Crime e Punição na Sociedade
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Crime e Punição na Sociedade
ALEXANDRE SILVA POROSKI CRIME E PUNIÇÃO NA SOCIEDADE Lages, Santa Catarina. 2001 ALEXANDRE SILVA POROSKI CRIME E PUNIÇÃO NA SOCIEDADE Monografia apresentada como requisito parcial à conclusão do Curso de PósGraduação em Segurança Social, do Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e ExtensãoIBPEx. Orientador: Prof. Pedro R. Bodê de Moraes Lages, Santa Catarina. 2001 ALEXANDRE SILVA POROSKI CRIME E PUNIÇÃO NA SOCIEDADE Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Especialista no Curso de Pós-Graduação em Segurança Social do Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx, em convênio com a Universidade do Planalto Catarinense-UNIPLAC, pela comissão formada pelos professores: Orientador: Prof. Pedro Rodolfo Bodê de Moraes Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx Prof. _________________________ Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx Prof. _________________________ Instituto Brasileiro de Pós-Graduação e Extensão-IBPEx Lages, Santa Catarina, Agosto/2001. 2001 SUMÁRIO Introdução .....................................................................................................5 1. 1.1. 1.2. 1.3. Normas Sociais e Direito Penal ...............................................................10 Crimes e Ilícitos ..........................................................................................11 Definições de Crime....................................................................................14 Intento Criminoso ........................................................................................16 2. 2.1. 2.2. 2.3. 2.4. Evolução das Penas e do Direito de Punir .............................................20 O período da Vingança Privada ..................................................................21 O período da Vingança Divina ....................................................................22 O período da Vingança Pública ..................................................................24 Os Magistrados e os Tribunais. As Prisões ................................................28 3. 3.1. 3.2. 3.3. 3.4. Os. Sistemas Penais: A Humanização das Prisões ...............................31 Sistema Penal Brasileiro .............................................................................35 A Reforma do Código Penal e a Execução das Penas ...............................36 Execução Penal Autônoma .........................................................................39 A Lei de Execução Penal ............................................................................40 Referências Bibliográficas ..........................................................................42 5 “O ser humano tende a adaptar à sua conduta ou comportamento social em algo que esta colocado acima da sua individualidade e de seu individualismo”.(Ramagem Badaró). Introdução Positivamente e dogmaticamente, este é o discurso completo que o Estado-Legislador estabeleceu, soberanamente e harmoniosamente para o Estado-Julgador: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime...”. Buscando combater, reprimir, conter ou diminuir condutas humanas criminalizando-as, ainda que rotulando tipos penais já existentes com outros nomes – nomen juris! – v.g. hediondos, de maior gravidade, de especial gravidade, restringindo possibilidades menos rigorosas no cumprimento das penas e ou modificando-as, substituindo-as, alterando-as em qualidade e ou quantidade com apenas normas de Direito Penal, tenho para mim que é o absurdo dos absurdos, uma inconseqüência como competência de apenas um dos Poderes da República Federativa. Medite-se neste exemplo: é considerado crime hediondo tanto o consistente na subtração de um real e de uma ficha de ônibus quanto o é o 6 praticado por quem realiza a conduta de, com resultado morte, subtrair imensa fortuna transportada por um carro pagador. Repugna-se a idéia de que o Estado-Legislador pretenda cuidar da segurança pública e apregoe que está agindo contra a impunidade valendo-se, unicamente, de seu Poder Legiferante. Se no Estado Democrático de Direito o fundamental é a garantia da liberdade individual, não podemos, ou melhor, custanos compreender, embora não nos recusemos a tanto, que isso se faça com o instrumento que se pretende seja o adequado, o Direito Penal. Com as normas incriminadoras só se pode aumentar a possibilidade de maior criminalidade e de mais possibilidades de um maior número de criminosos, inclusive os que permanecem nas famosas zonas cinzentas, ou ignorados, ou desconhecidos das camadas sociais influentes e dos grupos de interesse. De outro enfoque, repudia-nos aceitar a idéia de que o Poder Julgador, expressão terminológica que entendemos mais caracterizadora que Poder Judiciário, quanto à investidura para a entrega jurisdicional, no universo do Direito Penal, bem esteja instituído, basicamente para punir – dura lex sed lex. Necessitamos de Justiça Penal? – Não! – Precisamos de prisões (ainda que nelas se trancafiem, em grande maioria, somente pobres, miseráveis, desamparados, etc. para reeduca-los e ressocializá-los!)? – Não! – O crime existe? – Poderia inexistir, já que ele existe porque o Poder Legislador assim quer (sempre pensando que ele é invulnerável, pois a lei por ele feita o tem por inviolável). Está na hora de serem criados novos engenhos para esconjurarmos o sistema penal vigente e, mais do que isso, para que fiquem limitados ao menor usos possíveis os modelos existentes para o resgate das sanções penais privativas de liberdade. Não tenhamos dúvida de que os instrumentos que 7 concretizam as ideologias do aparelho punitivo vigente não oportunizam, não conseqüenciam, não acarretam nenhuma expectativa de bem-estar e de paz social a ninguém. Sigamos admitindo que toda e qualquer conduta que seja rotulada de “crime” não deixa de continuar sendo fenômeno social e normal inevitável, muitas das vezes episódico, inerente à condição do ser humano, cada vez mais fraco e oprimido. Prega-se que a pena ressocializa, que a reclusão reeduca, não se trata apenas de um paradoxo, de uma contramão; trata-se de um paradoxo, de uma contradição, trata-se de uma insuportável mentira. (Res)socializa-se pela prática reiterada de atos vitais, sadios, no seio de uma sociedade livre e consciente; (re)educa-se em um ambiente necessariamente melhor do que naquele e aquele em que foi praticado o “crime”. Na verdade não se quer ressocializar, não se pretende reeducar, visa-se castigar, quer-se é punir; prega-se desde as primeiras incursões científicas ensaiadas pelos adeptos da Escola Clássica, como justificativa de uma resposta a quem pecou, ou melhor, “criminou”. Nem me engana a prédica de que pela pena se expia uma culpa; nem me convence que a pena seja meio de reparação formal de dano causado. Mesmo assim, persiste a aceitação sentimental de que a vingança oficial, por se apresentar como sendo legal, satisfaz à sociedade. Essa, hipocritamente, que sempre retribuição, imediata, apenas para compartilhar, olvidando-se de que, personagens em cena, à evidência, sob o impulso da emoção e da inconseqüência da paixão, sentenciando, nas circunstâncias e pelas circunstâncias, a seu modo, o próximo ator ou autor pode estar em seu meio. Ainda: se com todas as condutas incriminadoras com penas rigorosas, severas, longas e aviltantes; se os efeitos são sempre negativos e se não 8 ensejam qualquer freio positivo, ao menos para o apenado, tenho para comigo que o único objetivo da pena é o de servir de punição, ou seja, de penação e que o ser humano que “criminou” seja exemplarmente apenado, vale dizer-se castigado. Não se tem dúvida de que ao ingressar em uma penitenciária, ou estabelecimento oficial de castigos, o criminoso Ticius, que era um cidadão, e, na cela, na clausura punitiva, não vira frade, vira cisco, transforma-se em bode e, ao sair, nem mais é Ticius, sendo apenas egresso ou regresso, pois se educou, passando a ser, provavelmente, remendado e nada recomendado, já que não teve como se emendar e nem se remendar, e agora, recomendar-se. Luz, mais