329 - Universidade Católica Portuguesa

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329 - Universidade Católica Portuguesa
RECENSÕES
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BAYLIN, Bernard. Atlantic History. Concepts and Contours
(Cambridge/London, Harvard University Press, 2005) 149 pp.
Bernard Baylin, professor emérito da Adams University e director
do Seminário Internacional sobre a História do Mundo Atlântico na
Universidade de Harvard é um investigador de renome no panorama
mundial, tendo já sido agraciado com os Prémios Pulitzer e Bancroft,
pela publicação de The Ideological Origins of the American
Revolution, e com o National Book Award, pela publicação de The
Ordeal of Thomas Hutchinson.
Em Atlantic History. Concepts and Contours, publicado, em
2005, pela Harvard University Press, Baylin confirma a progressiva
relevância que o mundo académico tem dado ao domínio da história
atlântica sob uma óptica comparada. O ensaio é emoldurado pela
tentativa do historiador em definir não só as origens e os posteriores
desenvolvimentos da noção de “história atlântica”, como também a
centralidade deste conceito na compreensão do momento presente,
sobretudo, em função da progressiva importância dada pelos
historiadores ao Atlântico no século XX, na sequência dos dois
conflitos mundiais.
O ensaio de Baylin ocupa um espaço de relevo no quadro da
produção académica sobre a história transatlântica, na medida em que
o autor se propõe examinar o longo período que se estende dos
primeiros contactos da Europa com o hemisfério ocidental aos
movimentos de independência nas antigas colónias sob domínio
europeu até à revolução industrial e os seus efeitos na globalização.
No entanto, o peso que concede ao papel desempenhado pelo Reino
Unido e, posteriormente, pelos Estados Unidos, no (des)equilíbrio de
forças políticas e económicas, na investigação sobre as relações entre
os diferentes povos e culturas que têm o Atlântico em comum, frustra,
em alguma medida, o leitor do mundo atlântico. Frustração que deriva
da pouca (ou quase nenhuma...) atenção prestada às fontes históricas
sobre o papel de inequívoco relevo desempenhado pelos portugueses,
sobretudo, quando se consideram as primeiras descobertas do
chamado “Novo Mundo”, os diferentes ciclos do império português e
a sua consequente influência no Brasil e em várias partes de África até
aos nossos dias. Tal crítica não é nova, uma vez que a lacuna de
ordem bibliográfica, com evidentes repercussões na problematização
do conceito de “história atlântica”, já havia sido apontada por Timothy
Coates, na recensão que fez a este volume, em e-JPH (Vol. 3, number
1, Summer 2005).
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Apesar da inequívoca seriedade e importância do ensaio aqui em
discussão, o leitor do mundo atlântico indaga-se, após a leitura do
livro, sobre as palavras do autor, no prefácio, quando afirma que
“[h]istory is what has happened, in act and thought; it is also what
historians make of it”. Cremos que a lacuna acima referida só poderá
ser preenchida quando mais historiadores interessados na história de
Portugal, do Brasil e dos países africanos de expressão portuguesa e
nas especificidades da empresa colonial portuguesa por oposição ao
império britânico tiverem a chance de partilhar o seu saber com os
intervenientes nos seminários internacionais sobre o mundo atlântico.
Quando isto acontecer, as palavras de Baylin no prefácio assumirão
uma outra proporção, pois, afinal de contas, “history is also what
historians make of it”.
Adriana Alves de Paula Martins
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PETRÓNIO, Satyricon. Versão portuguesa de Delfim F. Leão
(Lisboa, Livros Cotovia, 2005) 245 pp.
Encontra-se finalmente acessível uma excelente e fidedigna
versão para língua portuguesa do Satyricon de Petrónio. De facto, a
tradução feita por Delfim Leão e publicada sob a chancela dos Livros
Cotovia vem colmatar uma lacuna que se fazia sentir – a inexistência
em Portugal de uma tradução do Satyricon feita a partir do original
latino. A tradução portuguesa existente – publicada pela EuropaAmérica – foi feita a partir de uma tradução francesa, pelo que não é,
naturalmente, fidedigna ao original latino.
É com satisfação que saudamos esta versão do Satyricon que,
para além da sua qualidade intrínseca, de que falaremos mais adiante,
seduz também pela apresentação estética do livro e pela sua qualidade
gráfica.
Delfim Leão, professor e investigador da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra e tradutor de obras gregas e latinas de
autores como Sólon, Heródoto, Aristóteles (a sua versão portuguesa
da Constituição dos Atenienses foi distinguida, em 2004, com o
Prémio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa da
FCT/União Latina), Plutarco e Marcial, fez a sua versão a partir do
texto latino fixado por Konrad Müller (Petronius Satyrica, Artemis,
Zürich, 41995).
