Cê viu? - CEC Poli USP

Transcrição

Cê viu? - CEC Poli USP
Cê viu?
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novembro de 2013
edição nº 7243550
Quase verão C25_CA50
equipe
Antônio César Alves Teixeira
Beatriz Beccari Barreto
Daniel Agostini Cruz
Estevão Sabatier
Gabriela Gonçalves Marques
Karol Costal
Raul Maciel
Ricardo Castro
diagramação
Daniel Agostini Cruz
Estevão Sabatier
F 12,5mm
Algumas coisas que queria dizer sobre a poli, a
USP e a sociedade
A vida no Brasil não é bonita para todos.
A maior parte da população desse país vive
em péssimas condições de vida. Pouquíssimos têm acesso à educação de qualidade,
a um bom sistema de saúde e lazer. Muitos
vivem em condições precárias de habitação
e constantemente presenciam episódios
como assassinatos na porta de casa.
Aqui, na USP, vivemos numa bolha, isolados do mundo. A extensão popular, e não
a Universidade, me propiciou um vislumbre
da realidade. Em uma favela da Zona Sul,
deparei-me com a notícia do assassinato de
um jovem de 17 anos, próximo à associação
com que temos parceria. Uma semana após
esse evento, mais dois jovens foram assassinados. Outra vez, quando visitamos um
terreno, onde possivelmente seria instalada
uma cooperativa de triagem de material reciclável, deparamo-nos com um corpo, descartado no local. Tais atrocidades não devem
ser vistas como eventos pontuais causados
pela ação de um policial ou criminoso, mas
sim como um problema estrutural do nosso
sistema de organização social.
Uma coisa que muito me incomoda é a
apatia da maior parte dos estudantes e docentes com essa situação. Muitos assumem
a postura de que não têm nada a ver com
isso. Posicionam-se dizendo que esse tipo
de discussão não cabe a uma escola de engenharia. Que não cabe a eles a discussão
sobre tais assuntos. Ninguém percebe, ou
não quer perceber, que nós temos uma contribuição significativa para o que acontece
ao nosso redor.
Para exemplificar, vou dar um panorama sobre os casos das favelas das regiões
mais centrais de São Paulo. Você já perguntou para um habitante desses espaços por
que ele mora ali? A periferia tem pouquíssimos empregos, e portanto grande parte
da população tem que se deslocar para o
centro para trabalhar, num trajeto que pode
durar mais de três horas. Morar próximo das
regiões centrais é extremamente benéfico.
O problema é que os altíssimos valores do
terreno nessas regiões não são acessíveis
para a maior parte da população. Opta-se
assim pela realização de ocupações e constituição de favelas.
O maior responsável por tal valorização
fundiária é o mercado imobiliário (do qual fazem parte muitos politécnicos) e que visa ao
lucro, e não ao bem estar social. Esse mercado briga com unhas e dentes pelos espaços
mais urbanizados da cidade, não abrindo
espaço para a moradia popular. Nas regiões
com mais infra-estrutura é mais interessante, do ponto de vista do lucro, construir casas para as classes altas em detrimento das
classes baixas.
Um grande absurdo é que a Escola Politécnica, cuja maior fonte de financiamento é o ICMS, imposto que possui o formato
“paga mais quem ganha menos”, ensina
seus estudantes a continuarem com essa
prática. Grande parte dos docentes e estudantes não procuram a solução e muitas vezes até contribuem para o agravamento dos
problemas sociais. A explicação para esse
fenômeno é complexa, mas certamente um
ponto relevante é a acomodação de grande parte da comunidade politécnica. Temos
que lembrar que a condição de vida da população em geral não é comparável com a
condição da maior parte dos membros da
Poli.
A Universidade deveria ser crítica aos
processos que ocorrem hoje na sociedade.
A USP tem a obrigação de produzir conhecimento e formar cidadãos capazes de compreender e propor soluções para os problemas da sociedade. Enquanto projetos como
os de extensão popular forem jogados às
traças e os nossos cursos forem focados na
aprendizagem dos processos já realizados
na sociedade, sem se posicionar criticamente em relação a eles, isso jamais irá acontecer.
João Pedro Salva Geddo
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Capital imobiliário X Capital industrial
Marx, no século XIX, estudando o modo
de produção capitalista, chegou à conclusão de que, de acordo com a produção do
espaço dessa sociedade, a tendência geral
era a de aumento de eficiência nos transportes e melhor acomodação dos trabalhadores
de acordo com os postos de trabalho. Tais
fatores se deveriam à uma pressão para o
barateamento do trabalho por parte das indústrias. Trabalhadores morando mais perto
das fábricas e sistemas de transporte baratos e rápidos, além de uma maior velocidade no fluxo de capital, contribuiriam para um
ganho financeiro dos capitalistas. Por que
então, se olharmos para a cidade de São
Paulo não notamos tais características? Teria Marx errado escandalosamente em suas
previsões?
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A verdade é que ele analisou uma sociedade capitalista baseada na produção
fabril, que sofreu uma radical transformação
ao longo dos anos. Durante o século XX e
principalmente depois da década de 70 os
investimentos em mercados especulativos
se tornaram mais lucrativos do que investimentos na indústria no geral. Na cidade de
São Paulo o mercado imobiliário se tornou
uma forma de retorno financeiro cada vez
mais interessante com o passar dos anos.
Passaram pela prefeitura diversas gestões
que viram no incentivo ao mercado imobiliário uma grande forma de aumentar o crescimento econômico da cidade.
O problema, entretanto, é que os interesses do capital imobiliário normalmente
entram em conflito com os interesses do capital industrial. Enquanto a não regulamentação do uso do solo é de extrema importância
para o primeiro, vai de encontro com os interesses do segundo. Tais regulamentações,
que melhorariam a mobilidade urbana e contribuiriam para uma melhor disposição dos
trabalhadores no território da cidade, causando uma diminuição no preço do trabalho
para as indústrias, restringem os campos de
atuação do mercado imobiliário, diminuem
a quantidade de investimentos baseados
na especulação e, portanto, seus lucros. As
prefeituras usaram ferramentas como essa,
além de outros incentivos, para assegurar os
ganhos do mercado de especulação. Não
é de se admirar que o crescente ganho de
importância do capital imobiliário afastou a
indústria de São Paulo.
A maior parte dos empreendimentos
são feitos no centro expandido, área que
recebe maior investimento de infraestrutura
por parte do Estado, favorecendo a especulação imobiliária. Isso se deve, entre outras
coisas, ao fato de a prefeitura entender que
o mercado imobiliário causa maior circulação de capital do que a indústria, de as
imobiliárias e grandes construtoras serem as
maiores financiadoras das campanhas eleitorais na cidade, e também à corrupção direta promovida por esses setores. As habitações da população mais rica da cidade bem
como a maior parte dos postos de trabalho
se concentram, então, nessa área do centro
expandido. Disso decorre a necessidade da
realização de grandes deslocamentos por
parte dos trabalhadores e uma grande piora
em suas condições de vida.
A imensa concentração de investimentos nas regiões mais centrais acarretam
outras consequências gravíssimas. O preço do terreno na periferia é baixíssimo se
comparado com as regiões centrais, pois
o mesmo se deve aos investimentos realizados no local, como a realização de obras
de infraestrutura, instalação de equipamentos culturais, estabelecimento de escolas,
etc.. Disso decorre um grande problema:
qualquer investimento que se faça em uma
favela, por exemplo, causa uma grande valorização do terreno nos entornos. Com isso,
o investimento resulta em um ganho para
os proprietários de terra no local, mas também a necessidade de deslocamento dos
mais pobres que ocupam irregularmente o
território ou que alugam uma casa no local.
A população se desloca para regiões mais
distantes que, possuem condições iguais ou
piores de infraestrutura e empregos. Qualquer investimento isolado em regiões como
essa, que deveria melhorar a qualidade de
vida da população, na verdade representa
um ganho para alguns (proprietários) e uma
piora de vida para outros. Tal problema só
poderia ser driblado com o desenvolvimento
massivo de toda a periferia, pois não ocasionaria uma valorização excessiva em um só
local. A luta pela melhora de vida dos trabalhadores da metrópole e para a melhora da
mobilidade na cidade é, portanto, uma luta
contra o capital, que tem como um de seus
grandes representantes o mercado imobiliário.
Em suma, o capital industrial, que vê
na terra uma forma de assegurar ganhos
de produção, entra em conflito com o capital imobiliário que, por sua vez, vê na terra
a mercadoria em si. Tal fato demonstra que
nosso sistema de organização social possui
contradições internas graves. No caso de
São Paulo, tal contradição poderá levar a cidade à uma grande crise. A imensa quantidade de contradições no sistema capitalista
gera crises recorrentes, já observadas por
economistas marxistas à muitos anos.
Enquanto não despertarmos e enxergarmos a ineficiência e crueldade de nosso
sistema de organização social, seremos, em
São Paulo, vítimas da violência que decorre
da periferização e falta de investimentos nas
favelas, do crescente problema na mobilidade que resulta do não planejamento de nosso território, da imensa desumanidade de
nossa metrópole e tantas outros problemas
que nos destroem durante o cotidiano.
João Pedro Salva Geddo
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Delegação Politécnica à Rio +20 - parte II
Eis que chegou o momento de escrever
sobre a nossa boa viagem ao Rio durante a
Cúpula do Povos e outros eventos paralelos
à Conferência oficial da ONU. Adiei, enrolei,
adiei, mas não teve jeito, chegou o momento
de relatar os fatos. Mas não adiei por preguiça
não galera (tá, um pouquinho), e sim porque
condensar uma viagem toda em duas páginas
a partir de minha falha memória é algo complicadíssimo de fazer (se esquecer de algo,
me perdoem). Enfim, deixo os choramingos
para lá porque começa a descrição da loucura toda.