luz! – gritou o cego e moribundo Goethe. E nós, sapientes, cientes, conscientes, o que pretendemos? – Clamamos? Proclamamos? Ou, hipócritas, convocamos, almejamos e ansiamos por uma sociedade (vida?) mais coerente, harmônica, pacífica e justa. todos somos iguais, sendo, reconhecidamente desiguais, precisamente por causa da Lei. Muito já se tem dito e ouvido ou escutado, e escrito e lido a respeito de “classe dominante”, poder, contrato social, cessão ou renúncia de certos direitos em troca de certas garantias... Resistimos e procuramos sempre justificar, opomos e temos em mente sempre submeter; reivindicamos, que é nossa meta a nossa sobrevivência. Cada um de nós é o “juiz criminal” do outro e por isso nos dizemos: “Eu sou justo, inocente”. Do outro, ao outro, o outro é o mal, o mau, o erro, o pecado, o criminoso, não sete vezes sete, mas até setenta vezes sete. Então, nada de pacificação porque desejamos que o conflito seja apenas visto, tido e enfrentado como um conflito e que, sendo causa, gere outro conflito: a Lei e a Pena, que cada um de outrem é acusador, julgador e executor, sem 9 dulgência, sem clemência, pois que sabemos de direito, de consciência de legem habemus e do que mais. Diante desta breve reflexão, reconhecendo a possível adjetivação da veemência, nos limites de nossa contingência, concentremo-nos no seguinte enfoque: o Direito Penal é a mais aflitiva de todas as criações do homo sapiens; a Pena, tal como admitida pelo homo sapiens, em que se tem o Legislador, é a mais inconseqüente solução. 10 1. NORMAS SOCIAIS E DIREITO PENAL O indivíduo raramente tem consciência da extensão do seu comportamento que é governado por normas sociais. Isto é particularmente verdadeiro nas modernas sociedades industriais onde tantos comportamentos são optativos; o indivíduo exerce uma escolha relativamente livre, dentro dos vastos limites impostos pelas regras sociais. As normas, entretanto, existem – apesar da latitude de que provêm – e formam a estrutura da sociedade. Sociólogos, freqüentemente, classificam as normas em quatro tipos principais: modo de pensar e hábitos, Leis Costumeiras, usos e o Direito Positivo. Esses tipos são rudes, mas convenientes. Modo de pensar e hábitos são aquelas regras sociais impostas por tal controle social informal como o ridículo, ou a proscrição. Como todas as normas, modo de pensar e hábitos envolvem um imperativo moral, um sentimento de obrigação, um sentimento de “dever”; mas no caso de modo de pensar e hábitos o sentido de obrigação é relativamente fraco. Elas não nascem deliberadamente, mas aparecem aos poucos num processo de crescimento inconsciente. Costumes são muito similares a modos de pensar e hábitos e são distinguíveis principalmente pelo fato de envolverem uma maior insistências na sua observância. Uma violação do modo de pensar e hábitos pode despertar leve censura; uma violação dos costumes suscita forte indignação moral. As leis costumeiras envolvem um novo elemento, pois estas são normas aplicadas pela comunidade como um todo ou pelos representantes formalmente 11 escolhidos pela comunidade. A determinação da culpa do acusado e punição dele não mais é deixada ao capricho individual – o grupo social apodera-se da questão e enfrenta o transgressor. Finalmente, temos o Direito Positivo. Como a Lei Costumeira, ele envolve a ação da comunidade, mas pode ser destacada pelo fato de ser formalmente instituído. Um chefe, um rei, um conselho dos chefes de uma tribo, ou uma Assembléia Legislativa promulgam as leis. Estes quatro tipos de regras sociais constituem o sistema normativo – a rede espalhada de regulamentos que reveste o mundo chamado de realidade dupla: o que deve ser e o que é na realidade. Hoje, o sistema normativo, que nós entendemos ser o Direito Positivo, aparece principalmente em forma de Constituições Federal e Estadual. O Direito Costumeiro, por outro lado, é constituído de conceitos, princípios e costumes de longa data desenvolvidos através dos tempos e trazidos e modificados pelos colonizadores. Estas regras legais, conhecidas como Direito Consuetudinário no sistema legal, são aplicadas pelos Tribunais apesar de não terem sido decretadas por órgão governamental. Embora tenha o Direito Positivo, sofrido um considerável crescimento nos tempos modernos, e grande parte do Direito Consuetudinário tenha-se transformado neste campo do direito, o Direito Costumeiro continua a prover normas sustentadas pelo poder do Estado par o controle do comportamento social. 1.1. Crimes e Ilícitos Uma divisão fundamental separa as regras legais de nossa sociedade em duas grandes classes: Penal e Civil. A lei civil diz respeito aos ilícitos – infrações 12 cometidas contra o indivíduo. A lei penal se refere a crimes – o mal entendido contra a sociedade como um todo. Esta divisão, que parece tão simplesmente de relance, é, na realidade, extremamente complexa. Em primeiro lugar, muitos atos considerados como crimes claramente envolvem uma ofensa cometida contra um indivíduo. Crimes típicos, tais como roubo e estupro, obviamente, constituem injúria a uma pessoa em particular e somente indiretamente ameaçam a sociedade como um todo. Em segundo lugar, muitos atos ilegais podem ser tratados ou como crimes ou como delitos cíveis, dependendo das circunstâncias do caso. O adultério, por exemplo (embora seja raramente considerado como tal) mas oferece bases para medidas civis de repressão. É verdade que, na grande maioria dos casos, que aparecem diante dos tribunais, não há confusão entre um crime e um delito. As medidas legais civis geralmente se iniciam através de uma “queixa” feita por pessoa privada e terminam como uma “sentença” proferida pelo juízo a fim de fazer restituição. Os procedimentos ou medidas penais começam com uma “denúncia”, pelo menos nos casos mais sérios, e terminam com uma “condenação” que implica em uma pena, se o indivíduo acusado do crime é considerado culpado.1 Nos procedimentos penais, as regras de evidência são mais rigorosas do que aquelas de medidas civis; a liberdade e, às vezes, a vida do réu estão em questão. E nas medidas penais deve ficar provada a culpa do réu “além de qualquer dúvida razoável”, enquanto nos procedimentos cíveis os padrões de prova não são muito rigorosos. A confusão, então, entre o que é um crime e o que é um delito cível não aparece perante os tribunais. Ao invés, a confusão vem à tona quando consideramos a questão fundamental: que atos os legisladores considerarão como crimes? 13 A designação de uma ato como crime pelas leis é mais do que uma questão de aplicação de um rótulo oficial, é um processo social de longo alcance. Os marxistas alegam que a lei penal não é senão outra arma das classes governantes para a exploração do proletariado, particularmente com referência à lei penal que se ocupa da propriedade. Outros tem asseverado que muito de nossa legislação penal é irracional; o público torna-se moralmente indignado e atenua suas emoções em vingança legalizada. Na verdade sempre os legisladores estão aprovando leis. Estas leis são na sua maior parte, modo de atenuação das emoções e os legisladores estão inteiramente cientes deste fato. Nenhuma das teorias acerca das origens da lei esta completamente errada, mas todas são inadequadas. Pode ser verdade que a inimizade tradicional e sangrenta entre famílias pode destruir uma sociedade primitiva precariamente equilibrada no limite da sobrevivência, e a comunidade, se quer sobreviver, deve interceder e acomodar os desentendimentos. sobrevivência social podem dificilmente Todavia, as necessidade da explicar muitos dos atos agora considerados como crime – tais como o jogo ou crueldade para com os animais. Pode ser verdade que poderosos indivíduos na sociedade angariem a ajuda do Estado na proteção de seus interesses por meio das leis penais. Contudo, argumentar como Proudhon que propriedade é roubo – que o rico protege suas espoliações apelando para os tribunais suprimirem os invejosos – é ignorar a aceitação generalizada de que a propriedade é desigual em muitas sociedades, e deixar intocável muitas das injustiças com as quais o Direito Penal se relaciona. Pode ser verdade que muitos institutos de direito repressivo são sinais da emoção de uma comunidade incitada, embora muita lei seja criada como resultado de reflexão sóbria. 