Em nota preliminar, Delfim Leão chama a atenção para o facto de
o Satyricon “ser uma obra truncada no início e no fim” e apresentar
ao longo da obra “frequentes lacunas de pequena dimensão” que
aparecem identificadas na tradução “com um asterisco ou, mais
raramente, com reticências”. Esclarece ainda ter optado “por uma
apresentação mais próxima do leitor moderno, em particular na
indicação do discurso directo, que torna a leitura mais clara e
agradável do que a escrita contínua do original.” Optou também – e
bem – por dividir o texto em capítulos e estes em parágrafos
numerados, indo ao encontro da convenção habitual para os textos
clássicos.
A anteceder a tradução, Delfim Leão apresenta uma breve
introdução (pp.9-25), na qual aborda de forma sucinta e leve, como
convém numa edição que se pretende para um público abrangente, os
tópicos mais relevantes para a compreensão da obra e do seu autor.
Começa por apresentar o Satyricon como “um caso especial e único”
na literatura latina, “quer pelo tema, quer pela estrutura, quer pelo
estilo” (p.9), salientando o interesse que, por um lado, a obra desperta
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nos estudiosos do património cultural da Antiguidade, e a sedução
que, por outro lado, consegue provocar no leitor comum que contacta
pela primeira vez com o imaginário clássico. A questão dos problemas
relativos à datação e autoria da obra é tratada de forma breve e sucinta
ao longo de três páginas, nas quais Delfim Leão refere os vários
elementos que sustentam a datação tradicional (séc. I) e admite
partilhar da opinião dominante que identifica “o Petronius Arbiter dos
códices com o elegantiae arbiter ‘árbitro das elegâncias’ da corte de
Nero” (p.12). Aborda de seguida (pp.13-14) a questão algo
controversa do título, controvérsia que levou o tradutor a optar - bem
na nossa opinião - por mantê-lo no original latino, embora, em nota de
rodapé, reconheça como defensável também uma versão mais próxima
do português: Satíricon. Segue-se uma breve síntese da acção (pp.1519), na qual é dado o devido destaque ao episódio central da obra: o
Festim de Trimalquião, “um verdadeiro microcosmos da sociedade da
Roma imperial no séc. I da nossa Era” (p.17). Termina a introdução
com o retrato de Petrónio feito pelo historiador Tácito nos Anais
16.18-20.2, passo que Delfim Leão apresenta em tradução da sua
autoria. O Petrónio retratado por Tácito aparece como alguém que
passava os dias “mergulhado no sono e as noites nas ocupações e
prazeres da vida. Tal como a outros o zelo, assim a ele a indolência o
guindara à fama; e, no entanto, não era considerado um libertino nem
um dissipador, como a maioria dos que esbanjam os bens, mas sim
homem de gostos requintados.”
No que diz respeito à tradução, é evidente a qualidade da versão
feita por Delfim Leão que, uma vez mais, revela toda a sua
competência na tradução de textos clássicos, tendo conseguido, neste
caso particular, manter o estilo “leve e escorreito” de Petrónio,
arranjando soluções felizes para a tradução, nem sempre fácil, de
expressões correspondentes aos diferentes níveis de linguagem
presentes no Satyricon. Profundo conhecedor do original latino – já
estudara a obra de Petrónio no âmbito da sua dissertação de mestrado:
As ironias da Fortuna. Sátira e Moralidade no Satyricon de Petrónio
(Colibri, Coimbra e Lisboa, 1998) –, Delfim Leão conseguiu uma
versão portuguesa clara, expressiva e fidedigna, em que procurou,
com bastante êxito, manter a veia satírica e a diversidade e riqueza
linguística do texto latino.
Sem querermos, naturalmente, retirar qualquer brilho à inegável
qualidade desta versão do Satyricon, a verdade é que numa tradução
sempre se podem apontar algumas pequenas discordâncias, muitas
delas de carácter subjectivo; é o que acontece, por exemplo, em 30.1,
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onde optaríamos por ‘feixes’ em vez de ‘os feixes’ e por ‘onde estava
escrito’ em vez de ‘onde havia esta dedicatória’; em 35.2 usaríamos
‘pois’ em vez de ‘então’; em 38.2, traduziríamos ad summam por ‘em
suma’ – como, aliás, Delfim Leão fez em 37.10 – em vez de ‘ou seja’;
em 48.1, na proposição ‘se o vinho lhes não agrada’, substituiríamos o
‘lhes’ por ‘vos’; em 49.4, 49.5 e 49.7, Delfim Leão traduziu o mesmo
verbo latino – exinterare – sempre de maneira diferente:
‘desentranhado’, ‘tirar as tripas’ e ‘esventrar’, quando talvez fosse
preferível optar sempre pelo mesmo verbo, à semelhança do que
acontece no texto latino; pensamos que, em 50.4, a versão de scilicet
ficaria mais expressiva se tivesse sido traduzida por ‘é claro que é’,
em vez de um simples ‘claro’. Enfim, são apenas reparos subjectivos
de alguns passos cuja tradução nos agrada um pouco menos, mas não
passam disso.
