kübler-Ross, especialmente no
período de terminalidade. A idéia de incluir a teoria do instinto de morte
nessas condições parece-me mais uma dificuldade do analista em aceitar
suas limitações diante do desafio terapêutico que uma explicação do processo subjacente. Lembro que várias condições consideradas como reação
terapêutica negativa receberam explicações semelhantes, atribuindo-se ao
instinto de morte o rechaço terapêutico.
Vale a pena, antes de atribuir ao instinto de morte a responsabilidade
pelo amortecimento dos vínculos transferenciais e opacificação do espaço
terapêutico, examinar se: (1) conseguimos efetivamente fechar com o analisando um vínculo emocional suscetível de se constituir num espaço de
segurança capaz de ser continente de elementos transferenciais; (2) não
estamos impregnando nossas intervenções com linguagem teórica, satisfazendo assim mais nossa vaidade profissional que nossa função terapêutica;
(3) os conteúdos transferenciais do espaço terapêutico estão incompreensíveis e permanecemos perplexos, em silêncio, diante do inominável; (4)
não sabemos entrar na cena mental do paciente e nos atemos exclusivamente ao conteúdo verbal; (5) não estamos sendo manipulados pela relação sedutora e defensiva do paciente; (6) não estamos impregnados pelos
modelos adquiridos em nossa própria análise ou em nossas supervisões, ou
pelo entusiasmo por certos autores que nos reasseguram em nossas deficiências e inseguranças; (7) nossos problemas pessoais não estão tomando
de assalto o espaço terapêutico, eliminando o principal beneficiário desse
espaço que é o paciente. Cada uma dessas situações é suficiente para produzir um retraimento narcísico dos elementos transferenciais e, por conseqüência, uma dissociação terapêutica grave, indicando o fracasso da inter-
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
venção ou, pior, o acomodamento e a institucionalização de estruturas defensivas, levando a um falso desfecho psicanalítico, assim como Winnicott
descreveu um falso-self.
O espaço terapêutico só acolhe elementos transferenciais quando se
estabelece entre analisando e analista uma relação de intimidade e confiança. Não creio que alguém já tenha definido quando, exatamente, dentro de
uma relação qualquer, fica constituído o ambiente apropriado para acolherem-se elementos transferenciais. Contudo, podemos ensaiar alguns
parâmetros. Em primeiro lugar, deve ficar claro que toda transferência segue o caminho da identificação projetiva. Podemos mesmo dizer que transferência é uma identificação projetiva. O alvo, portanto, da transferência,
deve ter, de alguma forma, realizado um vínculo específico com o autor da
identificação. São pactos subliminares cujos interesses repousam nas
pendências emocionais inconscientes que guardam alguma mutualidade.
Através dessas mutualidades criam-se os primeiros vínculos para uma relação emocional. Podemos dizer, assim, que toda relação que promove vínculos se inicia pela capacidade de acolher elementos transferenciais, como
se fora um imperativo da vida psíquica abrir espaço para tornar conscientes
– dando significado – as experiências pendentes de significado. Esses imperativos é que tornam a vida mental fadada a se tornar consciente. Transferência é, portanto, o elemento essencial da formação do vínculo, e impedir o trânsito transferencial é igualmente impedir a formação de vínculo.
Tecnicamente é muito sutil o trabalho analítico, dividido entre escolheremse elementos transferenciais do espaço terapêutico para se tornarem conscientes através de uma interpretação e o que manter provisoriamente para
assegurar a existência desse mesmo espaço terapêutico. Por isso, o momento (timing) da intervenção analítica desmitificando a transferência é
tão importante. A única solução que encontrei para conduzir de maneira
adequada essa seleção é o exercício de entrar na cena mental do paciente,
sugerida pelo conteúdo da comunicação, transformando-a numa cena
onírica. O analista, convertendo-se na função alfa dos elementos beta do
analisando, utilizando o esquema teórico de Bion.
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Da maior importância é a linguagem utilizada no diálogo terapêutico.
O analista, seduzido por modelos teóricos e pela ilusão de que os acontecimentos mentais, especialmente aqueles que produzem sofrimento, fazem
parte de cadeias causais, a exemplo dos acontecimentos da natureza física
circundante, tende a impregnar o diálogo terapêutico com explicações teóricas, como se elas pudessem eliminar sintomas através de informações
intelectuais ou acreditando que interpretações têm o poder mágico de desfazer sintomas e defesas – como ocorria nos primórdios da psicanálise com
as manifestações histéricas. Muito mais comum do que se pensa, esse tipo
de intervenção pseudoterapêutica distancia os interlocutores e interrompe
o fluxo de elementos transferências, assim como bloqueia todo o trânsito
de elementos do processo primário de pensar. Enxuga, a bem dizer, o espaço terapêutico de elementos emocionais e de seus correspondentes símbolos, gerando falsos conhecimentos, falsos insights e um falso-self.
Assim, antes de formularmos complexas teorias sobre a ausência ou o
amortecimento de elementos transferenciais que apontem para as deficiências do analisando, creio que devemos estudar como o espaço terapêutico
está estruturado a partir da relação com o analista, verificando a qualidade
do vínculo, a composição do diálogo, a capacidade de o analista ser continente de elementos do processo primário do paciente e sua disposição em
“sonhar” os sonhos impossíveis do analisando. O amortecimento da transferência não pede uma “vivificação”; pede, antes, um diagnóstico da qualidade da ação terapêutica em curso.
Mencionei Sifneos e sua descrição de alexithymia para introduzir o
que é corriqueiro: o paciente prolixo, concreto, verborréico, descritivo, e
que, diante da metáfora sugerida por alguma interpretação, responde ou se
defendendo, como se o estivéssemos acusando, ou discutindo os aspectos
apenas comportamentais da observação contida na interpretação. Tal analisando é imune a alegorias ou metáforas. Ele mesmo não faz metáforas.
Dentro de seu relato, não há lugar para elementos transferenciais. Não conta sonhos ou fantasias. Não imagina. Apenas relata da maneira a mais objetiva que encontra. E não existe a possibilidade daquilo que se tenta, como
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DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
“reduzir à transferência”, criando uma falsa interpretação que, quanto muito, estimula apenas a intelectualização. Esse me parece o maior desafio no
problema de abrir espaço para os elementos transferenciais, por
corresponder ao quotidiano da prática, na medida em que a psicanálise se
tornou, hoje em dia, muito mais um instrumento de organização e desenvolvimento do ego que um recurso terapêutico específico para alguns tipos
de sofrimento mental. Nessas situações, vale um enfático alerta, pois, em
resposta, o analista costuma enveredar pela intervenção behaviorista ou
cognitivista disfarçada de interpretação. Não há, nesses casos, o que interpretar, salvo recuperar o vínculo e abrir espaço para a reemergência de
elementos transferenciais. Construir um vínculo não é um ato espontâneo
da tarefa assistencial em psicanálise e praticamente nada tenho percebido
nos currículos de formação profissional no sentido de orientar nessa direção os futuros profissionais. O analisando, porque vem para a análise, não
tem obrigação de “fazer psicanálise” e há que desconfiar daquelas atitudes
colaborativas (muitas vezes inspiradas em leituras, informações e modismos espúrios), que camuflam conteúdos altamente regressivos e
freqüentemente destrutivos do processo psicanalítico, como a defesa
narcísica de natureza psicótica. Quem tem a obrigação de construir o espaço psicanalítico e desenvolver o processo é o analista. E, até onde foi minha experiência, raramente sabe fazê-lo.
Flagrantes Clínicos
Ouve-se, entre colegas analistas, com bastante freqüência, o comentário de que há os que são mais teóricos e outros mais práticos, chegando
alguns a afirmar que a teoria confunde mais do que ajuda. O que nos obriga
a pensar: que prática é essa que sobrevive sem pensamento teórico e que
teoria é essa que não consegue ser compreendida por aquele que passa o
dia no consultório atendendo? Poderíamos descartar tais observações como
simplesmente manifestações de ignorância, sem nos preocupar com a denúncia contida nelas. A denúncia de que nosso corpo teórico padece de
graves dispersões e distorções, e nossa prática carece de melhores e mais
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consistentes formulações teóricas. Levando o problema a sério, há que, ao
se expor qualquer flagrante clínico, tomar-se o cuidado de advertir que o
exemplo dado não é um paradigma; a intervenção terapêutica não é um
guia, e a cena é rigorosamente singular e jamais se repetirá, porque outros
serão os participantes e as circunstâncias. Para que servem, então? Para
nos ajudar a pensar nossa tarefa. E, com isso, melhorar nosso instrumento
terapêutico, que é nosso ego, que contém a capacidade de penetrar a cena
mental do espaço terapêutico e dela extrair significados singulares, capazes de recriar e reformular o destino de nossos pacientes.
A primeira cena nos apresenta uma jovem casada, médica, grávida de
três meses, que, durante uma sessão de análise, narra o seguinte sonho:
“Estou sentada num banco do pátio interno da Faculdade (a mesma que eu
mesmo me havia formado), quando ele é invadido por uma multidão de
nordestinos famintos que vêm agressivos para cima de mim. Pego uma
metralhadora e metralho eles todos, transformando-os em pedaços de corpos sangrentos. É horrível! Em seguida me vejo numa sala fechada, cinzenta e úmida, e me dá uma tristeza enorme”. Essa jovem, muito independente e decidida, costumava dizer que não conseguiria casar; havia escassez de homens. Havia nela inclusive certo desdém pela relação. Elaborando tais vicissitudes, em pouco tempo de análise encontrou um parceiro,
afeiçoou-se por ele, casou-se e estava em sua primeira gestação. A vantagem de um relato como esse, mostrando já em primeira mão a cena onírica,
é: não precisarmos transfigurar narrativas usuais, como cenas oníricas,
através do “entrar na cena”, como costumo recomendar, permitindo assim
ressaltarem-se os elementos do processo primário de pensar de natureza
transferencial e utilizá-los como material prioritário de interpretação. Essa
recomendação já está claramente exposta em Freud, quando nos adverte
que o sonho é a via áurea para a interpretação psicanalítica. Utilizando os
instrumentos de interpretação de sonhos, como está no capítulo VI da “Interpretação dos Sonhos”, entendemos que “multidão” é intensidade do afeto e a violência exposta é equivalente à intensidade da angústia experimentada nesse contexto. Qual é o contexto? A gestação. Que tem a gestação a
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DISTÚRBIOS APÁTICOS
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VÍNCULO TRANSFERENCIAL
ver com nosso tema? Ele, o sonho, nos revela que ela estava tranqüilamente desfrutando sua independência e aparente autonomia, protegida (no pátio) por sua profissão (médica), sem ser perturbada por maiores emoções,
quando sua tranqüilidade é rompida pela próxima vinda de um filho, que
começa justamente a ficar real a partir dos três meses. O casamento não
fora suficiente para romper suas defesas narcísicas, porque, inconscientemente, escolhera um parceiro suficientemente manipulável por suas necessidades afetivas, comprovando, mais uma vez, que vínculos mais estáveis
são construídos a partir dos participantes e que ninguém é efetivamente
vítima do outro, mas das parcerias que promove. O filho, algo novo e estranho, rompe esse equilíbrio e a ameaça, justamente aproveitando as fantasias atávicas relativas a bebês e à própria cultura: as crianças vêm esfomeadas (multidão de nordestinos famintos), criam-se na barriga e comem a
mãe por dentro (pátio). Constrói, então, a fantasia defensiva de um
abortamento com grande violência e, em seguida, entra em depressão, com
intensa culpa (o túmulo representado pela sala fechada, cinzenta e úmida).
Prefere abordar o tema da fantasia do abortamento (relação objetal) naquele momento, deixando para ocasião mais oportuna mostrar o ódio que estava por mim, uma vez que eu era o responsável por abrir seu pátio narcísico
através da análise. Interessante que esse ódio veio reaparecer em período
pós-analítico, muito tempo depois, apesar do sucesso terapêutico e da gratidão demonstrada por essa paciente no processo de encerramento da
análise.
A segunda cena nos mostra um jovem no final da adolescência, entrando na idade adulta, estagiário em uma empresa, onde executa tarefas
correlatas aos seus estudos universitários em vias de conclusão. Órfão de
pai desde o início da adolescência, pai que admirava e amava e que havia
ocupado o lugar proeminente de ministro no governo, foi criado por uma
tia um tanto insegura, na companhia de primos que faziam às vezes de
irmãos. Retraiu-se, mergulhou em estudos esotéricos e resvalava com certa
freqüência para sintomas auto-referentes de natureza psicótica. Aparentemente afetivo, era esquivo e desconfiado. Não era difícil classificá-lo
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fenomenologicamente como um borderline. Estabeleceu comigo, desde o
início da análise, um vínculo emocional intenso, amarrado com elementos
transferenciais tenazes e quase irredutíveis diante de interpretações específicas. Tais interpretações produziam freqüentemente intenso sofrimento
manifesto em crises de angústia. Com isso, qualquer tentativa de elaboração analítica tornava-se praticamente insustentável e as sessões tendiam
para dissertações intelectuais, embora entremeadas de algumas queixas de
natureza somática. Ocorre que, numa sessão em que estava um pouco exaltado, falando das atitudes tirânicas, arrogantes, prepotentes de seu chefe
imediato no trabalho, onde era estagiário, em dado momento comenta de
forma reiterada: “o que ele pensa que é... o que ele pensa que é... o que ele
pensa que é?!” Eu respondi com apenas uma palavra: “Ministro ...”. Foi o
momento em que percebi que se abriu uma brecha maior na atividade
narcísica desse paciente e o vínculo se consolidou progressivamente para
uma maior parceria terapêutica. Não importava definir onde estava a indignação, mas com quem. E a raiz estava na perda prematura e sofrida do pai,
produzindo um luto patológico imune até então às investidas de uma elaboração psicológica.
Agora estamos ouvindo uma senhora casada, pelos quarenta anos, deitada no divã, divagando sobre a vida de forma monótona, relatando episódios da infância, do dia-a-dia, dos compromissos sociais, das empregadas
incompetentes, do marido exigente, de um ou outro filme ou representação
teatral, enfim, textos infindáveis do quotidiano que poderíamos chamar de
“insustentável leveza da mediocridade”, parafraseando Milan Kundera.
Freqüentemente me surpreendia pensando o que tudo aquilo tinha a ver
com as crises de angústia e algumas fobias das quais se havia queixado nos
primeiros encontros. Certamente não estava sabendo entender a paciente e
não conseguia participar desses cenários monótonos como uma planície
uniforme que se estendia para todos os lados sem qualquer acidente afetivo.
Não acredito nesses relatos clínicos em que ouvimos algo como “depois
daquela interpretação... então tudo se transformou”. Nesse caso, aprendi
que, algumas vezes, precisamos arquivar esses arroubos críticos e entender
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
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VÍNCULO TRANSFERENCIAL
que há certos momentos reais de mudança no processo analítico. No caso
da minha paciente, ocorreu algo assim, e como os colegas que nos contam
coisas meio miraculosas, devo dizer que, num dia que deveria estar mais
inspirado e mais atento, percebi que a paciente costumava intercalar suas
frases como uma locução bastante repetitiva. Vez por outra dizia: “Entendeu, Dr.? ... Entendeu, Dr.? ... Entendeu, Dr.?” Nesse dia, resolvi esquecer
o conteúdo de seu relato e me deter nessa curiosa intercalação em sua fala.
Resolvi dizer algo diferente, como: “Eu entendi; e a Sra., entendeu?”. Ela
levou um enorme susto, virou-se no divã e me encarou. Acho que, pela
primeira vez, ela se deu conta de que eu existia, eu era real e não um produto de uma rotina monótona, como uma colherada de remédio prescrita para
se tomar com determinada freqüência, assim como todos os seus atos de
vida. Ela começou a existir também e a trazer para o espaço terapêutico
aqueles elementos transferenciais necessários à transformação psíquica.
Aprendi também, dentro desse momento terapêutico, que locuções desse
tipo são intercalações de comunicação psicótica, carregados de elementos
do processo primário de pensar e que, transformados em textos conscientes
ou incluídos no espaço racional de fala, abrem uma brecha importante à
expressão da vida emocional. Há várias locuções que usamos como apoio
de fala, tais como “pois é, “então”, “ahnnnn”. Algumas têm características
muito singulares. Um conhecido professor usava: “Essa que é a verdade!”;
outra paciente era mais prolixa e dizia: “Então pegou e disse...”; e uma
jovem interrompe freqüentemente sua fala para se reassegurar com um “Tá
bom...”. Todas, se inseridas pelo analista num contexto de fala consciente,
podem se constituir numa cunha útil para revitalizar um espaço terapêutico
amortecido pela rotina e desfigurado pelo esgarçamento dos vínculos emocionais.
Nenhuma experiência terapêutica, em minha vida profissional, foi tão
atípica e violentamente monótona quanto a minha relação com um paciente obsessivo-compulsivo que analisei muitos anos atrás, no início de minha
carreira como psicanalista, cheio daquela fé que move montanhas, mas não
move o psiquismo de um obsessivo. Veio, esse paciente, no final de minha
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Psicanálise v. 9, n. 1, p.19-45, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 39
Abram Eksterman
formação, bem recomendado por dois professores meus e, de maneira muito educada, contou-me seus padecimentos, relatou sua biografia, seu contexto de vida atual e suas tentativas terapêuticas. Intimamente senti-me
lisonjeado pela recomendação e pensei na situação do paciente como algo
fácil de abordar diante desse contato inicial. Combinamos o tratamento e,
no dia seguinte, comparece no horário, tira o paletó e, cuidadosamente, o
pendura numa cadeira, deita no divã, toma cuidado para deixar os sapatos
sobre o pano que protege o divã, cruza os braços no peito (pensei num
morto) e começa a me xingar numa fala arrastada, monótona, em frases
quase sem vírgulas, incluindo nos xingamentos todos os familiares que ele
supunha que eu tivesse, bem como toda a minha possível ancestralidade.
Xingamentos pesados, em tom monocórdico, baixo e ininterrupto. Tomado
de surpresa, não sabia o que dizer, salvo insinuar alguma interpretação de
um possível ódio que poderia estar sentindo por se submeter a mim e ao
processo analítico. Durante semanas meu conhecimento de análise e todas
as supervisões que tentei foram inúteis, porque tudo continuou exatamente
como na primeira sessão. Todo o conteúdo de fala do paciente era um
xingamento ininterrupto, dentro da mesma tonalidade e que terminava com
o fim da sessão, quando se processava uma despedida bem-educada. E tudo
voltava no dia seguinte: os mesmos xingamentos, às vezes inventando
xingamentos novos (alguns que nunca ouvira ou em combinações inteiramente inusitadas), com o mesmo tom monótono, extremamente cansativo
e além de qualquer possibilidade de diálogo. Três meses depois, decidi
interromper essa estranha e sofrida tentativa de análise. Sofrida para mim;
ele não parecia sofrer, aliás, não parecia ter qualquer expressão emocional
em seus xingamentos. Assim, no final de uma sessão, tomei a decisão de
comunicar-lhe que acreditava que um outro analista pudesse ajudá-lo e que
eu me via em grandes dificuldades em prosseguir numa relação na qual não
percebia nenhum diálogo útil para ele. Claro, assegurei-lhe que ele poderia
consultar os médicos que o haviam recomendado a mim, ou eu mesmo, à
sua escolha, poderia realizar uma nova indicação. Deixei também claro a
ele que a decisão final poderia ser adiada até que o assunto pudesse estar
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
mais bem esclarecido para ele. Ele se levantou lentamente. Ficou em pé
diante de mim muito sério, com os olhos baixos, e percebi que lágrimas
começaram silenciosamente a correr rosto abaixo. O rosto então se contraiu e ele chorava um choro silencioso, mas convulso. Fiquei mais impressionado com a cena que com a surpresa dos xingamentos. Mas, extremamente tocado. Senti o toque profundo de um lamento pungente, daqueles
que descrevemos como vindo do fundo da alma, que eu entendi como vindo do mais remoto de sua história. E assim ficamos, eu sentado, ele chorando, um bom tempo – aquele tempo que a gente não mede, mas sente. Depois lhe disse: “acho que nós dois podemos repensar o que eu acabei de
dizer diante do que você me disse com suas lágrimas”. E ele voltou no dia
seguinte e nenhum milagre aconteceu, mas aconteceu algo comigo: aceitei
o desafio de tentar entender aquela estranha conduta. Os mesmo
xingamentos e a mesma monotonia, mas um outro analista. Afinal, não era
para recomendar outro analista; era para eu ser um outro analista! Um melhor acesso e um diálogo bem mais pleno só foram possíveis quase dois
anos depois, quando percebi que, em seu isolamento, quase como se ele
vivesse em um túmulo. Tentava chegar a mim com palavras ofensivas,
como se só elas pudessem me tocar diante da impiedosa indiferença que
experimentava dos outros na relação com ele, que, por sua vez, dinamicamente, era a indiferença quase absoluta que ele mesmo devotava aos outros. Talvez vocês que estão me lendo perguntem-se o que os sintomas
obsessivos tinham a ver com essa conduta. Posso satisfazer uma parte dessa curiosidade, que já me havia sido revelada pela revisão que fiz de um
tratamento anterior a esse, realizado em uma paciente igualmente obsessiva, que se esgotava em complexos rituais toda vez que ficava diante da
propaganda ou da palavra do produto alimentício Toddy. Nunca, naquela
época, havia entendido o sentido da angústia que essa paciente experimentava diante de um alimento, ou dessa palavra, tão inocente. Pelo menos
para mim. Se tivesse sido um aficionado sectário kleiniano (como os há em
todas as seitas), talvez tivesse me demorado em analisar a relação dessa
paciente com o leite achocolatado da mãe e aí, porque amarronzado, mistu40
Psicanálise v. 9, n. 1, p.19-45, 2007
Conclusões
No dia 2 de fevereiro deste ano (na verdade, no dia equivalente a um
quarto do período entre o solstício do inverno e o equinócio da primavera),
comemorou-se nos Estados Unidos e no Canadá o Groundhog Day (o dia
da toupeira). É uma tradição curiosa, segundo a qual se espera que a touSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 41
Abram Eksterman
rado assim com excrementos altamente agressivos. Nunca tive competência para dizer essas coisas a meus pacientes e não me arrependo disso,
embora algumas vezes tivesse me sentido inferiorizado diante da leitura de
sessões de análise levadas com aquele rigor teórico, quase como uma demonstração matemática. O que entendi, muito depois e lembrando que a
minha paciente angustiada diante da palavra Toddy era alemã, é que ela
não estava lendo Toddy, mas Tod, que em alemão quer dizer morte. Ela se
defendia da morte, assim como meu paciente do relato se defendia do
avassalador sentimento de morte que havia dentro dele.
Um último flagrante para ilustrar esse importante tema de como vitalizar os distúrbios apáticos da transferência. Um senhor de meia idade,
bem-sucedido social e economicamente e que sofreu o trauma de um seqüestro, bem resolvido depois de alguns dias, já experiente de outras análises, vem à consulta para elaborar a experiência. Depois de algumas sessões
relatando a ocorrência, inicia uma longa e minuciosa narrativa de sua própria vida, cheia de aventuras, viagens, experiências, romances, aprendizados, tudo entremeado com um tom quase divertido. E eu ficava me perguntando: “onde está o trauma, ou os traumas?” Passam-se quase dois meses e
eu me sentindo quase inútil e pensando dispensá-lo como alguém que não
precisa de análise (e certamente há os que sobrevivem a experiências traumáticas com muita competência), quando observo que, numa conversa que
tem com a própria mulher, utiliza várias vezes a expressão “você tem
que...” e aí lhe digo que nele também ocorre um “tem que”, a obrigação de
superar tudo com competência e galhardia, e não poder mostrar suas fragilidades e seus sofrimentos. No final, o paciente se despede com uma observação: “Essa sessão foi diferente!”.
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
peira saia de seu buraco e permaneça do lado de fora. Isso significa que o
inverno será mais curto e logo virá a primavera; ou, inversamente, se ela
retorna para o buraco, que o inverno será mais longo e rigoroso. Diz-se
que, se a toupeira perceber a própria sombra, ela corre de volta para o buraco. O que é que a toupeira tem a ver com nosso tema psicanalítico? Aparentemente nada; só pensei em como as transferências, enfim, os vínculos
emocionais da relação terapêutica se escondem da experiência analítica, o
que obriga analista e analisando a viverem um inverno rigoroso. Como
fazer a toupeira permanecer do lado de fora, atraí-la para a renovação, que
é a primavera, parece ser esse o objetivo de nossa discussão.
Apresentei algumas sugestões. A primeira delas refere-se a consolidar
o milieu, termo que ouvi de Paula Heimann, mencionando o espaço virtual
formado pelo analista e analisando, diferenciando-o do espaço físico, ou
seja, o setting. Isso ocorre mediante a capacidade de o terapeuta ser continente de um vínculo emocional com o paciente; em seguida, ter a capacidade de ver as múltiplas manifestações de significantes, buscando significados que são as transferências que emergem nesse espaço, e que emergem
tanto do analista quanto do analisando; continuando, o analista deve saber
penetrar na cena emocional assim formada e, diante desses elementos angustiosos, ter a capacidade de distinguir aqueles que podem contribuir para
a estruturação da vida mental do paciente; em seguida, construir frases que
ampliem o horizonte simbólico do ego do paciente; e, finalmente, suportar
o desenvolvimento do paciente, às vezes melhor que o dele, sem se abater,
sabendo que quem anuncia a primavera é mesmo a toupeira.
Management of apathetic disorders in transferencial bond
Abstract: Transferencial phenomenon is analyzed in a new context, that is a linguistic
and psychosocial one, so conceptualized as a signifier searching its signified and as a part
of the primary process of thinking. It is emphasized that transference is an essential factor
for the construction of our symbolic life, besides its essential role in the psychoanalytic
intervention. The transference disorders, specially those apathetics ones, are studied as
blocking events that obstruct the psychoanalytic process, besides their role in improving
resistances. Emphasis is made on hypothesis that these disorders are symptoms of
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Psicanálise v. 9, n. 1, p.19-45, 2007
Manejo de los distúrbios apáticos en el vínculo transferencial
Resumen: El fenómeno de transferencia es objeto de analisis en un encuadre lingüístico
y psicosocial, es además reconceptualizado como un significante en búsqueda de su significado y se presenta como parte de la dinámica del proceso primário de pensar. Es realzado
como um fenómeno básico de la construcción de la vida simbólica, y además es destacado
su papel esencial en la intervención psicoanalítica. Los distúrbios de transferéncia.
sobresaliendo los apáticos, son objeto de estúdio como situaciones de bloqueo y que impiden
el proceso psicoanalítico, bien como son fundamentales para fomentar resistencias. Es
destacado además el papel de estes distúrbios como síntomas del vínculo terapéutico. Son
apresentados cinco ejemplos clínicos para ilustrar la argumentación asi como sus soluciones técnicas.
Palabras-llave: Psicoanalisis. Transferencia. Apatia en el Vínculo Transferencial. Proceso
Psicoanalítico.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 43
Abram Eksterman
disturbances of the therapeutic bond. Five clinical examples are presented so to enlighten
the discussion with some technical suggestions.
Keywords: Psychoanalysis. Transference. Apathy in Transferencial Attachment.
Psychoanalitic Process.
MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
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Psicanálise v. 9, n. 1, p.19-45, 2007
Artigo
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MANEJO
DOS
DISTÚRBIOS APÁTICOS
DO
VÍNCULO TRANSFERENCIAL
46
Psicanálise v. 9, n. 1, p.19-45, 2007
Ane Marlise Port Rodrigues**
Léia Maria Silva Klöchner***
Rosalda Iturbide Puiatti****
Sílvia Brandão Skowronsky*****
Resumo: A partir da experiência como candidatas em formação analítica e como Diretoria da Associação de Candidatos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (RS–Brasil), as autoras fazem uma
reflexão sobre a importância das vivências do candidato com a Instituição para o desenvolvimento de sua identidade de analista. Nessa abordagem, a Instituição aparece como um quarto eixo de fundamental importância, que se soma ao clássico tripé da formação analítica: análise
didática, seminários teóricos e supervisões clínicas. O trabalho desenvolve-se em duas partes: revisão bibliográfica e análise do material obtido diretamente junto aos candidatos de sua Instituição, a respeito de
seu sentimento de pertencimento, das vicissitudes da idealização e da
desidealização e do uso de sua Instituição como espaço potencial e de
continência de ansiedades relativas à construção de uma nova identidade.
Palavras-chave: Instituição Psicanalítica. Formação Analítica. Candidato. Identidade.
* Trabalho feito pela Diretoria da Associação de Candidatos da SBPdePA.
Porto Alegre, junho/2006. Recebeu o Prêmio Sigmund Freud do XXVI Congresso Latino-Americano de Psicanálise (FEPAL, Lima-Peru, outubro/2006).
Publicado na Revista Eletrônica FEPAL (n.7/outubro/2006) e em versão resumida na Revista de Psicoanálisis OCAL (n. 8, octubre/2006, p.85-95).
** Médica Psiquiatra; Presidente da Associação de Candidatos da SBPdePA.
*** Médica Psiquiatra; Vice-Presidente da Associação de Candidatos da
SBPdePA.
**** Médica Psiquiatra; Tesoureira da Associação de Candidatos da
SBPdePA.
***** Psicóloga; Secretária da Associação de Candidatos da SBPdePA.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 47
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
O Candidato e a Instituição
Psicanalítica: um quarto eixo
na formação analítica?*
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
Introdução
A partir da experiência como candidatas em formação analítica e como
Diretoria da Associação de Candidatos da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (RS–Brasil), as autoras fazem uma reflexão sobre a
importância das vivências do candidato com a Instituição para o desenvolvimento de sua identidade de analista. Nessa abordagem, a Instituição aparece como um quarto eixo de fundamental importância, que se soma ao
clássico tripé da formação analítica: análise didática, seminários teóricos e
supervisões clínicas (EITINGON, 1925).
O trabalho desenvolve-se em duas partes: revisão bibliográfica e análise do material obtido diretamente junto aos candidatos de sua Instituição
(questionário estruturado, em anexo), a respeito de seu sentimento de
pertencimento, das vicissitudes da idealização e da desidealização e do uso
de sua Instituição como espaço potencial (WINNICOTT, 1971) e de continência de ansiedades (BION, 1962).
As autoras alinham-se com o pensamento de Sara Zac de Filc (1999,
p.197), quando afirma:
Nossa estrutura de tripé assenta-se, em verdade, sobre quatro pilares,
já que devemos incluir a Instituição que, por sua vez, está imersa no
meio sócio-político-econômico-cultural e cruzada por transferências,
idealizações, resistências e contratransferências que dão conta da
presença do inconsciente e seus efeitos. Esses efeitos, são, justamente,
o elemento básico de nossa ciência e ainda que tenham que ser reconhecidos, não podem constituir-se na justificativa do excesso e nem do
descuido.
Em vários trabalhos verificam-se preocupações em relação à constituição da identidade de analista pelo candidato e à sua postura ativa ou
passiva em relação à própria formação. A organização das Sociedades de
Psicanálise e seus Institutos facilitaria ou dificultaria o desenvolvimento
da autonomia de pensamento e a criatividade científica do candidato. Também as resistências a partir dos próprios candidatos em assumir responsa48
Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
Um Pouco de História
Roma, 1969, Congresso da IPA – Um grupo de candidatos, descontentes com o autoritarismo de seus Institutos, planeja uma demonstração de
sua insatisfação durante o congresso. A ameaça de tal confronto mobiliza
os analistas didatas a considerar a possibilidade de os candidatos terem a
sua representação (IPSO, 2006).
Viena, 1971, Conferência sobre Formação Analítica – Leo Rangell,
então presidente da IPA, solicitou uma reunião com os candidatos para a
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 49
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
bilidades em relação ao percurso de sua formação analítica e a não participação na vida institucional de sua Sociedade, além do clássico tripé, criam
lacunas em sua identidade analítica.
As Sociedades Psicanalíticas podem funcionar dentro dos pressupostos básicos (BION, 1961): dependência, ataque e fuga e acasalamento. Um
quarto pressuposto básico é descrito por Sandler (2001): inclusão/exclusão.
Pensamos que o desenvolvimento da liberdade de pensamento e criatividade do candidato é mais favorecido quanto mais o grupo onde ele se
insere funcionar como grupo de trabalho. A regressão implicada na transferência deve encontrar espaço de elaboração para que não venha a dar o tom
predominante nas relações institucionais.
Tradicionalmente, as Associações de Candidatos têm por função representar os candidatos junto ao Instituto ou a outras Associações, como
porta-voz de suas reivindicações. A esse papel político acrescentamos o de
criação e manutenção de um espaço privilegiado de continência onde as
suas vivências emocionais possam ser elaboradas através do pensar juntos.
Esse holding, apoiado na fratria, acolheria e estimularia a participação mais
ativa, articulando raízes e bases para o posteiror sentimento de pertencer à
IPA.
Como Diretoria de uma Associação de Candidatos, inquieta-nos a
pouca participação dos mesmos na vida de sua Associação, e é na busca de
entender melhor essa realidade que surge este trabalho.
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
discussão do tema. O comitê dos mesmos foi liderado por dois estudantes,
um da Inglaterra e outro dos Estados Unidos. O encontro entre o grupo de
analistas e o grupo de candidatos foi marcado por hostilidade e ressentimento. Os analistas consideraram os encontros dos candidatos como subversivos, e estes expressaram seu descontentamento pela longa tradição de
serem excluídos dos assuntos relativos à sua formação. Mas, ao fim, os
debates foram frutíferos, pois abriram uma via de discussão que até então
não havia e possibilitaram a expressão das necessidades dos candidatos
(IPSO, 2006).
Londres, 1973 – Desde então, a IPSO (International Psychoanalytical
Studies Organization) passou a existir, sendo que, em 1975, no Congresso
da IPA, em Londres, foi oficialmente fundada. Passados 33 anos de seu
início, desfruta atualmente de uma relação colaborativa e produtiva com a
IPA (IPSO, 2006).
São Paulo, 1970 – Foi fundada a primeira Associação de Candidatos
do Brasil e da América Latina. Sua fundação foi ao encontro dos anseios de
mudanças e a necessidade de compartilhar as angústias próprias da formação. Apesar das oposições, o movimento de candidatos pôde contar com a
simpatia e o apoio efetivo de alguns analistas (CABRAL, 2006). Desde
então, novas Associações de Candidatos foram formadas no Brasil e na
América Latina.
A Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre começou como
Grupo de Estudos Psicanalíticos, em 1990, tornando-se Grupo de Estudos
oficial da IPA em 1993, Sociedade Provisória em 1997 e Sociedade componente da IPA em 2001. Sua Associação de Candidatos foi fundada em
1997 pela primeira turma de alunos e encontra-se em sua quinta Diretoria.
Observa-se que, além da função política de representação, a Associação de Candidatos é referida como tendo função de criar um espaço para
compartilhar as angústias próprias da formação. Acrescentaríamos a essa
função de continência a função de colaborar na elaboração dessas angústias, através de suas reuniões e discussões (onde os recursos do processo
secundário do pensamento podem ser ampliados através de novas vias de
50
Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
Revisão Teórica e Alguns Desenvolvimentos
A Instituição e suas Funções
Viñar (1996) destaca que a psicanálise atual avançou para o reconhecimento da importância da função da subjetividade do outro (individual ou
grupal), na gênese e estruturação da rede intrapsíquica de cada pessoa. Assim, o grupo analítico, institucionalizado ou não, funciona como caixa de
ressonância que amplifica a já complicada fronteira entre a realidade ordinária e a cena transferencial. Considera que os candidatos, com ou sem
inocência, põem em cena os conflitos e contradições que humanamente
atravessam a cena grupal da instituição onde fazem sua formação.
A cultura permanece como um objeto inconsciente e pré-consciente
em nosso aparelho psíquico, sendo que as configurações internas de pessoas, teorias e valores que animam o grupo institucional agem como uma
referência interna para o analista tanto no seu consultório, quanto em seu
grupo (AMBROSIANO, 2005).
A “novela profissional” do analista é referida como o conjunto de vicissitudes emocionais com o grupo e que marcaram sua trajetória profissional, bem como o matiz emocional de sua relação com a instituição e com
as teorias. Nessa “novela” entram os caminhos de identificação e
desidentificação, suas necessidades de pertencer ou estar separado, sentimentos de ter um lugar no grupo ou estar excluído. Sentir-se conectado a
uma comunidade de colegas é descrito como importante função do grupo,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 51
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
representabilidade); na interlocução com o Instituto (onde assume sua condição de grupo de trabalho e de responsabilidade autoral pela evolução de
sua formação analítica); na construção da identidade analítica (onde se
constrói na intersecção do nível íntimo e privado de sua análise pessoal e
de sua prática clínica com o nível público e grupal das vivências
institucionais); e como uma das guardiãs do pensamento livre e criativo
dentro da Instituição Psicanalítica (pois cada candidato que entra tem o
potencial de movimentar com o estabelecido e de contribuir com sua história e experiência).
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
onde o analista pode dividir e compartilhar a tensão terapêutica e cognitiva
dos tratamentos analíticos. As dissociações atrapalhariam os recursos de
rêverie do analista inclusive na sala de análise. Podem ser criadas “famílias
analíticas” através de um investimento em determinadas teorias, com exclusão de outros autores. A participação silenciosa e a subordinação
mimética ao analista ou ao seu grupo teórico são vistas como atendendo
necessidades de pertencer e sentir-se seguro, sacrificando o pensamento
livre. A influência recíproca entre seus membros e a submissão
potencializariam um superego coletivo que leva a um conformismo e rejeita qualquer tentativa de individualização. O ambiente grupal (profissional
e institucional) do analista é complexo e nele se incluem também questões
de transmissão generacional. É destacado o papel de interlocução do grupo
na elaboração de lutos, na ressignificação das identificações e da dolorosa
experiência (edípica) da separação e emancipação (AMBROSIANO, 2005).
Bion (1992) entende o narcisismo e o social-ismo como sendo dois
pólos de todos os instintos e estando em permanente conflito. Essa
bipolaridade criaria conflitos entre o indivíduo e seu grupo e colocaria o
homem num permanente paradoxo, pois “impondo-lhe a necessidade de
lutar por um grupo com a essencial possibilidade de sua morte, enquanto
ela [a bipolaridade] também impõe a ele a necessidade de ação no interesse
particular de sua sobrevivência” (p.117).
Elliott Jaques (1955) defende a idéia de que as instituições são constituídas e usadas como dispositivos para reforçar os mecanismos de defesa
contra as ansiedades primitivas depressivas e paranóides.
A instituição analítica e os Institutos de formação têm muitas características de grupo primário, onde os afetos e lealdades têm tanto ou até mais
força do que as representações discriminadas (VIÑAR, 1996).
Petrucci (2004), quando fala dos aspectos formais (clássico tripé) e
informais da formação analítica, situa a informalidade do tripé como o aspecto mais complexo e importante do percurso. A informalidade diz respeito à relação subjetiva e criativa que percorre os três elementos dinamicamente articulados, sendo as trocas predominantemente subjetivas, passí52
Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
Idealização/Desidealização
Mesmo considerando que a idealização inicial do candidato em relação aos analistas é parte do processo identificatório, a idealização pode
tornar-se uma defesa contra profundas angústias persecutórias, de desamparo e de confusão. Podem haver desvios do processo de idealização, levando à idealização excessiva. Os analistas e a Instituição teriam de funcionar como fiadores de um processo normal de idealização (CALICH et al.,
1995).
É parte do processo analítico a desidealização dos analistas que participaram de nossa formação e das teorias que no início foram idealizadas
em excesso. Se esse processo evolui favoravelmente, ocorre a transformação do objeto idealizado em seus aspectos mais reais e com aceitação de
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Ane Marlise Port Rodrigues et al.
veis de compreensão psicanalítica e consideradas mais importantes que a
formalidade necessária. Destaca como a instituição pode tornar-se objeto
de graves dissociações da análise pessoal e, em vez de funcionar como
organização que permita a dissolução dessas dissociações, incrementá-las.
“Difícil a conquista do dar-se conta de que a instituição é um objeto
total e não uma ‘figura combinada familiar’ – um só bloco indiferenciado e
desumanizado por nossa parte psicótica da personalidade, continente muitas vezes saturado de identificações projetivas de figuras originais que impedem o desenvolvimento” (CYPEL, 1998, p.355).
No processo de formação analítica, a Instituição, além do papel de
estrutura de poder, deveria ser continente do processo (ZAC DE FILC,
1999).
Uma sociedade constituída por analistas mais independentes e individualizados tem chances maiores de se manter coesa, por respeito à diferença, e não aglomerada, pela semelhança, e com isso obter uma identidade
para si mesma, menos idealizada e favorecedora do crescimento para seus
membros (CYPEL, 1998).
Pertencer à IPA nos confere um marco de pertencimento e de características universais de formação (ZAC DE FILC, 1999).
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
suas limitações. Mas pode ocorrer uma desilusão e até o abandono da carreira analítica (GOLDSTEIN, N., 2002a).
Narcisismo
O narcisismo do analista que emprega formas arcaicas de defesa (negação, cisão, identificação projetiva) constitui grave impedimento para o
progresso do sujeito (candidato) (FINNEL, 1985; GOLDSTEIN, R., 1990).
O principal obstáculo à identidade do sujeito-analista é o narcisismo
patológico, individual ou expresso no grupo, tanto no par analítico quanto
no grupo analítico, (MACHADO, 1995).
O narcisismo patológico do analista é visto como o que mais persiste
após sua análise e que prontamente retorna após sua alta. Com isso há um
prejuízo na percepção de qual é “a sua parte” nos problemas em questão e
recomeça a projeção a serviço do narcisismo (CASEMENT, 2005).
Infantilização
A análise de formação reaviva a fantasmática da origem, da filiação e
da posição na fratria; junto a um discurso consciente e racional de ideologia científica, temos níveis pré ou inconscientes onde, entre a família do
passado e a família analítica, ativam-se dramas e conflitos, pactos ou alianças, traições, pertencimentos e exclusões onde todos têm algum papel
(VIÑAR, 1996).
Muitos candidatos sentem-se infantilizados pela maneira que os professores, supervisores e analistas os tratam durante a formação. É estranho
que, seja qual for o currículo e a experiência do candidato, isso é raramente
considerado como algo que enriquece o grupo, sendo, em geral, considerado irrelevante para o seu treinamento analítico. Assim, falha a criação de
um ambiente de aprendizado de maior mutualidade (CASEMENT, 2005).
Por outro lado, acreditamos que podemos ter também outro problema:
o candidato que não consegue colocar-se na experiência de aprendiz, porque sente que não consegue adotar o novo desta condição: a posição de
aprendiz do ofício psicanalítico. Isso, entre outras coisas, pode esvaziar
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Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
Criatividade, Pensamento Livre
Kernberg (1996) refere-se a trinta maneiras de destruir a criatividade
dos candidatos através de pressões que inibem sua autonomia e criatividade.
O fechamento do espaço para pensar e o desenvolvimento de uma
rigidez institucional são vistos como capa protetora narcísica que defende
o grupo do medo a idéias novas. Com isso a atividade e a criatividade
científicas, como endereçamento autêntico da atividade libidinal, ficam
muito prejudicadas. A instituição pode propiciar um “superego
institucional” maduro e sadio ou arcaico e perseguidor (castrador). Pode
haver um desprezo pelo vigor libidinal dos candidatos (a juventude) com
risco de castração de sua potência criadora (ROSA, 1999).
O risco de os candidatos serem clones de seus didatas, perdendo sua
existência própria e sua criatividade, é apontado como um problema tam-
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Ane Marlise Port Rodrigues et al.
sua participação na Associação de Candidatos e na Sociedade, pois não se
considera candidato e, assim, não colabora com seus pares.
Constitui um grande desafio para o candidato que ingressa no Instituto, que vem com sua bagagem teórico-clínica, sustentar as ansiedades relativas a uma nova condição na qual permanece com uma identidade em
esboço. As dificuldades inerentes a essa condição peculiar podem levar,
por um lado, ao desestímulo ou mesmo à desistência e, por outro lado, a
uma precipitação em reivindicar para si mesmo uma condição que ainda
não possui, apoiando-se em sua identidade prévia, anulando a experiência
de construir uma nova identidade e uma nova filiação.
Nessa situação, o tempo e o espaço não são aproveitados para uma
autêntica formação científica, criativa e para um amadurecimento pessoal,
não levando ao sentimento de pertencimento, uma vez que o processo de
maturação da identidade não ocorreu.
Pensamos que uma formação que se dá dessa maneira, provavelmente, levará a um afastamento da instituição com perdas para ambos.
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
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UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
bém relacionado às “Escolas de Psicanálise” de cada país e com a cultura
na qual o candidato está imerso (BARROS, 2000).
A liberdade de pensamento é considerada o cerne da condição criativa
do analista e seria favorecida no contexto institucional através da relação
com os pares, levando a novas representações psíquicas e à evolução da
condição de rêverie pessoal e profissional. A elaboração de conflitos oriundos da intersecção da área de realidade individual (questões narcísicas)
com a área de realidade grupal é vista como elemento básico na formação
do analista. Estamos na área do grupo-instituição, continente da tradição,
do repetidamente conhecido, mas também reduto potencial da rebeldia, do
novo e da criação (CYPEL, 1998).
A formação analítica é descrita como a evolução do “sujeito” (candidato), evolução que compreende os vários insights que o candidato pode
adquirir de sua própria análise, a compreensão de sua situação como psicanalista com seus pacientes e seu desenvolvimento científico no convívio
com os mestres da psicanálise, em especial, Freud (GOLDSTEIN, R.,
1990).
A importante tarefa de uma formação é a de conduzir o sujeito para a
emancipação e não para a adaptação (ROCHA, 2000).
São também apontados riscos da transferência passional nas instituições de psicanálise (MENEZES, 1989); o “desejo de alienar” o outro, vindo
a partir dos próprios analistas e levando a uma imobilização narcísica, defensiva, pela possessão de um saber idealizado onde predomina o gozo
partilhado do saber e do poder no seio da instituição, são vistos como aspectos da pulsão de morte (AULAGNIER, 1979).
Alguns Trabalhos de Candidatos
Um grupo de egressos do Instituto de Santiago (Chile – 1985) faz uma
reflexão sobre o caminho até então percorrido. Trazem a sensação de que o
caminho fora doloroso e difícil, com períodos de crise e outros de maior
integração. Acham que foram muito passivos e dependentes da autoridade
do professor/supervisor, funcionando não como grupo de trabalho (Bion),
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Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
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mas com o suposto básico de dependência ou luta e fuga. Também apareciam angústias persecutórias de serem incapazes como analistas ou de que
seriam desligados da formação. Angústias claustrofóbicas com o paciente,
sentimentos de solidão e incapacidade frente ao paciente também foram
referidos. Com a reativação dos objetos arcaicos internos a partir da regressão da análise, houve uma tendência a projetar os objetos maus em
supervisores e docentes. Consideram que essa constelação de angústias
atrapalhou sua participação ativa no processo de aprendizagem. Após o
quarto ano, sentiram uma mudança em seu estado mental, liberando-se de
sentimentos persecutórios e ficando mais confiantes em si mesmos e mais
ativos (BRUZZONE...et al., 1985).
Outro nível de angústia diz respeito à situação do candidato ao entrar
na formação, onde fica exposto a uma série de teorias e tem de evoluir até
situar-se no que seria o shibbolet da psicanálise, isto é, situar os critérios
básicos que diferenciam nossa ciência ( ANTUNES ; GOLDSTEIN ;
HELLER, 1998).
Também é referido que os candidatos são, em verdade, candidatos a
um desejo: o desejo de ser analista. Dessa maneira, cabe ao próprio candidato um novo ato psíquico em que persiste na defesa desse afeto, buscando
ser sempre um analista em formação (HELLER; ANTUNES, 1999).
Tomando como ponto de partida a estruturação do Comitê Secreto,
nos primórdios da história da psicanálise, o funcionamento dinâmico das
instituições psicanalíticas é cotejado com algumas características das Sociedades Secretas. A perversão da ideologia é compreendida como mecanismo de defesa socialmente compartilhado e sustentado para manter a
coesão grupal, colocando em risco a autonomia de seus integrantes e os
princípios de subjetivação norteadores da própria psicanálise. Quando
ocorre a impossibilidade de estabelecer distinções mais claras entre uma
instituição educacional e uma constelação familiar (pela regressão analítica), estaremos frente a uma precária preservação da estrutura organizacional orientada às tarefas a que se propõe realizar (SOROKA, 2001).
O risco de a análise do candidato estar calcada numa transferência
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
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UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
idealizante, onde o que é estimulado é a identificação com a pessoa do
analista e não com a função analítica, aponta para uma preocupação com a
condução das análises didáticas (NIQUET... et al., 1998).
“Ao candidato é atribuída uma mobilidade importante dentro da Instituição. Mas o que observamos é a existência de um medo, de uma
infantilização e de uma inibição de expor-se” (WAISBICH et al., 2005,
p.60). Considerando a existência da transferência e de sua interferência no
espaço institucional, e já que não é possível escapar de seus efeitos, é melhor conhecê-los e conversar sobre os enredamentos que ocorrem
(WAISBICH et al., 2005).
Responsabilidade Autoral – Grupo de Trabalho
Num premiado trabalho, Leal (2001) sugere que um foco de
pioneirismo na atualidade se relaciona com a recuperação da responsabilidade autoral (dos componentes-agentes da instituição) na expansão da psicanálise e que isso depende da compreensão e transformação das instituições psicanalíticas. Chama de “romance institucional” às ocorrências e fenômenos especificamente engendrados pelas relações grupaisinstituicionais e que, muitas vezes, leva a graves crises. A interpenetração
da experiência interna e privativa (relação analítica) e da experiência
institucional-pública (imersão na instituição formadora) é inevitável e, a
menos que seja contínua e sistematicamente observada e elaborada, pode
trazer angústia e dificuldades consideráveis tanto por um lado, quanto por
outro.
O silêncio, a omissão defensiva, o desinteresse ou a incapacidade de
refletir sobre a turbulência institucional por meio do uso do próprio saber
psicanalítico são entendidos como um sintoma, uma espécie de
epistemofobia frente ao objeto grupal-institucional (LEAL, 2001).
Diversos autores da atualidade creditam parte importante do
desprestígio da psicanálise à baixa qualidade dos analistas formados
nos últimos anos. E a qualidade sofrível dos analistas estaria relacio-
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Leal (2001) recomenda a incorporação da reflexão psicanalítica permanente sobre a vida cotidiana da instituição, encontros para trabalhar em
torno das discordâncias teórico-clínicas que oportunizem a elaboração de
lutos e de ansiedades depressivas e paranóides que surgem diante de mudanças institucionais e que previnam a desagregação do corpo social e a
paralisia da produção científica criativa.
Em “O quarto pressuposto”, Sandler (2001) observa a existência de
um quarto “pressuposto básico”, obstáculo à formação de um grupo de
trabalho, além dos três descritos por Bion (ataque-fuga; pareamento;
messeânico). Chama-o de “Alucinose de Exclusão/Pertinência”, que seria
uma tendência de seres em grupo alucinarem que pertencem ao grupo ou
estão excluídos dele. A origem psíquica parece ter duas bases: uma mais
primitiva, ligada aos processos de clivagem (splitting), e outra mais madura, baseada em fantasias edipianas de exclusão.
Relembrando os “pressupostos” de Bion (1961), temos:
– ataque-fuga (luta-fuga) – ocorre quando o grupo se fragmenta na
mútua destruição entre seus membros;
– pareamento (acasalamento) – quando a fragmentação se dá em torno de parelhas;
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Ane Marlise Port Rodrigues et al.
nada, fundamentalmente, à análise insuficiente que receberam. As
análises de má qualidade podem não decorrer, somente, de analistas
despreparados, mas de resíduos e representações inconscientes deles
e de seus analisandos que, splitados e projetados no espaço
institucional, permanecem ali depositados, não tendo chance de serem elaborados (LEAL, 2001, p.965).
A presença de romances familiares recalcados pode estar na origem
do sentimento de não pertencimento ou exclusão freqüentemente observados à nossa volta (ou em nós próprios). Esta versão da fantasia
nos interessa especialmente, uma vez que a instituição (psicanalítica)
pode ser buscada como abrigo e lugar de acolhimento para o nosso
anseio de pertencer. Este anseio vincula-se intimamente a um outro: o
anseio pelo pertencimento genealógico e geracional (LEAL, 2001,
p.967).
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
– grupo messiânico (dependência) – dá-se quando o grupo se aglutina
em torno de um líder.
Estes três pressupostos impedem a consecução de grupos de trabalho
e ameaçam a evolução favorável de qualquer agrupamento humano. No
que diz respeito ao agrupamento “Associação de Candidatos”, o primeiro
grande desafio é torná-lo um grupo que exista e esteja vivo. Para garantir
uma existência vitalizada, é preciso uma diretoria integrada, pois o próprio
grupo de diretoria pode ser tomado por identificações projetivas importantes e desconfianças, que impedem o seu trabalho e podem levar à sua dissolução (grupo de ataque-fuga). Mas ter uma diretoria integrada não basta, a
mesma deveria ser constituída já como resultado da integração possível
entre o grupo amplo de candidatos. O funcionamento de pareamento poderia ser observado quando candidatos de um mesmo analista didata ou de
mesmas linhas teóricas formam grupos dentro do grupo, mantendo distância uns dos outros e não buscando uma integração no plano científico e no
plano associativo através de uma diretoria composta por representantes de
vários grupos. Esses funcionamentos reforçam a sensação de exclusão x
pertinência, podendo aumentar as dissociações.
O grupo messiânico se apresenta quando a passividade, a dependência
e o não-envolvimento dos candidatos criam a expectativa de que uma diretoria de Associação de Candidatos, ou do Instituto ou da Sociedade resolva
todos os problemas da formação ou outros. Predominaria aqui a
infantilização já destacada anteriormente.
É impossível a qualquer grupo estar completamente imune aos estados mentais descritos acima, mas o funcionamento mental “grupo de trabalho” seria aquele mais preservado do poder de fragmentação e imobilidade
dos pressupostos ataque-fuga, pareamento, messiânico e exclusão x
pertinência. Pensamos que assim como o setting analítico necessita constantemente ser protegido da conspiração destrutiva do paciente e do analista, a partir de suas resistências à análise, também a Associação de Candidatos e a Instituição Psicanalítica têm um papel de proteção da formação analítica, a qual também sofre os efeitos das resistências dos próprios candida60
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O Quarto Eixo
Petrucci (2004) destaca a instituição analítica e as vicissitudes das relações entre seus componentes como o quarto elemento que permeia tanto a
formação dos candidatos, quanto o relacionamento subjetivo e informal entre os seus membros (desde a hostilidade franca até a busca de entendimento e integração entre diferentes idéias). Aponta para uma aplicação da teoria
do campo psicanalítico, de M. e W. Baranger, no campo institucional.
Como participantes da vida institucional de nossa Sociedade,
colocamo-nos de acordo com a visão de participação institucional como
um quarto eixo em nossa formação analítica. Sentimos que nossa evolução
no percurso de nos tornarmos analistas permeia o nível privado de nossa
formação, bem como o lugar onde estamos inseridas.
Dentro da discussão de outros eixos na formação analítica, além do
clássico tripé, Néstor Goldstein (2002b) considera as supervisões coletivas
nos Institutos quase como o quarto eixo pelo seu aporte clínico, teórico e
grupal, com o que compartilhamos.
Resultados do Questionário e Discussão
Foram computados os questionários recebidos até 19/06/2006, num
total de 13.
O Instituto da SBPdePA conta com 50 candidatos. Excluindo as autoras, temos 46 candidatos: 16 em seminários (35%) e 30 egressos (65%).
Responderam ao questionário 13 candidatos (28%); desses 13 candidatos, 5
(38%) em seminário e 8 (62%) egressos de seminários. De 46 candidatos,
cerca de 31% dos que estão em seminários responderam ao questionário, e
cerca de 27% dos egressos também responderam. Portanto, aproximadamente 1/3 dos candidatos de cada categoria respondeu ao questionário.
Além da entrega em mãos aos candidatos em seminário e via correio
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tos e analistas a uma maior integração e expansão da pensabilidade, do
acesso às verdades inconscientes e à experiência de mutualidade (em oposição ao narcisismo).
O CANDIDATO
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UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
aos egressos, foi realizado contato telefônico solicitando o preenchimento
e entrega do questionário na secretaria da Sociedade. O alto índice de nãorespostas (72%) nos faz pensar que para a maioria dos candidatos (em seminário e egressos) as solicitações da Associação de Candidatos não são
suficientemente motivadoras para incentivar a participação. Temos de considerar o fato de que a Associação esteve desativada por mais de um ano,
sem diretoria e sem reuniões por falta de candidatos interessados.
A baixa motivação para participar das atividades propostas pela Associação de Candidatos pode estar relacionada com os fatores discutidos no
presente trabalho, como a sensação de não-lugar e a não-identificação com
a condição de candidatos. Parece-nos que o reconhecimento do papel e da
importância da Associação de Candidatos é algo ainda incipiente nesse grupo.
1ª questão – Você está no Instituto da SBPdePA há: Responderam ao
questionário 8 candidatos egressos de seminários, 2 que estão há 4 anos, 2
que estão há 3 anos e um que está há 1 ano, perfazendo então um total de 13
(5 em seminários e 8 egressos). Quanto à pergunta sobre conclusão de seminários e supervisões, a maioria desses egressos concluiu há mais de 2
anos os seminários e o primeiro caso clínico.
2ª questão – Reside em: De nossa amostra, 10 (77%) residem em Porto Alegre e 3 (23%) noutra cidade. A busca de formação analítica a partir de
cidades onde a mesma não existe é fenômeno observado em todas as capitais que oferecem a formação. Isso nos sinaliza para a expansão da oferta
de tratamentos analíticos no interior ou em outros centros. A motivação
para responder ao questionário, que reflete o desejo de participar, não sofreu efeito da distância da moradia dos candidatos.
3ª questão – Você se sente pertencendo: Questionados sobre sua sensação de pertencimento, em regime de escolha múltipla, temos os seguintes resultados: Instituto da SBPdePA – 85%; SBPdePA – 85%; Associação
de Candidatos da SBPdePA – 69%; IPA – 69%; IPSO – 31%; OCAL –
23%; ABC – 23%; outra Instituição – 8%. O resultado de 85% de sensação
de pertencimento ao Instituto e à SBPdePA aponta para o fato de que exis62
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tem candidatos que não se sentem, já de início, pertecendo ao local onde
fazem sua formação. Esse dado, mesmo isolado, deve ser considerado importante. A simples existência de candidatos que não se sentem pertencendo ao lugar que escolheram para fazer sua formação já levanta preocupação. Podemos concluir que a simples entrada na Instituição, quando o candidato começa os seus seminários, não garante o sentimento de pertencer.
Esse terá de ser construído a partir do envolvimento de ambas as partes.
Mas, mesmo assim, a sensação de pertencimento foi maior do que em relação à Associação de Candidatos e à IPA. O fato de a IPSO ter tido um
índice maior do que a OCAL e a ABC nos parece relacionado com a divulgação sobre a IPSO feita pela Associação de Candidatos da SBPdePA a
partir do último congresso da IPA (Rio de Janeiro, julho de 2005). Foi aprovado em assembléia geral o pagamento da anuidade da IPSO vinculado à
mensalidade da Associação de Candidatos. O pagamento da ABC (Associação Brasileira de Candidatos) já vinha vinculado à mensalidade há muitos anos e o pagamento da OCAL ainda não foi deliberado. Sabe-se que,
em geral, os candidatos também têm vínculos com outras Instituições, e
esperávamos um índice maior de sensação de pertencimento a elas, o que
não se verificou nesse pequeno grupo. Isso aponta para um espaço em aberto para a atual Instituição Psicanalítica ocupar um lugar junto ao candidato.
4ª questão – Você acha que a denominação “Candidato” deve ser
modificada? Solicitados a opinar sobre a permanência ou modificação dessa nomeação, 54% responderam “Sim”, 28% responderam “Não” e 8%
não responderam. Mais da metade da amostra, portanto, foi favorável à
modificação dessa denominação.
Quanto ao “por quê” desse desejo, as respostas mostraram que há uma
associação entre a palavra “candidato” e um “não-lugar”, um “estar fora”
ou um “lugar em branco”. Essas respostas, de alto valor qualitativo, são
sugestivas dos sentimentos de pelo menos uma parte dos candidatos. Os
nomes sugeridos como opção a esse foram, predominantemente, “Analista
em Formação” ou “Psicanalista em Formação”. Também surgiram, em
menor proporção, as opções “Psicanalista Aspirante”, “Membro Transitó-
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
rio” e “Membro em Formação”. Essas denominações sugerem que há um
anseio de ser considerado “Membro” ou “Psicanalista”, palavras que sugerem um grau maior de pertencimento. Ao mesmo tempo, há o reconhecimento de uma identidade em formação, que torna necessário lidar com o
transitório e com a aspiração de ser psicanalista.
A questão da formação da identidade foi muito relevante nas opiniões
colhidas. Os colegas consideraram, com freqüência, o nome escolhido para
sua condição como muito importante para a aquisição da identidade de
psicanalista. Acreditamos que o desejo de ser nomeado já como Membro
ou Psicanalista poderia estar relacionado com o desejo de ter esse esboço
identificatório mais delineado e, assim, aliviar a ansiedade de estar em um
processo incompleto de construção de identidade, no qual permanecerá
imerso por vários anos. Uma outra forma de lidar com essas angústias pode
ser percorrer o trajeto das exigências institucionais formais de maneira burocrática, com a maior rapidez possível, com o objetivo de ter o título de
Membro e assim liberar-se da permanência em um espaço vivido como um
não-lugar.
5ª questão – Você participa de alguma atividade institucional na
SBPdePA, além dos seminários? Obtivemos uma percentagem equilibrada
entre “sim” (54%) e “não” (46%). As respostas afirmativas dão conta do
envolvimento dos candidatos com atividades relacionadas com a formação
e com a Instituição em si. Aproximadamente a metade dos colegas estava
envolvida com atividades nas quais buscavam crescimento pessoal e aprendizado de conteúdos psicanalíticos (grupos de estudo, núcleos de atividades específicas, etc.), e a outra metade participava de atividades ligadas ao
funcionamento da Instituição (jornal, revista, etc.), embora seja inegável
que essas atividades também promovam aprendizado e crescimento pessoal. Por outro lado, pensamos que essa participação demonstra que há uma
importante busca de inclusão, pelo menos de uma parte dos candidatos.