1 Em resumo, não podemos estar satisfeitos com simples Crimes mais sérios são geralmente classificados como delitos graves; crimes menos sérios são 14 explanação global porque certos atos são considerados pelo Estado como crimes. O Direito Penal cresceu e carrega a marca de épocas históricas nas quais se desenvolveu, e os atos que os homens estão querendo julgar como injúrias ao Estado mudam como muda a estrutura social. 1.2. Definições de Crime Pode ser tomado como princípio básico sociológico que o homem não mais obedece a regras que considere eticamente errada. Ou, para exprimir de outra maneira, podemos dizer que afinal de contas é impossível assegurar concordância pela simples coação – deve haver algum grau de confinamento das normas: as demandas dos outros devem tornar-se demandas que o indivíduo coloca em si mesmo. A bela simplicidade deste princípio não deve cegar-nos pelo fato de que os homens acharão freqüentemente razões éticas para a sustentação do que devem fazer. No que tange ao Direito Penal isto tomou a forma de busca para uma absoluta base moral das regras legais. Os partidários deste ponto de vista sustentam que crime é a violação de alguma lei eterna dada pela natureza do homem, um sentido moral intuitivo ou os comandos de Deus. E, tentando responder à questão “O que é um crime?” devemos estar livres do fluxo dos valores humanos, do capricho dos advogados, ou dos argumentos de filósofos do Direito. Como Morris Cohen salientou, entretanto, este ponto de vista é difícil de se manter. Existe uma distância da exata equação entre o desejo divino, como é apresentado pelos teólogos, e o conteúdo do Direito Penal; nem todas as violações das leis morais constituem crimes, a moralidade inata mostra mencionados como contravenção. 15 mudanças marcantes através dos tempos, e a consciência moral da espécie humana raramente provê regras suficientemente definidas para a regulamentação dos conflitos humanos; e a idéia de uma natureza imutável com uma escala fixa do certo e errado não se ajusta aos fatos. A tentativa de achar definições para “crime” e “o criminoso”, conceitos independentes de leis arbitrárias, aparece com aspectos modernos, entre alguns estudantes do comportamento social, como um esforço de equacionar “criminoso” e “anti-social”. Urge que criminologistas evitem a restrita categoria legal de crime e construam uma teoria científica acerca da conduta injuriosa para com a sociedade. Crime, então não deve ser a mera violação de regras legais que variam no tempo e espaço. Ao invés, crime deve ser definido como qualquer conduta que vai de encontro ao bem estar da sociedade, pois, somente agindo desta maneira, podemos desenvolver proposições que tenham validade universal. Este argumento tem muito para recomendar-se naquilo que nos força a examinar a relação existente entre comportamento, que é definido pela lei como criminoso, e comportamento que é classificado como anti-social pelos sociólogos. Muitos estudiosos, cuidadosamente indicam os riscos que circundam esta posição: ela convida a julgamentos de valor subjetivo; ao contrário, substitui a vaga classificação de comportamento anti-social para a mais precisa categoria de crime; e que é talvez o mais importante, está apta a fazer os sociólogos esquecerem que todas as regras sociais são “relativas, provisórias e variáveis”. O Direito Penal não representa os julgamentos morais finais de uma sociedade. Ao revés, é um conjunto de regras para a coordenação do comportamento social, composto no calor de emoções fugazes e fria racionalidade, algumas vezes proibindo o que a maioria dos homens acha moralmente repreensível e, outras vezes, sujeitas a amargas disputas. Na 16 ocasião serve a interessado grupo limitado e, geralmente esforça-se para proteger a segurança e o bem estar da comunidade como um todo. Não deve surpreender-nos que um crime – uma violação dessas regras – é complexo e difícil de explicar. 1.3. Intento Criminoso No exame da natureza do crime deixamos de mencionar um componente que é de importância crucial. Até aqui falamos de um ato criminoso - uma idéia patente do comportamento proibido pelo Estado e sujeito a sanções penais. De fato, todo crime é composto de dois elementos: um ato criminoso e uma intenção criminosa. O último refere-se à chamada "consciência pesada" (mens rea) ou intenção de cometer um delito qualquer; e, de acordo com um princípio básico do Direito Penal, esta intenção deve estar presente antes que se possa dizer que um crime foi cometido. Com poucas exceções, um indivíduo não pode ser detido e responsabilizado criminalmente por aspectos de sua conduta que não desejou nem pretendeu. O Direito Penal reconhece um número de situações nas quais o indivíduo pode ser visto como desprovido de intenção criminosa e, portanto, isento de responsabilidade criminal. 1) O acusado pode alegar que o ato errado ocorreu por acidente, e se o acusado estava agindo com o devido cuidado e envolvido por ato lícito ele é absolvido; 2) Existem provisões legais que negam a responsabilidade penal abaixo de dezoito anos;3) O acusado pode argumentar que cometeu o ato ilegal sob coação ou compulsão; 4) Pode-se argumentar que o acusado ignorava ou estava enganado acerca dos verdadeiros fatos, se os fatos 17 foram como ele acreditava, ele teria agido de maneira legal; 5) O acusado pode alegar que agiu em legítima defesa quando ameaçado com sérias ofensas físicas; e 6) Pode-se argüir ainda que ele vinha sofrendo de uma forma de insanidade que lhe tornava impossível considerar criminoso o seu intento. Estas negações da responsabilidade criminal - algumas vezes conhecidas com inumeráveis qualificações e refinamentos, mas em geral todas são dirigidas à mesma idéia: antes que o Estado possa impor punição ao indivíduo que cometeu um ato ilícito, deve ser mostrado que tal ato foi um atentado voluntário para violar a lei penal. Como disse o magistrado Holmes: "Mesmo um cachorro sabe distinguir quando tropeça e quando leva um pontapé". O Estado não pode sentir menos quando sofre uma injúria. Aqui esta evidente uma peculiar corrente filosófica no que diz respeito ao homem e sua natureza. O Direito Penal insiste em que há atos nocivos que são desejados e atos nocivos com falta deste elemento; e que o castigo é inútil ou errado quando aplicado no último caso, mas apropriado no primeiro. Naquilo em que o castigo não deve ser cego e selvagem ato de vingança, mas, ao contrário, um meio de desencorajamento e reforma, a sua imposição pode ser justificada somente então pode a ameaça de futuras punições influenciá-lo quanto à escolha entre o certo e o errado. Se o indivíduo não exerce a escolha, se não controla seu comportamento, a punição não tem outra conseqüência senão a de impor-lhe dor e sofrimento. Estas teorias legais da conduta humana tem sido sujeitas a ataques de várias Escolas. Muitos tem argumentado que o fato de um indivíduo, premeditada e espontaneamente, escolher o curso de ação criminosa é bastante enganoso. O crime deve ser seguido a um conflito ou impulso inconsciente sobre o qual o indivíduo não tem controle; ou o crime deve ser atribuído ao meio social do 18 indivíduo que dá origem a propósitos, atitudes e valores que o conduzem a um comportamento ilegal. Em nenhum dos casos o indivíduo pode ser responsabilizado intencionalmente por sua conduta criminosa, uma vez que é em grande parte uma criatura cujas forças estão além do seu controle. Deste ponto de vista, o conceito de intento criminoso é simplesmente um anacronismo jurídico que se interpõe no caminho da investida racional e científica à prevenção do crime e à reforma do infrator. A sociedade moderna, pela retenção da importância sobre o mens rea como um necessário componente de um crime, continua a sustentar um quadro obsoleto do criminoso como deliberadamente viciado, perverso, ou corrupto. Se é injusto punir um homem por ato que cometeu por acidente, é também injusto punir um homem por ato causado por uma personalidade deformada que tem sua raiz na comunidade ou na família.2 No entanto, este ponto de vista de Direito Penal, sobre intento criminoso tem sido severamente criticado pela apresentação da insanidade como escapatória - um termo sardonicamente descrito por um escritor como sendo "um meio psicológico tão vago que sua aplicação se restringe somente à esfera legal". É freqüentemente argumentado que os métodos dos tribunais em apurar a capacidade mental do indivíduo são inadequados; que a interpretação da lei pelos estados psíquicos é irremediavelmente antiquada; e que a alegação de insanidade esta abusada ou violada não somente pela execução ou o envio para prisão de indivíduos que deveriam ser mandados a instituições psiquiátricas, como também deixando em liberdade indivíduos que deveriam ter sido punidos. Existem difíceis e variadas controvérsias nestas argumentações sobre o intento criminoso, que vão dos ideais da justiça às questões empíricas do fato. 2 Podemos entender este ponto de vista, de forma modificada, na tentativa corrente de punir a família do delinqüente juvenil; é argumentado que os pais do infrator juvenil são, em última análise, responsáveis por sua conduta. 