MAGALHÃES, Lilian Miranda et alli. Discursos e práticas sobre a

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MAGALHÃES, Lilian Miranda et alli. Discursos e práticas sobre a
Discursos e práticas sobre a higiene na produção da culinária popular na cidade de
Salvador – Bahia
Lilian Miranda MAGALHÃES1; Laís Oliveira GALVÃO2; Luciana Labidel dos SANTOS1; Lígia
Amparo da Silva SANTOS3
1
Mestre em Alimentos, Nutrição e Saúde pela Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia. E-mail:
[email protected]; 2 Nutricionista graduada pela Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia; 3 Doutora em Ciências
Sociais pela PUC-SP e Docente Permanente do Programa de Pós Graduação em Alimentos, Nutrição e Saúde da Escola de Nutrição da
Universidade Federal da Bahia; 4 Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura-NEPAC/ Escola de Nutrição
da Universidade Federal da Bahia.
Resumo: O presente estudo teve como finalidade interpretar os sentidos atribuídos aos discursos e
práticas sobre a higiene na produção da culinária nas camadas populares estudadas bem como o
mesmo é experimentado no cotidiano. Considerado um grande centro produtor da culinária típica
baiana, o Mercado Municipal do Rio Vermelho foi eleito como campo empírico da pesquisa. O
material empírico constituído por entrevistas semi-estruturadas com cinco cozinheiras, observação
participante e pesquisas documentais foi categorizado e analisado com interlocução do referencial
teórico. Constatou-se que a adoção de práticas normatizadas, ainda que não façam parte do mundo
dos sujeitos, ocorre pelo receio da punição pelo órgão fiscalizador, demonstrando a permanência do
estigma ligado à Vigilância Sanitária. A interpenetração dos discursos biomédico e popular deu
origem a práticas híbridas de limpeza aplicadas inclusive à preparação do sarapatel, uma iguaria
popular sobre a qual ainda circundam antigas e contemporâneas idéias de impureza.
Palavras-chave: Higiene. Higiene dos alimentos. Feiras. Mercados.
1 INTRODUÇÃO
Ao historiar a higiene corporal na Europa, Vigarello (1996) afirma que as formas medievais
de limpeza pessoal se referiam às partes visíveis do corpo e já foram restritas ao vestuário. Práticas,
que em muitas sociedades, ainda permanecem ao lado de uma recente busca pela completa assepsia
através do uso cada vez mais frequente de sabonetes antibacterianos, cujo marketing promete
“eliminar 99,0% dos germes”. Assim, as múltiplas formas de conceber a higiene são construtos
sociais, resultantes de complexos processos históricos, estruturadas e reestruturadas continuamente
de maneiras diversas nas diferentes coletividades.
Do mesmo modo que o Brasil, a Bahia pode ser entendida como uma sociedade heterogênea,
onde inúmeras influências deram origem à cultura multifacetada impressa, inclusive na higiene na
produção culinária.
Na cidade de Salvador, há um amplo universo de produção e consumo das chamadas
comidas típicas populares, que definimos aqui como as “comidas de azeite” (moquecas, xinxins,
acarajés, caruru, etc) e as da “Rampa do Mercado” identificadas por Paloma Amado (2003) como
cozidos, feijoadas, sarapatel, dobradinha, maniçoba, quiabada, dentre outras, notadamente
comercializadas em feiras e mercados, dentre eles o Mercado Municipal do Rio Vermelho mais
conhecido como Mercado do Peixe (denominação adotada nessa publicação pela sua popularidade).
Considerado um grande centro da culinária típica baiana, localiza-se no bairro soteropolitano
Rio Vermelho, próximo ao Largo da Mariquita, em meio a uma remanescente colônia de
pescadores e um hotel cinco estrelas. Sua estrutura de forma retangular dispõe de dois lados, um
com vista para o mar e outro voltado para a rua. O espaço, onde antigamente eram vendidos peixes,
frutas e verduras (RADEL, 2006), com o passar dos anos, tornou-se um famoso reduto da boemia à
procura de bebidas e comidas típicas da culinária baiana em meio à madrugada, pois funcionava
ininterruptamente.