Aqueles que não participavam ofereceram respostas que diziam respeito a
questões conjunturais de suas vidas e não a problemas com a Instituição.
6ª questão – Como classifica a participação dos Candidatos nas ati64
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vidades institucionais (excetuando seminários) para o desenvolvimento de
sua identidade profissional? Todos consideraram a participação dos candidatos nas atividades institucionais importante (69%) e fundamental (31%)
para a formação de sua identidade profissional. Porém, temos de considerar que esse resultado foi obtido a partir dos 13 candidatos que responderam ao questionário, fato que já demonstra a importância conferida por
esse grupo à participação institucional.
7ª questão – Mencione pontos que julgue positivos ou negativos em
ter uma Associação de Candidatos na SBPdePA.
Positivos: A maioria destacou o papel político da Associação de Candidatos (união entre profissionais, conquistas, representatividade, força dos
questionamentos, reivindicações, intercâmbio entre candidatos e Instituto). Também aparece o papel de continência de ansiedades comuns e a
importância de ser um lugar de trocar e ter novas idéias (o que seria próprio
de um grupo de trabalho e de um aumento da pensabilidade). A existência
de uma Associação é percebida como algo que ajuda a ter um lugar próprio
e reconhecido em seu valor frente ao Instituto e à Sociedade. O desejo de
ter um lugar se expressou nas respostas a esta questão, assim como naquelas relativas à denominação da condição de candidatos (questão 4).
Negativos: Foi referido o risco de a Associação de Candidatos ficar
lidando isoladamente das questões relativas aos candidatos e a não-participação ativa dos mesmos em sua Associação. Essa resposta confirmou uma
sensação presente na própria diretoria, pois, apesar de as decisões serem
todas tomadas em Assembléias Gerais nos dias de seminários e com isso
garantindo, no mínimo, a participação dos candidatos em seminários, a
sensação de isolamento e distanciamento por vezes se apresenta e precisa
ser constantemente vigiada.
8ª questão – Você considera que a formação analítica preencheu suas
expectativas:
9ª questão – Sente-se decepcionado com:
Quanto ao item em que se indagou se a formação analítica preencheu
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as expectativas, a resposta de 38% indicou “plenamente” e 62% indicou
“parcialmente”.
Não existiram respostas de decepção com o conteúdo dos seminários,
e algumas respostas qualitativas indicaram uma insatisfação com a coordenação de alguns seminários (38%). Muitos solicitaram que a coordenação
dos seminários esteja a cargo de analistas didatas ou de pessoas com reconhecido saber do assunto. Houve resposta de insatisfação quanto à supervisão (7,7%) e quanto à análise didática (7,7%), com referência à
burocratização da análise, indicando um baixo índice de insatisfação. As
respostas qualitativas revelam o anseio de um espaço para conversar sobre
o processo de formação, iniciativa que o Instituto da SBPdePA já contempla atualmente. Esse movimento de oferecer um espaço para diálogo foi
elogiado em respostas qualitativas, identificando a importância deste canal
aberto entre os candidatos e a Diretoria do Instituto.
10ª questão – Considera importante a atividade de supervisão coletiva? Quanto à importância da supervisão coletiva, 100% da amostra respondeu “sim”. Foram alinhadas justificativas para esta resposta, nas quais
se destacaram a relação com os pares, a oportunidade de vivência
institucional, a possibilidade de dividir inquietações e as vantagens da
exposição da prática clínica para o aprendizado. Esse resultado aponta para
a grande importância que os candidatos atribuem a estar entre colegas discutindo material clínico e supervisionados por um analista de grande experiência. Afora as questões envolvidas de aprendizado, esse espaço contempla o compartilhar dúvidas e angústias em relação aos pacientes e ao trabalho clínico e colabora na construção da identidade do analista.
11ª questão – O que motiva (ou não) a participar das atividades científicas na SBPdePA?
12ª questão – Sugestões:
Quanto ao que motiva (ou não) a participar das atividades científicas e
sugestões, há um interesse em conviver mais na instituição, um desejo de
integração, uma busca de conhecimento através das trocas de experiências,
uma busca de espaço para conter angústias e dúvidas resultantes do traba66
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lho junto aos pacientes. Novamente se reiterou, como em questões anteriores, um desejo de discussão de casos clínicos, principalmente com analistas didatas e com pessoas altamente preparadas. Essas trocas são referidas
como formas de sair do isolamento dos consultórios, de estimular a busca
da construção da identidade analítica e de solidificar o compromisso que
representa ser psicanalista.
13ª questão – Especifique o seu grau de entusiasmo pela psicanálise,
em escala de 1 a 10: Noventa e três por cento respondeu que aumentou
depois do início da formação, e um índice de 7% mencionou que diminuiu
o entusiasmo. Assim, observamos que a experiência institucional com a
formação incrementou o entusiasmo em relação à Psicanálise, o que dá um
retorno positivo para o Instituto e para a Sociedade.
14ª questão – Por que escolheu a formação da IPA? A escolha pela
formação na IPA aparece justificada por ser oficial e por suas características de qualidade, seriedade, honestidade e responsabilidade. O reconhecimento internacional também é destacado. A identificação com Freud aparece como um dado importante na escolha pela IPA.
15ª questão – Considerando que o acompanhamento ideal da Instituição em relação ao seu desenvolvimento seja oferecer um clima de liberdade, sem que você se sinta desacompanhado, nem infantilizado, você se sente: Nessa questão, tivemos, predominantemente: bem acompanhado –
39%; pouco acompanhado – 39%; não infantilizado – 30%; pouco
infantilizado – 23%; muito infantilizado – 7%; não acompanhado – 0%.
Observa-se uma predominância de sentir-se “não infantilizado” (30%) ou
“pouco infantilizado” (23%); também houve predominância do estado
“bem acompanhado” (39%) e “pouco acompanhado” (39%). A condição
de “muito infantilizado” (7%) e de “não acompanhado” (0%) apareceu
como mínima e não existente, respectivamente. Voltamos a destacar que
esse índice positivo é encontrado no grupo que respondeu ao questionário.
Não temos como avaliar como se situa a grande maioria que não respondeu.
16ª questão – Espaço livre para comentários:
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
1) Foi valorizado o trabalho da Associação de Candidatos e a iniciativa de envolver os candidatos (em seminários e egressos) com a Instituição.
A evasão dos egressos é considerada preocupante e sugere-se pensar em
formas de aproximá-los.
2) Foi sugerido acompanhamento mais ativo dos coordenadores em
relação a candidatos que não falam em seminários ou os que parecem só
interessados no título de analista. Existe já um espaço constituído para receber o candidato por sua livre e espontânea vontade junto à Diretoria do
Instituto.
3) Também foi destacada a idéia de que a opinião dos candidatos possa ser mais levada em conta em assuntos que dizem respeito à sua formação. A condição de aceitar passivamente o que é determinado pela Diretoria do Instituto não agrada aos candidatos.
4) Foi salientada a importância da existência de um espaço dentro da
Instituição para discussão de problemas relativos à análise didática.
5) O comprometimento dos candidatos com outras Instituições é referido como fator possível na pouca participação nas atividades locais. Quanto a este item, não é o que se observa na presente amostra, mas como não
temos como avaliar a maioria que não respondeu, não é impossível que tal
hipótese tenha relevância em relação aos que não responderam.
Portanto, observa-se o desejo de que houvesse uma maior participação por parte dos candidatos, especialmente os egressos, um maior espaço
do candidato junto ao Instituto e um olhar atento e ativo dos coordenadores
de seminários em relação ao candidato que parece alheio aos assuntos e ao
grupo.
Comentários Finais
Apesar do alto índice de não-respostas ao questionário (72%), as respostas enviadas (28%) nos possibilitaram refletir sobre uma série de questões que nos dizem respeito enquanto candidatos. Esse instrumento permitiu uma maior aproximação com os elementos subjetivos e informais
(PETRUCCI, 2004) que circulam entre os candidatos e suas Instituições.
68
Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 69
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
Esses elementos, ao não serem reconhecidos e ao não encontrarem um lugar apropriado para sua elaboração, podem tornar-se fonte de desentendimentos e de desinvestimento libidinal na formação, colocando em risco a
construção dessa identidade tão delicada e que necessita de tanto cuidado.
Nessa amostra a desidealização, que aparece no território das decepções, não parece ameaçar o entusiasmo pela psicanálise, que foi aumentando durante a formação para a grande maioria.
A identificação com Freud e com a formação analítica da IPA aparece
como eixo norteador do tipo de instituição procurada ou do tipo de profissional procurado para análise pessoal. Portanto, pertencer à IPA confere
um marco de pertencimento e de características universais de formação
(ZAC DE FILC, 1999) para esta amostra.
Foram referidas também outras expectativas em relação à Instituição
Psicanalítica como continente do processo de formação, não levando a uma
infantilização e passividade do candidato, apesar de aspectos da transferência oriundos da relação com a família primária e com o analista escaparem para o campo institucional. O perigo maior se constitui se esses elementos não são reconhecidos e permanecem dissociados e projetados, sem
possibilidade de elaboração na análise pessoal.
As questões relativas às condições de aprendiz de um novo ofício; de
ser continente de ansiedades relativas à busca de uma nova identidade que
deverá ser construída e conquistada no decorrer de vários anos e ainda assim sempre necessitará ser reafirmada; a angústia do não-lugar até encontrar o lugar; os riscos de não se constituir um grupo de trabalho em qualquer atividade proposta; e a necessidade de se sentir acompanhado também
apareceram como de grande importância.
A participação nas atividades institucionais vai ao encontro do aprimoramento científico e da busca de inclusão e é descrita como importante
e fundamental para a formação da identidade profissional.
Atingir uma maior condição de responsabilidade autoral (LEAL,
2001) é uma meta que toda Associação de Candidatos deveria ter em men-
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
te, apesar das sabidas dificuldades de envolver seus candidatos nos assuntos de sua formação e de sua Instituição.
A supervisão coletiva é uma atividade apontada como fundamental, o
que vai ao encontro das observações de Néstor Goldstein (2002b) ao
considerá-la quase como um quarto eixo na formação.
Ter um horário disponível semanalmente para o uso do candidato junto à Diretoria do Instituto foi uma iniciativa da mesma valorizada pelos
candidatos.
A partir desse trabalho, onde a Instituição aparece como um quarto
eixo de fundamental importância na construção da identidade analítica do
candidato, sugerimos a criação de um espaço nos seminários (talvez já no
1º ano) para que os candidatos sejam sensibilizados quanto à importância
dessa questão através de um dia de seminários dedicado a esse tema. Ou
seja, sugerimos que essa questão seja incluída como tema teórico de estudo
e discussão em seminário.
Queremos, por fim, agradecer aos colegas que responderam ao questionário e, assim, possibilitaram que questões tão relevantes se tornassem
um pouco mais claras.
Agradecemos também à Diretoria do Instituto de Psicanálise da
SBPdePA e à Diretoria da SBPdePA pelo acolhimento de nossas idéias,
pelo espaço ofertado e pelo estímulo ao desenvolvimento de um pensamento livre.
The candidate and the psychoanalytical institution: a fourth axle in
the analytical formation?
Abstract: From the experience as candidates in the analytical formation and as the directory
of the candidates’ Association of the Brazilian Society of Psychoanalysis of Porto Alegre
(RS–Brazil), the authors make a reflection about the importance of the candidate’s
experiences with the Institution for the development of his/her identity as an analyst. In
this approach the Institution appears as a fourth axle of basic relevance which adds up to
the classic tripod of the analytical formation: didactic analysis, theoretical seminars and
clinical supervisions. The job develops in two ways: bibliographic revision and analysis
of the material directly obtained from the candidates of their Institution, about their feelings
of belonging, the vicissitudes of the idealization and the unidealization and the usage of
70
Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
El candidato y la institución psicoanalitica: ¿un cuarto eje en la
formación analítica?
Resumen: A partir de la experiencia como candidatas en formación psicoanalítica y como
Directoria de la Asociación de Candidatos de la Sociedad Brasilera de Psicoanálisis de
Porto Alegre (RS-Brazil), las autoras hacen una reflexión sobre la importancia de las
convivencias del candidato con la Institución para el desarrollo de su identidad de analista. Bajo este concepto, la Institución aparece como un cuarto eje de fundamental importancia
que se suma al clásico tripode de la formación psicoanalítica: análisis didáctico, seminários teóricos y supervisiones clínicas. El trabajo se desarrolla en dos partes: revisión bibliográfica y análisis del material obtenido directamente junto a los candidatos de su
Institución, a respecto de su sentimiento de pertenencia, de las vicisitudes de la idealización
y de desidealización y del uso de su Institución como espacio potencial y de represión de
las ansiedades relacionadas a la construcción de una nueva identidad.
Palabras-llave: Institución Psicoanalítica. Formación Analítica. Candidato. Identidad.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 71
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
their Institution as a potential space in the suppression of the anxieties related to the
construction of a new identity.
Key-words: Psychoanalytical Institution. Analytical Formation. Candidate. Belonging.
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
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Artigo
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O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
ANEXO
1. Você está no Instituto da SBPdePA há: ( ) 1 ano ( ) 2 anos ( ) 3 anos
( ) 4 anos ( ) mais de 4 anos ( ) egresso de seminários (há ... anos) ( )
já concluiu seminários e supervisões (há ... anos)
2. Reside em: ( ) Porto Alegre ( ) outra cidade
3. Você se sente pertencendo (escolha simples ou múltipla): ( ) à Associação de Candidatos do Instituto da SBPdePA () ao Instituto da
SBPdePA ( ) à SBPdePA ( ) à IPA ( ) à IPSO ( ) à OCAL ( ) à ABC
( ) a outra Instituição ( ) a nenhum dos itens anteriores
4. Você acha que a denominação “Candidato” deve ser modificada? ( )
Sim ( ) Não Se SIM, qual denominação sugere e por quê:
5. Você participa de alguma atividade institucional na SBPdePA, além
dos seminários? ( ) Sim Qual? ( ) Não Por quê?
6. Como classifica a participação dos Candidatos nas atividades
institucionais (excetuando seminários) para o desenvolvimento de sua
identidade profissional? ( ) fundamental ( ) importante ( ) indiferente ( ) desnecessária
7. Mencione pontos que julgue positivos ou negativos em ter uma Associação de Candidatos na SBPdePA. Positivos: Negativos:
8. Você considera que a formação analítica preencheu suas expectativas:
( ) plenamente ( ) parcialmente ( ) não preencheu
9. Sente-se decepcionado com: ( ) conteúdo dos seminários teóricos ( )
coordenação de seminários ( ) supervisão ( ) análise didática ( ) outros
10. Considera importante a atividade de supervisão coletiva? ( ) Sim Por
quê? ( ) Não Por quê?
11. O que motiva (ou não) a participar das atividades científicas na
SBPdePA?
12. Sugestões:
13. Especifique o seu grau de entusiasmo pela psicanálise, em escala de 1
a 10:
74
Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 75
Ane Marlise Port Rodrigues et al.
Antes de iniciar a formação:
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Neste momento de sua trajetória: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
14. Por que escolheu a formação da IPA?
15. Considerando que o acompanhamento ideal da Instituição em relação
ao seu desenvolvimento seja oferecer um clima de liberdade, sem que
você se sinta desacompanhado, nem infantilizado, você se sente: ( )
muito infantilizado ( ) pouco infantilizado ( ) não infantilizado ( )
bem acompanhado ( ) pouco acompanhado ( ) não acompanhado
16. Espaço livre para comentários:
O CANDIDATO
E A INSTITUIÇÃO
PSICANALÍTICA:
UM QUARTO EIXO NA FORMAÇÃO ANALÍTICA?
76
Psicanálise v. 9, n. 1, p.47-75, 2007
Celso Halperin**
Lisiane Milman Cervo**
Caroline Milman***
Astrid Ribeiro****
Eliane Nogueira****
Ester Litvin****
Resumo: O trabalho busca uma conexão entre a visão da bissexualidade
na obra de Freud (em que o destaque é dado ao papel da repressão) e dos
Elementos Masculinos e Femininos puros na obra de Winnicott (cujo
alicerce está na dissociação). Em Winnicott, há um desenvolvimento da
idéia da bissexualidade, para além da questão do gênero, atribuindo-lhe
um novo sentido: o Elemento Feminino, vinculado à experiência de SER,
e o Elemento Masculino, base para o FAZER. A partir desses referenciais,
os autores procuram compreender esse modelo de pensamento adotado
por Winnicott, em que haveria um estado psíquico de SER prévio à
pulsão – o que questiona um dos paradigmas da psicanálise: o primado
das pulsões.
Palavras-chave: Bissexualidade. Ser. Fazer.
“Todo mundo é bissexual, no sentido da capacidade de
se identificar com o homem e a mulher [...] Acho que o
estudo da identificação do homem com a mulher tem
* Trabalho apresentado no XV Encuentro Latino-americano sobre el
Pensamiento de D. Winnicott. Buenos Aires: APA, 2006.
** Membros Associados da SBPdePA e Coordenadores do Grupo Espaço Potencial.
*** Membro Associado da SBPdePA e participante do Grupo Espaço Potencial.
**** Membros do Instituto de Psicanálise da SBPdePA e participantes do Grupo Espaço Potencial.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 77
Celso Halperin et al.
Reflexões sobre a
Bissexualidade em Freud e
Winnicott*
REFLEXÕES
SOBRE A
BISSEXUALIDADE
EM
FREUD
E
WINNICOTT
sido muito complicado por uma tentativa insistente por parte dos psicanalistas em chamar de homossexualidade tudo o que não é masculino num homem...” (Winnicott, 1966b, p.135.
“... Se houver algo que eu faça que não seja freudiano, gostaria de
sabê-lo.”
(Winnicott, 1967, p. 437).
Para nos agregarmos às comemorações dos 150 anos do nascimento
de Freud, nos propomos a fazer uma conexão com os 110 anos do nascimento de Winnicott. Pensar nas tantas conexões da obra de Freud e de
Winnicott seria uma tarefa exaustiva, dada sua abrangência; assim, devido
à coincidência do ano do nascimento de Winnicott com a abordagem inaugural da bissexualidade na correspondência de Freud, elegemos esse tema
em Freud e nos propomos a examinar sua possível relação com as reflexões de Winnicott sobre os elementos femininos e masculinos puros, que
estão apresentados em seu artigo sobre “A Criatividade e suas Origens”.
Também nos motivamos a explorar esse tema em Winnicott porque os conceitos enfocados, ainda que tenham uma fascinante aplicação na clínica e
na cultura, não circulam tanto no meio psicanalítico, tal como os conceitos
dos fenômenos transicionais ou do verdadeiro/falso self.
O importante papel da sexualidade como agente estruturante – mas
que, ao mesmo tempo, pode ser desorganizador da mente humana – foi
uma descoberta fundamental da ciência, que devemos ao fundador da psicanálise. O que Freud foi desenvolvendo ao longo de sua obra baseia-se
invariavelmente na força pulsional, base do sujeito. Sem exatamente contrapor Freud, mas agregando um novo pensamento sobre a formação original do sujeito, surgiu Winnicott como uma das mais destacadas figuras da
psicanálise pós-freudiana, dedicando-se principalmente ao estudo da natureza das relações humanas, em particular as da mãe e filho. Winnicott passou a abordar os elementos femininos e masculinos puros, atribuindo-lhes
um novo sentido: o feminino ligado ao estado inicial, fusional com a mãe
(SER), e o masculino ligado ao instinto, que emerge do potencial agressivo
78
Psicanálise v. 9, n. 1, p.77-93, 2007
A Bissexualidade em Freud
Em 6 de dezembro de 1896 (ano do nascimento de Winnicott), Freud
escreveu a Fliess a conhecida carta 52 (1896). Da longa carta, contendo seu
esboço de aparelho psíquico e idéias sobre a origem sexual das
psiconeuroses, uma parte se destacava no que tange ao tema da
bissexualidade. Observa-se aqui que a palavra “bissexualidade” apareceu
pela primeira vez numa carta a Fliess. Interessante pensar que a forma
como se desenvolveu esse conceito figura como um dos motivos de rompimento entre Freud e Fliess, antecipando as polêmicas futuras sobre tal assunto.
Freud, em “Três Ensaios para uma Teoria da Sexualidade” (1905),
definiu a sexualidade como polarizada na escolha entre homo e
heterosexualidade – sendo que a homossexualidade derivaria da existência, em todo o ser humano, de uma bissexualidade originária (em sua descrição sobre “Desvios com Respeito ao Objeto Sexual”). Trouxe, então, de
sua discussão fecunda com Fliess, o termo “bissexualidade”, e o utilizou
como disposição universal e não como fator de desvio sexual, tornando-o
um novo conceito de realidade psíquica constitutiva dos seres humanos.
Freud fez da bissexualidade psíquica um aspecto fundamental para o desenvolvimento psicossexual e o estabelecimento da repressão, distanciando-se definitivamente de Fliess, passando a interessar-se pela maneira
como cada ser sexuado reprimia ou não os caracteres do outro sexo.
Foi em “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”
(1908) que Freud mais se aproximou, no tema da bissexualidade, de seu
estilo de conceitualizar suas descobertas: partindo da patologia (histeria),
chegou a uma origem comum entre doença e saúde (bissexualidade) e pôde
achar o ponto nuclear dos humanos onde se dá a disposição a esta patologia. Ele descreveu que um sintoma histérico é a expressão, por um lado, de
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 79
Celso Halperin et al.
aliado ao potencial erótico (FAZER). O feminino e o masculino começam,
para Freud e Winnicott, a tomar dimensões diferentes, mas igualmente fundamentais em suas teorias (Rubinstein,1994).
REFLEXÕES
SOBRE A
BISSEXUALIDADE
EM
FREUD
E
WINNICOTT
uma fantasia masculina; por outro, de uma feminina, ambas sexuais e inconscientes. Percebeu que todas as pessoas passaram pela experiência de
sentir os dois sexos atuando enquanto fantasia no ego onipotente, e somente a partir do fenômeno da repressão é que se estabelece a escolha de um
dos lados constitutivos da pulsão.
Nas notas adicionais aos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade
(1905/1915), Freud falou sobre “masculino x feminino” e “passivo x ativo”, e que não há possibilidade, do ponto de vista psíquico nem biológico,
de indivíduos puramente femininos ou masculinos. Há uma mescla de feminino e masculino, ativo e passivo em todo ser humano.
Em “Além do Princípio do Prazer” (FREUD, 1920), mudou o rumo do
dualismo inicialmente proposto (pulsões sexuais e pulsões do ego) e trouxe à luz uma nova definição de pulsão, concebida agora como uma força
que tende à restituição de um estado anterior, incluindo a própria força de
vida (“pulsão de morte x pulsão de vida”).
Em seu artigo “O Ego e o Id” Freud retomou com vigor o tema da
bissexualidade, quando introduziu o conceito de superego como herdeiro
do complexo edípico e teve de dar conta de uma escolha sexual e do material reprimido. A respeito desta constitucionalidade sexual e de seus caminhos até o Édipo, Freud (1923, p.47), disse:
O desenlace do complexo de Édipo numa identificação com o pai ou
com a mãe parece, pois, depender em ambos os sexos de uma energia
relativa das duas disposições sexuais. Esta é uma das formas nas quais
a bissexualidade intervém nos destinos do complexo edípico.
Destacou ainda que o “complexo completo, positivo e negativo, depende da bissexualidade originária do sujeito infantil” (FREUD, 1923, p.
47). Comentou que as identificações primitivas, desde o início
ambivalentes para com o objeto, dependem exclusivamente da
bissexualidade e nela estão intrincadas.
Freud percorreu um longo caminho e mudou muitas vezes de posição,
80
Psicanálise v. 9, n. 1, p.77-93, 2007
Os Elementos Masculinos e Femininos em Winnicott
No artigo intitulado “Os Elementos Masculinos e Femininos Expelidos encontrados em Homens e Mulheres” (1966a), Winnicott trouxe suas
reflexões sobre o conceito psicanalítico de bissexualidade e também de
como é constituída essa bissexualidade. Através de uma vinheta, Winnicott
nos convidou a compartilhar uma experiência clínica: tratava-se da análise
de um homem de meia idade, bem-sucedido na área profissional e familiar,
que buscou uma re-análise por outros motivos nada relacionados a alguma
questão homossexual. O paciente, que já se submetera a vários tratamentos
anteriores, faz um comentário sobre a inveja do pênis, provocando a seguinte intervenção de Winnicott (1966a, p.105): “Estou ouvindo uma
moça. Sei perfeitamente bem que você é homem, mas estou ouvindo e
falando com uma moça. Estou dizendo a ela: Você está falando sobre a
inveja do pênis”.
Através da contratransferência, Winnicott (1966a, p. 105) escutou a
fala do paciente homem como sendo a de uma mulher. Após uma pausa, o
paciente disse: “Se eu falasse a alguém sobre essa moça, seria chamado de
louco”. Ao que Winnicott respondeu:“Não é que você tenha contado isso a
alguém; sou eu que vejo a moça e ouço uma moça falar, quando, na realidade, em meu divã acha-se um homem. O louco sou eu”.
Por meio de sua contratransferência, Winnicott descobriu que, embora
seu paciente se sentisse homem, e nunca duvidara que o fosse, tinha provavelmente sido visto como uma menina por sua mãe em estágios primitivos
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 81
Celso Halperin et al.
numa tentativa de demonstrar a universalidade de suas descobertas, evidenciando uma de suas mais ferrenhas características como cientista. Entre
1897 e 1937, fez inúmeras mudanças em seu conceito ou como entendia o
direcionamento da bissexualidade em cada um dos sexos. Em Análise
Terminável e Interminável (FREUD, 1937), voltou à sua idéia de que ambos os sexos reprimiam o que dizia respeito ao sexo oposto: a inveja do
pênis na mulher e o rechaço ao feminino no homem (Roudinesco e Plon,
1997).
REFLEXÕES
SOBRE A
BISSEXUALIDADE
EM
FREUD
E
WINNICOTT
da sua vida. Foi isso que se repetiu na transferência, foi por isso que
Winnicott (como a mãe) escutou uma mulher. Mais do que isso: a “loucura” da mãe que via uma menina onde existia um menino foi trazida diretamente ao paciente através da afirmativa de Winnicott (1966a, p. 106): “sou
eu que estou louco”.
Esse caso fez Winnicott perceber que, até então, nunca tinha aceitado
integralmente a dissociação completa entre o homem (ou a mulher) e o
aspecto da personalidade que tem o sexo oposto. Nesse caso específico, a
defesa de dissociação abria caminho à aceitação da bissexualidade como
qualidade do self total. Podemos entender que o Elemento Feminino Puro,
dissociado e expelido, encontrou uma unidade com o analista e isso deu ao
paciente a sensação de que começara a viver. Em outras palavras: o elemento feminino puro do paciente (provavelmente cultivado e
“hipertrofiado” pela mãe) foi dissociado e expelido pelo paciente no analista, que sentiu na loucura uma identidade com tais elementos. Essa dinâmica deu ao paciente, finalmente, a sensação de uma vida própria.
Com essa experiência, Winnicott pensou que, em muitos casos, a
dissociação – e não a repressão – ilustra a relação entre elementos masculinos e femininos em homens e mulheres. E chamou a atenção para várias
situações:
– uma pessoa pode ter o elemento de outro sexo completamente expelido, de maneira que um homem, por exemplo, pode não ser capaz de entrar em contato, de estabelecer vínculo algum com a parte expelida, ou
seja, a parte não integrada que é colocada no outro;
– a parte do sexo expelida da personalidade tende a permanecer sempre na mesma idade. Um exemplo disto seria um homem (ou mulher) que
depende de meninas (ou meninos) bem mais jovens para manter vivo seu
eu (self) feminino expelido. Mesmo que se casem com essas mulheres, e
vivam até a velhice, essas moças nunca atingirão a maturidade, pois, como
tudo aquilo que é dissociado do self, não há o registro da passagem do
tempo;
– outra situação seria a de homens (e também a de mulheres) que se
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Poderia se pensar que, no extremo patriarcal de nossa sociedade, a
relação é o estupro; e, no outro extremo, o matriarcal (o homem com
elemento feminino expelido), que tem de satisfazer muitas mulheres é
valorizado, mesmo que assim procedendo se aniquile a si mesmo?
Entre esses dois extremos encontra-se a bissexualidade. Winnicott
chama a atenção para a existência desse Elemento Feminino Puro expelido
que impede, na realidade, a prática homossexual. No exemplo do paciente
descrito anteriormente, a prática da homossexualidade estabeleceria muito
mais a busca dos elementos masculinos do que dos femininos expelidos.
Enfim, parece ser necessário admitir a existência de elementos masculinos
e femininos em homens e mulheres, ainda que, muitas vezes, esses elementos possam estar dissociados e expelidos uns dos outros em alto grau.
Até aqui discutimos a questão da bissexualidade (masculino x feminino), no que tange a alguns aspectos do gênero, tanto em Freud como em
Winnicott. A partir de então, Winnicott inovou o pensar psicanalítico ao
introduzir os conceitos de Elementos Femininos Puros e Elementos Masculinos Puros, relacionando-os com o desenvolvimento emocional primitivo.
Cabe agora compreender o que Winnicott denomina elementos masculinos e femininos puros:
O Elemento Feminino Puro tem suas raízes em uma experiência
fusional primitiva com a mãe. Um período em que ainda não há, do ponto
de vista do bebê, uma diferença entre ele próprio e a mãe. O bebê e a mãe
são uma unidade, não apenas sentindo-se como uma unidade, mas sendo
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Celso Halperin et al.
especializam em iniciar meninas (ou meninos) na experiência sexual. Esse
homem (ou mulher) pode ser alguém que se sinta mais identificado com a
menina do que consigo mesmo, o que lhe concede a capacidade de ir até o
fim para despertar o sexo da menina e satisfazê-la. Para isso, ele precisa
renunciar e obter apenas uma pequena satisfação masculina.
Diz Winnicott (1966a, p. 111):
REFLEXÕES
SOBRE A
BISSEXUALIDADE
EM
FREUD
E
WINNICOTT
uma unidade. Há uma identidade entre o objeto e o sujeito (WINNICOTT,
1969). O objeto é o sujeito. Essa identidade, que precede a idéia de estarem-união-com é a base do sentimento de Ser. Essa identidade primária,
implícita no Elemento Feminino Puro, alicerce para o Ser, pode se constituir desde muito cedo, inclusive desde o nascimento. É a partir do Ser que
se dá a origem dos processos de identificação que conduzem à diferenciação entre o Eu e o Não-Eu.
Em contraste com o Elemento Feminino que pressupõe a idéia de unidade, o Elemento Masculino pressupõe uma separação do objeto. Isso implica a necessidade de que já haja uma mínima estruturação egóica para
que seja possível discriminar sujeito e objeto, ou seja, para que o objeto
possa ser reconhecido como distinto do Eu. “A satisfação dos impulsos, de
qualquer natureza, acentua a separação do objeto em relação ao bebê e
conduz à objetivação do objeto” (WINNICOTT, 1966a, p. 115).
O que interessa fundamentalmente a Winnicott é o estabelecimento da
capacidade de SER, como base para que o FAZER possa ter um sentido
pleno para o indivíduo. Para desenvolver essas idéias, a de Ser e de Fazer,
Winnicott utiliza arbitrariamente as denominações de Elemento Feminino
para o Ser, e de Elemento Masculino para o Fazer – da mesma forma que
Freud elege o ativo e passivo para se referir à sexualidade do homem e da
mulher. Ainda que os elementos masculinos e femininos, em homens e
mulheres, sejam, na realidade, mesclados, Winnicott os destila artificialmente, apresentando-os como puros para desenvolver sua teoria.
Em termos de Elemento Masculino, a relação com o objeto transita
apoiada no instinto (ativo ou passivo), diferente do que ocorre em termos
do Elemento Feminino Puro, em que ainda não teria lugar para o impulso
instintivo. Para Winnicott, a Psicanálise talvez tenha concedido atenção
especial a esse Elemento Masculino ou a aspectos impulsivos da relação de
objeto, e negligenciado, contudo, a identidade sujeito/objeto, base da capacidade de Ser. O Elemento Masculino Faz, ao passo que o Elemento Feminino (em homens e mulheres) É.
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Diz Winnicott (1966a, p. 120): “Após SER-FAZER, e deixar-se fazer.
Mas SER, antes de tudo”.
A importância do fator ambiental é crucial, pois é fundamental que a
mãe se apresente, ou apresente um seio que É, para que o bebê também
possa ser, quando o bebê e a mãe ainda não estão separados na mente rudimentar do bebê. Se a mãe não for capaz de dar essa contribuição, o bebê
tem de se desenvolver sem a capacidade de Ser, ou pelo menos com a capacidade de Ser mutilada.
Para WINNICOTT (1966a, p. 117), “O Estudo do Elemento Feminino,
puro, destilado e não-contaminado, nos conduz ao Ser, base para o sentimento de existir”. [...] “Quando o Elemento Feminino no bebê (ou paciente) masculino ou feminino encontra o seio, é o Eu (self) que foi encontrado”.
É evidente que, na saúde, uma quantidade variável de elementos femininos e masculinos são encontrados em meninas e meninos. Inclusive por
fatores hereditários, é possível encontrar um menino com um Elemento
Feminino (como aqui foi conceituado) mais intenso que o de uma menina
que esteja ao seu lado. É importante ser ressaltado que a bissexualidade é
uma característica comum a todos os seres humanos. Os princípios básicos, denominados por Winnicott como Elementos Masculinos e Femininos
Puros, não se relacionam com o gênero assumido pelo indivíduo, e sim
com os fenômenos do SER e do FAZER.
Talvez valha a pena, nesse ponto, revisar como Winnicott compreende
a origem e o destino do Ser, caso todas as condições favoreçam. Qual é a
origem da vida no modelo psíquico de Winnicott que daria lugar ao crescimento e diferenciação do Ser?
Diferentemente de Freud, Winnicott não considera o inorgânico como
o estado originário de onde se parte e para onde se retorna. Em alguns
momentos, Winnicott se refere a uma energia primitiva, uma vitalidade
ainda não diferenciada, presente nos tecidos (como nos músculos, por
exemplo) que chama de impulso vital. É essa força vital que dá lugar ao
crescimento e diferenciação daquilo que chamamos de Ser. É no Ser que
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SOBRE A
BISSEXUALIDADE
EM
FREUD
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WINNICOTT
começa a vida psicológica (WINNICOTT, 1988). É quando se dá o primeiro esboço de autoconsciência de estar vivo, de haver uma continuidade
existencial, do registro do Ser no tempo, registros dos primeiros gestos
criativos e atos espontâneos capazes de inaugurar uma existência verdadeira, de dar nascimento a um si mesmo verdadeiro (PAINCERA, 1994).
É a partir do Ser, estado de onipotência, que gradativamente o objeto
subjetivo vai sendo expulso da própria subjetividade, vai podendo ser percebido como fora do Ser, como objeto Não-Eu, permitindo que só então se
estabeleça a relação objetal. Vai se criando, a partir de então, a percepção
de um objeto Não-Eu, o espaço para o Fazer, para que se estabeleça um
vínculo, uma relação de objeto. Antes dessa diferenciação podemos falar
em identificação primária, agora já é possível uma relação objetal. Ainda que escape do presente trabalho, seria interessante ressaltar que é nesse
espaço, entre o Eu e o Não-Eu, que Winnicott desenvolverá todo o seu
estudo da Transicionalidade.
De Freud à Winnicott
A idéia da bissexualidade em Freud está alicerçada no mecanismo de
repressão, enquanto que, para Winnicott, na discussão dos elementos femininos e masculinos destaca-se o mecanismo da dissociação.
Diante dessa constatação, destacamos um artigo de Gurfinkel (2001),
chamado “O Carretel e o Cordão”, em que ele justamente contrasta “A
Clínica da Repressão e a Clínica da Dissociação.” Esse autor descreve
como predominantemente a obra de Freud ocupou-se de uma “Clínica da
Repressão”, mas, a partir do estudo do Fetichismo (1927), ele desenvolveu
a noção de dissociação – e só mais tardiamente sugeriu a aplicação desse
mecanismo para a psicose e para toda a vida psíquica.
Freud iniciou seu texto: “A Divisão do Ego nos processos de defesa”
(1938a, p. 309), com a seguinte frase: “Encontro-me na interessante posição de não saber se o que tenho a dizer deve ser encarado como algo há
muito tempo conhecido ou como algo inteiramente novo e enigmático. Es-
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Celso Halperin et al.
tou, porém, inclinado a pensar que é esse último”. Para Gurfinkel (2001),
essa frase não é somente enigmática, mas profética.
Nesse texto, Freud (1938a, p. 309) abordou a dissociação como um
mecanismo em que a vida mental se bifurca em dois movimentos contraditórios e paralelos, que conduzem a “[...] uma fenda no Ego que nunca se
cura[...]”, mas que se aprofunda com o passar do tempo. Aqui, esse processo ainda foi descrito por Freud em torno da problemática da castração:
por um lado, há um afastamento da realidade e da interdição dela originada
e, por outro, o reconhecimento do perigo da realidade.
Foi somente no final de sua obra, no “Esboço de Psicanálise” (1938b),
que se deu em Freud uma real abertura em relação à Clínica da Dissociação,
quando essa passou a ser pensada com relativa independência em relação à
questão da castração.
A questão do fetichismo foi uma porta de entrada para uma possível
gênese da Clínica de Dissociação na obra de Freud (sucedendo a Clínica da
Repressão), ainda que não encontremos nela um desenvolvimento pleno
da mesma. Já em Winnicott, a Clínica da Dissociação ganhou ênfase, fazendo-se central para a compreensão das psicopatologias da área dos Fenômenos Transicionais, bem como em vários de seus estudos. Em plena maturidade, Winnicott retomou o estudo da dissociação em termos de uma
exclusão completa por parte do homem (ou da mulher) do aspecto de personalidade do sexo oposto, conduzindo ao estudo dos elementos femininos
e masculinos. Para Winnicott, o estudo da dissociação – articulado ao da
regressão – tornou-se uma das ferramentas importantes da ampliação da
clínica psicanalítica, revelando a emergência de um modelo teórico-clínico
que se faz presente para muitos analistas atualmente (GURFINKEL, 2001).
Outro ponto nuclear do pensamento de Winnicott que parece ter encontrado seu embrião nas idéias de Freud é o desenvolvimento da noção de
“SER”, precedendo a de “FAZER”. Nos achados Pós-escritos de Freud (de
1938, publicado postumamente em 1941, p. 335), encontramos a seguinte
citação a respeito do “Ter e Ser na Criança”:
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SOBRE A
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A criança prefere expressar a relação objetal por meio de uma identificação: Eu sou o objeto. O ter é posterior e volta-se a recair no Ser,
quando o objeto é perdido. Exemplo: O seio materno. O seio é uma
parte de mim, eu sou o seio. Somente mais tarde: Eu o tenho, isto é, eu
não sou ele
Observa-se como se articulam o “TER” de Freud com o “FAZER” de
Winnicott: novamente Freud, no final de sua obra, lançou uma idéia, um
marco inaugural, na qual Winnicott se apoiou, dedicando-se ao seu desenvolvimento e ampliação.
Discussão
Pensamos em destacar algumas questões que nos ocorreram ao longo
deste estudo, visando a um debate sobre esse tema tão complexo:
1 – Dentre as contribuições psicanalíticas mais recentes sobre a
bissexualidade, há reflexões quanto ao que permanece atual nas obras de
Freud e de Winnicott e o que poderia ser revisado e/ou complementado,
com base nos conhecimentos atuais. Para instigar a discussão, trazemos
um aporte de GREEN (1988, p. 224-225) a esse respeito:
A Teoria freudiana da bissexualidade teve o mérito de distinguir a
bissexualidade psíquica da bissexualidade biológica – no entanto,
quando se defronta com dificuldades nesse ponto, Freud recorre à biologia para solucionar o mistério (o que a ciência atual não parece confirmar). Além disso, a teoria freudiana parece exclusivamente fundada
numa evolução individual, subestimando a relação genitor-criança, ou
não articulada com esta. [...] Em contrapartida, a teoria de Winnicott
põe ênfase na relação dos pais com a criança e leva em conta as interrelações entre maturação e meio ambiente materno, mas talvez subestime o papel do pai e da sexualidade parental.
2 – Outro ponto que nos despertou muito interesse nesse trabalho foi
o seguinte: Winnicott nos coloca que o Elemento Feminino, base para o
Ser, constitui-se a partir da identidade mãe/bebê; identidade essa que ainda
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não comporta uma diferenciação entre o Eu e o Não-Eu. Não havendo separação entre sujeito e objeto, ainda não há lugar para o elemento instintivo
ou pulsão. Portanto, se a pulsão só tem espaço, nessa concepção de aparelho mental, a partir da separação do Eu e Não-Eu, Winnicott questiona aqui
um dos paradigmas da psicanálise freudiana, qual seja, de ser a pulsão a
propulsora, o fundamento do aparelho psíquico. Poderíamos, então, fazer
um exercício crítico e questionarmos:
Se o Ser se dá pela unidade mãe/bebê, não estaria o bebê sob influência não só do Ser da mãe, como propõe Winnicott, mas também sob a influência das pulsões da mãe? Ou seja, não está o bebê investido pela pulsão
como objeto sexual da mãe desde os primórdios?
Claro que, ao ressaltarmos que também há um instinto pulsional materno, ou seja, que há a presença de elementos masculinos presentes desde
os primórdios, estamos questionando a afirmação da primazia temporal
dos elementos femininos sobre os masculinos, ainda que reconhecendo que
a chamada “destilação”, ou “isolamento” dos elementos masculinos e femininos, se presta a uma mais fácil compreensão clínica na questão de
gênero do que na questão de estruturação do aparelho psíquico.
3 – Por outro lado, ficamos inquietos frente a uma proposição teórica
como a de Winnicott, que de alguma forma questiona o primado freudiano
das pulsões. Ainda que Winnicott coloque o Ser como prévio às pulsões,
também ele, ainda que sem muita ênfase, acena com a possibilidade de um
instinto vital presente nos tecidos, parecendo buscar uma origem ou fundamento biológico para o surgimento do Ser. Disso tudo, parece que tal
como Freud, que coloca as pulsões como a mitologia da psicanálise (32.ª
Conferência Introdutória, 1933), nós todos somos presas ou reféns de um
modelo de pensamento em que se fazem necessários a causalidade, o conhecimento da origem, mesmo que mitológica. Caberiam aqui algumas
considerações: na civilização grega antiga, berço do pensamento ocidental,
o fundamento era o Logos. Logos aqui entendido como um sistema de relação (de coisas, de palavras, seres, etc) feito sob determinado critério
(SCHÜLER, 2000). Se pensarmos o Logos como uma relação, um conjunto
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de palavras, por exemplo, estamos falando do Logos como um discurso.
Esse discurso tende sempre à união, à harmonia dentro do universo do homem grego, ou seja, na natureza. Alias, para os gregos, tudo era compreendido como fazendo parte da natureza. Não existia a questão da origem no
sentido linear como estamos acostumados a pensar. Os homens, os mitos,
as histórias, os deuses; enfim, o universo era compreendido como fazendo
parte da natureza em um perpétuo movimento, em uma circularidade como
tão bem fundamenta Herácilto, segundo Schüler (2000). Há uma
circularidade, não uma lineralidade com uma origem determinada. No pensamento grego, o Zero (0) não é considerado como alguma coisa. Pitágoras
começa seu sistema a partir do Um (1). Zero não é nada, é coisa alguma.
Assim, nada não existe, pois a natureza é coisa alguma, é o Um. A partir da
aproximação do pensamento grego com o pensamento judaico, a noção de
origem, de criação, chega ao ocidente. Para o judaísmo, e mais tarde para
o pensamento judaico/cristão, o fundamento é a criação do mundo por
Deus. Deus, uma entidade fora do Universo, tem o poder de operar a transformação do Zero ao Um. Deus é o criador. O Zero, que não existia para os
gregos, passa a existir para justificar o aparecimento do Um. Quem faz a
transformação? Deus. Assim, vai se cristalizando na nossa civilização um
modelo de pensamento linear que busca sempre a origem. Seja no pensamento, seja na religião, na ciência, na mitologia, etc.
Qual é a origem do universo? O big-bang. Qual a origem do bigbang?
Qual é a origem do aparelho psíquico? As pulsões. Qual é a origem
das pulsões?
Qual é a origem do Ser? O impulso vital. Qual é a origem do impulso
vital?
Com tudo isso queremos apenas poder pensar que o questionamento
do primado das pulsões, feito por Winnicott, não é um ataque à psicanálise nem a Freud. Mas traz à psicanálise todo um questionamento filosófico,
trazido por Derrida (1967), que nos fala, a partir da desconstrução, de um
outro fundamento: “Já não mais o Logos, não mais o criador e criatura, mas
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Reflexions about bisexuality in Freud and Winnicott
Abstratc: This paper seeks a connection on how the bisexuality is seen in Freud’s work
(in which the repression plays a crucial role), and the Pure Masculine and Feminine
Elements in Winnicott´s work (in which the dissociation is the cornerstone). Winnicott
develops an idea of bisexuality that goes beyond the issue of gender, assigning a new
meaning to it: the feminine element, which is linked to the experience of BEING, and the
masculine element that is the ground for DOING. Based on these references, the authors
try to understand this model of thinking adopted by Winnicott, in which there would be a
psychic state of BEING prior to the drive, questioning one of the psychoanalysis paradigms:
the prevalence of the instinctual drive.
Key-words: Bisexuality. Being. Doing.
Reflexiones sobre la bisexualidad en Freud y Winnicott
Resumen: El trabajo busca una conexión entre la visión de la bisexualidad en la obra de
Freud (donde el destaque se lo da al papel de la represión) y de los Elementos Masculinos
y Femeninos Puros en la obra de Winnicott (cuyo cimiento está en la disociación). En
Winnicott, hay un desarrollo de la idea de la bisexualidad, para más allá de la cuestión del
género, atribuyéndole un nuevo sentido: el Elemento Femenino, vinculado a la experiencia
de SER y el Elemento Masculino, base para el HACER. A partir de esos referenciales, los
autores buscan comprender ese modelo de pensamiento adoptado por Winnicott, en el
que habría un estado psíquico de SER previo a la pulsión, lo que cuestiona uno de los
paradigmas del psicoanálisis: el primado de las pulsiones.
Palabras-llave: Bisexualidad. Ser. Hacer.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 91
Celso Halperin et al.
uma nova circularidade dada pela permanente desconstrução, desconexão,
descentralização de qualquer conceito ou verdade dada, para uma contínua
reconstrução”. Ou seja, não se busca mais a origem, o início de tudo, o
Zero. Há um permanente movimento de desconstrução e reconstrução sem
que exista, necessariamente, essa questão.
Talvez isso nos traga algumas angústias, mas também pode nos estimular e liberar para outros modelos teóricos de pensamento que repercutam ou coincidam com muito da nossa clínica atual.
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SOBRE A
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EM
FREUD
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WINNICOTT
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Cynthia Esteves Delpizzo*
José Luiz F. Petrucci**
Resumo: Os autores pretendem, com o estudo de um caso clínico, mostrar o quanto a intuição, evidentemente instrumentada pelo firme conhecimento de um referencial teórico, pode fazer evoluir um tratamento sem que tais referenciais “invadam” a hora da sessão e ali estejam
apenas como produto das associações espontâneas dos pensamentos de
paciente e analista.
Palavras-chave: Teorias psicanalíticas. Vértice. Intuição. Supervisão.
Encontramo-nos, os autores, numa tarefa de estudar um
caso clínico – um dos autores como terapeuta, o outro como
supervisor. Em meio ao trabalho, percebemos que nossos
referenciais teóricos eram diversos, e numa diversidade por
muitos considerada com bases de tal forma diferenciadas
que seriam impossíveis superposições de uma teoria com
outra, no entendimento de um material clínico. Demo-nos,
ambos, conta de que tal não vinha correspondendo ao que
vínhamos fazendo em nossa tarefa; muito pelo contrário, a
supervisão tinha se dado, até ali, e assim prosseguiu, sem
que as diferenças de vértice teórico causassem qualquer desentendimento. Prosseguimos, então, com nosso trabalho,
com a convicção, pelo menos para nós, de que compreender
um material clínico independe da teoria, pois o que orienta a
* Psicóloga, Psicoterapeuta. Membro do Núcleo Psicanalítico de
Florianópolis da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
** Médico Psiquiatra e Psicanalista. Membro Titular em Função Didática da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
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Cynthia Esteves Delpizzo,
José Luiz F. Petrucci
Vértices e Convergência
VÉRTICES
E
CONVERGÊNCIA
compreensão é uma intuição bem instrumentada, seja qual for a
instrumentação psicanalítica que possuímos.
Acreditamos que existam inúmeras formas de “entender” um paciente, com as quais cada analista se identifica e de fato se adapta melhor. As
teorias estão aí para isso. O problema, a nosso ver, é que existem teorias
demais em psicanálise para dizer as mesmas coisas, e acabamos correndo o
risco de que elas ofusquem nosso entendimento espontâneo. O que pretendemos neste trabalho é tão-somente ilustrar a trajetória de uma experiência
que se apoiou predominantemente em entendimentos baseados numa postura livre de teorias diante do paciente para buscar a sensibilidade. Devemos esclarecer, no entanto, que essa trajetória teve início a partir de um
desejo que se tornou um encontro com a psicanálise. O instrumento desse
encontro era a intuição,1 e só foi possível saber ser ela verdadeira se não
evitássemos senti-la, experimentá-la. Estabelecemos, então, em decorrência dessa experiência emocional, o ponto inicial para darmos início a uma
caminhada.
Percorrer esse caminho descobrindo a psicanálise é como adentrar no
universo de inconscientes que se cruzam, comunicando a todo o momento
um novo saber. Não há um caminho, há uma procura, uma busca incessante a lugares desconhecidos, inexplorados. Nessa busca, encontramos substitutos que foram nos dando pistas: sensações, palavras, expressões e sussurros quase imperceptíveis, implorando por tradução. Nosso inconsciente
não trai, está sempre disposto a lutar por um lugar. E que lugar é esse? Um
lugar de satisfação, de pleno gozo; um lugar de desejo, desejo este que
encontra tantas barreiras para se expressar plenamente e se fazer emergir.
Assim também nos vemos a tentar expressar, neste momento, algumas idéias para escrever este texto – idéias que também encontram dúvidas, ausência de palavras. Deixamo-nos levar como numa (tentativa de) associação
livre e os pensamentos vão ao encontro de um paciente que faz da busca
pela informação uma forma de poder e dela se faz perseguidor.
1
O termo é aqui usado conforme descrito por Bion em “Atenção e Interpretação”, Imago, 1973.
96
Psicanálise v. 9, n. 1, p.95-105, 2007
Teoria psicanalítica é conhecimento quando se fala em psicanálise,
mas não quando se faz psicanálise. Fazendo psicanálise, o único conhecimento útil é aquele que corresponde a um momento de convergência entre intuição e experiência emocional, produzindo uma conjunção constante da qual virão fazer parte outras informações esparsas
no tempo de análise e que se associam naquele momento vinculadas
entre si pela experiência emocional. Memória, porque se refugia no
passado, e desejo, porque corre para o futuro, são defesas contra a
experiência emocional. (PETRUCCI, 1995, p. 7 e 8).
Interpretar as manifestações do inconsciente alheio e, ao mesmo tempo, assumir e entregar-se às revelações do próprio inconsciente fazem surgir o saber sobre o desejo do paciente.
Acreditamos que parte da motivação para escrever sobre esse paciente
tenha surgido a partir de nossas discussões sobre o caso durante horas de
supervisão e ao percebemos que, embora com referências diferentes, não
tivemos nenhum obstáculo ao entendimento conjunto do caso.
Destacamos alguns aspectos desse paciente que consideramos relevantes para escrever este texto.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 97
Cynthia Esteves Delpizzo,
José Luiz F. Petrucci
Quando um paciente nos procura, imagina encontrar algo em nós que
remete a sua fantasia. Somos substitutos dessa fantasia sem saber o que
somos naquele momento. Onde estaremos, então, diante desse paciente?
Despimos-nos da própria fantasia de nós mesmos? Um saber sobre psicanálise, ainda que sempre se busque e nunca se alcance, nos dá um lugar e
um direito de fazer psicanálise, e nesse recurso nos apoiamos. Mas é no
discurso do outro, em que somos tomados e levados pelo nosso silêncio,
que a escuta se faz. Diante do paciente, nossa mente navega por muitos
mares. Essa mente precisa estar num estado de “não-mente” para poder
ouvir e traduzir verdadeiramente o discurso desse paciente com todos os
sentidos. Associamos esse “poder ouvir” à própria questão fálica do poder.
O poder de estar supostamente no lugar de saber que o outro nos coloca.
Será o poder que buscamos através do “fazer psicanálise?”
VÉRTICES
E
CONVERGÊNCIA
Caso Clínico
O paciente que vamos apresentar, que chamaremos de Douglas, tem
27 anos, mora sozinho, tem formação superior e trabalha em sua área em
um órgão público. Considera ter sido uma criança tímida e sem atrativos,
que procurava destacar-se por inteligência, maturidade, poder, seriedade e
exemplo para os demais.
Na época em que me procurou, estava namorando uma garota que lhe
sugeriu que procurasse uma psicóloga. A própria namorada lhe indicou o
nome de uma conhecida, com quem ele logo entrou em contato, por telefone. Entretanto, não pretendia ser atendido por ela, mas sim pedir a indicação de uma outra psicóloga, uma vez que não se sentiria à vontade se tratando com uma colega de sua namorada. Quando chegou a mim, parecia
demonstrar um ligeiro desconforto e certa pressa de explicar por que estava
me procurando e não a outra psicóloga. Alegou que acreditava na ética da
profissão, mas que não queria expor sua namorada a uma pessoa que a
conhecesse. É interessante salientar que em nenhum momento isso sequer
chegou a acontecer, pois ele mal se referiu a ela enquanto esteve em tratamento; além disso, o próprio paciente não se deu conta de que esta não era
uma preocupação de sua namorada. Disse-me que o motivo de sua procura
era a dificuldade de se manter em relacionamentos e que esse fato se repetia em sua vida, o que o levou a concluir que havia algo de errado com ele.
Segundo suas palavras: “Sempre acabo entrando em confusão”, ou “Coisas
que acontecem quando começo a namorar”. No início de seu tratamento,
sempre chegava às sessões manifestando suas desconfianças e seu temor
de estar preso e não poder fugir. “Chegamos ao confessionário”, “de volta
à sala de torturas”, “eu como sempre procurando uma porta de saída. Sempre que entro num lugar fico olhando onde pode ter uma saída”, costumavam ser seus comentários. Podemos observar que esse tipo de relação acontece quando a separação dos objetos primários se dá de um modo apenas
parcial. Dessa forma, o paciente precisa muito de um vínculo poderoso
com o objeto. Mas quando estabelece uma ligação assim, sente-se confun-
98
Psicanálise v. 9, n. 1, p.95-105, 2007
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Cynthia Esteves Delpizzo,
José Luiz F. Petrucci
dido com o objeto. Impõe-se a “angústia confusional”, o sentimento de
estar aprisionado dentro do objeto: sente-se claustrofóbico e com sentimentos de perda de identidade. Por causa dessa angústia, precisa se afastar
com rapidez e violência do objeto, e aí se experimenta em absoluta solidão,
vivendo no espaço vazio, abandonado pelo objeto: é a “angústia de separação”, sente-se agorafóbico. Como essa angústia de separação é intolerável,
porque não consegue evoluir completamente para a posição depressiva,
volta a se enfiar dentro do objeto e retoma o ciclo, indefinidamente. Como
a confusão objetal é predominantemente esquizo-paranóide, a separação
objetal é depressiva. Isso força o paciente a permanecer numa posição intermediária, em que ambas as posições estão presentes numa rápida
alternância, numa assim chamada “posição borderline” (STEINER, 1996).
Quando era criança, sem saber explicar por que, costumava pegar sua bicicleta e sair pedalando para longe de casa por várias horas. Mais tarde manteve esse comportamento, só que dirigindo seu próprio carro. Chegou a
dirigir sem destino por mais de 600 km. Notou que isso acontecia quando
se sentia solitário, algo que a ele parecia a falta de um ambiente familiar.
Mas nunca era para casa de sua família que ele voltava quando se sentia
angustiado. Douglas tem seus pais morando numa cidade próxima e visitaos nos finais de semana. Atualmente tem preferido isolar-se em sua casa
para dedicar-se inteiramente aos estudos, com a finalidade de crescer na
profissão. Sua inteligência é percebida facilmente, seu discurso é coerente
e “pensado”. Fala outros idiomas além do português e diz se sentir atraído
por muitas áreas de conhecimento, principalmente as que estão relacionadas com a área psi. A tudo quer dar um pouco de si (assim como às mulheres). Diz que não sabe lidar com pessoas imprevisíveis e maneja as situações para evitar erros: avalia tudo antes de tomar qualquer decisão. Atormenta-se com as dúvidas, das quais nunca consegue escapar. Parece oscilar
entre abandonar o uso de defesas da posição esquizo-paranóide ou voltar
ao uso dessas defesas: enfiar-se no objeto para controlá-lo onipotentemente
e, portanto, com uma dificuldade enorme de reconhecer sua própria identi-
VÉRTICES
E
CONVERGÊNCIA
dade. “Se alguma coisa vai dar errado, vai fracassar, então é melhor morrer,
porque aí a pessoa fica bem, acaba virando a situação e às vezes até chega
a ser herói”. Com isso, não sabe se está vivo ou morto, deixando claro que
morre ao mesmo tempo em que se mantém vivo, já que “vai ficar bem e
virar herói”.
Nas primeiras sessões, tentava “ocupar” onipotentemente o meu lugar, trazendo material e tomando conta da situação. “Gosto de poder, sempre fui líder”. Falava olhando fixamente nos meus olhos e certa vez contou
que me imitava. “O outro é minha medida”, costuma ser uma frase repetida
por ele. Quando lhe pergunto, após um momento de silêncio, em que estava pensando, responde que pensa em qual será minha próxima pergunta.
Como não sabe claramente quem é, procura alguém que o encontre e que
descubra o que se passa dentro de sua mente. É quase como se pedisse pra
que eu trouxesse material para análise, e não ele. Isso se reforça em outra
frase: “O que as pessoas dizem de mim é diferente de como eu me vejo”. O
que seria normal, já que as pessoas pensam diferentemente umas das outras; para ele, isso não deveria ser assim, as “mentes” todas deveriam estar
iguais à dele, para que tenha a sensação de controle do objeto. Então, qualquer momento de silêncio é sentido por ele como ameaçador.
Num desses momentos lembrou-se de uma única vez em que perdeu o
controle: quando tinha 11 anos acabou brigando com um guri mais forte e
podia ter apanhado muito. Depois desse episódio, passou a utilizar outros
meios de controle e poder, através de sua inteligência. Sempre achou que
era diferente e superior. Nesse ponto salienta sua ambivalência entre sentirse ora fraco, ora poderoso.
Douglas diz que quer se envolver, mas não consegue. “Sempre acabo
me afastando das mulheres no melhor momento, elas ficam com gostinho
de quero mais.” Num momento seguinte, diz que nunca sai de uma relação
sem se sentir “tocado”, para depois continuar: “quando as pessoas estão
querendo a minha presença, eu quero fugir”. Por duas vezes, encerrei a
sessão antes do tempo sem perceber o acting in em que ele é literalmente
“tocado”. Eu sentia que ele temia se envolver comigo porque teria de fugir.
100 Psicanálise v. 9, n. 1, p.95-105, 2007
Se o objeto bom se acha profundamente enraizado, a divisão é fundamentalmente de natureza diferente e permite que operem os processos
muito importantes de integração do ego e de síntese do objeto. Assim,
uma mitigação do ódio pelo amor pode dar-se em certa medida, e a
posição depressiva pode ser elaborada. Em resultado, a identificação
com um objeto bom e total é ainda mais seguramente estabelecida; e
isto também empresta força ao ego e capacita-o a preservar sua identidade, bem como a sensação de possuir uma bondade sua própria. Ele
se torna menos sujeito a se identificar indiscriminadamente com uma
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 101
Cynthia Esteves Delpizzo,
José Luiz F. Petrucci
Durante todo o tempo eu tentava demonstrar isso para ele na transferência.
Sua fala girava sempre em torno das mulheres, na sua confusão e na sua
dificuldade de conseguir manter-se emocionalmente envolvido. Quando
conquistava uma mulher, o desejo por ela lhe fugia. A marca da insatisfação estava sempre presente. “Eu sempre vou encontrar defeitos nas mulheres, eu procuro por eles, eu sei.”
Para Nasio (1991), a ameaça de um gozo fálico e temido faz com que
seja necessário criar inconscientemente um cenário fantasístico para provar que só existe um gozo insatisfeito. É nesta fantasia que o sujeito vai se
impor e se apegar para instalar-se numa posição onde qualquer intercâmbio
com o Outro conduzirá inexoravelmente à insatisfação. Na sua procura,
sempre encontra, com sua percepção aguçada, o poder ou a falha no outro,
seja com o Outro de sua fantasia ou de sua realidade. A confusão que ele
impõe como uma barreira protetora contra o perigo absoluto do gozo passa
a ser sentida por mim, que acabava não conseguindo definir de que mulheres ele estava falando a todo o momento. Neste ponto podemos observar
que diversos autores, através de diferentes pontos de vista teóricos, convergem para um único entendimento, sendo que o que Nasio nos aponta é dito
também de outra forma pelos analistas que priorizam a observação da
identificação projetiva, ao interpretar: o paciente se livra de seus objetos
(bons e maus) dentro do sujeito não só para não sofrer com a presença
deles, mas também para controlar o objeto, forçando-o a funcionar como
“a outra parte do seu conflito”.
VÉRTICES
E
CONVERGÊNCIA
variedade de objetos, processo característico de um ego fraco. Ademais, a identificação plena com um objeto bom vai de par com uma
sensação de o eu possuir uma bondade própria. Quando as coisas não
saem bem, a identificação projetiva excessiva, pela qual as partes
expelidas do eu são projetadas no objeto, conduz à intensa confusão
entre o eu e o objeto, que também vem a representar o eu. Unido a isto,
dá-se um enfraquecimento do ego e uma grave perturbação nas relações objetais. (KLEIN, 1984, p. 50 e 51).