19 Nossa intenção aqui não é determinar estes argumentos; devemos esperar em nossa discussão da causa do crime tanto quanto possamos esclarecer a matéria em seu todo. Neste ponto, o importante é que o conjunto de regras, que chamamos Direito Penal, contém implícita e explicitamente proposições teóricas acerca do comportamento humano. A própria definição de crime assenta-se em suposições de atividades da mente humana. Uma vez que a opinião do homem sobre si mesmo não é estática, mas mudada pelas experiências dos tempos e descobertas da ciência, o Direito Penal está ligado á sociedade pelo conhecimento e pela crença, assim como também pelos valores morais. O estudo científico do crime, portanto, desempenha um duplo papel com respeito ao Direito Penal. Por um lado ele investiga as origens dessas regras, a relação entre elas e a estrutura social, as causas e conseqüências de violações dessas normas, e o controle e prevenção do comportamento criminoso. Por outro lado, o conhecimento adquirido pelo estudo científico do crime finalmente reverte ao Direito Penal para criar novas versões das regras, novas concepções da natureza do crime. 20 2. EVOLUÇÃO DAS PENAS E DO DIREITO DE PUNIR No período que antecedeu o surgimento da civilização humana, o homem vivia no chamado Estado de Natureza, em grupos que se achavam mais ou menos espalhados na superfície dos continentes, em diversos estágios de desenvolvimento, isto é, havia uma pura e simples busca de satisfação das necessidades básicas mais prementes, como alimentação, abrigo, defesa e reprodução. Era uma visão até paradisíaca do homem convivendo em pequenos grupos familiares, ao largo de conflitos e disputas que não tivessem relação imediata àquelas questões básicas da sobrevivência. Hobbes (1588-1679) descrevia na sua magistral obra Leviatã3, uma visão mais realista e crítica desse estado de vida semi-selvagem — que gerava o que deliberou chamar Direito de Natureza — e concluiu que esse mesmo direito de natureza, é também causa constante de animosidade e conflito. Isto porque “não há nenhum homem que não possa fazer temer o próximo e nem existe alguém que seja tão fraco e incapaz de se impor ao grupo” (Nielsen Neto). A luta pelo poder e os conflitos desta decorrente encontram aqui o seu nascedouro e acompanham o homem ao longo de sua caminhada, desde sempre até o estágio atual da civilização humana. “O direito de natureza, que os autores geralmente chamam de jus naturale é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida, e, conseqüentemente, de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.” (Leviatã, 1, Cap. XIV). 3 21 2.1.O período da Vingança Privada Com o passar do tempo, crescem as populações e os indivíduos formam ajuntamentos cada vez maiores e diante da escassez de alimentos, ou na disputa por um abrigo ou pela posse de uma companheira, surgem os conflitos de interesses mais acirrados, onde cada qual reivindica aquilo que considera de seu direito. É uma noção ainda rudimentar de direito ou senso de propriedade e impulso de ação no sentido de obter àquela satisfação que não se detém diante de qualquer obstáculo, conduzindo a excessos, gerando novos conflitos, numa sucessão interminável. Contemporaneamente a esta fase, principia a delineação do chamado sentimento religioso, ou seja, o homem, intuitivamente, detecta a formação de uma “diretriz transcendente, sobrepondo-se mesmo à noção de sociedade, a conduta religiosa” (Badaró, 1973). No entanto, inquieto por natureza, sempre em busca de novas perspectivas, vivenciando novas experiências e situações, o homem não vincula necessariamente à sua conduta ao fator transcendental, atendendo mais diretamente as suas necessidades básicas imediatas. É ainda nesta fase que encontramos o indivíduo, que teve um direito violado ou uma pretensão frustrada, tomando nas mãos, o poder de fazer valer o seu direito. Prevalece uma concepção individualista de que o direito de cada um sobrepõe-se aos demais, O direito violado reclama pronta reparação, enquanto que uma pretensão nem sempre há de ser necessariamente justa para desencadear a persecução da satisfação. Esta é uma visão que se mostra equivocada, por que sujeita a satisfação do direito ao arbítrio de uma das partes, já que esta satisfação muito freqüentemente pode desencaminhar-se para o excesso, resultando novamente numa situação de desequilíbrio e violência ao 22 direito. É a fase da vingança privada4, onde cada qual faz prevalecer seu direito ou pretensão por seus próprios meios e entendimento. Este período compreendia várias fases, descritas por Odete Maria de Oliveira: “a) Vingança Individual Muitos autores apontam a vingança individual como a forma mais remota da manifestação da pena. Era uma reação puramente instintiva do ofendido (...). b) Vingança Coletiva Posteriormente, com a organização ainda primitiva do clã e do grupo imbuída de um espírito de solidariedade e interesse comum na proteção da coletividade, esta se colocava ao lado do vingador (...) c) Vingança da Paz Social (...) O membro do mesmo grupo que cometia um delito era expulso da tribo ou da comunidade da paz, sem armas nem alimentos e ninguém podia auxiliá-lo, mas podia persegui-lo. Era atingido, também seu patrimônio. d) Vingança de Sangue (...) vingança pelo sangue do crime praticado. O delito era praticado por membro de outro grupo, por um estranho. e) Vingança Limitada I) Talião material “Oculum pro oculo – dentem pro dente” II) Talião Simbólico (...) podia ser aplicado a todos os crimes (...) uma nova modalidade de pena de grande expressão, porém de menor rigor. f) Composição (...) o delinqüente podia comprar a impunidade do ofendido ou de seus parentes, com dinheiro, armas, ou utensílios e gado, não havendo, então, sofrimento físico, pessoal, mas uma reparação material proporcionalmente correspondente” (in op. cit. p. 3/6). 2.2. Período da Vingança Divina O fortalecimento dos grupos humanos a partir de laços comuns (consangüíneos, lingüísticos, territoriais, religiosos, etc.), propicia o surgimento de uma identidade comum, e esta identidade de igual forma propicia a difusão de noções e conceitos de direitos comuns a todos os elementos integrantes deste grupo. É a fase germinal do Estado, pois no dizer de Lenin (1870-1924), “o Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado 4 “O direito de castigar não é mais que a necessidade natural da defesa. A mesma exercida pelo homem quando é atacado pelas feras” (Lombroso, in Lúomo delinquente in rapposto all antropologia, alla giurisprudenza ed alla psichiatria, vol. III, parte III). 