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Por se tratar de um lugar consolidado na história e cultura citadinas, uma parceria públicoprivada firmada entre a Prefeitura Municipal de Salvador e uma cervejaria para revitalizar o espaço
foi uma ação empreendida com o objetivo político de trazer benefícios para toda a população e ao
turismo, o que também contribuiria para tentar pôr fim à fama de “mercado sujo” e mal
frequentado. Além das obras estruturais, os donos de boxes passariam por um treinamento de
Manipulação de Alimentos, que foi uma “condição” para que os boxes funcionassem após a
reinauguração do novo Mercado (PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR, 2010b).
Frente a tal contexto, o presente estudo teve como objetivo interpretar os sentidos atribuídos
aos discursos e práticas sobre a higiene na produção da culinária como nas camadas populares
estudadas bem como o mesmo é experimentado no cotidiano, tendo como campo empírico o
Mercado do Peixe. Para tanto, buscou elementos não apenas nas mudanças e permanências
decorrentes do processo de “revitalização”, mas também na investigação em torno do sarapatel, um
prato secular, que possui aspectos intrigantes nas suas técnicas de preparo e parece estar perdendo o
seu lugar na cozinha baiana por conta de argumentos relacionados à higiene.
2 METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de cunho sócio-antropológico sobre os discursos e práticas de higiene
em torno da produção culinária popular soteropolitana desenvolvido no Mercado do Peixe, um
tradicional espaço de comercialização de comida popular. Sendo parte do macro-projeto intitulado
Corporalidades, Comensalidades e Alimentação Saudável na Bahia: Um estudo sobre as práticas
corporais e alimentares em camadas populares sob a ótica da promoção da alimentação saudável
empreendido por membros do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura (NEPAC)
da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (ENUFBA).
Além da pesquisa documental, foram realizadas diversas visitas ao local, cujas observações,
baseadas em roteiro construído para esse fim, foram registradas em diário de campo. No período de
Maio a Junho de 2011, entrevistas semi-estruturadas com seis cozinheiras, funcionárias de
diferentes boxes, foram conduzidas por integrantes do NEPAC-ENUFBA, tendo sido gravadas para
posterior transcrição e análise. O material empírico produzido foi devidamente analisado, buscando
fazer uma interlocução com o referencial teórico.
Respeitando a Resolução 196/96, que regulamenta pesquisa com seres humanos, o projeto de
pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética ENUFBA. Assim, o consentimento em
participar da pesquisa foi registrado através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido e as identidades das entrevistadas mantidas sob sigilo com a substituição dos nomes
das entrevistadas por siglas fictícias.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
A reforma estrutural do Mercado: Mudanças e melhorias
As entrevistadas fazem uma distinção entre o antigo e o novo Mercado, usando como marco
a reforma estrutural, quando houve a instalação de uma central de gás, depósito, subestação de
energia, nova iluminação, novos sanitários e a padronização dos trinta e seis boxes. A cozinheira
C.N.M traz um relato mais completo pelo fato de seu pai ter sido permissionário de um dos boxes
há várias décadas:
Aqui era traficante, era uma decadência, principalmente este lado. O banheiro aí
aberto, cheio de bandido, cheio de gente que não presta. Aí o interesse de todo
mundo era que tivesse a reforma. Quando a [cita a cervejaria] veio, a gente não
pensou nem duas vezes! Foi todo mundo aceitando. [...] Aqui só tinha mendigo,
usuário de drogas esse negócio, mas hoje em dia ninguém vê mais aqui.
Aparecem, mas não pra ficar como quando eles faziam moradia aqui. (C.N.M.)
Refere-se à fase “decadente” pela qual passou o point dos boêmios soteropolitanos e turistas,
que passou a ser visto como um local frequentado por mendigos, prostitutas e usuários de droga. A
“má fama”, pelas péssimas condições de estrutura, higiene e segurança, aos poucos, afastou muitos
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usuários e motivou a aceitação dos permissionários a aceitar a parceria e o contrato de
exclusividade com a cervejaria.
A “revitalização e requalificação” do Mercado do Peixe teve como um dos objetivos
“ampliar as opções de lazer dos moradores do bairro e melhorar a paisagem urbana da região, que
recebe grande fluxo de turistas” (PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR, 2010a).
O entendimento da reforma como propulsora de um processo seletivo, que afastou os
frequentadores indesejáveis, embora não seja o foco desse estudo, traz à tona a discussão em torno
da “revitalização”.