Suando para que aconteça
Não me recordo exatamente quando é
que surgiu a ideia de irmos ao Rio, acredito
que os sete organizadores (eu, Lari, Oi, Marcello, Dé, Lucca e Gustavo1) tiveram essa ideia
de maneira separada, alguns se inspiraram
num evento que ocorreu na FEA em março
que tratava da Rio +20, outros por ter colegas
de outras faculdades se organizando para ir e
se empolgaram de ir também, enfim, no final
das contas, começamos a nos reunir para organizar essa ida ao Rio. No início parecia algo
inviável; depois possível, embora longínquo;
para então ser totalmente realizável. E aconteceu. A passos de formiguinha conseguimos
levar a cabo o projeto. Disponibilizamos listas
de interesse em alguns pontos da Poli e nos
surpreendemos com a quantidade de gente
que estava a fim de participar. Fomos atrás de
apoio financeiro e conseguimos com a Escola
e os departamentos do PMI, PHA e PEF. E as
inscrições se iniciaram, um ônibus e 41 inscritos.
E o ziriguidum começa
Sábado - Partimos em uma sexta-feira de
bixopp perto das 23h. E no busão foi a bagunça boa de sempre, violão e cantorias boas de
boa música durante o trajeto. Dormimos afinal
e chegamos ao Rio para a primeira atividade2
1
Comissão organizadora da viagem ao Rio:
Débora Carvalho, Gustavo Tanaka, Karoline Costal, Larissa
Rahmilevitz, Luciana Mascarenhas, Lucca Pérez e Marcello Walter.
2
Atividade Painel 1 - A Transição Para uma Nova
Economia concebido como parte do Fórum de Empreendedorismo Social da Nova Economia vinculado ao
evento Humanidade 2012. Com Marina Silva, ex-ministra
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logo pela manhã no Forte de Copacabana.
Muito bacana o evento, com a participação
da Marina Silva, Ricardo Abramovay, Eduardo
Giannetti, Brooke Barton, entre outros. Balanço do evento: Colocações importantes como a
de Giannetti sobre crescimento do PIB e qualidade de vida não serem a mesma coisa e a
de Cáceres sobre a necessidade de se criar
uma Declaração de Deveres Humanos; notória diferença de pensar do “Norte” e do “Sul”;
e a necessidade de se rever paradigmas da
sociedade contemporânea. Logo após, seguimos para a Cúpula dos Povos, onde o grupo
se dispersou e cada um foi para tenda, atividade, palestra que melhor lhe conviesse. Ao
final da tarde, fomos para o camping organizado por estudantes da UFRJ, na Urca. Transcrevendo palavras da Lari (não consigo descrever melhor): “O terreno era do tamanho de
dois campos de futebol, lotado de barracas,
no qual ocupamos um cantinho. Cada dois
dividiram uma barraca e assim passamos a
noite ao pé do Morro da Urca, envolvidos com
muita discussão, alto astral e energia positiva.”
Domingo - Metade do grupo permaneceu
no campus da UFRJ para atividades e palestras e a outra metade, eu no meio, voltamos ao
Forte de Copacabana. Lá rolava a exposição
(tudo de bom!) Humanidade com curadoria
de Bia Lessa3 e patrocínio de fundações que
nada tem de preocupação sócio-ambiental e
sim de marketing ecológico, porém o resultado final foi lindo de se ver, show de bola mesmo. Subíamos de andar a andar e trocávamos
de salas temáticas, ao todo 9 ou 10, não me
recordo, e em cada espaço abria-se um mundo meio ambiente e ex-senadora, Eduardo Giannetti,
professor do IBMEC e autor do livro “Vícios privados,
benefícios públicos”, Tim Jackson, autor do livro Prosperidade sem Crescimento - Economia para um planeta finito,
Brooke Barton, diretora de água e corporações do Sistema
de Avaliação dos Recursos Ambientais da Califórnia
(Ceres) e o sociólogo Milton Cáceres, diretor da Escola de
Educação e Cultura Indígena, do Equador. A mesa de discussão foi mediada pelo economista Ricardo Abromovay,
Professor da Faculdade de Economia e Administração da
USP.
3
Exposição Humanidade, realizada pela FIESP,
SESI-SENAI, Fundación Avina, Ashoka, Skoll Foundation e
Fundação Roberto Marinho e desenvolvida pela artista e
cenógrafa Bia Lessa.
do de sensações táteis, visuais, olfativas, auditivas que nos levavam a questionar o meio
ambiente em que vivemos, tanto da perspectiva ambiental quanto da social.
À tarde, fomos até a Cúpula dos Povos,
onde estava rolando as Plenárias de Convergência, com o intuito de se discutir temas levantados no sábado nas tendas. Os temas foram: Soberania Alimentar; Energia e indústrias
extrativas; Defesa dos bens comuns contra a
mercantilização; Direitos, por justiça social e
ambiental; Trabalho: por outra economia e novos paradigmas. Balanço: Muito pouco tempo
para a exposição, porém foi interessante de ver
pessoas dos mais diversos cantos tentando
dialogar sobre esses diversos temas. Lembro
que fiquei confusa, sem foco com tanta coisa
ao meu redor. No fim, fui parar no MAM e lá
havia uma galera no Clube da Engenharia, um
cara que parecia mais com o Tíbio e/ou o Perônio, mas que falava da “Casa Sustentável”,
uma realização do INPTS (Instituto Nacional
de Pesquisa em Tecnologias Sustentáveis).4
De volta ao camping, cansadões, nos
preparávamos para a volta.
De volta para casa
Cansadões depois de um fim de semana
cheio de atividades, não houve a bagunça da
ida. Alguns conversaram sobre a estada no
Rio, suas impressões e outros descansaram
num sono de pedra. Próximo das 5h da manhã, chegamos à USP e assim acaba a nossa
viagem. A viagem apenas, porque as impressões dela ficaram na nossa lembrança e nos
preparamos para começar preparativos de
atividades pós-Rio.
As atividades pós-Rio
Galerinha, alguns de nós se organizaram
para a realização de atividades pós-viagem,
debate, exposição, relatório, vídeo. O vídeo foi
postado na nossa página do facebook, mas
pode ser encontrado no You Tube (Delegação
Politécnica na Rio +20) e no site do PHA, aba
disciplinas subaba Análise de Sistemas Ambientais. O relatório será disponibilizado para
os departamentos patrocinadores, no Escritório Piloto e quem quiser, é só mandar e-mail
para qualquer um de nós ou mesmo para o
jornal que fornecemos sem o menor problema.
O debate Rio +20 e Nós já ocorreu em setem4
Stand do Clube da Engenharia na Cúpula dos
Povos com resultados de uma pesquisa do INPTS (Instituto Nacional de Pesquisa em Tecnologias Sustentáveis),
para o desenvolvimento de uma casa sustentável e inteligente, denominada Reprocessed House.
bro. E, por fim, a exposição sobre a nossa jornada se encontra exposta durante o mês de
novembro no prédio da Civil. Lá, há fotografias, livretos, reportagens que separamos para
mostrar aos nossos coleguinhas de faculdade
e dividir um pouco do que vivenciamos por lá.
Se você que está aí ler tal texto antes de ela
acabar, vai lá e dá uma conferida.
Impressões pessoais e agradecimentos
E o meu balanço geral de tudo isso é que
foi uma viagem ótima com muita gente animada que já conhecia e muita gente animada
que passei a conhecer, não só animada para
ziriguidundear, mas também para conversas
boas de serem feitas, discussões necessárias,
ideias a serem refletidas, outras colocadas em
prática. Foram momentos agradáveis e propocionaram um olhar diferente para uma porção
de coisas que aprendi, ouvi, li, vivi. Enfim, voltei outra e melhor, p recisa dizer algo mais?!
Agradecimentos especiais:
- à minha companheira de barraca, Oiii,
que dormiu sossegadamente porque eu não
ronco, falo o mesmo dela, eu que tenho sono
leve não podia ter escolhido melhor.
- ao Marcello que aguentou meu mau-humor no domingo, depois passou né Waltão, amigo que é amigo tem que aguentar, fazer o que?!
- ao Phil e à Mari que acompanharam a
mim, ao Straat e ao Ale no sábado.
- ao Straat e Ale, meus companheiros de
Cúpula e todo o mais, sem dizer o ótimo almoço no sábado, experiência gloriosa a frangada com farofa de vocês na calçada (só faltou
o milho!) e o almoço de domingo com vocês,
Rubão, Lê, Edil, Layla, Carol.
- á organização, suamos e conseguimos,
Lari, Gus, Oi, Marcello, Dé e Lucca.
- e, em nome de todos os organizadores,
agradecer a todos que nos ajudaram e apoiaram essa nossa empreitada, especificamente
ao diretor José Roberto Cardoso e aos chefes
de departamento: Mario Thadeu Leme de Barros (PHA), Laurindo de Salles Leal Filho (PMI)
e Waldemar Hachich (PEF), que acreditaram
e apoiaram nosso projeto. Agradecemos também o apoio e credibilidade que nos foi dado
pelo Prof. Luis Enrique Sánchez, e pela disposição dos professores Maria Eugenia Gimenez
Boscov, José Jorge Nader e Arisvaldo Vieira
Méllo Jr. em nos acompanhar, apesar de não
terem podido estar conosco. Ao Escritório Piloto, CEC e Grêmio pelo apoio.