Foi somente quando essa confusão com suas escolhas diminuiu que
eu pude entender melhor a minha confusão. Numa sessão ele diz: “Resolvi
assumir o risco (do namoro). Minha mãe é que não gostou muito, mas
também ela não aceita ninguém”. Nesta sessão que antecedia as nossas
férias, ele pôde dizer: “Hoje eu quero me envolver com a Marta” (uma exnamorada que mora noutra cidade, com quem ele estava tentando voltar).
Assumir o risco e querer envolver-se no tratamento e com a terapeuta era
algo que Douglas estava ansiosamente desejando, mas, de toda forma, ainda evitando, pois o momento “escolhido” lhe colocava numa posição segura: a de estarmos afastados por ocorrência das férias.
Na sessão de retorno conta que está namorando Marta e que já está
começando a se sentir pressionado. A cada nova sessão vem mais assustado e falando de armadilhas. Corre em busca de outras mulheres, mas acredita que estas também lhe colocam em perigo. Pede para que eu faça alguma coisa para “agilizar” as sessões, para que ele possa sair mais rápido de
suas confusões (e certamente criar uma confusão no setting). Sugiro então
que ele pense na possibilidade de aumentarmos o número de sessões, já
que sente que não está dando conta de seus conflitos.
Naquele momento, eu pretendia que ele mesmo pudesse sentir que eu
não o estava pressionando, mas deixando a ele a escolha de aceitar (ou não)
vincular-se ainda mais a mim. Por telefone, ele me diz que quer “encerrar
as atividades”, mas que vai comparecer à última sessão para fazer o pagamento e me explicar sua decisão. Não há dúvida de que o paciente estivesse aproveitando o momento para abandonar o tratamento depois da minha
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Cynthia Esteves Delpizzo,
José Luiz F. Petrucci
proposta de “mais sessões”, assim como abandona todas as mulheres, deixando-as com “gostinho de quero mais”. Ele sente como se eu estivesse
armando uma armadilha para ele. Quer terminar com as sessões e com a
namorada “numa enxurrada só”, segundo suas palavras. Queixa-se da namorada, pois “ela nunca está satisfeita, por mais que eu tente agradá-la”,
“ela é cheia de mistérios, não fala nada dela”, “por telefone é toda querida,
mas quando está perto não liga para mim”. Depois de ouvir estas e outras
tantas demandas endereçadas a mim, mostro que sinto o quão tem sido
doloroso para ele vincular-se a alguém e sentir-se dominado, inseguro e
abandonado. Tantas vezes eu havia lhe falado que ele tentaria fugir. Nessa
sessão pontuei novamente o que estava acontecendo, mas que esta seria
uma decisão apenas dele, porque eu não concordava e não tinha a menor
intenção de parar o tratamento. O paciente pôde sentir que estava caindo
em sua própria armadilha. Houve uma reversão imediata e o tratamento
não foi interrompido.
Concluindo, querem os autores chamar a atenção do leitor para um
aspecto importante do que foi escrito até aqui: o de que o encontro entre os
referenciais teóricos está numa invariante, a eterna luta do ser humano entre o desejo de posse e a aceitação da dor do não-possuir. Segundo a corrente teórica de um dos autores – que fazemos questão de não identificar –, o
material poderia ser entendido a partir da castração, com o significado
evolutivo, fundante, de aceitar o abdicar do desejo, experimentando a dor
do “não possuir”, do interdito, adquirindo assim a palavra, o “conhecimento”, que substitui a posse do “externo” (o pai ou a mãe edipianos, por exemplo). Para uma outra corrente, o pensamento teórico estaria orientado a
entender que, por tolerar não possuir o seio (ou seus substitutos), admitindo como “coisa não-minha”, possa introjetá-lo como “algo bom que possuo dentro de mim”. Uma esperança, uma expectativa, desde que reconheça o objeto, tenha por ele consideração como algo independente do seu
controle, e que leve, portanto, não à posse, mas à gratidão. Dessa forma,
permitindo a existência do objeto como algo exterior, é possível, primeiramente, adquirir uma representação mental do objeto e, posteriormente, ad-
VÉRTICES
E
CONVERGÊNCIA
quirir a palavra “seio”, que então liberta totalmente o sujeito da presença
do objeto: poder pensar no objeto tem como conseqüência a aquisição do
conhecimento.
Pensando através desses dois referenciais distintos, os autores evoluíram para um entendimento que vem trazendo, a nosso ver, evidentes benefícios terapêuticos para esse paciente.
Vertex and convergence
Abstract: The paper intends to show how two psychotherapists, each of them with different
psychoanalytic points of view, took both a path of convergence in the comprehension of
a patient. Not surprisingly to them, they verified that an “instrumented intuition” and not
a theoretical thinking, was the most important instrument to understand a clinical material.
Key-words: Psychoanalytic Theories. Vertex. Intuition. Supervision.
Vértices y convergencia
Resumen: La intención del trabajo es demonstrar la manera con que dos psicoterapeutas,
que piensan bajo diferentes vértices psicoanalíticos teóricos, tomaran un camino de
convergencia en el entendimiento de un paciente. No hubo sorpresas quando verificaran
que una “intuición instrumentada”, y no los diferentes pensamientos teóricos, fué el más
importante instrumento para la compreensión del material clinico.
Palabras-llave: Teorias psicoanaliticas. Vértice. Intuición. Supervisión.
Referências
BION, W.R. (1970).Teorias: exemplo particular ou configuração Geral, In:
.
Atenção e interpretação: uma aproximação científica à compreensão da psicanálise e nos grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1973.
KLEIN, M. (1882-1960). Inveja e gratidão: um estudo das fontes do inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1984.
NASIO, J.D. (1990). A histeria: teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1991.
PETRUCCI, J.L. (2005). Sobre Psicoses. Inédito.
104 Psicanálise v. 9, n. 1, p.95-105, 2007
Artigo
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 105
Cynthia Esteves Delpizzo,
José Luiz F. Petrucci
STEINER, J. The Aim of Psychoanalisis: Theory and Practice. INT. J. PSYCHOANALISIS, (1966), v. 77, 1073.
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E
CONVERGÊNCIA
106 Psicanálise v. 9, n. 1, p.95-105, 2007
Donaldo Schüler*
Onde situar Narciso, centrado, outrora, na criança gloriosa, agora que ela está morta? Deleuze e Guattari elaboram uma teoria que encerra o império da criança gloriosa.
Os autores, ultrapassando o conflito edipiano e do eu
narcísico, avançam rumo à região em que Nietzsche situava
a vontade de poder, lugar em que natureza e homem não se
distinguem, totalidade indivisa, coração palpitante da realidade, máquina celibatária do eterno retorno, matriz de fábricas e de homens. Nesse corpo esquizofrênico, produtor universal, sítio em que não há vestígio do eu, abrigo do inconsciente sem lei, está o desejo, arquiteto de objetos parciais.
Sendo pleno, nada lhe falta. As necessidades derivam dele.
As máquinas desejantes precedem as mecânicas. Entre os
produtos das máquinas desejantes está a máquina social, o
socius que, assumindo feições capitalistas, distribui as máscaras do teatro edípico. O pai representa o senhor, cabe ao
filho agir como empregado, a mãe representa a terra. Cada
qual se move na esfera que a máquina social lhe atribuiu.
Eis a origem do espetáculo edípico-narcísico. Os atores representam papéis que lhes escapam do controle.
Deleuze e Guattari opõem Édipo e Narciso. Não podemos, entretanto, despedir-nos do pai tirânico enquanto hou* Doutor em Letras; Livre-Docente em Língua e Literatura Gregas; Pós-doutorado na USP; Professor Titular da UFRGS (aposentado); Ensaísta, Escritor,
Tradutor.
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Donaldo Schüler
Narciso no Vestíbulo do
Segundo Milênio
NARCISO
NO
VESTÍBULO
DO
SEGUNDO MILÊNIO
ver leis arbitrárias, punitivas. A declaração dos direitos humanos, feita em
1789, repetida, modificada e ampliada em 1948, mostra que a vida ainda
vive sob ameaça, que a autoridade tirânica ainda vige. Há o poder diluído,
não o poder concentrado em uma classe. Note-se, porém, que a busca do
poder pelo poder é uma forma de matar o pai para assumir o poder. O poder
de produzir. O poder de consumir. O poder de amar. O exercício do poder
não é tudo. Fosse-o, a insatisfação não se instalaria nos passageiros momentos plenos. A insatisfação fala da falta, mais antiga que o homem, remota como a ruptura primeira, passagem da unidade à pluralidade, paragem da morte.
Morto o homem cartesiano, Foucault busca a energia que atua no homem consciente da sua precariedade, fora dele, enraizada no fundo em que
todas as formas se diluem. Norteado pela vontade de poder nietzschiana, o
ensaísta chega a três forças básicas: a vida, o trabalho e a linguagem.
Examinemo-las.
A biologia, rompendo barreiras que resguardavam os segredos da vida,
faz, dia após dia, avanços espetaculares. Já se pode determinar o sexo, prolongar a fecundidade feminina, reduzir a distância entre homens e animais
ao ponto de ensaiar a implantação no homem de órgãos de outra espécie. O
laboratório desvenda determinantes que escapam ao controle do sujeito.
Findo o sonho da sociedade sem classes, o capitalismo, declarado decadente há poucos anos, penetra nas fronteiras mais recalcitrantes. A reviravolta teve o apoio do computador e do robô, que não reivindica salários,
não se bate pela dignidade do trabalhador, não grita por direitos humanos,
lançando milhões de jovens às ruas, sem futuro, sem ilusões, sem perspectivas de trabalho. O ócio, imposto pelo avanço tecnológico, arrebata atenção igual à produção de riquezas. O trabalho humano, fundamento da teoria econômica no século passado, desumanizado, requer outra teorização.
A linguagem, reduzida a jogo de significantes, não oferece mensagem. A hermenêutica, que buscava no discurso tesouros de saber, mudou
de rumo ou foi substituída pela semiologia. Para Lacan, o inconsciente,
esvaziado de conteúdo, estrutura-se como uma linguagem. Na crítica lite108 Psicanálise v. 9, n. 1, p.107-118, 2007
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Donaldo Schüler
rária, em lugar da reverência ao monumento, difunde-se a desconstrução,
visão dessacralizada do texto. Morto o autor genial, disseca-se o texto com
a objetividade científica do fisiólogo. Denunciada a ideologia que fomentou a genialidade do produtor da obra literária, restam as peças que a compõem.
Reflexões conjugadas demitem o homem das iminências de outrora,
compreendendo-o como uma forma dentre muitas. Nesse empenho, Freud
situa o narcisismo nas células originárias. (“Die keimzellen selbst würden
sich absolut narzisstisch benehmen.” III, 259) Podemos acompanhar o
narcisismo desde essas remotas origens até o desejo de reunir o que se
fragmentou, de armazenar em memória gigantesca os resultados do saber,
de exercer controle global.
A era cristã avizinha-nos da segunda mudança de milênio. O tempo
objetivado no calendário pouco importa. Importa nossa relação com o mundo, a maneira de nos fazermos históricos. Na antiguidade, tempo não se
representava por milênios. Períodos mais longos ou mais curtos eram medidos por eventos que se repetiam: as olimpíadas na Grécia, a sucessão do
governo consular em Roma. Tempo dobrado sobre si mesmo, igual e circular. Quando a linha curva se abre traçando um percurso de princípio ao fim,
vem a idéia de transformações profundas. A primeira mudança deu-se na
plena vigência do Livro Sagrado. O Apocalipse fala enigmaticamente de
uma renovação total de todas as coisas ao final de mil anos. Esperava-se a
segunda vinda de Cristo, reprovação definitiva de uns, redenção de outros.
A passagem de milênio não ocorre sem apreensões. A fragmentação
da cultura, concluída a segunda Grande Guerra, foi poetizada por T. S.
Eliot em The Waste Land, discursiva e tematicamente. Oswald Spengler,
em O Declínio do Ocidente (Untergang des Abendlandes), defende a tese
de que o ciclo da civilização européia, central até aí, chegara ao termo, à
maneira dos organismos vivos.
O ciclismo da vida e da morte é interpretado no Narciso de Dalí. A
cabeça do jovem que se inclina para a água forma um ovo, que se reflete no
ovo sustentado pelos dedos saídos do espelho líquido. Na Bíblia, o homem
NARCISO
NO
VESTÍBULO
DO
SEGUNDO MILÊNIO
é imagem de Deus. Em Dalí, a cabeça do homem é imagem do ovo, vindo
das águas, túmulo e berço. Na pintura maneirista de Miguel Ângelo, o dedo
de Deus dá origem ao homem, ao passo que, para Dalí, a mão criadora, que
lembra uma escultura, procede do lago. Uma fenda na unha do polegar,
refletida na dobra do dedo em forma de vulva, simboliza a alternância da
vida e da morte. O sinal do fim anuncia a regeneração. O cachorro, lembrança da vida venatória de Narciso, leva a sedução da imagem ao mundo
animal. O tabulado com a estátua visualiza o espaço urbano, a dança dos
jovens ilumina a juventude, duas esferas recusadas por Narciso enamorado
de si mesmo. As rochas evocam Eco petrificada. O quadro aproxima momentos cronológica e espacialmente distantes. A visão do Narciso, por não
se prender à imagem imobilizada, afeta tempo e espaço. Mergulhando nas
águas alcançamos o ovo primeiro, origem do universo, donde emergimos
para surpreender o instante em que a vida salta da casca rompida. O movimento para cima e para baixo deixa rastros da paixão narcísica desde os
abismos até o pico das montanhas. Narciso dissemina-se em sementes que,
morrendo, renovam a vida. Os conjuntos se derramam em narrativa
truncada, alusiva. O presente e o passado, o próximo e o distante se
embaralham. O quadro alude a um texto; o quadro é texto, discurso, linguagem.
Provoquemos a convergência do quadro de Dalí com Água Viva, romance de Clarice Lispector, que encena andanças no instante presente, prenhe de eternidade, rumo à placenta, ao plasma, ao útero do mundo, com
passagem pela frase, úmida, colorida, densa como a tinta com que se pinta
um quadro, festa de que participa a missivista ficcional, voluptuosamente.
O prazer de criar palavras se assemelha à alegria da floresta, expressa no
ímpeto de erguer árvores. As palavras se aprofundam rumo às origens e
retornam revigoradas para nomearem vagas fulgurações. Selvagem, a escrita evolui no movimento das sílabas e dos cipós. Nexos lógicos se desarticulam. Cronologia não há. O ritmo não obedece à marcha dos ponteiros.
Ebulição. Massas verbais escorrem ferventes como a lava. Se o texto é
fugaz, fluida será a leitura. Narciso não está apenas no destinatário (“Tu
110 Psicanálise v. 9, n. 1, p.107-118, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 111
Donaldo Schüler
olhas para ti e te amas”, p.101), a epistológrafa olha para sua própria cara,
sem mediação, vendo um rosto nu. Dissolvido o eu num sentimento geral
de vida e morte, há sempre um rosto vazio voltado para as águas, de todos
e de ninguém, imergindo e emergindo em cósmica paixão narcísica, espalhada no ar, no mar, nas plantas, pluralidade em busca de unidade.
A morte, tendo contaminado o âmago da vida, devora até a fisionomia,
como se lê nos versos de Fernando Pessoa: “Quando olho para mim não
me percebo”. Para Descartes, não havia distância entre o eu que percebe e
o eu percebido. Dizendo “penso” (cogito), o pensador afirmava a presença
do sujeito a si mesmo sem mediação. Rompida a unidade, o enunciador se
perde como objeto, avançando pelo caminho das sensações. Sensações de
si ou sensações do objeto? A dúvida se expande em todas as direções. Pessoa: “Nem nunca, propriamente reparei,/ se na verdade sinto o que sinto”.
Na incerteza, o ateísmo insinua-se ao menos como suspeita. Ainda Pessoa:
“Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,/ Nem sei bem se sou eu
quem em mim sente”. O vazio devora a confiança. O que não se vê é mais
forte do que a imagem refletida no espelho.
O sucesso mundial do Pequeno Príncipe, ao fim da segunda Grande
Guerra, explica-se pela nostalgia de uma glória que não existe mais, a imagem engrandecida do homem, reproduzida também em filmes triunfalistas
que exaltavam feitos militares. Vemo-la ainda na atração exercida pelo atleta, pela mulher jovem e bela. Buscamos nessas imagens o vigor que nos
impele à exploração do espaço sideral. A quebra da imagem gloriosa se
pluraliza em fragmentos, milhares de pedaços da unidade perdida.
As contradições entre o poder espetacular do homem e a sua fragilidade manifestam-se nas interpretações do super-homem nietzschiano, esplêndido herói do futuro para uns, mortal consciente de sua mortalidade, na
opinião de outros. A primeira interpretação, responsável pela vaidade que
ensangüentou o mundo, já não tem adeptos. Uma versão plausível do
super-homem é essa entidade em que convergem as forças desencadeadas
no passado, inventor da pós-modernidade, o homem ansioso de salvar a
multiplicidade em que a modernidade se fragmentou. Dele já nos oferece
NARCISO
NO
VESTÍBULO
DO
SEGUNDO MILÊNIO
uma imagem Orson Welles em o Cidadão Kane. Para produzi-lo, o cineasta entendeu de romper a seqüência narrativa. O super-homem de agora se
dispõe a experiências, empreende construções monumentais, recupera pedaços de outras civilizações, afirma o poder recolhendo o que pode, simulacros. Em lugar do fundamento, o rastro, a cinza deixada pelo incêndio.
Rastro de quê? Das essências fenecidas.
À vertigem ante o abismo opôs-se o ritmo acelerado do desenvolvimento. Vieram o avião supersônico, a televisão, as viagens espaciais, os
transplantes, as experiências genéticas, o avanço da informática e da
robótica. Há bem pouco, colocando outro olho no espaço, quintuplicamos
o universo. Pensávamos que a Terra era um grãozinho de areia num universo de dez bilhões de galáxias. Em algumas horas, os astrofísicos multiplicaram esse número literalmente astronômico por cinco. Hoje acreditamos
que respiramos num universo de cinqüenta bilhões de galáxias. As conjeturas param aí? Como cogitar de limites num universo cada vez maior?
Nesta época, a nossa, anuncia-se a reabilitação de Narciso, notoriamente diferente do produzido na antiguidade. O mundo que inventou Narciso ainda se apoiava em substâncias. Narciso debatia-se tragicamente entre a imagem e aquilo que a sustenta. O conflito de outrora naufragou na
época em que a imagem triunfa. Se a imagem impera, o que procurar além
da superfície? Heidegger ainda declarava inautêntica a vida que se perdia
na aparência. Agora a aparência é tudo. Ler o quê, se o livro acabou?
Sofreguidão de recolher, recolher sem crítica, misturar colunas, arcos,
estruturas metálicas, paredes de vidro. Dessa vertigem pós-moderna já temos indícios em “Ode triunfal”, poema que Fernando Pessoa escreveu em
Londres durante o mês de junho de 1944. O poema nos oferece, em lugar
de Deus, a matéria, divina e produtiva à maneira da matéria analisada por
Deleuze e Guattari. Personagens confrontadas: o eu e o produto industrial.
Ante retinas eroticamente abertas, desfilam máquinas e artefatos. A velocidade vertiginosamente acelerada tomou o lugar do perene. As eternas essências platônicas cederam espaço a aparições que não duram mais que um
momento. No fluxo veloz dos versos, somem conjunções e conceitos. Or112 Psicanálise v. 9, n. 1, p.107-118, 2007
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dem racional nenhuma sustenta o conglomerado de fragmentos do passado, visões do presente e antecipações do futuro. Na substituição da natureza pela indústria, a produtividade fabril lembra a exuberância tropical.
Outra Minerva volta-se para o que passa. Adversária da antiga, a que reflexivamente devassava as coisas, a Minerva de agora, nada metafísica, recolhe apreensões perecíveis, vertiginosas notícias de jornal. Tudo isso, o sujeito, deliciado, acolhe com amor. Não se pense em amor eterno. No mundo acelerado das engrenagens nada dura mais que segundos. O amor de
quem é penetrado pelos olhos, pelos ouvidos, pelo tato, por todos os sentidos é voraz. A delícia que o instiga lhe evoca um corpo de mulher. “Ode
triunfal” é título irônico. O comportamento do contemplador fascinado se
distancia muito do herói de outros tempos, senhor de si mesmo e das circunstâncias. Em lugar de invasões, temos um sujeito invadido, dilacerado
pelos objetos. O prazer é só dos olhos, não da compra. Esta, se lograsse
apoderar-se do que deseja, devolveria a sensação do perene. A abundância
da produção industrial derrota, porém, até os mais ambiciosos compradores. O herói de Pessoa assemelha-se ao homem inautêntico heideggeriano.
Absorvido pela curiosidade, o homem inautêntico, desgarrado, anônimo,
sem projetos, vê pelo prazer de ver. A técnica, criação dele, levou o esquecimento do ser a um grau sem precedentes. Ao contrário do que se lê em
“Ode triunfal”, a técnica, planificada, oblitera os sentimentos.
Narcisicamente pleno, o homem da técnica age vigorosamente, sem angústia, sem alegria, sem dor. A vida inautêntica de Heidegger torna-se estilo de
vida. O excesso, o esbanjamento proliferam. Um mundo em contínua liquidação dos excedentes. Marcado pelos estigmas da morte, Fernando Pessoa terça armas com o homem inautêntico, o Narciso dos novos tempos,
em “Poema em linha reta”. Reconhecendo-se vil, porco, sujo, ridículo, absurdo, grotesco, mesquinho, cômico... – os adjetivos negativos abundam –,
o poeta diz que só conheceu campeões, gente que realizou o Ideal em vida.
Atrás das negativas do poeta, ergue-se a máscara do homem da era industrial, que nunca se reconhece culpado, que não admite insucesso, que se
finge feliz, onipotente. O poeta conviveu diuturnamente com semideuses e
NARCISO
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VESTÍBULO
DO
SEGUNDO MILÊNIO
príncipes, com adultos que lustram em si a imagem da criança gloriosa.
Produto da era industrial é a síndrome de Peter Pan, descrita por Dan
Kiley. Padecem do mal adolescentes e adultos que se enfurecem quando se
lhes nega o conforto, a perfeição, a beleza que os deliciaram no doce paraíso infantil. Peter Pan rejeita o trabalho adulto, a disciplina urbana, sonhando com a Terra do Nunca, negação da morte.
A arte popular urbana, a arte pop, comemora a reconciliação com a
civilização manufatureira. Rejeitando o abstracionismo intelectualizado, a
arte pop volta-se prazerosa ao produto industrial, aos meios de comunicação de massa, negando ao homem a eminência que lhe concedia a arte de
outros tempos; homem que já tinha sido reduzido à proporção do artefato
nas reflexões de Léger durante as primeiras décadas do século. Em lugar
do homem criado pela natureza, os pintores nos oferecem um espécime
produzido pela máquina, musculaturas desenvolvidas nas academias, posições aperfeiçoadas pelas revistas e pela tela luminosa em meio a refrigerantes, blusões de couros, boletins meteorológicos, decalques, aparelhos
de rádio e de televisão, anúncios, faróis, guarda-lamas, canos de descarga,
botões, arames farpados, parafusos, detritos, brinquedos... As manufaturas
tomam o lugar das chaminés fumegantes integradas em conjuntos
arquitetônicos. Em lugar das telas usuais, os artistas elegem novos materiais de trabalho: fórmica, têxteis, plásticos, esmaltes de automóvel. Heróis
são agora os da era tecnológica, homens mecânicos, desbravadores do futuro. No universo cibernético brilha uma nova estrela, Marlyn Monroe,
cuja imagem industrialmente fabricada e milionariamente reproduzida penetra triunfalmente em todas as fronteiras para reorientar sonhos. A morte
acelera o passo. Opondo-se aos artistas do passado, desejosos de produzir
monumentos eternos, a arte da era industrial escancara a perecibilidade. As
indústrias produzem para o consumo, para a rápida reposição.
As reflexões sobre o narcisismo nos lançam no âmago da discussão
sustentada para definir modernidade e pós-modernidade. Incorporemos ao
debate a prosa de um autor inquieto, Milan Kundera. Embora a acidentada
biografia do romancista se imiscua na trama de seus enredos, ele insiste no
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Donaldo Schüler
direito de manter separadas vida privada e personalidade artística. Avesso à
publicidade, o autor comprime informações pessoais numa única linha:
“Milan Kundera nasceu na Tchecoslováquia. Em 1975, ele se instala na
França”. É o que se lê no vestíbulo de A Insustentável Leveza do Ser. Se até
a data de nascimento é silenciada, não se espere que Kundera prodigalize
detalhes de sua imigração na França. A ficção, à medida que gera a personalidade literária, devora a personalidade civil. Só aquela lhe importa. Se
Kafka, reflete, permanecesse na lembrança graças a incidentes vividos, que
importância teria sua obra? Destino do autor é fazer-se literatura; esta é sua
imagem. Já que Kundera desencoraja paráfrases de seus livros ou de livros
dos outros – a paráfrase banaliza a invenção –, façamos o que o autor espera, reflitamos a partir das sendas que abriu. A obra imaginária solicita o
ingresso do leitor no jogo da imaginação.
Vemos nas reservas de Kundera em oferecer-se enquanto pessoa reflexos da morte do homem anunciada por Nietzsche, projetados também nos
textos de Heidegger, de Foucault, de Derrida e em larga parte da produção
literária contemporânea. Longe estamos de Saint Beuve que, na esteira de
Descartes, pretendia descobrir na personalidade do autor a chave do mistério da obra genial. Kundera supõe o contrário: é a obra que ilumina a vida,
perdida, sem ela, na indiferença. Sustenta que o romance realiza a intenção
de Heidegger, a recuperar a reflexão sobre o ser, esquecido na metafísica
ocidental. Na época do luto pela morte do homem, não se aguardem
caracteres bem marcados como os que balizam o romance do século passado. Kundera subordina o homem a forças que o excedem. Recordem-se os
títulos de alguns de seus romances: Brincadeira, O Livro do Rir e do Esquecimento, A Insustentável Leveza do Ser, A Imortalidade. Categorias gerais tomam o lugar outrora concedido a personagens. O peso, a leveza, a
sexualidade, o ciúme, o amor não se originam no homem, são forças que o
excedem e o atravessam. Por que descrever personagens se nem os gestos
lhe são exclusivos? Supor que gestos sustentam personagens seria mais
correto. Agnes, heroína de A Imortalidade, nasce de um deles. A concepção
NARCISO
NO
VESTÍBULO
DO
SEGUNDO MILÊNIO
antropológica de Kundera não diverge da exposta por Foucault, outro arauto da morte do homem.
A mesma Agnes interroga o pai taciturno sobre a fé em Deus. Vem-lhe
a resposta: creio no computador de Deus. Sigamos a idéia. Devemos supor
um programa que prevê, sem determinar modos de execução, todas as opções do homem? É um novo modo de refletir sobre a relação destino-liberdade, herança dos tempos míticos que nos inquieta até hoje. Ora, se existe
um programa para o homem, devem-se admitir programas para todas as
formas. A terra não constituiria unidade, se os programas não estivessem
subordinados uns aos outros, comandados por um aparelho central responsável pela harmonia do planeta. Se avançamos, devemos pensar em programas responsáveis pelo sistema solar, pelas galáxias, pelo universo. As
ciências que já não admitem o acaso, que legislam o caos, encaminham as
investigações nessa direção. A liberdade não fica excluída. Proscrito recua
o Humanismo, que queria o homem como centro de decisões, como suporte do universo.
Reflexões sobre o território concedido a decisões livres levam
Kundera a enfrentar o imperialismo dos meios de comunicação de massa,
rompido o pacto celebrado entre a mídia e a arte pop. Os meios de comunicação de massa se apoderam da função de contar, atribuída outrora ao
narrador épico, e da função de documentar, peculiar ao romance realista. A
informação e a imagem, que não fazem pensar, alijam o mito e o peso de
suas interpretações. Começamos pela fotografia. A fotografia, como vimos, estagna o movimento que reveste a realidade móvel com a imagem
estática. O instantâneo, ao que pensa Kundera, não favorece o exercício da
liberdade. O aparelho fotográfico nos persegue. Arrebata-nos a solidão, a
privacidade. Substituindo o olho vigilante de Deus, o aparelho fotográfico
tiraniza. Com a monótona reprodução peculiar à indústria, os meios de
comunicação de massa promovem o kitsch. Retomemos Marlyn Monroe,
exemplar para o período da kitschicização universal. Até o nome da estrela
milhões de vezes reproduzido, inventado para impressionar, esconde a
moça pobre, transformada em ídolo pelos meios de comunicação de massa.
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Donaldo Schüler
Tudo em Marlyn é industrial: o aspecto físico, a fala, os sentimentos, os
gestos. Produzida a imagem, a mídia se encarrega de expô-la no mercado
mundial. O sucesso de cinema, imprensa e televisão conjugados excede a
vitória das forças armadas. Não há região da terra que resista à mídia. Ela
requisita paixões, anula decisões. Observe-se o poder da imagem de
Marlyn sobre as mulheres. O modelo se reflete no corte do cabelo, nas
dobras do vestido, no jeito de olhar, de sorrir. Kundera vê o kitsch suceder
à metafísica. Impondo-se ao cotidiano, absolutizando a imagem, o kitsch
leva ao esquecimento do ser. O kitsch é imperialista, esteja a serviço da
esquerda ou da direita.
Narciso instalou-se na mídia. Precisemos distinções. Temos o
narcisismo estático, o da mídia, do kitsch, da reprodução industrial que se
opõe ao narcisismo dinâmico, agente da renovação, ligado à circularidade
da vida e da morte encenada no quadro de Dalí. Evitamos proscrições.
Estamos presos ao ritual das repetições desde as origens. Ritos diuturnos
nos prendem a fortes correntes culturais. Reiteramos cerimônias, reproduzimos gestos, insistimos em expressões sem as quais a vida social seria
inconcebível. O rito nos atravessa, estabiliza-nos. Entretanto, a rendição
incondicional ao kitsch nos asfixiaria na banalidade. Na urgência da renovação recorremos à arte. A vida se compõe da síntese problemática e instável entre o móvel e o estável. Kitsch é a sexualidade repetitiva conduzida
pelo desejo de colecionar. Contestando o princípio do eterno retorno
nietzschiano, não importa se o autor acerta na interpretação, Kundera acentua que, se essa doutrina vale para a natureza em geral, ela não corresponde
à realidade humana, sempre nova. A sexualidade só se torna inovadora se
ligada ao erotismo, que explora a diferença, mergulha no único, abre caminhos ao futuro. O kitsch prolonga o idílio, recordação da placidez estática
do paraíso perdido, anterior ao saber. Dáfnis e Cloé, o casal de jovens idílicos, vivem na ignorância.
Ingressamos em novo humanismo, consciente da precariedade do homem, atento à morte. Unam-se o luto pelo homem e suas conseqüências às
visões de Fernando Pessoa, que, no momento de dizer que o homem não é
NARCISO
NO
VESTÍBULO
DO
SEGUNDO MILÊNIO
nada, abre-lhe todas as possibilidades do mundo. As possibilidades crescem à medida que a indeterminação aumenta. Contra idéias essencialistas,
Fernando Pessoa elabora um sistema universal aberto em que astros giram
em torno de outros astros, e deuses giram em torno de outros deuses. Substituam-se deuses por programas e chegaremos a uma concepção atualizada
do universo.
Oportunas soam as ponderações feitas por Kundera sobre a diferença
entre caminho e rota. A rota leva de um ponto a outro, de uma informação
a outra. Irritamo-nos se dez ou quinze minutos são insuficientes, digamos,
para acessar uma biblioteca em Moscou, através de um aparelho instalado
em nossa casa. Não menos nos irrita o atraso do aparelho que elegemos
para nosso deslocamento. Rotas materiais ou virtuais elidem tempo e espaço. Preocupados em atingir o destino, paradas nos inquietam. O espaço se
revela a quem palmilha caminhos sem cuidar de metas. Ao caminhar, a
cada passo surpreendemos belezas. A rota dessensibiliza, deserotiza.
Redescobrimos o prazer nos movimentos gratuitos, lentos do caminhar.
Referências
CHVATIK, K. Le monde romanesque de Milan Kundera. Paris: Gallimard,
1994.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. L’Anti-Oedipe. Paris: Minuit, 1972.
KUNDERA, M. La plaisanterie. Paris: Gallimard, 1967.
______. Risibles amours, Paris: Gallimard, 1968.
______. La valse aux adieux. Paris:Gallimard, 1973.
______. Le livre du rire et de l’oubli. Paris:Gallimard, 1978.
______. L’art du roman, Paris:Gallimard, 1986.
______. L’immoralité, Paris: Gallimard, 1990.
______. Les testaments trahis, Paris:Gallimard, 1993.
LE GRAND, E. Kundera ou la mémoire du désur. Montréal: XYZ, 1995.
Ensaio
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Donaldo Schüler
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118 Psicanálise v. 9, n. 1, p.107-118, 2007
Eluza Maria Nardino Enck**
Resumo: O trabalho tem por proposta o levantamento de aspectos teóricos do período da latência e da puberdade, a partir das concepções de
Freud e Anna Freud, passando por Meltzer até desenvolvimentos mais
recentes, principalmente de Urribari, Bornstein e Etchegoyen. Enfatiza
a importância dessas duas fases do desenvolvimento para a formação
do indivíduo e as conseqüências advindas de possíveis alterações nesse
percurso. Segue uma apresentação de dados levantados por pesquisa
entre profissionais que atendem a essas faixas etárias, finalizando com
uma discussão que integra as idéias teóricas e os achados da sondagem.
Palavras-chave: Latência. Puberdade. Sublimação.
O período de latência, diferente das outras fases
libidinais, tem sido freqüentemente caracterizado, ainda que
pouco estudado, mais pelo que deixa de acontecer do que
por toda a gama de ocorrências e complexizações em que
incorre. Isso fica evidente na seguinte citação de Freud
(1905, p. 166): “há um período de latência sexual durante a
infância, após um período de manifestação excepcional de
impulsos sexuais”.
Este último período ao qual se refere Freud é o locali-
* Trabalho apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise realizado
em Porto Alegre, maio de 2007.
** Psicologa. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
Porto Alegre.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 119
Eluza Maria Nardino Enck
O Encurtamento da Latência e
a Puberdade Precoce: um
problema dos tempos atuais*
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
E A
PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
zado entre o terceiro e o quarto ano, mais especificamente, no início da fase
edípica. Freud acreditava que
[...] o recém-nascido traz consigo impulsos sexuais em gérmen que,
depois de um período de desenvolvimento, vão sucumbindo a uma repressão progressiva, a qual pode ser interrompida por avanços regulares do desenvolvimento sexual ou detida por particularidades individuais. Sobre as leis e períodos desse processo evolutivo oscilante não
se conhece nada com segurança. Parece, sem dúvida, que a vida sexual
das crianças se manifesta já de uma forma observável ao terceiro e
quarto ano de idade. (FREUD, 1905, p. 166).
Com relação a esse período de latência – total ou simplesmente parcial – os poderes anímicos se opõem ao instinto sexual e o canalizam, marcando seu curso como um dique. Esses diques também são obras da educação em uma sociedade, mas, na realidade, são parte de uma evolução organicamente condicionada e fixada hereditariamente, podendo produzir-se
sem nenhum auxílio da educação. Esta última imprime maior ou menor
profundidade e depuração ao já performado organicamente.
Um outro dado importante acerca da latência em Freud é a idéia de que
esses diques são erigidos à custa dos próprios impulsos sexuais que nesta
etapa não deixam de fluir, mas com sua energia desviada, no todo ou em
parte, da utilização sexual, e orientada para outros fins (sublimação). Esses
instintos sexuais seriam inaproveitáveis nos anos da infância devido à ausência da função reprodutora, o que levaria unicamente a provocar sensações desprazerosas. Dessa forma, surgiriam forças psíquicas contrárias que
levantariam, para a supressão de tais sensações desprazerosas, diques psíquicos – a repugnância, o pudor, a vergonha e as exigências morais.
[...] esta utilização da sexualidade infantil representa um ideal
educativo, do qual se desvia quase sempre o desenvolvimento do indivíduo em algum ponto e, com freqüência, em muitos. Na maioria dos
casos, um fragmento da vida sexual que escapou da sublimação conse-
120 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Freud fala que a sublimação dos impulsos instintivos sexuais, nesse
momento, se produz por meio da formação reativa, embora ambos os processos devam ser considerados distintos e a sublimação possa ser alcançada
através de outros mecanismos.
Para Anna Freud (1973) durante o período da Latência ocorre o processo de desilusão da criança com relação a seus pais. O princípio de realidade está mais ativo. Os mecanismos de repressão e formação reativa auxiliam o ego a manter os impulsos sexuais longe da consciência; ainda que
estes mecanismos sejam automáticos e não conscientes em si mesmos, os
resultados que produzem são manifestados e podem ser individualizados
através da observação atenta do analista desde o conteúdo do inconsciente
e seus derivados – impulsos, fantasias, imagens, etc. – até os métodos empregados pelo ego para mantê-los afastados da consciência.
O mecanismo de defesa do ego, a repressão, promove que nada pode
ser observado na superfície, exceto a ausência daquelas tendências que seriam ingredientes necessários à personalidade. Aqui entra a importância do
conhecimento do processo normal de desenvolvimento da criança. Por
exemplo: uma criança que aos 4, 5 anos não mostra nenhuma curiosidade
com relação à origem dos bebês, ao modo de relacionamento dos pais, às
diferenças sexuais, etc., evidencia que a presença de uma batalha interna
veio resultar na extinção de uma consciente curiosidade sexual normal.
A utilização do mecanismo de formação reativa, por sua vez, resulta
em deixar aparecer o conteúdo manifesto, a contraparte do que foi reprimido, como uma grande exigência de disciplina, ordem e obediência, encobrindo o desejo de rebelar-se às exigências externas e do próprio ego.
Esses pressupostos se inserem na linha de pensamento que descreve a
latência a partir daquilo que está encoberto, total ou parcialmente, sob forte
vigilância defensiva. Do que não aparece, ainda que justificado por uma
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 121
Eluza Maria Nardino Enck
gue abrir caminho, ou se conserva uma atividade sexual através de
todo o período de latência até o impetuoso florescimento do instinto
sexual na puberdade. (FREUD, 1905, p. 168).
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
E A
PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
significativa ampliação do alcance do ego e do superego, como uma importante aquisição desse período.
A noção, proposta por Anna Freud, baseada em um princípio de desenvolvimento em que a continuidade desse desenvolvimento é modelada
por mudanças progressivas e regressivas, foi ampliada por autores como
Erikson, Bowlby, Spitz; diferencia-se da formulação original de Freud, segundo a qual o período de latência é conseqüência da resolução do complexo de Édipo. A partir de desenvolvimentos mais recentes, cabe pensar que
essa resolução não ocorre como uma descontinuidade abrupta, com uma
repressão maciça da sexualidade infantil, e sim, como um processo de elaboração progressiva e mais complexa ao longo dessa fase.
A continuidade dos estudos sobre o período de latência tem deixado
evidente que, não obstante esse período se instalar a partir da dissolução ou
do sepultamento do complexo de Édipo, bem como se tratar de um período-chave para dar suporte às vicissitudes da adolescência, seria extremamente empobrecedor e reducionista caracterizá-lo unicamente assim. Ao
mesmo tempo em que algo é coartado, renunciado, alienado, afastado, algo
se constrói e oferece novas possibilidades, novos destinos e prazeres; domínios e autonomia se promovem, expressando-se em aprendizagem, atividades, expansões, relações, complexizações diversas, tanto intra como
intersubjetivamente.
Sob o ponto de vista biológico, não há registros de um correlato rebaixamento de níveis hormonais ou nenhum outro substrato orgânico
incidindo nesse período.
Tal fase encerra notáveis mudanças psicológicas e sociais, com intensa atividade e grande desgaste de energia da criança. E pode-se perguntar
por que seria necessário erigir defesas, a partir do desenlace edípico, para
combater a masturbação, os desejos incestuosos e as ocasionais práticas
genitais dos latentes.
É mais claro que esse período esteja caracterizado por um reordenamento intrapsíquico, produto da resolução edípica e pela concomitante inclusão do superego, incitado culturalmente, obrigando o ego a buscar no122 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
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vas maneiras de canalizar o impulso e de efetuar seu trabalho de mediação.
Poderia dizer-se que a latência se caracteriza por um trabalho de congregar
diversos mecanismos para um fim sublimatório.
Mas não são as influências da repressão, da formação reativa, da sublimação, já presentes anteriormente, o que caracteriza a organização psíquica da latência, e sim um trabalho sutil, bastante intenso, que nos apresenta nova configuração dinâmica, nova reorganização operativa e notável
equilíbrio intersistêmico. Esta configuração favorece o desenvolvimento
de um caminho rumo às relações exogâmicas a partir do desenlace do drama edípico; possibilita a abertura para novos investimentos de objetos e
identificações enriquecedoras que favorecem a individuação; proporciona
espaço para o desenvolvimento intelectual e do pensamento, com o deslocamento do interesse pelo corpo e seu funcionamento para os objetos e
seus mecanismos, para os fenômenos naturais e suas leis; permite maior
organização e ampliação do pré-consciente, o que dá suporte às modificações manifestas do ego e ocupa papel principal de artífice para as aquisições no período de latência, entre elas a mediação e o processamento que
torna possível a sublimação (redirecionamento da energia pulsional, inibição de descarga, adequação a códigos culturais); em termos de linguagem,
favorece que a verbalização, paulatinamente, supere a ação; estabelece as
atividades motoras e os jogos como vias privilegiadas para a descarga da
energia pulsional e para a evitação da masturbação; complexifica a expressão através do desenho, que vai adquirindo riqueza e organização, deixando evidente a discriminação entre fantasia e realidade; permite que ocorra
uma notável ampliação da experiência emocional, do registro do prazer e
do desprazer, na relação com o outro e consigo mesmo, quando aparecem
sentimentos de vergonha, sinal de um incipiente ideal de ego, de inferioridade (narcísico / ego ideal) e de culpa; inicia um processo de diferenciação
do público e do privado; a agressividade adquire novas formas de expressão, agora com uma instância superegóica, canalizada através de atividades sublimadas – jogos, ou aparecendo expressamente com mentiras,
trampas, insultos, etc.
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
E A
PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
A latência consiste num momento-chave para a organização psíquica
e o desenvolvimento emocional. Sua compreensão precisa ser buscada
mais além das formas sutis em que opera essa organização psíquica e além
do seu encobrimento manifesto, pois, segundo o que diz Diatkine, “a fase
de latência se caracteriza mais pela estreiteza do ângulo de visão do psicanalista do que pela pobreza da fantasmatização da criança” (DIATKINE
apud URRIBARI, 1999, v. 3, p. 290).
Sem esquecer o que diz Jersild: “[...] no desenvolvimento normal o
sexo nunca tira férias” (JERSILD apud URRIBARI, v. 3, p. 290).
A partir de uma retomada e ampliação da compreensão dinâmica, da
importância e do significado do período de latência para o desenvolvimento do indivíduo, podemos depreender as possíveis conseqüências e prejuízos de um coartamento desses processos.
Por outro lado, fica evidente o sentido de preparação para a etapa que
se seguirá, marcada pelas modificações corporais da puberdade e o start
para um processo de desenvolvimento, ao longo do qual percorrerá essa até
então criança rumo à maturidade.
Conforme Urribari (1999, v.3), a puberdade, com seus inerentes fenômenos de modificações corporais e entrada para a adolescência, constitui
uma situação potencialmente traumática, com fortes raízes narcisistas, que
requer amplo e intenso trabalho psíquico a respeito não só de características externas e capacidades corporais do sujeito e suas progressivas transformações, como também de sensações e afetos concomitantes, de representações, de modificação do esquema corporal, de genitalização, de pujança pulsional incrementada e de expectativas relacionais, no sentido de
como será visto e valorizado por seus pares e pelos adultos.
Desde Freud, sabemos da importância do corporal como substrato do
pulsional e sede do erótico, como gênese da organização psíquica, como
conexão com o narcísico e o afetivo.
A problemática do processo da puberdade se vê agudizada pela
vivência das mudanças corporais como algo alheio: a sensação de que provêm de fora e de estar sob domínio dessas modificações. Daí se depreende
124 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Se puder se consolidar uma relação intersistêmica fluida, que possibilite a descarga por via da sublimação (e a ocorrência de outros mecanismos), e não centrada na formação reativa e na repressão (que
constringe, enrijece e empobrece pelo desgaste da contracatexia), se
produzirá a ampliação e o fortalecimento do ego, particularmente na
diversificação de canais de expressão e descarga, ligações relacionais
e institucionais, ampliação do pensamento e da linguagem, e fundamentalmente na articulação e funcionalidade do pré-consciente. Quanto menos embasada se encontra a organização prévia, menos recursos
o jovem terá para enfrentar o embate puberal. (URRIBARI, 1999, p.
141) (grifo nosso).
Em casos extremos, diz Urribari (1999, p.141), “gerará desorganizações diversas, predominando nos meninos as atuações violentas e anti-sociais, ou a psicose puberal, e nas meninas a frenética entrega à prática
genital, ou os transtornos alimentares como anorexia nervosa”.
Durante a puberdade, para dar conta de todo o incremento do
pulsional, das modificações corporais e da genitalização ainda não signifiSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 125
Eluza Maria Nardino Enck
as freqüentes buscas externas de soluções, como tratamentos cosméticos,
regimes alimentares e intervenções cirúrgicas, bem como por meio de condutas sexuais desenfreadas.
Os púberes se sentem solitários, com idéias de serem casos raros e
únicos, radicalmente diferente dos outros.
É na adolescência que se revelarão as aquisições narcísicas precoces,
palco propício para a reedição de situações traumáticas transgeracionais
que o jovem desconhece. Por isso, esse momento é campo fértil para a
restauração de feridas narcísicas dos pais, em que aparecem estados de
confusão mente/corpo e o presente e o passado se fundem.
A maneira como se instituiu e se desenvolveu o período de latência
constitui elemento-chave para a instalação dos processos da puberdade e
da adolescência.
Diz Urribari:
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
E A
PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
cados, o psiquismo se vê levado a reformular suas representações para realizar um trabalho de reinscrição do já vivido e de inscrição do ainda não
representado.
Meltzer nos fala da puberdade como um processo de busca de conhecimento e compreensão, sendo que a sexualidade encerra todas as possibilidades de ser o objeto que veicula esse processo. Acredita que os
“hormônios” da puberdade não são tanto os do ímpeto sexual, mas os do
conhecimento e da compreensão. Assim, voltando-se para trás, buscando
no passado a identificação com os pais primitivos unidos, donos de todo
saber e poder, voltando-se para frente, sendo alguém que conhece e sabe
tudo, com capacidade de controlar o mundo por si mesmo, ser potente,
independente, ou voltando-se para algo que foi abandonado lá atrás, no
período de latência. Entretanto, há temor em avançar e há temor em retroceder.
Além da confusão, há uma grande desilusão com relação ao modelo
de mundo experimentado na infância, ao mesmo tempo em que há sempre
uma busca de localizar-se e encontrar-se.
São processos por si só dolorosos, angustiantes, difíceis, levando a
significativos níveis de ansiedade confusional, de profundo sentimento de
estranheza, solidão, desamparo e desencanto.
O fato é que parece que as transformações físicas e psíquicas, ao longo
da vida do indivíduo, têm um momento para acontecer. Estão relacionadas
a um processo particular e individual de desenvolvimento; de maneira natural, vêm sendo preparadas nas etapas anteriores da vida e ocorrem quando os respectivos aparatos estão aptos a vivenciá-las, produto de uma conseqüente maturação.
Mas é sempre assim que acontece?
E nos tempos atuais, como isso está ocorrendo?
Profissionais de diferentes áreas (pediatras, hebeatras,
endocrinologistas, psicólogos escolares, psicólogos que trabalham com
psicodiagnóstico, psicanalistas, pedagogos) que têm em comum o atendimento e cuidado da criança e do adolescente foram consultados para darem
126 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Latência
Do ponto de vista clínico não têm sido observadas, de modo significativo, características que levem a considerar a possibilidade de alterações
no período de latência do desenvolvimento infantil.
Percebem-se, principalmente nas meninas, alterações, em decorrência
das quais cada vez mais cedo as brincadeiras infantis são substituídas pelas
maquiagens, roupas de adolescentes, festinhas e interesses pelos meninos.
As meninas adolescem antes da puberdade. A infância encurtou e a adolescência se prolongou. No caso da latência, o afrouxamento de regras, valores e limites resulta na dificuldade de o indivíduo se expressar.
Hoje, observamos quase uma indiferenciação de comportamentos entre as crianças na latência e as que se encontram na puberdade. Nos desafios cotidianos, quando essas crianças procuram assumir atitudes de
independização e não encontram o conforto desejado, muitas vezes buscam refúgio e acolhida nos adultos, que, por sua vez, as incentivam a assumir responsabilidades que ainda não podem ser desfrutadas frente às
vivências sociais e cognitivas, disponibilizadas como recursos intelectuais.
Esse encurtamento do desenvolvimento emocional é percebido em
diferentes manifestações, nas brincadeiras espontâneas e/ou nas soluções
dadas pelas crianças dessa faixa etária frente a conflitos entre seus pares e/
ou com adultos – também na antecipação da escolarização e nas expectativas decorrentes desse processo, bem como nas novas identidades culturais
desse agrupamento etário.
Puberdade
No que se refere às manifestações da puberdade, a literatura internacional tem descrito estudos mostrando maior precocidade nas primeiras manifestações puberais, especialmente nas meninas obesas de áreas urbanas.
Especula-se sobre a importância da obesidade na etiopatogenia desse fenôSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 127
Eluza Maria Nardino Enck
seu depoimento sobre como estão vendo esses fenômenos se desenvolverem atualmente.
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
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PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
meno. Assim, em estudos americanos (USA), em algumas populações de
meninas obesas, com vida urbana, a menarca (primeira menstruação) tem
acontecido com precocidade de até 3 a 4 anos em relação à faixa de idade
histórica de manifestação desse evento puberal (11 a 15 anos).
Vem sendo constatado um adiantamento na idade da menarca de mais
ou menos 4 meses a cada década. Portanto, deve haver um início um pouco
mais cedo das manifestações puberais. Entretanto, não são conhecidos estudos científicos que tenham documentado estatisticamente uma diminuição na idade de surgimento dos primeiros caracteres sexuais.
No que se refere a atitudes, cada vez mais vemos meninas de 8-9 anos
com comportamentos mais sexualizados, seja em indumentária ou na maneira de se comportar. Parece haver um adiantamento da pré-adolescência.
Com mais ou menos 11 anos, essas meninas já se sentem plenamente adolescentes e muitas já iniciam relações sexuais. Percebe-se isso fortemente
nas famílias menos estruturadas e muitas vezes de baixo nível sócio-econômico.
Historicamente, a idade média da menarca das adolescentes vem apresentando uma tendência de queda (Tanner, 1962; Colli, 1985), diminuindo
cerca de 4 meses a cada década, encontrando-se, atualmente, na faixa de
12,5 a 13 anos, em segmentos populacionais economicamente desenvolvidos. Reforçando essa tendência, Schor (1994) identificou, em estudo retrospectivo, no Centro de Saúde Paula Souza, da Faculdade de Saúde Pública da USP, a idade média da menarca de 13,6 anos, na década de 30;
13,4 anos, na década de 40; 12,3 anos, na década de 60; e 12,6 anos, na
década de 80.
Pesquisas recentes com populações pequenas têm apontado para um
dado interessante: a menarca, em média, é mais precoce em famílias de
menor condição sócio-econômica do que nas mais privilegiadas. Isso talvez aponte para os aspectos ambientais, como famílias mais numerosas. A
primeira menstruação é um indicador que retrata também as condições sociais de determinada população. A idade da menarca vem baixando em
várias populações do mundo, devido à melhoria de condições nutricionais,
128 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Com relação às diferenças de gênero
Em relação ao gênero masculino, são desconhecidos estudos que especulem ou demonstrem precocidade na semenarca (primeira ejaculação),
em relação ao que se tem como registro histórico.
Há normalmente uma grande “janela” entre a idade mínima e máxima
para o desenvolvimento: a telarca nas meninas pode acontecer a partir dos
8/ 9 anos até os 13 anos; o aumento de testículos, nos meninos, tão cedo,
como dos 10 anos até os 14 anos. A impressão é de que vemos cada vez
mais “maturadores precoces”, isto é, puberdades com início mais cedo,
porém dentro de uma margem considerada normal.
É consenso mundial que a queda histórica na idade da menarca é resultante de melhorias nutricionais. Como hoje, em nosso Estado (RS), encontramos muito menos situações de desnutrição, não tivemos casos de
atraso puberal, a não ser em situações de doenças crônicas.
No Brasil, a média da menarca é de 12,2 meses.
No que diz respeito aos apelos culturais e sociais, estes atingem mais
as meninas que os meninos.
Causas apontadas
Os profissionais pesquisados reforçam o que já se indica por consenso: a precocidade nos diferentes aspectos sociais e cognitivos, gerais e específicos das crianças no mundo ocidental (há um questionamento em relação a como seria no mundo não-ocidental). Compactuam com a idéia geral
de ser essa precocidade uma resposta de adaptação biológica à precocidade
e intensidade dos estímulos ambientais.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 129
Eluza Maria Nardino Enck
sócio-econômicas, e seu reflexo na saúde das populações. Estudos antropológicos dizem que, evolutivamente, quanto mais cedo a menarca ocorrer, mais chance terá a mulher de se reproduzir.
Percebe-se um encurtamento da latência e da pré-adolescência; por
outro lado, um aumento no período total da adolescência.
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
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PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
Do ponto de vista social, as possíveis causas para um suposto início
precoce da puberdade são as mesmas relativas à latência.
O forte apelo sexual nos meios de comunicação, a falta de limites
claros determinados pelos pais, a delegação da educação para a escola, a
percepção dos promotores de marketing de que o adolescente e a criança
são determinantes ao consumo da família – “quanto antes melhor” –, podem estar influenciando neste sentido. Em outras palavras, a convivência e
participação na vida dos pais, a indiferenciação dos papéis, os acessos
irrestritos e ilimitados à televisão, à internet, em que cada vez aparecem
mais temas de violência ou de sexo acima da capacidade de compreensão
cognitiva e emocional da criança, são motivadores dessa antecipação. Os
ambientes familiares, sejam mais permissivos, sejam “abandonadores”,
nos quais os filhos ficam entregues à companhia das babás eletrônicas, em
detrimento da companhia dos modelos parentais, que muitas vezes se encontram ausentes, parecem determinantes para esse encurtamento da infância.
Em muitos casos, existe uma sexualização precoce e grave, com a
preferência de companhias virtuais em detrimento dos amigos do mundo
real; a globalização, e com ela a indiscriminação de culturas, costumes e
uniformização de princípios ou, mais freqüentemente, da falta deles; as
mudanças culturais na estruturação da família nuclear, em que ambos os
pais, sobretudo de classe média, em geral, trabalham muito; a substituição
da função materna por babás, empregadas ou creches; a falta das avós, que
antigamente ajudavam na criação dos filhos: tudo isso aponta para as causas.
Nas escolas, aparecem de forma muito marcante as novas configurações sociais, a cultura da imagem e as inúmeras possibilidades de viver
experiências cotidianas indiscriminadamente. A emancipação da mulher e
sua inserção no mercado de trabalho, a “terceirização” da educação, o
borramento de fronteiras entre os aspectos culturalmente previstos para
cada período do desenvolvimento, os avanços tecnológicos possibilitando
a multiplicidade, a velocidade e a socialização das informações, o atendi130 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 131
Eluza Maria Nardino Enck
mento sistemático das necessidades imediatas da criança e o desenvolvimento da cultura do prazer em detrimento do desenvolvimento da capacidade de tolerância à frustração, etc.
Na fase adulta, encontramos também o fenômeno da juvenilização.
Considerando os dados levantados a partir dos profissionais
pesquisados, estes nos apontam que, entre as crianças em geral, ficam evidentes dificuldades de se relacionar. Mostram-se mais individualistas, com
falhas no conhecimento de regras sociais de convivência. Parece que as
famílias também encontram problemas na educação das crianças. Outras
alterações são crianças hiperativas ou muito ansiosas, problemas de conduta, crianças com dificuldades de se defender frente a adversidades, pouco
tolerantes diante de qualquer problema para o qual não encontrem solução
imediata.
Cada vez mais aumenta a procura de pais buscando colocar os filhos
precocemente na primeira série, por uma necessidade e expectativa
narcísica destes. Muitas vezes, essas crianças apresentam um quadro de
pseudo-maturidade e de falso self. Elas “pulam” uma fase psicossexual, o
que reverte em problemas emocionais importantes. Os transtornos de conduta são mais encontrados em meninos.
Em avaliações psicológicas solicitadas por pais ou escola, as alterações mais encontradas são transtornos de aprendizagem, suspeitas de transtorno de déficit de atenção, transtornos neurológicos com patologia emocional secundária, transtornos invasivos do desenvolvimento, patologias
psiquiátricas e transtornos de personalidade. Entretanto, em muitos casos,
o que prevalece são elevados níveis de ansiedade, mascarados por outros
diagnósticos, principalmente TDAH.
Os pais, quando procuram atendimento, relatam sua preocupação
quando se referem às meninas no que tange à precocidade dos interesses
adolescentes; com relação aos meninos, a queixa é o descompasso em relação às meninas; consideram-nos infantis. Em relação a ambos os gêneros,
preocupam-se com o uso demasiado da internet e jogos de computador.
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
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PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
Discussão
Freud, em vários momentos, fala de uma repressão parcial na latência
em que parte dos impulsos podem escapar ao controle e encontrar uma
forma de expressão.
Diz Freud (1905, p. 168): “Com relação a este período de latência –
total, ou simplesmente parcial –, os poderes anímicos se opõem ao instinto
sexual e o canalizam, marcando seu curso como um dique. Estes diques
também são obras da educação, em uma sociedade [...]”.
Em cada época, ao longo da história, podemos detectar a manifestação
de um complexo processo de legitimação de certas marcas culturais, com
suas conseqüentes formas de expressão.
Se é que o latente, estruturando defesas e adquirindo habilidades
comportamentais, busca dar conta de pressões e expectativas que lhe são
dirigidas, adaptando-se a regras sócio-culturais de seu meio, visto que cada
cultura busca uma determinada resposta de seus integrantes, que resposta
nossa cultura está atualmente esperando de nossas crianças?
Que marcas culturais estariam buscando legitimação e incidindo sobre a infância?
Um outro dado importante acerca da latência em Freud é a idéia de
que diques são erigidos à custa dos próprios impulsos sexuais, que nessa
etapa não deixam de fluir, mas sua energia se encontra desviada, no todo ou
em parte, da utilização sexual, e orientada para outros fins (sublimação).
Dessa maneira, o trabalho desenvolvido pelo latente consiste em congregar
diversos mecanismos para um fim sublimatório.
A capacidade do ego para a sublimação e mediação, resultados dos
desenvolvimentos prévios e principalmente do trabalho efetuado na
latência, irá alicerçar e apoiar todo o complexo processo do qual o adolescente deverá se incumbir.
Entretanto, toda essa intrincada aquisição de condições e capacidades
vem sendo dificultada, quando não impedida. A criança de nosso tempo se
encontra pressionada desde a mais tenra infância para se apressar, para
transpor etapas, entre elas também a latência.
132 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
[...] esta utilização da sexualidade infantil representa um ideal
educativo, do qual se desvia quase sempre o desenvolvimento do indivíduo em algum ponto e, com freqüência, em muitos. Na maioria dos
casos um fragmento da vida sexual que escapou da sublimação consegue abrir caminho, ou se conserva uma atividade sexual através de
todo o período de latência até o impetuoso florescimento do instinto
sexual na puberdade. (FREUD, 1905, p. 168).
O que vemos, porém, não é a interrupção repressiva por avanços do
desenvolvimento, ou mesmo a incidência de fragmentos da vida sexual
abrindo caminho e se conservando ao longo desse período, nem mesmo um
trabalho de reorganização intrapsíquica produtivo e criativo, mas sim uma
estereotipização de condutas e costumes, imprimindo uma pseudo-adultez
em todas as áreas, com abolição do brinquedo, do brincar criativo, construtivo e enriquecedor. As atividades motoras e os jogos se estabelecem como
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 133
Eluza Maria Nardino Enck
Como deixou claro um dado da pesquisa, a indiferenciação de etapas
de desenvolvimento corrobora a necessidade da infância de ser banida, para
que o ser em desenvolvimento dê lugar a um ser pronto, terminado, sem
necessidades de investimento, de espera e acompanhamento.
Também podemos pensar que não somente a latência e a puberdade
vêm sofrendo alterações com recuos, antecipações, coartações, impedimentos, mas que isto está se dando de forma geral, ao longo do desenvolvimento da criança, talvez desde a sua concepção ou mesmo desde a formação do casal de pais.
Que princípios e ideais estão unindo os casais?; que motivações, desejos ou necessidades estão levando a que tenham filhos?; e os tendo, que
necessidades, expectativas e conflitos inconscientes norteiam o acompanhamento ou o desacompanhamento que fazem deles?
Freud também afirma que uma repressão progressiva se instala no período pós-edípico, a qual pode ser interrompida por avanços regulares do
desenvolvimento sexual ou detida por particularidades individuais. E vai
além:
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
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PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
vias privilegiadas para a descarga da energia pulsional e para a evitação da
masturbação, enquanto viabilizam, como atividades sublimadas, novas formas de expressão da agressividade.
Retirar da criança a possibilidade e oportunidade de brincar é também
tirar-lhe as condições básicas e essenciais para o seu desenvolvimento, para
o contato com suas habilidades e dificuldades, para o despertar-lhe a imaginação e a criatividade; dificultar-lhe, enfim, o acesso a uma via privilegiada para a sublimação. Muitos dos comportamentos referidos pelos profissionais das escolas – palco privilegiado de observação –, decorrem diretamente da precariedade sublimatória, dificultando ou impedindo o desenvolvimento, a aprendizagem, como processo simbólico, e elevando significativamente os níveis de ansiedade e sofrimento infantil.