Semelhante ao que ocorreu outrora, quando os sanitaristas colocavam as condições de
higiene pública como elemento definidor do grau de civilização de um povo (SOUZA, 2007;
CHALHOUB, 1996), houve uma espécie de saneamento proposto e, de certa forma imposto, assim
como se deu em meados do Século XIX em diversas capitais brasileiras, entre elas Salvador e Rio
de Janeiro.
Nesse caso, “revitalizar” parece significar “substituir vidas”. Não se trata de eliminar os
“indivíduos inadequados”, como propuseram os movimentos eugênicos na América Latina
estudados por Stepan (2005) e sim de afastá-los com o intuito de elevar-se “ao nível dos povos
mais policiados e ricos”, como dizia Theodoro Sampaio, um dos engenheiros responsáveis pela
purificação da urbe soteropolitana no início do século XX (apud SOUZA, 2007). Em ambos os
momentos históricos, interesses econômicos são velados pelo discurso técnico da higiene.
Por outro lado, L.E.S. considera que também trouxe vantagens ligadas não apenas ao
aumento do volume de clientes, mas também à padronização dos boxes:
[...] a pia que é separada do lixo, e a pia dos pratos, entendeu? É assim, está tudo
assim azulejado, tudo limpinho. Bem melhor agora! [Fala com entusiasmo.] Antes
era tudo junto, fazia tudo junto, ficava saco de lixo lá dentro e agora não pode mais
não.
As cozinheiras parecem avaliar as melhorias com base na imagem da “cozinha higienizada”
importada do modelo americano veiculado pelas revistas femininas desde as primeiras décadas do
século XIX, descrita por Lima (1999) “com ladrilhos, boa iluminação, pia com água encanada”.
Naquela época, de acordo com Silva (2007), o processo de incorporação foi incitado pelas
autoridades médicas e apoiadas pelas autoridades públicas.
Para Mary Douglas (1991), “o nosso comportamento face à poluição, consiste em condenar
qualquer objeto ou qualquer idéia susceptível de lançar confusão ou de contradizer as nossas
preciosas classificações”. Disposições reforçadas pelo way of life estadunidense na reprodução da
imagem “clean” dos ambientes.
Ainda assim, A.P.I., que foi empregada doméstica antes trabalhar como cozinheira em um
dos boxes do Mercado do Peixe, assinala modificações no boxe, que julga necessárias:
[...] Aqui as comidas ficam expostas. Então, eu já dei opinião se caso ele [o
patrão] fosse fazer um armário, fosse assim uma coisa mais organizada, não é?
[...] Deveria mudar em relação à estrutura e colocar armários. Porque eu acho
que fica mais higiênico, não é? Sei lá. Porque tem gente que vê de uma maneira,
que é melhor ali [referindo-se às prateleiras] porque, pelo menos, vê o que tem e
o que não tem. Mas é uma coisa exposta, não é? [...] Fica chato. Então seria
assim uma coisa limpinha, mais organizada, arrumada, mais higiênica.
O incômodo demonstrado com o possível julgamento de outrem revela a acepção da higiene
como atributo moral. Assim como as trabalhadoras pesquisadas por Canesqui (2005), A.P.I. deseja
estar em conformidade com as regras, difundidas pela saúde pública e incorporadas pelas diferentes
classes sociais, traduzidas pela autora nas qualidades da “boa dona-de-casa”,”asseada”,
“caprichosa” e “ordeira” no trato com a comida e com o ambiente de trabalho, opondo-se à
“sujeira” ao “desleixo” e à “desordem”.
O curso, o discurso e as práticas de higiene
Também como uma tentativa de “limpar” a imagem do local, antes tido como “sujo”, além
da reforma estrutural, para atuar na comercialização de alimentos, os permissionários foram
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encaminhados ao Curso de Boas Práticas de Manipulação de Alimentos realizado pelo Serviço
Brasileiro de apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) em parceria com o Serviço Nacional
de Aprendizagem Comercial (SENAC) e a Vigilância Sanitária (VISA).