O tradutor optou por não introduzir notas ao texto, embora,
curiosamente, apareçam ao longo da tradução três notas (pp.59, 65 e
66), cuja inclusão não se compreende, já que a opção foi,
efectivamente, pela ausência de notas. Esta opção é, aliás, discutível,
sobretudo se tivermos em conta que esta edição se dirige a um público
alargado e não somente a especialistas da literatura latina. Se, por um
lado, tal opção permite que a tradução possa ser lida sem interrupções,
por outro, pode dificultar a compreensão do texto, já que um leitor
menos familiarizado com a cultura clássica nem sempre terá todos os
conhecimentos necessários para um pleno entendimento da obra,
problema que facilmente se resolveria com algumas sucintas notas
explicativas que fornecessem dados e elementos essenciais a uma
melhor compreensão do texto.
O volume encerra com uma “Bibliografia selecta”, composta por
edições críticas, traduções e comentários, e por estudos.
É pena que numa edição tão cuidada e com tamanha qualidade
gráfica se tenham deixado escapar algumas gralhas (p.26: ‘lonto’ por
‘longo’; p.33 (6.2): ‘eproveitei’ por ‘aproveitei’; p.102 (60.7):
‘Agusto’ por ‘Augusto’; p.149 (91.2): ‘fraqueza’ por ‘franqueza’;
p.150 (91.9): ‘amizave’ por ‘amizade’; p.159 (97.6): ‘a leitozito’ por
‘o leitozito’; p.169 (102.15): ‘acaso’ por ‘Acaso’; p.173 (105.11):
‘inflingido’ por ‘infligido’; p.183 (111.4): ‘colcada’ por ‘colocada’;
p.240 (140.13): ‘manã’ por ‘maná’). Sabemos que não é fácil eliminar
completamente as arreliadoras gralhas – há sempre alguma que
consegue iludir a nossa atenção – mas a verdade é que, numa edição
com a qualidade gráfica que esta apresenta, o esforço para as erradicar
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tem de ser ainda maior do que o habitual, porque as gralhas
sobressaem mais.
Em suma, congratulamo-nos com o aparecimento da primeira
versão portuguesa, feita a partir do original latino, “do romance ou
proto-romance” Satyricon, uma obra que, não sendo certamente, como
bem reconhece Delfim Leão, “a obra mais importante ou influente que
nos chegou da tradição greco-romana (...), a forma como o seu autor
soube reescrever a produção literária que lhe era anterior, inserindo-a
num retrato da Roma imperial, simultaneamente crítico, refinado e
divertido, faz de Petrónio, quase vinte séculos volvidos sobre a sua
morte, um dos autores mais interessantes e modernos que a
Antiguidade nos legou”.
Delfim Leão termina a introdução a esta versão portuguesa do
Satyricon dizendo que cabe ao leitor confirmar se a sua publicação foi
em boa hora. Pois nós não temos quaisquer dúvidas, foi,
efectivamente, em boa hora, que a Cotovia publicou esta belíssima
tradução que permite ao leitor português, através de uma versão
fidedigna e numa edição de inegável qualidade gráfica e científica, ter
o prazer de conhecer o excêntrico novo-rico Trimalquião e de entrar,
na companhia de Encólpio e de Gíton, entre outros, no mundo de
paródia, humor e ironia que envolve esta sedutora e narrativamente
moderna obra do séc. I.
Aires Pereira do Couto
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MCEWAN, Ian. Primeiro Amor, Últimos Ritos. 3ª ed. trad.
Ana Falcão Bastos. (Lisboa, Gradiva, 2005).
Últimos Ritos, Primeiro Amor é a tradução portuguesa de First
Love, Last Rites (1975), a polémica obra de estreia do prosador e
argumentista inglês Ian McEwan, vencedora do Somerset Maugham
Award. Trata-se de um conjunto de oito narrativas, que revelam
alguns temas centrais da escrita de McEwan: a perda da inocência; a
sexualidade e a perversão; o crime e a culpa. Estes assuntos são
abordados numa perspectiva neo-gótica, que arrisca explorar
comportamentos sexuais desviantes como o incesto, a pedofilia, ou o
simples voyeurismo. Nesta mistura, aperfeiçoada nos três livros
seguintes (In Between the Sheets, The Cement Garden, e The Comfort
of Strangers), reside a singularidade da escrita de McEwan, mas
também a repulsa que alguns leitores sentem perante as suas histórias.
Longe de se desculpar, McEwan assume despudoradamente o
desejo de perturbar, confrontando-nos ora com medos profundos ora
com questões morais, de forma esbater a linha que separa a
normalidade do estranho. Numa entrevista, confessa: “Quando
comecei a escrever, aos 20 anos, queria chocar, escapar da cinzenta e
provinciana literatura inglesa e seguir William Burroughs, Philip
Roth, John Updike e Henry Miller, que pareciam estar em busca de
algo mais ambicioso e arriscado”.