23 aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem ser objetivamente conciliados” (O Estado e a Revolução). Cada grupo assim identificado por tais características, tende hierarquizar o exercício desses direitos, primeiro, internamente, entre seus integrantes já mais ou menos divididos em classes, ao tempo que procura sobrepor o direito do grupo sobre outros grupamentos com os quais mantenha algum tipo de relação, amistosa ou não. No entanto mesmo estas noções de um direito embrionário se acham impregnadas de conceitos e visões que lhe empresta cada indivíduo, como reflexo coletivo da conduta individual, pois “todo ato social é reflexo e é a expressão de nossa personalidade” (Badaró, 1973). A imposição e o acatamento destas noções de direito ou normas de conduta (norma agendi), resultam na cristalização de uma norma jurídica (praeceptum juris), nascida do que mais tarde os romanos viriam denominar de “consuetudo”. Nesse sentido, o aforisma de que o costume5 tem força de lei (consuetudo parem vim habet cum lege). É o nascer da norma jurídica, já nesta fase dotada das suas características ainda hoje imperantes de bilateralidade, generalidade e coercitividade, facultando a quem exerça o poder no grupo fazer executar e respeitar estas normas. Implicitamente nasce a definição do crime6 7 como um fenômeno eminentemente social que é a violação da norma jurídica vigente. Mais tarde, definições mais apropriadas seriam formuladas pelos representantes das mais variadas correntes filosóficas e escolas penais que se sucederam ao longo do processo evolutivo da ciência penal. 5 “O costume é, pois, o resultante da ação conjunta e igual dos indivíduos como coletividade. Um produto indecomponível e comum, sendo os indivíduos a simples expressão das forças essencialmente sociais” (Badaró, p. 79). 6 “O crime é toda ação que se julgou dever ser proibida por causa do mal que produz ou tende a produzir” (Bentham, in Principles of Legislation). 7 “A antiga escola utilitária definia o crime como – “toda ação nociva que deve proibir-se, ou simplesmente uma ação proibida pela lei”(Badaró, p. 79). 24 A inexistência de uma autoridade ou poder central que detivesse uma competência definida para conter os abusos e excessos e aplicar o direito, ameaçava semear desordem total nesses grupamentos humanos. Surgem em cena os sacerdotes, os xamãs, os feiticeiros ou que denominação tivessem, dizendo-se emissários da vontade divina, e passam a regular a aplicação do direito em determinadas situações, avocando-se nesse respaldo divino a competência para punir a prática do crime. Surge também a necessidade de a norma jurídica descrever a conduta tipificadora do crime ou violação a alguma outra lei. Não havia distinção entre culpa ou dolo, aplicando-se a punição de forma invariável. Se, anteriormente, a punição regia-se pela chamada “Lei de Talião” (olho por olho, dente por dente...), nesta nova fase cada conduta típica era contemplada com uma sanção específica, cuja graduação ou intensidade seria definida pelo oráculo ou por outra manifestação supostamente de origem divina. Vivia-se a fase da Vingança Divina, pois “o delito era uma ofensa à divindade que, por sua vez ultrajada, atingia a sociedade inteira (...) agora se tratava de uma vingança divina” (Oliveira, 1984), Como o poder dos reis era tido como de origem divina, o delito ofendia também ao rei e senhor. 2.3. Período da Vingança Pública Ao longo de todo esse período, a norma jurídica vem ganhando contornos sempre mais nítidos. Gradativamente perde o caráter divino e volta-se mais para os crimes cometidos contra o homem, o homicídio, os crimes contra o patrimônio, as violências e as fraudes. Ganha ainda conteúdo formal ao ser escrita, e assim também a norma jurídica recebe clara distinção sobre tratar-se de matéria penal 25 ou civil. Muitas vezes esparsas, seja na tradição oral dos sacerdotes-juízes ou dos governantes ou ainda em manuscritos diversos e livros sagrados, passam a ser compiladas e sistematizadas, dentro de um ordenamento que visava manterlhes a forma e unicidade das descrições das condutas, como se registram nos mais antigos e famosos códigos legais conhecidos: Código de Hamurabi, Código de Manu e as Leis Mosaicas, escritas na Torah - o atual Pentateuco, contido na Bíblia. Igualmente a sanção retributiva à violação recebe uma definição, como cita Oliveira “etimologicamente, o termo pena procede do latim (poena), porém, com derivação do grego (poine) significando8 dor, castigo, punição, expiação, penitência, sofrimento, trabalho, fadiga, submissão, vingança e recompensa” (in op. cit., p.2). Com o avanço da civilização, os crimes cometidos contra a divindade, decrescem de importância e freqüência, na mesma proporção em que progridem o conhecimento humano e os fatos tidos sobrenaturais ou divinos, passam a ser encarados como fenômenos naturais ou de causas puramente humanas. Igualmente, a figura do homem ganha destaque, e a violência contra o mesmo ou seu patrimônio assume papel de maior relevância. Estamos no limiar do período da Vingança Pública. Há esse tempo, a sociedade de há muito evoluiu da fase do homem em estado de natureza para uma sociedade que exige de cada indivíduo o sacrifício de uma parcela de seus direitos em favor do bem comum, mas, sobretudo motivado ainda pela necessidade de sobrevivência. Beccaria (1735-1793) “Em sentido amplo e geral, significa qualquer espécie de imposição, de castigo ou de aflição a que se submete a pessoa por qualquer espécie de falta cometida. Desse modo, tanto exprime a correção a que se impõe, como castigo, à falta cometida pela transgressão a um dever de ordem civil, como a um dever de ordem penal... No sentido civil corresponde à multa ou imposição pecuniária ou... uma reparação material ao particular pela falta cometida contra si” (De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, Forense,2000). 8 26 descreve de forma sucinta, mas completa, esse fenômeno: “Fatigados de viverem apenas em meio a temores e de encontrar inimigos em toda parte, cansados de uma liberdade cuja incerteza de a manter tornava inútil, sacrificaram uma parte dela para usufruir o restante com mais segurança” (Dos delitos e das penas, p. 14). Estamos numa sociedade que — sem o saber — rege-se por princípios contidos nos moldes da teoria contratualista “formulada por Epicuro, instituída por Lucrécio e Horácio e renovada por Marcílio e Grocio, que encontrou nas páginas de Hobes, uma completa ilustração”. A autoridade pública se fortalece, o Estado torna-se uma entidade cada vez mais presente na vida dos indivíduos, conceitos como nacionalidade e cidadania e outras formas de identidade ganham consistência. Forte, o Estado toma a si o direito de aplicar a pena que antes ou estava nas mãos da vitima ou de sua família ou do sacerdote-juiz. O Estado exerce tal prerrogativa nas pessoas do soberano, o qual ainda acumulava o encargo dos trabalhos da administração. Mas o ser humano conserva uma inata propensão a exceder-se no exercício do poder e o despotismo atirava outra vez a sociedade no caos do qual buscava emergir. O temor do caos, da desordem é que, segundo Beccaria, leva o homem a sacrificar uma parcela de sua liberdade. Mas a parcela é bem pequenina, já que “cada qual apenas concorda em por no deposito comum a menor porção possível dela, quer dizer, exatamente o necessário para empenhar os outros em mantê-lo na posse do restante”. É o somatório das parcelas de renuncia da coletividade que legitima o poder do soberano ou de quem exercita o poder. O pensador milanês assevera: “A reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir.” (in op. cit. p. l5). 27 Seu pensar encontra eco em Thomas Hobes (1588-1679), para quem a pena “é como um “Mal” infligido pela autoridade pública ao delinqüente com o fim de “melhor preparar a vontade dos homens para a obediência das leis”. Acrescenta Hobes que a pena não é uma vingança, “senão um simples ato de hostilidade, ato que deve ser contido dentro de certos limites” (Badaró, 1973, p.24). Esta linha de pensamento encontra também adeptos entre os precursores do moderno pensamento jurídico, partindo da obra de Caetano Filangieri (1780), o qual se associa ao pensamento de John Locke (1632-1704), para quem “a pena na teoria contratual consiste na perda de um direito, correspondente ao que haja sido violado pelo delito”. Logo, nos seria lícito concluir juntamente com Badaró que “a lei não é nada mais do que a expressão do pacto social, toda violação a lei é uma ação contrária ao pacto social e dirigida contra os direitos fundamentais que tal contrato defere ao cidadão”. Esta conclusão nos remete, ainda, à constatação de que, na essência, o contratualismo preconiza moderada aplicação da Lei de Talião, como podemos ler na obra de Emmanuel Kant (1712-1778), citado por Badaró para quem “o JUS TALIANDI, bem compreendido, poderá ser ótimo meio para se determinar a “justa qualidade”, e a “justa quantidade” das penas. Ao longo da história, as penas sempre tiveram um caráter punitivo que primava pela crueldade como meio de satisfazer ou ao desejo de vingança do particular ou o desagravo da divindade ou do soberano ofendido e, mais adiante, o desejo próprio do corpo social de reaver-se a um estado anterior a violência desencadeada pelo delito cometido. Estas punições iam desde a simples pena de morte, passando por inúmeros suplícios e torturas, muitas vezes atingindo além do autor do delito, também sua família e não raro também o seu patrimônio, 28 que poderia ser confiscado em favor do templo, do Estado ou do particular ofendido. 