A obrigatoriedade da presença em sala de aula se deu pela exigência do certificado de
participação no curso durante a solicitação do Alvará de Saúde junto ao órgão municipal e o aviso
de que o cumprimento das boas práticas de manipulação seria posteriormente fiscalizado
(PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR, 2010b). No entanto, o objetivo de melhorar a
qualidade dos serviços, garantindo a segurança alimentar pode não ter sido alcançado em sua
plenitude. Pois, ao serem questionadas sobre tal capacitação, a maior parte das cozinheiras
demonstrou total desconhecimento sobre a sua realização e deram indícios de que não receberam
qualquer tipo de orientação à respeito:
Ele [O proprietário do boxe] não chegou a me passar. [...] Sabe, quando a pessoa
é dono, não tem muito tempo de estar conversando. [...] Eu vi, na realidade, que
ele tomou o curso porque eu vi o certificado. Aí eu fui e perguntei. [Simula o
diálogo] Ele: ‘Mas você também tem, né?’ Eu falei: ‘Tenho o certificado, não de
manipulação. Tenho certificado de... do curso. (M.J.S.)
Ele [o patrão] passou assim o básico, o básico. Porque a maioria eu já sabia, não
é? Porque antes eu trabalhei também em casa de família, então eu já tinha mais
uma base [...]. (A.P.I.)
Ao compor uma das três turmas formadas para o “treinamento”, que envolvia entre outros
temas, desde o cuidado básico com a manipulação dos alimentos, passando pela vestimenta
adequada e controle de estoque, os permissionários não necessariamente se tornaram
multiplicadores.
A importância dada à exposição do “certificado na parede” resulta de uma prática educativa
pontual e questionável em termos de abordagem metodológica e público alvo. Ratifica a distorcida
visão contemporânea sobre a educação em saúde examinada por Castiel e Vasconcellos-Silva
(2006). Para os autores, o fato de ter como base a responsabilização individual no controle dos
riscos que ameaçam o “patrimônio-saúde” ao lado da idéia de regulamentação da qualidade e da
eficácia das informações tidas como necessárias a esse imperativo, têm levado à “transmissão de
informações superpostas à interação e à partilha simbólica intersubjetiva como estruturadora dos
valores culturais”.
Ainda assim, é possível notar ecos do discurso biomédico na fala L.E.S, que para se tornar
cozinheira, afirma ter participado do curso básico do SENAC:
Eu aprendi muitas coisas [...] tinha que as coisas, que tem que ficar com, com
data... [pausa para lembrar-se e elaborar o pensamento] de vencimento,
entendeu? Coisa assim, não pode botar alumínio dentro do freezer, não pode
nada sem tampa, não pode misturar produto, assim... Assim, peixe com a
feijoada (Porque o peixe é cru e a feijoada é cozida) não pode colocar junto, tem
que ser tudo separadinho.
Identificação também possível no relato de M.J.S, que trabalhava como empregada
doméstica antes de se tornar cozinheira:
E lá na casa onde eu trabalhava, ela queria que eu lavasse com a bucha. [Baixa o
tom da voz, como se contasse um segredo]. Tinha bucha pra todos os alimentos.
Lá era pior ainda! Ela [a ex-patroa] era doente assim, por bactéria! Ela era louca!
[Fala sorrindo] Era mesmo! Tinha bucha pra copo, tinha bucha pra gordura, [...]
até a bucha pra limpar a mesa tinha! Para mim era tudo novidade. Mas, eu acho
que ela... num ponto ela tava certa. Apesar de [faz uma breve pausa] é um pouco
complicado você restringir tudo, não é?
A ex-patroa é apresentada pela entrevistada como alguém “doente por bactéria” que vive a
paranóia do risco de contaminação. A crítica colocada à “restrição de tudo” confirma que, a sua
própria concepção de risco não se baseia em concepções epidemiológicas e corrobora com Castiel,
Guilam e Ferreira (2010), quando afirmam que o “ambiente riscofóbico pode configurar uma
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estratégia limitante e produtora de ansiedades e inseguranças ao propor formatos restritivos de
condução do comportamento das pessoas”.
Dessa forma, é possível identificar nos discursos das entrevistadas, que o aprendizado
provém de vários grupos sociais dos quais as cozinheiras fizeram parte: a família oriunda das
camadas populares, a "casa de família" onde trabalhou como empregada doméstica, a sala de aula
do SENAC e o Mercado. Nesses ambientes podemos identificar a figura feminina da mãe, da expatroa, da "moça que ensinou no curso” e do atual patrão. Cada um deles parece delinear, a seu
turno, os discursos e as práticas relacionadas à higiene.
Apesar dos conhecidos e conflitos das acepções populares com o discurso biomédico, é
possível perceber a sua permeabilidade. Confirmando o processo destacado por Minnaert & Freitas
(2010) em que o saber se constrói e se molda ao cotidiano como uma adaptação à ordem
referencial.