E é isso, fim!
Karol Costal
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Além da representatividade existe a Liberdade
Quem aqui está satisfeito com o governo¿ E quem se sente por ele plenamente representado¿ Embora eu ache que satisfação
plena nunca ocorrerá (e nem deve), isso é
apenas uma opinião minha, como várias outras. Já representação plena é um paradoxo,
e isso, pelo contrário, é uma afirmação; não
é possível pensar como outra pessoa, chegar às mesmas conclusões que ela, escolher sempre o que a outra pessoa escolheria.
Mesmo um indivíduo, em diferentes momentos, pode vir a pensar e “dizer o oposto daquilo tudo que ele disse antes”, como diria
Raul. Ninguém melhor (ou menos pior) pra
te representar do que você mesmo, se fazer
ouvido, marcar sua posição. Portanto vou
afirmar, sem delongas, o que o meu eu de
agora vem pensando (já há tempos): democracia representativa não significa o poder
na mão de todos, muito menos representa
a maioria! Os nossos ta-ta-ta-tataravós não
devem ter lido as cláusulas de letras miúdas
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quando “assinaram” o contrato social iluminista, que está vigente até hoje. Tampouco
eu ou você assinamos. Como abdicar de
quase todo nosso poder e eleger alguns (lobos) com mais poder pode nos tornar mais
livres e melhorar nossa vida¿ A verdade é
que a democracia representativa é um grande avanço comparando-se com o antigo regime, onde os reis mandavam simplesmente
“por que sim”, e um grande aprendizado.
No entanto, após séculos dessa representação, podemos perceber que coisas absurdas como aumentos abusivos de salários de
parlamentares, redução de seus expedientes, inúmeras leis e políticas que favorecem
minorias e interesses que não são os da população, foco no crescimento econômico
sem foco, entre outras, acontecem costumeiramente. Portanto é simples a conclusão
de que: do jeito que está, não está bom. Eu
não quero propor nenhuma solução, muito
menos mágica ou utópica com base em ne-
nhuma teoria com esse texto, mas apenas
expor a minha convicção que qualquer que
seja essa solução, se ela existir, passa por
uma sociedade participativa, construída
por todos que nela vivem, pois só assim o
que as pessoas pensam de fato estará sendo posto em prática. Pode parecer impossível de imaginar um mundo em que todos
tenham acesso às tomadas de decisões e
gestão da sociedade, mas nada deve parecer impossível, nada deve parecer natural.
As coisas não são assim por que sempre
foram, ou porque o homem é assim. E não
serão assim para sempre. Afinal, várias coisas consideradas naturais e inquestionáveis
no passado, como machismo e escravidão,
hoje em dia são totalmente repudiadas por
(pelo menos quase) todos. Mas como participar das decisões, conciliar vida pessoal,
trabalho, política, esse turbilhão turbulento
que é a vida¿ Acho que não estamos na iminência de conseguir essa autonomia e nem
saberíamos como lidar com ela, pois não
temos essa cultura (ainda). No entanto, novas iniciativas vêm surgindo. Por exemplo,
as cooperativas, onde os trabalhadores gerem, participam, debatem, e votam as decisões empresariais, burocráticas e como
será realizado o trabalho. Um cooperado
sabe para quem está trabalhando, porque,
toma as decisões e divide a renda da forma
que a maioria achar justa, não necessariamente igualmente, mas justa. Ele debate as
decisões, sempre aprendendo e discutindo novos conceitos e não se alienando na
produção. Essa forma horizontal e coletiva
de viver a vida, com respeito à individualidade de cada um e reconhecimento de que
o outro é tão ser humano e potencialmente
capaz quanto você, pode ser assimilada
e conquistada aos poucos, através de pe-
quenas mudanças culturais. Instituições,
organizações e comportamentos serão aos
poucos transformados em estruturas emancipadoras, dependendo apenas das pessoas, e não de guerras, fatores externos ou imposições, sendo uma construção natural da
libertação humana. Concordo que nem sempre foi possível a existência de uma sociedade participativa, mas atualmente com novas
ferramentas de comunicação, isso se tornou
mais fácil (ou menos complicado). Além disso, nós perdemos muito mais tempo trabalhando para pagar impostos que achamos
mal utilizados e salários de políticos, do que
gastaríamos para governarmos todos, discutirmos políticas coletivamente, nos dedicarmos a cuidar de nós. Aliás, perdemos muito,
mas muito tempo da nossa vida trabalhando por ideais que não são os nossos, ideais
que são mantidos pela ausência de poder
que temos para muda-los. Isso é liberdade¿
Definir liberdade á algo que julgo além das
minhas capacidades, mas sei que a resposta dessa pergunta é negativa. Só seremos
livres quando escolhermos coletivamente,
sem imposições de nada e de ninguém, os
rumos do que é feito conosco, sobre como
nos devemos organizar, sobre como devemos agir, sobre como, quanto, para que e
para quem devemos trabalhar (nós). Assim
seremos livres para escolher como utilizar as
tecnologias, em favor de nós mesmos, e não
de alguns apenas. Livres para compartilhar
o conhecimento, que por sua vez aumenta
ainda mais liberdade, entre nós. Livres para
viver e usufruir uma vida íntegra e saudável, para poder escrever nosso destino, pois
isso, entre tantas coisas, é liberdade!
Lucca Pérez
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Nós Estamos Aqui: O Pálido Ponto Azul (tradução)
A espaçonave estava bem longe de
casa. Eu pensei que seria uma boa idéia,
logo depois de Saturno, fazer ela dar uma
ultima olhada em direção de casa.
De saturno, a Terra apareceria muito pequena para a Voyager apanhar qualquer detalhe, nosso planeta seria apenas um ponto
de luz, um “pixel” solitário, dificilmente distinguível de muitos outros pontos de luz que
a Voyager avistaria: Planetas vizinhos, sóis
distantes. Mas justamente por causa dessa
imprecisão de nosso mundo assim revelado
valeria a pena ter tal fotografia.
Já havia sido bem entendido por cientistas e filósofos da antiguidade clássica,
que a Terra era um mero ponto de luz em
um vasto cosmos circundante, mas ninguém
jamais a tinha visto assim. Aqui estava nossa
primeira chance, e talvez a nossa última nas
próximas décadas.
Então, aqui está - um mosaico quadriculado estendido em cima dos planetas, e
um fundo pontilhado de estrelas distantes.
Por causa do reflexo da luz do sol na espaçonave, a Terra parece estar apoiada em um
raio de sol. Como se houvesse alguma importância especial para esse pequeno mundo, mas é apenas um acidente de geometria
e ótica. Não há nenhum sinal de humanos
nessa foto. Nem nossas modificações da
superfície da Terra, nem nossas maquinas,
nem nós mesmos. Desse ponto de vista,
nossa obsessão com nacionalismo não aparece em evidencia. Nós somos muito pequenos. Na escala dos mundos, humanos são
irrelevantes, uma fina película de vida num
obscuro e solitário torrão de rocha e metal.
Considere novamente esse ponto. É
aqui. É nosso lar. Somos nós. Nele, todos
que você ama, todos que você conhece,
todos de quem você já ouviu falar, todo ser
humano que já existiu, viveram suas vidas.
A totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e
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destruidor da civilização, cada rei e plebeu,
cada casal apaixonado, cada mãe e pai,
cada crianças esperançosas, inventores e
exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada “superstar”, cada “lidere
supremo”, cada santo e pecador na história
da nossa espécie viveu ali, em um grão de
poeira suspenso em um raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em
uma imensa arena cósmica. Pense nas infindáveis crueldades infringidas pelos habitantes de um canto desse pixel, nos quase imperceptíveis habitantes de um outro canto, o
quão frequentemente seus mal-entendidos,
o quanto sua ânsia por se matarem, e o quão
fervorosamente eles se odeiam. Pense nos
rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, em
sua gloria e triunfo, eles pudessem se tornar
os mestres momentâneos de uma fração de
um ponto. Nossas atitudes, nossa imaginaria auto-importancia, a ilusão de que temos
uma posição privilegiada no Universo, é desafiada por esse pálido ponto de luz.
Nosso planeta é um espécime solitário
na grande e envolvente escuridão cósmica.
Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não ha nenhum indicio que ajuda possa vir de outro lugar para nos salvar de nos
mesmos. A Terra é o único mundo conhecido até agora que sustenta vida. Não ha lugar nenhum, pelo menos no futuro próximo,
no qual nossa espécie possa migrar. Visitar,
talvez, se estabelecer, ainda não. Goste ou
não, por enquanto, a terra é onde estamos
estabelecidos.
Foi dito que a astronomia é uma experiência que traz humildade e constrói o caráter. Talvez, não haja melhor demonstração
das tolices e vaidades humanas que essa
imagem distante do nosso pequeno mundo.
Ela enfatiza nossa responsabilidade de tratarmos melhor uns aos outros, e de preservar e estimar o único lar que nós conhecemos... o pálido ponto azul.
Carl Sagan
No dia 14 de fevereiro de 1990, a pedido de Carl Sagan, a sonda Voyager 1 voltou-se
e tirou várias fotografias, entre elas a histórica fotografia da Terra, do tamanho de um pixel
azul, suspensa num raio de sol, refletido pela nave. Esta encontrava-se a 6,4 Bilhões de Kilómetros de distância, nos confins do sistema solar. “Toda a história humana aconteceu neste
pequeno pixel, que é o nosso único lar”. Uma visão de futuro do homem no espaço. Em
2001, esta foto foi selecionada como uma das dez melhores imagens de ciência espacial.