Mas as crianças estão brincando muito menos, e um dos motivos é que
muito cedo elas se tornam dependentes de televisão, vídeos e computadores. Dados de uma ampla pesquisa no Brasil mostram que as crianças brasileiras são as que mais vêem televisão em todo o mundo, e ver televisão
não é brincar, embora 95% das crianças pesquisadas consideram esta, junto
à DVD e vídeo, a sua “brincadeira” preferida.
Essa atividade, além de completamente passiva, é feita, na maioria
das vezes, solitariamente, comprometendo o estreitamento de relações
afetivas, do sentido de compartilhar e trocar.
Os pais vêm demonstrando excessiva preocupação com um futuro
profissional de sucesso para os filhos, por isso o tempo de brincar agora é
ocupado com atividades que os preparem para a concorrência profissional.
Os pais não estão podendo olhar para o filho como criança; ouvir os
filhos em suas necessidades e individualidades; fazer-lhes restrições e proibições, quando necessárias; não estão participando da vida de seus filhos,
pois cada vez têm menos tempo.
Com relação a isso, cabe prestar atenção no que se refere ao sentido de
família, pois, em que pesem as novas configurações, isso não quer dizer
ausência. A presença da família sempre foi e é, até agora, como a entende-
134 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 135
Eluza Maria Nardino Enck
mos, elemento fundamental para o desenvolvimento bio-psico-social da
criança.
Vivemos uma sensação, ao olharmos em nossa volta, de que muitos
adultos parecem incomodar-se com a infância, porque ela requer tempo,
dedicação, traz momentos de dor, frustração, requer doação e, principalmente, mobiliza nos adultos sentimentos de impotência, dependência, incerteza, que parece ser tudo o que nos tempos atuais não pode ser sentido.
A palavra de ordem é ter êxito, ser independente e feliz. Meltzer fala de
uma categoria de funcionamento que busca o êxito como forma de livrar-se
da ansiedade, da confusão, da desilusão, da frustração.
Mas por que esses sentimentos se transformaram, em nossos dias, em
algo tão estarrecedor?
O sentir passou a ser sinônimo de incapacidade, de perda de tempo, de
ineficiência, e com isso os sentimentos precisam também ser “blindados”,
afastados, negados. A falta de empatia se torna inevitável, juntamente com
a incompreensão, conseqüência do afastamento do si mesmo, e aí a confusão, a perda dos referenciais. Todos estão muito confusos; os pais, a escola,
a sociedade, o que deixa aqueles, adolescentes e crianças, que por seu momento de vida estão naturalmente confusos, ainda mais confusos, angustiados, sem parâmetros e diretrizes com os quais se orientar.
A antecipação de etapas entra como uma defesa na busca de sentir-se
menos necessitado do adulto, de, por outro lado, dar conta do crescimento
rápido, desejado pelos pais, de ser eficiente, capaz, bem-sucedido, bonito,
desejado sexualmente e atender às altas expectativas familiares.
Posteriormente, a adolescência se prolonga indefinidamente, pois o
jovem não se sente capaz de enfrentar o mundo com as falhas e os déficits
que foram ficando ao longo do desenvolvimento.
Diz-se que a adolescência está se antecipando à puberdade, que meninos e, principalmente, meninas estão adolescendo antes de empubescer.
Será que podemos realmente considerar essas manifestações uma verdadeira adolescência, como todo o complexo processo que lhe é peculiar? É
algo sobre o que aprofundar nossos estudos, pois a possibilidade é de que,
O ENCURTAMENTO
DA
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PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
antes de tudo, possa se estar configurando uma pseudo-adolescência, desprovida do desenvolvimento psíquico, dos processos identificatórios e
desidentificatórios genuínos que levam ao amadurecimento e à aquisição
de uma identidade adulta.
Vem-se observando que a identidade adulta daqueles de quem se esperaria o cuidado e a responsabilidade sobre a formação das crianças e adolescentes encontra-se confusa, muitas vezes infantilizada, com fortes traços narcisistas.
Erikson (1950), em “Infância e Sociedade”, diz que todo indivíduo já
foi bebê, criança, adolescente, e traz para o quadro social em que vive as
pulsões, as ansiedades e as defesas mentais que lhes pertencem, as quais
são mobilizadas nas atitudes desta sociedade para com suas crianças e jovens. Diz também que um temor de perda de identidade domina grande
parte de nossa motivação irracional; esse temor invoca grande montante de
ansiedade que é deixada em cada indivíduo pelas vivências de sua infância.
Assim, massas de pessoas tornam-se prontas a buscar salvação em pseudoidentidades. Uma identidade cultural consistente poderia ancorar essa busca e produzir um maior equilíbrio psicossocial.
Isso nos faz pensar em como está nossa identidade cultural; se nossa
sociedade, com mudanças tão bruscas, rápidas e muitas vezes infundadas,
com perda de valores básicos e fundamentais, não está potencializando
temores, ansiedades, inseguranças que, por sua vez ativam modos de defesa e conseqüentes comportamentos mais característicos de funcionamentos imaturos e/ou narcisistas.
E, para finalizar, me remeto a Dalai Lama, que com sua sabedoria nos
diz:
Nada me surpreende mais que o homem,
Ele acaba com sua saúde para conseguir dinheiro,
Depois, gasta seu dinheiro para recuperar a saúde.
Vive como se nunca fosse morrer. E morre sem ter vivido.
(LAMA apud PELLEGRINI, 2007)
136 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Abstract: This paper aims to raise theoretical aspects of the latency and pubescent periods,
from Freud and Anna’s Freud conceptions through Meltzer to more recent developments,
mainly from Urribari, Bornstein and Etchegoyen. It emphasizes the importance of these
two phases of development on the individual formation and its consequences caused by
alterations which might happen in its course. It follows some data after researches of
professionals who work with this kind of patient, ending on a discussion which integrates
theoretical ideas with the findings on investigation.
Keywords: Latency. Puberty. Sublimation.
El acortamiento de la latencia y la pubertad precoz: un problema de
la actualidad
Resumen: El siquiente trabajo se propone a discutir los aspectos teóricos y la importancia
de la latencia y de la pubertad para el desarrollo y la formación del individuo, además de
destacar las consecuencias de posibles alteraciones en ese percurso. Parte de las
concepciones de Freud e de Anna Freud acerca de ambas fases, siguiendo por los ideas de
Meltzer, hasta incluir desarrollos más recientes como Urribarri, Bornstein y Etchegoyen.
A continuación, presenta los datas oriundos de una investigación realizada entre
psicoanalistas que se dedican a esas etapas del desarrollo y, por fin, una discusión que
busca las integrar las concepciones teóricas con los hallazgos de la investigación.
Palabras-llave: Latencia. Pubertad. Sublimación.
Referências
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ERIKSON, E. Childhood and Society. New York: Paladin Grafton Books. 1950.
ETCHEGOYEN, A. La latência: una reconsideracion. In: LIVRO ANUAL DE
PSICOANÁLISIS, v. 9, 1993. p.21-32.
FREUD, A. Normalidad y Patologia em la Niñez. Buenos: Paidós, 1973.
FREUD, S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1969. V. 7.
LÓPEZ, V.; NUNES, M.L.T. A Latência e sua relação com a cultura. Revista
Psicologia Argumento, Curitiba, v. 21, n. 34, p. 27-34, 2003.
MELTZER, D. Seminários de Novara. Psicopatologia da Adolescência. In: Cadernos De Psicoterapia Infantil, cap. 2.
PELLEGRINI, L. Editorial. Revista Planeta. Disponível em: <http://
www.terra.com.br/revistaplaneta/edições/414/mat_414.htm> Acesso em: 30 mar.
07
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 137
Eluza Maria Nardino Enck
Shortened latency and the precocious puberty: a current problem
O ENCURTAMENTO
DA
LATÊNCIA
E A
PUBERDADE PRECOCE:
UM PROBLEMA DOS TEMPOS ATUAIS
URRIBARI, R. Descorriendo el velo sobre el trabajo de la latencia. Revista Fepal,
vol 3,1999.
. Notas sobre puberdade, traumatismo y representación. Revista Uruguaya
de Psicoanalisis, n. 9, 1999.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Eluza Maria Nardino Enck
Av. Cristóvão Colombo, 2937/807
90560-005 Porto Alegre – RS – Brasil
Fone (51) 3342-8365
E-mail: [email protected]
138 Psicanálise v. 9, n. 1, p.119-138, 2007
Fernando Rocha**
Resumo: O autor trata do desejo parental que é revelado na estrutura
narcisista do filho/filha e afirma que a semeadura do narcisismo dos
pais é essencial para o florescimento do sujeito do desejo, devido a que
o eu aparece/surge do “buraco narcísico dos pais”. Aborda a experiência clínica com uma jovem paciente que vivia sob a proteção de uma
“interdição do pensamento” devastadora, referente a um segredo familiar. A revelação do segredo/verdade tem um efeito traumático, que provoca uma desorganização psíquica com desagregação do pensamento.
Relata o caminho percorrido nessa relação analítica.
Palavras-chave: Narcisismo. Interdição do Pensamento. Transferência.
Pai Simbólico.
“Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de
todas as fontes.”
Guimarães Rosa
“[...] sinto ligeira falta
dos verdes olhos dos quais não provim
do sangue quente que não me corre
mas está próximo por fios invisíveis
por qualidade intrínseca à afetividade [...]”
Flora
O presente texto, intitulado “Vicissitudes das sementes
de Narciso e clínica psicanalítica”, refere-se a uma longa e
* Trabalho apresentado nas “Reflexões psicanalíticas” no XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise, de 09 a 12 de maio de 2007, em Porto Alegre, RS.
** Membro Efetivo e Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de
Janeiro.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 139
Fernando Rocha
Vicissitudes das Sementes de
Narciso e Clínica Psicanalítica*
VICISSITUDES
DAS
SEMENTES
DE
NARCISO
E
CLÍNICA PSICANALÍTICA
já antiga experiência clínica, e aborda o quanto o desejo parental é revelado
na estrutura narcísica.
Para Freud (1914) (1974, p. 90):
[...] uma unidade comparável ao eu não pode existir no indivíduo desde o começo: o eu tem que ser desenvolvido. Contudo, os impulsos
auto-eróticos ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo – uma nova ação psíquica – a fim de provocar o narcisismo [...].
O narcisismo, portanto, é condição para a unidade e a estrutura do eu.
Em “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução” (FREUD, 1914 apud
BARROS, 1991, p. 4)1, Freud o aborda como complemento libidinal da
pulsão de autoconservação, presente em todo indivíduo humano.
A semeadura do narcisismo dos pais é essencial para o florescimento
do sujeito do desejo – florescimento do Édipo. Em 1914 (no mesmo texto),
Freud diz que “O narcisismo primário das crianças é uma revivência e reprodução do narcisismo dos próprios pais” (1974, p. 107). Desta forma, “o
narcisismo, tendo origem no desejo parental, é um investimento e uma posição do desejo dos pais relativo ao filho, que assinala o lugar que o filho
deve ocupar (BARROS, 1991, p. 4): “a criança concretizará os sonhos que
os pais jamais realizaram” ( FREUD (1914) 1974, p.107). Assim, o
narcisismo é um lugar predeterminado, prévio ao próprio sujeito, já que é
anterior ao nascimento do filho e coloca para o sujeito um legado, uma
herança, em que o Eu surge do buraco narcísico dos pais (BARROS, 1991).
O narcisismo primário seria, então, constituinte do sujeito portador de uma
história que lhe foi legada.
A paciente que denominei Flora, de origem estrangeira, acabara de
completar 18 anos quando chegou pela primeira vez ao meu consultório.
Caminhando e gesticulando com movimentos lentos, seu olhar expressava
1
Tradução livre do texto original: Zur einführung des naszissmus. “Esse título sugere uma reflexão sobre uma introdução ao Narcisismo. Começa com sobre, uma preposição – pré-posição. É
este o lugar do Narcisismo, é um pré-lugar.”
140 Psicanálise v. 9, n. 1, p.139-153, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 141
Fernando Rocha
certa amargura. Sua fala era vagarosa, hesitante; o tom baixo e as frases
entrecortadas por longos silêncios. Os traços bem desenhados de seu rosto
evocavam fragilidade e delicadeza.
Em sua primeira entrevista, queixou-se de dificuldades de concentração e da sensação de distanciamento. Contou, quase em tom de queixa, que
os pais haviam se separado quando ela estava com três anos; que embora
morando com a mãe, continuou mantendo estreito contato com o pai, com
quem se encontrava com freqüência, ficando na casa dele sempre que ambos desejavam. Participando ativamente do cotidiano da filha, o pai foi
apresentado por Flora como interessado e participante.
Relatou também que tanto o pai quanto a mãe reclamavam de seu
“fechamento”. Durante as primeiras entrevistas, pude observar que Flora
parecia ter querido muito chegar até ali ao consultório. Indaguei-me acerca
das razões de ela haver insistido tanto com a mãe para vir à análise naquele
momento de sua vida. Para mim, essas primeiras entrevistas lançavam Flora em uma experiência que a fazia mergulhar em nova modalidade de fala
e escuta que parecia interessá-la e, ao mesmo tempo, amedrontá-la. Diante
de seus silêncios, hesitações, “fechamento”, senti certo desconforto. Todavia, ao mesmo tempo em que experimentava um mal-estar, o desejo de
analista estava sendo mantido. Flora me despertava curiosidade e interesse.
Nesse período, recordei-me de algo que escrevera Pontalis (1974) sobre a analisabilidade. Ele indagava se o progresso de uma análise não dependia essencialmente do que pudesse advir, no espaço analítico, da dupla
paciente–analista, e se os limites do analisável não estariam na dependência dos limites do analista.
Flora guardava algo a ser revelado, mas que ela não sabia o quê. Compreendi, a posteriori, que ela sabia de algo, sem saber que sabia. A oferta
de um espaço para a palavra e para a escuta, no qual a iniciativa é deixada
ao paciente, a ausência de reações habituais e o estímulo associativo ou
interpretativo pareceram possibilitar-lhe utilizar a situação de análise.
Ao longo dos dois primeiros meses de tratamento, ela deteve-se principalmente em sua dificuldade de contato com o outro e nas dificuldades
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de falar e expressar suas opiniões e anseios e de pensar.
No final desse segundo mês, uma revelação explodiu/implodiu como
uma bomba em Flora, vindo perturbar intensamente sua vida. Ela chegou
para uma sessão angustiada e inquieta, movimentando-se muito na poltrona. Em seguida, comunicou-me a revelação que desencadeou sua grande
perturbação: ela não era filha biológica do pai. Contou-me que seus pais,
seguindo o conselho do analista da mãe, haviam tomado a decisão de revelar-lhe esse segredo familiar: o casal desejava muito ter um filho, mas,
devido à infertilidade do pai, a mãe viajara para o exterior (do seu país de
origem) para fazer uma inseminação in vitro com espermatozóide de laboratório, de doador desconhecido.
Compreendi a urgência de sua solicitação para tratar-se e por que a
mãe tentava dissuadi-la, segundo Flora informou-me nas entrevistas preliminares. Então, a vinda dela para a análise estava ligada à questão do saber: ela não sabia o que sabia. Veio à análise para suportar ouvir a revelação
(memória ocultada).
A revelação do segredo/verdade, de efeito traumático, num primeiro
momento a paralisou, para, em seguida, torná-la intensamente angustiada,
agitada e insone. Flora não conseguia dominar nem elaborar psiquicamente o excesso causado pela revelação que provocara uma desorganização em
seu equilíbrio psíquico. Daí o pensamento expressar-se desagregadamente.
Algum tempo depois, ao falar sobre como vivenciara o próprio pensamento naquela época, ela disse: “O que eu pensava chegava misturado com
imagens ou com sensações, ficava difícil verbalizar”.
A experiência traumática de Flora confirma que a questão do trauma é
sempre a posteriori, tal como afirma Freud. Na revelação do segredo, atualiza-se o que é da ordem do trauma. Ou seja, os traumatismos agem ‘só
depois’, como experiências novas. O ‘só depois’2 golpeia a realidade objetiva. Freud nos diz que é devido a um segundo acontecimento (que, no caso
de minha paciente, é a revelação do segredo) que a lembrança infantil ad-
2
Nachträglich.
142 Psicanálise v. 9, n. 1, p.139-153, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 143
Fernando Rocha
quire valor patogênico: provoca sintoma (FREUD, (1917-1919) 1974).
Os pais de Flora me procuraram muito angustiados, dizendo que teriam sido aconselhados, mais uma vez, pelo analista da mãe, a hospitalizá-la
em uma clínica psiquiátrica. Ponderei que deveriam tentar um tratamento
em consultório, com psiquiatra, antes de tomar a medida da hospitalização,
que me parecia radical e precipitada. Indiquei um psiquiatra de minha confiança, que a medicou e que continuou acompanhando-a do ponto de vista
psiquiátrico. Este psiquiatra teve uma atuação muito positiva em todo o
decurso da fase mais aguda da descompensação de Flora, demonstrando
bom senso, competência, tanto no auxílio medicamentoso como no que
concerne ao apoio aos pais. A aposta no inconsciente antecipava em mim a
certeza de que um processo analítico poderia se desenvolver, em vez de ser
impedido por decisões precipitadas.
Em entrevista solicitada pela mãe, esta relatou que ela e o marido haviam passado os oito primeiros anos do casamento tentando, sem êxito,
uma gravidez. Nos primeiros anos, achavam que o problema era dela. Depois, ficou esclarecido que o marido tinha diminuição da velocidade dos
espermatozóides. Por isso, submeteu-se a vários tratamentos, sem resultados positivos. Após várias consultas médicas sem encontrar solução, o casal teve a idéia inicial de adoção. Depois, a conselho do seu médico clínico,
viajaram para o exterior para consulta em um grande centro sobre fertilidade. Nesse local, consideraram o problema do marido insolúvel e sugeriram
inseminação in vitro. Primeiramente, foi tentada a inseminação com
espermatozóides do marido; mas não deu certo. Entre a possibilidade de
adoção e a inseminação in vitro com espermatozóide de desconhecido, o
marido optou pela inseminação, porque, segundo ele, “o filho seria, geneticamente, 50% da mãe”. Esta ficou muito feliz na gravidez e o parto transcorreu bem (sic). Ela fez questão de afirmar que Flora tinha sido um “bebê
normal e calminho” e que ela a amamentara ao seio durante dez meses.
Relatou ainda que o ex-marido fora companheiro, mas que se sentira
inferiorizado e com ciúmes do espermatozóide que resultou na gravidez.
Alguns meses depois do nascimento do bebê, o casal começou a se
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desentender. Quando Flora tinha três anos, o pai deixou a casa. Com a
separação, ficou estabelecido que Flora ficaria morando na casa da mãe e
teria a companhia do pai uma vez por semana, e além de um final de semana a cada quinze dias. Segundo a mãe, no momento da saída do pai, ela
ficou muito deprimida, tendo, inclusive, negligenciado os cuidados maternos para com a criança, que ficava mais em companhia de uma babá, à qual
Flora se sente ligada até hoje. Acrescentou, ainda, que muitas vezes tinha
preocupações com as possíveis implicações genéticas da filha, devido à
inseminação anônima. Explicou que tais preocupações referiam-se a eventuais doenças físicas e mentais que poderiam ter sido transmitidas. Ela temia, juntamente com o marido, que alguém comentasse com Flora sobre
suas origens e que ela ficasse sabendo por outrem. E acrescentou: “Aconselhada por meu analista, resolvi, em comum acordo com meu marido,
dizer a verdade para minha filha”.
Na época, considerei a hipótese de que talvez o desejo insistente de
Flora de estar em análise fosse uma medida de proteção para poder escutar
a verdade que talvez ela já soubesse, sem saber.
Contou-me ainda a mãe que, certo dia, após “a revelação”, estando
com a filha, entraram em uma igreja no momento em que o padre estava
celebrando uma missa. Flora caminhou em direção ao altar e, chegando até
o padre, pediu-lhe, em voz alta, para que ele casasse novamente os seus
pais. Daí por diante, acentuou um comportamento cada vez mais bizarro.
Nesse período, interessou-se pelo livro “O Mundo de Sofia – Uma aventura na filosofia” (GAARDER, 1995), que narra a história de um pai que escrevia cartas anônimas para a filha. Ela não largava este livro, e isso parecia ser uma maneira de pesquisar e de tentar encontrar explicações para o
enigma de suas origens. Em seguida, Flora iniciou seus estudos universitários em filosofia.
Durante o curso, ausentou-se por vários meses das aulas e abandonou
várias de suas atividades, como o curso de inglês, a aula de violão, a natação, etc. Períodos de calmaria eram alternados com outros nos quais parecia estar invadida pelos processos primários do inconsciente. A intensidade
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Se o Narcisismo alude necessariamente ao olhar, ao espaço ótico constituído por um intercâmbio de fascinação recíproca entre a mãe e o
bebê, o olhar da mãe é, desde o início do encontro com o filho, o veículo privilegiado para expressar e exprimir toda a realidade do desejo
materno. O olhar do bebê que olha esse olhar vai construir uma
dialética sempre presente na esfera humana, um ilusório que é
objetivável: o Eu é um objeto, é o que se percebe, o imediato da sensação e a imagem do eu está na imagem antecipada do Outro. Nesse
espaço ótico, constitui-se o intercâmbio libidinal. O olhar é, então, um
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de sua angústia era tal, que por vezes temi que ela pudesse tentar o suicídio
para ver-se livre do sofrimento causado pela angústia. Os pais tinham de
vigiá-la de perto. Certa vez, disse que tinha uma sensação súbita de estar
saindo do seu corpo. Tudo isso causava grande preocupação.
Se o divórcio entre teoria e prática é incompatível com a função do
trabalho analítico, o trabalho de teorização numa análise deve ser concebido como um trabalho conjunto de teorização flutuante, correlato àquele da
atenção flutuante. Penso que é sobretudo na transferência que o diagnóstico se revela.
A verdade revelada a Flora – ainda que ela já “soubesse” – provocaralhe uma espécie de ‘tsunami psíquico’. É possível imaginar que algo no
olhar de seu pai deixava emanar suas inseguranças e hesitações em relação
ao lugar paterno. Todavia, para este pai, Flora era a sua filha. Foi ele quem
sustentou para ela a imagem de um pai simbólico. Podemos aventar que o
investimento libidinal do casal parental no bebê-Flora funcionou como semente simbólica. Semente jogada pelos pais naquela carne-infans. As vicissitudes das sementes de Narciso. Como já dito, Freud nos indica que o
Narcisismo é fruto da projeção do narcisismo dos pais. É, assim, um lugar
predeterminado, prévio ao próprio sujeito.
Enaide Barros nos lembra que toda essa posição, determinada no ideal
narcísico dos pais, configura o olhar que dirige e aponta o lugar que o bebê
deverá ocupar, constituindo a função materna como aquela que captura o
filho – ele existe como ela o vê.
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herdeiro do cordão umbilical, é um conector que, já não sendo contínuo como o cordão umbilical, é de uma materialidade não perceptível
a olho nu. (BARROS, 1990, p. 200).
O cordão umbilical representa a vida biológica enquanto o olhar é o
responsável pela vida psíquica.
O Olhar Enigmático do Pai
Quando Flora recebeu a notícia de que o pai não era o pai biológico, a
imagem de pai foi estilhaçada, o que provocou um grande abalo na estrutura do seu narcisismo. Como se ela tivesse ficado sem pai. Contudo, trata-se
da imagem do pai, ou do pai imaginário. Supomos que, para Flora, algo
ficava sinalizado no olhar do pai, algo enigmático (algo ocultado, ou clandestino). Olhar que talvez revelasse a infertilidade, vivenciada como impotência. Talvez Flora tenha captado no olhar do pai o que ela significava, em
parte, para ele: uma extensão de sua infertilidade, uma ferida narcísica.
Pois é na relação com o desejo que o olhar está comprometido, aquilo
que vai marcar o início do percurso de uma subjetividade, dentro da
estrutura do narcisismo. Os olhares nos “foto-grafam”, diz Lacan, inscrevem-se em nós, e é nessa grafia que, constituindo uma escrita, o
sujeito tenta percorrer esse olhar desejo. [...] vida e morte (BARROS,
1990).
Do Cordão Umbilical à Maria Sem-Vergonha
Durante o seu sexto ano de análise, Flora permanecia silente em suas
sessões. A saída do silêncio parecia-lhe muito difícil e a passagem ao discurso coisa muito arriscada. Por vezes, ela ficava me olhando fixamente;
eu intuía ser importante para ela ter a constância do meu olhar. Se, como
Narciso, Flora parecia precisar da placidez e da constância de uma fonte
para se assegurar, se re-estruturar, eu percebia o seu olhar também como
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um olhar perscrutador. Diante da vulnerabilidade daquele período, procurei sustentar o olhar, o que nem sempre era fácil.
Certo dia, ela entrou no consultório quase se arrastando e carregando
seu violão, que iria usar em uma aula, após a sessão de análise. Depois de
longo silêncio, decidi estimulá-la, perguntando qual música ela estava trabalhando em sua aula de violão. Ao me responder, notei que Flora se
descontraiu um pouco. Perguntei se gostaria de tocá-la ali. Permaneceu em
silêncio por um tempo. Depois, levantou a cabeça, olhou-me, pôs o violão
sobre os joelhos, como se fosse iniciar a tocar. Mas parou, estática. Resolvi
levantar-me e buscar o meu violão. Dedilhei algumas notas. Flora se interessou e começou a tocar, e, depois, a cantar baixinho, acompanhando-se.
Resolvi cantar junto, fazendo o contra canto da música, tal como Eco,
acompanhando ao violão. Senti que houve um encontro. Encontro que a
transferência suporta e revela: o pai desconhecido ou temporariamente perdido está em frente, na posição de contracanto, presente. Não num canto
imaginário, mas na melodia que acompanha a voz – manifestação do falante. Não um espermatozóide, mas um pai que, embora tenha sido impotente
diante dela (do sujeito), restabelece-se e restabelece também uma identificação – traços simbólicos.
Acredito que a capacidade de enfrentar, de atravessar experiências regressivas e mesmo de despersonalização, no decurso da experiência analítica, traz, como afirma Michel De M´Uzan (2006) (tradução nossa), uma
significação positiva, uma atitude singular para a reorganização psíquica
do paciente. Para este autor, “é uma chance, que se abre para o paciente, de
um universo ao qual, até então, ele só tivera acesso pela contemplação das
obras de arte”.
Para que essa oportunidade se afirme, diz De M´Uzan (2006) (tradução nossa), “faz-se preciso que o analista, vencendo suas resistências, esteja em situação de manter com o seu paciente um grau suficiente de ‘comunicação participativa’”.
Eu percebia que era importante sustentar o olhar perscrutador de Flora. O que buscava ela no meu olhar? Levantei a hipótese de que, quando ela
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olhava o pai, tinha, por vezes, como resposta, algo como: “Eu não estou
seguro deste lugar de pai; eu sou o pai, mas não sou o pai”. No campo
transferencial, inicialmente, eu sou para Flora como o lago pra Narciso, um
espelho. “Primeiramente”, como diz Lie Tseu, “a forma se desloca, nasce
então não uma nova forma, mas a sombra: o som se desloca; nasce então
não um novo som, mas o eco; o não-ser se move, ele nasce não mais do
não-ser, mas do ser” (LIE TSEU, 1979, p. 45) (tradução nossa). Como Eco,
o analista é, simbolicamente, o anteparo que, ao devolver a imagem, possibilita ao outro se ouvir, e a partir de então tomar consciência de si.
Então, eu estimulei Flora para que cantasse. Quando me levantei e
trouxe o violão, dedilhei algumas notas. Além dos elementos da minha
transferência, mostrei-me como ponto de identificação. E ela começou a
cantar. Simbolicamente, a “boa sedução paterna” surtiu efeitos. Fiz um
contracanto e, enquanto Eco, fui suporte, ampliei, apoiei o corpo
fragilizado, partido, esfacelado. Dei corpo através da ampliação do som. É
inicialmente fazendo eco que aparece a questão da identificação com o pai.
Ela já havia expressado algo como: “Puxa, em tantas coisas eu pensava que
era igual ao meu pai, mas não sou, já que ele não é o meu pai biológico”. É
como se ela tivesse perdido as identificações e, através da transferência,
estivesse recuperando o pai simbólico.
Na sessão seguinte, de modo associativo, Flora lembrou de uma história que o pai lhe havia contado quando ela era criança. Certo dia, o pai lhe
disse que havia plantado o cordão umbilical dela – “as suas sementes” –
num canteiro, bem em frente à casa de sua mãe, avó de Flora, e que das
sementes haviam brotado florezinhas ‘maria-sem-vergonha’. Repito para
ela: maria-sem-vergonha, e ela sorri. Através do movimento transferencial,
o nosso ‘encontro musical’ propiciara uma associação, mobilizara uma
lembrança infantil, com conteúdos edípicos.
Enquanto a semente do pai biológico nem sequer nome tem, é apenas
um espermatozóide, a lembrança do pai cultural-simbólico contando a história da maria-sem-vergonha surge de uma lembrança associativa com a
“sedução simbólica” do pai. Plantou o cordão e nasceu a florzinha, nasceu
148 Psicanálise v. 9, n. 1, p.139-153, 2007
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uma coisa viva. Transferencialmente, parece ter sido em conseqüência de
uma lembrança, ligada a uma associação, que ela se mostrou sem vergonha. Ela perdeu a inibição e cantou. Assim, ela se mostrou sem vergonha;
ou seja, houve uma vivência de sedução entre pai e filha na transferência, e
as sementes plantadas na análise frutificaram como frutos edípicos. Fui
Eco só no contracanto, pois me adiantei, quando fui buscar o violão e comecei a dedilhar a música que ela estava estudando.
Em outra sessão, parecendo apoiar-se no movimento transferencial,
Flora questionou a figura paterna: “Eu não sei o que meu pai acha do fato
de não ser o meu pai de sempre. [...] “Eu gostaria que ele fosse o meu pai de
sempre, que as fantasias que fiz com ele enquanto pai fossem de verdade”.
Em seguida, ao pedir-lhe que falasse mais a respeito, ela disse: “Essa realidade quebrou a possibilidade da fantasia. Meu pai me disse que se perguntou se eu não teria curiosidade de conhecer a pessoa que doou o esperma,
pois ele próprio não teria tal curiosidade. Quando eles me fizeram a revelação, meu pai me pediu para guardar segredo, que eu não contasse para
ninguém. Eu não gostaria de ter relação com outra pessoa como pai”. Indaguei: Você acha que ele, além de ser seu pai, desejava muito ser seu pai
biológico? Respondeu: “Tem o fato de ele não poder ter filhos. Não sei
como ele se sente com isso. (Silêncio.) Lembro-me deles me contando. Eu
busquei análise por causa do lance do vestibular; tinha de escolher que
vestibular fazer, mas era como se não soubesse o sentido do que escolhesse. Tinha também dificuldades para me concentrar”. Falei: “Você se queixava de um distanciamento, dificuldade para pensar, lembra? Talvez para
distanciar-se do que lhe seria revelado?” Flora: “Quando meus pais me
contaram, foi o momento em que mais me senti fora de mim. Tenho uma
lembrança daquele momento como uma visão de fora”. Digo-lhe: “Você
vivenciou a versão contada por seus pais como se você tivesse ficado de
fora”.
Habitualmente, Flora me pagava as sessões com cheque assinado por
um dos pais. No final dessa sessão, que era a última do mês, ela me pagou,
pela primeira vez, com um cheque seu. E disse: “Eu agora tenho uma conta
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bancária, tenho uma conta conjunta com meu pai”. Penso: É esse pai comjunto que ela recuperou na análise.
Embora a imagem do pai tenha sido estilhaçada com a revelação de
uma verdade que não lhe coube, ela se re-encontra com o seu pai simbólico
através da transferência. Nesse momento, a indagação que havia feito a
mim mesmo a respeito de uma possível associação de Flora entre o
questionamento que fez à figura paterna e a transferência, com o analista,
fora afastada. Tudo indicava que a minha intervenção ajudara a paciente a
recuperar o pai simbólico.
Como lembra ainda De M’ Uzan (2006)(tradução nossa),
[...] com a experiência dos anos de prática, e mesmo no decorrer de
uma sessão, o analista, em virtude da profundidade das trocas com seu
paciente, evolui. Ou seja, o funcionamento psíquico do analista sofre
transformações sobre as quais ele só toma consciência secundariamente, e correspondem às mudanças observáveis no seu paciente.
Ainda nesse período, Flora chega atrasada a uma sessão e diz: “Vou
deitar hoje no divã. Tive um sonho estranho. Os talibans invadiam o Brasil
para tomarem a identidade dos brasileiros. Eu estava na rua com o meu pai,
e aí eles (os talibans) me pegavam e pediam as nossas carteiras de identidade. Meu pai entregava a dele e devolvia a minha. Eles notavam esse movimento. Acordei! Eu dou a minha identidade para meu pai e ele me devolve.
É como se ele fosse me lembrando quem eu sou”. Depois, disse, emocionada, que não queria mais continuar tomando medicamentos, e que falou isso
para o pai. Ele lembrou-lhe do dia em que ela passara mais de uma hora a
escolher as roupas para fazer uma mala para viajar.
Flora viveu toda a vida sob a pressão do segredo familiar, carregando
uma interdição de pensar que, muitas vezes, a levava a vivenciar um vazio de pensamento, limitando e diminuindo as suas capacidades de uma
maneira generalizada. A elaboração psíquica realizada no processo analítico propiciou-lhe a liberação desse interdito, abrindo-lhe novos horizontes
para um viver criativo.
150 Psicanálise v. 9, n. 1, p.139-153, 2007
Sinto ligeira falta
dos verdes olhos dos quais não provim
do sangue quente que não me corre
mas está próximo por fios invisíveis
por qualidade intrínseca à afetividade
Sinto uma ligeira culpa
momentos distantes que assim o fiz,
momentos gelados em pedra, mas quentes em emoção
momentos em azul claro apatia e vermelho cólera
por não me gerar em ato, mas apenas no coração
Sinto ligeira saudade
dos devires criança em pura idade
dos mistérios revestidos de fantasia
de meu pai em explícita harmonia
por caminhos certos em caracóis
e sonhos límpidos sob os lençóis
Sinto ligeiro medo
de não saber a totalidade do segredo
como se obscuro buscasse no dedo
digitais minhas
apenas para ver se ainda existo
ou se a vida é mesmo um sonho
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 151
Fernando Rocha
Um dia, Flora sentou-se, olhou-me, abriu vagarosamente a bolsa e
dela retirou um papel. Entregando-o a mim, disse: “Eu fiz uma poesia”. Li
sua poesia em silêncio, intimamente emocionado. Depois, pedi-lhe que a
lesse. Ei-la:
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Vicissitudes of narcissus’ seeds and the psychoanalytic clinic
Abstract: The author approaches the parental desire that is revealed within the daughter/
son’s narcissistic structure, and affirms that the sowing of the parents’ narcissism is essential
for the flourishing of the subject of desire, since the self appears from the parents’ narcissistic
gap/hole. He narrates/approaches his clinical experience with a young patient who lived
under the aegis of a devastating ‘interdiction of thinking’ regarding a family secret. The
revelation of the secret / truth has a traumatic effect, which provokes psychic disorganization
and thinking dissociation. He relates the path of such analytical relationship.
Key-words: Narcissism. Interdiction of Thinking. Transference. Symbolic Father.
Vicisitudes de las semillas de narciso y la clínica psicoanalítica
Resumen: El autor trata del deseo parental que es revelado en la de estructura narcisica
del hijo/hija, y afirma que la sembradura del narcisismo de los padres es esencial para el
florescimiento del sujeto del deseo, debido a que el yo aparece/surge del ‘agujero narcísico
de los padres’. Él aborda la experiencia clínica con una joven paciente que vivia bajo la
protección de un devastador ‘interdiccion del pensamiento’ relativo/referente a un secreto
de familia. La revelación del secreto / verdad tiene un efecto traumático, que provoca una
desorganización psiquica con desagregacion del pensamiento. Relata el camino percorrido en esa relación analítica.
Palavras–llave: Narcisismo. Interdicción del Pensamiento. Transferencia; Padre Simbólico.
Referências
BARROS, E. Eu Narciso: outro Édipo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1991.
. A função do olhar como modeladora dos sistemas de significação. Revista Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, n. 24, 1990.
DE M´UZAN, M. Invite a la fréquentation des ombres. Psychanalyse en Europa. Bulletin, Paris, n.60, 2006.
FREUD, S. (1914). Sobre o Narcisismo: uma introdução. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1974. vol. 14.
. História de uma Neurose Infantil. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
vol.17
GAARDER, J. O Mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
LIE TSEU (Maître Lie). Vrai Classique du Vide Parfait. Revue Française de
Psycchanayse, 1/79, Paris,
152 Psicanálise v. 9, n. 1, p.139-153, 2007
Artigo
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Fernando Rocha
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 153
Fernando Rocha
PONTALIS, J.-B. Bornes et Confins? Nouvelle Revue de Psychanalyse: limites
de l´analysable. Paris, n. 10, p. 5-18, 1974.
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154 Psicanálise v. 9, n. 1, p.139-153, 2007
Gley P. Costa*
Resumo: Neste artigo, o autor analisa as diferenças entre a família tradicional e a família contemporânea em suas relações com a escola e a
sociedade. Chama a atenção para a inversão de valores observada nas
relações entre pais e filhos como decorrência de um fenômeno típico da
pós-modernidade chamado moda. Aborda a questão do corpo no mundo atual, destacando sua equiparação a um produto de consumo. Enfatiza
a superficialidade das relações amorosas e a sua padronização nas diferentes idades como decorrência do fenômeno da globalização. Descreve as funções parentais e enfrenta o tema da adoção de crianças por
casais homossexuais tecendo considerações sobre a homossexualidade
na escola, envolvendo alunos e professores. Finalmente pondera que,
apesar das mudanças, a família continua sendo fundamental para a
estruturação psíquica do indivíduo, mas seus verdadeiros valores podem ser resgatados nas novas famílias criadas após uma separação.
Palavras-chave: Família. Escola. Pós-modernidade. Homossexualidade. Adoção. Divórcio.
Até a modernidade, família e sociedade influenciavamse mutuamente, sendo a escola um dos canais de comunicação entre essas duas instituições. Isso acontecia porque era
principalmente na escola que a criança e o adolescente tomavam conhecimento do outro diferente – sendo este outro
diferente os colegas, suas famílias e o próprio conhecimento adquirido por meio do professor. Contudo, atualmente,
observa-se um avassalador declínio da influência familiar, a
qual tende a se tornar mera repetidora de valores e condutas
* Médico Psiquiatra e Psicanalista. Membro Titular em Função Didática da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 155
Gley P. Costa
Família, Escola e Sociedade:
uma reflexão psicanalítica
FAMÍLIA, ESCOLA
E
SOCIEDADE:
UMA REFLEXÃO PSICANALÍTICA
ditadas pela sociedade. Como resultado, a família tradicional adquiriu nova
configuração que, pelas suas características, pode ser denominada de família pós-moderna, marcadamente influenciada pela propaganda, que gera
todos os dias novas necessidades para aquecer o consumo, e pela televisão,
que funciona como um novo e persuasivo membro familiar.
Um aspecto dessa nova família tutelada pela mídia é a inversão de
valores. Antes eram os pais que serviam de modelo para os filhos; atualmente são os filhos que modelam os pais, fruto de um fenômeno típico da
pós-modernidade chamado moda, que define estruturalmente a sociedade
de consumo. Nesse império em que tudo se torna rapidamente obsoleto, o
jovem, como se fosse um produto recém saído da fábrica, é oferecido como
um ideal de sucesso e felicidade. No passado, o importante para a sociedade era o que o adulto pensava; hoje, o importante é o que o jovem pode
fazer. O novo modelo masculino e feminino cultuado pela propaganda é o
físico, essencialmente o físico de um adolescente, de uma adolescente, não
mais o de um homem adulto, de uma mulher adulta. Ao mesmo tempo, o
corpo não é mais o corpo da pessoa, mas o corpo da moda. Empregando a
metáfora da molduragem, podemos dizer que a mídia, periodicamente, oferece uma moldura fashion de corpo à qual homens e mulheres devem enquadrar-se para não se sentirem habitantes de outro mundo. Estamos na era
do homo consumens, em que tudo deve ser descartável para possibilitar a
aquisição de produtos mais modernos.
As conseqüências dessa família submetida a uma verdadeira ditadura
do narcisismo se revelam na dificuldade dos jovens manterem uma relação
mais profunda, consistente e duradoura com outras pessoas e com as instituições, entre as quais, a escola – mais tarde, a faculdade. Eles se encontram embriagados pelo estilo de vida de uma sociedade que estimula e
estabelece como aceitável esse padrão de convivência. Faz algum tempo
que os adolescentes passaram a empregar o verbo “ficar” para definir um
relacionamento diferente do namoro, no qual não há compromisso nem,
principalmente, exclusividade. Existe apenas o contato físico. Em uma
única festa, é aceito que um rapaz ou uma moça fique com mais de um
156 Psicanálise v. 9, n. 1, p.155-173, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 157
Gley P. Costa
parceiro. O surpreendente é que esse comportamento passou a ser plagiado
pelos adultos que, naturalmente, incluíram em seu discurso o “ficar” dos
adolescentes. Agora, não só entre adolescentes, mas também entre adultos,
existem namorados e “ficantes” porque, no mundo globalizado, as idades
não marcam uma diferença. Isso se explica, como enfatiza o sociólogo
Zygmunt Bauman (2003), pelo fato de que nenhuma união de corpos pode,
por mais que se tente, escapar à moldura social, responsável pelos prazeres
e sofrimentos experimentados por homens e mulheres globalizados.
No entanto, quando falamos em novas configurações familiares, também temos presentes as que resultam dos casamentos realizados entre pessoas separadas ou divorciadas, juntando filhos de relacionamentos anteriores com os da união atual. Na falta de um melhor termo, essas famílias
costumam ser chamadas de “reconstituídas”. Contudo, não parece ser uma
denominação adequada, na medida em que configura uma nova e diferente
forma de estrutura familiar, apresentando em relação à tradicional não apenas as desvantagens de uma reconstituição, mas também as vantagens de
uma experiência que, em sua complexidade, mobiliza uma surpreendente
riqueza de sentimentos, podendo tornar as pessoas menos egoístas e mais
humanas. As relações entre os integrantes das famílias reconstituídas costumam ser mais tolerantes e democráticas, abrindo caminho para uma melhor aceitação das diferenças – condição fundamental de convivência em
grupo que vai influenciar favoravelmente a vida escolar da criança e do
adolescente.
Na família tradicional, como no nacionalismo tradicional, radical,
patrimonial e ensimesmado, constituem-se formas xenofóbicas de convivência humana cujas raízes se encontram na primitiva relação do bebê com
sua mãe, na qual todos, inclusive o pai, são considerados estranhos e ameaçadores. A idealização da família tradicional deve ser entendida como uma
organização defensiva contra o medo do abandono e da dissolução. Apesar
disso, a família continua sendo importante, necessária e indispensável para
a estruturação psíquica do indivíduo, mas os seus verdadeiros valores po-
FAMÍLIA, ESCOLA
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dem ser resgatados na formação das novas famílias criadas após uma separação.
No que diz respeito a este modelo familiar, a crítica mais
freqüentemente ouvida é que, para se desenvolver adequadamente, a criança necessita de um pai e de uma mãe, os quais servem de modelo para a
constituição de sua identidade, masculina ou feminina. Isso é verdade, mas
não é tudo. O desenvolvimento da criança depende, fundamentalmente, de
que os pais cumpram suas respectivas funções, caso contrário é como se
eles não existissem. No caso da mãe, sua principal função é compreender
as necessidades iniciais da criança e ajudá-la a construir uma subjetividade
e, no caso do pai, transmitir as leis da cultura e da sociedade, o que implica
a difícil tarefa que se observa na atualidade, que é a colocação de limites.
Existem situações em que a falta ou a inadequação de um dos pais é plenamente suprida pelo outro, e situações em que as funções se encontram invertidas ou que não são exercidas nem pelo pai nem pela mãe. Encontramos famílias em que essas funções são executadas por outras pessoas que,
desse modo, compensam as deficiências dos pais. Não faltam exemplos de
pais ausentes ou cujos papéis foram apenas decorativos, mas que os filhos
tiveram um desenvolvimento emocional satisfatório pelo fato dos avós,
tios, irmãos mais velhos ou mesmo empregados terem assumido plenamente suas precípuas funções. Não raro, essa substituição da dupla parental
é feita por uma única pessoa, capaz de reproduzir tanto o modelo materno
quanto o paterno.
Por outro lado, a realidade aponta que a maioria dos homossexuais
são filhos de casais heterossexuais, o que indica que dispor de uma figura
masculina para se identificar, no caso do menino, e de uma figura feminina
no caso da menina, não é suficiente: a questão da sexualidade infantil é
muito mais complexa. É provável que o melhor que os cuidadores (pais ou
substitutos) possam fazer é não agir intrusivamente ao procurar impor suas
próprias características como modelo, mas permitir que a criança se desenvolva com liberdade para explorar todas as suas potencialidades em múltiplos e variados relacionamentos, livre de preconceitos. A legislação brasi158 Psicanálise v. 9, n. 1, p.155-173, 2007
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leira já reconhece como entidades familiares não somente as constituídas
pela tríade pai-mãe-filho, mas também as monoparentais, ou seja, formada
apenas pela mãe e filho ou pai e filho. Da mesma forma, admite a adoção
por pessoas solteiras de ambos os sexos, sem questionar a orientação sexual. No momento em que for legalizado o casamento entre parceiros do
mesmo sexo, o caminho estará aberto para esses casais também adotarem
uma criança, que passará a ter todos os direitos pertinentes à filiação –
guarda, alimentos e sucessórios em relação a duas pessoas, como qualquer
filho.
É preciso superar o impedimento legal que frustra a possibilidade de
crianças abandonadas virem a ter uma vida com carinho, educação e conforto em um lar formado pela união de duas pessoas do mesmo sexo, porque, certamente, não existe nada mais triste do que passar uma infância
sem fazer parte de uma família. O que desejamos enfatizar é que, se um
par, formado por um homem e uma mulher ou por dois homens ou duas
mulheres, for capaz de exercer as chamadas “funções parentais”, a criança
aos seus cuidados terá as condições mínimas para se desenvolver psicologicamente de forma satisfatória. Não são os genitais do pai e da mãe que
definem essas funções, mas a forma de agir das pessoas que estiverem ocupando tais lugares, tendo presente que nada supera a importância do amor e
do limite na educação de uma criança.
Uma extensão desse tema é a questão da homossexualidade dentro
das escolas, envolvendo alunos e professores. Sobre esse assunto, o primeiro ponto que deve ser considerado é que todas as recriminações aos
indivíduos homossexuais não passam de um preconceito. Em outras culturas não se observa o mesmo fenômeno. Na verdade, ao longo dos séculos,
a história tem-se mostrado cambiante em relação ao homossexualismo, ora
o idolatrando, como na Grécia Antiga, ora o degradando, como na Idade
Média, com o incremento do modelo familiar cristão, satanizando o prazer,
antes endeusado pelos cultos gregos. Diz Aristófanes no Banquete, de
Platão (387-361 A.C.),
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Aqueles que amam homens e sentem prazer em deitar-se com homens
e em ser abraçados por homens são também os rapazes mais formosos
e jovens, e – naturalmente – os mais masculinos. Os que os acusam de
falta de vergonha, mentem; não fazem tal coisa por falta de vergonha,
e sim abraçam o que é como eles por pura valentia, por pura vitalidade.
Uma prova clara disso nos é dada pelo fato de que, uma vez adultos,
são os únicos que se comportam como homens em suas carreiras públicas. (PLATÃO, 2003, p.123).
De certa forma, o homossexualismo na Grécia Antiga tinha o significado de um rito de iniciação, como se observa nas tribos Marind e Kiman
da Nova Guiné. Nessa cultura, os púberes são separados das mães e levados para a casa dos homens, onde um tio materno lhes penetra analmente
para receberem o esperma que os tornarão homens fortes. Os jovens também devem passar por um ritual oral, de felação, com o objetivo de se
tornarem guerreiros destemidos. No berço da civilização, em Papua, onde
vivem as tribos Marind e Kiman, encontramos a relação entre práticas homossexuais e adolescência, correspondendo ao período da vida em que
surge a consciência da orientação sexual, inicialmente através de fantasias
e, na seqüência, de experiências homossexuais.
Contudo, identificado com a moral vigente, o adolescente se considerará “normal” se for heterossexual e “anormal” se for homossexual. Esse
raciocínio é fortemente corroborado por grande parte da literatura psicanalítica, que entende que somente no primeiro caso é possível o estabelecimento de uma identidade sexual estável e irreversível, atribuindo ao segundo caso um desvio do desenvolvimento “normal” ou o fracasso em desenvolver uma identidade masculina. Como resultado, um grande número
de adolescentes homossexuais, contrariando sua tendência, procura manter
relacionamentos heterossexuais com o objetivo de atender à expectativa da
família, dos amigos e da sociedade.
No entanto, essa submissão acarreta depressão e um grande sofrimento, contribuindo para a baixa auto-estima geralmente observada nos indivíduos que reprimem sua sexualidade. A falta de apoio dos pais e professores
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e o temor de decepcioná-los fazem com que o adolescente somente torne
público sua atração por pessoas do mesmo sexo mais tarde, por volta dos
vinte anos, ou depois de um casamento heterossexual frustrado. Não
obstante, temos que reconhecer a dificuldade que representa para os pais
aceitarem que um filho se apresente diferente da maioria e, principalmente,
diferente do filho que ele havia imaginado ao concebê-lo. Isso ocorre porque, em nossa cultura, a homossexualidade é discriminada, vista como um
desvio de comportamento ou uma perversão, conforme foi sustentado pela
medicina por muitos anos, permanecendo essa distorção ainda hoje na cabeça de muitos profissionais.
Com freqüência, mesmo diante das evidências, os pais negam a homossexualidade dos filhos até o dia em que estes decidem revelá-la. Particularmente em uma sociedade machista e excludente como a em que vivemos, um filho homossexual representa um verdadeiro estigma para a família. Os pais experimentam tristeza, decepção, raiva, vergonha e, por último, culpa de terem feito alguma coisa errada. Eventualmente, podem se
sentir diminuídos em relação aos pais dos colegas do filho e reagir com
agressão, medidas punitivas e abandono. Quase sempre tentam convencer
o filho de que está enganado. São raros os casos em que os pais aceitam
com naturalidade a situação e a encaram apenas como uma forma diferente
de viver a sexualidade.
O problema dos pais é que eles foram ensinados a desvalorizar a homossexualidade. A escola pode prestar uma importante contribuição para
diminuir o sofrimento imposto aos alunos e professores homossexuais promovendo palestras e debates sobre o tema com a participação de profissionais esclarecidos. É indispensável que pais, alunos, professores e a sociedade como um todo tome conhecimento de que a constituição bissexual do
ser humano tem sua base orgânica na embriologia, evidenciando que indivíduos de ambos os sexos apresentam vestígios dos órgãos do sexo oposto,
os quais permanecem de forma rudimentar ou se modificam para assumir
outras funções. Ao mesmo tempo, estudos mostram uma maior incidência
de homossexuais entre gêmeos monozigóticos do que entre dizigóticos, e
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entre irmãos não gêmeos. Isso aponta para um possível fator genético, enfraquecendo ainda mais o conceito tão firmemente defendido de que o
homossexualismo resulta de conflitos com os pais na infância, constituindo, portanto, um desvio da sexualidade normal, ou seja, da
heterossexualidade.
Outro aspecto que reforça a etiologia constitucional da homossexualidade é a revelação muito freqüente de homossexuais de sentirem atração
por pessoas do mesmo sexo desde a infância e de seguirem tendo fantasias
homossexuais mesmo depois de “tratados”, ou seja, “adaptados” para um
mundo culturalmente heterossexual. Ao lado disso, ainda temos de considerar o conceito de identidade de gênero, segundo o qual a criança, ao
nascer, independentemente de sua identidade sexual anatômica, configurada pelos caracteres físicos, não sabe o que é ser masculino ou feminino. Na
verdade, são os pais que, com condutas conscientes e, principalmente, inconscientes, despertam interesses nos filhos de acordo com o que a cultura
estabelece como masculino e feminino, podendo não coincidir com a identidade sexual dos mesmos. Sendo assim, uma criança com identidade sexual feminina pode desenvolver, a partir do primeiro dia de vida, uma identidade de gênero masculina ou vice-versa. Essas marcas, tão precoces, dificilmente apagar-se-ão na adolescência ou, muito menos, na vida adulta.
Com o intuito de chamar a atenção para a complexidade da sexualidade
infantil, cabe ainda lembrar que as características físicas do recém-nascido,
embora não sejam decisivas, podem estimular ou desestimular as condutas
dos pais, no sentido de masculinizar ou feminizar um filho.
Seguindo esse entendimento, conclui-se que dois homens, ao estabelecerem um vínculo homossexual, não deixam de ser homens, e duas mulheres, ao se ligarem homossexualmente, seguem sendo mulheres. Essa
perspectiva não exclui a possibilidade de, em alguns casos, dois homens ou
duas mulheres se unirem de acordo com o modelo heterossexual de relacionamento, e um homem e uma mulher se unirem de acordo com o modelo
homossexual de relacionamento, quando então um dos parceiros procura
desempenhar-se como se pertencesse ao sexo oposto. Portanto, o que deve
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ficar bem assentado é que ninguém se torna neurótico porque é homossexual ou heterossexual, embora ambos possam apresentar dificuldades relacionadas com a sua sexualidade. Conseqüentemente, assim como podemos
encontrar um paciente com a sua heterossexualidade inibida, também podemos encontrar um paciente com a sua homossexualidade inibida. A homossexualidade, no entanto, não resulta de uma heterossexualidade inibida ou de um fracasso em desenvolver uma identidade masculina, como
muitas vezes é considerada. Uma frase escrita por Freud em 1935 (p. 331),
portanto próximo ao final da vida, deveria manter-se presente na mente de
todos: “A homossexualidade não traz com certeza qualquer benefício, mas
não é nada que deva ser classificado como uma doença; consideramos que
seja uma variação do desenvolvimento sexual”.
Não devemos subestimar a realidade de que a família é uma instituição fortemente influenciada pelo contexto sócio-cultural que, no momento, exige mudanças em uma velocidade que supera em muito suas capacidades de adaptação. Essa mesma aceleração é imposta aos indivíduos que
são levados a anteciparem as passagens da infância para a adolescência e
da adolescência para a vida adulta mediante desidealizações precoces das
figuras parentais, determinando, em muitos casos, variados problemas de
personalidade como resultado de identificações pobres ou inadequadas ao
longo do desenvolvimento.
A conseqüência dessa situação são pais destituídos de uma identidade
que lhes possibilite exercer com segurança as definidas funções paternas.
Para adquirir esta capacidade, teriam de resolver previamente seus conflitos infantis e adolescentes. Esses pais imaturos apresentam a tendência a
permanecerem em uma relação simétrica com os filhos, mobilizando rivalidades, invejas e ciúmes próprios dos vínculos fraternos. Ao invés dos
filhos se identificarem com os pais, são estes que se identificam com os
filhos, tornando-se pais intrusivos, quando resolvem que em casa todas as
portas devem estar abertas para poderem participar da vida dos filhos, ou
pais indiferentes, quando resolvem fazer a sua própria vida e viram as costas aos filhos. Esses jovens carecem de um modelo familiar adequado de
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identificação e, muitas vezes, é na escola que encontram um substituto adequado na pessoa do professor. Ao mesmo tempo, as instituições de ensino
geralmente apresentam uma organização mais tradicional e, dessa forma,
contribuem para a estruturação da personalidade da criança e do adolescente. Sendo assim, não constitui um exagero afirmar que, na atualidade, a
escola exerce um papel fundamental e complementar na formação do indivíduo, por encontrar-se menos desestruturada que a família, estabelecendo
com mais precisão as diferenças de gerações e os limites que favorecem o
desenvolvimento.
Assim como o Estado, a família não pode ter vários governos. No
primeiro caso, o governante é eleito por aqueles que adquiriram o direito
ao voto, geralmente por terem atingido uma determinada idade. Na família,
é obedecido o critério generativo, cabendo aos pais a legítima e inarredável
missão de governar. Ao exercerem plenamente suas específicas funções, os
pais propiciam aos filhos a oportunidade de aprenderem a governar. Os
filhos, contudo, desde muito cedo, se opõem a esse critério, tentando inverter a ordem natural, tornando-se eles os governantes. Quanto menos idade
tem a criança, mais ela ambiciona essa posição – o que caracteriza o pensamento onipotente infantil, fruto de sua condição de fragilidade, impotência
e dependência dos pais. É provável que essa comparação, estabelecendo
uma diferença tão hierarquizada na relação pais e filhos, mereça a crítica
de muitas pessoas que defendem uma educação mais liberal. Contudo, é
provável que não levem em consideração que uma estrutura familiar não
exclui um funcionamento democrático – e que a falta de uma ordem bem
estabelecida pode dar margem ao estabelecimento de uma ditadura, seja
dos pais, seja dos filhos.
A disputa pelo poder nas relações familiares é mantida durante todas
as etapas do desenvolvimento dos filhos, destacando-se nos primeiros anos
de vida, quando o alvo da disputa é predominantemente a mãe. Na adolescência, diante da dificuldade de se sobrepor à ordem paterna, os filhos procuram criar um governo paralelo, cuja sede, atualmente, é o seu quarto. O
quarto do adolescente encerra vários significados, exigindo dos pais sensi164 Psicanálise v. 9, n. 1, p.155-173, 2007
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bilidade e habilidade para lidar com as demandas deste espaço conquistado
recentemente pelos filhos. Em algumas famílias, o quarto do adolescente
funciona como quartel-general, estado-maior, comando-geral ou centro do
poder da casa. Na porta, um cartaz diz: “Não entre sem bater”. Ou, mais
drasticamente: “Não entre”. No último caso, os pais têm medo até de bater
na porta quando querem falar com o filho. Sempre fechado em seu reduto,
pouco visto pela casa, lembra um ditador: “Falar? Agora? Não, agora eu
não posso!”.
Principalmente na classe média, o quarto do adolescente se transformou num verdadeiro centro de operações, conectado com o mundo por
telefones convencionais e celulares, aparelhos de som e TV, videogames e
computadores ligados 24 horas na Internet. Somando apenas o pagamento
dos serviços, um centro de operações bem equipado pode onerar a família
em cerca de 500 reais por mês, ou seja, 6 mil reais por ano, fora o custo dos
equipamentos, trocados freqüentemente por modelos mais potentes, mais
sofisticados e, principalmente, mais rápidos. É provável que uma parte dessa parafernália atenda a necessidades dos próprios pais, em particular daqueles que transformam os filhos em relicário de suas ambições frustradas,
e outra parte constitua uma característica da sociedade atual, ou seja, represente o que todo mundo tem ou o que todo o mundo faz. Certamente, uma
conduta mais parcimoniosa em relação aos equipamentos do quarto do adolescente diminuiria o seu isolamento, contribuindo para um convívio maior com a família. Ao mesmo tempo, refletindo a liberação sexual observada nos últimos anos, os pais têm substituído a cama de solteiro dos filhos e
das filhas adolescentes por uma de casal para dormirem com as namoradas
e os namorados.
Aparentemente, o adolescente pode ter mais satisfações e ser mais
feliz hoje do que há trinta ou quarenta anos, mas na verdade sua vida interior se tornou muito mais vazia, porque os sonhos foram substituídos por
aparelhos e o desejo abolido pela facilidade de satisfazer o impulso sexual
a qualquer momento. Será essa uma forma de educar bem-sucedida, se
considerarmos que poderá estar empobrecendo a vida mental dos jovens?
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Poderia dizer um adolescente: “Sonhar com a namorada pra quê, se com o
simples toque de uma única tecla do meu celular eu posso ouvir sua voz
independentemente de onde estiver? Em contrapartida, ela também pode
ligar para o meu número de telefone privativo no momento que desejar e eu
a atenderei diretamente de meu quarto, sem a interferência de ninguém.
Além disso, à noite podemos conversar longo tempo por telefone, ela deitada na cama dela e eu na minha, e contar um para o outro o que estamos
fazendo embaixo das cobertas. Mas não é só isso, também podemos nos
manter conectados permanentemente pela internet, trocando mensagens ao
longo do dia. O que dizem essas mensagens? Qualquer coisa, é só para não
nos sentirmos sozinhos...”.
Quanto aos limites relacionados com o processo educativo, aparentemente a sociedade contemporânea encontra-se em um importante e bastante conturbado momento de mudança. Em cinqüenta anos, assistimos tanto
em casa como na escola a uma radical transição de uma educação muito
repressiva para uma educação exageradamente permissiva. Pais e educadores estão desnorteados e se sentem divididos entre a imagem interna de
seus próprios pais, representantes da cultura em que foram educados, e o
ambiente social que os rodeia na atualidade. Contudo, não se devem colocar essas duas tendências em oposição, como se tivéssemos que optar por
uma ou por outra, mas, dentro das possibilidades, procurar integrá-las. Até
certo ponto, devemos encarar a educação como as roupas que saem de
moda. Não devemos jogá-las fora, pois passado algum tempo acabam voltando a serem usadas. Além disso, todo o reproduzido da educação que
recebemos dos nossos pais e da sociedade do nosso tempo contém uma
riqueza afetiva proporcionada pela vivência, que tem muito mais força do
que os conhecimentos que adquirimos mais tarde. Evidentemente, precisamos nos adaptar aos novos tempos, mas erramos tanto ou mais quando
desprezamos nossas experiências do que quando nos agarramos a elas de
uma forma exagerada, sem olhar para os evidentes ganhos proporcionados
pela educação moderna.
Contudo, não podemos perder de vista que a educação permissiva, tão
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comum nos nossos dias, não possibilita a formação de um modelo adequado de identificação para a criança, nem desperta o seu natural
questionamento, expressão do seu desejo de ser responsável, independente
e madura. Mais do que tudo, não devemos esquecer que a criança precisa
de um modelo não apenas para se identificar, mas também para se opor e
criticar e, dessa forma, constituir sua própria identidade, que será mais rica,
sólida e verdadeira se integrar os pais do passado e do presente. A critica à
educação permissiva não deve representar uma validação da rigidez dos
pais com os filhos, mas uma forma de enfatizar que eles somente serão
firmes o suficiente se valorizarem a educação que receberam de seus pais e
de seus professores. Obviamente, devemos reconhecer que no passado havia exageros, mas não podemos negar que no presente existe uma carência
de limites que nos faz temer pelo futuro.