Sobre as práticas de higiene
Em se tratando de um construto social, as práticas de higiene adotadas no Mercado são o
resultado das influências discutidas anteriormente.
Na minha casa eu uso veja... só. Sabão em pó. Aqui eu também uso sabão em pó,
uso Q’boa, usa também detergente, só que detergente apropriado pra a gordura.
(L.E.S)
A rotina de trabalho e a higienização do boxe guardam semelhanças com as práticas
provenientes do ambiente doméstico, diferindo apenas nos tipos de produtos de limpeza,
considerados “mais fortes” como se fossem armas para combater inimigos mais perigosos.
Reproduzindo o pensamento bélico ligado ao mundo dos microorganismos e demonstrando a
permanência do sistema erigido no pensamento relacionado à higiene no século XIX, em que de
acordo com Vigarello (1996), o micróbio era a sua referência negativa e a assepsia a referência
idealizada.
Existem ainda tentativas de realizar adequadamente os procedimentos “ensinados no curso”.
M.J.S. descreve o procedimento para higienização da alface. Afirma colocar em remolho com uma
quantidade inespecífica de água sanitária e deixar as folhas submersas até o momento de servir,
quando enxágua, provavelmente com água da torneira. Além disso, embora tenha feito críticas à
ex-patroa, afirma que para facilitar o seu trabalho e melhorar o ambiente. M.J.S. trouxe consigo
reflexos da concepção de ordem: o uso exclusivo de utensílios de limpeza destinados à
higienização de ambientes. Instituiu o uso de uma vassoura para a cozinha e outra para a área de
atendimento. Fala com nojo e embaraço da urina dos cachorros, antigos frequentadores do Mercado
do Peixe desde antes da reforma, que ainda circulam aos bandos entre os clientes em busca de
alimentos. Nesse caso, a identificação não é feita por cor ou pelo nome escrito no objeto, como
fazia a ex-patroa e sim pelo local onde fica guardada.
São práticas adquiridas ao longo da vida, demonstrando que a apreensão parcial da técnica
coaduna com a ação seletiva das crenças pelos quais os indivíduos interpretam, aceitam ou rejeitam
as novas informações, referida por Adam & Herzelich (2001). Derivam, portanto do meio em seu
contexto sócio-cultural, capaz de condicionar costumes que o sujeito reproduz e produz, num
processo de bricolagem instituído em seu cotidiano, do qual fala Michel de Certeau (1998).
Por outro lado, a fiscalização frequente da Vigilância Sanitária dá origem a outras formas de
higiene condicionadas à possibilidade da verificação do local pelos fiscais.
Para L.E.S. a esponja de lavar pratos deve ser substituída semanalmente e afirma: “Querendo
ou não tem que trocar”. Justifica tal prática pelo acúmulo de sujidades e teme que o bar seja
multado caso haja uma inspeção do órgão e o fiscal, nas suas palavras, “ver que a bucha está com
fungos”.
A frequência da substituição da esponja tem relação com receio da punição por cometer uma
infração, refletindo a permanência do estigma da ação policialesca do órgão. Entretanto, isso não
significa que faça parte da sua própria concepção. É algo que, deve estar acima da vontade
"querendo ou não" tem que ser feito. Rego, Barreto e Killinger (2002), investigaram as acepções
acerca do lixo por mulheres residentes na periferia soteropolitana e verificaram que o que
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consideram “velho”, mas que pode ser útil, não é classificado como lixo. O lixo é definido pelos
sujeitos como o que não serve para ser utilizado e, portanto, “aquilo que não pode constituir-se num
produto de uso, venda ou troca”.
A iminência da fiscalização também origina a higiene “performática” citada por C.N.M.
referindo-se ao que é necessário usar: “Luva, o cabelo não pode ficar ali. Ó como minha irmã está
ali”. Entretanto, a maneira de empregar tais artefatos não permite que cumpram a função de
proteger os alimentos de contaminação, pois a irmã à qual se referia estava de saia jeans, sandálias,
tinha as unhas cortadas, o cabelo coberto com touca e usava brincos. Sua irmã, que estava na
cozinha, usava calça jeans, sandálias, grandes brincos e tinha apenas parte dos cabelos cobertos
pela touca.
Ainda que nas últimas décadas tenham sido implementadas mudanças no sentido de
desvincular o histórico estigma policialesco, a ação punitiva da Vigilância Sanitária ainda é temida.