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O Açúcar
O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escola,
homens que não sabem ler e morrem de fome
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
Ferreira Gullar
Enviado por Lucca Pérez
12
O Engenheiro
A Antônio B. Baltar
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras :
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel ;
o desenho, o projeto, o número :
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro).
A água, o vento, a claridade,
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas fôrças simples.
João Cabral de Melo Neto
13
O peso de viver
Vamos treinar a imaginação. Imagina
comigo. Imagine que você carregue sempre
contigo uma mala, e que essa mala represente a sua vida. A vida começa fácil, começa leve, livre e solta. Com o passar do tempo
vamos crescendo e vão surgindo problemas
e responsabilidades. A mala fica maior, mais
pesada. Mas nada demais, ainda posso ir
aonde quiser! Sou livre. Chega então aquele momento. Algum aspecto de nossa vida
não vai nada bem, aliás, começa a virar um
incomodo. Pesado. E o problema vai se prolongando, a mala vai se alargando e ficando
pesada com o tempo. E cada vez mais, vai
ficando mais difícil de carrega-la. Até que se
chega ao ponto que simplesmente não podemos mais nos mover. Paramos no lugar.
Nós e nossas malas. Estagnamos a vida.
Meu sábio pai me contou uma pegadinha que ele fez no trabalho há muito tempo atrás. No escritório, ele tinha um colega
que levava todos os dias uma maleta enorme. Todos desconfiavam que o rapaz nunca
abria a maleta. Certo dia, durante o horário
do almoço, meu pai abriu-a e colocou um
tijolo dentro (sim, um tijolo), sem a presença e muito menos consentimento do amigo.
Alguns dias depois, graças a boatos, contaram o que tinha na mala para o infeliz, que finalmente descobriu o porquê de sua maleta
ter ficado mais pesada.
Como podemos nos conformar com a
situação que nos encontramos a ponto de
não perceber o que se passa ao nosso redor? Como podemos chegar ao ponto de
estagnar na vida, e não ter parado nem um
segundo para abrirmos nossas malas? Ao
simplesmente abri-la, veríamos que muitos
de nossos problemas que carregamos todos
os dias são tão importantes quanto o tijolo
para o infeliz. Ou seja, insignificantes. Mas
continuamos nos arrastando dia após dia
esperando uma luz que nos liberte desse
peso. Sem esforço, sem reflexão. Pior ainda,
nos arrastamos esperando pelo carnaval.
porque temos vertigem num mirante cercado por uma balaustra sólida? Vertigem não
é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do
vazio debaixo de nós, que nos atrae e nos
envolve, é o desejo da queda do qual nos
defendemos aterrorizados”. Nós somos atraídos pelo peso. E consideramos mais fácil
nos conformarmos, sentarmos a bunda no
sofá. E não discordo, é mais fácil. Mas é simplesmente sadomasoquismo. Acredito que
podemos reverter todos nossos problemas,
nossas angustias. Não deveríamos levar a
vida como se fosse uma mala inconveniente.
Rosa Luxemburgo dizia: “Quem não se
move, não sente as correntes que lhe prendem”. Não quero me rebaixar a escrever
qualquer coisa relacionada a como solucionar problemas. Livros de autoajuda estão ai
aos montes. E nem vou entrar no mérito se
é baboseira ou não. O meu ponto é outro e
mais simples. Olhamos demasiadamente
para o exterior. Peço-lhe apenas para reservar mais tempo para o interior. Por que estamos respirando mais rápido? Por que estou
tenso? O que ele faz que me incomoda tanto? Por que isso me incomoda? Isso pode
ser relevado? Não devemos deixar passar
essas pequenas sensações. Sim, elas se
acumulam, pesam e doem. Mas melhor começar agora, antes que acumule mais sentimentos negativos. E quando tudo parecer
resolvido, não adianta negar, teremos sempre algum novo aspecto da vida para rever.
O sapiente Heráclito, há muito tempo atrás,
disse: “Nada é permanente, senão a mudança”. Ele acreditava que nunca poderíamos
atravessar o mesmo rio duas vezes, pois o
rio nunca seria o mesmo. Isso reforça a ideia
de que exige-se que fiquemos o tempo todo
em alerta, prontos para mudanças. Isso não
é fácil. Isso é vida. Abra-se para seus amigos. Não há maneira mais fácil de começar.
E como não vivemos sozinhos, que tal começarmos a fazer nossos amigos também
abrirem suas malas?
Renato Dallora
Estamos todos desequilibrados, com
sensação de vertigem. Milan Kundera escreveu: “O que é vertigem? Medo de cair? Mas
14
15
O que aprendi com Monet
O Museu de Arte de São Paulo (MASP) oferece todo primeiro sábado do mês uma aula de história da arte. Fantástica. O curso é inteiro
gratuito. Tive a oportunidade de participar, nesse mês de outubro cujo
tema foi a pintura “A canoa sobre o rio Epte” (1890) de Monet.
Apesar de se ter um quadro como principal, o professor __ precisa explicar os antecedentes de Monet e suas reflexões para poder
definir os por quês do quatro. Para lecionar um único tema, são
feiras referências desde século XVI até o seu antecessor Edoward
Manet, o primeiro modernista. A aula começa pontualmente as
10h00 e dificilmente termina as 13h00, horário previsto. Por que
escrevo sobre isso?
Nessa aula aprendi que o importante não é apenas o conteúdo, mas principalmente a abordagem desse. Aqui na escola, se um de nosso professores utiliza powerpoint e apaga
uma das luzes, somos impelidos a nos desligar. Lá, mal via
as pessoas piscarem. Durante a manhã, fui levada a pensar
como Monet de uma maneira clara e objetiva, simplesmente
para entender o quadro, que ficava projetado ao fundo.
Usando seu maior recurso, a fala, o professor foi capaz de me transportar entre os anos e me interessar por
arte, ou melhor, pela história da arte, um assunto que eu
detestava. Agora eu vos pergunto: por que, então, passo
a desgostar dos meus antigos interesses ao frequentar
minhas aulas na faculdade? Partindo do princípio que
os alunos tem alguma curiosidade sobre as matérias,
não deveria ser tão difícil mantê-los entretidos nos estudos. Com o passar dos anos, vejo a queda de assiduidade e a falta de motivação tanto minha quanto
de meus colegas.
sso me faz crer que poderíamos ter um curso melhor. Se Monet foi capaz de fazer oitenta e
seis interpretações da “Ponte sobre o Lago”, uma
mais bonita que a outra, nossos professores poderiam imitá-lo, ou seja, recriar interpretações
de uma ideia, aula ou tema para nos inspirar.
16
O Encontro
Era um menino homem. Já se vestia como
um, mas comportava-se como outro. Estava
a estudar engenharia. O ano não se lembrava
mais, o momento que era importante. Lembra-se que estava sol. Caminhava de uma sala a
outra. Os livros calam por debaixo do braço, os
papeis amassavam. Suas pernas mantinham o
movimento enquanto tentava equilibrar os pertences. Estava atrasado.
Nesse mesmo instante, ela vinha em sua direção. Com seu cabelo preso e suas roupas impecáveis. Já era uma mulher. Estava linda como sempre.
Suas pastas e seus livros devidamente organizados
em seus braços, sua postura a deixava deslumbrante.
Ele lembrou-se de olhar para onde andava. A distância entre os prédios era de um quarteirão. Levantou
os olhos. Viu-a. Viu-a, mas não foi visto. Suas pernas,
que andavam por si, pararam. Seu pescoço começou
a virar-se para que ela ficasse no centro da visão. Era
ela. Os livros começaram a escorregar. Até suas mãos
sabiam da importância da situação, desaguava.
A moça sentia o olhar pousado sobre ela. Manteve-se em seu caminho. Mas a intensidade puxou-a inconscientemente. Levemente, inclinava-se na direção daquele
menino. Era um homem.
O encontro de um olhar. Não roubaria a descrição de
Machado de Assis se não fosse extremamente necessária:
eram olhos de ressaca. Ele ficou preso a eles. Todo seu material foi ao chão. Era ela. Descontrolou-se.
Ela voltou a seu caminho, se afastava cada vez mais. O
encontro durou na mente dele. Teve vontade de gritar, chamar,
correr atrás. Devíamos casar, pensava. Um milhão de ações
poderia ter tomado. Ficou ali parado. Olhando-a ir. Ia aonde?
Deslumbrante.
Ele ficou ali, após o encontro. Parado com seus livros ao
chão. O corpo estava ali. Sua alma havia sido levada com as ondas do mar.
Karina Piva
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Os Politécnicos
Fui a São Paulo, a convite do Grêmio dos
Politécnicos, bater um papo com os rapazes
em sua Faculdade. Recusei-me a fazer uma
palestra, pois sou homem de língua emperrada; mas os motivos para a minha ida, como
me foram apresentados pelos futuros engenheiros paulistas, pareceram-me bastante
válidos, além de modestos. Têm eles que a
carreira escolhida oferece o perigo de canalizar o pensamento para problemas puramente tecnológicos, em prejuízo de uma humanização mais vasta, tal como a que pode ser
adquirida em contato com o homem em geral
e as artes em particular.
Há muito não me sentava diante de tantos moços, com um microfone na mão, para
lhes responder sobre o que desse e viesse.