2.4. Os Magistrados e os Tribunais. As Prisões. O surgimento do humanismo e novas teorias que revolucionaram o pensamento, resgatando o papel central do indivíduo no meio social contribuiu para uma gradativa substituição das penas mais gravosas, como a capital ou o degredo, para outras de intensidade variável adequada a cada caso em particular, aqui cabendo apreciar o dolo e a culpa, concepções do direito moderno. As leis tornam-se mais complexas e abarcam sempre maiores parcelas da atividade humana, muitas vezes tornando impossível que o próprio soberano seja o aplicador da lei. E mais: deve o aplicador ater-se aos estritos limites da própria lei. “O magistrado, que é parte dessa sociedade não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja estabelecida em lei” (Beccaria, in. op. cit. p. 16). Os tribunais passam a ter relativa autonomia. Os magistrados são investidos em poderes que o Estado lhes confere e em seu nome fazem aplicar a lei aos casos concretos. O Estado, na figura do soberano, comparece ante o tribunal exigindo a reprimenda ao infrator. Porém, muitas vezes os estritos limites legais são transpostos ao livre desejo dos julgadores ou por influencia do soberano. As leis recebem interpretações dissonantes e particulares. Este estado de coisas gerava profunda inquietação entre os pensadores como Montesquieu (1689-1755), que traz ao lume sua teoria da divisão dos poderes em Legislativo, 29 que elabora as leis, Executivo, que as aplica e Judiciário que dirime duvidas e controvérsias e julga as causas. Seu pensar projeta-se muito à frente, influenciando fortemente a obra de Beccaria que questionava profundamente a natureza dos delitos e da sanção retributiva que o Estado deveria aplicar e os mecanismos envolvidos no processo. Em dar ao lume sua maior obra (L’Esprit des Lois), escreveu: “Efetivamente, em caso de delito, existem duas partes: o soberano, que diz ter sido violado o contrato social; e o acusado, que nega essa violação. É necessário, portanto, que exista entre ambos um terceiro que venha decidir a contestação. Essa terceira pessoa é o magistrado, cujas decisões são sem apelo e que deve, apenasmente, esclarecer se dá delito ou não.” (in op. cit. p. 16). No entanto, mesmo abolidos os castigos físicos supliciantes, a tortura, degredo, penas infamantes e outras do gênero e a criminalidade não tendo se retraído, deparou-se ao Estado como um grave problema a ser enfrentado: qual a punição eficaz? quais os meios de sua execução e ainda o custo despendido pelo aparelhamento estatal, na punição e execução da pena? Em vários lugares as prisões, cárceres em que se lançavam os infratores da lei a espera do veredito do Estado-Juiz, quase sempre situadas junto aos palácios dos governantes ou nos templos, passaram a ser local onde davam cumprimento a reprimenda recebida. No médio oriente, estas prisões eram fossas cobertas por grades, na Roma antiga, os cárceres estavam no subsolo do paço imperial, mas sempre fisicamente ligados ao foco do poder local. Com o advento da era cristã, a prisão assume característica efetiva de sanção autônoma, isto é, o infrator podia ser condenado à pena de prisão. Mas também podia assumir um caráter meramente acessório ou à pena de prisão se podia acrescer algum suplício, tormento ou condição agravante. Necessidades específicas de cada Estado foram muitas vezes determinantes na aplicação de penas de prisão com trabalhos forçados, ou pena 30 perpétua, celas muradas, grilhões ou outras formas requintadas de suplício a criminosos que certamente teriam recebido condenação à pena capital, não fosse a interferência da Igreja Católica, disseminando o princípio cristão de valorização do homem. Assim, o infrator da lei penal, além de outras punições, ainda passou a sujeitar-se a prestação de serviços, primeiro ao Estado e, num estágio mais recente, também a terceiros. Os registros históricos apontam o trabalho forçado em regiões insalubres como minas de sal, pedreiras, por exemplo, ou ainda o infamante e cruel trabalho nas galés, passando, em períodos bem mais recentes, por confinamento em campos de trabalhos forçados (“gulags” russos) ou campos de concentração e trabalho durante as guerras, seja na Alemanha (aprisionamento e extermínio de judeus, ciganos, homossexuais) ou nos Estados Unidos da América (confinando japoneses). Um longo caminho foi percorrido pelo aprisionamento para consolidar-se de pena acessória em pena autônoma, muito embora já fosse citado nos mais antigos escritos, como o Código de Manu, que recomendava fossem as prisões colocadas em locais públicos para que os apenas ficassem ainda expostos à execração pública. Na antiga Grécia, Platão pregava a substituição de várias penas graves pela prisão, passando pelos calabouços que antecediam a arena do circo de Roma e encontrando na Idade Média um período áureo, com as masmorras dos castelos feudais abarrotadas de presos em condições terríveis, como por exemplo, nas inúmeras bastilhas de França, no período imediatamente antecedente à Revolução, mas, “só no século XVIII é que foi reconhecida como pena definitiva em substituição à pena de morte”9. 9 Oliveira, Odete Maria de, in op. cit. p. 32. 31 3. OS SISTEMAS PENAIS: A HUMANIZAÇÃO DAS PRISÕES Se o advento do Humanismo ocasionou um certo abrandamento nas penas, sobretudo pela substituição da pena capital pela prisão, as condições das prisões permaneciam inalteradas desde a mais remota antigüidade. Ainda são verdadeiros depósitos de condenados ou pessoas a espera de julgamento, sem critérios e sem nenhuma condição de salubridade, antros infectos, onde nem sempre havia alimento suficiente, somente logrando sair desses locais quando os detentos são levados a executar trabalhos penosos. Na verdade, predominava nesse período a concepção de que ao condenado a punição devia recair de forma mais contundente possível, e os conceitos de dignidade humana estavam longe de encontrar aplicação em relação a esses excluídos do grupo social. Somente às vésperas do século XIX os estabelecimentos penais foram estudados seriamente, iniciando na Inglaterra com John Howard publicando seu livro revolucionário para a época, “State of Prisons in England and Walles” (1777). Preconizava Howard “um sistema penitenciário baseado no recolhimento celular, reforma moral pelas religiões e trabalho diário, com as necessárias condições higiênicas e alimentares.”10 Sua luta resultou na construção pelo governo inglês de pelo menos três estabelecimentos prisionais que obedeciam à sua concepção. Percebemos aqui uma nítida preocupação que ganha corpo em vários segmentos sociais em tornar menos duras as condições de vida do apenado, 10 Oliveira, Odete Maria de, in op. cit. p. 34 32 objetivando-se um provável ideal de reajustamento do indivíduo ao grupo do qual fora excluído por infringir as regras do pacto social. No dizer de Foucault, “o criminoso aparece então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o pacto, é, portanto inimigo da sociedade inteira...”