Além disso, embora sejam múltiplas as acepções de segurança sanitária analisadas por Barbosa e
Costa (2010) junto a representantes e documentos emitidos pelo citado órgão, os sentidos
atribuídos parecem ainda diferir da forma como pensam as camadas populares.
Uma comida impura: a acepção do Sarapatel
Presente nas refeições do homem, desde a pré-história, o consumo de carne suína por muito
tempo esteve associado à “relação caça-homem-poder” e compôs não apenas a mesa de celebrações
e banquetes ao longo dos séculos, mas também identidades da nossa gastronomia. No Brasil, ainda
que envolvido em diversos sistemas simbólicos, o costume foi mantido e inúmeras preparações tem
a “carne de porco” como ingrediente principal (LODY, SOUZA, e BOSISIO JÚNIOR 2003), entre
elas o sarapatel, é um prato típico baiano similar do sarrabulho português pois, ambos têm em
comum vísceras e sangue suínos, esse último ingrediente responsável pela coloração característica
Netto (1986).
Com relação às técnicas de limpeza utilizadas no preparo do sarapatel, as cozinheiras relatam
detalhadamente o que é necessário fazer.
Eu abro o saco, tiro ele, abro aquelas tripazinhas. As que estiverem limpas não
preciso fazer, as que tiverem com aquela gordura, com sebo, que vem liso eu vou
tirando, vou separando. Vou tirando as partes que eu acho que são nojentas, que
são sujeira. Aí depois eu pego, passo limão em tudo. Depois eu venho com uma
baciazinha ou então com uma panela maior, coloco o limão com água e coloco ele
de molho. Depois de 10 minutos [...] ou mais, enquanto eu estou preparando todo o
tempero dele, ele tá de molho. Depois que eu preparo o tempero [...], lavo todinho
com outra água, tiro o limão, lavo com outra água. Seco um pouquinho, aperto e
começo a fazer o processo do tempero. (M.J.S.)
O ato de lavar muitas vezes em água corrente, deixar de molho no limão, lavar com vinagre e
“aferventar” revela sucessivas tentativas de retirar o que consideram sujidades do sarapatel e tornálo seguro. Tais práticas guardam semelhanças com os procedimentos descritos por Querino (1922),
que afirmava: “Os intestinos são bem lavados com limão e água e depois de aferventados é
escorrida a água. O mesmo processo se aplica ao bofe, coração, fígado, rins e língua”.
Assim, as cozinheiras confirmam a permanência das idéias de impureza, que cercam tal
alimento. Defendem que tais práticas, ao menos reduzindo a contaminação que associa às vísceras
suínas. M.J.S menciona que “tudo que é de porco tem que ser muito mais limpo do que o normal”
pelo fato de comer “porcaria”.
Segundo Lody, Souza, e Bosisio Júnior (2003), até as décadas de 50 e 60, os grandes
suinocultores brasileiros criavam seus animais em grandes currais e alimentavam-nos dos resíduos
da safra. Os autores falam como se isso fizesse parte de um passado remoto e apontam novas
técnicas que asseguram a qualidade sanitária dos produtos e derivados. Entretanto, é sabido que até
hoje, ainda habitam os chamados “chiqueiros” ou “pocilgas” e são alimentados com “lavagem”
(restos de alimentos). Uma das causas do temor do consumo fora do ambiente doméstico, como
evidencia o relato de M.J.S. ao ser perguntada se comeria de casa:
Não [Fala em tom incisivo]. Não vou mentir pra você. Eu só como o meu e de
minha irmã. [...] Aí então, tipo assim, eu não comeria na rua sarapatel. [...] E eu
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vejo também como ele vem, como ele é sujo. Então você só sabe as coisas quando
você passa a fazer. [...] Esse negócio na rua assim... Será que vai ser limpo igual
como eu limpo? Sabe? Aí eu prefiro só comer o que eu sei [Fala com ênfase], que
é bem limpo na minha casa. Mesmo não sabendo antigamente, muito como era
feito o sarapatel, eu não comia. [...] Eu gosto do sarapatel, só que eu prefiro comer
ou que eu faço ou o que minha irmã faz. O que meu marido também faz porque é
bem limpo, não é? (M. J.S.)