No entanto, no processo educativo, não adianta apenas traçar os limites: eles precisam servir a algum propósito útil. A criança ou o adolescente
precisa saber que a disciplina está ligada à sua segurança, favorece o seu
desenvolvimento e constitui uma forma de respeitar os direitos alheios. Se
os filhos se rebelam em demasia ou não reagem aos limites que lhes são
impostos, os pais necessitam reavaliar suas condutas. Quem sabe estão subestimando as capacidades dos filhos e, conseqüentemente, impondo restrições exageradas para a sua idade, justificando a rebeldia observada, ou,
quem sabe, não se apercebendo de que os filhos se encontram em um estado de apatia e que, mais do que limites, precisam de estímulo para vencer
suas próprias barreiras.
A confusão atualmente reinante na educação tem sido considerada
uma importante causa do uso de drogas, da violência dos jovens, da gravidez na adolescência e da dificuldade de uma maior vinculação afetiva entre
as pessoas em geral. Lamentavelmente, interpretações imprecisas e generalizações das teorias psicanalíticas têm levado a equívocos na educação
de crianças. Um desses equívocos tem como origem o pressuposto de que
a repressão dos impulsos sexuais leva à neurose, determinando uma postura excessivamente permissiva a esse respeito por parte dos pais. Embora a
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correlação tenha sido amplamente comprovada pela psicanálise, temos de
ter presente que certo limite é indispensável a uma boa integração social e
afetiva da criança. Além disso, é preciso ter em conta que foi em boa medida, à custa da repressão da sexualidade, que se fundou a civilização e que,
também através dela, as relações amorosas assumem sua forma adulta.
A outra questão se relaciona com o impulso agressivo que, de acordo
com os conhecimentos psicanalíticos, encontra-se presente em todo o comportamento humano. Não condiz com uma boa prática educativa inibir o
impulso agressivo da criança, pois é ele que nos permite ter iniciativas,
competir, lutar pela vida e enfrentar as dificuldades. Contudo, seus excessos devem ser amenizados e integrados com o impulso amoroso, o qual,
quando estimulado e valorizado, capacita o indivíduo para o estabelecimento de relacionamentos gratificantes e estáveis. Se um modelo de educação não levar em consideração essa premissa, é provável que o impulso
amoroso seja sufocado pelo impulso agressivo e as crianças certamente
venham apresentar dificuldades em sua vida social e afetiva. Mais uma
vez, é a conduta dos pais e professores que favorece o desenvolvimento
emocional de uma criança, não somente através da adequada colocação de
limites, como também proporcionando condições favorecedoras da sublimação do impulso agressivo, que se faz de forma satisfatória através do
brinquedo e das atividades artísticas e esportivas.
Uma idéia muito comum é a de que, visando à auto-estima, à segurança e ao amadurecimento da criança, deve-se elogiá-la o máximo possível,
evitando frustrá-la. Sem dúvida, o elogio é indispensável e fundamental
em todo o processo educativo; não podemos esquecer, no entanto, de que
uma das capacidades mais importantes que sustentam a auto-estima, a segurança e o amadurecimento é justamente a de tolerar frustrações. Isso é
tão verdade que não é um exagero dizer que, mais do que a idade, a característica que marca a diferença do funcionamento mental adulto para o funcionamento mental infantil é a tolerância à frustração. Sendo assim, cabe
aos pais e professores ajudar as crianças a lidarem com as frustrações cor-
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respondentes às sucessivas etapas do desenvolvimento, para que consigam
progressivamente atingir uma verdadeira e consistente maturidade.
Por último, gostaríamos de enfocar a questão da separação dos pais
como uma causa freqüente de variados problemas escolares apresentados
por crianças e adolescentes, fornecendo ao professor subsídios para manejar, caso a caso, as situações mais difíceis. A realidade é que não podemos
mais fechar os olhos para a possibilidade da separação; uma realidade que
se concretiza em um número significativo de casamentos, estimando-se
que, na atualidade, cerca de 40% das crianças experimentam o rompimento
conjugal dos pais antes de completarem o 15º aniversário. Anualmente, são
200 mil crianças nas regiões metropolitanas do Brasil que vêem seus pais
se separarem. Além disso, aproximadamente 80% dos pais separados voltam a se casar nos três anos seguintes, e mais da metade acabarão em uma
nova separação. Como conseqüência da alta incidência de novos casamentos, um quarto das crianças de hoje viverá, por algum tempo, com uma
família não consangüínea. Atualmente, observa-se um número crescente
de casais que se separam após um curto período de casamento, encontrando-se os filhos entre um e três anos de idade.
Como conseqüência dessa realidade, nos Estados Unidos, um terço
das crianças com até cinco anos de idade vive apenas com a mãe. Não
obstante, as separações de casais, principalmente com filhos, mobilizam
uma variedade de sentimentos, muitos deles conflitantes, que tornam esse
processo doloroso e, freqüentemente, mal-sucedido. De acordo com a Associação Americana de Psiquiatria, a separação dos pais é um estressor
severo, agudo, e causador de um grande número de sintomas, principalmente nas crianças. A instabilidade familiar, o divórcio e os novos casamentos interferem no desenvolvimento emocional da criança, com conseqüências observadas a curto, médio e longo prazo.
Evidentemente, as reações das crianças à separação dos pais não são
exatamente as mesmas em todas as faixas etárias. De acordo com um estudo longitudinal, realizado por Judith Wallerstein (1980) entre os pré-escolares, ou seja, na faixa até 5 anos, a tendência é apresentar uma regressão
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em seu desenvolvimento tão logo um dos pais deixe o lar. Manifestações
exageradas de medo em relação aos afastamentos, mesmo que pequenos e
rotineiros, do pai que detém a guarda; dificuldade para dormir à noite; fantasias de abandono; saudade intensa do pai ausente; e agressividade, principalmente em relação aos irmãos. De 5 a 8 anos, as crianças podem apresentar um típico quadro de luto, sentimentos de preocupação e desejo intenso pelo genitor que partiu, e declínio acentuado do rendimento escolar.
Nessa faixa etária, as fantasias mais freqüentes dos meninos é que os pais o
substituirão por outra criança, e das meninas, quando ficam com a mãe, é
que o pai, que a ama mais do que a ninguém, virá buscá-la para ficarem
juntos para sempre. Entre 8 e 12 anos, observa-se uma raiva intensa em
relação a um ou a ambos os pais, ansiedade, solidão, impotência e humilhação. Assim como na faixa anterior, há uma diminuição do rendimento
escolar e também do relacionamento com os colegas. Essas crianças apresentam a tendência a dissociarem os pais em um bom e outro mau, a cederem aos agrados de um ou de outro para envolvê-las nas disputas por guarda ou de outra natureza e a assumirem um papel assistencial em relação ao
pai mais dependente.
Assim como nas faixas etárias anteriores, os adolescentes também são
vulneráveis à separação dos pais, reagindo com bastante sofrimento expresso por um quadro de depressão aguda, distúrbios de conduta e, eventualmente, ideação suicida. Os sentimentos de raiva são intensos, podendo
chegar à agressão física ao pai que detém a guarda. Também pode ocorrer a
identificação com um dos pais e o confronto com o outro. Muitos adolescentes nesta situação demonstram uma preocupação muito grande com a
sua chegada à vida adulta, principalmente no que diz respeito às suas capacidades para estabelecer um relacionamento amoroso estável e feliz, temendo fracassar como seus pais nesse intento. Apesar disso, aqueles jovens que conseguem elaborar com razoável sucesso essa etapa desenvolvem uma grande capacidade de independência e estabilidade.
Os achados de Wallerstein sobre os efeitos da separação dos pais na
vida emocional dos filhos causaram impacto, mas não se confirmaram ple170 Psicanálise v. 9, n. 1, p.155-173, 2007
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namente nem na clínica nem em estudos semelhantes realizados na seqüência, chamando à atenção as características da amostra desta socióloga formada por casais com sérios problemas psicológicos e de conduta antes,
durante e após a dissolução do casamento. Contudo, reproduzem uma série
de manifestações que podem ocorrer nas diversas faixas etárias como resultado da separação dos pais. No entanto, o ponto de vista atual predominante é de que o sofrimento dos filhos encontra-se mais condicionado à
saúde mental dos pais e à forma como processam a separação do que à
separação em si. Ao mesmo tempo, ao lado das inevitáveis desvantagens,
tem sido possível constatar algumas vantagens obtidas pelos filhos de pais
separados, destacando-se o amadurecimento mais precoce em um amplo
espectro de situações quando comparados com filhos de casamentos estáveis.
Além disso, em muitos casos, eles adquirem uma maior capacidade
para tolerar privações e enfrentar adversidades, ambigüidades e experiências novas. Na verdade, quando os pais decidem pela separação após pensar bem e considerar cuidadosamente as alternativas, quando previram as
conseqüências psicológicas, sociais e econômicas para todos os envolvidos, quando acertaram manter um bom relacionamento entre pais e filhos,
o mais provável é que as crianças não venham a sofrer interferência no
desenvolvimento ou desgaste psicológico duradouro de grande monta. No
entanto, se a separação for realizada de modo a humilhar ou enraivecer um
dos cônjuges, se o ressentimento e a infelicidade dominarem o relacionamento depois da separação, ou se as crianças forem desamparadas, mal
informadas, usadas como aliadas ou como alvo de disputa, ou ainda vistas
como extensões dos adultos, se o relacionamento da criança com um ou
ambos os pais for empobrecido ou perturbado e se ela se sentir rejeitada, o
desfecho mais provável será a interferência no desenvolvimento e o desgaste psicológico duradouro, eventualmente de grande monta. Portanto,
tendo em vista o sofrimento dos filhos, o problema principal não é a separação dos pais, mas o modo como eles processam esse evento que, como
possibilidade, é inevitável no decurso do relacionamento conjugal.
FAMÍLIA, ESCOLA
E
SOCIEDADE:
UMA REFLEXÃO PSICANALÍTICA
Family, school and society: a psychoanalytic consideration
Abstract: In this article, the author analyzes the differences between traditional and
contemporary family in their relations with school and society. He calls attention for the
inversion of values observed in the relations between parents and children as result of a
post-modernity typical phenomenon called fashion. He approaches the body subject in
the current world, pointing out its comparison to a consumption product, emphasizes the
superficiality of the loving relationships and its standardization in the different ages as an
origin of the globalization phenomenon. He describes the parental functions and faces the
subject of children’s adoption by homosexual couples and makes considerations about
homosexuality in school, involving students and teachers. Finally meditates that, despite
some changes, family continues to be fundamental for the individual’s psychic structuring,
but their true values can be rescued in new families created by the separation.
Key-words: Family. School. Post-modernity. Homosexuality. Adoption. Divorce.
Familia, escuela y sociedad: una reflexión psicoanalítica
Resumen: En este artículo, el autor analiza las diferencias entre la familia tradicional y la
familia contemporánea en sus relaciones con la escuela y la sociedad.Llama la atención
hacia la inversión de valores que se observa en las relaciones entre padres e hijos como
resultado de un fenómeno típico de la posmodernidad llamado moda. Trata de la cuestión
del cuerpo en el mundo actual, destacando su equiparación a un producto de consumo.
Enfatiza la superficialidad de las relaciones amorosas y su encasillamiento en las diferentes edades en virtud del fenómeno de la globalización. Describe las funciones parentales
y enfrenta el tema de la adopción de niños por parejas homosexuales, tejendo
consideraciones sobre la homosexualidad en la escuela, involucrando alumnos y profesores.
Por fin pondera que, a pesar de los cambios, la familia continúa siendo fundamental para
la estructuración psíquica del individuo, pero sus verdaderos valores se pueden rescatar
en las nuevas familias criadas por la separación.
Palabras-llave: Familia. Escuela. Posmodernidad. Homosexualidad. Adopción. Divorcio.
Referências
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Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2005.
FREUD, S. (1935) Letter to an american mother. Int. J. Psychoanal, v.32, 1951.
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172 Psicanálise v. 9, n. 1, p.155-173, 2007
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Gley P. Costa
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 173
Gley P. Costa
WALLERSTEIN, J. & KELLY, J.B. Sobrevivendo a separação. Porto Alegre:
Artmed, 1998.
FAMÍLIA, ESCOLA
E
SOCIEDADE:
UMA REFLEXÃO PSICANALÍTICA
174 Psicanálise v. 9, n. 1, p.155-173, 2007
Ignácio A. Paim Filho*
Lísia C. Leite**
Resumo: Os autores têm por objetivo repensar a função analítica, à luz
do século XXI, tendo como paradigma a função paterna. Nesse sentido,
se propõem, conforme o nome do trabalho, a ratificar as “velhas recomendações” diante desses “novos tempos”. Para isso, revisitam os postulados freudianos que são os responsáveis pelas leis que sustentam o
setting analítico.
Palavras-chave: Função Analítica. Função Paterna. Interdição. Desejo.
“Não esqueçamos que a situação analítica se fundamenta no amor pela verdade, isto é, no reconhecimento
dela, que deve excluir toda ilusão e todo o logro.”
(Freud/1937).
Este tema foi se fazendo acontecer, com todos os seus
interrogantes, no decorrer de nossa práxis clínica. Poderíamos nomear como possível ponto de partida as nossas
inquietudes a respeito da modernidade, esta que apresenta
uma evolução importante, principalmente no mundo
ocidental, com o avanço da democracia e da liberdade. Tal
avanço vai destituir autoridades que se julgavam as
* Médico, Membro Pleno do CEPdePA, Membro do Instituto da SBPdePA.
** Psicóloga, Psicanalista do CEPdePA, Membro Associado da SBPdePA.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 175
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
Novos Tempos, Velhas
Recomendações
(Sobre a Função Analítica)
NOVOS TEMPOS, VELHAS RECOMENDAÇÕES
(SOBRE A FUNÇÃO ANALÍTICA)
mantenedoras da moral e dos bons costumes, com o poder de decretar o
que era bom e o que era mau. Com o advento dessa nova ordem social, o
homem moderno se libera da tirania moral, porém esse ser livre se encontra
com a força do seu desamparo, não sabendo que destino dar à subjetividade
do seu desejo e como administrar a sua relação intersubjetiva com o outro.
Um exemplo lapidar desse drama encontramos nas palavras de
Dostoievski, nos “Irmãos Karamazov”: “Se Deus está morto, tudo é permitido”. O que pensar deste dito? Sem Deus tudo é permitido? Acreditamos que o velho Karamazov estava equivocado e que ocorre literalmente o
inverso: estando Deus morto, abre-se a possibilidade de cada sujeito de se
haver com a responsabilidade para consigo e para com a manutenção dos
laços sociais, pois não devemos esquecer de que foi em nome das leis de
Deus – e que provavelmente o homem não pôde incorporar como suas –
que foram praticadas as maiores atrocidades da história.
Contudo, percebemos que, diante da confrontação com a tragédia do
seu desamparo, o sujeito contemporâneo, na sua relação dialética com a
cultura, viverá sob a égide do narcisismo, pois este será o grande refúgio
para dar sustentação ao inominável vazio de suas origens, ou ainda, como
diz Milan Kundera (1983), a “Insustentável Leveza do Ser”. Diante disso, nossos dias trazem a marca indelével do ideal de Narciso; vivemos em
tempos de perversão, fazendo com que os sujeitos que chegam aos nossos
divãs tragam demandas de satisfação imediata, fazendo valer a máxima de
tolerância zero a frustrações, gerando condutas niilistas. Desse modo, o
analisando e a cultura deste novo milênio convidam, ou talvez impõem, ao
analista, a perversão do setting, dos princípios teóricos e técnicos em nome
das dificuldades econômicas, da pressa, da busca de cura rápida e sem dor,
com isso pondo em xeque os princípios éticos que norteiam a função analítica.
Assim, fomos sendo invadidos por questionamentos conhecidos e ao
mesmo tempo desconhecidos, permeados pela sensação do sinistro. Dentro dessa nossa vivência de estranhamento, surgem perguntas: como o analista do século XXI sustenta e/ou deveria sustentar sua função? Necessita176 Psicanálise v. 9, n. 1, p.175-187, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 177
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
ríamos de novas recomendações para os analistas que ousam exercer essa
função? Seríamos nós, analistas de novos tempos, sujeitos éticos, comprometidos com a ética que a psicanálise postula? Muitos interrogantes, respostas complexas, porém pensamos que devemos ousar e fazer especulações, tendo como referência a seguinte orientação de Charcot a Freud
(1914, p. 33): “Olhar as mesmas coisas repetidas vezes até que elas comecem a falar por si mesmas”.
Com o objetivo de equacionarmos possíveis respostas a essas questões, propomo-nos a trabalhar a hipótese de que a Função Analítica está
ancorada na função paterna, vindo a estabelecer-se na medida em que
houver um percurso da heteronomia para a autonomia. É importante ressaltar que essas leis da cultura psicanalítica nomeadas por Freud
(heteronomia) deverão ser incorporadas de uma forma reflexiva, de maneira que esse sujeito pensante, chamado analista, no exercício de constituirse com tal, vá se apropriando destas e possa senti-las como suas (autonomia). E, com isso, adentre em um universo ético que lhe dê reais condições
de exercer a sua função disruptiva e produtora de mudança psíquica. Evocamos, nesse sentido, as palavras de São João: “Em verdade, em verdade
vos digo que se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica infecundo:
mas se morrer, produz muito fruto.” (cap. XII, vers. 24/25).
Re-visitemos, portanto, o pensar freudiano sobre o lugar da função
paterna na constituição do sujeito psíquico e do meio social, ou seja, lancemos um olhar para o complexo de Édipo. Para isso, nada melhor que o
texto de 1913 “Totem e Tabu”, que irá permitir uma teorização que dará a
esse complexo o estatuto de uma universalidade da qual padece todo o
sujeito da cultura. Esse mito psicanalítico tem a proposta de narrar uma
história que explique a forma pela qual o bicho homem vai fazer a sua
passagem da mãe/natureza para o pai/cultura. Freud postulará que essa travessia vai se dar quando os filhos homens, que viviam exilados da horda,
devido ao despotismo do pai primevo, retornam e juntos matam e devoram o pai. A partir desse duplo ato, são invadidos por sentimentos
ambivalentes e pelo temor de que, se algum deles ocupasse o lugar do pai,
NOVOS TEMPOS, VELHAS RECOMENDAÇÕES
(SOBRE A FUNÇÃO ANALÍTICA)
se reiniciaria um ciclo interminável de exclusão e conseqüente assassinato.
Esses fatos determinam a criação do totem, representante da figura paterna
e de dois tabus: a proibição do assassinato do totem (parricídio) e do acesso
às mulheres do pai (incesto). Temos, nessas leis, marco inaugural de uma
nova ordem social, as mesmas leis que irão dar sustentação ao sujeito do
inconsciente, que traz em sua alma esses desejos parricidas e incestuosos
interditados pela força negadora do recalcamento. É importante, contudo,
diferenciarmos que as leis totêmicas têm por objetivos ordenar as relações
de troca e de união dentro de determinada sociedade, enquanto as ligadas
ao complexo de Édipo têm a função de ordenar o mundo do desejo, permitindo alojar-se no inconsciente, a partir do objeto da pulsão (a mulher do
pai), o objeto do desejo (a proibição do gozo sexual com esta mulher). Esse
mundo vai dar a especificidade ao pensar psicanalítico.
Nesse trabalho de 1913, vamos encontrar uma frase fundamental para
iniciarmos algumas especulações sobre a questão da função paterna: “o pai
morto tornou-se mais forte do que fora o pai vivo” (p.171). Ao proferir
esta assertiva, Freud põe em questão a construção de um lugar que deixa de
ser a “coisa em si” para tornar-se um lugar simbólico; com isso, o pai passa
a existir de fato, como função, como alguém que representa e sustenta a lei.
Em síntese, temos um paradoxo: não há pai sem o assassinato do pai, o
que significa que esse ato, em nossas origens um ato fundador da cultura e
do sujeito, viabilizou que esses órfãos pudessem vir a ser filhos com
potencialidade de reconhecer sua paternidade. Por conseguinte, instaura-se
o domínio da lei e o começo de uma nova ordem cultural, assinalada pelo
movimento da endogamia para a exogamia, tendo como propulsão a força
do desejo recalcado. É importante ressaltar que essa lei que o recalque representa, a que pais e filhos estão subordinados, visa mediar as relações de
desejos que se engendram na intersubjetividade do sujeito. Lemos isso nas
palavras do psicanalista Hélio Pellegrino (p. 313): “A lei não existe para
aniquilar o desejo, aviltando-o ou degradando-o. Ao contrário, existe como
gramática capaz de articulá-lo com o circuito de intercâmbio social.”
A função paterna, portadora de um ordenamento fundante e
178 Psicanálise v. 9, n. 1, p.175-187, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 179
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
estruturante do psiquismo, caracteriza-se pelo corte, pela interdição, por
permitir que o complexo de castração se insira na cadeia simbólica, dando
condições para que o filho do homem procure outras saídas, na esfera
representacional, para os seus desejos parricidas e incestuosos, e tendo
como denominador comum a renúncia à plenitude do narcisismo.
Dando seqüência a esse pensar sobre o lugar do pai simbólico na constituição do sujeito, agregamos algumas idéias do psicanalista Joel Dor, que,
como sabemos, estão baseadas no pensamento de Lacan, que as desenvolveu de forma profunda no Seminário 5. Em seu livro “O PAI E SUA FUNÇÃO EM PSICANÁLISE”, (1991), Joel Dor vai enfatizar a dimensão simbólica do Pai, pois esta transcende em muito a contingência do homem
real. O estatuto de Pai é um puro referente, cuja função simbólica é sustentada pela atribuição do objeto imaginário fálico. É necessário que a ele, Pai
simbólico, seja suposto deter esse objeto, fonte de ódio e inveja que o institui como único a ter direito. Fazendo prevalecer a posição de ter direito a
uma mulher que é proibida à sua descendência (objeto do desejo), esse Pai
só é Pai simbolicamente. Diante dessa mulher, ele não deixa de ser homem
pura e simplesmente, isto é, ex-filho, desprovido de falo, por ter tido ele
mesmo que aceitar-se castrado, reconhecendo sua atribuição a um Pai. Segue-se daí que: “O homem, enquanto Pai, tem que dar provas, num determinado momento, de que possui aquilo de que todo homem é desprovido.”
(DOR, 1991, p. 34) e “O pai, enquanto homem, jamais pode dar outra prova se não aquilo de que é desprovido.” (DOR, 1991, p. 34).
Para o autor, todo terceiro que responder a essa função de mediador
dos desejos da mãe e do filho vai instituir o alcance legalizador da interdição do incesto, isto é, estar na posição de referente terceiro, o significante
do Pai simbólico, significante fálico enquanto simbolizando o objeto de
falta desejado pela mãe. Decorrente desse pensar, Dor nos diz: “A função
paterna será estruturalmente ligada à função fálica” (1991, p.34). Este objeto enigmático que se pode ao mesmo tempo possuir e ser desprovido, o
falo, deve ser tomado na triangulação dos desejos recíprocos do pai, da
NOVOS TEMPOS, VELHAS RECOMENDAÇÕES
(SOBRE A FUNÇÃO ANALÍTICA)
mãe e do filho como um quarto elemento, já que não poderá existir outra
triangulação senão a do desejo em relação ao falo.
O falo constitui, assim, o centro de gravidade da função paterna, que
vai permitir a um Pai real chegar a assumir sua representação simbólica. A
função paterna conserva sua virtude simbólica inauguralmente estruturante
na própria ausência do Pai real.
A instância do Pai simbólico é, antes de tudo, a referência à lei da
proibição do incesto que prevalece sobre todas as regras concretas que legalizam as relações e as trocas entre os sujeitos de uma mesma comunidade. O Pai simbólico é apenas o depositário legal de uma lei que vem de
outro lugar, que nenhum Pai real pode se vangloriar de ser detentor ou
fundador. O que recai sobre ele é o ter que se fazer valer de ser seu representante. Nenhum Pai real é a função paterna, e sim seu vetor.
O exercício da função paterna estrutura nosso ordenamento psíquico
na qualidade de sujeitos: “Com efeito, nenhuma outra saída é proposta ao
ser falante a não ser curvar-se ao que lhe é imposto por esta função simbólica paterna que o assujeita numa sexuação.” (DOR, 1991, p.14).
A demarcação da função simbólica do pai determina uma das bases
mais fundamentais da clínica psicanalítica, sem a qual a função paterna
permanece inadequada para promover a estruturação psíquica da criança
(paciente) na direção de um limiar de novas possibilidades.
Como já dissemos acima, vemos na função paterna um paradigma
para pensarmos a função analítica. Desse modo, compreendemos que seja
de vital importância discorrer sobre a forma pela qual os princípios desta
são balizadores do estabelecimento das leis que sustentam o setting. Freud,
em sua série de artigos sobre a técnica, vai desenvolver a sua concepção do
método psicanalítico. Encontraremos nessas escrituras a descrição e a evolução do seu método desde os inícios da psicanálise, onde nos coloca o
porquê da passagem da sugestão e da hipnose para um processo que procura o alívio da dor psíquica através da palavra. Ainda que nos tenha feito
comentários e sugestões sobre questões importantes, como o uso do divã, a
freqüência das sessões, o início do tratamento, as faltas, os honorários, en180 Psicanálise v. 9, n. 1, p.175-187, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 181
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
fim, os enquadres do setting, foi na regra fundamental da associação livre,
e em sua contrapartida, a atenção flutuante, que colocou maior ênfase. Dizia-nos ele, em 1905, que as psiconeuroses eram doenças psíquicas muito
mais acessíveis às influências anímicas do que a qualquer medicação. Essas doenças, no seu entender, são curadas não pelo medicamento, mas pela
pessoa do médico, mesmo sem o saber; já estava dizendo, com isso, que os
pacientes poderiam curar-se através da relação transferencial e da conseqüente resolução da conflitiva explicitada nessa relação singular do processo analítico. Acreditava que o seu método é o mais profundo, aquele
que consegue a transformação mais ampla do doente, justamente em função do trabalho psíquico que a transferência suscita.
Freud, em 1912, enuncia que o inconsciente do analista é capaz, a
partir dos derivados do inconsciente que lhe são comunicados, de reconstruir esse inconsciente que determinou as associações livres do paciente.
Para ele, todos temos o instrumento que permite captar o inconsciente do
outro, nosso próprio Inconsciente. Em certa ocasião, perguntado sobre
como alguém poderia tornar-se analista, responde: “Pela análise dos próprios sonhos” (FREUD, 1912, p.155). Logo em seguida, deu-se conta de
que todos que desejem efetuar análises em outras pessoas terão primeiramente que ser analisados por alguém com conhecimento técnico, pois só
assim obterão, a respeito de si mesmos, impressões e convicções que em
vão seriam buscadas em estudos teóricos. J.-D. Nasio (1999, p. 7), em
sintonia com esse discurso, afirma: “O psicanalista trabalha antes de
tudo com o seu Inconsciente.”
As regras técnicas têm por finalidade que analista e analisando conquistem a condição de pôr em marcha o acontecer da análise. Via o par
associação livre–atenção flutuante, a dupla irá desvendar os mistérios do
inconsciente, do recalcado; processo árduo que não se dará sem que apareçam resistências, que se manifestarão na esfera da transferência.
Para o criador da psicanálise, podem-se obter as maiores vantagens
desse contato íntimo com outra pessoa; é também, entretanto, a relação
transferencial o provocador do aparecimento das resistências ao tratamen-
NOVOS TEMPOS, VELHAS RECOMENDAÇÕES
(SOBRE A FUNÇÃO ANALÍTICA)
to. Afirmava que estas poderiam ser vencidas se mantidas voltadas para a
pessoa do analista, pois assim poderiam ser vivenciadas como reais e atuais, tornando-se acessíveis à nossa intervenção, ou seja, passíveis de interpretação. Dizia que a transferência é como um “play ground” (1914,
p.201) em que o paciente está protegido para a re-vivência de situações que
outrora lhe foram insuportáveis e demandaram recalcamentos que o adoeceram.
Após esse rápido percorrido teórico a respeito do trinômio função analítica–função paterna–setting, retomemos nossos questionamentos iniciais sobre a responsabilidade do analista para a manutenção do processo
analítico. Escolhemos como ponto de partida a questão ética da e na psicanálise; temos, portanto, que falar no desejo e em suas renúncias, pois vemos nesses os elementos fundamentais que conferem uma singularidade
ética para o nosso fazer clínico e para o pensar psicanalítico. Desejo que se
faz presente no espaço analítico em busca de uma escuta que possibilite
reconhecê-lo, nomeá-lo e, quem sabe, transformá-lo, e com isso implicarse na responsabilidade sobre o seu destino. Isso requer do analista a dupla
e trabalhosa função de escutar o processo desejante do seu analisando e o
seu próprio desejo.
Pensamos com Freud que aceitar esse lugar de mergulhar com o paciente nas profundezas desconhecidas do inconsciente, universo do desejo,
pode ser uma experiência renovadora para ambos, infinita em suas possibilidades de conquista de uma vida mais produtiva e mais prazerosa.
Por outro lado, nossas questões são justamente os perigos que nos
propõe essa viagem, o encontro com o estrangeiro chamado desejo, que faz
com que sigamos nos fazendo novas/velhas perguntas: o que de fato nos
capacita a podermos ocupar esse lugar impossível? O que nos assegura de
que podemos sustentá-lo? Que risco corremos ao nos atrevermos a colocar
em jogo o desejo do outro e o nosso próprio? Sim, analista tem desejo,
objetivos, expectativas..., e o que fazemos com eles?
Freud sempre insistiu em que o domínio apropriado da psicanálise só
poderia ser adquirido pela experiência clínica. Experiência clínica com
182 Psicanálise v. 9, n. 1, p.175-187, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 183
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
pacientes, sem dúvida, mas acima de tudo experiência clínica oriunda da
análise do analista. Isso pode ser referendado pela idéia de que, ao final de
uma análise bem-sucedida, o analisando, independente de ser analista
como profissão, se faz analista marcado por um eterno interrogar-se.
Tomemos o conceito “abstinência” do analista para pensarmos sobre
essa questão; antes de adentrarmos com mais profundidade no tema, porém, pensamos se fazer necessário discriminar o que entendemos por neutralidade, já que muitas vezes a encontramos na literatura psicanalítica
como sinônimo de abstinência. Compreendemos que a neutralidade nos
remete à idéia do analista imune aos afetos desenvolvidos no processo analítico, como se a história que se desenvolve no setting não o incluísse como
um sujeito no exercício de uma função. Esse raciocínio nos produz a seguinte questão: se fosse possível ocupar esse lugar, não ficaríamos privados desse indicador (o afeto), que é um pré-requisito vital para
instrumentalizar as intervenções do analista? Dando uma resposta afirmativa a esta indagação, estamos propondo que o analista, no exercício da sua
função, não busque a neutralidade, mas sim a abstinência, produto de um
trabalho psíquico resultante das repercussões do inconsciente do analisando no seu inconsciente. Assim sendo, quando Freud, em 1912, faz uma
analogia do analista com “um espelho” (p.157), vai assinalar a importância de que a imagem produzida pelo olhar/escuta do analista esteja atravessada pelo princípio ético de viabilizar o encontro do analisando com a verdade do seu inconsciente, abstendo-se de depositar sobre este o seu desejo.
Conseqüentemente, quando falamos que o analista tem desejos, significa
não estar imune ao que o paciente diz ou sente. Abstinência não significa
ficar em silêncio, porque “analista não fala” – dito popular que, não à toa, é
tão freqüente. Em síntese, atingir a conduta de abstinência significa ser o
analista um profundo conhecedor de seus próprios desejos e ter capacidade
de a eles renunciar. Condição primordial para transitar entre a passividade
e a atividade, entre a escuta e a fala, entre a “via de porre” e a “via de
levare”, ou, dizendo em uma linguagem da técnica, entre a interpretação e
a construção.
NOVOS TEMPOS, VELHAS RECOMENDAÇÕES
(SOBRE A FUNÇÃO ANALÍTICA)
Seguindo esse ponto de vista, vamos nos ocupar particularmente do
desejo do analista. Para tanto, teremos que retomar o lugar da função paterna na constituição da função analítica. Como sabemos, a função paterna
cumpre a meta de ser interditora do prazer narcísico, assim sendo, é imprescindível que o analista, em sua análise pessoal, tenha desenvolvido a
potencialidade de curvar-se diante da lei que a alteridade institui, fazendo
com que o seu desejo seja menos estrangeiro e mais cidadão do eu. A importância capital desse processo no analista se dá por um dado primordial:
a renúncia deste sujeito chamado analista é muito mais trabalhosa e solitária do que a do analisando, uma vez que só pode contar com o que construiu em sua análise para renunciar ao prazer endogâmico que seu analisando lhe oferece com tanta paixão; só deste modo terá os recursos necessários para sustentar as leis do enquadre analítico, do qual é o representante e o
guardião.
Não devemos esquecer que analista e analisando estão subordinados a
essas leis que, acima de tudo, são protetoras e criam as condições para que
o “play ground do interjogo da transferência e da contratransferência”
possa cumprir sua função transformadora, sendo principalmente nesse sentido que advogamos a função paterna como o vetor princeps da função
analítica, sem a qual sucumbiremos no mundo narcísico, ficando e deixando nossos pacientes reféns de um desejo alienante que remete a uma relação dual. Portanto, é de suma importância que o lugar do terceiro se faça
presente no setting desde o começo. E esse terceiro é a psicanálise. Escutemos as palavras de Maria Rita Kehl: “Num setting analítico deve haver
sempre três: o analisando, o analista e o corpo teórico da psicanálise, do
qual o analista é tributário” (KEHL, 2002, p.143).
Recordemos a nossa hipótese de que a modernidade é regida pela força de Narciso, o que exige de uma forma mais intensa que cada analista, no
seu eterno vir a ser, possa estar conectado com essa função eminentemente
simbólica que é a função analítica, portadora das leis que pretendem facilitar um livre associar do analisando e a atenção flutuante do analista. Pensamos que assim estão construídos os pré-requisitos para uma real comunica184 Psicanálise v. 9, n. 1, p.175-187, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 185
Ignácio A. Paim Filho, Lísia C. Leite
ção em análise (inconsciente do analista – inconsciente do analisando).
Vendo a função analítica como uma metáfora freudiana sobre a função
paterna no setting, reafirmamos: não se trata de irmos em busca de novas
recomendações para que os analistas exerçam essa função, mas sim de retomarmos, à luz do século XXI, a importância fundante e estruturante do e
no espaço analítico das leis nomeadas por Freud nos meados do século
XX. Pensamos que a problemática dos analistas deste século não é como se
tem dito “a crise da psicanálise”, e sim a não-dita ”crise dos psicanalistas”.
Crise esta que interroga a cada analista a validade do seu método e do
quanto é sustentável ficar, aos moldes de Freud, à margem das demandas
narcísicas desses novos tempos, pois, como sabemos, Freud e a psicanálise
sempre estiveram colocados na contramão da cultura vigente, procurando
questioná-la, abrindo espaço para que o desejo edípico excessivamente
recalcado pudesse aparecer e, assim, minimizar seu efeito adoecedor. Acreditamos que nós, psicanalistas, deveríamos nos colocar exatamente nesse
mesmo lugar outrora ocupado por Freud e seus seguidores, com o objetivo
de produzir um pensar sobre a falência da lei, onde o adoecer se dá por uma
presença excessiva da desmentida, que tem como conseqüência direta um
aprisionamento em desejos narcísicos, ou seja, alienantes.
O devir da função analítica na cultura da via rápida nos defronta com
a tendência que todos temos, com diferentes intensidades, de buscar uma
“solução perversa” (CHASSEGUET-SMIRGEL, 1991, p.17) para a dor que
não pode ser sentida. Eis aí um enigma a ser decifrado. É imprescindível
que cada analista o faça em relação aos seus núcleos perversos, para que
não se instale uma “pseudo-análise”, e que o fascínio das “soluções perversas” de nossos analisandos não encontre ressonâncias em nosso inconsciente. Para tanto, é necessário que o complexo de castração tenha galgado
um status simbólico, representacional, no analista, pois esse é um dos fatores fundamentais que o habilitaram a ser o vetor do (re) conhecimento da
castração por seu analisando.
Encerrando, acreditamos que a vitalidade do pensar e do fazer psicanalítico está subordinado à nossa potencialidade de estabelecermos, de for-
NOVOS TEMPOS, VELHAS RECOMENDAÇÕES
(SOBRE A FUNÇÃO ANALÍTICA)
ma contínua, um diálogo investigativo com nossos princípios técnicos, teóricos e, principalmente, éticos. Assim, estaremos realmente desenvolvendo os recursos necessários para manter pulsante o axioma freudiano do
“amor à verdade”.
À guisa de conclusão, parafraseamos Joel Dor, com a meta de denunciarmos a situação paradoxal que permeia a constituição da função analítica, na inter-relação entre o sujeito e sua função: O analista no exercício da
sua função, tem que dar prova, em determinado momento, de que possui
aquilo que todo o sujeito é desprovido e todo o analista, enquanto sujeito,
jamais pode dar outra prova se não aquilo de que é desprovido.
New time, old recomendations (about analytical function)
Abstract: The authors have at objective rethinking the analytical function, in relation to
the modern knowledge that is available in the XXI century, and also having the paternal
function as a paradigm. Furthermore, according to this approach, and as stated in the title
of this paper, the authors plan to ratify the “old recommendations” in relation to these
“modern time”. In order to do so they revisit the Freudian postulations thought that is
responsible for the laws that provide the support for the analytical setting.
Key-words: Analytical Function. Paternal Function. Interdiction. Desire.
Nuevos tiempos, viejas recomendaciones (sobre la función analítica)
Resumen: Los autores tienen por objetivo reflejar la función analítica, la luz del siglo
XXI teniendo como paradigma a la función paterna. En ese sentido se proponen, conforme el nombre del trabajo, a ratificar las “viejas recomendaciones” delante de esos nuevos
tiempos. Para eso reinvitan los postulados freudianos que son los responsables por las
leyes que sustentan el setting analítico.
Palabras-llave: Función Analítica. Función Paterna. Interdicción. Deseo.
Referências
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186 Psicanálise v. 9, n. 1, p.175-187, 2007
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 187
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NOVOS TEMPOS, VELHAS RECOMENDAÇÕES
(SOBRE A FUNÇÃO ANALÍTICA)
188 Psicanálise v. 9, n. 1, p.175-187, 2007
Rafael E. López Corvo**
Resumo: O presente artigo representa uma investigação que tenta demonstrar, por meio da clínica, que o inconsciente, mais do que um órgão destinado a armazenar impulsos inconscientes indesejados que continuamente procuram obter satisfação, representa, mais em um sentido
ôntico, um órgão que inesgotavelmente segrega verdade. Em virtude de
que a consciência percebe a realidade mediante informação obtida pelos órgãos dos sentidos, que estão submetidos ao princípio do prazer,
sempre existe o perigo de que a consciência minta; mentira que, com
freqüência, implica um perigo para a própria vida. O inconsciente, então, atuaria como um órgão corretor das mentiras da consciência, mediante “pré-conceitos”, estados de desejabilidade ou expectativa comparável à disposição inata ou apriorística que o bebê tem para o mamilo. O
conceito de recalcamento, criado por Freud, pode ser questionado a partir
da perspectiva da teoria do “continente-conteúdo” (Bion) que dá suporte ao movimento do pré-consciente no sentido da verdade produzida
pelo inconsciente.
Palavras-chave: Inconsciente. Verdade. Mentira. Pré-concepção.
É a verdade que libera e não a luta pela liberdade.
Krishnamurty
Uma noção epistemológica do inconsciente
De que, exatamente, se encontra formado o inconsciente? De acordo com a teoria clássica, o inconsciente repre* Lido no XXVI Congresso Latino-Americano de Psicanálise, Lima, Peru,
outubro de 2006.
** Psicanalista Didata, membro da Associação Venezuelana de Psicanálise
(ASOVEP) e da Sociedade Psicanalítica Canadense.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 189
Rafael E. López Corvo
O Inconsciente: “Mensageiro
da Verdade ” sob a Perspectiva
da Interação ContinenteConteúdo de W. R. Bion*
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
senta um depósito reprimido de impulsos insatisfeitos, que continuamente
pressionam para alcançar satisfação, o que nem sempre é factível, devido
ao rechaço exercido desde as instâncias do supereu. Em conseqüência disso, se sucederão persistentes tentativas de reaparecimento de tais impulsos,
na forma de ‘derivados’. Restrito como um elemento estático, o inconsciente carece da possibilidade de alcançar, por si próprio, a consciência, e
sempre precisará da ajuda de mecanismos pré-conscientes para poder transformar as “representações de coisas” em “representações de palavras”
(FREUD, 1915, S.E., 14, p. 201).
Posteriores contribuições feitas por Fairbairn e Klein mudaram o conceito freudiano do inconsciente, de uma noção de impulsos descatexizados
à idéia de um depósito de lembranças reprimidas na forma de relações
objetais narcisistas precoces. Essas representações poderiam interferir no
crescimento do eu e na integração de processos, por meio da fragmentação,
do compromisso e eventualmente da retenção de partes cindidas, as quais
seriam capazes de interagir com os objetos externos, mediante identificações projetivas e introjetivas.
Utilizando a contribuição de Saussure (1916) sobre a noção estrutural
da linguagem, a escola psicanalítica francesa pôs em dúvida a veracidade
da noção de Freud a respeito da “representação da palavra”, argumentando
que o inconsciente é capaz, por si só, de contar com os atributos de uma
linguagem. Ricoeur (1970), por exemplo, referindo-se aos sonhos, afirmou
que é a ‘linguagem’, e não os ‘desejos’, que se deveria considerar como o
centro de sua análise. Por outro lado, Lacan (1966) esclareceu que “o inconsciente se encontra estruturado como uma linguagem”. De acordo com
Laplanche e Leclaire (1960), o significado saussuriano toma o lugar do
‘impulso em busca de satisfação’, e a íntima relação entre significado e
significante, tal como é observada em qualquer linguagem falada e representada como segue: S , se rompe na condensação ou metáfora em que
s
uma nova relação se estabelece.
Meltzer (1984, p. 51) parecera adotar uma tendência similar, quando
190 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Características ontológicas do inconsciente
Conceber a estrutura do inconsciente como uma forma de pensamento
e linguagem, bem como conhecer sua lógica a respeito de suas diferentes
formas de associação e particular sintaxe, representam uma contribuição
essencial à compreensão epistemológica de sua verdadeira natureza. No
entanto, há uma perspectiva muito importante que não recebeu merecida
atenção. Estou referindo-me aos aspectos ontológicos do inconsciente. “Inferimos o inconsciente”, disse Freud em 1932, “por seus efeitos, mas de
sua verdadeira natureza nada sabemos” (S.E., 9, p. 70). De que é feito o
inconsciente? Qual é seu verdadeiro objetivo? Por que necessitamos de um
inconsciente? O inconsciente é um depósito de impulsos não desejados
reprimidos? Por que o inconsciente fala por meio de uma linguagem
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 191
Rafael E. López Corvo
concebeu os sonhos como uma expressão de pensamentos inconscientes,
definindo o ‘processo onírico’ como “o pensar acerca das experiências
emocionais”; a ‘condição de representabilidade’ como um interjogo entre
formas simbólicas tanto visuais como lingüísticas; e, por último, o ‘trabalho do sonho’ como um processo epistêmico que solicita uma solução para
o conflito emocional.
Matte-Blanco (1998) desenvolveu um modelo baseado na lógica matemática, para explicar algumas características do inconsciente, tal e como
foram originalmente descritas por Freud: a presença de ‘contradições recíprocas’, as ‘negações’, os ‘deslocamentos’, as ‘condensações’, a ‘ausência
do tempo’ e o ‘intercâmbio de realidades internas e externas’. MatteBlanco argumenta que a lógica consciente e a inconsciente diferem totalmente em relação à capacidade para estabelecer reciprocidades ‘simétricas’ e ‘assimétricas’. Por exemplo, se dissesse que A é o pai de B, seu
oposto simétrico, isto é, dizer que B é o pai de A, nunca poderia ser verdade, a menos que nos estejamos referindo a uma construção inconsciente,
em que tal incongruência simétrica poderia ser possível. O mesmo autor
afirma que os processos inconscientes são dominados pela simetria e os
processos conscientes estão dominados pela assimetria.
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
críptica, dificultando a compreensão de suas mensagens? O inconsciente é
um órgão que continuamente segrega verdade e denuncia as mentiras da
consciência? Por que o inconsciente é completamente autônomo e atua por
si próprio, sem a intervenção da consciência? O inconsciente aparentemente funcionaria como um agente regulador que, de maneira automática, mantém um equilíbrio mediante ajuste das apreciações que a consciência possui das realidades internas e externas, percebidas por meio dos órgãos dos
sentidos. Esse equilíbrio é estabelecido por um inconsciente que continuamente está revelando a verdade, como uma espécie de instrumento de adaptação e autoproteção que tenta corrigir as mentiras da consciência. O fato
de que as percepções provenientes dos órgãos dos sentidos estejam influenciadas pelo princípio do prazer torna-as preconceituosas, pouco
confiáveis e nem sempre ajustadas à verdade. Nesse sentido, o inconsciente é indispensável para a preservação da vida, porquanto opera em relação
à consciência como um ecossistema auto-regulador, que tenta manter um
equilíbrio ou homeostasia entre a verdade e a mentira; similar, por exemplo, à maneira como o pâncreas, dependendo do nível de glicose existente,
controla a quantidade de insulina a descarregar dentro do sistema
sangüíneo. Além disso, o inconsciente é um órgão de qualidades híbridas:
por um lado, utiliza, na criação de suas mensagens, uma sintaxe formada
por ideogramas simbólicos e metafóricos muito semelhantes à linguagem
consciente, em lugar de utilizar uma linguagem química, presente nos órgãos involuntários, tais como o próprio pâncreas. Por outro lado, o inconsciente mantém um grau de autonomia similar a dos órgãos involuntários,
sendo capaz de manufaturar e ‘secretar’ verdade por sua própria conta, sem
a intervenção intencional da consciência.
A principal dificuldade que o inconsciente apresenta é o uso de uma
linguagem críptica, como se observa nas imagens dos sonhos, nas
parapraxias ou, mais difícil ainda de observar, subjacente à linguagem falada durante o processo de livre associação, na sessão analítica.1 A verdade
1
As células se comunicam em forma críptica similar, utilizando sinalizações moleculares ou de
transdução (paracrine signalling).
192 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Como pensa o inconsciente?
Em 1925, Freud acrescentou uma nota de rodapé à “Segunda Revisão” de sua obra “Interpretação dos sonhos” (S. E., 5, p. 506), em que
apresenta a hipótese dos sonhos como una forma ‘particular de pensamento’. Dessa afirmativa podemos inferir que para Freud o inconsciente, além
de ser considerado ‘um depósito de desejos insatisfeitos’, é também um
órgão capaz de pensar. Como o inconsciente é capaz de se expressar, de tal
maneira que sua mensagem possa ser revelada e eventualmente utilizada?
As imagens visuais transformam-se no melhor meio utilizável para que o
inconsciente possa revelar-se a si próprio, pois a visão é o único sentido
disponível durante o sonho, já que os movimentos musculares voluntários
estão inibidos e a audição está comprometida para alertar, em caso de perigo externo. As imagens visuais são utilizadas pelo inconsciente (no lugar
das palavras) para criar mensagens, como os ideogramas ou simbolismos
que carecem da precisão da palavra escrita ou falada.
Privado do órgão da linguagem, como Benveniste (1971) elucidou, o
inconsciente comunica suas mensagens de forma semelhante ao modo
como as abelhas comunicam entre si a localização das flores, ou de maneira similar à linguagem de sinais, usada pelos surdos, ou no ‘jogo de mímica’, quando os jogadores tentam passar uma mensagem sem a ajuda da
2
Sir Henry Wotton (1568), em seu poema: “You meaner beauties of the night” (Vocês, valiosas
belezas da noite), expressava um interesse semelhante:
Ustedes valiosas bellezas de la noche (Vocês, valiosas belezas da noite)
Que pobremente satisfacen nuestros ojos (Que satisfazem pobremente nossos olhos)
Más por su número que por su luz; (Mais por seu número que por sua luz ;)
Ustedes del cielo gente común, (Vocês, do céu gente comum,)
¿Dónde se encuentran cuando el sol asoma? (Onde se encontram, quando o sol assoma?)
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 193
Rafael E. López Corvo
foi pensada de antemão pelo inconsciente. O analista é somente um exegeta
que pratica a hermenêutica de um texto simbólico. O inconsciente está
sempre presente, ainda que estejamos completamente despertos e com a
consciência dominando nossa mente, semelhantemente às estrelas que, ainda que não sejam visíveis durante o dia, sempre estão lá.2
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
linguagem falada. Se alguém totalmente alheio a esse jogo estivesse observando, à distância, poderia encontrar dificuldade de interpretar os gestos e os trejeitos tentados pelos jogadores para dar um significado à mensagem por decifrar. Em um estilo semelhante, as imagens visuais são manipuladas pelo inconsciente para transmitir uma mensagem, enquanto dilui
ou diminui a importância de outros significados implícitos na imagem, produzindo no sonhador esse sentimento comum de estranheza, quando se
tenta compreender um determinado sonho. Igualmente, quando os atores
representam uma personagem de uma peça, têm de relegar a um plano secundário sua própria identidade, para evitar que essa não se converta em
um impedimento à sua atuação. Ainda que as imagens de um sonho pareçam estar prenhes de significados, a seleção das imagens e sua seqüência
na narrativa do sonho estarão determinadas pelo objetivo da mensagem
implícita. Em outras palavras, tal como o expressou Freud, o significado
ou conteúdo manifesto está condicionado ao conteúdo latente do sonho.
A partir de Freud, o inconsciente – devido à sua característica elusiva
e inefável – tem sido ‘definido por ausências’, ao ser comparado com a
consciência e com a realidade externa (S.E., 1920, p. 28), principalmente
com referência aos atributos que não se encontram nele presentes, tais
como tempo, espaço e contradições mútuas. Somente os mecanismos de
condensação e deslocamento podem ser considerados características verdadeiras do inconsciente, as quais Lacan, a fim de sustentar que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, considerou como equivalentes à metonímia e à metáfora, respectivamente.
Creio que, se as dimensões como espaço, tempo, contradições e lógica
assimétrica estivessem presentes no inconsciente como o estão no mundo
real, não apenas se fariam desnecessárias às intenções do inconsciente, mas
também poderiam constituir-se em um verdadeiro obstáculo ao seu propósito de enviar mensagens rápidas à consciência. Todos os mecanismos inconscientes deverão subordinar-se a uma forma de comunicação simples e
eficaz; se os processos inconscientes tivessem que considerar o tempo, o
espaço e tudo o mais indispensáveis à realidade e à consciência, não pode194 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
3
Essa barreira criada por um analfabetismo natural ao inconsciente é, talvez, semelhante à existência do hímen nas mulheres, o qual também cria uma barreira de dor que protege as adolescentes
de uma gravidez precoce, favorecendo, ao adiar a penetração, a possibilidade de uma melhor
preparação e capacitação para o exercício da maternidade.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 195
Rafael E. López Corvo
riam atuar com a mesma eficácia. Seria similar aos atores de uma peça de
teatro que, em lugar de desempenharem os papéis que lhes são atribuídos,
insistissem em ser, eles próprios, manifestando seus próprios interesses e
conflitos, obstruindo assim a genuína representação da peça.
Quando os egípcios inventaram os hieróglifos, fizeram-no com o objetivo de comunicar mensagens de maneira clara e prática, que pudessem
ser entendidas, jamais com a intenção de fazer deles uma espécie de quebra-cabeças ininteligíveis. A obscuridade dos hieróglifos é, antes de tudo,
conseqüência direta da forma como a história os foi ignorando, até a intervenção de Champollion, que os resgatou de serem considerados somente
elementos decorativos e irrelevantes. De maneira similar, o repúdio (repressão) pôde tornar as criações inconscientes – os sonhos, por exemplo –
decorativas e irrelevantes, até que, assim como Champollion, fossem resgatadas por Freud. Analogamente ao obscurantismo histórico dos
hieróglifos, o inconsciente é mais acessível durante a infância e, com o
desenvolvimento, vai perdendo sua clareza original. O “medo à verdade”
se impõe progressivamente com a socialização e o passar do tempo. Nós
nos transformamos em ‘analfabetos do inconsciente’ e depois precisamos
do psicanalista como tradutor, para que nos ajude a domesticar a consciência e fazer do inconsciente um instrumento essencial de sobrevivência.
Poderíamos conjeturar que tal ‘analfabetismo para o inconsciente’ representa uma espécie de barreira natural que nos protege da ansiedade – ou do
terror – gerada pela verdade, pois não seremos capazes de entender a mensagem mostrada pelo inconsciente, até que o eu esteja preparado para conter o impacto da verdade. Seria como permitir ao eu a possibilidade de
escolher entre ‘conhecer’ ou ‘ignorar’, conforme se encontre apto para isso.
O inconsciente somente agirá em estreita conexão com os níveis de desenvolvimento do eu; em outras palavras, cada um terá o inconsciente que lhe
corresponde ou merece.3 A história da esfinge, no mito de Édipo, traz uma
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
conotação análoga, porque em grego ‘esfinge’ (Efige) significa ‘espremer’,
porquanto no mito a esfinge comete seus crimes por meio da estrangulação.
A esfinge se suicida quando a verdade de seu enigma é revelada por Édipo,
implicando, dessa forma, a violência devastadora que poderia significar,
para o eu, ser informado antes do tempo, quando ainda carece da devida
preparação para enfrentar a violência que a verdade sempre leva implícita.
Cada noite nos apresenta um dilema semelhante, quando a verdade, revelando-se por meio do enigma dos sonhos, é ignorada e se ‘assassina’ a
possibilidade de um insight; ou, pelo contrário, quando a verdade é revelada mediante o insight e se descobre o inconsciente repudiado dentro da
mensagem do sonho, então a intensidade emocional do trauma que estrangula como a esfinge gradualmente desaparece.
Existe outro aspecto interessante relacionado com a noção de repressão. Se nos fosse negada, por exemplo, a entrada em um clube exclusivo,
visto que o porteiro nos reconheceu como os mesmos que, minutos antes,
protestavam, diante de suas portas, contra as ações imorais que ali se praticam, diríamos que a entrada nos foi negada por sermos considerados suspeitos ou perigosos, mas não poderíamos dizer que fomos ‘reprimidos’. Se
as mensagens do inconsciente que denunciam as ‘mentiras’ da consciência
não são admitidas pelo pré-consciente, isso não significa, necessariamente,
que o conteúdo inconsciente tenha sido reprimido. Em última análise, significa valorizar em Freud o ‘ablehnung’, em lugar do ‘verdrängung’.
Instintos ou pré-conceitos?
A concepção freudiana do inconsciente como um depósito de impulsos ou instintos reprimidos que buscam satisfação foi influenciada tanto
pelas idéias de Darwin quanto pela invenção da máquina a vapor, tão popular naquela época. Fairbairn e Klein, por outro lado, sugeriram que o propósito do impulso estava dirigido mais para os objetos do que para uma
satisfação indeterminada. Mais tarde, Bion acrescentou a noção de uma
mente, como espécie de continente que determina o limite último de todas
196 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Denunciante de mentiras ou depósito de impulsos indesejados?
Tenho a certeza de que depois das contribuições de Bion, é absolutamente necessária uma revisão metapsicológica do inconsciente. Nesse sentido, o que agora tento expor refere-se a que a maior intenção do inconsciente não parece ser a satisfação de impulsos reprimidos nem a repetição
de relações objetais precocemente reprimidas, mas que seu maior propósito seria denunciar, contínua e incondicionalmente, as mentiras da consciência. Concebendo o inconsciente dessa maneira, estaríamos reivindicando desde uma natureza suspeita, pouco amistosa e até inútil, a outra mais
amistosa, mais valorizada e eminentemente prática.
4
“O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, e das coisas que não
são, enquanto não são”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 197
Rafael E. López Corvo
as operações mentais, de modo semelhante ao que Protágoras havia estabelecido previamente.4
Com base na idéia de Kant (1781), de ‘pensamentos vazios’, Bion
introduziu a noção de ‘pré-conceitos’, a qual, a meu ver, muda o conceito
de impulso ou instintos, tal como o estabelece a psicanálise tradicional. Os
‘pré-conceitos’ representam um estado de expectativa ou ‘desejabilidade’
comparável ao mecanismo inato ou predisposição que temos para o mamilo, ao nascer. Em outras palavras, quando o bebê (pré-conceito) entra em
contato com o seio, acontece um fato ou realização, que depois poderia ser
traduzido em um conceito, o qual Bion representa como uma forma de
relação continente-conteúdo. Depois do nascimento, os pré-conceitos ou
pensamentos vazios são preenchidos com realizações, experiências significativas com objetos reais, que a seguir são acumuladas na mente como
memórias. Dependendo da capacidade de tolerância à frustração, os préconceitos poderão ser descarregados como identificações projetivas ou ser
metabolizados por um mecanismo ao qual Bion denominou função alfa,
que permitirá transformá-los em conceitos; um mecanismo que representa
a capacidade do indivíduo para aprender, a partir da experiência e a conquista de um crescimento mental positivo.
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
Em “Aprendendo da experiência”, Bion (1962) afirmava que a teoria
de Freud (1911) sobre a consciência como único órgão de qualidades psíquicas não era satisfatória. Seu argumento não ia contra a validade de tal
asserção, mas sim contra o fato de não discriminar entre as diferentes
interações que ocorrem entre a consciência e o inconsciente. De acordo
com Bion, o modelo correto poderia ser descrito pela existência de uma
capacidade, similar à existente na visão binocular, a partir da qual duas
visões do mesmo objeto são correspondentes. Na psicanálise, o uso de
ambos os sistemas, consciente e inconsciente, para observar um “fato psicanalítico” é semelhante à visão binocular. Como imagens superpostas sem
gerar visão dupla, uma que olha para o interior com o olho do inconsciente
e outra, com o mesmo entusiasmo, com o olho da consciência, olha para o
exterior.
Em primeiro lugar, a interação existente entre o inconsciente e o préconsciente corresponde a uma relação de continente – conteúdo (
)
similar à observada entre o bebê (conteúdo) e o seio (continente), ou entre
o analisando (conteúdo) e seu psicanalista (continente). Em outras palavras, tal interação constitui a relação entre uma preconcepção e sua realização, dando lugar a uma concepção (LÓPEZ-CORVO, 2002). No bebê, o
instintivo e suas necessidades naturais, assim como o inconsciente, representam uma verdade biológica que é universal, predeterminada e
irrevogável. As diferenças no rêverie materno representam uma relação
‘continente-conteúdo’, estando determinadas por oscilações (mais ou menos) de acordo com a capacidade materna de metabolizar, ou não, as demandas biológicas do bebê. O conteúdo (inconsciente-bebê-analisando)
tem sempre a mesma intenção de denunciar a verdade; o que muda é a
atitude do continente (pré-consciente-mãe-analista). Bion afirma:
Se a mãe e o bebê estão ajustados uma ao outro, a identificação
projetiva desempenha um papel importante no manejo de uma realidade ainda frágil e rudimentar, usualmente na forma de uma fantasia oni-
198 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Creio que esse modelo nos ajuda a entender a relação entre inconsciente e pré-consciente. O inconsciente, como fonte contínua da verdade,
sempre ocorre de maneira análoga ao movimento infinito da água no rio de
Heráclito; sendo, ademais, incognoscível, não pode ser ‘sido’, mas sim
intuído, como o ‘O’ de Bion. Pode ser representado mais como uma atitude
do que como um fait accompli, e seu propósito principal parece ser o renovado desmascaramento da verdade do indivíduo em relação às mentiras de
seu consciente. Que a verdade seja bem recebida ou rechaçada por representar uma ameaça dependerá não da verdade em si, mas da disposição da
pessoa para aceitá-la ou rechaçá-la. Se a verdade se mascarar como um
‘derivado’ em um sonho, e caminhar nas pontas dos pés, apenas delineada
para não perturbar o dormir, o desprazer induzido ou não pelo reconhecimento de sua presença será um problema para o pré-consciente, que responde ao temor da consciência (supereu), mas nunca será um problema da
própria verdade. A verdade não é um problema para quem a exprime, mas
para quem a recebe – esse é o sentido real da identificação projetiva. Não é
a ausência da verdade que estimula o inconsciente, senão a existência da
mentira com seu poder onipotente e destrutivo, que poderia ser um risco
inclusive para a própria vida. Já o latim estabeleceu que ‘a consciência
mente,’ pois ‘mentir’ (mentior) e ‘mente’ (mentis) têm a mesma raiz. O
rechaço ou repúdio de uma mensagem do inconsciente pode induzir uma
reversão da perspectiva, significando isso uma fragmentação do eu e a
ausência de comunicação entre as partes cindidas.
Podemos conceber o inconsciente como uma instância que continuamente transcreve a verdade e constantemente denuncia a mentira, com o
que não quero dizer que a verdade precise ser pensada, posto que não necessita de um ‘pensador’; de igual maneira, também podemos imaginar a
relação entre o inconsciente e a consciência como análoga à ocorrida entre
5
As itálicas são minhas.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 199
Rafael E. López Corvo
potente que age de forma real. Inclino-me a crer que tal condição é
normal (1967, p. 114).5
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
o bebê e o rêverie materno, ou entre o paciente e seu analista. Poderíamos
imaginar uma continuidade que se estenda desde o extremo de um total
rechaço à mensagem do inconsciente – como sucede, por exemplo, nas
psicoses, quando o inconsciente, em compensação, se apodera da consciência, inundando-a – até o outro extremo, caracterizado pela total aceitação do conteúdo inconsciente – como se reflete na atitude do psicanalista.
O inconsciente representa, para o psicanalista, um órgão que continuamente reflete a verdade e, se for ‘contida’ pelo rêverie do analista, revelará a
fantasia inconsciente que permitirá vislumbrar o caminho a seguir para criar a interpretação. Entre ambos os extremos haverá situações intermediárias, como as neuroses e os estados limítrofes dominados por pensamentos
de caráter mágico e onipotente, mecanismos de evasão, embora não suficientemente poderosos para permitir um completo domínio sobre o princípio
de realidade.