Nesta linha, várias das narrativas de Últimos Ritos, Primeiro
Amor apresentam temas ousados e desconcertantes. Por exemplo, o
conto de abertura, intitulado “Geometria no espaço”, gira ao redor do
falo do capitão vitoriano Nicholls, conservado em formol, e deixado
ao narrador, em herança. A história seguinte, “Caseiro”, revela a
primeira experiência sexual de um jovem de catorze anos com a irmã,
uma criança ainda, quando brincavam às mamãs e aos papás. O conto
mais atrevido talvez seja “Borboletas”, onde a morte e o amor — os
eternos temas da escrita — se mesclam com a pedofilia. O leitor segue
os passos de um jovem que obriga uma rapariga a excitá-lo
sexualmente, um acto que resultará num desfecho tão fatídico quanto
inesperado. Todos estes contos são relatados na primeira pessoa,
criando a sensação de confissões sexuais, e aumentando a
cumplicidade entre o leitor e o narrador.
Nem todos os críticos apreciaram a ousadia de McEwan, que
pode ser também confundida com um desejo de notoriedade, através
do sucesso de escândalo. Neste contexto, a recepção a Últimos Ritos,
Primeiro Amor foi díspare, mas não deixou ninguém indiferente.
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Alguns analistas deploraram a alegada imoralidade das narrativas, ao
ponto de alcunharem o autor de Ian Macabre, ou o de o classificarem
como um “literary psychopath”. Pelo contrário, outros saudaram-no
como um talento a seguir com interesse e gosto — e McEwan não os
desapontou.
À distância de quase três décadas, e com a moderação que a
passagem do tempo concede, parece-me justo relevar algumas das
particularidades estilísticas de McEwan. Agrada-me sobretudo a sua
aptidão para criar atmosferas, por vezes densas ou próximas ao
realismo mágico, mas sempre verosímeis. Como afirma um crítico do
New York Times, “Ian McEwan's fictional world combin[es] the
bleak, dreamlike quality of de Chirico's city-scapes with the strange
eroticism of canvases by Balthus. Menace lies crouched between the
lines of his neat, angular prose, and weird, grisly things occur in his
books with nearly casual aplomb”.
Um dos contos mais atmosféricos de Últimos Ritos, Primeiro
Amor é precisamente o que dá título à colectânea de contos e a remata.
Trata-se de uma pequena novela que relata a obsessão sexual entre o
jovem narrador e uma rapariga, (Sissel), presenciada pelo irmão desta.
As metáforas originais, as comparações engenhosas e as descrições
pormenorizadas resultam num ambiente visualmente evocativo. O
realizador Jesse Peretz notou esta qualidade e adaptou o conto a filme,
em 1998, com mais arte do que êxito comercial. Outros trabalhos de
McEwan já tinham sido transpostos para o cinema, a saber: The
Comfort of Strangers (Paul Schrader, 1990), The Cement Garden
(Andrew Birkin, 1993), The Innocent (John Schlesinger, 1993).
O talento de McEwan revela-se também na forma como explora,
com humor e uma pontinha de ironia, comportamentos sexuais que
ainda são tabu na sociedade contemporânea. Ao escolher adolescentes
para protagonizar as suas histórias, o autor permite-nos, mais do que
um regresso nostálgico ao paraíso perdido da juventude, uma
reinterpretação do acto biológico e social do crescimento. Neste
sentido, alguns dos actos eróticos das personagens podem ser lidos
como experiências importantes em busca da identidade, e não como
perversões vazias ou meramente destinadas a chocar o leitor. Os
narradores de “Caseiro” ou de “O último dia do Verão”, por exemplo,
são inocentes e ingénuos, nas suas descobertas e reflexões, porque a
força da sexualidade, aliada à inexperiência, os controla mais do que
eles a controlam. O que eventualmente surpreenderá os leitores é a
naturalidade quase adâmica dos seus actos, e a sensação de que,
apesar de tudo, os narradores são jovens vulgares.
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No entanto, Últimos Ritos, Primeiro Amor não é um livro perfeito
e as limitações, naturais numa obra de estreia, podem ser detectadas
numa leitura atenta. Mesmo ao folhear o livro, apercebemo-nos, pela
mancha tipográfica, da quase ausência de diálogo, o que é estranho, se
tivermos em conta que as falas, frequentes na narrativa
contemporânea, revelam a personalidade dos actantes, fazem
progredir a acção e concedem vivacidade à história. Por outro lado,
algumas conversas entre as personagens, sobretudo no conto
“Borboleta”, pecam pela falta de fluidez e de naturalidade.