Assim, o sarapatel não é considerado pelas entrevistadas como um prato seguro. Advertem,
que é preciso ter muito cuidado com a sua procedência e modo de fazer. Sendo assim,
preferencialmente o consomem quando a iguaria foi preparada por uma pessoa confiável, ou seja,
pertencente ao seu círculo de amizade ou “da família”. Tais restrições demonstram as classificações
estudadas por Roberto Damatta (1997): a casa é o local mais seguro, ao contrário da rua.
Além de todas as questões que envolvem o sarapatel, o cheiro é outra característica
importante no momento da preparação. M.J.S. explica: “[...] quando vem abafado [tampado] o
cheiro vem um pouquinho desagradável, aí tem que escaldar bastante, porque se não ele não fica
bom”.
Todo o processo de lavagem e deixar de molho no limão e “aferventar” são importantes para
retirar o cheiro “forte” característico das vísceras, que é causado pela gordura, daí a importância de
se retirar a gordura, o “sebo que fica dentro das tripas”. A ojeriza ao cheiro parece ser uma
reminiscência da teoria miasmática do Século XV, quando por infecção se entendia a "ação funesta
exercida por “miasmas mórbidos" provenientes de substâncias animais ou vegetais em putrefação
exerciam no ar ambiente (CHALHOUB, 1996).
No cotidiano, a utilização de sangue de animais nas preparações culinárias ainda gera em
algumas pessoas o medo de contaminação, associando a sua utilização à falta de higiene.
Às vezes, quando vem fresco o sangue vem durinho e às vezes quando eu
congelo o sangue fica assim meio mole. Aí eu só boto mesmo pra ter que dar o
gosto porque teve uma vez que o cliente perguntou a mim assim: 'O seu sarapatel
é com sangue?' Eu falei: 'Tem'. Então é sinal que tem gente que gosta com
sangue, não sem sangue, entendeu? Na minha casa eu faço sem sangue [...]
porque as vezes você fica com nojo. Eu como aqui com sangue, mas assim em
casa particularmente, eu prefiro tirar.” (M.J.S.)
Tal temor também pode ser associado ao fato do sangue ser considerado um elemento
sagrado, base de rituais sacrificiais e hematofágicos em algumas religiões, como o Candomblé e
Islamismo citados por Lody (2008). Ainda na religião dos Hebreus, o sangue é considerado uma
fonte de vida; não se deve tocar-lhe a não ser em algumas circunstâncias sagradas, como as do
sacrifício (DOUGLAS, 1991). Portanto, nem sempre é visto como algo que deva ser acrescentado
às preparações, como demonstra a preferência pela sua exclusão da preparação, relatada pelas
colaboradoras do estudo.
As mudanças na composição do prato corroboram com Santos (2008) quando afirma, que
“os segredos e mistérios que perpassam a preparação do sarapatel e outras iguarias populares estão
sendo perdidas nas memórias domiciliares”. Os achados explicitam ainda a manutenção e recriação
de práticas de limpeza aplicadas à esse alimento.
4 CONCLUSÃO
O presente trabalho buscou interpretar os sentidos atribuídos aos discursos e práticas sobre a
higiene na produção da culinária nas camadas populares, analisando as mudanças e permanências
decorrentes do processo de revitalização de um dos redutos das comidas típicas populares baianas.
Os achados apontam para a reforma estrutural como um reordenamento do espaço, sob os
moldes americanos veiculados no Brasil desde o século XIX e foi vista com bons olhos pelas
colaboradoras do estudo, cujo discurso vincula a higiene à estética e à civilidade. Provocaram ainda
a discussão desse empreendimento como uma renovada ação de cunho higienista de consequências
eugenistas.
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Constatamos que mudanças na estrutura física, não necessariamente interferem nos
fundamentos da estrutura simbólica, que envolve a cultura e suas formas de manifestação, entre
elas o modo de fazer cotidiano dos alimentos. Pois, como vimos, a adoção de práticas
normatizadas, ainda que não façam parte do mundo dos sujeitos, ocorre pelo receio da punição pelo
órgão fiscalizador, dando origem à higiene performática e demonstrando a permanência do estigma
ligado à Vigilância Sanitária.
A interpenetração dos discursos biomédico e popular deu origem a práticas híbridas de
limpeza aplicadas inclusive à preparação do sarapatel, uma iguaria popular sobre a qual ainda
circundam antigas e contemporâneas idéias de impureza e interferem diretamente no seu consumo
e forma de preparo.
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