Sonhos: o caminho real ou a verdadeira linguagem do
inconsciente
Bion, no entanto, diverge de algumas dessas sugestões de Freud e propõe que é o material consciente, e não o inconsciente, que está sujeito ao
trabalho do sonho. De acordo com Bion, o material consciente é armazenado como memória e mais tarde usado para fabricar sonhos ou, então, mediante o uso da função alfa, para realizar transformações da posição esquizoparanóide à depressiva. Bion diz: “Freud diz que Aristóteles considera que
o sonho é a forma como a mente trabalha durante o sono: eu digo que é a
maneira como trabalha quando despertos” (1992, p 43, 47).
A função alfa representa uma abstração usada para descrever a capacidade de transformar a informação percebida pelos sentidos (ou elementos beta) em elementos alfa (BION, 1992), a qual, além disso, provê a mente com material para a criação de pensamentos, permite discriminar entre
adormecido e desperto, estar consciente ou inconsciente, e proporciona um
sentido de identidade e igualdade (BION, 1967). O cérebro nunca descansa, porém flutua entre os estados de consciência e inconsciência, graças à
200 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
O inconsciente, mensageiro da verdade
Em notas de rodapé acrescentadas em 1914 e depois em 1923 (1900,
p. 579-80; 1923, p. 111-112), Freud adverte sobre o perigo de proporcionar
ao inconsciente uma qualidade, à qual se refere como “inconsciente misterioso” e que relaciona, na nota de 1914, com a insistência de Adler: “[. . . ]
os sonhos possuem uma função de pensar por antecipação”.6 Uma vez que
não tenho acesso às publicações de Adler, desconheço qual foi o contexto
em que ele fez essa afirmação, no entanto, tratando-se de Freud, obviamente estava se referindo a “pensar por antecipação” como uma maneira de
adivinhar o futuro, de modo similar à advertência que fez, previamente, a
respeito das associações do conteúdo manifesto do sonho com significados
irrelevantes baseados em crenças sobrenaturais. Considerando-a sob outra
perspectiva, a expressão “pensar por antecipação” poderia representar
igualmente a capacidade do inconsciente (pensamentos oníricos) de pensar
‘antecipando-se’ à consciência, como aquelas intuitivas revelações inconscientes referidas por cientistas como Friedrich August von Kekule, que
confessou ter descoberto a estrutura da molécula de benzeno depois de
sonhar com a Uróboro, a serpente que morde sua própria cauda.
Até o final de seus dias, Freud se manteve fiel à sua afirmativa de que
os sonhos, da mesma forma que sua noção do inconsciente como depósito
de instintos reprimidos, eram impulsos especificamente dirigidos à realiza-
6
N.T.: As itálicas são minhas.
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Rafael E. López Corvo
função alfa e à permeabilidade da “barreira de contato”, que permite que
um dos seus lados permaneça desperto, enquanto o outro está adormecido.
O trabalho do sonho representa a maneira como trabalha o pré-consciente,
em relação aos conteúdos do inconsciente, dependendo de se é a ‘barreira
de contato’ ou a ‘tela de elementos beta’ que domina. Para Bion, o pensar é
uma conseqüência dos pensamentos, e não o inverso. Pensar representa um
desenvolvimento obrigatório da mente, produzido pela pressão dos pensamentos.
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
ção de desejos, e quando, mais tarde, os sonhos de ansiedade e as neuroses
traumáticas mostraram experiências diferentes, estas o forçaram a introduzir outras validações teóricas. Meltzer considerava que Freud estava: [ . . .]
tão profundamente arraigado a um modelo neurofisiológico da mente, com
sua equação mente-cérebro, que não validou o peso da investigação acerca
do significado dos sonhos (MELTZER, 1984, p. 11).
Se o inconsciente representasse um simples instrumento de satisfações alucinatórias a desejos insatisfeitos, como é que difere tanto da função
do sonhar desperto? Que sentido teria repetir um atributo que já é exercitado pela consciência?
Em 1911, referindo-se à “interpretação de sonhos”, Freud também aludiu a certa classe de sonhos que denominou “sonhos-programados”, os
quais eram capazes de mostrar [ . . . ] toda a patologia do caso, ainda completamente desconhecida tanto pelo terapeuta quanto pelo paciente... e
equivalente, em certas ocasiões, à tradução, em linguagem de sonho, de
todo o conteúdo da neurose.7 (S.E., 12, p. 93).
No entanto, muito freqüentemente, nessa classe de ‘sonhos programados’ pareceria que a representação inconsciente que se mostra no sonho
estaria presente muito antes que o paciente a torne consciente; é como se o
inconsciente estivesse decidido revelar aquilo que o paciente, obstinadamente, estaria resistindo a conhecer, não tanto com a intenção de satisfazer
a um impulso reprimido, mas como uma tendência poderosa a mostrar o
que a consciência evita saber, como se o inconsciente estivesse, por sua
conta, ‘pensando por adiantamento’. Algumas vezes, no decorrer do processo analítico, alguns sonhos podem revelar comportamentos como também mudanças conceituais alcançados pelo paciente, dos quais parecesse
ainda não ter consciência. A análise conseqüente desses sonhos pode, com
freqüência, induzir resistência, porquanto o paciente imagina que a interpretação do sonho dada pelo analista representa ‘teorias do analista’ e não
7
As itálicas são minhas.
202 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Um exemplo clínico
O presente caso mostra uma discrepância significativa entre a linguagem do discurso consciente, por um lado, e o aparente mostrado pelo inconsciente por meio do conteúdo onírico, pelo outro. Ingrid é uma mulher
de 42 anos, casada e mãe de três filhos, que foi encaminhada por uma psiquiatra com quem esteve em tratamento por um período de dois anos, durante os quais ‘ia e vinha’. Depois de certo tempo a terapeuta desistiu de
continuar a vê-la, uma vez que sua situação marital havia se tornado difícil
e porque a relação entre elas se transformara em algo mais “amistoso que
terapêutico”. Durante a conversa telefônica em que essa psiquiatra me colocava a par do caso que me estava encaminhando, disse que havia tratado,
sem resultados, de torná-la consciente de “quão imoral e perigosa era a
situação na qual se colocava”; diz que aparentemente a paciente escuta,
porém sempre termina fazendo o que quer.
Mostra-se como uma mulher inteligente, sensível e atraente, vestida
de forma sedutora, com saias curtas e um comportamento mais de adolescente do que de adulta. No início do primeiro encontro, diz querer divorciar-se de ‘A’, com quem está casada há 24 anos, porque já não o ama. Manifesta, igualmente, que está profundamente apaixonada por ‘B’, sócio e “durante anos” o melhor amigo de seu esposo, o qual, por sua vez, está casado
com sua amiga ‘C’ e é pai de dois filhos. Casou-se aos 18 anos e “jamais
tivera outro homem”. Diz que seu esposo sempre abusou dela, menospreza-a e a trata como se fosse tola, e já há alguns meses vêm dormindo separadamente. Não havia considerado o divórcio até agora, pois não queria
desgostar sua sogra, que sempre lhe foi como uma mãe, mas ela morreu há
alguns meses. “Meu esposo está muito arrependido e começou terapia para
tratar de mudar, pois quer ter-me de volta. Penalizo-me dele, mostra-se
empenhado, envia-me flores e me oferece de tudo. Faz pouco tempo, me
presenteou com um carro novo.”
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 203
Rafael E. López Corvo
uma verdadeira revelação e compreensão de seu próprio material inconsciente resistido.
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
É a mais moça de quatro irmãos, existindo uma diferença de 20 anos
entre ela e a irmã mais velha, que com o irmão mais velho atuaram como
pais substitutos, porque os verdadeiros, devido à significativa disparidade
de idade, foram distantes e indiferentes. Ambas as famílias, a sua e a de
‘B’, emigraram do sul da Espanha para a Venezuela, 15 anos antes. “Viemos com pouco dinheiro, mas aqui fizemos uma fortuna.” Ela é designer
de jóias e tem exposto algumas de suas criações, já tendo inclusive ganho
um prêmio, ainda que não esteja muito segura do valor de seu trabalho.
Fala de ‘B’, seu amante: “é muito ciumento e muito religioso”, e sorri, “me
acusa de ser muito liberal, que sempre estou rodeada de homens e me visto
demasiadamente sexy, mostrando quase tudo. Estou apaixonada por ele;
penso que é minha alma gêmea e que ele me ama incondicionalmente. Sua
esposa ‘C’ suspeita de algo, mas realmente não sabe de nada. Ela chamou
meu marido e lhe disse que pensava que entre ‘B’ e mim acontecia algo e
eu o manifestava; meu esposo não acreditou nela”.
Na sessão seguinte, pede-me que lhe dê alguns conselhos sobre o que
fazer. Digo-lhe que seria ilógico aconselhá-la sobre uma situação tão delicada que ela conhece muito mais do que eu, mas que, no entanto, penso que
um tema importante pareceria ser o de quanto se sente dividida entre uma
parte que idealiza a relação que tem com ‘B’ e outra que desvaloriza sua
relação conjugal. Deseja divorciar-se sem medir as conseqüências, sem
pensar no que possa acontecer a ‘A’ e a ‘C’, e aos filhos de ambos. Pergunto-me se seu desejo de divorciar-se poderia estar relacionado a um desejo
de raiva e vingança contra um pai distante e indiferente, por quem se sentiu
abandonada. O perigo, disse-lhe, não é tanto divorciar-se e enfrentar as
conseqüências, mas sim que, tomando tal decisão, estivesse repetindo o
que anteriormente já pôde ter sentido quando, aos 18 anos, se casou com
‘A’ que talvez pudesse estar confabulando com ‘B’ contra ‘A’, como anteriormente pôde ter tramado com ‘A’ para se vingar de seu pai ausente; estar
disposta a sacrificar tudo, porque um homem lhe oferece um amor incondicional, que ela sente que tanto seu pai quanto ‘A’ na atualidade não lhe
proporcionaram. Escuta-me com atenção, para depois refutar tudo o que eu
204 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 205
Rafael E. López Corvo
lhe dissera; insiste em que ela havia pensado com muito cuidado sobre
tudo o que está relacionado, inclusive sobre as conseqüências, mas que
realmente ama ‘B’ e não pode esquecer todas as humilhações que ‘A’ lhe
fez passar.
Na próxima sessão, diz que não sabe bem por que vem me ver, que
está consciente de que não posso lhe dar conselhos e que, além disso, está
lúcida a respeito do que planeja fazer. Digo-lhe que, se bem que o que diz
possa ser verdade, há um elemento importante: que ao tomar a decisão de
romper um casamento de 24 anos e se mudar com ‘B’, ela pode estar deixando de fora o que realmente quer, além das partes ‘Ingrid-esposo’ e
‘Ingrid-amante’. Novamente nega o que lhe digo e acrescenta que essa é a
oportunidade de sua vida, que foi infeliz por muitos anos e que não tem
dúvida ao pensar que isso é o que lhe convém mais, ainda que esteja consciente das dificuldades que os filhos terão de enfrentar e do que as pessoas
falarão dela. Prosseguindo, recorda um sonho: Está em um apartamento no
décimo andar de um edifício. Sabe que ‘B’ está por ali, ainda que não o
possa ver. Encontra-se falando com ‘C’ por seu celular e esta última se
queixa de que ‘B’ a abandonou. A sacada do apartamento não tem balaustrada ou outra forma de proteção, mas há um conduto aberto em um dos
lados do edifício que poderia ser usado para se deslizar até a rua. Ela
trata de usá-lo, mas se apavora diante do perigo de cair, e decide subir
novamente ao apartamento. Diz que ‘B’ e ‘A’ possuem um apartamento de
praia, localizado no 10° andar, e que ‘B’ mencionou estar planejando ir lá
com ‘C’ durante as férias; isso a levou a se sentir muito ciumenta, mas ‘B’
tratou de acalmá-la, dizendo-lhe que não planejava lá permanecer, pois
somente levaria ‘C’ e regressaria imediatamente à cidade, podendo, assim,
encontrar-se com ela. Digo-lhe que me pergunto se o sonho lhe está dizendo que tomar o lugar de ‘C’ poderia implicar uma perigosa ameaça para
ela, semelhante a descer do 10° andar por um conduto aberto; como se uma
parte dela sinta que poderia estar saltando da frigideira ao fogo. Ela não
concorda e comenta que o sonho poderia ser interpretado de outra maneira,
mas não diz como.
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
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Na próxima sessão, fala sobre seus encontros com ‘B’. Diz que seu
esposo está extremamente amável com ela e lhe presenteou um carro novo.
Sua filha perguntou-lhe se havia algum problema entre eles. Recorda dois
sonhos: Leva seu carro novo à garagem e um homem negro pede-lhe as
chaves e começa a dirigir como um louco; ela diz-lhe que tenha cuidado,
pois o carro está com um pneu desinflado. No segundo sonho, sua filha
mais jovem está no hospital e uma enfermeira administra-lhe um medicamento por meio de um mecanismo colocado à frente da criança, como se
essa tivesse uma lesão na cabeça. A enfermeira monitoriza a quantidade
desse medicamento mediante uma máquina e a menina treme e se sacode,
como se a quantidade do remédio administrado fosse muito grande. Sobre
o segundo sonho, comenta que sente que sua filha mais jovem foi deixada
de lado, talvez porque a diferença de idade entre ela e os outros dois filhos
seja bastante grande. A filha mais velha é como seu braço direito o segundo
é um garoto e foi muito mimado; a menor, por sua vez, é um pouco como
ela foi quando criança, deixada de lado e ignorada. “Ela é rebelde como eu
fui.” A respeito do medicamento, diz que ‘B’ é judeu professo. No dia anterior, ‘B’ fazia referência sobre algumas coisas ridículas que os judeus atam
ao redor dos braços e à frente, tudo que ela considera tolo: “O que um
recurso tão estúpido pode fazer pela gente?”. Digo que talvez sinta que lhe
administro uma superdose de estupidez nas coisas que lhe digo. Não concorda. Acrescento que outra possibilidade seria que a de que a enfermeira e
a criança representassem partes internas dela, como se dissesse a si própria
que seu aspecto enfermeira em seu interior administra o aspecto criança
dentro dela, superdose de estupidez que ela aprende de ‘B’. Escuta, porém
nada diz. Após uma pausa, diz, com relação ao primeiro sonho, que seu
esposo está tratando de reconquistá-la e para isso a presenteou com um
carro de 70.000 dólares. Diz: “Um novo carro é como um novo homem”. O
negro recorda-lhe umas férias na Flórida, há alguns anos, em um momento
em que os noticiários informavam sobre um homem que havia assassinado
várias mulheres. Ela regressava ao hotel através de um estacionamento isolado, quando avistou um homem negro escondido por trás de alguns car206 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
8
N.T.: Recipiente de cerâmica, cheio de doces, que se costuma pendurar no teto, em uma festa
familiar, de aniversário ou infantil, para que alguns dos participantes, com os olhos vendados,
procurem quebrá-la com um bastão ou uma bengala, a fim de obterem os doces, que logo se
espalham pelo chão. Fonte: Diccionario de la lengua española. RAE, 22. ed., versão em CDROM 1.0.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 207
Rafael E. López Corvo
ros, assustou-se muito e correu com muita rapidez para o hotel. Sentiu que
estava em perigo iminente, e talvez esse tenha sido a ocasião em que mais
se assustou em sua vida. Digo-lhe que, aparentemente, uma parte dela sente que ‘B’, ‘seu novo homem’, é para ela uma ameaça real, tão importante
que a compara à ameaça que experimentou na Flórida; ou, talvez devido ao
fato de que o automóvel seja um presente de ‘A’, o indivíduo negro, ao
conduzi-lo, poderia representar o que ela sente que poderia estar fazendo
ao seu casamento, que já tem um pneu murcho. Ela recusa a interpretação
que lhe dou e me pergunta se essa é a única interpretação que seu sonho
poderia ter. Convido-a a pensar sobre alguma outra coisa que o sonho poderia estar representando. “Por que o carro teria que representar ‘A’ ou
‘B’?”, pergunta-me. Digo-lhe: “De acordo, mas é isso que você acaba de
dizer”. E acrescento que, aparentemente, existiriam duas partes diferentes
dela, uma que dorme e sonha, e outra que está desperta e não gosta do que
a parte adormecida sonha; além disso, se afiguraria como se não houvesse
comunicação entre suas partes, que sua parte desperta não gosta do que a
parte que sonha lhe oferece.
Na sessão seguinte, traz outro sonho: Está em algum lugar, em meio a
uma festa de crianças. Há uma ‘piñata’8 muito bonita e agradável à vista.
Há também um homem, um amigo próximo, que enfia uma faca na
‘piñata’, por trás, e nisso o recipiente transforma-se em algo vivo: agora é
um cão, que será usado em alguns experimentos. Irão dissecá-lo e cortá-lo
em pedaços. O homem do sonho é um amigo dela muito bom, que seus
filhos consideram muito divertido, pois lhes faz todo tipo de truques e
mágicas. Outro dia, foram todos comer em um restaurante chinês; havia
uma fonte com peixes coloridos e esse amigo colocou um pedaço de cenoura na mão e a introduziu na fonte, fazendo-lhes crer que havia agarrado
um peixe, levou sua mão à boca e fez como se estivesse comendo um dos
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
peixes; as crianças olhavam-no admirados. Em outra oportunidade, em que
fez uma parrillada em sua casa, estava assando um cordeiro e disse às
crianças que era um cão. Digo-lhe que talvez uma parte dela deseje que eu
seja como esse amigo, ou como um mágico em uma festa infantil, e transforme os assuntos sérios de sua vida real em simples brincadeiras divertidas e que a resgate das circunstâncias difíceis que está enfrentando. Ou, em
outras palavras, que eu possa impedir que uma feliz festa com uma piñata
(belamente decorada) para crianças (casamento) se transforme. em um sacrifício horrível de um pobre cãozinho (divórcio). Não concorda, e novamente pergunta sobre outra interpretação. Falo-lhe que talvez ‘B’ lhe pareça muito divertido como o seu amigo no sonho, e a faca introduzida na
piñata poderia representar um coito que a entusiasma, mas a induz ao sacrifício de sua família. Diz que, na verdade, ‘B’ é muito mais divertido do
que ‘A’, e, ainda que não esteja muito de acordo com a interpretação, pensará nela.
Na sessão seguinte, fala sobre a cerimônia religiosa de crisma da filha
menor, que está à espera que a igreja marque a data, para a qual virão alguns familiares da Flórida e da França. Tão logo isso acabe, diz que pedirá
a separação ao seu esposo e esperará um ano antes de ir morar com ‘B’.
Recorda um sonho: Está indo encontrar-se com ‘B’. Estaciona seu carro à
volta da esquina e vai buscar um carro antigo, de bebê, que ‘B’ lhe ofereceu. Podia ver através das casas, como se essas fossem de vidro. Podia
inclusive olhar para dentro da casa de ‘B’ e ver como ele vem descendo as
escadas de mãos dadas com sua esposa ‘C’, algo que a faz sentir-se muito
ciumenta. Associa o carrinho de bebê com filhos pequenos e quão vulneráveis e indefesos são. “Se houver uma pessoa ferida ou um animal, por
exemplo, um cão”, diz, “vou sentir-me mais motivada para auxiliar ao cão
do que à pessoa, porque essa sempre conta com mais gente disposta a
ajudá-la. A gente pode expressar se algo dói, mas jamais se pergunta isso
aos cães e, ainda mais, são tratados como se não sentissem dor.” Digo-lhe
que talvez ela coloque uma parte criança nos cães indefesos ou nos bebês
desvalidos, que ela sente que poderiam experimentar algo similar ao que
208 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Discussão
“O contato com a realidade”, expressou Bion (1992, p. 45), “não depende do trabalho do sonho” no entanto, o acesso da pessoa “ao material
produzido por esse contato depende do trabalho do sonho”. Os sonhos representam memórias de fatos não-digeridos, tanto internos quanto externos, que foram armazenados, para em seguida serem expulsos sob a forma
de ideogramas, que podem facilmente desaparecer ou encontrar uma mente disposta que os metabolize e transforme em material para ser pensado.
Ingrid é uma paciente nova que apresenta um conflito emocional de
grande significação e imponderáveis conseqüências, tanto para ela como
para as duas famílias envolvidas. Meu interesse nessa apresentação não é
tanto com o processo psicanalítico, mas com o imenso contraste entre sua
obstinada disposição consciente de negar as conseqüências, por um lado, e
as repetitivas denúncias e revelações da verdadeira natureza de seu conflito, mostradas por seu inconsciente, por meio dos sonhos, por outro lado.
Essa experiência mostra o trabalho de seis sessões, face a face, no lapso de
três semanas. Os sonhos são claros naquilo que, em minha opinião, tentavam assinalar, e não consigo ainda uma compreensão de seu simbolismo,
diferente do que então compartilhei com a paciente, apesar de seu freqüente pedido de uma interpretação diferente.
The unconscious: “messenger of truth” under Bions’ perspective of
the continent-content interaction
Abstract: The paper represents an investigation which tries to demonstrate, through clinics,
that the unconscious, more than an organ meant to store unconscious undesirable impulses
which continually looks for satisfaction, represents in an ontogenic sense an organ that
produces inexhaustive truth. As the conscience perceives the reality through information
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 209
Rafael E. López Corvo
ela sentiu quando criança, mas que em sua relação com os homens poderia
estar implícito algo semelhante, que cuidem dela incondicionalmente, mas
também pareceria que quer ter a certeza de que ‘B’ não irá traí-la. Nega e
diz estar absolutamente segura do amor de ‘B’.
O INCONSCIENTE: “MENSAGEIRO DA VERDADE” SOB A PERSPECTIVA
DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
sent by the sense organs, that are subdued to the principle of pleasure, there always exists
the danger of a lying conscience; a lie which often implicates in danger to life itself. The
unconscious then would act as a rectifying organ of the conscience lies, by means of “preconcept” states of wishful thinking or expectation comparable to innate or aprioristic
disposition of the baby towards the nipple. The concept of repression, created by Freud,
could be questioned since continent-content theory (Bion) that supports the pre-conscient
movement towards the thruth produced by the unconscious.
Key-words: Unconscious. Truth. Lie. Preconception.
El inconsciente: “mensajero de la verdad” desde la perspectiva de la
interacción continente-contenido de W. R. Bion
Resumen: El siguiente artículo representa una investigación que intenta demostrar a través de la clínica, que el inconsciente más que un órgano dedicado a almacenar impulsos
inconscientes indeseados que continuamente intentan lograr satisfacción; representa más
bien en un sentido óntico, un órgano que inagotablemente segrega verdad. En virtud que
la conciencia percibe la realidad mediante información obtenida por los órganos de los
sentidos, los cuales están supeditados al principio del placer, siempre existe el peligro que
la conciencia mienta; mentira que con frecuencia implica un peligro para la vida misma.
El inconsciente entonces actuaría como un órgano corrector de las mentiras de la conciencia
mediante ‘preconceptos’ o estados de deseabilidad o expectación comparable a la
disposición innata o apriorística que el bebé tiene hacia el pezón. El concepto de represión,
creado por Freud, puede ser cuestionado desde la perspectiva de la teoria del “continentecontenido” (Bion), que dá soporte al movimiento del preconsciente en el sentido de la
verdad producida por el inconsciente.
Palabras-llave: Inconsciente. Verdad. Mentira. Preconcepcion.
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210 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Maria Regina Lucena Borges
Rafael E. López Corvo
186 Saint Clair Avenue East, suíte 3
M4T 1N8 Toronto ONT, Canada
E-mail: [email protected]
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 211
Rafael E. López Corvo
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DA INTERAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO DE W. R. BION
212 Psicanálise v. 9, n. 1, p.189-211, 2007
Ricardo Avenburg*
Resumo: O pensamento humano constitui-se através do desenvolvimento da linguagem, a qual, com sua complexidade estrutural, permite
estabelecer novos sistemas de relação no mundo, dando origem à onipotência do pensamento. O mundo se enche de significados, como um
novo ar (alma, espírito) que tudo impregna. Essa visão de totalidade
está relacionada com a vivência oceânica, origem da religiosidade para
Romain Rolland. Tal concepção é discutida por Freud, que toma o
totemismo como origem das religiões. Opõem-se, assim, duas concepções de mundo, dois sistemas de pensamento, uma tendente à totalização
(vivência oceânica, religião em Hegel) e outra que divide o mundo em
dois setores contrapostos: o sagrado e o profano (consciência desventurada em Hegel, totemismo em Freud e em Durckheim).
Palavras-chave: Pensamento. Linguagem. Onipotência do Pensamento. Sentimento Oceânico. Religiosidade. Totemismo.
Todo pensamento pressupõe um processo de abstração:
abstrair determinados elementos de um contexto para
relacioná-los entre si, ocasionando o estabelecimento de
novos sistemas de relações que, sendo virtuais, isto é, potenciais, poderiam eventualmente realizar-se através da
ação no mundo real, o mundo das coisas. Os pensamentos
são relações entre representações; as representações são reproduções sensíveis, através de atos de descarga (p. ex., verbais) que remetem a experiências sensíveis provenientes do
mundo exterior ou do próprio corpo. Adquirem sua função
de referência a experiências; entretanto se diferenciam des-
* Psicanalista; Membro Titular em Função Didática e Fundador da APdeBA;
Membro Titular e Fundador da Asociación Psicoanalítica del Sur.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 213
Ricardo Avenburg
Sobre o Desenvolvimento do
Pensamento Humano
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
sas experiências, superam o nível de identidade de percepção com as mesmas (alucinação desiderativa) para converter-se em percepção daquelas
descargas que, sendo diferentes das percepções originais, as signifiquem.
Em si própria, a representação é uma estrutura composta de estímulos corporais (que surgem das tensões de necessidades), sensíveis (que provêm do
mundo exterior), e por descargas motoras que, se relacionando com estruturas similares, constituem sistemas de pensamento, os quais, ao mesmo
tempo em que permanecem cristalizados, tornam-se representações de coisas que poderão ser modificadas e ampliadas pela incorporação de novos
atributos ou predicados.
Esses sistemas de relação entre representações, e simultaneamente
entre representações de coisas e atributos (sujeitos e predicados), se organizarão nos diferentes níveis que Freud desenvolve no capítulo VII da
Interpretación de los sueños: primeiro através de relações de contigüidade
e continuidade, depois de analogia, os quais comporão os níveis de ligadura correspondentes aos processos primários. A seguir, aparecem outros tipos de relações: de causalidade, temporalidade (além da simples sucessão), espacialidade (além da simples contigüidade), comparação (além da
simples analogia, pelo menos formal), conseqüência, eventualidade, etc.
Esses tipos de relações constituem o processo secundário em seu pleno
desenvolvimento com a aquisição da linguagem verbal. Os processos primários estão vinculados à expressão direta das sensações de prazerdesprazer e pressupõem um eu-real primitivo (que discrimina, se bem que
em um nível elementar, o eu do mundo exterior), e sua forma de expressão,
ou seja, sua linguagem, são os afetos: descargas mais imediatas, menos
discriminadas em geral que as verbais. Essa linguagem afetiva passará, no
processo secundário, a dar colorido (timbre, tom, altura, etc.) às expressões
verbais e contribuirá com a linguagem gestual, com suas descargas voluntárias e neurovegetativas.
Creio que o surgimento do processo secundário na linguagem é um
traço próprio da espécie humana; seu estabelecimento abriu uma
potencialidade de ação, no mundo, que foi vivida como onipotência do
214 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
Soubemos que a ‘onipotência dos pensamentos’ era a expressão do
orgulho da humanidade pelo desenvolvimento da linguagem, a qual
constituía um extraordinário avanço da atividade intelectual. Abriu-se
o novo reino da espiritualidade, na qual predominaram as representações, lembranças e conclusões lógicas, em oposição à atividade psíquica inferior que tinha por conteúdo as percepções imediatas dos órgãos dos sentidos. Foi, certamente, uma das etapas mais importantes
no caminho para a humanização. Freud (1934-38), (1961, p. 221).
Há uma fase intermediária entre a das percepções imediatas dos órgãos dos sentidos e a dos conteúdos intelectuais superiores: a fase das representações e lembranças que já não reproduzem imediatamente as percepções sensíveis, mas que ainda estão muito próximas a essas últimas.
São precursoras daquelas representações e lembranças que, incluídas na
linguagem verbal, integram um universo de sistemas de relações muito
mais complexas e em uma relação muito mais mediatizada pelas percepções sensíveis e pelas lembranças derivadas muito mais diretamente dessas
percepções.
Das predicações mais elementares fornecidas pelo verbo de ligação
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 215
Ricardo Avenburg
pensamento. E realmente o é, se substituirmos o significado de “potência”
como “força” (significado que o Allmacht der Gedanken expressa em alemão) pelo de potencialidade, no sentido de virtualidade. Como
potencialidade de ação, amplia-se a capacidade de completar o que se conquistou com o pensamento verbal. E o que se conquistou a partir do princípio de realidade é aproveitado pelo eu de prazer, que identifica pensamento
e ação, e tende a transferir imediatamente as relações entre os pensamentos
para as relações entre as coisas. É o que dá origem às técnicas mágicas,
porém, ao mesmo tempo, à espiritualização do mundo. Diz Freud (193438), (1961. p. 225), (tradução nossa): “O avanço na espiritualidade consiste em que [o ser humano] se decide contra a percepção sensível direta a
favor dos assim chamados processos intelectuais superiores, ou seja, das
lembranças, reflexões, conclusões lógicas [...]”
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
“é”, que define um sistema de relações vinculado diretamente aos afetos de
prazer e desprazer (algo é prazeroso ou é desprazeroso) ou ao juízo de
realidade (isso é uma percepção, isso é uma lembrança), passamos a um
complexo sistema de relações sintáticas (que são relações mentais ou de
pensamento), como preposições, conjunções, pronomes, advérbios, formas
e tempos verbais, etc. Essas formas sintáticas estabelecem conexões que,
indo além das concedidas mais diretamente pelos órgãos dos sentidos,
apontam para relações que se referem mais ao essencial dos elementos relacionados (constituindo os chamados “universais”) do que a simples semelhança exterior ou o contato simultâneo ou sucessivo. O mundo se enche, assim, de novos significados; ou melhor, uma nova corrente de significados impregna o mundo com um colorido novo. O que a mente vai construindo, a partir das relações práticas com o mundo, é atribuído ao mundo
de maneira imediata. Surgem, desse modo, como disse antes, as técnicas
mágicas que, ao tomarem a conexão entre pensamentos como uma conexão real, pressupõem um mundo animado: é o momento em que aparece a
noção de psique ou espírito, vista como alento vital que se torna independente dos corpos. Constitui-se, assim, um mundo abstrato que, partindo da
onipotência do pensamento, que teve sua origem na aquisição da linguagem humana, permite estabelecer correlações entre fatos distantes entre si
tanto no espaço como no tempo. A possibilidade (potencialidade) que a
linguagem oferece para o conhecimento do mundo faz com que se valorize
por si mesmo, e o mundo do ‘logos’, que é em essência um mediador da
realidade (das coisas do mundo), tende a substituir as próprias coisas. No
entanto, cabe-nos a pergunta: que relação se estabelece entre as leis lógicas
e as que governam a realidade? A lógica não se constitui a partir da realidade e não forma parte dessa mesma realidade?
Ainda que a linguagem seja o ponto de partida do ‘logos’ e, portanto,
do processo secundário, não pôde evitar, desde o início, ser dominada pelas
leis do processo primário (magia) levadas a cabo pela força imperiosa dos
desejos.
Diz Freud (1934-1938), (1961, p. 222):
216 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
Etimologia de psique: do grego, “psiqué” (Dicionário Vox, 1995): sopro, hálito, alento vital; força vital; alma (como princípio da vida); vida;
ser vivente, pessoa, ser querido; alma (como contraposta ao corpo), espírito (como sede de sentimentos e afetos), coração, inteligência, mente, espírito, engenho; vontade, desejo, apetite, gosto; sombra de um corpo.
Quero esclarecer que as diversas acepções são os significados que esse
termo foi adquirindo ao longo dos séculos.
Etimologia de espírito: (Dicionário Vox, 1995) do latim, “spiritus”:
sopro de ar, ar; ar que se respira, hálito, alento; suspiro; emanação, odor;
inspiração; estado de ânimo, espírito; alma; auto-segurança, arrogância.
Etimologia de alma: do latim, “anima”: sopro, ar; brisa; alento, princípio vital (distinto do corpo, mas não equivalente a “animus”, mente), vida,
alma; ser querido; ser, criatura. Não deixa de chamar à atenção que a palavra se produz pela emissão da coluna de ar como vento ou hálito: o mundo
se anima quando se enche de hálito, se enche de palavras que impregnam
as coisas do mundo. Na Idade Média, quando se considerava se os universais (gêneros, espécies, etc.) eram coisas em si próprias, Roscelino, no século XI, dizia que eram “flatus vocis”, um sopro da voz.
Anaxímenes de Mileto (Kirk, Raven e Schofíeld, 1999), (tradução
nossa): Extraído de um texto de Aécio (Aécio 13, 4):
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 217
Ricardo Avenburg
Se pudéssemos confiar no testemunho da linguagem, foi o ar mobilizado que forneceu o protótipo da espiritualidade, pois o espírito tomou
seu nome do hálito de vento (animus, spiritus; em hebreu: ruaj, hálito). Com isso se deu também o descobrimento da alma como o do
princípio espiritual no ser humano individual. A observação voltou a
encontrar o ar mobilizado na respiração do ser humano, que se extingue com a morte; ainda hoje o moribundo exala sua alma. Porém agora
o reino do espírito se abriu para o ser humano; este estava preparado
para confiar a alma, que ele descobrira em si mesmo, a todos os outros
na natureza. Todo o mundo foi animado e a ciência, que veio tanto
mais tarde, teve bastante trabalho para voltar a desanimar uma parte do
mundo, e ainda hoje não terminou essa tarefa.
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
Anaxímenes de Mileto (filho de) Euristrato opinou que o ar é a origem
(fundamento, princípio) dos seres. Dele nascem todas as coisas e para
ele novamente se consomem (morrem). Como a alma (psique). Diz
que a nossa (a alma), sendo ar, nos mantém unidos, e a todo o cosmos,
o vento (pneuma: sopro, vento, hálito...) e o ar compreendem (envolvem, contêm); diz que ar e vento são sinônimos, mas ele se equivoca
opinando a partir do simples e uniforme que os seres vivos se compõem de vento e ar”. (As sublinhadas são palavras supostamente textuais de Anaxímenes).
Em resumo, o ar é o fundamento de todas as coisas, de tudo o que é; do
ar tudo nasce e nele se dissolve. Pergunto-me se isso que está aqui formulado em termos ontológicos pode ser pensado em termos do conhecimento
(gnosiológico): necessitamos de algo que tenda a unificar tudo o que é,
para, a partir daí, fazer nascerem diferenças e fazer que aí tais diferenças se
dissolvam. Ou seja, resgatar o que podemos entender como a essência das
coisas, sua alma, estabelecer as relações mais profundas entre elas; relações que transcendam a contigüidade, continuidade e analogias formais.
Isso que abarca todas as coisas e nos mantém coesos é a psique, que é ar e
vento, termos considerados sinônimos. O ar apresenta-se, assim, como a
forma concreta mais sutil para representar relações abstratas, é a
materialização, quase abstrata, das relações de pensamento.
Apreensão de totalidade: possibilidade da percepção imediata
da mesma
Diz Romain Rolland em seu diálogo com Freud(1923-36),(1993) (tradução nossa):
Vossa análise das religiões é justa. Porém, quisera vê-lo fazer a análise
do sentimento religioso espontâneo, ou, mais exatamente, da sensação
religiosa, que é completamente diferente das religiões propriamente
ditas, e muito mais duradoura...
Entendo por isso[…] o fato simples e direto da sensação do ‘eterno’
(que pode muito bem não ser eterno, mas simplesmente não ter limites
218 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
Freud (1929-30), em “El mal-estar en la cultura”, refere esse sentimento oceânico a um momento da vida, anterior à constituição do eu, período narcisista, em que o eu e o mundo são uma mesma coisa: do eu vai-se
desprendendo um mundo. Esse sentimento de unidade com o mundo se
mantém como substrato de todos os momentos ulteriores do desenvolvimento psíquico e “sob circunstâncias apropriadas, por exemplo, por meio
de uma regressão que alcance essa etapa, pode manifestar-se novamente”
Freud (1926-30), (1961, p. 426). No entanto, formula-se esta pergunta (p.
430): “que direito esse sentimento tem, de ser considerado a fonte das necessidades religiosas?... Um sentimento só pode ser fonte de energia quando ele próprio é a expressão de uma poderosa necessidade. Para as necessidades religiosas, parece-me inevitável derivá-lo do desamparo infantil e do
anseio pelo pai despertado por esse desamparo... Posso imaginar que o
sentimento oceânico ingressa, posteriormente, em relações com a religião.
Esse ser-um-com-o-todo, que lhe pertence como conteúdo do pensamento,
fala-nos de uma primeira tentativa de um consolo religioso, como outro
caminho para a denegação (Ableugnung) do perigo que o ego reconhece
como ameaçando a partir do mundo exterior”.
Para Freud, tanto como para R. Rolland, o sentimento oceânico faz
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 219
Ricardo Avenburg
perceptíveis e ser oceânico)... Acrescento que esse sentimento ‘oceânico’ nada tem a ver com minhas aspirações pessoais. Pessoalmente,
aspiro ao repouso eterno; a sobrevida de nenhum modo me atrai. Mas
o sentimento que experimento foi-me imposto como um fato. É um
contato. E como o reconheci, idêntico (com matizes múltiplos) em uma
quantidade de almas viventes, permitiu-me compreender que ali estava a verdadeira fonte subterrânea da energia religiosa; que depois é
captada, canalizada e dessecada pelas Igrejas: até o ponto em que se
poderia dizer que é no interior das Igrejas (qualquer uma que fosse)
que se encontra o sentimento ‘religioso’ menos verdadeiro.
Eterna confusão de termos em que a mesma palavra significa, aqui,
tanto obediência como fé a um dogma, ou a uma expressão (ou a uma
tradição) como: livre manancial de vida.
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
parte da religião. Em Freud, é secundário à constituição da mesma (embora
primário como sentimento em geral, correspondente à etapa narcisista da
evolução da libido) e é usado como defesa para rejeitar o sentimento de
desamparo, vinculado ao anelo pelo pai (correspondente à etapa objetal da
evolução da libido). Para R. Rolland, é um sentimento primário no que diz
respeito à “religiosidade”, embora seja desvirtuado pelas religiões existentes. Reitero: para R. Rolland, a fonte de toda religião, a energia religiosa,
provém do sentimento oceânico e, para Freud, provém de uma necessidade
que, surgindo do desamparo do ser humano, estimula-o a ir em busca de
um pai que o proteja. Não parece que R. Rolland esteja em desacordo com
essa última hipótese, ainda quando acrescente o termo “religiosidade”
como momento anterior às religiões, termo que Freud não adota. Ao falar
de religião, Freud refere-se a todo o sistema religioso, o qual, tendo sua
origem no totemismo, é produto do assassinato do pai da horda.
Independentemente das questões terminológicas, aceitando o sentimento oceânico como expressão da etapa narcisística, constituinte de um
momento de organização do psiquismo humano e seguindo Freud, se não
for das religiões, de quê poderia ser fonte? Creio que de muitas coisas:
antes de tudo da constituição ulterior do eu; também em um momento bastante posterior, da onipotência dos pensamentos, quando a linguagem verbal, sob a forma de “psique”, ar ou vento, envolve o cosmo. Em última
instância, o narcisismo é o ponto de partida de todos os momentos de constituição do psiquismo e, como disse Freud, seria a fonte direta do sentimento oceânico. Repito Freud (1934-38), (1961, p. 430): “Um sentimento só
pode ser fonte de energia quando ele mesmo é expressão de uma poderosa
necessidade” e a necessidade que sustenta o sentimento oceânico (ou, segundo R. Rolland, a religiosidade) há de ser de índole mais elementar que
a da saudade paterna.
As tensões de necessidade mais elementares que sustentam a vida em
geral são, segundo Freud, Eros ou o instinto de vida, a necessidade de se
integrar a tudo o que vive, e o instinto de morte, a necessidade de retornar
ao mundo da naturalidade inorgânica, ao qual pertencemos todos os seres
220 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 221
Ricardo Avenburg
vivos. O sentimento oceânico expressaria certo nível de consciência (consciência sensível, não necessariamente pré-consciente) de nosso
pertencimento à matéria viva e à matéria em geral. Esse sentimento não
seria a origem direta das religiões institucionalizadas baseadas no
totemismo, mas sim viria a ser um sentimento referente à essência de nosso
ser (chamá-lo ou não de fonte da religiosidade depende da extensão que
dermos a esse termo).
Podemos descrever três momentos diferentes com referência ao sentimento oceânico:
1) o momento original de não-discriminação entre o eu e o mundo;
2) constituído o eu, a consciência mais ou menos imediata (consciência perceptiva) do sentimento oceânico;
3) o que R. Rolland chama vida de razão crítica, processo secundário
para Freud, que passa por um pensamento conceitual sobre o cosmo (ou de
distintos níveis de totalidade, a partir da noção do ar ou psique em Anaxímenes, ou de “infinito” (“apeiron”) em Anaximandro, até às modernas cosmogonias. Esse seria um sentimento impregnado de distintos níveis de desenvolvimento conceitual e, simultaneamente, integrado nos mesmos.
Desse modo, a vivência oceânica leva-nos à cosmologia, pelo que pareceria ser fonte da filosofia, mais do que das religiões. Por que incluir aqui
a religiosidade?
Para Hegel, em sua “Fenomenología del espíritu”, a religião é um
momento do desenvolvimento do espírito, imediatamente anterior à culminância de tal fenomenologia, que é o espírito absoluto. A religião aparece
como “consciência da essência absoluta” (HEGEL, 1973, p. 395); nesse
sentido, a religião é um momento da filosofia que, sem chegar à abstração
do conceito absoluto, lida ainda com representações. Essa busca da essência se dá em cada um dos momentos do desenvolvimento do espírito: vai
das religiões mais simples às religiões naturais (a da essência luminosa, a
das plantas, a dos animais), passando pela religião da arte (que se expressa
na epopéia, na tragédia e na comédia), para chegar à religião revelada (no
cristianismo). Seguindo R. Rolland, poderíamos dizer que da vivência oce-
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
ânica passamos à religiosidade, fonte das distintas manifestações religiosas, cada uma das quais expressaria a essência de cada momento histórico.
Nos termos de Hegel, de cada momento do desenvolvimento do espírito.
O animismo: entre o sentimento oceânico e a religião
Freud salientou (1912-13), (1961, p.112):
A técnica do animismo, a magia, mostra-nos, do modo mais claro e
puro, a intenção de impor às coisas reais as leis da vida anímica, aí
onde os espíritos ainda não necessitam desempenhar papel algum, enquanto também os espíritos possam ser tomados como objetos de tratamento mágico. Os pressupostos da magia são, portanto, mais originais
e antigos que a doutrina dos espíritos, que constitui o núcleo do
animismo[...]
Enquanto a magia reserva aos pensamentos toda a onipotência, o
animismo cedeu uma parte dessa onipotência empreendendo com isso o
caminho para a construção de uma religião.
Freud se pergunta:
Que coisa deve ter movido o primitivo a efetuar essa renúncia?... Os
espíritos e demônios não são […] senão projeções de seus movimentos
afetivos; ele volta suas investiduras afetivas a pessoas, povoa o mundo
com tais investiduras e reencontra agora seus processos anímicos interiores fora de si. (1912-13), (1961, p. 113).
O animismo se originaria na reação afetiva de ambivalência que o
sobrevivente teria sentido diante de um morto querido e odiado; a projeção
do sentimento de ódio, para evitar o peso do conflito de ambivalência, teria
determinado a aparição dos primeiros espíritos que, segundo Freud e outros autores, seriam malignos. “Só somos diferentes (em relação aos outros
autores) porque não antepomos o problema intelectual que a morte coloca
para o ser vivo, mas transferimos a força que impulsiona a investigação ao
222 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 223
Ricardo Avenburg
conflito afetivo em que essa situação submete o sobrevivente.”
A onipotência do pensamento era o resultado da aquisição da linguagem verbal: a multipotencialidade dada pelo desenvolvimento de tal linguagem, com o desdobramento de um mundo de novas significações que
aponta para a constituição de universais. O animismo é uma concentração
da “psiqué” nos demônios, produto de um conflito afetivo canalizado pelo
pensamento, o qual, quando se estabelece em sistema, é objeto de um procedimento que, no sonho, Freud chamou de “elaboração secundária”. Em
cada novo nível de constituição do eu real, por exemplo, com o início da
constituição de universais, “vida” e “morte”, nesse caso, entra em jogo o eu
de prazer purificado, que tende a projetar ao mundo tudo o que provoca
desprazer ao eu: o mundo ampliado, revestido de novas significações, povoa-se de demônios. Freud antepõe o conflito afetivo (de ambivalência)
“ao problema intelectual que a morte coloca ao ser vivo”; é compreensível
que anteponha o conflito afetivo, ligado ao princípio do prazer, ao problema intelectual, mais ligado ao princípio da realidade. Aqui, porém, se formula o tema de um eu de prazer, e não somente do princípio do prazer. E
enquanto haja eu, há um começo de princípio de realidade e, para projetar
o desprazeroso ao mundo, deve-se previamente haver esboçado uma diferenciação entre o eu e o mundo (eu real primitivo). E a representação da
morte, que o ser humano vai construindo, transcende as associações por
contigüidade, continuidade e analogia; essa representação integra-se em
um contexto que inclui relações de causa, conseqüência, condicionalidade,
finalidade, temporalidade e espacialidade; constituindo-se em um conceito
universal, a morte, que tem, por sua vez, como conseqüência, a ativação de
afetos até agora não revelados. Por um lado, o medo de que isso aconteça a
alguém e, a partir do princípio do prazer e como rebote, da vingança do
morto; pelo outro, surge o conceito de finitude e, a partir do sentimento de
amor, a saudade diante da perda definitiva do morto, e o desmentido do
desaparecimento definitivo do objeto saudoso determina a aparição dos
demônios bons.
Aqui, porém, não estamos falando de alucinações, mas da construção
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
intelectual dessas personagens, espíritos que começam a povoar o mundo;
e essa construção intelectual vai-se levando a cabo seguindo as pautas do
princípio do prazer. Junto às práticas tendentes à modificação real do mundo, com o objetivo de satisfazer às necessidades, se sobrepõem as técnicas
mágicas, ligadas ao momento anterior, o da onipotência dos pensamentos,
mas que se aplicam aqui para influir sobre os espíritos. Já é religião o
animismo?
Cito Freud (1912-13), (1961, p. 112): “Enquanto a magia reserva aos
pensamentos toda a onipotência, o animismo cedeu uma parte dessa onipotência, empreendendo com isso o caminho para a construção de uma religião”. Para Freud, uma condição prévia da religião é a concessão da onipotência a um deus; cede-se aos espíritos e/ou aos deuses uma parte da onipotência (ou melhor, da multipotencialidade) adquirida no desenvolvimento
da linguagem. A partir dessa perspectiva, podemos dizer que o início das
religiões pressupõe uma renúncia à vivência oceânica e uma renúncia, pelo
menos parcial, à “consciência da essência absoluta”. De modo que o deus
ou o demônio absorve para si parte do narcisismo original do eu. Essa concentração de “psiqué” em um deus que, partindo do animismo, passando
pelo politeísmo e daí ao monoteísmo, é conseqüência de um avanço na
espiritualidade, como postula Freud em sua obra Moisés y la Religión
Monoteísta? Ou é uma regressão, uma personalização do que poderia ser
um conceito abstrato, um universal (se bem que a renúncia à imagem de
deus imposta pelo judaísmo implique em um esforço de abstração do que
seja em si um conceito abstrato)?
Para Freud, entre o animismo e a religião se instala o totemismo: o
totem é a concretização de um demônio que integra, dentro de si, caracteres
de malignidade e benignidade, e no qual se encarna o sentimento
ambivalente que originalmente se dirigiu ao pai da horda primitiva. O aparecimento do totem supõe o assassinato desse pai, com a emergência, após
o assassinato, do remorso, produto da saudade do pai, dado pela emergência dos sentimentos amorosos. O resultado desses fatos é a tentativa de
224 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 225
Ricardo Avenburg
revivê-lo na qualidade de totem, com a implantação dos tabus correspondentes.
Diz Freud (1912-13), (1961, p. 172): “A indeterminação, a abreviação
temporal dos dados em minhas exposições anteriores, dou-as por uma limitação exigida pela natureza do objeto. Seria insensato, igualmente, tender à exatidão, nessa matéria, como seria injusto exigir garantias”. É óbvio
que o assassinato do pai primitivo, no caso de haver-se produzido, não
pode ter sido um fato isolado; talvez fossem fatos repetidos no tempo e
estendidos ao espaço ocupado pelo homem, e que, a partir de determinado
nível de desenvolvimento intelectual e talvez sob a ameaça da extinção da
espécie humana, se chegou a essa transação, que supôs a elevação da figura
do pai e sua recriação no totem. Eventualmente tenham sido os séculos de
revoluções que assinalaram o fracasso da horda como instituição propensa
a satisfazer às necessidades humanas e, de acordo com Freud (1912-13),
(1961, p. 174), “porventura um progresso cultural, a manipulação de uma
nova arma, deu-lhes (aos irmãos) o sentimento de superioridade”. Esse
processo que, no caso de ter ocorrido, pode ter durado séculos (senão milênios) é o que supostamente se teria resumido no inconsciente da humanidade e/ou na conceituação de Freud como um episódio único em que, como
conseqüência à posse de todas as fêmeas por parte do pai, castigando os
filhos que pretendiam apoderar-se delas, se estabeleceu a aliança fraterna
que fez com que os irmãos voltassem do exílio e assassinassem o pai; seguindo-se a esse fato, surgiram os sentimentos de amor a ele dirigidos,
transformando-o em um totem e estabelecendo ambos os tabus: o do incesto e o de repetir o parricídio. O conflito com o pai (ou com a organização
social anterior) devia ter sido produto de um maior nível de integração
entre os demônios maus e os bons, surgindo o conflito de ambivalência
(talvez, nesse nível, ocorresse a descrição que Melanie Klein atribui ao
psiquismo infantil): sua resolução foi a repressão, tornar inconsciente o
conflito, erigindo um sistema de tabus.
Creio que o conflito que se desdobrou na horda não foi superado: o
parricídio persiste como filicídio (ou se mantém o filicídio da horda). Por
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
exemplo, nas guerras, e eventualmente estejamos nos aproximando de um
reaparecimento do conflito entre o pai e os irmãos repartidos entre as duas
metades da humanidade. A religião afirma-se sobre o totemismo e, enquanto fundada na repressão, deixa de ser consciência da essência: pelo menos
a essência do ser humano fica em parte reprimida e desconhecida. O processo de conhecimento mantém-se bloqueado pelo “credo quia absurdum”
(FREUD (1934-38), 1961, p. 226).
Para Durckheim (1993, p. 81-82):
os fenômenos religiosos se ordenam de forma natural em duas categorias fundamentais: as crenças e os ritos. As primeiras são estados de
opinião e consistem em representações; os últimos são determinados
modos de ação. A divisão do mundo em dois domínios, um que compreende tudo o que é sagrado e outro, tudo o que é profano, é o traço
distintivo do pensamento religioso [...]
[...] só nos resta a possibilidade de definir o sagrado frente ao profano,
baseando-nos em sua heterogeneidade[...] é absoluta [...]dois mundos entre os quais nada há em comum” (DURCKHEIM, 1993, p. 85). “As coisas
sagradas são aquelas protegidas e isoladas pelas proibições [...]; os ritos
são regras de conduta que prescrevem como o homem deve comportar-se
com as coisas sagradas” (DURCKHEIM, 1993, p. 88). Esse caráter sagrado
deriva, para Durckheim, de um culto primitivo e fundador dos demais e das
religiões em geral, que é o totemismo.
O totem é, tanto para Durckheim quanto para Freud, o sagrado por
excelência, e essa sacralidade é o ponto de partida das religiões. O totem
representa a essência de um clã e, sob esse ponto de vista, a religião, já em
sua forma totêmica, pressuporia uma tomada de “consciência da essência
absoluta” – porém absoluta para cada clã, o qual não deixa de reconhecer a
existência de tótens de outros clãs, pelo que o absoluto da essência se
relativizaria com referência à essência de outros povos. Por outro lado, é
uma essência influenciada por uma série de rituais e afastada do sujeito
enquanto profano. Por isso, a distinção entre os dois mundos, o sagrado e o
226 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
About human thought development
Abstract: The human thought is constituted by the development of the language, which,
with its structural complexity, permits the establishment of new relation systems in the
world, giving origin to the omnipotence of thought. The world is filled up with meanings
like a new air impregnating everything. The vision of the whole has to do with the oceanic
life, the origin of religion to Romain Rolland. This conception is discussed by Freud, who
considers totemic culture the origin of religions. Thus, two world conceptions are opposed,
two thought systems; one of them tending towards the whole (oceanic feeling, religious in
Hegel), and the other one dividing the world into two opposites: the sacred and profane
(unfortunate conscious in Hegel, totemic in Freud and in Durkheim).
Key-words: Thought. Language. Omnipotence of thought. Religiosity. Totemism.
Sobre el desarrollo del pensamiento humano
Resumen: El pensamiento humano se constituye a través del desarrollo del lenguaje,
que, con su complejización estructural, permite establecer nuevos sistemas de relación en
el mundo, lo que da origen a la omnipotencia del pensamiento. El mundo se llena de
significados, como un nuevo aire (alma, espíritu) lo que lo impregna. Esta visión de totalidad
es relacionada com la vivencia oceánica, origen de la religiosidad para Roman Rolland;
esta concepción es discutida por Freud que toma al totemismo como origen de las religiones.
Se oponen así dos concepciones de mundo, dos sistemas de pensamiento, una tendiente a
la totalización (vivencia oceánica, religión en Hegel), otra que divide el mundo en dos
setores contrapuestos: lo sagrado y lo profano (conciencia desventurada en Hegel,
totemismo en Freud y Durckheim.
Palabras-llave: Pensamiento. Lenguaje. Onipotencia del Pensamiento. Religiosidad.
Totemismo.
Referências
Diccionario Vox de la Lengua Española. Barcelona: Vox, 1995.
DURCKHEIM, É. Las Formas Elementales de la Vida Religiosa. Madrid:
Alianza, 1993.
FREUD, S. (1900). Interpretación de los sueños. Buenos Aires/Madrid:
Amorrortu, 1979. Vol.4.
. Der Mann Moses und die Monotheistische Religión. Frankfurt: S. Fischer
Verlag (Ed.), 1961.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 227
Ricardo Avenburg
profano, afasta-nos da possibilidade de uma “vivência oceânica”, de um
todo unificado entre o sujeito e o mundo.
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DO
PENSAMENTO HUMANO
Gesammelte Werke: Freud. Frankfurt: S. Fischer Verlag. vol. XIV.
HEGEL, G.W.F. Fenomenología del Espíritu. México: Fondo de Cultura
Económica. 1973.
KIRK, R.E . Los Filósofos Presocráticos. S. L.:Gredos, 1999.
Sigmund Freud et Romain Rolland correspondence: 1923-1936. PUF, 1993.
Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução: Maria Regina Lucena Borges
Ricardo Avenburg
Av. Coronel. Diaz, 2277, 8º “A”, 1425
Buenos Aires – Argentina
228 Psicanálise v. 9, n. 1, p.213-228, 2007
Rosa Broner Worcman*
Resumo: Montesquieu, nas Cartas Persas, ilustra a estranheza do homem quando confrontado com uma cultura desconhecida. Assim acontece em relação a psicanalistas: surgiram ocupando lugar inusitado, entre mago e médico, falando da existência de inconsciente, dizendo amenizar dores com conversa?! Mais estranho ainda, precisam experimentar o próprio remédio que preconizam?! Psicanalistas também estão procurando se situar. Citações de vários colegas, desde como ser um analista ideal até o de não haver fórmula para isso, sugerem características
necessárias. Porém, é diante do material clínico que se verifica o quanto
a prática pode estar longe ou perto do que se prega, submetidos que
somos aos nossos ingovernáveis “eus”, que insistem em se manifestar
no interjogo das forças em ação entre analista e analisando.
Palavras-chave: Psicanalista. Hipérbole. Mudança Catastrófica. Inveja. Fantasia.
Ah!Ah! O sr. é persa? Que coisa extraordinária!
Como é possível ser persa?
(Montesquieu – Cartas Persas)
E psicanalista? Que coisa extraordinária! Como é possível ser psicanalista?
Não é filósofo, não é medico, não é padre, não diagnostica, não dá remédio, não dá conselho, o que é isso? Conversa dia após dia, é pago para isso, meu amigo faz a mesma
coisa e não cobra; nem sabia que isso existia, fui aprender
na novela. Só louco vai ao analista?
* Psicóloga. Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São
Paulo.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 229
Rosa Broner Worcman
Como Alguém Pode Ser
Psicanalista?
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
Ouvi de um senhor em sua primeira entrevista: “V. não é psicanalista;
V. deve ser uma dessas pessoas que fez cursinho de fim de semana e agora
se diz psicanalista. Eu sei que psicanalista veste tailleur escuro, calça botas
até o joelho, usa cabelos presos, não fala, sabe tudo só de olhar pra gente”.
Uma colega contou que, ao dizer a seu paciente que costumava trabalhar com a pessoa deitada no divã, este rapidamente se deitou no canto e,
mostrando-lhe o espaço que sobrara, disse-lhe: “Pronto, pode vir”.
Outra: “Desculpe-me a franqueza, acho que não vai dar certo aqui; sei
que o paciente tem que se enamorar do psicanalista; como é que vou poder
me enamorar de uma mulher velha e feia? Eu só gosto de pessoas bonitas”.
Por aí se estende o mundo imaginário das pessoas: O que é um psicanalista? Uma pessoa que nem conheço e quer saber tudo da minha vida. Vai
me julgar, me avaliar. Que uso vai fazer do que eu conto? Vai falar pra todo
mundo? Estranheza, preconceitos, desejos se multiplicam, alguns deles
muito conhecidos: “Freud tudo explica”; “o analista sabe tudo”; “rapidamente vai fazer desaparecer minha dor, vou sair curado, perfeito”; “voume tornar um ser humano superior, semelhante ao analista, que é o máximo”. A partir daí, pode ter início o processo de desvelamento, de elucidação
dos pressupostos, se os dois estiverem disponíveis para observar e conversar sobre o que ocorre na sessão.
E o imaginário do analista? Compreende dois tempos: o primeiro,
quando inicia sua análise, com tudo o que existe das fantasias acima relatadas; afora isso, no segundo tempo, em função de sua opção, ao decidir por
uma análise didática no caminho de vir a ser psicanalista, o como trajar,
como deve ser o consultório – com uma ou duas portas, com sala de espera
comum a outros colegas; se deve cumprimentar dando a mão ou não, sorrir
ou não. Acrescentem-se as fantasias particulares advindas de sua própria
personalidade, no estágio de desenvolvimento em que se encontra, com
suas angústias, anseios, desejos, idealizações, fruto das experiências que
vai “sofrendo” na sua análise, nas supervisões, nos encontros com colegas,
com as recomendações lidas e ouvidas no contato com outras pessoas, no
trabalho com os analisandos.
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conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar
atenção e abandonar-se inteiramente à memória inconsciente” [...]
“simplesmente escutar e não se preocupar se está lembrando de alguma coisa” [...] “equívocos nesse processo... é quando se caiu seriamente abaixo do padrão de um analista ideal.
Até que se venha metabolizar e utilizar a atenção flutuante, que mais
tarde Bion introduzirá como “sem memória, sem desejo, nem compreensão”, até que se sinta um pouco mais livre para poder “experienciar” o que
se conceituou como transferência e contratransferência, complexo de
Édipo, identificação projetiva, etc., o analista se vê inundado e inibido pelas fantasias impossíveis de se tornar o analista ideal. Será que essa fantasia desaparece ou ela simplesmente vai-se transformando, à medida que
queremos conhecer cada vez mais? Conforme Freud (1908, p.152): “as
forças motivadoras das fantasias são desejos insatisfeitos e toda fantasia é
a realização de um desejo, uma correção de uma realidade insatisfatória”.
Klein (1960) enumera alguns elementos de uma personalidade bem
integrada, ponto de chegada desejado por todo ser humano, que resumo em
maturidade emocional, força de caráter, capacidade de lidar com emoções
conflitantes, equilíbrio entre a vida interna e adaptação à realidade, bem
como uma bem-sucedida fusão das diferentes partes da personalidade em
um todo.
Reik (1949) fala da necessidade de um ouvido aguçado para os processos inconscientes, do talento para observar e discernir nuances nos problemas psicanalíticos, com independência de julgamento e coragem intelectual; minimiza o fato de alguém ter diplomas, ter M.D., ter estudado
psiquiatria com sucesso, ter feito análise didática, ser membro de uma sociedade de psicanálise, pois nada disso prova que ele apreenda a psicologia
dos processos inconscientes. Se e em que extensão uma pessoa é um psicanalista, depende do tipo de sujeito que ele é. Para o estudioso, psicanalistas
nascem, não são feitos.
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Rosa Broner Worcman
Freud (1912,p.151) recomenda aos psicanalistas:
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
Zimerman (1995, p.152), a partir de sua leitura da obra de Bion, reúne
como características necessárias a um psicanalista: “identidade analítica,
amor à verdade, capacidade de ser continente, premonição, paciência, capacidade negativa, intuição, empatia, comunicação, discriminação, ética,
respeito e coragem”.
Permeando os volumes II e III de “Uma memória do futuro”, de Bion
(1977-79), encontramos vários de seus pensamentos e preocupações com o
vir a ser psicanalista: reconhece que existem enormes dificuldades, que
nunca se está apto; considera que não basta o querer, mas reconhece como
os pretendentes fazem esforços incessantes para se habilitar para o trabalho
– constantemente submetidos à disciplina de se aprofundar ao máximo no
conhecimento das forças onipresentes no ser humano, sem se desviar do
caminho de busca da verdade {O}, não obstante convivam com a impossibilidade de alcançá-la.
Como muitos autores se manifestaram com suas idéias, complemento
a seguir com opiniões de colegas expressas no número 39 da revista IDE
(2004).