“Quem sou eu”, perguntei-me, não sem uma
certa amargura, “quem sou eu, que não sei
sequer consertar uma tomada elétrica, para
arrogar-me o direito de vir responder às perguntas destes jovens que amanhã estarão
construindo obras concretas e positivas para
auxiliar o desenvolvimento deste louco país?”
Mas eles, aparentemente, pensavam o contrário, pois puseram-se a bombardear-me de
perguntas que, falar verdade, não dependiam
em nada de cálculos, senão de experiência,
bom-senso e um grão de poesia. Providenciaram mesmo uma bonita cantorazinha de
nome Mariana, que estreava na boate Cave
(de onde partiram para a fama Almir Ribeiro
e Morgana) para cantar coisas minhas e de
Antônio Carlos Jobim: o que era feito depois
de eu responder se acreditava ou não em
Deus, como explicava a existência de mulheres feias e o que pensava de João Gilberto.
A homenagem foi simpática, mas no
meio daquilo tudo comecei a ser tomado
por uma sensação estranha. Aqueles rapazes todos que estavam ali, cada um com a
sua personalidade própria - João gostando
de romance Lolita, Pedro detestando; Luís
preferindo mulatas, Carlos louras; Francisco acreditando em Karl Marx, Júlio em Jânio
Quadros; Kimura preferindo filme de mocinho, Giovanni gostando mais de cinema
francês - já não os tinha visto eu em outras
circunstâncias, em outros tempos? Aquele
painel de rostos desabrochando para a vida,
18
aqueles olhos sequiosos ao mesmo tempo
de amor e de conhecimento, não eram eles
o primeiro plano de uma imagem que se ia
perder no vórtice de uma perspectiva interminável, como num jogo de espelhos? Atrás
de cada uma daquelas faces não havia o
fotograma menor de outra face, como ela
ávida de saber o porquê das coisas, e atrás
dessa outra, e mais outra, e outra ainda? Vi-os, de repente, todos fardados me olhando, atentos às instruções de guerra que eu
lhes dava em voz monótona: “Os três grupos
decolarão em intervalos de cinco minutos, e
deixarão cair sua carga de bombas nos objetivos A, B e c, tal como se vê no mapa. É
favor acertarem os relógios...” Mariana cantava, um pouco tímida diante de tantos rapazes, a minha “Serenata do adeus”:
Ai, vontade de ficar mas tendo de ir embora...
Qual daqueles moços seria um dia ministro? Qual seria assassino? Quem, dentre
eles, trairia primeiro o anjo de sua própria
mocidade? Qual viraria grã-fino? Qual ficaria
louco?
Tive vontade de gritar-lhes: “Não acreditem em mim! Eu também não sei nada!
Só sei que diante de mim existe aberta uma
grande porta escura, e além dela é o infinito - um infinito que não acaba nunca. Só sei
que a vida é muito curta demais para viver e
muito longa demais para morrer!”
Mas ao olhar mais uma vez seus rostos
pensativos diante da canção que lhes falava
das dores de amar, meu coração subitamente se acendeu numa grande chama de amor
por eles, como se eles fossem todos filhos
meus. E eu me armei de todas as armas da
minha esperança no destino do homem para
defender minha progênie, e bebi do copo
que eles me haviam oferecido, e porque
estávamos todos um pouco emocionados,
rimos juntos quando a canção terminou. E
eu fiquei certo de que nenhum deles seria
nunca um louco, um traidor ou um assassino porque eu os amava tanto, e o meu amor
haveria de protegê-los contra os males de
viver.
Vinicius de Moraes
Haicais e hai-quases
Haicai é um estilo de poema de origem
japonesa, que chegou ao Brasil no início do
século 20. Suas características principais são
a forma concisa (3 versos), o conteúdo relacionado à natureza, e o tempo da narrativa
(sempre narrando o agora). Poderia copiar
dos sites as mais variadas exigências de um
“verdadeiro haicai”, mas de fato não me interesso por tais formalidades. O que realmente
me encanta nesses poeminhas é a simplicidade e a capacidade de descrever sentimentos
apenas apresentando cenas (ou são puramente os retratos que nos puxam da memória
os sentimentos?). Me encantam mais ainda as
adaptações (ah, essas sempre me encantam)
feitas por escritores (e amadores, ¡Hola!) brasileiros. É curtinho, demora nada pra ler! [e de
repente, você se vê pensando em blocos de 3
frases.. ] Deliciem-se!
Algo faz barulho —
Cai sozinho, sem ajuda,
O espantalho.
Bonchô
Esnobar
É exigir café fervendo
E deixar esfriar.
Millôr Fernandes
Você deixou tudo a tua cara
Só pra deixar tudo
Com cara de saudade
Alice Ruiz
Viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície
Paulo Leminski
Achei que ia ter ânimo pra estudar por
horas a fio
dias a fio
vou pegar esse fio e me enforcar
isso sim.
de uma politécnica : )
19
Remexida no Baú/Entrevista
Idos da década de 80
Rita Lee: O Rock’N’Roll da Babilônia
Uma entrevista apaixonante e
apaixonada....
Quando chegamos ao teatro Bandeirantes, a noite tépida de fim de setembro caía
sobre nós, J. Fernando Lee, Rick Jagger e
Kochinha que estávamosexcitadíssimos com
a espera. Após um longo tempo (atenuado
por uma pizza très, très jolie do Speranza),
o Dodginho amarelo da Rita chegou; Roberto (seu marido, pianista e guitarrista do Cães
e Gatos), numa rápida manobra, estacionou
loucamente, batendo de leve (não era na contra-mão) num carro atrás. Mas como diria um
amigo nosso: tudo bem... a caravana passa
e os cães ladram. Rita e seu grupo nem ligaram para o evento e passaram depressinha a
entrar no teatro. Perguntamos, uníssonos: e a
entrevista? Ela respondeu: não esqueci, não.
Esperem um pouquinho só. Esperamos quase meia hora. Nesse ínterim tentamos comme matti penetrar no tenebroso castelo Bandeirantes, num processo que faria Anthony
Perkins invejar-nos em seu respectivo filme.
Falamos com o seu Pedro, um canalha muito grande: não deu. Falamos com o porteiro:
não deu. Falamos com o Wellington (nada
neo-zelandês): não deu. Até que chegou um
cara finíssimo, o Martino que, gentilmente nos
deixou entrar para falar com o maior superstar do Brasil. É lógico que estávamos extasiados, liquidificados numa sensação de misticismo, amor e glória. Quando vimos a Rita
Lee se maquiando em seu camarim dizendo
oi! pra gente, sentimos ter atingido o Nirvana,
ou mesmo até, a Babilônia, não importa: foi
uma emoção que só os adoradores do rock
podem ter ao se deparar com seus ídolos...
Foi um verdadeiro musí! Rita é linda em tudo,
estranhamente natural, quase mortal. Apaixo-
20
namo-nos por ela imediately. Estava sentada,
de frente pro espelho, passando rímel (faltava
meia hora pro show) ao lado de sua percursionista (Naila) de uma beleza embriagadora. Tínhamos cinco minutos, mas nosso papo
durou vinte. Para aqueles que a amam, eis
aqui, na íntegra, a entrevista (para os que não
amam, apenas um desprezo)
José Fernando Lee
Rick: Eu sei que você está ocupada,
mas vamos levar um papo super-rápido...
Rita: (olhando-se no espelho) Tá legal.
Rick: Como você sabe, nós somos universitários e você pode falar o que quiser,
sem frescuras, inclusive contra nossa classe. Pra começar, o que você acha do público universitário? Eu sei que eles te podam
muito...
Rita: Às vezes, às vezes... Meu maior
contato com eles foi com o show da Refestança. Com o Gil; o Gil está mais perto deles... A coisa ficou mais ou menos em equívocos...
Rick: O Raul Seixas é que tem bronca
com eles...
Rita: É, mas eu não tenho muito contato...
Rick: Certo, me diz um negócio: e o
rock nacional, sumiu? Só tem você e uns gatos pingados... (risadas curtinhas). Ficam os
grandes e morrem os pequenos...
Rita: (indecisa) O que eu entendo de
rock é uma coisa que para mim significa...
J. Fernando: Refestança?
Rita: Não, não... É algo que deve atingir o maior número de pessoas possível,
que deve ser um lance popular. Eu acho que
as pessoas que se intitulam roqueiros, que
pegaram bandeiras do rock não pensaram
justamente neste lado, nessa coisa feita pro
povo. Ficou uma música de músico pra músico, “vamos tirar um som”... Não se preocuparam, desprezaram as letras...
Rick: A língua portuguesa dificulta a letra de rock?
Rita: Eu não sei se dificulta agora. Acho
que não. Uma vez que a gente fala português, tem muito a ver... É legal sofrer influências, ouvir muita coisa, tudo, se possível.
Sofrer influências de tudo também é ótimo.
Rick: Você escutou muito Stones - você
escuta ainda?
Rita: Ainda.
Rick: O J. Fernando te viu no festival de
jazz e até levou um papo com você... Que
é que você achou do festival? Sem essa de
“grande evento” - Acho que não tem nada a
ver esse tipo de resposta.
Rita: Aaah... Foi um barato...
J. Fernando: Você só foi à tarde, não é?
Só viu o John McLaughlin?
Rita: É, como eu tava fazendo show
todas as noites, então não dava... Eu achei
bom, por exemplo, para as pessoas que tinham um lance musical seguro, forte. Ou faziam maravilhas ou desastres, como o Milton
Nascimento, ou melhor, Milton Falescimento,
certo (risadas quilométricas, berrinhos, sussurros lúbricos). E o HERMETO, um grande
bruxo, roubou o show de todos...