O próprio autor, em entrevistas que tem concedido, demonstra
algum embaraço acerca desta obra de estreia. Sem a enjeitar de todo,
prefere considerá-la um degrau necessário à sua maturidade como
homem e escritor. Com o romance A Child in Time, vencedor em 1987
do Whitbread Novel of the Year Award, McEwan afasta-se do
ambiente neo-gótico. Nesta obra e nas seguintes investe noutros
géneros literários (nomeadamente o guião cinematográfico), alarga as
suas temáticas, e torna-se mais permeável às influências de Harold
Pinter, Peter Schrader ou Evelyn Waugh. Das obras anteriores,
McEwan trouxe a elegância do estilo, o conhecimento do espírito
humano e a ironia inteligente — qualidades que desenvolverá ao
longo dos anos e que lhe valeram um espaço nas estantes dos leitores,
e um lugar cativo no cânone literário da literatura inglesa.
João de Mancelos
Cristina de Sousa PIMENTEL, Delfim LEÃO, José Luís
BRANDÃO (Coordenação), Toto notus in orbe Martialis.
Celebração de Marcial 1900 anos após a sua morte. (Coimbra e
Lisboa, Universidade de Coimbra e Universidade de Lisboa, 2004)
327 pp.
Este conjunto de estudos dedicados a Marcial corresponde às
actas do Colóquio, organizado em Março de 2004, pelo Instituto de
Estudos Clássicos e Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da
Universidade de Coimbra e pelo Departamento de Estudos Clássicos e
Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, destinado a
comemorar os dezanove séculos passados sobre o desaparecimento de
Marcial. As comunicação reunidas nesta edição reflectem esses dois
dias de jornadas científicas (que decorreram em Lisboa e Coimbra) e
cobrem aspectos diversificados da obra e figura de Marcial, da
natureza e temática dos seus epigramas, da sua filosofia de vida, dos
seus predecessores, bem como dos seus seguidores.
Abre a colectânea uma poética visão de alguns momentos da vida
de Marcial, evocados pelas suas cinzas, lançadas eventualmente ao rio
Tejo, perto de Bílbilis, sua terra natal, onde o poeta passou o último
período da sua vida, depois de 34 anos passados em Roma. O texto “A
cinza falante do poeta. Na celebração dos 1900 anos da morte de
Marcial” está escrito com a sensibilidade e mestria a que o Doutor
Walter de Medeiros já nos habituou.
Segue-se um conjunto de artigos diversificados que, no dizer dos
coordenadores, “abordam aspectos como a ligação entre a vida do
poeta e os epigramas que escreveu, os reflexos das circunstâncias
históricas e sobretudo políticas na sua obra, a presença de linhas
temáticas, tão importantes como inesperadas num epigramista (como
o amor e a morte), ou debruçam-se sobre considerações de âmbito
sociológico e de história das mentalidades. Numa análise centrada em
aspectos específicos dos Epigramas, observam-se a perspectiva do
poeta relativamente ao teatro, que afinal está presente, ainda que
doutra forma, nos seus poemas; o lugar, papel e significado das
referências, nos epigramas, aos balnea, e o prisma pelo qual Marcial
vê e aprecia os autores, gregos e latinos, que o precederam. Há ainda
espaço para analisar a influência de Catulo na produção epigramática
de Marcial, e para observar de que modo Marcial e Petrónio trataram
o tema do “novo-rico” e que género de personagens são o Zoilo dos
Epigramas e o Trimalquião do Satyricon. Por fim, dois artigos
abordam a recepção de Marcial e a forma como a sua obra foi lida,
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entendida e assimilada, quer pelos autores cristãos da Antiguidade
tardia e da Idade Média, quer, de modo específico, nos autores
espanhóis que, até ao séc. XVII, escreveram em latim. ” (p. 3-4)
No primeiro desses artigos, “Política e História nos Epigramas de
Marcial”, Maria Cristina Pimentel debruça-se sobre a estratégia de
adulação de Marcial ao poder, estudando os Epigramas dirigidos não
aos Imperadores, mas a personalidades que lhe eram próximas, que
teriam o poder de o proteger e de recomendar a sua poesia.
José Luís Brandão destaca o tratamento de Marcial dado aos
temas do amor e da morte, e particularmente a sensibilidade do poeta
face à morte inesperada e prematura dos amigos, aos quais, por vezes,
não pode prestar honras fúnebres, por terem morrido longe, e face à
morte dos seus próprios servos, vítimas de uma sorte cruel. São
expressões sinceras de sentimento, estas composições, pois, como diz
o autor: “Podemos duvidar até de certas manifestações de amizade:
acaso ditadas pela circunstância ou pela adulação. Mas dificilmente
duvidamos da sinceridade das expressões de afecto para com os
amigos mortos ante diem. E mais convincente se torna o lamento, se
os pranteados não passam de simples escravos, para mais crianças. É a
morte que arranca à pena do poeta a maios pura e sentida expressão do
amor.” (p. 34)
Jean Noel Robert pontua com dois artigos: “Société et cultus à
l’époque de Martial” e “Virtus Romana et Taedium Vitae. Remarques
sur l’évolution des mentalités et da la morale à l’époque de Martial”,
dois estudos sobre a sociedade em que se movimenta Marcial. O autor
apresenta Marcial como um poeta realista, que oferece a pintura de
uma sociedade em transformação, ao nível das mentalidades, desde o
final da República. Sentindo-se pobre e injustiçado, Marcial sujeita-se
à sua condição de cliente. Esta época de Marcial assistiu a uma
evolução das mentalidades, devido a factores políticos, económicos e
sociais; é um período de crise política e moral, durante o qual Roma
adapta as antigas virtudes republicanas às circunstâncias novas. O
autor tenta, então, justificar o taedium uitae e a intemperança descritas
por Marcial e Juvenal, no segundo dos estudos citados.