Barros (2004, p.2-6) chama a atenção para o:
[...] nosso grande desafio atual, [...] não cair na tentação de uma avaliação superficial do que o ‘mercado’ precisa, mas aprimorarmo-nos
para dar conta da complexidade do funcionamento emocional humano, sem nos paralisarmos ou nos simplificarmos [...] Para isso, o analista precisa ser muito bem formado, necessita ele mesmo desenvolver
o máximo de suas potencialidades, como ser complexo e potencialmente capaz de compreender uma enorme gama de experiência humana [...] pessoa com capacidade de concentração, de leitura, interesse
intelectual, familiarizado com escrever, com uma razoável amplitude
de leitura (em muitas áreas), curiosa, de espírito aberto, reflexiva, no
que tange às suas experiências de vida.
Menezes (2004, p.7) destaca que a “escrita analítica e o pensamento
clínico supõem uma calma, um tempo interno de silêncio, um tempo de
232 Psicanálise v. 9, n. 1, p.229-252, 2007
DUARTE (2004, p.11) ressalta que o:
vir a ser psicanalista é um processo permanente, sendo que uma das
necessidades básicas é dispor de um mínimo de informações
epistemológicas sobre os elementos e influências que vão tendendo a
determinar a natureza do conhecimento em nossa área, a fim de evitar
se cristalizar em sistemas de crenças que não permitem, de formas mais
ou menos sutis, serem colocados em questão.
HERRMAN (2004, p.18) alerta para a:
posição do analista como eixo para os movimentos concretos da psicanálise; como tal, não se pode comprometer com os acontecimentos ou
ceder às exigências do paciente, sem graves danos para o processo,
mas sem imitações ou mimetizações.
Em MELLO (2004, p.74), sobressai a fé e a esperança que o psicanalista deve ter, já que o:
progresso e [a] sobrevivência de nossa disciplina estão nas mãos (ou
cabeça) dos analistas apaixonados por ela, a ponto de se deixarem ser
possuídos pelo inconsciente, pela associação livre, pela transferência,
pela contratransferência, pelo impacto das identificações projetivas
vividas, pelas intermináveis sessões psicanalíticas, etc. Nosso horizonte se orienta por Eros, e não pela fuga em pânico de Tânatos. A psicanálise é uma experiência dessa paixão num terreno de respeito à verdade.
Como vemos, as idéias são muitas e variadas. Não é meu objetivo
tecer comentários a respeito das diferentes aproximações de cada autor,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 233
Rosa Broner Worcman
negatividade ou de ausência, propício à germinação de palavras que sejam
ato, nas quais possam ir se esculpindo realidade que de virtual não tem
nada”.
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
mas dizer, como o artista plástico Leonilson: “são tantas as verdades”, ao
que acrescento: são tantos os pressupostos, são tantas as idealizações.
Nesse caminhar, vamo-nos constituindo como psicanalistas, estudando, aprendendo, raciocinando e, tantas vezes, racionalizando. Freud, que
diz que o que descobriu foi calcado no que intuiu com a observação de sua
experiência, dá-nos liberdade e estimula-nos a chegar a outros resultados,
ainda que diferentes dos dele, incitando-nos a investigar cada vez mais.
Bion considera que uma interpretação não deve ser avaliada como certa ou
errada, mas se é útil, se promove desenvolvimento – um movimento de
desestruturação para novas estruturações, a integração das múltiplas
facetas da personalidade de uma pessoa. FREUD diz o mesmo, embora
mencione técnica, mas cujo conteúdo parece desdizer semelhança com técnica:
a extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a
plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores
determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica; e ocasionam que um curso de ação que via de regra é justificado possa às vezes
mostrar-se ineficaz, enquanto outro que habitualmente é errôneo possa
conduzir ao fim desejado. (FREUD, 1913, p.164).
Com a apresentação da teoria das transformações, Bion (1965)
aprofunda, explicita e desenvolve o enfoque no acompanhamento da experiência emocional, reforçando o que já estava esboçado em Freud (1917),
ao mostrar que o nosso conhecimento acerca do material inconsciente deve
atingir a área do emocional do paciente, para não ficar como um conhecimento paralelo, que não produz mudança.
Ser ou não ser, eis a questão
(Shakespeare – Hamlet)
A grande conquista que a psicanálise nos traz é a possibilidade de,
através do pensar, conviver conosco mesmos, seres imperfeitos e limitados
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Rosa Broner Worcman
que somos; fazer da insatisfação um estímulo, sem que desistamos da luta
diante das frustrações.
Cada psicanalista, com sua experiência, com seus desejos, vai
formatando, explícita ou implicitamente, o que considera necessário, fundamental para o seu vir a ser psicanalista. Dizer, escrever, teorizar podem
estar muito corretos e serem bonitos, mas o relevante é o que se pode entrever a partir da prática clínica, na qual se põe à prova o que se está podendo
ser, ainda que o material apresentado não seja o todo. Trata-se, pois, de
uma transformação de um momento particular, de uma fase específica do
trabalho com determinado analisando; é quando podemos perceber como o
ideal fica distante da realidade, uma vez que nosso próprio inconsciente
nos prega peças, tantas vezes arrastados que somos pelas forças em ação.
O encontro psicanalítico é uma obra aberta, com múltiplas possibilidades de apreensão e outras tantas de verbalização, mais uma vez reiterando a dependência do interjogo das personalidades envolvidas, com seu nível de desenvolvimento, no determinado momento da sessão. É uma viagem que se processa entre calmaria e tormentas, eivada de situações, emoções e palavras que penetram, perturbam, profanam, necessárias para quebrar o gelo, a anestesia ou onipotência, estimulando a coragem para enfrentar o susto que é viver, o vir a ser.
Para a tentativa de acompanhamento de um trabalho que considero
psicanalítico, transcrevo a transformação do material clínico de um encontro com uma analisanda, de cuja personalidade destaco elementos de inveja e a violência de emoções. Alguns dados foram conscientemente mudados para proteger a identidade do analisando; outros, inconscientemente,
por estarmos constantemente sujeitos à interferência do desconhecido de
nosso mundo psíquico.
D. entra, lança-me um olhar, medindo-me da cabeça aos pés, e, com ar
superior, encaminhando-se ao divã, diz: Que sandália velha essa sua!.
Senta-se no divã para descalçar os sapatos, sorri-me insinuante, parecendo
dizer-me: “Você pode estar muito bonita, com roupa bonita, mas não sabe
se vestir; eu sei”, num tom misto de deboche, provocação, desprezo.
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
Um turbilhão aconteceu dentro de mim: emoções, sensações, idéias,
indagações, imagens, interpretações. Senti-me pressionada, exigida, puxada a tecer um comentário a respeito de algo relacionado à inveja; imediatamente ocorreu-me a idéia de que era para isso que estava sendo convidada;
no ínterim, surgiu a imagem de um filme em que uma jovem casada com
um ricaço combina com seu amante a farsa de seu próprio rapto, o que
acabou resultando em desastre para eles. Pensei que, se eu entrasse nessa
de falar sobre a inveja, seria uma farsa, estaria roubada a possibilidade de
fazer análise, entraríamos num conluio, o que seria um desastre. Isso tudo
em questão de segundos, como tão bem conhecemos.
Como escapar disso? Sentia-me incisivamente provocada, como se
ela dissesse: “Você tem que falar sobre inveja”, numa postura que me parecia uma espécie de gozo. Soou uma campainha quando fui tocada pela
entonação de desprezo, deboche, com que pronunciou ‘velha’; velha eu,
velha ela, ambas passadas dos sessenta anos. Foi fácil perceber o ataque;
dando-me conta do tom de sua voz, da imagem do filme, da pressão e do
não sei mais o quê, entretanto, juntei os elementos e aventei a hipótese de
que, paralelamente à inveja, se insinuava o desgosto, a existência da dor
que ela vivia pelo envelhecimento e, conseqüente, pela proximidade de
aposentadoria compulsória. Ocorreu-me dizer-lhe: Velho também pode ser
útil.
D. levou um susto; quedou-se boquiaberta, olhou-me de esguelha (terá
me visto, nesse momento, separada dela?) e calou-se por minutos, o que é
raro nela. Em seguida, num tom de voz que me parecia de conciliação, de
fazer-me uma concessão, diz: Eu também uso roupa velha. Lá em casa
tem uma porção de coisa velha; (e imediatamente arremete) mas é que
eu sinto inveja de você, que fica aqui e as pessoas todas vindo até você,
mesmo com toda essa chuva; e tem também todas aquelas senhoras
que vêm aqui com livro e caderno na mão, feito moscas no mel. Fico
com muita inveja (muito sedutora).
Durante seu curto susto, indaguei-me: será que teve alguma percepção? Acredito que a surpresa, o inesperado, introduz um espaço para o
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Rosa Broner Worcman
pensar, interrompe um caminho de antemão determinado; permite emergir
o “estranho”, o desconhecido. Em seguida, pareceu-me jogar com as palavras, ao dizer que também usava roupa velha, que até poderiam ter o significado de alguma percepção de seu funcionamento mental, como um tempo para se recuperar do susto e retornar a seu plano inicial. Confirmava,
assim, minha intuição de que queria falar sobre inveja, demonstrar como a
conhecia, o quanto dolorosamente sabia da presença de outras pessoas,
querendo que me sentisse culpada por isso.
Tive um momento de irritação, pois me lembrei de como faz questão
de aguardar a chegada e a saída de outros analisandos, como abre portas de
armários e de outras salas da minha casa para ver o que tem dentro, como
procura questionar porteiros; considerei que, paralelamente ao sentimento
de inveja, queria entrar dentro de mim, ser só ela; ser amada mais que
todas, fazer par comigo, desejando ser querida; ela queria mais do que o
que tinha. Entre as várias possibilidades, disse-lhe: É que você não se satisfaz com o que tem. Quer mais.
Insurge-se, alteia o busto e responde de imediato: Eu não quero tudo
(interrompi e perguntei-lhe: Você me ouviu dizer tudo?). Engole em seco,
esquiva-se ao meu comentário; terá se dado conta de sua voracidade? Mais
uma vez tenta uma reaproximação, fica queixosa e diz: É que não me
esqueço do que você disse uma vez a respeito das amigas de M.: “É
preciso também aceitar o desconforto de ter amigos, que podem te telefonar a qualquer hora”. (Sim, é verdade, a qualquer momento da sessão
procuro comunicar-me com ela, dizer-lhe coisas que lhe pareçam desagradáveis. Até aí parecia estar refletindo, levando em consideração o que havíamos conversado em outra sessão a respeito de que amigos podem também
ser inoportunos, requisitar-nos, não sendo só agradáveis.) Em seguida se
queixa: Mas para mim só telefonam quando precisam de mim; a T.
ficou falando uma hora e quinze comigo no telefone para depois eu
perceber que só me telefonou para pedir uma receita que tenho; não
me perguntou se eu tinha essa uma hora e quinze para falar com ela; e
só queria a receita, não é porque gosta de mim. E a G. (prima) que
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
mandou um e-mail para T. contando que teve um achaque, foi pro
hospital e pediu para ela me contar, mas não escreveu para mim.
Ouvia a queixa de não ser querida, valorizada, tão diferente de mim,
com tantos me procurando; vê-se injustiçada, culpabilizando os outros por
não receber o que merecia; e o que ela faz para que isso aconteça? Onde
está sua responsabilidade? De pronto surgiu-me uma lembrança. Lembranças se anunciam independentes de desejo, memória e compreensão, o que
não isenta da possibilidade de erros que, se percebidos, podem se tornar
proveitosos. Lembrei-me de que você me disse que mandou um e-mail para
sua prima parar de ficar se queixando para você.
Até então a conversa parecia estar ocorrendo num campo controlado,
defendido, cortês. Após esse comentário, houve uma reviravolta: as emoções surgiram torrencialmente e ela vociferou: Mas isso foi na época da
eleição do Bush. Ela estava me enchendo com os achaques e as idéias
dela, dizendo que os americanos são legais, que eles é que inspiraram a
Revolução Francesa... Vê que absurdo, ela não conhece História? E
passa a falar sobre o Holocausto, ataca os judeus, num aglomerado de vômitos esparsos e petardos, tendo havido um rápido momento que me chamou a atenção, em que abrandou a voz, dizendo baixinho que nem todos
os alemães foram culpados, para depois continuar esbravejando que os
americanos estão fazendo a mesma coisa no Iraque, matando civis... E
se enrolava, tropeçava nas palavras, com uma argumentação desesperada,
dando-me a impressão de que, ao mesmo tempo se debatia, se afogava e
me atacava.
Parecia-me uma criança birrenta que se joga no chão, se bate, grita,
xinga, se machuca. Eu a ouvia e me perguntava se seriam essas as emoções
que estavam procurando caminho, se teriam derivado da intolerância à
frustração por eu não ter entrado na dela e estar separada dela; ou por se ver
responsável por sua própria dor. Teria sido eu intrusiva com meu comentário? Seja o que for, transformei-me num perseguidor, que precisava ser
atacado.
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Poderia ser uma oportunidade para assinalar a reação à frustração.
Frente à evidência de alguma imperfeição sua, reage explosivamente. A
partir de minha imagem de criança birrenta, achei que isso seria improdutivo. Aproveitei uma pausa e disse: Você perguntou à G. porque não te escreveu? (Quis estimulá-la a pensar e não ficar envolvida em suas produções
fantasiosas). D. se acalma (dá-se conta que não me destruíra?), remexe-se
desconfortavelmente no divã e, baixinho, diz que tentou algumas vezes e
que, por fim, G. disse que não quis incomodá-la com seus achaques.
Anima-se e, já refeita, diz com voz alegre: É importante perguntar, saber conversar; já percebi isso com a Y. (filha). Eu cheguei para ela e
disse: Filha, estou carente! E ela: Corta essa, mãe. E eu completei: De
fazer carinho em você. Aí ela se achegou a mim. Você vê? Descobri um
jeito de falar com ela. Era o final da sessão e ela sai com um sorriso feliz,
vitorioso. Eu fiquei com muitas dúvidas. Teria sido uma tentativa de encontrar um objeto bom? Mais uma vez estaria me afirmando: viu como sou
ótima, como aprendo as coisas com você? Quis me agradar depois dos
ataques? Teve um vislumbre de que éramos separadas e procurou a filha
para se agarrar? Quis despertar inveja em mim, como se dissesse: “Vou
ficar com minha filha e você vai ficar aí sozinha?”. Estaria tentando satisfazer suas necessidades com suas próprias criações, operando no terreno
das transformações em alucinose? Estaria agradecida, apreciando os ganhos de uma análise? Cada uma das dúvidas levantadas oferece a oportunidade de diferentes linhas de teorizações.
Na sessão seguinte, ela me diz. Eu estou me salvando, porque aqui
posso soltar todo meu ódio, diferente do S. (marido), que é louco, ninguém pode falar com ele.
Novamente um sim e um não; agradeço pelo que recebo aqui e isso me
torna melhor que os outros. Somos nós duas versus os outros. Contudo,
noto que assinala que uma das funções importantes de um analista é a de
ser continente, permitir ao analisando expressar sentimentos, pensamentos, emoções que encontram oposição da autocrítica punitiva inconsciente.
Uma semana depois, ao se deitar, estende a mão em direção a um quadro,
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
que estava um pouco inclinado, suspende o gesto e diz: Eu, se fosse você,
endireitaria esse quadro. Perguntei-lhe: Você quer ser eu? Ela responde:
Não, estou aprendendo muitas coisas aqui com você que uso lá fora,
mas o principal é que estou tendo coragem de ser eu.
Vem dos gregos o ditado de que o destino do homem está em sua
alma; significaria que, para eles, tudo estava escrito, dependente dos deuses? Ou que o homem é escravo do que desconhece? O psicanalista acredita que há tratamento para o destino, por meio da descoberta de Freud, dessa
extraordinária situação humana em que duas pessoas se encontram para
investigar e tentar dar significado às experiências vividas.
Da minha leitura de KLEIN (1957), depreendo que, mesmo com todo
o peso que coloca nas forças instintivas destrutivas inatas, as quais poderiam tornar uma psicanálise inviável pela inveja excessiva (com tudo que a
acompanha em rivalidade, competição, reação terapêutica negativa), ela
enxerga desenvolvimento como possível, em função das forças construtivas que diminuem o impacto das destrutivas. Bion reforça e amplia essa
visão com a ênfase que dá ao trabalho com os aspectos psicóticos da personalidade, tornando-nos mais sensíveis a esses aspectos comuns aos seres
humanos.
Após dezesseis anos de trabalho com D., vem-se evidenciando uma
forte determinação de se enfrentar com seus aspectos destrutivos e tentar
controlá-los, também entrevistos a partir de relatos de sua vida. Esses sinais, no entanto, aparecem em meio a uma massa de elementos carregados
de onipotência, avidez, desespero; de vontade de querer ganhar, vencer e
de medo de deprimir. Noto que, mesmo manifestações de cuidado, carinho,
vêm entremeadas de sadismo.
Expansões – idéias em trânsito
“embora tenha sido um leitor voraz e ardente
não me recordo de nenhum livro que tenha lido
a tal ponto eram minhas leituras
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O universo da relação é infinito. Impossível apreender o todo que
acontece na experiência emocional, não somente de uma sessão psicanalítica, mas após ela, bem como a cada momento de vida. Escritores, músicos, poetas, filósofos, pintores, cada um à sua maneira, traz à tona parte
desse universo. A singularidade de nosso trabalho, como analistas, consiste
em tentarmos nos aproximar desse acontecer numa relação vivida a dois,
com uma escuta peculiar, sem sofisticar esse encontro, atentos às possíveis
ressonâncias e transformações em ação para; a posteriori, ampliar o campo
de reflexões, descobrir novos significados. Percebemos que o que apreendemos é uma pequena parte do acontecer psíquico prenhe de sentimentos,
fantasias, emoções, idéias, intuições, premonições, com suas miríades de
nuanças que transcendem a linguagem, pois como dar nome às vivências
primitivas, tantas vezes experimentadas até corporalmente? Resulta que o
que comunicamos verbalmente ao analisando é uma parte ainda menor. E,
ao ler o que transcrevemos, vemos que está permeado de faltas, além de
surgirem novas percepções e outras possibilidades de caminhos. Tentando
aproximarmo-nos de verdades, acercamo-nos de incertezas. Há mais coisas entre analista e analisando, entre o analista e ele mesmo, do que a nossa
mente incipiente pode comportar.
Procuramos investigar o desconhecido, o que vai além da realidade
sensorial; lidamos com coisas sutis, mas que são tão reais que nos afetam e
poderiam até mesmo nos destruir.
Proponho-me pensar a partir do material de uma única sessão, na tentativa ilusória de limitar o campo, pois essa analisanda em especial convence-me de que todas as teorias que conheço mal perpassam as fímbrias
de seu ser.
Nos nossos primeiros encontros, deu-me a impressão de um monte de
partes despedaçadas, desconjuntadas, esfinge sem contorno. Atualmente,
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Rosa Broner Worcman
estados de minha própria mente
sonhos meus e, mais ainda, provocações de sonhos”
(F. Pessoa)
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
posso usar a metáfora conhecida dos vários atores diferentes desempenhando um drama longo e complexo, aos quais vamos tendo a chance de sermos
apresentados e de reconhecê-los nas suas diferentes roupagens.
Como F. Pessoa nos versos acima transcritos, acredito que subjacentes
às nossas percepções, intuições, pensamentos e ações, estão as teorias
conscientes e inconscientes que organizamos a partir de vivências sofridas
pelas circunstâncias, que fazem com que nossas leituras, por mais objetivos que queiramos ser, se transmutem em estados de nossa própria mente.
Psicanálise é função da personalidade do psicanalista – personalidade essa
que se vai desenvolvendo vinculada às qualidades herdadas mais as experiências vivenciadas desde um tempo que não sei precisar; cada vez penso
mais na questão da filogênese e ontogênese. Esse conjunto colabora para o
como estar na vida, que engloba os elementos das teorias que se selecionam ou pelos quais somos selecionados. Creio que a teoria é nossa tentativa de ordenar o caos, de delimitar onde se situa nossa práxis, de assinalar o
que fazemos como sendo psicanálise.
No material transcrito aparecem elementos que me autorizam a utilizar a teoria da inveja, tais como ciúme, superioridade, voracidade, rivalidade, competição, ódio e as defesas contra ela.
Conhecemos em nós mesmos e na história da humanidade a presença
e as conseqüências perniciosas desse sentimento; quando a serpente instiga
Eva a comer do fruto proibido – uma das possíveis versões é que estava
mobilizada pela inveja de Deus, talvez pensando: Quem é ele para se colocar superior a mim, para ser amado e obedecido por Adão e Eva, enquanto eu fico aqui, rastejando? Quando Eva aceita a proposta também poderia
estar sob a influência da inveja, como daquele seio que tudo provê, mas
guarda para si algo que ela quer ter e não tem, do qual se sente roubada e
quer roubar. A civilização vem escrevendo muito de sua história sob a égide
da inveja: guerras, conquistas, ultrajes, lutas políticas, religiosas, empreendidas a partir do eu quero o que você tem, ainda que me custe parte do que
eu tenho. “Odisséia”, de Homero, o “Inferno”, de Dante, “Macbeth”, de
Shakespeare, são algumas das obras-primas que apresentam o sofrimento e
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conseqüências de inveja; entre elas coloco “Inveja e Gratidão”, de Klein
(1957), em que, em linguagem contundente, ela aborda e abarca a inveja
em suas inúmeras facetas, dos fatores primitivos, constitucionais, manifestações, às defesas e possibilidade de integração. Ressalta que a capacidade
para o amor tanto quanto para impulsos destrutivos é, até certo ponto, constitucional; que a inveja contribui para as dificuldades do bebê em construir
seu objeto bom, pois ele, insaciável, sente que a gratificação de que foi
privado foi guardada para uso próprio ou de outrem, pelo seio que o frustrou.
Inveja e intolerância à frustração eram e continuam sendo fatores preponderantes no processo analítico que empreendemos, bem como a violência das emoções – incontáveis vezes vivenciadas e exaustivamente trabalhadas, já lhe permitem certo contato com esses elementos de sua personalidade. Sem duvidar da presença da inveja e de sua necessidade irônica de
depreciar-me, como através da “sandália velha”, pareceu-me que ela se
apercebera disso e tentava dar outra função para suas palavras, reivindicando ser produtor e consumidor, ou seja, veja como sou bacana, já conheço
minha inveja, sei tanto quanto você. Essa hipótese confirmou-se quando
ela explicitou e explicou o motivo de seu sentimento de inveja.
No breve espaço de tempo em que pude iluminar-me ou ser iluminada
pela presença de elementos mais sutis: entonação de voz, postura, sorriso
sardônico, pressão, imagem do filme, foi-me possível conjeturar que,
subjacente à inveja, estaria o desejo de ser amada, admirada e perceber,
como alerta Caper (1999), que existe a insinuação, uma tentativa de
conluio de nós contra eles – o nós sendo o analista e o analisando que se
compreendem um ao outro, e o eles são aqueles que não são os iniciados,
que nada sabem de mundo mental, que não sabem que têm inveja, que são
inferiores a nós, que somos super, que não aprendem como ela, que é ótima. A sua insistência em falar de inveja e a sua queixa sedutora contêm a
necessidade de demonstrar inteligência, sagacidade, esperteza e, assim,
despertar elogios e amor, talvez para evitar o medo de ser atacada, abandonada, de perder o objeto amado pelo ódio e agressividade. Pode ter ouvido
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
o meu “velho pode ser útil”, como se eu tivesse me ofendido e ela tentou
aplacar minha ira, condescendendo em que também usa roupa velha, para
novamente voltar à inveja e se fazer humilde, buscando meu amor. É doloroso para ela não ser a única, a principal. Contudo, é sabido que avidez e
inveja aumentam o sofrimento: a simples privação é vivida como frustração.
Parece-me que o contato real com a dor psíquica só foi possível quando tentei alertá-la sobre sua participação, sua contraparte no seu sofrimento, do ser compelida a culpar os outros exatamente para não se responsabilizar. O irromper abrupto de percepção é vivenciado como intrusão
dilacerante que devia ser implodida, ejetada com vômitos, petardos para
todos os lados e bem longe, até a Alemanha, o Iraque. Seria o que Bion
(1963-1965-1991) denominou de hipérbole? Ele adota esse termo para especificar a violência da emoção que se associa à inveja, quando transparece
a asserção de superioridade moral sem a mínima moralidade, contrastando
uma superioridade com a deficiência que encontra em tudo, tentando estimular culpa no analista. Sua característica mais importante é o ódio a qualquer novo desenvolvimento da personalidade, como se fosse um rival a se
destruir. Indago-me se essa manifestação turbulenta seria uma tentativa de
fuga diante da possibilidade do acontecer uma mudança catastrófica, ou se
chegou a acontecer a mudança catastrófica imediatamente evacuada pela
dor advinda do contato abrupto com algo novo, real e indesejado de sua
personalidade.
Até esse momento do rompante, parecia-me que D. driblava a dor, que
o temor ao ódio, à inveja a forçava a falar deles como se fossem coisas
banais, conhecidas, desconhecendo que, ao assim proceder, destrói a possibilidade de contato com ela mesma e com os outros. Plagiando F. Pessoa:
“O poeta é um fingidor, finge tão completamente que finge nem sentir a
dor que deveras sente”.
Minha formulação “V. perguntou a G. por que não te escreveu?”. Pode
ter sido uma tentativa de aplacar minha ansiedade diante daquela turbulência, mesmo não sabendo o que redundaria daquela indagação, que poderia
244 Psicanálise v. 9, n. 1, p.229-252, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 245
Rosa Broner Worcman
ter gerado mais ódio e culpa; minha hipótese é de que ela se acalmou por
ter me visto inteira, por ter tido um vislumbre do desarrazoado de sua reação, e/ou por ter podido acolher sua participação no seu sofrimento.
D. oscila entre inveja e tendência à gratidão; digo tendência, pois, ao
sair altaneira, com o olhar vitorioso, parece-me estar abrindo caminho para
reparação, ainda que travestida com roupagem maníaca; subsiste o desejo
de controlar o objeto, a gratificação sádica de superá-lo, pois talvez quisesse suscitar minha inveja ao falar de seu relacionamento amoroso com a
filha. Tendo eu feito uma formulação que possivelmente tenha estimulado
uma percepção contundente que a balançou, ao relembrar seu pedido para
que a prima não a incomodasse, isto provocou uma violenta e descontrolada eclosão de ódio, de dor; tornei-me perseguidora, a responsável por seu
sofrimento. Em meio à desorganização, foi incapaz de pensar; ainda assim,
deve ter percebido que havia algo de verdade presente, o que pôde estimular gratidão e apreciação pela capacidade do analista, mas, em seguida,
essa percepção de ter uma analista boa desperta a inveja, incitando à vontade de controle. É um movimento em espiral cambaleante, com evolução se
processando lentamente.
D. vem podendo ouvir o que falo e suas explosões, embora com intensidade semelhante à do início do trabalho, demoram menos tempo e surgem em menor freqüência. Parece-me que, quase a contragosto, está à procura daquela verdade que as pessoas procuram afastar de si, por não gostarem dela; até vem se permitindo brincar com o que descobre e que julgava
desairoso, mas, em geral, em sessões posteriores.
Há outros aspectos nessa sessão que mereceriam ser abordados, principalmente a questão da culpa: culpa pela própria destrutividade, por não
aceitar ajuda do analista, revivendo talvez a culpa arcaica de rejeição do
leite materno; pode surgir o temor de ser castigada, o que conduziria ao
esforço de conciliação para não ferir o analista. Curiosa a entonação, a
paradinha que deu ao falar que “nem todos os alemães foram culpados”.
Pareceu-me que se “perdoava” pela sua destrutividade, com uma possível
conscientização de que não era tão destrutiva como se imaginava. Será que
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
em algum escaninho de sua mente houve um assinalamento de que envelhecer não é conseqüência de destrutividade?
Outras versões são factíveis, bem como outras interpretações do material. Eu mesma me pergunto o que me fez caminhar nessa sessão diferentemente do que considero produtivo, que seria o acompanhamento das transformações da experiência. Poderia ter assinalado que ela deixou de lado a
idéia nova de “velho” (velho também pode ser útil) e retornou ao velho da
inveja, e assim por diante. Poderia assinalar que parecia querer que falássemos de inveja. Poderia... poderia... poderia..., mas o que toma conta do
analista durante o encontro? Seriam as memórias, reflexões metabolizadas
dos encontros anteriores confrontadas com a emoção, a angústia, as incertezas originadas no encontro, ainda quando se receba o analisando como se
fosse a primeira vez que o vemos? Afinal, o que está digerido, e mesmo o
indigesto, permanece, faz parte integrante das pessoas envolvidas na relação. A experiência clínica proporciona uma soma de pormenores cujo efeito cumulativo tende a aproximar-nos de O (realidade última, verdade), o
que vai sendo verificado se a pessoa adquirir a coragem de vir a ser – o que
é e não de parecer ser, que seria, talvez, um processo aprendido de como
ser.
Onde está a vida que perdemos quando vivos?
Onde está o conhecimento que perdemos com a informação?
Onde está a sabedoria que perdemos com o conhecimento?
(Eliot – Coros de “A Rocha”, p.175)
Esses versos de Eliot me remetem ao pensamento da evolução do homem; de como poderíamos nos apropriar daquela intuição dos animais,
daquele olhar e ouvido aguçado dos índios; de como, no nosso trabalho,
precisamos aprimorar o que permaneceu dessa capacidade intuitiva, unindo-a com a necessidade que temos de compreender os fenômenos, com
nossa capacidade para registrar, comunicar, desenvolver, e assim conseguir
realizar, aprofundar, reformular teorias. Que ousemos dar saltos conforme
possamos nos aproximar das sutilezas da alma humana! Afinal, os pensa246 Psicanálise v. 9, n. 1, p.229-252, 2007
vivemos a experiência mas perdemos o significado
e a proximidade do significado restaura a experiência,
sob forma diversa, além de qualquer significado. Como já se disse
a experiência vivida e revivida no significado
não é a experiência de uma vida apenas
mas a de muitas gerações – não esquecendo
algo que provavelmente será de todo inefável...
(The dry salvages, p. 220).
Psicanálise é uma ciência nova e em desenvolvimento; a grande dificuldade para esse desenvolvimento é que depende do nosso próprio crescer, com a possibilidade de refletir sobre esse crescer; além disso, seu criador, Freud, foi um gênio que, como um ímã, atrai e direciona o nosso olhar
para as amplas descobertas que tão bem articulou; a sua é uma obra aberta,
sempre surpreendente. Embora ele afirme a necessidade de constantes investigações, assinalando que o terreno é fértil, conforme elas vão acontecendo, parecem conter o gérmen de suas descobertas em tudo o que vem
frutificando; desenvolvimento vem-se processando lenta, mas persistentemente, com a prática e reflexão crítica do que existe e se percebe.
Eu sou eu e minhas circunstâncias (Ortega y Gasset), e ao tentar pensar o que é ser psicanalista chego a algumas respostas temporárias. Primeiro é que não há fórmula para isso, assim como não há fórmula para ser mãe,
pai, marido, esposa, etc. Além disso, é óbvio que não existe analista sem
analisando com quem se possa conversar, por quem as funções continentecontido sejam exercidas de modo a se constituir uma dupla construtiva;
também óbvio é que a verdade, tão almejada, é inatingível, aproximamonos até certo ponto; nossas hipóteses e teorias são no máximo plausíveis e
só relativamente verificáveis, fruto da experiência emocional; como
corolário, vir a ser psicanalista acontece com a observação da e na expeSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 247
Rosa Broner Worcman
mentos estão aí à procura de pensador; que as teorias nos sirvam para ampliar e significar nossa percepção, e não como escape ao nosso medo do
desconhecido. Recorro a Eliot para a expressão poética do que penso:
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
riência clínica, no refletir a respeito do que aconteceu, com as possibilidades de novas versões, ir descobrindo e sofrendo na pele os dilemas, realizando conceitos e teorias já descobertos por Freud, Klein, Bion, etc. É estar
presente no encontro in totum, atuante, atingido e atingindo por ações e
reações, “sofrendo”, pensando na experiência emocional oriunda de duas
mentes em interação, desenvolvendo a escuta peculiar que nos permita
ouvir o dito e o não dito, tentando dar um contorno significativo para a
experiência; se conseguirmos nos aproximar, no contato com o outro, de
que nada do que é do homem nos é desconhecido, ousaremos pensar, chegaremos a nos respeitar e aos outros; humildes, isentos de julgamentos
morais, pacientes com as dificuldades, as imperfeições; acolhedores de todas as qualidades positivas e negativas para tentar verificar suas funções.
Vir a ser psicanalista seria conseguir atingir a realidade de se ser humano,
com fraquezas, limitações, angústias, onipotência, inveja, desejos, amores,
numa luta constante com nossos ingovernáveis eus; não contra os eus, mas
com os eus, tentando conhecê-los o suficiente para poder utilizá-los a nosso favor. Apropriando-me do título de um trabalho de Bion, seria como
tornar proveitoso um mau negócio.
É um projeto, um processo que, a todo o momento, luta-se para realizar e, por mais que se faça, nunca se realiza plenamente; um contínuo tentar ir além. Esse é o propulsor para o desenvolvimento, que nos põe continuamente em movimento.
Uma viagem muito longa?
A personalidade do analista e o vínculo que se estabelece entre analisando e analista são os elementos principais num processo psicanalítico. O
recorte feito do que se observa na experiência emocional de uma sessão e a
verbalização do vivenciado pelas duas pessoas presentes são dependentes
da subjetividade, por mais objetivos que queiramos ser. A apresentação de
material clínico, seja em vinhetas, seja na transformação de uma sessão,
torna-se importante para que se possa apreciar e teorizar, a posteriori, como
estão sendo a apreensão e a realização de conceitos e teorias, o que não
248 Psicanálise v. 9, n. 1, p.229-252, 2007
Psicanálise é o nome de (1) um procedimento para a investigação de
processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro
modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento
de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de investigações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula
numa disciplina científica.
Durante muito tempo a preocupação dos analistas esteve voltada à
questão de cura, de remoção de sintomas, embora Freud considerasse que
isso seria um efeito colateral do trabalho. Com o avanço da percepção do
mundo psíquico, um maior número de analistas volta seu interesse para a
expansão da mente, de modo a passar de um conhecimento de si próprio
para um poder vir a ser o que se é. Não basta saber ser possuidor de inveja,
ciúme, ódio, amor, generosidade, coragem, etc., mas o essencial é vivenciar
tudo isso na experiência emocional junto ao outro, em suas múltiplas
nuances e momentos, aprimorando a capacidade de pensar, reconhecendo
e apreendendo a parte psicótica da personalidade, que todos nós contemos.
Bion propõe um modelo para a mente: seria como um mapa mundi formado por distintas regiões não lineares, que se enovelam, planas, montanhosas, quentes, temperadas, geladas, que deveriam ser visitadas numa psicanálise, tornando-nos cada vez mais senhores de tudo que herdamos, favorecendo nossa criatividade, para nos enfrentarmos com nossas vicissitudes. Nesse processo, vai-se desenvolvendo na personalidade uma função
psicanalítica que permitiria um processo contínuo de auto-análise.
Admito que o tempo de duração do processo psicanalítico empreendido entre D. e eu possa despertar surpresa e curiosidade; a mim, a partir de
minha própria experiência, causa espanto quando ouço de colegas: “Já terSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 249
Rosa Broner Worcman
invalida outras compreensões e diferente aporte teórico. Somente na prática é que se pode tornar vivo, real, o que na teoria pode ser lógico, bonito,
inteligente, mas não demonstra como é estar na frente de batalha.
FREUD (1923, p.287), no trabalho “Dois verbetes de enciclopédia”,
define:
COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
minei minha análise, pois já completei os 5 anos regulamentares”. O processo psicanalítico, quando visto como desenvolvimento do mundo mental, é uma longa viagem.
Na sua relação comigo, D. viu, viveu e “aprendeu” algumas coisas
que lhe permitiram “corrigir” seu relacionamento familiar, social e no trabalho, o que lhe propiciou melhor qualidade de vida. Talvez isso possa
denotar desenvolvimento mental. Nas poucas vezes em que propus à D. a
interrupção da análise, ela fez um denso silêncio e depois, em voz tensa,
disse: “Preciso de V. para me ajudar a pensar. Sei que sozinha não consigo,
vou como um rolo compressor nas minhas idéias, não vejo alternativas”,
ou “Sei que brigo com V quando V fala alguma coisa diferente do que eu
quero; mas não jogo fora, fico caraminholando e depois volta”, ou, ainda,
“Existe uma falha em mim que me faz caminhar como burro com viseira”,
o que corresponde à minha percepção. Será que haverá possibilidade de ela
vir a desenvolver a função psicanalítica?
Inúmeras vezes fui checar com colegas a possibilidade de estar havendo conluio, o que não foi detectado por nenhum deles, mesmo num acompanhamento prolongado. Assim, continuamos nossa viagem por caminhos
desconhecidos, tantas vezes procelosos. Até onde? Não sei...
How can anybody be a psychoanalyst?
Abstract: In the Persian Letters, Montesquieu illustrattes man’s strangeness when faced
to an unknown culture. This happens to the psychoanalysts: They emerge as magicians or
doctors, speaking of the unconscious existence and claiming that they can soften the pain
by talking?! Even stranger, do they have to experience the very own remedy they preconize? Psychoanalysts are trying to situate themselves through works, on how to be an
ideal analyst showing their doubts on a definite formula for it. Nevertheless it is before the
clinical material that they are aware of how much the practice may be near or far from
theory, submitted that they are to ungovernable “egos” who insist to be displayed in the
interaction of the forces between analyst and analysed.
Key-words: Psychoanalyst. Hyperbole. Catastrophic Change. Envy. Fantasy.
250 Psicanálise v. 9, n. 1, p.229-252, 2007
Resumen: Montesquieu, en las “Cartas Persas” ilustra la extrañeza del hombre cuando
confrontado a una cultura desconocida. Eso ocurre con los psicoanalistas: aparecieron
ocupando un lugar inusitado, entre mago y médico, hablando de la existencia del inconsciente, prometiendo amenizar dolores a través de charlas? ! Mas extraño, todavía, necesitan
experimentar la misma medicina que preconizan? ! Los psicoanalistas también están buscando situarse. Hay citas de muchos colegas, orientando cómo ser, desde un analista ideal, hasta no haber fórmulas para eso, sugiriendo una suerte de características necesarias.
Sin embargo, es delante del material clínico que se verifica cuánto la práctica puede estar
lejos o cerca de lo que se pregona, sometidos como estamos a nuestros ingovernables
“yoes”, que insisten en manifestarse en el interjuego de las fuerzas en acción entre analista y paciente.
Pallabras-llave: Psicoanalista. Hipérbole. Cambio Catastrófico. Envidia Fantasía.
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Rosa Broner Worcman
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COMO ALGUÉM PODE SER PSICANALISTA?
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Rosa Broner Worcman
Praça Germânia, 132/181, Jardim Paulistano
01455-080 São Paulo – SP – Brasil
Tel: (11) 3812-1775
E-mail: [email protected]
252 Psicanálise v. 9, n. 1, p.229-252, 2007
Tânia Leão Pedrozo**
Resumo: Este trabalho discute as relações entre homens e mulheres na
pós-modernidade. O que quer uma mulher? O que um homem quer saber? São perguntas que a autora faz para entender o que não funciona
nas relações entre os sexos. Em busca do gozo permanente, o homem
contemporâneo é levado a acreditar que terá tudo que quiser. O malestar atual se dá pela satisfação sem limites e não, pelo excesso de
recalque. Como ficam então as relações entre os sexos?
Palavras-chave: Significante. Pós-modernidade. Gozo. Recalque. Perversão.
“O maior mistério do mundo é a diferença entre sexos.
Talvez o único mistério. Por mais que queiramos, nunca chegaremos lá. Lá onde? Lá onde mora o Outro, a
diferença. Há alguns exploradores: veados, sapatões,
travestis, escafandros que mergulham nesse mar e voltam de mãos vazias.”
“O amor é a tentativa de pular esse abismo. O amor é a
patética falta de recursos de seres querendo ser absolutos, quando não passam de bichos relativos. De certa
forma, a trepada é a tentativa de um encaixe que não
acontece nunca, mesmo quando dá certo.”
Arnaldo Jabor
(do Livro Pornopolítica)
* Trabalho apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise, de 9 a 12
de maio de 2007, em Porto Alegre.
** Psicanalista da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 253
Tânia Leão Pedrozo
Encontros e Desencontros nas
Relações Amorosas*
ENCONTROS
E
DESENCONTROS
NAS
RELAÇÕES AMOROSAS
Introdução
Na pós-modernidade, masculino e feminino parecem cada vez menos
opostos e, ao mesmo tempo, nem tão complementares como se desejaria.
Longe, a confirmação da tão sonhada harmonia entre os sexos. As mulheres perguntam “O que devo fazer para ser amada e desejada?”Os homens
querem saber “O que faço para amar aquela que me revelou o seu segredo?”
Na dinâmica dos encontros e desencontros entre os sexos, os intensos
movimentos femininos dos últimos quarenta anos deslocaram os
significantes do masculino e do feminino, a ponto de os homens assumirem o papel de narcisos frígidos e as mulheres, o de desejantes eternamente
insatisfeitas.
A aproximação entre atributos femininos e masculinos, para os homens, é mais do que angustiante, é da ordem do terror e do fascínio; as
mulheres, por conseguinte, podem ser privadas do reconhecimento amoroso pelos homens não só por vingança, mas por eles não reconhecerem essa
mulher tão parecida consigo mesmos.
Em um contexto em que tudo se massifica, se globaliza, a própria
idéia de singularidade deixa de ser referência para dar lugar à produção de
identidades. Estas nada mais são do que próteses subjetivas para obturar o
fora de sentido que constitui o sujeito do inconsciente. O ser humano do
terceiro milênio acha insuportável ter de pagar o preço de suas escolhas.
Em busca do gozo permanente, o sujeito participa de uma cultura não mais
fundada no recalque, mas na livre expressão estimuladora da perversão.
Poderíamos indagar se, no fundo, não haveria um movimento no sentido
de anular o sexual, já que ele implica em um impossível a se realizar.
O casal contemporâneo, em meio à crise das referências, substituiu o
simbólico da troca por um contrato comercial e jurídico em busca da relação justa. Em vez de discutirem a si mesmos e suas singularidades, discutem a relação e a justa posição do fiel da balança.
Na guerra contra o desejo sexual poderá haver paz?
254 Psicanálise v. 9, n. 1, p.253-264, 2007
Nunca se teve tanta liberdade; nenhuma sociedade conheceu uma expressão tão livre quanto a que vivemos nos dias de hoje. Não só é possível
publicamente satisfazer todas as paixões, como também exigir o reconhecimento social delas e mesmo sua legalização.
Sabemos, no entanto, que para manter o jogo do desejo há de se conviver com a ausência. O desejo nasce da falta e por isso é desconforto; ele
desarruma, obriga a trabalhar, enfim, a viver.
O declínio da figura paterna que assistimos em final de processo determina o enfraquecimento do lugar da autoridade e o conseqüente esvaziamento da instância fálica. Dessa maneira, não se constitui a dinâmica em
que os objetos são sempre substitutos;não é possível, portanto, a
completude.
Charles Melman considera que atualmente há uma volta ao
matriarcado, regime em que o significante na linguagem remete a um objeto ideal que se encontra substantificado e é oferecido à captura, posse e
consumo.
As relações tendem a ser duais, do que decorre que os conflitos sejam
vividos como uma falta atribuída a um ou a outro. O terceiro é buscado, ao
tratarem-se as questões em termos de igualdade e identidade dos sujeitos
envolvidos. Só que esse terceiro é bem real, uma vez que pertence ao campo do direito, nada tendo a ver com o terceiro simbólico que constitui a
alteridade.
Se, para Freud (1924) (1969, p. 222), “a anatomia é o destino”, isso
significa que cada sexo recebe uma incidência simbólica, o que não se explica pela realidade dos sexos. Para Lacan, “a linguagem é o destino”; é a
cultura que designa os lugares diferenciados de homens ou de mulheres.
Atualmente, cada vez nos desvencilhamos mais dos símbolos; considerase absolutamente normal que os lugares de comando, por exemplo, sejam
ocupados indiferentemente por homens ou mulheres. Cada vez é menos
importante nascer menino ou menina.
Ao conquistar o acesso à sua capacidade de amar e trabalhar, a mulher
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 255
Tânia Leão Pedrozo
O Que Quer Uma Mulher? O Que Um Homem Quer Saber?
ENCONTROS
E
DESENCONTROS
NAS
RELAÇÕES AMOROSAS
deixou de ser, pelo menos predominantemente, a bela narcisista frígida e
imatura que, para Freud, tanto fascínio exercia sobre os homens. A intervenção tecnológica e em seguida ideológica permitiu discriminar sexualidade de maternidade e, até onde é possível, de amor. Como resultado, em
poucas décadas, as mulheres passaram a estar lado a lado com os homens
na condição de desejantes. Elas ganharam assim a possibilidade da escolha, ou melhor, das escolhas sexuais. O desejo responsabiliza sexualmente
as mulheres, como um dia responsabilizou os homens.
Ao medo ancestral em relação à mulher enquanto mãe, o homem
acrescenta o medo da mulher que deseja – a grande devoradora –, mas que
também pode não desejar ou, ainda, desejar mais do que o homem pode
dar.
A pergunta “O que quer uma mulher?”, que só poderia partir de um
homem, é evitada por ele, pois remete à dúvida que o torturou na infância,
quando saiu da posição de falo da mãe e, diante da incompletude dela, ele
se perguntou: “Mas, afinal,o que é que ela quer?”.
“O que quer uma mulher?” é questão que se coloca ao homem quando
sua virilidade é desafiada (principalmente pela histérica) ou quando entra
em crise por falha no mecanismo desejante do próprio sujeito.
Em geral, uma mulher entrando em análise se pergunta quem ela é.
Um homem só admite essa dúvida ao depositar na mulher a fonte dessa
incerteza. Através do enigma da mulher, que ele insiste em manter, é que o
neurótico se permite indagar sobre o próprio desejo.
A pergunta sobre o que quer a mulher é para ser formulada repetidamente, com a insistência do recalcado, mas não é para ser respondida. O
homem formula esta pergunta na medida em que ele anseia que a mulher
seja fundada pelo mesmo signo que ele, ou seja, o da castração idêntica,
configurando uma relação entre iguais.
Para a mulher, segundo Lacan, o homem é uma devastação. Tanto os
homens como as mulheres tentam assegurar a homogeneidade, ambos marcados pelo falicismo, restaurando a crença no universal. No entanto, ao
responder ao anseio do homem de que ela seja toda fálica, “um bom com256 Psicanálise v. 9, n. 1, p.253-264, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 257
Tânia Leão Pedrozo
panheiro”, a mulher se viriliza, abandonando as suas insígnias femininas.
Serge André chama a atenção para o fato de que o que está em questão
na pergunta de Freud é o querer, e não o desejo. Portanto, trata-se da ordem
dos processos secundários, das soluções de compromisso, dos objetos
substitutos àquele objeto para sempre perdido. Mas se o que um homem
quer é que a mulher o compense pela perda advinda da castração, sendo o
objeto do desejo dele, à mulher só resta mentir. Ora, o que um homem pode
saber sobre o que quer uma mulher se o que ele quer é que ela minta? “Me
engana que eu gosto”, diz ele, como nos mostra Maria Rita Kehl.
Arnaldo Jabor, em artigo publicado na Folha de São Paulo, escreveu
que o travesti é a mulher com que todo homem sonha: dedicada e
dominadora, ao mesmo tempo, capaz de uma entrega total, mas também de
uma exigência infinita, a própria encarnação do ideal da feminilidade.
Para saber o que quer uma mulher, seria preciso que o homem suportasse saber o seu próprio desejo. Assim, esta é uma pergunta a ser explorada, jamais respondida. O homem “sábio” seria aquele que, sem querer saber, detém-se na arte de fazer com que a mulher responda ao seu desejo, a
dizer: que ela minta bem.
Quanto à mulher, por sua vez, ela sabe muito bem o que quer: manejar
o desejo masculino, mesmo sem nomeá-lo. A representação do abandono,
o sacrifício na encenação do grande amor faz parte da brincadeira erótica
que, no entanto, muitas mulheres esqueceram de jogar em nome de sua
conquistada liberdade.
Homens e mulheres não conseguem evitar o mal-estar pertencente às
alegrias de suas relações, uma vez que são muitos os motivos para a insatisfação de ambos. A posição de objeto do desejo assumida pela mulher é
trabalhosa e sempre ameaçada, uma vez que o desejo dificilmente se detém
e nesse mascaramento algo do próprio desejo da mulher se aliena.
Esse homem que quer encontrar em uma mulher uma total disposição
amorosa quase sacrificial, aliada a uma capacidade viril de afirmar o próprio desejo e lutar por ele, tem, ao mesmo tempo, de se esforçar por
corresponder ao ideal viril imposto por esta mulher.
ENCONTROS
E
DESENCONTROS
NAS
RELAÇÕES AMOROSAS
Por Que Entre Homens e Mulheres as Coisas Não Funcionam?
Por Que a Guerra dos Sexos?
Freud, ao dizer que a sexualidade feminina tem três destinos: a neurose, a reivindicação viril ou a maternidade, não deixou à mulher outra saída
que não a fálica. Lacan tentou ir mais além, ao afirmar que uma mulher
pertence ao registro do não-toda – não-toda fálica. Há algo de incompreensível no gozo da mulher; um gozo para além das palavras, que transgride a
ordem fálica. Uma mulher aparentemente se entrega ao parceiro, mas, na
verdade, ela se divide entre este homem e o Outro do amor. Há algo na
mulher que resiste ao poder fálico, ainda que ela faça valer a potência masculina.
O homem é convocado pela mulher enquanto significante que lhe responda quem ela é; mais do que saber quem ela é para o desejo dele, porém,
a mulher precisa saber quem ela é para além da relação amorosa. Nenhum
amante saberia lhe responder, somente ela própria poderia descobrir. Mas
como levantar o véu, interrompendo a mascarada e se arriscar a decepcionar o outro?
A parte do corpo do homem que interessa à mulher é evidente. A questão é mais enigmática, entretanto, no que se refere ao que no corpo da
mulher causa o desejo do homem.
O que torna uma mulher desejável para um homem é a possibilidade
de ela encarnar o objeto, o objeto da fantasia desse homem. Ou seja, é uma
parte do corpo da mulher – uma parte imaginária, que será o suporte do
desejo do homem. Daí Lacan (1975, p. 53) poder dizer que “a relação sexual não existe”, uma vez que se estabelece não entre dois parceiros que vão
gozar reciprocamente de seus corpos, mas entre dois objetos que não são
os mesmos para um e para o outro sexo. Isso determina, em cada um dos
parceiros, um sentimento de que sua existência enquanto sujeito não é reconhecida.
Por que não pode haver uma relação conjugal sadia e sem conflitos?
Porque o que nos faz desejar é a desarmonia, o que causa o desejo é a
ausência de coincidência perfeita entre os parceiros. Se entre eles tudo co258 Psicanálise v. 9, n. 1, p.253-264, 2007
O Gozo a Qualquer Preço?
As transformações das sociedades determinaram uma nova interrogação das certezas de ontem. Faltam ao homem contemporâneo referências
que o ajudem a analisar as situações em que está envolvido, bem como o
auxiliem a tornar mais claras suas decisões.
O fim dos ritos e das tradições provocou um desenraizamento que, em
vez de tornar os sujeitos mais livres, tornou-os mais desamparados. Carente de identificações simbólicas, o sujeito contemporâneo luta incessantemente para conservar insígnias que estão sempre se desvalorizando. Não é
à toa que aumentam as depressões.
Não se trata de fazer um apelo ao “retorno às tradições”, mas de não se
promoverem mudanças por meio de rompimentos, porque ao romper esquecemos e ao recalcar somos determinados pelo que foi esquecido.
A função paterna hoje está cada vez mais desvalorizada. No entanto,
se o pai é aquele que interdita, ele é antes aquele que dá exemplo da ultrapassagem autorizada do limite para realizar o desejo sexual. Assistimos,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 259
Tânia Leão Pedrozo
meça a funcionar perfeitamente, a conseqüência é o tédio. A desarmonia
organiza e mantém aceso o desejo.
Hoje se procura resolver o problema do casal por uma igualdade, uma
uniformização do estatuto e do papel do homem e da mulher. Como se,
independentemente dos gêneros, não houvesse uma diferença entre os lugares ocupados por cada um dos parceiros na relação amorosa; como se
fosse possível se desvencilhar da tensão inerente à dimensão da alteridade;
como se fosse possível apagar todas as assimetrias, visando a um
igualitarismo que é, na verdade, uma imagem da imobilidade, da morte.
Atualmente, o valor simbólico das contribuições de cada sexo para a
organização familiar se diluiu. Não há mais razão alguma para que o homem e a mulher não ocupem as mesmas funções, seja na política, no trabalho ou em casa. No entanto, a democracia na cama não favorece o erotismo. A clínica está aí para nos mostrar os diversos casos de casais jovens
com vida sexual pobre.
ENCONTROS
E
DESENCONTROS
NAS
RELAÇÕES AMOROSAS
assim, a um movimento no sentido de se desembaraçar ao máximo do sexual.
Não é de se surpreender que hoje o gozo sexual esteja desvalorizado
em favor de outros gozos independentes e locais livres, anárquicos, de certo modo. Em detrimento do gozo fálico que impede o sujeito de gozar plenamente do objeto, já que interdita o desejo incestuoso, o gozo do objeto é
o gozo privilegiado. Trata-se de consumir e ser consumido pelo objeto.
No século XXI, vemos se modificar a relação do homem com o sexo,
em uma cultura que não mais se funda na representação, mas na
presentação, afirma Charles Melman. Em vez da aproximação organizada
pela representação, busca-se agora o autêntico, o objeto mesmo. Assim, o
sexo é encarado como uma necessidade, como a fome ou a sede.
Passamos de uma economia psíquica organizada pelo recalque a uma
economia que promove a livre expressão e estimula a perversão. Em busca
do gozo permanente, é insuportável para o sujeito contemporâneo assumir
as conseqüências de suas escolhas.
Os avanços tecnológicos, permitindo, por exemplo, o domínio da
fecundidade e da reprodução da vida, reforçam a idéia de que tudo é possível. O sujeito é levado a acreditar que ele terá tudo que quiser; o objeto da
satisfação existe.
Nas relações entre os sexos, a perversão tende a se tornar norma social, através da forma de se servir do parceiro como um objeto que se descarta quando se acha que é insuficiente. Na sociedade do espetáculo, a imagem é tudo, então o gozo freqüentemente se organiza pela exibição do que
normalmente escapa, do que se encontra mascarado, reservado. Trata-se de
levar a exigência de transparência às últimas conseqüências, o que determina que o olhar funcione muitas vezes como torturador. Temos aí o exemplo dos “reality shows”, como o “Big Brother”, que tanto sucesso fazem na
televisão.
Hoje, o desejo sexual está tão liberado que ele tende a se diluir. Diante
de tantos gozos fáceis de satisfação e muito mais econômicos, o desejo vai
para o segundo plano, freqüentemente encarado como uma simples ativi260 Psicanálise v. 9, n. 1, p.253-264, 2007
Comentários Finais
Qualquer observador da cena contemporânea não pode deixar de sentir profunda inquietação. Junto ao fantástico progresso tecnológico se construiu uma sociedade autodestrutiva e mutiladora, funcionando em uma dinâmica perversa.
Autonomia e solidão são características do sujeito atual. O sentimento
de vazio é acompanhado de uma atitude em relação ao outro que, muitas
vezes, parece mais próxima da indiferença que da culpa.
Enquanto na época de Freud o mal-estar surgia do excesso de recalque
dos desejos, o mal-estar hoje, quando o recalque foi em grande parte
suspenso, se dá pela satisfação sem limites.
Desejar o máximo de prazer com o mínimo de perda (ou mesmo sem
perder) e sem demora tem sido o objetivo dos sujeitos na sociedade conSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 261
Tânia Leão Pedrozo
dade corporal. A falta que gera o desejo é agora vivida como dano causado
pelo trauma – então o próprio desejo pode facilmente ser lido como um
trauma. Diante disso, a solução só pode ser ortopédica, o que leva a reclamar reparação.
No entanto, se não há desconforto, não há desejo. Somos colocados
em tensão justamente pelo que desarruma. No entanto, temos uma necessidade fundamental de segurança maximamente atendida pelas ciências
tecnológicas e pela economia de mercado. O problema é que também queremos aventura e empolgação. Como gerar entusiasmo, suspense e desejo
com a mesma pessoa de quem se espera conforto e estabilidade?
O dilema do casal atual é o tédio, seja pela exigência de igualdade
entre os parceiros que, em busca da relação justa, passam o tempo discutindo a relação, em vez de viver a relação com suas assimetrias, seja pelo
excesso de objetos que circulam entre as pessoas, em uma sociedade que
impôs a mercadoria como medida universal de toda riqueza, onde o sujeito
vale pelo que ele tem e não pelo que é, seja pelo tédio da exigência de tudo
dizer, tudo mostrar, seja pelo tédio da sexualidade feliz obrigatória, que
substituiu o tabu da virgindade, como escreveu Pasolini.
ENCONTROS
E
DESENCONTROS
NAS
RELAÇÕES AMOROSAS
temporânea. No que tange às relações amorosas, isso tem dado margem a
encontros e desencontros, talvez mais desencontros, porque a política do
“quero agora” e “mais, ainda!” implica intolerância e desentendimentos de
parte a parte.
Por outro lado, as novas gerações estão aí inventando soluções para
dar conta do desconforto que a vida amorosa causa. Os sujeitos masculinos
cada vez mais olham com desconfiança para o mito do “homem de verdade”, embora evitem ao máximo se perguntarem “o que eu quero?” ou
“quem sou eu?”.
Lacan afirma que a virilidade consiste no fato de um homem “de verdade” não se intimidar em se fazer de mulherzinha para seu amor.
Quanto às mulheres, a partir de suas conquistas e apesar de seus equívocos, elas podem vir a descobrir que uma mulher se faz, se cria a partir de
si mesma, ao levantar os véus do seu desejo.
A Psicanálise, como dispositivo de cura, mostra-nos que, apenas pela
afirmação daquilo que é singular e irredutível em cada sujeito, existe uma
perspectiva de cura.
Acho que a Psicanálise possibilita ao sujeito escrever uma nova história para si mesmo. O que é próprio da liberdade humana e se manifesta em
condições de diversidade e desenraizamento é a possibilidade de cada um,
homens e mulheres, iniciar alguma coisa, criar a partir de sua inserção na
ordem simbólica. Como psicanalistas, é nossa função colaborar nessa tarefa de fazer de cada sujeito um criador.
Agreements and disagreements in love relations
Abstract: This paper discusses the relationships between men and women in the postmodernity. What does a woman want? What does a man want to know? These are questions
that the author raises to understand what it does not work in the relationships between
sexes. In the search of an endless fruition the contemporary individual believes he will get
everything he wants. The present discomfort is due to a satisfaction with no limits and not
due to an excessive repression. What are the consequences in the sexual life of the
individuals?
Key-words: Signifier. Enjoyment. Repression. Perversion.
262 Psicanálise v. 9, n. 1, p.253-264, 2007
Resumen: Este trabajo discurre a respecto de las relaciones entre hombres y mujeres en
la contemporaneidad. ¿Qué quiere una mujer? ¿Qué quiere un hombre saber? Son
cuestiones que la autora hace para comprender qué non funciona en las relaciones entre
los sexos. En la búsqueda de goce permanente el sujeto contemporáneo cree en la
posibilidad de tener todo lo que desea. El malestar actual resulta de la satisfacción sin
limites y non del recalque excesivo. La autora examina las consecuencias de esto en las
relaciones sexuales.
Palabras-llave: Significante. Posmodernidad. Goce. Represión. Perversion.
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 263
Tânia Leão Pedrozo
Acuerdos y desacuerdos en las relaciones amorosas
ENCONTROS
E
DESENCONTROS
NAS
RELAÇÕES AMOROSAS
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Artigo
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264 Psicanálise v. 9, n. 1, p.253-264, 2007
Telma Barros
Solidão, Desamparo e
Criatividade
Telma Barros*
Resumo: A autora apresenta uma abordagem do tema da solidão em
suas diferentes acepções, enfocando sua dimensão positiva e aspectos
de sofrimento e dor que se fazem presentes na experiência humana. No
texto, o afeto da solidão é analisado nos planos da vida individual e
coletiva revelados no âmbito da cultura e da clínica cotidiana. O trabalho ressalta a importância da criatividade e do processo de criação na
relação analítica, como recurso para a elaboração dos processos emocionais associados ao sentimento de solidão. Com o objetivo de estabelecer uma relação entre a solidão e a criatividade, a autora utiliza-se do
conceito de resiliência e a título de ilustração alude ao filme “Amelie
Poulain”, para expor suas idéias sobre o assunto.
Palavras-chave: Desamparo. Patologias do Vazio. Holding. Resiliência.
Criatividade.
“Uma vida só pertence à pessoa que a vive. Eis a solidão em que estamos encerrados, como em um quarto,
como em um crânio, onde nossos pensamentos, por
mais que viajem, sempre nos trazem de volta a nós
mesmos.” Paul Auster.
Em relação ao tema da solidão e desamparo, a literatura nos oferece produções que focalizam esses conceitos em
suas diferentes acepções. Encontramos, pois, referências na
psiquiatria, psicologia, filosofia, sociologia e em outras
ciências.
* Membro Efetivo e Analista Didata da SPR. Diretora Científica da Associação Brasileira de Psicanálise – ABP. Diretora de Difusão e Extensão do Instituto Latinoamericano de Psicoanálisis – ILAP.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 265
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
Historicamente, há uma busca de compreensão da solidão em suas
múltiplas formas, significados e estados afetivos. Nos últimos tempos, assistimos a uma proliferação de livros, artigos, eventos científicos, debates,
etc., acerca de temas como sofrimento psíquico, desamparo, tédio, vazio,
violência, separação, perda, luto. Tal fato parece traduzir a necessidade de
analisar, tanto no campo da subjetividade individual como campo social, a
manifestação dessas vivências na contemporaneidade.