. A punição assume além do caráter repressivo, uma característica preventiva ao desestimular a prática de crimes, dosando cuidadosamente a quantidade de pena. “É preciso punir exatamente o suficiente para impedir”.11 Foucault em sua admirável obra “Vigiar e Punir” (l975), detecta o imperativo de reabilitar o apenado que se acha presente nas novas idéias que surgem, sobretudo na Europa, e que somente será possível de ser atingido se a pena obedecer a uma rígida dosimetria e quantificação, pois “uma pena que não tivesse termo seria contraditória: toda a restrição por ela imposta ao condenado e que, voltando a ser virtuoso, ele nunca poderia aproveitar, não passariam de suplícios”.12 Mas não bastava que o apenado fosse segregado, recluso. Teria que sentir os efeitos plenos da penalidade que lhe fora cominada. Perde até mesmo a privacidade nos moldes das casas prisionais concebidas por Bentham, descritas em “Teoria das Penas e das Recompensas” (1818): o Panóptico, que consistia em construções em forma de anel, tendo ao centro uma torre da qual se exerce completa e cerrada vigilância sobre todas as celas dispostas em derredor, no anel periférico. Por efeitos de luz e contraluz, já que cada cela é aberta à frente e atrás, é possível vigiar os mínimos movimentos do recluso. “Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento o estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”.13 O detento se 11 Foucault, Michel. in op. cit. p. 85 Foucault, Michel. in op. cit. p. 97. 13 Foucault, Michel. in op. cit. p. 177. 12 33 sabe vigiado, mas de onde se encontra não pode saber se o vigia olha para ele ou para algum de seus companheiros de prisão. O modelo é tão inusitado para a época, que Foucault especula se não teria Bentham buscado inspiração no famoso Zoológico construído por Le Vaux, em Versalhes. Mas o aspecto que importa ao nosso estudo, diz respeito à questão do trabalho que era imposto ao detento. O trabalho era obrigatório, tendo como objetivo o desenvolvimento de aptidões e potencialidades do recluso, preparandoo para uma volta ao corpo social, onde deveria reabilitar-se e tornar-se produtivo. A fim de que não sofresse influências perniciosas no recinto da prisão, as conversas entre detentos, quando permitidas, obedeciam a rígidas normas de vigilância e controle. Em contraposição, em 1790, surge nos Estados Unidos, mais precisamente em Filadélfia um novo sistema prisional conhecido como celular ou “solitary confinement”, no qual o detento permanecia totalmente recluso, em absoluta solidão, perdia o direito de usar nome, recebia apenas um número. Igualmente, permanecia em absoluta ociosidade. Os idealizadores do sistema inclusive recomendavam uma alimentação que consistia em papa de milho e melado o que, acreditavam, purificava o sangue e, conjugado ao silêncio absoluto e leitura da Bíblia, levaria ao remorso purificador da alma. Os registros constatam elevadíssimo índice de mortes, doenças, demência e suicídios entre os detentos submetidos ao chamado sistema pensilvaniano. Em Nova Iorque, no ano de 1821, dá-se a conhecer um sistema preconizado por Auburn, que conserva algumas características do modelo de Pensilvania, como o silencio absoluto entre os detentos, que somente podem falar com os guardas, com permissão destes e em voz baixa. Mas uma fundamental diferenciação reside no fato de que os grupos são levados a interagir, o trabalho é 34 regra obrigatória, com alvorada às 05:30 da manhã, quando o detento principiava pela higiene pessoal, seguindo-se arrumação da cela. Em seguida, dirigia-se para as oficinas onde trabalhava até por volta de 20:00 horas em absoluto silêncio. Também as refeições decorriam em silêncio e a quebra do mutismo era punida com chicotadas. Odete Maria Oliveira, in op. cit. p., assim compara os dois sistemas: “Enquanto que o sistema de Filadélfia objetivava a transformação do homem criminoso em bom e de alma pura através do arrependimento, levado pela reflexão, o sistema de Auburn pretendia condicionar o apenado pelo trabalho, disciplina e mutismo. Ambos, porém, só faziam degenerar o homem”.14 Mas os ideais humanistas ganhavam força e na Europa o coronel espanhol Montesinos Y Molina implanta um sistema que objetivava a reabilitação plena no detento. O trabalho era regra obrigatória, e surge aqui a figura do trabalho remunerado do preso. O número de evasões era considerado baixo para os padrões então vigentes. No outro lado do mundo, na Austrália, um sistema passou a vigir desde 1846, sob a orientação do capitão da Real Marinha Inglesa, Alexander Maconochie. Preconizava a reabilitação e implantou um sistema progressivo sob forma de vales, pelos quais o detento recebia vales que lhe antecipavam o final da pena, segundo seus méritos, ou os perdia, quando descumpria as normas estritas da casa de detenção. O sistema de Maconochie, chamado “Mark System” encontrou similar na Irlanda, onde Walter Crofton ampliou o sistema progressivo, permitindo ao detento sair para trabalho externo, permitia conversas entre os grupos e preparava para a volta à atividade produtiva quando finda a penalidade. 14 Oliveira, Odete Maria de, in op. cit. p. 42. 35 Este foi, sem dúvida, um dos mais avançados sistemas conhecidos, tendo inclusive influenciado grandemente a legislação penal brasileira que, com ligeiras modificações ainda hoje o adota. 3.1. Sistema Penal Brasileiro O sistema penal brasileiro acompanhou as diversas fases evolutivas das penas e dos sistemas de execução penal no restante do mundo a partir do descobrimento e colonização pelos portugueses, aqui se refletindo, naturalmente, as tendências correntes na Europa. O Código Penal em vigor, datado de 1940 com inúmeras posteriores alterações, foi redigido com fundamento na Escola Positivista esposada pelo então ministro da Justiça Francisco Campos, após receber valiosas contribuições de juristas renomados, todos também filiados a esta corrente de pensamento, como Vieira de Araujo, Galdino Siqueira, Evaristo de Morais, Bulhões Pereira, Vieira Braga, Narcélio Queiroz, Nelson Hungria, Roberto Lira e Alcântara Machado, que relatou o projeto e emprestou-lhe redação final. Assim, já na Exposição de Motivos ao novo Código Penal, Francisco Campos justificava: “Coincidindo com a quase totalidade das codificações modernas, o projeto não reza em cartilhas ortodoxas, nem assume compromissos irretratáveis ou incondicionais com qualquer das escolas ou correntes doutrinárias que se disputam o acerto na solução dos problemas penais. Ao invés de adotar uma política extremada em matéria penal, inclina-se para uma política de transação ou de conciliação. Nele os postulados clássicos fazem causa comum com os postulados da Escola Positiva”. Em esposando esta visão, o Código Penal brasileiro contempla o sistema progressivo de cumprimento das penas de prisão, todas temporárias, nas 36 modalidades de reclusão e detenção. A reclusão é a mais rigorosa e sua execução obedece ao cumprimento de quatro fases distintas: o preso cumprirá período inicial de segregação e isolamento, que não pode exceder a 3 (tres) meses, podendo, a seguir, trabalhar no interior do estabelecimento penitenciário. Segue-se um período de prisão mais leve, em que é permitido ao recluso trabalhar dentro ou fora do estabelecimento. Nesta fase poderá ser transferido para uma colônia penal agrícola ou industrial ou estabelecimento similar. Por fim, o livramento condicional. Nas penas de detenção, destinadas à punição dos crimes menos graves, não existe o período inicial de isolamento, mas o livramento condicional é previsto. Em qualquer das duas modalidades de execução da pena privativa de liberdade, o trabalho do preso é obrigatório. 