Em “Marcial e o teatro”, Paulo Sérgio Ferreira vem mostrar que,
numa época em que a representação de comédias e tragédias cedia
terreno à simples recitação e leitura de peças, a poesia de Marcial
“parece vir preencher uma lacuna deixada vaga pelo progressivo
afastamento do público romano em relação à tragédia e à comédia.(...)
a sua obra, além de manifestar o génio romano na forma como se
inspira na realidade, parece ter consciência de olhar para esse mesmo
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quotidiano do mesmo modo que a comédia tradicional. Apenas lhe
interessa a parte risível de cada situação e, com o mimo, uma
linguagem que traduza esse mesmo “realismo”. (p. 115).
Em “Marcial e os banhos em Roma”, Isabel Graça analisa as
múltiplas referências literárias dos Epigramas de Marcial à frequência
dos banhos públicos, em Roma, ora nas thermae, ora nos balnea,
destacando ora os serviços oferecidos aos seus frequentadores, ora as
actividades físicas ali desenvolvidas, ora os comportamentos adoptado
pela heterogénea clientela.
“Zoilo e Trimalquião: duas variações sobre o tema do novo-rico”,
de Delfim Leão, põe em paralelo duas figuras emblemáticas de novorico: Zoilo, frequentemente fustigado nos Epigramas de Marcial, e o
liberto Trimalquião, do Satyricon de Petrónio. O autor analisa, por
tópicos e em termos comparativos, alguns dos traços mais salientes
destas duas figuras, a partir de passos de ambos os autores: a exibição
de riqueza, o uso de anéis e a ascendência de escravo, o
comportamento sexual e a higiene, o liberto enquanto anfitrião,
terminando com uma apreciação global de Zoilo e Trimalquião e
estabelecendo a diferença entre eles.
Dois estudos se ocupam da presença dos autores antigos na obra
de Marcial: “Autores de referência na obra de Marcial”, de João M.
Nunes Torrão, e “Marziale Catulliano” de Paolo Fedeli. O primeiro,
mais abrangente, analisa as referências de Marcial a autores gregos
(Sófocles, Menandro, Safo, Calímaco, Homero, entre outros) e latinos
(Tito Lívio, Propércio, Plínio, o Moço, Tibulo, Vergílio, Horácio,
Lucano, Ovídio, Cícero e Catulo, entre muitos outros, muitos dos
quais aparecem referidos uma só vez ou permanecem quase
desconhecidos). O segundo ocupa-se da análise mais alargada e
detalhada da influência da poesia de Catulo na produção de epigramas
de Marcial, propondo-se o autor fazer o ponto da situação e introduzir
um pouco de clareza “nella sempre più sfrenata ricerca di paralleli che
molto spesso sono in realtà pseudoparalleli.” (p. 161)
A propósito da pervivência de Marcial nas literaturas europeias,
dão abundante informação os textos de Arnaldo do Espírito Santo,
sobre a recepção de Marcial na Idade Média, e o de Juan Gil, que se
pronuncia, num longo artigo que termina a colectânea, sobre a
presença de Marcial em Espanha. O primeiro fala das leituras de
Marcial feitas pelos autores cristãos da Antiguidade Tardia e da Idade
Média, muito mais frequentes do que normalmente se imagina, prova
de que a obra de Marcial fazia parte dos programas escolares. Conclui
o autor, a partir da sua análise e dos manuscritos existentes que
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“Marcial foi lido e conhecido em toda a parte. Lido e aprendido nas
escolas da Antiguidade Tardia. Lido em florilégios moralizados.
Utilizado no púlpito como fonte de exempla, a partir do século XII,
pelo menos. Lido integralmente nos ambientes universitários. E quem
sabe se lido às vezes às escondidas por aqueles que mais se
encarniçaram contra ele.” (p. 224). O segundo estudo, de extensão
muito superior aos demais da colectânea, quase uma monografia, de
cem páginas, ocupa-se da influência de Marcial na literatura e na
filologia clássica em Espanha, sua pátria, até ao século XVII.