Nessa direção, o afeto da solidão, fundamental na dinâmica psíquica,
vem sendo intensamente investigado em seu papel na clínica cotidiana e
nas diversas manifestações de nossa cultura. O cenário que se apresenta na
atualidade vai da superficialidade e indiferença, por parte de alguns, em
relação aos aspectos da subjetividade humana, à visão catastrófica, por parte de outros, de caos e falência total do que caracteriza o humano.
É incontestável que vivemos tanto rupturas das condições básicas da
existência como a potencialização de fragilidades subjetivas. Podemos destacar fatores como a perda de referenciais e o desaparecimento de muitos
dos valores historicamente consolidados, fundamentais à vida humana.
Juntamente a eles, a quebra dos limites e suas conseqüências, tais como a
perda de segurança, a ausência de suportes vinculares e de suficiente
maternagem, o temor aos vínculos afetivos e a evitação do pensar, assim
como crises econômico-político-sociais. Além disso, convivemos com crises de crenças e ideologias, incremento da violência, da competição, do
individualismo e do imediatismo. São elementos da nossa cultura, nomeada “cultura do narcisismo”, “pós-moderna”, “cultura do espetáculo”.
Certamente essas manifestações são conhecidas e nos inquietam. Em
sua ação insidiosa, em alguns aspectos, e violenta, em outros, invadem não
só nossas vidas e nossos consultórios como as instituições, propiciando
patologias. Precisamos pensar acerca dos modelos vigentes, sobre a noção
de mundo e de vida que estamos construindo, e que deixaremos para as
próximas gerações, cumprindo assim nosso papel no ciclo vital.
À medida que estamos inseridos nesse contexto e somos atingidos
pessoal e profissionalmente, somos convocados a lançarmos mão do
266 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 267
Telma Barros
arcabouço teórico de que dispomos e a fazermos uso do importante instrumento que nos foi legado por Freud – a Psicanálise – em sua vocação revolucionária, transformadora e criativa, de resgate da subjetividade, do sentido do humano.
Mergulhado na voracidade do cotidiano, o homem atual, empenhado
em providenciar o consumo imediato e em desfrutar sem limites o presente, tem com freqüência negligenciado o futuro e atuado ansiosamente num
padrão infantil de intolerância à frustração e culto ao hedonismo. Nessa
perspectiva, por vezes, torna-se secundário o exercício das funções paterna
e materna, com conseqüente prejuízo à assistência à infância e à adolescência dos filhos, os quais costumam manter um contato limitado com os pais
e repetem o comportamento individualista, tentando impor a satisfação de
seus impulsos, desejos e necessidades. Com o avanço tecnológico e as
mudanças no ambiente familiar, cada um habita um espaço isolado dos
demais, ao qual têm acesso a TV, o vídeo, o som, o computador, o telefone...
Tomado por um ritmo meteórico, em busca de poupar tempo, o homem atual segue sem pensar, construindo uma vida cada vez mais isolada.
Perguntamos, então: poupar tempo para quê? Para trabalhar mais e gerar
maior distanciamento, isolamento e solidão? Nesse contexto, tudo precisa
ser fast: a alimentação, a convivência, as relações.
Em um cenário de perda progressiva de liberdade, o homem vem-se
tornando marionete, sob o comando de um padrão patológico imposto à
sua existência. Aos poucos, o espaço para a construção de uma produção
coletiva se restringe, como, por exemplo, a produção artística. Esta exige
tempo, continuidade, paciência e disciplina, e sempre cumpriu um papel
importante no funcionamento físico e emocional, contribuindo para o desenvolvimento da capacidade criativa e o proveito das próximas gerações.
Pouco a pouco, essa capacidade de convivência foi sendo desmontada. Se, por um lado, sabemos da importância do lúdico, da capacidade de
fruir para a criança, por outro verificamos que, no momento, esta é estimulada a tornar-se um ser pragmático, a não ter o necessário acesso à diversão
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
compartilhada e espontânea, ao mundo da imaginação, do mito, da fábula,
da criação. Em decorrência, observamos que a sofreguidão em busca de
contato se faz presente de forma ansiosa nas crianças, nos adolescentes e
adultos, enquanto teclam o computador, ouvem música, falam no celular,
comem, etc. Sabemos que, para o ser humano, é fundamental a possibilidade do contato. Daí a interrogação: não estaria o homem atual negligenciando justamente o contato, a subjetividade?
Na prática clínica, acompanhamos pacientes que exteriorizam seus
sentimentos de solidão, isolamento e desamparo através de vivências de tal
magnitude que, por vezes, estabelecem, na relação transferencial, situações de impasse de difícil elaboração. Confrontamo-nos com solidões
desestruturantes, desesperança melancólica, sentimento mórbido de solidão. Através dos pacientes fazemos contato com diferentes contextos de
solidão. Como relatos que expressam a aguda situação de desamparo vivida por pessoas com estrutura narcísica, tão freqüente na clínica atual.
Na fala de um paciente é possível observar o sentimento referido:
– “Me sinto como um astronauta solto no espaço, sem nenhuma conexão, sem nenhum cabo que possa me ligar à nave mãe... perdido...”.
O discurso de pacientes adotados também contribui de forma significativa para a abordagem do tema da solidão e do desamparo, a partir das
experiências emocionais associadas à questão da origem, ao sentimento de
pertencimento, à construção de vínculos e, sobretudo, às questões ligadas
às vivências de separação e de estabelecimento de uma identidade consistente.
Presentes também na literatura e na prática clínica estão as vivências
de solidão das diversas estruturas neuróticas e a do psicótico. No contexto
transferencial são particularmente intensas as vivências de angústia em
pacientes com funcionamento primitivo que apresentam um padrão
simbiótico de indiferenciação e que se sentem constantemente ameaçados
em sua sobrevivência emocional diante da mais breve experiência de separação.
Algumas situações de separação e solidão são vividas de forma aguda
268 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 269
Telma Barros
por pessoas que buscam no outro um olhar reassegurador da própria existência. Para elas, o outro não é apenas uma companhia, mas alguém do
qual dependem para sentirem-se inteiros e vivos. Nesses casos, a solidão
apavora, ameaça e desorganiza, podendo propiciar depressões. São casos
em que a solidão se funde com a dor, e o indivíduo experimenta o mais
profundo desamparo, estando aprisionado na concretude da falta. Nesses
casos, como comenta Assoun, “a solidão não é, portanto, simples privação, ela é hipersensibilidade à ausente presença do outro” (1998, p.80).
Destaca-se, na clínica atual, uma crescente busca por pessoas cuja
queixa manifesta mostra-se relacionada às chamadas “patologias do vazio”. A título de ilustração, farei alusão a um filme, referido por diferentes
pacientes que expressam aspectos de identificação com a personagem protagonista. Aspectos ligados, principalmente, ao profundo desconhecimento de si próprios e ao conseqüente sentimento de insegurança e
inadequação, especialmente por parte de alguns jovens, que expressam dificuldades frente à construção de uma identidade própria e de um projeto
de vida.
Tais inquietações estão associadas às experiências afetivas, à autoestima e às escolhas inerentes à fase que antecede a vida adulta. Por vezes,
essas vivências vinculam-se à depressão e constituem um risco importante,
que exige um olhar atento, uma focalização da angústia e, em especial, a
criação de um espaço de contenção, a partir do qual possa ser criada a
possibilidade de novos contatos com o mundo interno e ressignificadas
experiências que possibilitem a melhor utilização dos recursos emocionais.
No filme “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, de Jean-Pierre
Jeunet retrata-se a história de uma jovem parisiense tímida, frágil e solitária, que viveu uma infância com muitas dificuldades e tornou-se órfã de
mãe muito cedo. Cresceu com poucos contatos com o mundo exterior, em
relação ao qual estabelecia uma atitude voyeurista, como expectadora da
vida das demais pessoas. A personagem encontra uma forma de introduzirse no mundo vivenciado de forma projetiva a partir da motivação de tentar
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
melhorar a vida dos outros. Mudar a própria vida não se apresentava a ela
como uma possibilidade, antes dessa experiência.
O cenário revela um contexto de vida que encontramos com freqüência em nossos dias: jovens e adultos que não sabem como preencher o
vazio da própria existência, como encontrar um sentido para a vida, uma
forma de inclusão que os resgate da situação de risco em que vivem. É
preocupante o crescente número de casos de depressão e suicídio, e freqüentes queixas de sensação de infelicidade continuada em pessoas que
sequer conseguem identificar a origem de seu desconforto.
Embora com certa reserva quanto ao encaminhamento dado pela personagem em suas tentativas de ajudar aqueles que, em sua percepção, necessitavam de auxílio, podemos considerar que suas ações sinalizam uma
direção sobre a qual podemos refletir.
A personagem Amélie Poulain pode ser vista como alguém que vivia
em solidão e desamparo, uma existência desvitalizada, olhando o mundo
de forma passiva. Encontrou a atividade e o contato com sua própria vida,
a partir do movimento em direção ao outro. Com seus recursos, de forma
criativa, desenvolveu ações que a ajudaram a combater o isolamento e a
abrir portas para o contato, ou seja, para o encontro com o outro. A personagem, identificada com as carências e dificuldades das pessoas ao seu
redor, procurou interferir nas suas vidas através de ações anônimas e concretas. Sabemos que as mudanças internas não se processam por essa via,
mas podemos focalizar um ângulo que a história nos oferece.
Teoricamente, podemos lançar mão de certas noções e conceitos que
contribuem para a elaboração dessas idéias, como, por exemplo, o de
“Resiliência”. Este, quando focalizado do ponto de vista psicanalítico, em
termos de “catástrofe subjetiva”, remete-nos a alguns contextos do nosso
cotidiano e à constatação da importância da existência de vínculos que envolvam aceitação incondicional – um ocupar-se e preocupar-se com o outro. Em termos winnicottianos, trata-se de uma situação de holding, através
da qual se estabelece uma relação saudável e estruturante. As investigações
mostram que, no campo da resiliência, é possível identificar uma pessoa
270 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
Para a sobrevivência, precisamos todos de um mínimo marco
referencial interno, bons objetos introjetados. Se sofrermos a perda
desse marco e das condições básicas de existência cotidiana, nos veremos mergulhados na sensação de vulnerabilidade, desamparo e sofrimento psíquico, e a ação de pulsão de morte se faz presente; ou seja,
precisamos do investimento que possibilita ligações. (BLANKCEREIJIDO, 2004).
Somos seres que precisamos do outro para existir como humanos. Se
nos falta ajuda, afeto, proteção, acolhimento, contenção, sentimo-nos desamparados.
Sabemos que a constituição de uma criança resulta de um processo de
articulação com um outro significativo que possa prover todos os cuidados
necessários do ponto de vista físico e emocional, e que estes ocorram em
um contexto relacional de acolhimento, suporte e contenção. Condição
essa que favorece o estabelecimento de uma confiança básica que sobrevive à ausência do outro. Assim, tanto a vida psíquica como a biológica só
podem vir de outra vida. Nossos contornos e definições são adquiridos em
relação à imagem que captamos do outro, ora a dele, ora a nossa.
Na experiência emocional a dois, os fatores estruturais e estruturantes
da vida mental se constituem a partir das pulsões, fantasias, emoções, sentimentos e pensamentos, seja no âmbito da experiência analítica ou da história psicossexual de cada ser humano. Se considerarmos a possibilidade
de sobreviver a catástrofes objetivas ou subjetivas e a situações de aniquilamento, veremos que estas se mostram vinculadas à criação ou recriação
do registro simbólico atacado e a certas condições que possam permitir
alguma esperança de vida. Há que se poder contar com o impulso libidinal
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 271
Telma Barros
que tenha exercido essa função, ou seja, voltado o olhar na direção do indivíduo em situação de resiliência, tal como podemos considerar a personagem do filme, ao tentar criar na vida das pessoas a idéia de alguém que lhes
dirigia um olhar de reconhecimento.
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
e com a força do desejo de sobreviver; para isso, é fundamental a interação
afetiva com o outro.
É própria da natureza humana a condição inicial de vida que envolve a
dependência total para a sobrevivência. O desamparo absoluto em que nos
encontramos ao nascer estabelece um contexto emocional que durante
muito tempo exige a superação de várias etapas de dependência: desde a
absoluta, segundo a qual a mãe é a presença imprescindível para a sobrevivência, até a superação de sucessivos níveis de separação. Nesse caminho,
o bebê passa de uma relação fusional para uma relação dual com a mãe e,
finalmente, a uma relação triádica com a inclusão da figura paterna, o que
constitui a dialética constante Narciso-Édipo. Do ponto de vista
metapsicológico, esse trajeto envolve a estruturação psíquica.
Sobre esse contexto, comenta Françoise Dolto (1998):
Ameaçadora para sua sobrevivência, a solidão não largará mais esse
homem, essa mulher; separados pela primeira vez depois de nove meses de convivência afinada com a mãe, que é arrebatada por esse grito
de solidão primeira, por esse grito de necessidade dela, esse grito de
vida que, para ela, é a primeira linguagem de seu lactante.
Quando interrogamos sobre o sofrimento humano, sobre as demandas
de nossos pacientes, percebemos a dinâmica implicada no fluxo constante
de ida e vinda do sujeito em direção ao objeto, e de volta a si mesmo, ou
seja, o percurso da solidão ao encontro. Ao abordamos o tema da solidão
precisamos situar a que solidão nos referimos, qual o contexto em que esta
ocorre. Na prática clínica, constitui um fator determinante a possibilidade
de identificar e interagir com os diferentes tipos de solidão. Por exemplo, a
diferença entre “estar só” e “sentir-se só”. O “estar só” envolve a experiência da Solidão Positiva, expressa na condição do indivíduo de poder encontrar bem-estar e confiança, em sua própria companhia.
Nas palavras de Winnicott, trata-se da “capacidade de estar só e de
poder usufruir os aspectos criativos desta experiência” (1958). Segundo
Tanis (2003),
272 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
É certo que, em alguns momentos, a solidão é uma experiência necessária, que possibilita o pensar, a reflexão, a introspecção, a diferenciação, o
sentir, o fantasiar, o criar e o elaborar. Podemos de maneira inadequada, em
lugar de favorecer, dificultar, ou mesmo impedir essa experiência. Como
alguns pais que se sentem ameaçados diante da busca de solidão por parte
do filho adolescente. Por outro lado, sabemos da freqüente associação da
depressão à solidão na adolescência, constituindo um fator de risco a ser
considerado. Na relação analítica, bem como em qualquer outra relação
humana, a delimitação entre o sujeito e o objeto, no interjogo dinâmico das
relações, exige continuamente um processo de diferenciação que assegure
a identificação das mais diferentes nuances do narcisismo à alteridade.
Sob outro enfoque, encontramos, por exemplo, a solidão imposta pela
“diferença”. Em qualquer de seus significados, a solidão vivida por aqueles que buscam, nas diferentes formas de adição, um alívio para a angústia
que experimentam. A solidão das pessoas deprimidas e dos suicidas, além
da solidão decorrente das perdas, separações e lutos. No momento atual da
nossa cultura, confrontamo-nos, freqüentemente, com a solidão imposta
pelas formas de poder que oprimem, discriminam e geram uma legião de
excluídos. O sofrimento psíquico é o elemento comum a todas as formas
de solidão que constituem sintomas e demandam uma abordagem.
Na clínica, a solidão se mostra em todas as suas faces, tons e intensidades. Vejamos, por exemplo, a solidão do narcísico e as solidões
desestruturantes presentes na psicose, distintas das outras, com um tom
mais neurótico, a exemplo da solidão defensiva do obsessivo para proteger-se da aproximação do outro, dos impulsos e dos afetos desencadeados
no contato. Cada uma equivale a uma história constituída ao longo da vida
e se manifesta de forma variável na cultura e na subjetividade.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 273
Telma Barros
É um modo muito particular de estar consigo mesmo, de se deixar
conduzir, de se entregar confiante a si mesmo na espera de nada, a não
ser este encontro”. Ressalta ainda que “Se a igualdade nos oferece uma
identificação com o outro, a unicidade nos deixa irremediavelmente
sós.
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
Assim, a natureza e a função da solidão na vida e na experiência analítica apresentam diferentes faces e demandam distintas abordagens. Entretanto, os limites que diferenciam uma experiência de outra por vezes
não se apresentam de forma clara. A intensidade, a profundidade e as repercussões precisam ser investigadas, assim como os sintomas que possam
compor o contexto em que a solidão é vivida.
Do ponto de vista teórico, ainda que Freud não tenha se ocupado especificamente do tema Solidão, em sua obra vemos que, inicialmente, ela é
associada às angústias infantis, pela transformação direta da libido em angústia. Em 1930 (Mal-estar na Civilização) e 1926 (Inibição, Sintoma e
Angústia), o tema da Solidão e do Desamparo aparece como condição fundadora do ser humano. Afirma Freud (v. XX, p. 130):
Aqui a angústia aparece como uma reação à perda sentida do objeto e
lembrando-nos de imediato do fato de que também a angústia de castração constitui o medo de sermos separados de um objeto altamente
valioso e de que a mais antiga angústia – “a angústia primeira” do
nascimento – ocorre por ocasião de uma separação da mãe.
Os estudos psicanalíticos trataram de investigar sobre o medo de ficar
só ou o desejo de ficar só, enquanto a abordagem winnicotiana introduziu o
estudo acerca da capacidade de fazê-lo. Ainda que, por um lado, refira-se à
capacidade de suportar a solidão em termos da vivência de exclusão no
Complexo de Édipo, Winnicott também enfatiza a importância do desenvolvimento infantil primitivo para a presença dessa capacidade. Nesse sentido, encontramos concordância entre os autores que tratam sobre o tema.
Comenta Winnicott (1958, p. 32) que:
Embora muitos tipos de experiências levem à formação da capacidade
de ficar só, há uma que é básica, sem a qual a capacidade de ficar só
não surge. Essa experiência é a capacidade de ficar só, como lactante
ou criança pequena, na presença da mãe. Assim, a base da capacidade
de ficar só é um paradoxo; é a capacidade de ficar só quando mais
alguém está presente.
274 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 275
Telma Barros
Assim, à medida que a criança introjeta o eu-auxiliar da mãe, pode
então prescindir da presença concreta dela ou de um símbolo desta. Segundo Winnicott, o desenvolvimento dessa capacidade se realiza segundo as
tendências de integração, personalização e relação com os objetos. Tratase, pois, de um processo, e a capacidade de simbolizar tem papel fundamental. “A simbolização da ausência é o que nos permite suportar a angústia da solidão” (DOLTO, 1995, p. 440). Essa colocação tem ampla ressonância clínica.
A idéia de que o bebê pode evoluir, em determinados contextos, para a
vivência de uma solidão enriquecedora, povoada de intercâmbios simbólicos, é uma idéia em relação a qual alguns autores, como Dolto, coincidem
com o proposto por Winnicott em relação à capacidade de estar só.
Os aportes ao tema proporcionam uma abordagem ampla do assunto.
Considerando, entretanto, a inter-relação entre Solidão, Desamparo e Criatividade, alguns se destacam pela significativa contribuição oferecida à investigação dessas relações, através do exame de algumas noções já existentes e pela proposta de conceitos que aprimoram a compreensão
metapsicológica do tema.
No trabalho analítico, a possibilidade de lidar com as experiências de
solidão e desamparo, por vezes traduzidas em termos de experiências traumáticas, demanda do analista uma condição de estabelecer o que é traduzido por Green como processo terciário: processo que possibilita recuperar a
representação inconsciente, vinculando-a ao afeto correspondente e, ao
mesmo tempo, permite a criação de uma nova inscrição geradora de uma
nova subjetividade. Esta parece ser a tarefa que temos a enfrentar diante da
demanda das situações que se apresentam na clínica.
Em sua abordagem sobre os processos terciários, Rubén e Raquel
Zukerfeld destacam o fato de que Green, ao propor esta noção, revela uma
aproximação e valorização das idéias winnicotianas e contribui para
reformular o campo analítico do ponto de vista do analista e do analisando.
Tal reformulação tem possibilitado a abordagem de pacientes cuja estrutu-
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
ra oferece dificuldades para o manejo do processo analítico. A idéia central
seria a de que:
o par analítico funcionaria no processo terciário, quer dizer, sempre
incluindo e sempre eqüidistante dos processos primários e secundários
freudianos. Deste modo, a interação implicaria não só em assinalar
repetições, mas também em desenvolver uma criatividade, como resultado da trama intersubjetiva e de cada um dos integrantes do par
analítico, com seus processos primários e secundários.
(ZUKERFELD, 2005).
Segundo Winnicott, esse jogo é o que permite à criança desenvolver a
área da ilusão, que se espera seja também criada no campo transferencial,
assegurando assim que a ação interpretativa desvele, e ao mesmo tempo
sustente, o paradoxo referente à presença e ausência do objeto.
Como vemos, diferentes teóricos articulam idéias que parecem transitar em direções mais ou menos comuns e que colaboram para a compreensão da relação entre diferentes conceitos. Assim, constituem “nossa família
psicanalítica”, como refere Bolognini, e a eles recorremos na tentativa de
elaborar nossa abordagem. Na experiência clínica, podemos pensar, por
exemplo, que os conceitos de criação e criatividade estão em conexão com
as noções propostas por Winnicott relativas aos aspectos construtivos da
solidão, tais como o desenvolvimento da capacidade de estar só e de criar.
Tais noções tornam-se possíveis a partir da experiência vivida com uma
mãe suficientemente adaptada às necessidades da criança e que possibilita
a criação do espaço de ilusão, fundamental para que esta se sinta confiante
na capacidade materna de criar.
Trata-se de conceitos que apontam na direção de mudanças no contexto da relação analista-paciente e envolvem a abordagem da experiência de
solidão, situando a importância da criação como construção coletiva que
conduz a uma ação transformadora e permite a atribuição de significado ao
irrepresentável.
Os conceitos de criação e criatividade se vinculam à noção de proces276 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
A criatividade é um processo intrapsíquico individual possível em um
contexto original, que a partir de uma perspectiva winnicottiana implica uma mãe suficientemente boa, suficientemente presente para possibilitar a satisfação e necessariamente ausente para ser nomeada.
Na abordagem de R e R. Zukerfeld (2005) pode-se destacar o fato de
que:
Se considerarmos que o irrepresentável é traumático por ser uma quantidade de energia não ligada que procura descarga, veremos a importância da existência de uma pessoa que possa atuar como suporte e
contribuir para significar o irrepresentável, que assim adquire a qualidade do ‘novo’. Se esse processo propiciar uma inscrição no inconsciente, trata-se da presença de uma criação, criação esta que produz
movimentos de descarga de energia não ligada.
Esse conceito é de grande utilidade na clínica por focalizar a importância, na relação analítica, da experiência de propiciar ao indivíduo o
desenvolvimento da função criativa. Ao relacionarem o conceito de criatividade ao de criação, R. e R. Zukerfeld definem esta como “uma construção coletiva, no sentido do outro a quem dizer, com quem construir
um relato e/ou realizar uma ação transformadora” (ZUKERFELD, 2005).
Segundo eles, a experiência da criação é o que define mais profundamenSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 277
Telma Barros
so terciário, definido por Green como “a descrição de uma
transicionalidade interna intrapsíquica que permite ao sujeito estabelecer
ligações tanto no plano da lógica da realidade como no da lógica do fantasma e do inconsciente, assim como entre as diversas lógicas” (1972).
Podemos também relacionar esses conceitos às questões relativas à intuição e à razão.
Para melhor compreender a noção de processo terciário, torna-se útil a
diferenciação entre criatividade e criação. Nas palavras de Rubén e Raquel
Zukerfeld (2005):
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
te o processo terciário e implica a presença do objeto para que algo do
irrepresentável adquira uma representação. Nessa perspectiva, compreendem que este seria o verdadeiro processo criador para o psiquismo,
constituindo a essência do processo terciário.
Trata-se de uma experiência que envolve a possibilidade de
simbolização da ausência, de forma a permitir a contenção da angústia da
solidão.
Em seus estudos Rubén e Raquel destacam o fato de que o conceito de
processo terciário aponta para o campo da não-representação, e não apenas
para desvelar o reprimido. Assim sendo, essas idéias parecem caminhar
para o que há de novo na tarefa analítica, que, nas palavras desses analistas,
“ao gerar novas inscrições, produz nova subjetividade” (ZUKERFELD,
2005).
Em análise, as experiências patológicas de solidão e desamparo encontram, nesses processos, possibilidades de simbolização que venham a
dar sustentação à angústia vivida frente à sensação de ausência e de vazio.
Verificamos que a condição de poder estar só e de poder aproximar-se
e estabelecer contato, ou seja, a condição da “Solidão ao Encontro”, se
estabelece como eixo em torno do qual as vivências transferenciais ocorrem e o processo analítico evolui. Constatamos aspectos que envolvem
diferentes defesas e patologias, e também aspectos mais positivos da solidão, ou seja, como condição por meio da qual o processo analítico caminha. Trata-se de um processo semelhante ao vivido pela criança na direção
de superar a dependência absoluta inicial e caminhar até um maior grau de
integração interna que lhe possibilite sobreviver e expandir-se na ausência
do objeto.
Esse percurso é necessário para que o desenvolvimento psíquico possa ocorrer. No processo analítico, a caminhada se dá na direção de uma
melhor aceitação da separação, da diferenciação e da solidão. Na medida
em que se verificam as diferentes modalidades nas quais se apresenta o
sentimento da solidão e da angústia de separação na transferência, o analista vai podendo interpretar as angústias e defesas. Para isso, utiliza-se da
278 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
[...] transformação se realiza especialmente num meio relacional e que
a mente do paciente se reestrutura e se organiza quando o analista consegue realizar sua função com competência e humanidade, em um contexto no qual os objetos primários foram inconsistentes em um momento de necessidade.
A criatividade do analisando e o processo de criação desenvolvido na
transferência, no contexto do processo terciário, constituem fatores
determinantes para que o paciente pouco a pouco construa a capacidade de
ser autocontinente de sua solidão e torne-se capaz de separar-se do analista
com um sentimento de unidade e identidade pessoal.
No transcurso dessa experiência, a vivência da solidão pode assim ser
transformada. Ela se dá, por exemplo, através de sucessivas situações de
separações e de fortalecimento do vínculo, as quais contribuem para que a
associação entre solidão, tédio e desamparo possa dar lugar a uma experiência de solidão, na qual a capacidade criativa possa substituir o vazio e a
confiança no vínculo e na capacidade de dar e receber afeto resgate o indivíduo do sentimento de desamparo.
Como analistas, certamente esperamos contribuir para que o caminho
“Da Solidão ao Encontro” seja, cada vez mais, possível para um número
maior de pessoas, e que estas possam seguir construindo a própria história
em um contexto de solidão criativa. E que, ao final de cada trabalho, possamos também elaborar a separação e ter a gratificação de haver participado
desse processo, e de voltar sempre ao cenário inicial com o divã vazio no
horário vago, para uma vez mais recomeçar uma nova e criativa experiência “Da Solidão ao Encontro”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 279
Telma Barros
escuta “empática”, da experiência compartilhada, do uso da
contratransferência e da capacidade de acolher a vivência afetiva do paciente, e de receber as identificações projetivas, até as mais primitivas.
Bolognini (1998), ao se referir à experiência compartilhada, afirma
que a:
SOLIDÃO, DESAMPARO
E
CRIATIVIDADE
Loneliness, abandonment and creativity
Abstract: The author presents an approach to the theme of loneliness in its different
meanings focusing its positive dimension and aspects of suffering and pain present on
human experience. In the text, the affection of solitude has been analised in the levels of
individual and collective life revealed within culture and everyday c1inics. This work
points out the importance of creativity and the creation process in the analytic relationship,
as a resource to the elaboration of emotional processes associated to loneliness, having in
mind the objective to c1ear up a relationship between loneliness and creativity. The author
uses the concept of resilience and to illustrate it, the film “Amelie Poulain” is mentioned.
Key-words: Abandonment. Loneliness Pathology. Holding. ResiIience. Creativity.
Soledad, desamparo y creatividad
Resumen: La autora presenta un abordaje del tema de la soledad en sus distintas
acepciones, focalizando su dimensión positiva y aspectos de sufrimiento y dolor que se
hacen presentes en la experiencia humana. En el texto, el afecto de la soledad es analizado
en los planos de la vida individual y colectiva, revelados en el ámbito de la cultura y de la
clínica cotidiana. El trabajo destaca la importancia de la creatividad y del proceso de
creación en la relación analítica, como recurso para la elaboración de los procesos
emocionales asociados al sentimiento de soledad. Con el objetivo de establecer una relación
entre la soledad y la creatividad, la autora encuentra soporte en el concepto de resiliencia
y, como ilustración, alude a la película “Amelie Poulain”, con el fin de exponer sus ideas
acerca del tema.
Palabras-llave: Desamparo. Patologías del Vacío. Holding. Resiliencia. Creatividad.
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Artigo
Copyright © Psicanálise – Revista da SBPdePA
Telma Barros
E-mail: [email protected]
282 Psicanálise v. 9, n. 1, p.265-282, 2007
Conferência na SBPdePA
Cláudio Laks Eizirik**
Inicialmente, agradeço ao amável convite do Instituto
de Psicanálise da SBPdePA nas pessoas dos Drs. Leonardo
Francischelli e Ana Paula Terra Machado para estar aqui
hoje. Pode parecer um pouco estranho falar sobre a importância da psicanálise e a sua validade dentro de uma instituição psicanalítica, que forma psicanalistas e que, portanto,
não deveria ter dúvida alguma sobre a sua validade e sobre a
sua importância, senão não estaria desenvolvendo toda essa
quantidade de atividades, nem formando novos analistas.
Mas justamente penso que é dentro das nossas instituições
que devemos poder levantar essas questões e tentar discutílas. Questionamentos externos não faltam.
De tempos em tempos surgem matérias em revistas nacionais ou internacionais dizendo que Freud morreu, que a
psicanálise não serve para nada, etc. Chega a ser um pouco
grotesco o nível de algumas críticas que são feitas. Mas
estamos aqui nos propondo a examinar questões relevantes
de nossa disciplina, que desde seu início nunca deixou de
ser questionada, mas também nunca deixou de se examinar
criticamente.
* Conferência pronunciada na abertura das atividades do Instituto de Psicanálise da SBPdePA no dia 14.04.2007.
** Presidente da Associação Psicanalítica Internacional. Membro Efetivo com
Função Didática da SPPA.
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Cláudio Laks Eizirik
A Importância e a Validade da
Psicanálise Hoje*
A IMPORTÂNCIA
E A
VALIDADE
DA
PSICANÁLISE HOJE
Pensei em dividir esta fala inicial, e depois seria bom poder discutir
alguns pontos, em dois aspectos, no que eu chamaria de validade interna e
validade externa. Estou usando aqui um conceito geral da ciência, um conceito que se usa em trabalhos científicos e estudos realizados com diferentes metodologias. O que é uma validade interna? Todos que estudaram
Epidemiologia se lembram, provavelmente, de que a validade interna diz
respeito à coerência entre os objetivos, a metodologia e os resultados. A
validade interna se refere à coerência intrínseca do método, algo que se
passa dentro. O que é a validade externa? É a possibilidade de generalizações, é a relevância social, é a inserção num meio mais amplo. Um estudo
pode ser belíssimo na sua validade interna e pode ser absolutamente inútil
na medida em que não serve a não ser para a contemplação do umbigo
daqueles que o desempenham. Então é importante pensar nessas duas perspectivas.
No que se refere à validade interna, vou examinar algo do nosso mundo interno, abordando alguns aspectos ligados a desenvolvimentos teóricos, diálogos possíveis, à clínica psicanalítica, à formação de novos analistas e às instituições.
Uma das questões que mais nos desafia nesse momento, que se coloca
como um fator, possivelmente, decisivo para o futuro do movimento psicanalítico consiste em avaliar em que medida é possível uma real conversação entre psicanalistas, ou seja, em que medida é possível a analistas de
diferentes culturas, ou de diferentes sociedades, ou de diferentes regiões,
ou mesmo dentro duma mesma sociedade escutar, empatizar, concordar ou
discordar face à singularidade de um determinado encontro analítico? Dito
de outra forma, a nossa atual diversidade cultural, teórica e de teorias da
técnica, é capaz de abrigar uma escuta com um mínimo de ceticismo benevolente, como diria Freud, em cada uma das inúmeras singularidades ou
pequenas histórias que tecem o mosaico das incontáveis duplas analíticas?
Uma questão relevante nesse terreno diz respeito, precisamente, à disponibilidade mental para uma real escuta e as idéias de Haydée Faimberg
sobre a escuta da escuta podem ser relevantes para entender essa situação
286 Psicanálise v. 9, n. 1, p.285-297, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 287
Cláudio Laks Eizirik
ou, naturalmente, o narcisismo das pequenas diferenças, descrito por
Freud. Não é infreqüente observar discussões em que, como relata Green,
cada expositor recita o seu mantra teórico ou seu credo. Escuta polidamente ou mesmo com certo fastio argumentos distintos e novamente recita seu
mantra e assim por diante.
A prioridade do outro, de que fala Laplanche, pode ter aqui um papel
relevante. É curioso observar que Freud, de alguma forma já percebia este,
como outros problemas, como se depreende de suas razões para criar a
IPA. Não sei se vocês estão lembrados dessa citação que acho muito
ilustrativa. “Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os abusos a que a psicanálise estaria sujeita, logo que se tornasse
popular. Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: todas essas tolices não tem nada a ver com a análise, isto não é psicanálise. Nas
sessões de grupos locais, que reunidos constituiriam a Associação Psicanalítica Internacional, seria ensinada a prática da psicanálise e seriam
preparados médicos – na época eram só médicos – cujas atividades receberiam, assim, uma espécie de garantia. Além disto, visto que a ciência
oficial lançara um anátema solene contra a psicanálise ... achei que seria
conveniente seus partidários se reunirem para uma troca de idéias amistosas e para apoio mútuo. Isso e nada mais é o que eu esperava alcançar
com a fundação da Associação Psicanalítica Internacional, mas tudo leva
a crer que era querer demais”. Ou seja, esta última frase denota uma certa
decepção. Parece descrever e antecipar não só as dificuldades de convívio
institucional como os aspectos que estou caracterizando.
Por outro lado, não se pode ignorar os riscos de um ecletismo teórico
que leva à inevitável superficialização do conhecimento, nem negligenciar
o fato de que o domínio de uma teoria ou do pensamento de um autor
requer muito estudo e tempo, fatores que somados ao estado de pluralismo
atual, configuram uma situação desafiadora e que não oferece qualquer
perspectiva fácil, não conflitiva ou politicamente correta. A busca de verdadeiras controvérsias, como propõe Bernardi, talvez seja aquilo a que possamos aspirar. Não sei se vocês estão familiarizados com esse trabalho do
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E A
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DA
PSICANÁLISE HOJE
Bernardi sobre a busca e a necessidade de verdadeiras controvérsias em
psicanálise. Ele estuda os debates na região do Rio da Prata, entre as idéias
de Melanie Klein e de Lacan e, através de entrevistas, algumas pessoas que
tomaram parte nesses debates mostram como ocorria, aproximadamente
isso que Green descreve. Ao invés de ouvir as novas idéias e tentar
confrontá-las, elas predominantemente recitaram os seus respectivos
mantras. Esse é um trabalho muito interessante porque penso que o nosso
grande desafio é o estabelecimento de reais controvérsias. A real controvérsia não significa estabelecer pontes apressadas, mas significa saber o
que cada um pensa e não precisar ser bonzinho nem agradar o outro. Mas
cada um pensa alguma coisa diferente. E quando nós discutimos material
clínico muitas vezes se pode ver como existem diferentes abordagens e
jamais se poderá ter certeza que uma é melhor do que a outra. São diferentes visões do mesmo fenômeno.
A dificuldade de escutar, às vezes, assume proporções ditadas não só
por essas razões, mas por barreiras aparentemente intransponíveis. Entre
outras estimulantes experiências proporcionadas por uma peregrinação
pelo mundo psicanalítico internacional, gostaria de ilustrar esse fato com
uma situação em que realizei uma supervisão coletiva com dois grupos
distintos de analistas, há um ano atrás, na Croácia, como parte da escola de
verão do Instituto Psicanalítico do Leste Europeu. No primeiro grupo, todos os participantes só falavam russo e uma tradutora intermediava as suas
comunicações e as minhas em inglês. Muitas vezes, ela não entendia claramente o que eles estavam querendo dizer ou o que eu estava querendo
dizer. Ela ficava falando ou comigo ou com eles, seja em inglês seja em
russo, e os outros ficavam olhando sem saber do que se tratava. E era um
caso de avaliação para análise, apresentado por um colega de uma cidade
russa, com um quadro psiquiátrico complexo, uso de medicação, indicação
duvidosa para análise. Num primeiro momento, parecia que nada sairia de
produtivo daquela sala e eu, inclusive, já estava com vontade de que terminasse rapidamente porque era uma experiência extremamente angustiante.
Eu não conseguia distinguir, pela expressão dos demais colegas, nada do
288 Psicanálise v. 9, n. 1, p.285-297, 2007
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Cláudio Laks Eizirik
que eles estavam dizendo. Eu tentava identificar, por sua expressão facial,
o que estavam dizendo, mas eles estavam com uma postura que me parecia
impassível. Além disso, quando eu sugeria algumas idéias teóricas que me
pareciam interessantes, alguns diziam que já tinham ouvido falar, que isso
não tinha nada de novo. Então, era uma situação, realmente ruça, como se
diria coloquialmente. Num determinado momento, entendi uma palavra
em russo, que era a mesma palavra que o meu avô, imigrante judeu russo,
usava em certas ocasiões. E isso se repetiu algumas vezes. Algum tipo de
sintonia se estabeleceu, fazendo-me pensar, inevitavelmente, no “Estranho” descrito por Freud. O desconhecido que um dia foi familiar, depois
reprimido e por fim, perseguidor. De fato, algo se conseguiu trabalhar e
produzir naquele improvável grupo, porque o que era comum era a busca
da compreensão do inconsciente. Em compensação, o outro grupo parecia
mais fácil porque todos falavam inglês e o caso relatado, uma análise
standard de boa qualidade, realizada em Zagreb, poderia ocorrer em qualquer cidade do mundo. O que havia em comum entre os dois grupos, no
entanto, era o debruçar-se à procura dessa misteriosa linguagem, esse russo
familiar, desconhecido, infantil, adulto, antigo, atual que é o que nos permite encontrar momentos de congraçamento de qualquer encontro analítico.
A clínica contemporânea, como tem sido amplamente descrito, encontra pacientes mais graves ou que apresentam as novas doenças da alma,
como diz Julia Kristeva vivendo numa cultura do narcisismo, de acordo
com Lasch, ou em que as relações humanas são com freqüência líquidas e
descartáveis, de acordo com Bauman, que se deparam com a oferta de inúmeros métodos mais rápidos ou supostamente de eficácia comprovada pela
chamada psiquiatria baseada em evidências. A isto se devem acrescentar as
dificuldades sócio-econômicas que afetam quase todos os países e problemas inegáveis, como as grandes distâncias nos centros urbanos. Em suma,
um conjunto de fatores que tornam muitas vezes difícil a aplicação do método analítico em sua plena acepção. Temos também controvérsias dentro
dos nossos círculos entre o que é psicanálise e o que é psicoterapia; essa é
A IMPORTÂNCIA
E A
VALIDADE
DA
PSICANÁLISE HOJE
uma questão altamente problemática porque depende da cultura que se esteja freqüentando.
Os mais relevantes pensamentos clínicos atuais, em boa parte dos
quais se percebe as presenças de Ferenczi, Melanie Klein, Bion, Winnicott,
Lacan dão a impressão de que hoje somos capazes de trabalhar melhor
analiticamente do que nossos antecessores, o que possivelmente seja verdade em muitos casos ou em muitos momentos de uma análise. Mas, simultaneamente, de forma paradoxal, coloca em cena a ação do tempo sobre uma escultura ou sobre uma obra-de-arte, como por exemplo, alguns
materiais clínicos relatados por diversos pacientes de Freud, em seus livros
de memórias, ou nas próprias histórias clínicas de Freud. A cada releitura
(no caso, todo mundo sabe, não se deve ler Freud, deve-se reler Freud,
porque a cada releitura é um novo trabalho que se encontra) parecemos ver
e quase sentir esse delicado trabalho de ourivesaria que nos serve como
modelo.
Cada vez mais trabalhamos dentro da noção de duas mentes em vivo
contato e mútua influência e os pensamentos clínicos mais recentes como
os de Willy e Madeleine Baranger, Green, Ogden, Botella, Faimberg,
Schwaber, Jacobs, Marucco, Kancyper, Berenstein, Puget, etc. são as novas formas de enfrentar essas questões. Da minha parte, um dos autores
que mais me estimula e influencia é Antonino Ferro, mas aí nós entramos
no terreno em que cada um vai ter as suas predileções teóricas.
Então, do ponto de vista da validade interna eu diria que a nossa teoria
vai muito bem, a nossa clínica vai muito bem, desde que se possa trabalhar
analiticamente.
A outra área sobre a qual eu gostaria de falar é a formação analítica.
Há aqui pessoas que estão iniciando a formação? Boas-vindas aos cinco
colegas novos. Vocês estão começando, realmente, uma formação que é
interminável, mas fascinante e desafiadora.
A formação analítica é uma das áreas mais complexas e controvertidas
na atualidade, do nosso movimento. Nós temos nesse momento uma discussão, que na verdade está avançando muito. Conseguimos, finalmente,
290 Psicanálise v. 9, n. 1, p.285-297, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 291
Cláudio Laks Eizirik
estabelecer que não existe uma única fórmula de coca-cola, como queria
uma ilustre colega de um outro continente. Não há um único modo de chegar a ser psicanalista. Existem neste momento, formalmente reconhecidos,
três modelos de formação. É um progresso notável. E já está oficialmente
aprovado. Existem diferenças muito interessantes entre os modelos, cujo
estudo é compensador.
Existem também enormes diferenças nos programas teóricos dos Institutos; talvez o que se possa dizer é que as únicas coisas que se mantêm
invariantes, como diria Bion, são a obra de Freud e a técnica psicanalítica.
Afora isso, cada Instituto ou cada Sociedade, em todas as variações possíveis e imagináveis, têm seminários só obrigatórios, outras têm obrigatórios
e eletivos, mas uma coisa é inegável, e aparece em todos os trabalhos: a
parte central da formação analítica é a análise didática, que agora também,
dependendo da latitude, já não se chama mais análise didática porque em
algumas sociedades não existem analistas didatas, como os franceses, só
análise pessoal. Tivemos uma interessante discussão recente. Nós estamos
atualizando o código de procedimentos e a expressão análise didática foi
retirada para abrigar toda a diversidade cultural, então ficou a dúvida semântica: era a análise do candidato, análise pessoal e ficou finalmente,
análise. Me lembrei daquela história do sujeito que vendia peixe, história
judaica antiga. Escreveu numa tabuleta: “Aqui se vende peixe fresco”. E
um amigo disse: “Mas por quê? Tu venderias peixe podre?”. Então tira o
‘fresco’. “Vende? Por que vende? Tu darias?”. Então tira ‘vende’. Peixe.
“Peixe? Mas e o cheiro que se sente?”. Então tirou tudo, ficaram só os
peixes. Análise é análise, não precisa chamar de didática ou pessoal. A
centralidade da formação analítica é a análise. Quanto a isso não há nenhuma dúvida.
Uma outra área muito desenvolvida é a questão da supervisão. É, provavelmente, uma das áreas em que tem havido mais estudos, mais pesquisas, mais discussões. E nós sabemos muito mais sobre supervisão do que
sabíamos antes. Existe, inclusive, um curso de formação de supervisores
em análise, na Suécia, organizado por Imre Szecsödy. Existe também um
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E A
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de formação de supervisão em psicoterapia analítica na nossa Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como ter e manter a competência como
analista? De que maneira estimular a formação continuada? De que forma
manter um clima de estímulo ao pensamento crítico e independente nos
Institutos? São questões para as quais, naturalmente, não temos respostas
fechadas ou fórmulas. E faço votos de que ninguém tenha. Porque no momento em que tivermos todas as respostas, nós chegamos a um estado de
esterilização.
Uma das questões que está sendo mais discutida é a questão da competência. No Congresso de Berlim haverá várias discussões em pequenos
grupos sobre como avaliar a competência. Como chegar a saber se uma
pessoa adquiriu a identidade analítica. Existem alguns indicadores úteis.
Como é que nós podemos saber isso, através de um exame de material
clínico, através da capacidade de formulação e articulação entre a clínica e
a teoria, através de uma capacidade de escuta analítica, através de modos
mais sutis de observar a evolução de um processo analítico? Todas essas e
outras mais. São questões interessantes que estão sendo formuladas, principalmente na Europa, onde existem vários grupos de trabalho na Federação Européia que são extremamente estimulantes nesse sentido.
Dito isso, vou falar um pouco das instituições psicanalíticas. Não sei
quão familiarizados vocês estão com dois trabalhos de autores italianos,
Stefano Bolognini e Laura Ambrosiano, sobre a família fantasmática do
analista. Como vocês sabem, afora os centros tradicionais de formação, há
novos centros analíticos que estão produzindo idéias estimulantes. E um
deles, um desses centros, é a Itália. É um país onde a psicanálise é rigorosa,
por um lado, e é criativa, por outro. O que Bolognini propõe nesse trabalho
é que existe na história de cada um de nós uma réplica ou reedição do que
aconteceu na nossa vida familiar. Assim como cada um de nós teve na sua
família, os seus pais, o seu meio, nós nos criamos dentro de uma cultura
que reproduz, de certa forma, a cultura familiar, que é o Instituto. E dentro
da mente de cada um de nós, através de sucessivas identificações, vai se
criando essa família fantasmática. É uma família que compara a um condo292 Psicanálise v. 9, n. 1, p.285-297, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 293
Cláudio Laks Eizirik
mínio porque tem os pais, e tem os tios, e tem os avós, através das sucessivas transferências, através das sucessivas gerações. Todo mundo gosta de
saber com quem seu analista se analisou, com quem esse se analisou, e o
ideal , ou idealizado, é que se chegue a Freud, em algum momento. Quando
se chega, a pessoa se sente super importante. Se chega ao Ferenczi, ao
Abraham ou outros, não tanto, mas , de qualquer modo, todo mundo é
igualmente importante. Então, o que ele vai demonstrando é que neste condomínio os tios, por exemplo, seriam os supervisores, porque seriam os
analistas dos amigos. E assim há uma série de primos e outros parentes e
contraparentes e Bolognini diz que essa família vai sendo introjetada, vão
havendo sucessivas identificações e depois a pessoa que se criou numa
aldeia começa a se aventurar às cidades maiores. E são os Congressos.
Primeiro os nacionais, depois os internacionais e vai havendo uma progressiva identificação com essa coisa mais ampla que é o movimento psicanalítico.
Laura Ambrosiano fala uma coisa um pouco diferente, as elaborações
dos conflitos edípicos que são feitas ao longo de uma análise didática e que
levam à aquisição de uma identidade analítica. É uma outra abordagem que
inclui toda a questão da relação com Freud como pioneiro, e com os analistas sucessivos. Então, essa criação leva a várias questões: Com o que as
pessoas vão se identificar? Com os seus analistas como pessoas? Ou como
um modelo de pensar? Ou com uma função analítica? Com o que nós vamos nos identificar? Com o Freud como pessoa? Ou com a forma como ele
resolvia problemas? Isso vai nos levar a dois possíveis caminhos, grosseiramente falando: ou a uma postura de estudar, vamos dizer, quase
ritualmente, o que foi dito , de forma exegética, ou a outra postura de estudar aquilo que levou ao que foi dito e ao processo de pensamento usado
para enfrentar problemas. Então, dependendo das estruturas em que nós
nos criamos nós vamos ter maior ou menor flexibilidade, ou maior ou menor estímulo ao pensamento crítico e independente.
No pensamento crítico e independente nós vamos ser, um dia, capazes
de poder ver as nossas instituições, os nossos analistas, os nossos
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supervisores dentro de uma perspectiva mais realística, que não é uma perspectiva idealizada. Então, é um trabalho muito duro e quando o componente narcísico é muito forte, é difícil de ajudar as pessoas a se libertarem de
alguma forma, como o desejo de ajudar os filhos a tomar os rumos que
quiserem, que não vão ser, infelizmente, ou felizmente, os rumos que nós
achamos que eles deveriam tomar.
Então, sobre as Instituições, o que nós fazemos desses objetos distantes? A IPA, ou a ABP, ou a FEPAL, até que provem o contrário, são objetos
distantes. Pode-se dizer que são estranhos animais. Por mais que estejam,
de vez em quando, próximos, como nos anos atuais, ainda assim há toda
uma mitologia que vai sendo cultivada de uma geração até outra em que
essas entidades podem ser vistas como um estranho animal ou objeto interno, preferentemente persecutório, que leva nosso dinheiro, que estabelece
regras, que faz exigências, que aumenta as quotas. Recentemente aumentamos as quotas. Penso que foi justo, fazia quinze anos que não se aumentava. Foi muito interessante. Havia duas opções: ou se aumentava um pouco
as quotas ou se suspendia uma série de programas. Então, ou se caía na
mediocridade de fazer coisas pequenininhas, sem grandes aquisições, ou
se cobrava um pouco mais e se faziam obras, aumentavam as sedes, como
todas as Sociedades, como esta aqui, e outras que querem progredir fazem.
Então, é preciso gastar e investir. Isto eu aprendi com vários colegas acompanhando, por exemplo, a construção da nova sede da Sociedade de São
Paulo. Não sei se alguns de vocês já estiveram lá. É, realmente, uma beleza, mas foi uma dificuldade para o presidente da época, que foi o Nosek, e
outros que trabalharam com ele, mas eles fizeram. E hoje é um bem comum. Então, a gente, às vezes, tem que tomar medidas que podem ser um
pouco impopulares em prol de alguma coisa que vai se fazer bem.
Mas, esse objeto IPA é um objeto também muito interessante. É um
estranho animal e talvez a única forma de se diminuir a estranheza é conhecer mais, saber mais informações, perguntar mais, ter mais contato, utilizar
as autoridades das respectivas Sociedades para participar dos eventos. Sabemos que o conhecimento diminui a perseguição e diminui a estranheza.
294 Psicanálise v. 9, n. 1, p.285-297, 2007
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 295
Cláudio Laks Eizirik
É um objeto complexo, mas ele não é, necessariamente, persecutório, ele
pode ser inspiracional. O tempo em que a IPA funcionava como um cão de
guarda que andava pelos quatro cantos do mundo pesquisando maldades
terminou. O que não quer dizer que não haja necessidade de uma discussão
sobre como as coisas são feitas, e uma disposição para avaliar, comparar e
seguir os estatutos e código de procedimentos.
Bem, tendo discutido alguns aspectos da validade interna, vou examinar brevemente agora algo da validade externa.
A validade externa é a relação com a cultura. É a presença nos espaços
públicos, escolas, universidades, psiquiatria, psicologia, sistema de saúde.
O nosso impacto sobre a cultura. Aliás, vocês têm aquela série “A Brasileira na Cultura”, que é um exemplo do impacto na cultura. Assim como existem ciclos de discussão de filmes, que atualmente são feitos em quase todas as Sociedades. Há uma longa história de nossa relação com a cultura,
com aproximações e afastamentos, em que ambigüidades e ambivalências
de ambos os lados estão inevitavelmente presentes. Muitas vezes, quem
fala sobre psicanálise não são, necessariamente, pessoas com as quais nós
estamos relacionados ou pessoas ligadas à IPA. Naturalmente, preferiria
ver mais pessoas ligadas à IPA ocupando mais espaços públicos e dando
uma versão de psicanálise que é a que nós compartilhamos.
Temos, atualmente, uma série de Comitês trabalhando nisso e vamos
aproveitar o Congresso de Berlim também nesse sentido, através de nosso
Comitê de Informação Pública. O importante é que nós adquirimos, nos
últimos anos, a noção de que a presença no espaço público é altamente
relevante. E por outro lado, a presença excessiva é altamente desgastante.
Então, como encontrar o equilíbrio entre uma presença razoável em que
possamos falar de temas relevantes e uma presença abusiva, intrusiva, que
nos transformaria num comunicador banal, barato e, muitas vezes, ridículo, dando uma de conselheiro sentimental? Esse é um dos desafios que
precisamos enfrentar.
Há na IPA uma série de programas de estímulo à interface com a cultura, em vários níveis, como o DPPT. Vários projetos têm sido seleciona-
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dos, pois queremos financiar atividades que nos coloquem em maior contato com a comunidade. Isso nos obriga a aprender a falar uma linguagem
que não é rigorosamente semelhante à de nosso meio interno, mas tem que
poder ser falada fora daqui. Vários comitês ou grupos de trabalho estão
estudando e produzindo trabalhos sobre temas relevantes, alguns dos quais
serão apresentados em Berlim: o preconceito, as conseqüências psíquicas
da exclusão social, por exemplo. Aliás, no Congresso de Berlim teremos a
oportunidade de realizar uma discussão conjunta sobre “Repetir, recordar e
elaborar na psicanálise e na cultura hoje”.
Uma das coisas interessantes , que o Lores me sugeriu que abordasse
aqui, foi essa experiência, em 2006, com a ONU. Tive essa oportunidade
de falar na ONU e vou relatar algo dessa experiência. Temos um Comitê
das Nações Unidas, que é dirigido por uma psicanalista de origem egípcia,
que mora em Nova Iorque, chamada Afaf Mahfouz, que trabalha na ONU
há muitos anos e é uma especialista em ONG’s. Ela conseguiu montar um
Comitê formado, essencialmente, por analistas de Nova Iorque que tem
várias inserções com as ONG’s. Então, quando começamos a planejar as
atividades dos 150 anos de Freud, achamos que era o momento de fazer
algo conjunto com a ONU, por todo o seu significado simbólico e seu real
valor internacional. Foi um dia inteiro. Na primeira parte eu falei, a seguir
falou uma pesquisadora que não é analista, que trabalha com famílias de
descendentes do Holocausto, discutindo o impacto dessa situação traumática e falou um dos diretores da Cruz Vermelha, todos mostrando para que
tipo de coisas a psicanálise pode ou não contribuir.
A seguir houve uma ampla discussão, estavam umas duzentas pessoas, era um público muito interessante, porque eram todos os dirigentes de
ONG’s relevantes. Estavam aqueles antigos panteras cinzas, vocês se lembram? Os velhos. Havia representantes negros, representantes de mulheres, homossexuais, enfim, todas essas ONG’s de crianças , muitos analistas
e representantes de países na ONU, então, uma platéia diversificada, estimulante e questionadora. Depois, durante a tarde, houve uma apresentação
de trabalhos. Casos de análise com descendentes do Holocausto, casos de
296 Psicanálise v. 9, n. 1, p.285-297, 2007
Conferência
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análise com pessoas que tinham sofrido abuso sexual na infância, intervenção no conflito árabe-israelense, intervenção em grupo em escolas, o impacto da velhice. Foram várias apresentações seguidas de discussão e em
todas elas o tema era: em que a psicanálise pode contribuir para situações
traumáticas. O tema geral era “A Prevenção da Transmissão
Transgeracional do Ódio, da Violência e da Guerra”. E isso foi discutido
efetivamente. Eu queria dizer, basicamente, que foi uma experiência em
que foi possível um diálogo com vários setores da cultura. Esse Comitê das
Nações Unidas funciona muito bem, é uma iniciativa estimulante, e penso
que coisas semelhantes são possíveis.
Para concluir, repassados todos esses aspectos voltemos, por fim, brevemente, ao espaço que nos é próprio e peculiar, a nossa própria mente.
Não só os aspectos teóricos, clínicos, de formação, de interface com a cultura e os que constituem a família analítica de cada um de nós, nossa novela profissional, são essenciais, como também, talvez, principalmente, decisiva é a nossa relação com esse objeto interno, a psicanálise. Nossas instituições são indispensáveis para muitas coisas, mas talvez mais indispensável seja cuidar dessa relação tão intensa com esse objeto elusivo, às vezes,
enigmático e frustrante, outras vezes misterioso e distante, poucas vezes
mostrando-se mais através de nesgas do seu possível esplendor, mais raramente ainda proporcionando gratidão e consolo. Cuidar com amor desse
objeto psicanálise dentro de cada um de nós e da forma como a praticamos
e desenvolvemos em todas essas dimensões talvez seja a melhor maneira
de manter tanto a sua validade interna como externa. Muito obrigado.
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PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE
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ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES
E NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
1
Informações Gerais
Psicanálise é uma publicação semestral, oficial, da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Por to Alegre editada desde 1999. Tem por objetivo divulgar
trabalhos não só do campo da psicanálise como também de suas inter faces
com as diversas áreas do conhecimento tanto em nível nacional como
internacional. Esses são apresentados sob forma de ar tigos, ensaios,
conferências, entrevistas e reflexões.
Os manuscritos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Psicanálise
– Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegre, sendo
vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização por
escrito da Comissão Editorial da revista.
As opiniões emitidas nos trabalhos, bem como a exatidão, adequação e
procedência das referências e citações bibliográficas, são de exclusiva
responsabilidade dos autores.
2
Requisitos para submissão do manuscrito
2.1 o trabalho deve ser preferencialmente inédito (exceto os publicados
em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas ou Boletins de
circulação interna de Sociedades Psicanalíticas) exceções serão
consideradas;
2.2 não infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem ser feitos
de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em relatos
clínicos;
2.3 respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor;
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 299
2.4 não conter nenhum material que possa ser considerado ofensivo ou
difamatório;
2.5 caso o trabalho seja encaminhado simultaneamente para outra
publicação deve, o autor, comunicar explicitamente e por escrito a Comissão
Editorial. A revista não colocará obstáculos à divulgação desse em outra
publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas
regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva
do autor;
2.6 por fim, o autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre está transferindo
automaticamente o “copyrigth” para essa, salvo as exceções previstas pela
lei.
3
Forma de apresentação do manuscrito
3.1 os originais deverão ser enviados à “Psicanálise” – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, preferencialmente por e-mail para
os endereços [email protected], [email protected],
[email protected], [email protected];
3.2 ter ex tensão máxima de 20 páginas (frente), fonte Times New Roman,
tamanho 12 em espaço 1 ½, com numeração no canto superior direito.
Caso seja enviado por Correio deverá acompanhar cópia em CD-ROM,
digitado em word for windows, endereçado a Comissão Editorial da revista
da SBPdePA na Rua Quintino Bocaiúva, 1362, CEP 90440-050, Porto Alegre/
RS.
3.3 Folha de rosto identificada, contendo:
– título do trabalho em português, inglês e espanhol (centralizado);
– nome completo do(s) autor(es) na margem direita;
– nota de rodapé com titulação e afiliação;
– quando se tratar de trabalho apresentado em evento informar em nota de
rodapé;
3.4 Resumo e palavras-chave em português, inglês e espanhol:
– resumo, abstratc e resumen deverá conter no máximo 150 palavras seguido
300 Psicanálise v. 9, n. 1, p.299-302, 2007
das palavras-chave. O resumo e palavras-chave em por tuguês deverão
localizar-se na folha de rosto após o título; resumos e palavras-chave em
inglês (abstract e keywords) e espanhol (resumen e palabras-llave) constarão
no final do trabalho, antes das referências.
3.5
Tex to
3.5.1 Citações
As seguintes orientações seguem o estabelecido nas normas da Associação
Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, NBR 10520 – Informação e
documentação – Citação em documentos – Apresentação.
3.5.1.1 deverão ser identificadas através do sobrenome do autor, ano de
publicação e número da página, por exemplo: Freud (1918, p. 5) ou (FREUD,
1918, p. 5). Na citação direta cur ta (até 3 linhas), colocar entre aspas duplas;
em citação direta longa (mais de 3 linhas), destacar com recuo de 4cm da
margem esquerda com letra menor e sem aspas.
3.5.1.2 obras com dois autores, os dois devem ser mencionados, por
exemplo, Mar ty, de M’Uzan (1963) ou (MARTY de M’UZAN, 1963). Caso
existam mais de dois autores, indicar somente o primeiro seguido da
expressão latina et al., pó exemplo Rodrigues et al. (1983) ou (RODRIGUES
... et al., 1983).
3.5.1.3 consideração especial para as obras de Freud: as datas
correspondentes aos seus tex tos deverão aparecer entre parênteses, logo
após o nome, seguido da data de publicação da obra consultada.
3.5.2
Referências
As referências seguem o estabelecido nas normas da Associação Brasileira
de Normas Técnicas – ABNT, NBR 6023 – Informação e documentação –
Referências – Elaboração.
3.5.2.1 são apresentadas de forma completa, no final do trabalho, em
ordem alfabética de sobrenome dos autores e suas obras pela ordem
cronológica de publicação, correspondendo exatamente às obras citadas.
3.5.2.2 obras publicadas de um mesmo autor no mesmo ano, deve-se
acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c, etc. Quando um autor é
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 301
citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as
obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que aparece
como co-autor. Os autores não são repetidos, mas indicados por seis traços
sem espaçamento entre eles;
3.5.2.3 os títulos dos livros devem ser grifados, sendo que as palavras
mais significativas serão escritas em maiúsculas; o lugar da publicação, o
nome do editor e a data de publicação também devem ser indicados, nesta
ordem;
3.5.2.4 nos títulos de artigos somente a primeira palavra figurará em letra
maiúscula, seguido do título grifado da revista, volume, número e página
inicial e final do artigo.
3.5.2.5 consideração especial para as obras de Freud: as datas
correspondentes aos seus tex tos deverão aparecer entre parênteses, logo
após o nome; a data de publicação da obra consultada constará no final da
referência.
4
Procedimentos de avaliação
4.1 todo artigo entregue para publicação será avaliado através de critérios
padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre;
4.2 o avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que
o mesmo seja mantido pelo próprio avaliador;
4.3 sendo o ar tigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será
considerado, em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto
à data de sua publicação dependerá do número de ar tigos aprovados e do
programa editorial estabelecido;
4.4 a Comissão Editorial reserva-se o direito de efetuar pequenas alterações
no texto aceito para publicação, afim de adequá-lo aos critérios de coerência,
clareza, fluidez, correção gramatical e padronização editorial adotados pela
revista. A exatidão das informações é de responsabilidade do autor.
4.5 artigos que não forem publicados em 10 (dez) meses a partir da data
de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse
tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação.
302 Psicanálise v. 9, n. 1, p.299-302, 2007

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