J. Fernando: Eu tava lá com o Ezequiel
Neves e, no meio do show do Milton, ele deu
o maior berro, foi uma loucura...
Rita: Pro pessoal de fora foi mais loucura ainda... Mas foi muito Rock esse show
de Jazz (a fazer caretas deliciosas). A Etta
James fez rock puro...
Rick: Rita, agora uma pergunta meio
chata: qual a importância da Rede Globo em
sua vida?
Rita: (misteriosa, piscando os dedos,
em posição de bote): Plin-Plin! (gargalhadas
rumorejantes).
Rick: Por que acabou o Tutti Frutti?
Você brigou com o Carlini (guitarrista)?
Rita:
(gozativa) Não, absolutamen-
te, somos grandes amigos...
(séria) Não posso dizer porque a briga
não foi comigo, nem posso dizer que houve
briga, numas de quem é esperto, se vira...
Foi um lance com o Tutti, o Si, o Serginho.
Então o Luís registrou o nome e propôs às
outras pessoas... e ficou triste a coisa. No
fundo era lance pra ser de todo mundo.
Rick: Como é que é seu dia? (é uma
pergunta tipo Capricho, essa!)
Rita: Meu dia? Depende... Quando eu
estou fazendo show, eu acordo muito tarde,
lá pras 2 da tarde e eu acho isso horrível...
Rick: Quando nós marcamos a entrevista para as 7 horas, o J. Fernando pensou
“será que é 7 horas da manhã?” (risos tímidos) Eu disse “nem a pau”...
Rita: Não, por mais bagunça que a
gente faça, essa bagunça deve ser disciplinada... Mas aí, durante o dia eu faço muita
coisa: massagem, ginástica, troco fraldas,
faço música, escrevo...
J. Fernando: E os teclados, você largou?
Rita: Não, eu curto. Mas é que o piano
está num lugar tão esquisito da casa.
J. Fernando: E tem o Roberto, que toca
mais...
Rita: Não, ele gosta mais de guitarra...
Rick: Fale alguma coisa de São Paulo.
Rita: São Paulo? Quem pode falar mais
é aquela música do Caetano, Sampa...
J. Fernando: A tua mais completa tradução...
Rita: (pop-star) De fato, eu sou apenas
a mais completa tradução (risadas estrepitosas).
Rick: Agora é moda, você falou numa
música, ocupar o mercado estrangeiro...
Rita: (irônica) É a Rede Globo da minha
vida. (gargalhadas irresistíveis)
Rick: Como é, tem mercado lá fora?
Uruguai, Paraguai...
Rita: Tem sim. Mas as pessoas sempre
botam culpa em alguma coisa, tão é mais
chic, de um cunho intelectual, político, so21
cial, ocupar o mercado estrangeiro, certo?
(risos)
Rick para J. Fernando: Ela tá politizada, não é Odara!
Rick: Me diz uma coisa: qual o segredo
da sua juventude - você é mais nova do que
eu... (risadas e mais risadas, Rita cantarola
algo)
Rita: (felicíssima) Você me ganhou
agora! (risos) Não tem segredo, não.
Rick agora para a Rita Lee mãe: que
você quer que o teu filho seja?
Rita: Eu quero que ele seja feliz. Se ele
for feliz vai fazer o que gosta.
Rick para J. Fernando: Como todo
papo de mãe.... (risos)
Rick: E o punk?
Rita: O punk é engraçado lá fora. Se eu
fosse inglesa, eu acharia muito engraçado,
mas no Brasil é muito esquisito.
Rick: Agora vamos dizer alguns nomes
e você vai dizer o que passar pela cabeça.
John Travolta
Rita: Só me traga o João na volta (risinhos)
Zeca (Ezequiel Neves)
Rita: O Zeca Jagger? Que é o Zeca... É
o conde de são Genaro! (risos)
Keith Richards
Rita: Ele é ótimo... Um macaquinho
(franzindo o rosto) um macaquinho drogado
Rick: Figueiredo...
Rita: Ele é um cava...lheiro (risadas
medrosíssimas)
Rick: Marlon Brando...
Rita: Ah, o mar está tão brando...
Rick: Sílvio Santos...
Rita: Não sei, o Sílvio Santos já pegou
fogo (risos calorosos)
Rick: Sônia Braga...
Rita: (cantando como criança) Eu visitei a dama da lotação, mas minas do rei Salomão. (risos)
Rick: Karl Marx...
Rita: (séria) Tudo bem, sou corinthiana.
Rick: Woody Allen... Não vale dizer que
é divertido ou gozado.
Rita: Justamente, eu não acho nada
disso, acho ele um chato, um neurótico... (risos paranóicos)
Rick: Bom, pra acabar o papo, sua ficha:
Rick: Signo?
Rita: Capricórnio, ascendente: aquário.
Rick: Prato predileto?
Rita: (imitando com cabeça e gestos)
Caranguejo.
Rick: Cor?
22
Rita: (como uma criança chata): o azul,
cor dos meus olhos.
Rick: Música predileta de sua autoria?
J. Fernando: É Modinha?
Rita: Não, eu gosto dela, mas sou mais
“não sei se estou piorando ou se as coisas
estão melhorando”. É bem mais eu.
Rick: Teu disco favorito é Babilônia?
Rita: É.
Rick: E “Hoje é o 1º dia do resto de sua
vida”
Rita: Esse aí marcou uma época muito
confusa...
Rick: Agora a pergunta chavão de todo
roqueiro: qual o melhor conjunto do mundo?
Se falar “Stones” ganha um beijo...
Rita: Eu gosto deles, mas sou mais Stevie Wonder (é felicidade geral)
Rick: Não adianta, vai ganhar um beijo
do mesmo jeito...
O que você achou da entrevista? Faltou
alguma coisa?
Rita: Foi ótima, não faltou nada. De
onde vocês são mesmo?
Rick: Nós fazemos o 3º ano da Poli, na USP.
Rita: Eu fiz um ano de comunicações
na USP. Quase faleci...
J. Fernando: Nós já estamos meio mortos...
Rick: É uma escola que enche o saco...
Agora, off the record, porque esta puta burocracia para entrar aqui no teatro?
Rita: (brincando de pop-star outra vez)
Eu tenho os meus guarda-costas.
J. Fernando: Aquele seu Pedro é um
chato, se não fosse o Martino...
Rick, J. Fernando e Cochinha: Bom
nós vamos indo. Obrigado. Tchau! (beijos
alucinógenos)
Perguntas propostas por:
Rick Jagger,
J. Fernando Lee
Koxinha
Benvenutti.
Fotografia:
Koxinha
Som:
Koxinha
* Infelizmente, as fotografias se perderam no tempo.
23
Um anjo Pornográfico
Nelson Rodrigues, considerado o maior
dramaturgo brasileiro, é famoso por sua língua ácida tanto nas ficções quanto por ele
mesmo. Quando se indignava com a platéia,
não economizava impropérios. Amado, odiado e sempre endividado, encomendavam-lhe textos e ele os fazia. O resultado? Quase sempre chocava. Registrou com esmero
a classe média brasileira e a desnudou, escancarando a hipocrisia presente nos idos
das décadas de 40, 50 e 60. Tinha por mania implicar com pessoas que conhecia, que
o diga Otto Lara Resende, seu amigo. Lembrado também por ter sido admirado pelos
militares em plena Ditadura Militar, mas não
lembrado por ter um filho caçado por esta.
Nelsinho, seu filho, foi um dos “terroristas”
mais procurados durante os anos de Chumbo. Usando de seu prestígio para com os
militares, de 1969 a 1970, ajudou na localização, libertação e fuga de vários militantes
da época.
Seus escritos? Um inventário riquíssimo dos recônditos humanos. Inventário
atemporal porque a capa de verniz social
que cavoucou e pôs a vista, essa não muda
nunca.
Para quem quiser saber mais sobre a
vida desse grande homem, o site http://www.
releituras.com/nelsonr_bio.asp é muito bem
detalhado e bem elaborado.
DELICADO - Primeiro, o casal teve sete
filhas! O pai, que se chamava Macário, coçava a cabeça, numa exclamação única e
consternada:— Papagaio!Era um santo e
obstinado homem. Sua utopia de namorado fora um simples e exíguo casal de filhos,
um de cada sexo. Veio a primeira menina,
mais outra, uma terceira, uma quarta e outro
qualquer teria desistido, considerado que a
vida encareceu muito. Mas seu Macário incluía entre seus defeitos o de ser teimoso.
Na quinta filha, pessoas sensatas aconselharam: “Entrega os pontos, que é mais negócio!”. Seu Macário respirou fundo:— Não,
nunca! Nunca! Eu não sossego enquanto
não tiver um filho homem! Por sorte, casara-se com uma mulher; d. Flávia, que era, acima de tudo, mãe. Sua gravidez transcorria
docemente, sem enjôos, desejos, tranquila,
quase eufórica. Quanto ao parto propriamente, era outro fenômeno estranhíssimo.
Punha os filhos no mundo sem um gemido,
sem uma careta. O marido sofria mais. Digo
“sofria mais” porque o acometia, nessas
ocasiões, uma dor de dente apocalíptica, de
origem emocional. O caso dava o que pensar, pois Macáriotinha na boca uma chapa
dupla. Quando nasceu a sétima filha, o marido arrancou de si um suspiro em profundidade; e anunciou:— Minha mulher, agora
nós vamos fazer a última tentativa!
“Sou um menino que vê o amor pelo
buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa.
Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo
pornográfico.”