Algumas épocas e autores merecem obviamente maior realce (a Idade
Média, os séculos XVI e XVII, os padres da Companhia de Jesus,
entre outros), pela aceitação e imitação, recusa ou crítica da sua obra.
Com muito acerto resolveram os editores reunir e divulgar este
conjunto valioso de reflexões de alguns dos grandes especialistas na
matéria, sobre a vida e obra de um dos grandes poetas hispânicos da
Antiguidade, do qual tinham já também levado a bom porto a
importante tarefa de traduzir os livros de Epigramas, que
influenciaram gerações de escritores ao longo dos séculos.
Helena Costa Toipa
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Delfim LEÃO (Coordenação), Instituto de Estudos Clássicos.
Um Passado com Futuro. 60 anos de actividade científica,
pedagógica e cultural. (Coimbra, Imprensa da Universidade,
2005), 287 pp.
Quando da passagem dos 60 anos do Instituto de Estudos
Clássicos da Universidade de Coimbra, veio a lume, em boa hora, a
edição comemorativa em epígrafe, cumprindo o “dever de cada
geração garantir a preservação da memória dos acontecimentos que
mais a marcaram.” (p. 5), nas palavras do seu coordenador. Esta obra
oferece, pois, um acervo muito completo de informação e um conjunto
de documentos marcantes da vida académica do Instituto nos 60 anos
decorridos sobre a sua criação.
Assim, o primeiro artigo, da autoria da Doutora Maria Helena da
Rocha Pereira, faz uma síntese das actividades do Instituto, referindo
desde logo a docência e a investigação, a edição de revista Humanitas,
bem como de outras publicações, a criação e desenvolvimento do
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, não esquecendo a
organização de numerosos Colóquios e Congressos, nem a
implementação e apoio ao teatro universitário. Muito a propósito vem,
pois, o artigo seguinte, precisamente a alocução do Prof. Francisco
Rebelo Gonçalves, proferida na Sessão Inaugural do Instituto de
Estudos Clássicos, a 10 de Maio de 1944, documento marcante na
vida desta instituição. Segue-se o elenco do corpo docente do
Instituto, desde a sua fundação, que destaca o percurso académico, os
principais cargos e missões desempenhados, áreas de investigação e
interesse de cada docente.
Reproduzem-se, de seguida, quatro orações de sapiência de
particular representatividade: a primeira, do Prof. Rebelo Gonçalves,
proferida em 18 de Outubro de 1943, ano em que se iniciaram as
actividades lectivas do Instituto, de que foi grande o impulsionador;
intitulava-se, convenientemente, As Humanidades Clássicas e a
Universidade de Coimbra. As outras três orações foram proferidas por
três dignos representantes de outras tantas áreas de investigação do
Instituto: Professores Américo Costa Ramalho, Maria Helena Rocha
Pereira e Mons. Cónego José Geraldes Freire. O primeiro, no âmbito
dos estudos humanísticos, proferiu, em 1980, a oração de sapiência Os
Estudos de Camões na qual se debruça sobre a cultura do poeta, sobre
a sua aquisição, rebatendo algumas ideias divulgadas que considera
menos correctas e inserindo o autor no espírito, nos interesses e nos
conhecimentos do Renascimento. A Doutora Maria Helena Rocha
345
Pereira ocupa-se de estudos helénicos, particularmente dos heróis da
Ilíada e da Odisseia, intitulando a sua oração Nos alvores da cultura
europeia: os Poemas Homéricos, proferida em 1987. Finalmente, o
terceiro dos oradores referidos compôs uma oração sobre a sua área de
investigação, o Latim Medieval; depois de o definir e balizar no
tempo, fala detalhadamente do Latim utilizado em documentos
notariais, bem como nos diferentes géneros cultivados, hagiografia,
historiografia, epistolografia, direito, filosofia, liturgia, gramática,
poesia, entre outros.
As últimas páginas desta edição comemorativa são dedicadas à
enumeração exaustiva dos eventos culturais do Instituto, desde 1944
até 2004 (congressos, conferências, cursos livres, lançamento de
revistas, festivais de teatro, encontros com escritores, traduções
comentadas editadas por membros do Instituto, entre muitas outras
iniciativas), e contemplam ainda um apêndice fotobiográfico. A este
volume junta-se um outro de menores dimensões (56 páginas) com um
apêndice bibliográfico: o Fundo Especial Bibliográfico do Instituto de
Estudos Clássicos, catalogado por Isaías Hipólito, organizado em seis
categorias que reflectem fundamentalmente as diversas áreas
científicas do Instituto de Estudos Clássicos.
Esta justa homenagem aos pioneiros e empenhados obreiros do
Instituto de Estudos Clássicos, a todos aqueles que concretizaram e
continuam a concretizar os votos formulados pelo Prof. Rebelo
Gonçalves na sua oração de sapiência de 1943, constitui um
documento importante para todos os que desejarem conhecer a
actividade de uma instituição protegida “pela deusa protectora da
Universidade, a pura deusa dos olhos glaucos e da expressão serena e
radiosa” (p. 93).