3.2. A Reforma do Código Penal e a Execução das Penas Em 1969 a legislação penal, com o advento do Ato Institucional n° 5, promulgado pelo governo de exceção, sofreu algumas modificações, o mesmo ocorrendo em l.977, com a Lei n° 6.416, mas só em l984 procedeu-se uma efetiva reforma parcial do Código Penal brasileiro, incorporando-se algumas novidades e operando correções de falhas e preenchendo lacunas existentes na codificação anterior vigente. Na Exposição de Motivos à reforma da Parte Geral do Código Penal, o Ministro da justiça Ibrahim Abi-Ackel assevera: “Apesar desses inegáveis aperfeiçoamentos, a legislação penal continua inadequada às exigências da sociedade brasileira. A pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, a constância da medida repressiva como resposta básica ao delito, a rejeição social dos apenados 37 e seus reflexos no incremento da reincidência, s sofisticação tecnológica que altera a fisionomia da criminalidade contemporânea, é fatores que exigem o aprimoramento dos instrumentos jurídicos de contenção do crime, ainda os mesmos concebidos pelos juristas na primeira metade do século”. Já aqui, no prólogo da própria codificação penal, temos o reconhecimento dos nocivos efeitos do ambiente reinante na casa de detenção sobre o apenado. Abi-Ackel enfatiza que “uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere”. Também o regime de cumprimento das penas privativas de liberdade ganha contornos mais nítidos e mesmo mais rígidos. O regime fechado passa a ser cumprido em estabelecimentos de segurança máxima ou média, enquanto que o regime semi-aberto será cumprido em colônia penal agrícola ou industrial ou estabelecimento similar. O regime aberto será cumprido em albergue ou instituição adequada. Textualmente, o projeto fixa as condições de trabalho impostas a todos os detentos, indistintamente: “O trabalho, amparado pela Previdência Social, será obrigatório em todos os regimes e se desenvolverá segundo as aptidões ou oficio anterior do preso, nos termos das exigências estabelecidas”. O artigo 34 do Código Penal estabelece: “Art. 34. O condenado será submetido, no inicio do cumprimento da pena, a exame criminológico de classificação para individualização da execução. § 1° O condenado fica sujeito a trabalho no período diurno e a isolamento durante o repouso noturno. § 2° O trabalho será em comum dentro do estabelecimento, na conformidade das aptidões ou ocupações anteriores do condenado, desde que compatíveis com a execução da pena. § 3° O trabalho externo é admissível, no regime fechado, em serviços ou obras públicas.”“. 38 E ainda o artigo 35 estabelece o trabalho obrigatório entre as normas do regime semi-aberto: “Art. 35. Aplica-se a norma do art. 34 deste Código, caput, ao condenado que inicie o cumprimento da pena em regime semi-aberto. § 1° O condenado fica sujeito ao trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar. § 2° O trabalho externo é admissível bem como a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior.”“. Idêntica disposição se aplica ao regime aberto (albergue): “Art. 36. O regime aberto baseia-se na autodisciplina e senso de responsabilidade do condenado. § 1° O condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, freqüentar curso ou exercer atividade autorizada, permanecendo recolhido durante o período noturno e nos dias de folga.”“. Por fim, o novo estatuto preconiza a manutenção do regime progressivo de cumprimento da reprimenda, mediante a progressão para regime mais brando conforme recomende a índole e atitudes do preso. A partir do regime fechado, que é a parcela mais severa do período de cumprimento da penalidade, a progressão outorga devolução de parcelas de liberdade anteriormente suprimidas, tudo objetivando o reingresso ao convívio social do elemento, até então segregado. É possível, no entanto, haver regressão para regime mais severo, em caso de infração às regras do novo regime para o qual tenha progredido ou pela superveniência de nova condenação que, somada às penalidades já aplicada, pela quantidade, determine cumprimento de parcela em regime mais severo. 39 3.3. Execução Penal Autônoma. Como se viu, há uma profunda preocupação em minimizar os efeitos danosos da prisão sobre a personalidade do preso e os reflexos em sua vida futura, quando de seu retorno ao almejado convício social. No entanto, as alternativas, embora numerosas, nem sempre se mostram as mais adequadas ou eficazes a prestar-se na pretendida reforma do sistema penal. Esta angustiosa expectativa ganha contornos globais, como o descreve Foucault: “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão e sabe que é perigosa quando não inútil. Entretanto, não “vemos” o que pôr em seu lugar.” E conclui, desalentado: “Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.” Esta preocupação data de várias décadas no Brasil e em inúmeros outros países. Segundo Mirabete (1997), nesta busca de autonomização da execução da pena “podem ser referidos como expressivos os seguintes diplomas: lei penitenciária Nacional, Argentina (1958); Código de Execução das Penas, Polônia (1969); Normas Sobre o Ordenamento Penitenciário, Itália (1975); Lei de Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, República Federal da Alemanha (1976); lei sobre Execução das Penas Privativas de Liberdade, da República Democrática Alemã (1977); e lei Geral Penitenciária, da Espanha (1979)15. No Brasil, a Constituição de 1824 já se havia inserido alguns dispositivos que antecipavam uma política de humanização nas condições carcerárias. O mesmo deu-se com as Constituições seguintes (1.934, 1.946 e l.967), apesar de que já em 1.933 intentava-se emprestar autonomia à Execução Penal, libertando15 MIRABETE, Julio Fabrini. Execução penal. Comentários à Lei n° 7.210, de 11-7-84. S. Paulo. Atlas. 1977. p. 24. 40 a da condição de simples parte do direito processual com a edição do Código Penitenciário da República, em memorável trabalho de lavra de Candido Mendes, Heitor Carrilho e Lemos de Britto. Outras tentativas foram levadas a efeito por Oscar Stevenson (1.953), Roberto Lyra (1.963), José Carlos Moreira (1.970), e em 1.981, quando foi instituída uma Comissão para elaborar o anteprojeto da Lei de Execução Penal. 3.4. A Lei de Execução Penal Diante da sua extrema complexidade, discute-se na doutrina a natureza da execução penal a fim de se definir exatamente sua posição, métodos e limites. Simultaneamente por ocasião da promulgação da reforma da Parte Geral do Código Penal, através da Lei 7.209, deu-se também a promulgação da Lei n° 7.210, ambas de 11 de julho de 1984, que instituiu a Lei de Execução Penal no Brasil, preconizando em seu artigo primeiro, além da execução das disposições contidas na sentença condenatória, a execução de políticas que permitam a “harmônica integração social do condenado e do internado”16. Ao determinar que a execução penal “tem por objetivo efetivar as disposição da sentença ou decisão criminal”, o dispositivo registra formalmente o objetivo de realização penal concreta do título executivo constituído por tais decisões. A segunda é a de “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”, instrumentalizada por meio da 16 Lei de Execução Penal (7.210, de 11-07-84): “Art. 1° A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” 41 oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança possam participar construtivamente da comunhão social. O sentido imanente da reinserção social, conforme o estabelecido na lei de execução, compreende a assistência e ajuda na obtenção dos meios capazes de permitir o retorno do apenado e do internado ao meio social em condições favoráveis para a sua integração, não se confundindo “com qualquer sistema de tratamento que procure impor um determinado número e hierarquia de valores em constraste com os direitos da personalidade do condenado. A execução penal é uma atividade complexa, que se desenvolve nos planos jurisdicional e administrativo. 42 Referências Bibliográficas HEEMANN, Ademar; VIEIRA, Leociléa Aparecida. A Roupagem do Texto Científico: Estrutura, Citações e Fontes Bibliográficas. 2ª ed. Paraná. Editora IBPEx, 1999. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. 27ª ed. São Paulo. Editora Saraiva, 2001. OLIVEIRA, Edmundo. A Identidade Humana do Crime. 1ª ed. Pará. Edições CEJUP, 1987. JÚNIOR, João Farias. Manual de Criminologia. 2ª ed. Paraná. Editora Juruá,1996. ZANON, Artêmio. Introdução à Ciência do Direito Penal. 1ª ed. Santa Catarina. Editora Obra Jurídica, 1997. DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; JÚNIOR; Roberto Delmanto; DELMANTO, Fábio M. de Almeida. Código Penal Comentado. 5ª ed. Rio de Janeiro. Editora Renovar, 2000. MIRABETE, Júlio Fabrini. Código de Processo Penal Interpretado. 4ª ed. São Paulo. Editora Atlas, 1996. _____. Lei de Execução Penal. 8ª ed. São Paulo. Editora Atlas, 1998. 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