24
ndusam raer ferrumluiii
et, qui blation sequa
m reptium r e,to
porem[ ... ] volore[ ...
atus di consed que
res ex es adi cullores
sanda[ ... ]e verenillkui
s d olupta tumquas quis
quissed ignimp ori delest,
a[ ... ][ ... ]vlu tem veniae
que nisc[ ... ] im nos
ne voluptam aceperu
tumjsjsjs nobitatur e non
ta corro ea[ ... ] nonsedi
imillaksisiisjaiaa
lupta et omnimil ev el
am sandignis enim njo
l miliqu[ ... ]idel ima gnih
uaeptis sit llajsajiaiisjija
it elitas r em acculparum
to tem quis ac
uossi reperum neceatet r e
em. Issjianiecelljsijisiijdiish
iisppp kjaijs equia plibus [
eos possita ec
m exerrorepr e occus
lorr[ ... ] o et del[ ...
in comnimillab in r em
uam niature
cerate inverfe r estios
test[ ... ], cor um id
mpor e nam
a ut imjhsj
sjahsjaja
jhdjhjsdjsh
m e não
nada para
curar[ ... ] t
atetus
etusam ratem
jskjaksj o cos
oshumbugus
atu[ ... ]v[ ... ]
is eturemost [
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n ex plit ullupta
edi t, of ficiis
esec abor em
dol upt a
ionet afagos
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c illor apiciet
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scit[ ... ]ate por r em
onsedi d
o temperistiis dolupici
ed qui q sem espaço
novas novidadesluisial
o de co[ ... ]nsequodi
pta d
mi, comnimi
usc[ ... ] iis aliquas ide
ostrum as es r erumlai
Karol Costal
NOVO PARTO - No dia que d. Flávia ia
ter o oitavo filho, os nervos de seu Macário
estavam em pandarecos. Veio, chamada às
pressas, a parteira, que era uma senhora
de cento e trinta quilos, baixinha epatusca.
A parteira espiou-a com uma experiência
de mil e setecentos partos e concluiu: “Não
é pra já!”. Ao que, mais do que depressa,
replicou seu Macário:— Meus dentes estão
doendo! E, de fato, o grande termômetro,
em qualquer parto da esposa, era a sua
dentadura. A parteira duvidou, mas, daí a
cinco minutos, foi chamada outra vez. Houve
um incidente de última hora. É que a digna
profissional já não sabia onde estava a luva.
Procura daqui, dali, e não acha. Com uma
tremenda dor de dentes postiços, seu Macário teve de passar-lhe um sabão:— Pra que
luvas, carambolas? Mania de luvas!
i officti nullab iur r em.
hoje
tumq[ ... ]
qui aut eos
nimoditiis
lum sit vide
entibus maxi
siminis
fuga. Et lit
gnamet[ ... ]
luptiuJIJSm
.. ]o[ ... ] luptis
t, evevnet [
la con eum
enimijsjaias
ures eo ssitas
upt[ ... ] a
pedigent[ ...
empe aped
gnimagnit
s dolor est
iq[ ... ] ue nam
avolo et unt
nde ex et quis
nonet,hojeci
i vidus, omnis
nonanomollo
aesem jis Ut
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EUSEBIOZINHO- Assim nasceu o Eusebiozinho, no parto mais indolor que se
possa imaginar. Uma prima solteirona veio
perguntar, sôfrega: “Levou algum ponto?”.
Ralharam:— Sossega o periquito!O fato é
que seu Macário atingira, em cheio, o seu
ideal de pai. Nascido o filho e passada a dor
da chapa dupla, o homem gemeu: “Tenho
um filho homem. Agora posso morrer!”. E,
de fato, quarenta e oito horas depois, estava
almoçando, quando desaba com a cabeça
no prato. Um derrame fulminante antes da
sobremesa. Para d. Flávia foi um desgosto
pavoroso. Chorou, bateu com a cabeça nas
paredes, teve que ser subjugada. E, na realidade, só sossegava na hora de dar o peito. Então, assoava-se e dizia à pessoa mais
próximo:
— Traz o Eusebiozinho que é hora de
mamar!
FLOR DE RAPAZ - Eusebiozinho criou-se agarrado às saias da mãe, das irmãs,
das tias, das vizinhas. Desde criança, só
gostava de companhias femininas. Qualquer homem infundia-lhe terror. De resto, a
mãe e as irmãs o segregavam dos outros
meninos. Recomendavam: “Brinca só com
meninas, ouviu? Menino diz nomes feios!”.
O fato é que, num lar que era uma bastilha
de mulheres, ele atingiu os dezesseis anos
sem ter jamais proferido um nome feio, ou
tentado um cigarro. Não se podia desejar
maior doçura de modos, idéias, sentimentos. Era adorado em casa, inclusive pelas
criadas. As irmãs não se casavam, porque
deveres matrimoniais viriam afastá-las do
rapaz. E tudo continuaria assim, no melhor
dos mundos se, de repente, não acontecesse um imprevisto. Um tio do rapaz vem visitar a família e pergunta:— Você tem namorada?— Não.— Nem teve?— Nem tive. Foi o
bastante. O velho quase pôs a casa abaixo.
Assombrou aquelas mulheres transidas com
osvaticínios mais funestos: “Vocês estão
querendo ver a caveira do rapaz?”. Virou-se
para d. Flávia:— Isso é um crime, ouviu?, é
um crime o que vocês estão fazendo com
esse rapaz! Vem cá, Eusébio, vem cá! Implacável, submeteu o sobrinho a uma exibição. Apontava:— Isso é jeito de homem, é?
Esse rapaz tem que casar, rápido!
25
26
A NAMORADA- Houve, então, uma
conspiração quase internacional de mulheres. Mãe, irmãs, tias, vizinhas desandaram
a procurar uma namorada para o Eusebiozinho. Entre várias pequenas possíveis,
acabaram descobrindo uma. E o patético é
que o principal interessado não foi ouvido,
nem cheirado. Um belo dia, é apresentado
a Iracema. Uma menina de dezessete anos,
mas que tinha umas cadeiras de mulher casada. Cheia de corpo, um olhar rutilante,
lábios grossos, ela produziu, inicialmente,
uma sensação de terror no rapaz. Tinha uns
modos desenvoltos que o esmagavam. E
começou o idílio mais estranho de que há
memória. Numa sala ampla da Tijuca, os
dois namoravam. Mas jamais os dois ficaram
sozinhos. De dez a quinze mulheres formavam a seleta e ávida assistência do romance. Eusebiozinho, estatelado numa inibição
mortal e materialmente incapaz de segurar
na mão de Iracema. Esta, por sua vez, era
outra constrangida. Quem deu remédio à situação, ainda uma vez, foi o inconveniente
e destemperado tio. Viu o pessoal feminino controlando o namoro. Explodiu: “Vocês
acham que alguém pode namorar com uma
assistência de Fla-Flu? Vamos deixar os dois
sozinhos, ora bolas!”. Ocorreu, então, o seguinte: sozinha com o namorado, Iracema
atirou-lhe um beijo no pescoço. O desgraçado crispou-se, eletrizado:— Não faz assim
que eu sinto cócegas!
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PROBLEMA MATRIMONIAL- Quando
o tio despediu-se, o pânico estava espalhado na família. Mãe e filhas se entreolharam:”É
mesmo, é mesmo! Nós temos sido muito
egoístas! Nós não pensamos no Eusebiozinho!”.Quanto ao rapaz, tremia num canto.
Ressentido ainda com a franqueza bestial
do tio, bufou:— Está muito bem assim!A verdade é que já o apavorava a perspectiva de
qualquer mudança numa vida tão doce. Mas
a mãe chorou, replicou: “Não, meu filho. Seu
tio tem razão. Você precisa casar, sim”. Atônito, Eusebiozinho olha em torno. Mas não
encontrou apoio. Então, espavorido, ele pergunta:— Casar pra quê? Por quê? E vocês?
— Interpela as irmãs: — Por que vocês não
se casaram? A resposta foi vaga, insatisfatória:— Mulher é outra coisa. Diferente.
O LADRÃO- Uns quatro dias antes do
casamento, o vestido estava pronto. Meditativo, Eusebiozinho suspirava: “A coisa mais
bonita do mundo é uma noiva!”. Muito bem.
Passa-se mais um dia. E, súbito, há naquela
casa o alarme: “Desapareceu o vestido da
noiva!”. Foi um tumulto de mulheres. Puseram a casa de pernas para o ar, e nada. Era
óbvia a conclusão: alguém roubou! E como
faltavam poucos dias para o casamento sugeriram à desesperada Iracema: “O golpe é
casar sem vestido de noiva!”. Para quê? Ela
se insultou:— Casar sem vestido de noiva,
uma pinóia! Pois sim!Chamaram até a polícia. O mistério era a verdade, alucinante:
Quem poderia ter interesse num vestido de
noiva? Todas as investigações resultaram
inúteis. E só descobriram o ladrão quando
dois dias depois, pela manhã, d. Flávia acorda e dá com aquele vulto branco, suspenso
no corredor. Vestido de noiva, com véu e grinalda — enforcara-se Eusebiozinho, deixando o seguinte e doloroso bilhete: “Quero ser
enterrado assim”.
Nelson Rodrigues
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O VESTIDO DE NOIVA- Começaram
os preparativos para o casamento. Um dia,
Iracema apareceu, frenética, desfraldando
uma revista. Descobrira uma coisa espetacular e quase esfregou aquilo na cara do
Eusebiozinho: “Não é bacana esse modelo?”. A reação do rapaz foi surpreendente.
Se Iracema gostara do figurino, ele muito
mais. Tomou-se de fanatismo pela gravura:— Que beleza, meu Deus! Que maravilha! Houve, aliás, unanimidade feroz. Todos
aprovaram o modelo que fascinava Iracema.
Então, a mãe e as irmãs do rapaz resolveram
dar aquele vestido à pequena. E mais, resolveram elas mesmas confeccionar. Compraram metros e metros de fazenda. Com
um encanto, um élan tremendo, começaram
a fazer o vestido. Cada qual se dedicava à
sua tarefa como se cosesse para si mesma.
Ninguém ali, no entanto, parecia tão interessado quanto Eusebiozinho. Sentava-se, ao
lado da mãe e das irmãs, num deslumbramento: “Mas como é bonito! Como é lindo!”.
E seu enlevo era tanto que uma vizinha, muito sem cerimônia, brincou:— Parece até que
é Eusebiozinho que vai vestir esse negócio!
27
28
foto: Martim Passos
Vivemos na era da ideologia
Nossa saúde está nas mãos do mercado há muito tempo e assim não se pratica
a saúde preventiva, a forma mais eficiente
de melhorar a saúde de uma nação. Nossos
médicos nem são educados para isso, já
que devem se inserir no cenário da saúde
atual.
Nossa educação é péssima, mesmo nas mais caras escolas particulares. É
enorme a quantidade de professores que
afirmam abrir mão de alguns conteúdos e
métodos de ensino para garantir a competitividade da escola frente à seleção do vestibular e aos sistemas de avaliação.
Nossas cidades são planejadas pelo
mercado imobiliário. A terra é mais uma mercadoria do que um meio para garantir boas
condições de vida para a população. Sendo
assim, nossas cidades são um caos. As condições de vida são péssimas. A insegurança
e a desigualdade reinam.
Nosso sistema de produção de alimento é globalizado. Os países subdesenvolvidos possuem enormes plantações para exportação, mas não dão conta da produção
para eles mesmos. Assim, são dependentes
da importação de alimentos, e os compram
com o dinheiro recebido das multinacionais
que possuem plantações em seu território.
Configura-se uma espécie de neo-colonialismo.
Muitos líderes mundiais hoje reconhecem que as recentes ondas de fome na África se devem ao fato de tratarmos o alimento
como mercadoria e não como premissa para
a vida. A alimentação é demasiada importante para ser controlada pelo mercado, dizem. Pois então a saúde, a educação e o
planejamento urbano também.
Não conseguimos enxergar esses pontos, pois vivemos na era da ideologia. Nunca
estivemos tão convencidos de nossa ideologia frente à realidade. A ideologia neoliberal, que se diz pragmática e pós-ideológica,
é tão forte que se mantém viva durante a crise causada por ela mesma. A liberação de
700 bilhões de dólares para salvar os bancos estadunidenses foi realizada de forma
muito mais rápida do que a liberação de 2,2
bilhões de dólares pela OMC para desenvolver a agricultura no terceiro mundo. O reestabelecimento na fé do mercado é tratado
com mais urgência do que a erradicação da
fome, da mortalidade infantil e do analfabetismo.
As premissas ideológicas de nossos
tempos embutem nas pessoas a fé na mais
irrealizável de todas as utopias: os problemas da sociedade podem ser resolvidos
dentro do capitalismo. Todos estão cegos ao
fato de que, na verdade, a maior parte desses problemas é estrutural ao capitalismo e
não casos de mau funcionamento acidental
do sistema.
Temos de abrir os olhos e pensar outra
forma de organizar a sociedade.
A ideologia nos coloca num estado de
negação da realidade. A realidade é que o
capitalismo jamais acabará com a pobreza,
já que funciona à custa da desvalorização
do trabalho e, portanto, precisa de muita
mão de obra barata para que sobreviva; a
realidade é que as favelas não são espaços
de não desenvolvimento capitalista, mas
crescem com a entrada de mercados capitalistas em países periféricos; a realidade é
que o macro planejamento e o fim do consumismo são as formas mais eficientes de nos
salvar da catástrofe ambiental, mas contrariam os interesses e a lógica capitalista; a
realidade é que não devemos ter medo de
nos dizer anticapitalistas, que o nosso sistema é cheio de contradições, e não um ciclo
fechado como prega a ideologia de nossos
tempos.
Definição de ideologia usada nesse
texto: Falsa consciência, ideias capazes
de deformar a compreensão sobre o modo
como se processam as relações de produção. Surge a partir da divisão entre trabalho
manual e intelectual.
João Pedro Salva Geddo
29
USP e o Pseudo-Maniqueísmo
À luz dos acontecimentos recentes
(greves, protestos, assembleias, debates
calorosos, trancaços) que vêm moldando o
cotidiano do cidadão vinculado ao mundo
universitário,
seja
acadêmica
ou
espacialmente, é natural que surja a
indagação pessoal de quais são os agentes
dessas transformações. É evidente que,
diante da complexidade do tema e da
percepção atrelada à cada um, existem
pontos de vista muito distintos. Divididas em
grandes grupos, as opiniões já estabelecidas
acabam influenciando a reflexão, escolha e
posicionamento individual do aluno mais
desinformado, que acaba adotando uma
visão dicotomizada. Fica como proposta,
portanto, a exposição do atual panorama
político da universidade para que, livre e de
forma consciente, possa-se definir quais as
intenções que melhor representam a vontade
do leitor.
Segundo a diretoria do Diretório
Central dos Estudantes da USP (DCE), as
propostas de intervenção podem ser
divididas
em
três
grandes
blocos:
“democracia, permanência e contra a
repressão”. Ou seja, por exemplo, as diretas
para reitor encaixam-se no primeiro, a
devolução dos blocos K e L para moradia no
segundo e a não-intervenção da PM nas
manifestações no terceiro. É defendido por
este também que é inadmissível que a
reitoria não atenda imediatamente suas
reivindicações. Logo, neste ponto de vista, é
culpa da reitoria o transtorno causado na
Universidade, haja vista que não acatou as
decisões do DCE.
30
Não obstante, é preciso notar
que muitos estudantes queixam-se de não
estarem engajados com o DCE e, muitas
vezes, nem de acordo com as decisões
tomadas. Assim, um empecilho para
qualquer modificação na estrutura da
Universidade, ou simplesmente para um
consenso pacífico, é a falta de união entre os
estudantes. Logo, sendo as propostas justas
ou não, necessárias ou não-conforme a
variabilidade das opiniões-, fica evidente que
ambos os lados estão descontentes. A falta
de sucesso no movimento é simultânea e
proporcional à infelicidade daqueles que se
sentem prejudicados por não poderem, por
exemplo, entrar no Campus em dia de prova.
Não só as propostas, mas as críticas
da oposição podem também ser agrupadas
em
dois
blocos:
autoritarismo
e
cerceamento da liberdade. O primeiro
argumenta que o DCE não é amplamente
apoiado pelos alunos e que, ao decidir em
nome dos mesmos, acaba sendo autoritário.
Assim, a luta pela implementação das
melhorias (segundo o DCE) pros estudantes
acaba sendo questionada, sendo vista mais
como um prejuízo que uma representação
pelos outros alunos. E é exatamente este
impasse que acaba fragmentando-nos e
inviabilizando qualquer concordância entre
as partes: ninguém assume que está
errado.
No que tange a questão das diretas
para reitor, tema predominante e o
“estopim” para a ocupação da reitoria e
outros protestos, esperamos esclarecer o
mecanismo de eleição para que possam
tirar suas conclusões.
Dados retirados de uma reportagem feita pelo Jornal do Campus. (Link: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2009/10/como-e-eleito-o-reitor/ ).
O caráter democrático ou não do
sistema atual é questionado por várias
esferas da universidade. Os defensores
afirmam que a eleição indireta não consiste
em um método autoritário, a lista tríplice
representaria os candidatos preferenciais da
comunidade universitária e a escolha final
nas mãos do governador também seria
democrática, uma vez que este foi eleito pela
população do Estado de São Paulo, a qual
mantém a faculdade e para a qual ela foi
criada.
Muitos opositores, por sua vez,
afirmam que o modelo da lista tríplice e a
decisão final do governador, que pode vir a
escolher o candidato menos votado dentre os
que compõe a lista, teria caráter autoritário.
Além disso, a atual distribuição dos
processos de escolha no primeiro e segundo
turno tem uma participação mínima da
comunidade
universitária,
diversas
comissões e assembleias acontecem a
portas fechadas, assim o aluno é impedido
de participar efetivamente da escolha de seu
reitor e de outras discussões importantes. O
maior requerimento, portanto, seria a
abertura de um canal direto de comunicação
.
com a reitoria, para que assim, seja possível
arquitetar um novo sistema.
Em meio a tudo isso é preciso notar,
todavia, que talvez ninguém esteja certo
mesmo. Seja nas ideias, no forma de se
expressar, na atitude perante a coletividade,
todos erraram em algum ponto. Ou pelo
menos, a entidade que representa o aluno
errou. É fundamental, portanto, que todos
tenham seus posicionamentos muito bem
definidos, a fim de que a escolha da entidade
que nos representa seja o mais absoluta
possível e possa, de fato, representar a
maioria do corpo de estudantes da USP.
Assim, qualquer erro cometido por esta
deveria ser questionado, com intuito que um
reposicionamento seja feito. E é essa
cobrança
segundo
uma
entidade
representativa que ilustra um quadro de
democracia no campus. E é neste ponto em
que poderíamos todos concordar.
31
32