Helena Costa Toipa
346
Cataldo Parísio SÍCULO, Epístolas. II Parte. Fixação do texto
latino, tradução, prefácio e notas de Américo Costa Ramalho e de
Augusta Fernanda Oliveira e Silva. (Imprensa Nacional – Casa da
Moeda. Lisboa, 2005), 293 pp.
No seu projecto de dar a conhecer à comunidade a obra do
humanista Cataldo Parísio Sículo, o Professor Américo da Costa
Ramalho edita agora, com Augusta Fernanda Oliveira e Silva algumas
das suas cartas, traduzidas e anotadas. Num breve Prefácio, os autores
justificam o facto de terem editado a segunda parte da obra, sem ter
saído ainda a primeira, com a afirmação de, nela, se encontrar a
maioria do epistolário de Cataldo dirigido a portugueses. No Prefácio,
justificam ainda os autores, algumas opções tomadas: o uso
generalizado de “tu”, em vez de “vós”; a actualização da grafia do
latim, o desdobramento de abreviaturas, a introdução de parágrafos no
texto maciço de Cataldo e a modernização da pontuação.
Trata-se de uma edição muito completa, como já é habitual
encontrarmos nas que têm a intervenção do Prof. Américo da Costa
Ramalho: texto latino, com grafia e pontuação actualizadas, e
respectiva tradução, numerosas anotações, pertinentes, simples e
elucidativas, seguidos dos sempre necessários Índices Onomástico e
Toponímico e dos fac-símiles dos originais de Cataldo, da sua obra
Cataldi epistolarum et quarundam orationum secunda pars. A
tradução das cartas é antecedida de um breve capítulo introdutório
sobre a figura de Cataldo Parísio Sículo, que desempenhou, em
Portugal, em finais do séc. XV e início de XVI, os cargos de orador,
secretário latino e professor de latinidade, primeiro ao serviço de D.
João II (as suas primeiras funções de professor desempenhou-as como
preceptor de D. Jorge de Lencastre, filho ilegítimo do rei), e, depois,
igualmente, ao serviço de D. Manuel, que lhe confiou a educação de
alguns jovens da nobreza: D. Pedro de Meneses e D. Leonor de
Noronha, seus alunos dilectos, filhos dos marqueses de Vila Real, D.
Dinis, irmão do duque de Bragança, etc. Em Portugal, onde viveu
grande parte da sua vida, Cataldo editou vasta obra; além de Epistolae
et Orationes, um número considerável de Poemata, desde simples
Epigramas a extensas Visões, muitos dos quais já traduzidos pelo
Prof.Costa Ramalho ou sob sua orientação.
As cartas agora traduzidas são dirigidas a destinatários
portugueses: ao rei, à nobreza, a altos dignatários da corte, a
aristocráticos alunos e respectivos familiares; entre os muitos
destinatários encontramos, pois, o rei D. Manuel; D. Dinis, irmão do
347
duque de Bragança; o seu antigo discípulo, D. Jorge de Lencastre
(que, após a morte do pai, D. João II, sacudira o jugo do mestre, com
quem se viria a reconciliar por intervenção de D. Manuel); os tios
deste, irmãos da mãe, Jorge Furtado e António de Mendonça; os
funcionários régios, António Carneiro e Fernando Alcáçova; Aires
Teles, que é nomeado no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende; D.
João Manuel e D. Nuno Manuel, colaços do rei; a família dos CorteReal; D. Pedro de Meneses e D. Leonor Noronha, seus dilectos
discípulos, bem como os seus progenitores, os marqueses de Vila
Real; alguns juristas e intelectuais, como Pedro Estaço, entre muitas
outras figuras relevantes da sociedade portuguesa de Quinhentos.
O assunto das cartas é variado: tanto podem ser pedidos de
favores, para si próprio ou para terceiros, ou de intermediação de
alguém com influência para tal, como queixas, recriminações, críticas,
invectivas contra os seus inimigos; tanto podem ser sentidas
condolências e consolações, como hiperbólicos panegíricos e
congratulações por acontecimentos faustosos: nascimentos,
casamentos, etc. Muitas cartas versam o tema da educação e dos
métodos a adoptar no ensino das crianças e jovens; Cataldo não hesita
em louvar os seus alunos aplicados, que o enchem de orgulho (tanto
ao rei como aos familiares), mas também não poupa críticas e não se
furta a recomendar, para os alunos madraços, castigos severos
(Cataldo era defensor da aplicação de castigos físicos e
frequentemente criticava a indulgência dos pais, e mais
especificamente das mães.)
Esta é uma obra de referência, como muitas outras deste autor
siciliano, para o estudo do Humanismo em Portugal, e um contributo
notável para a história do nosso séc. XVI, para o conhecimento de
altas individualidades da sociedade portuguesa, com quem Cataldo
conviveu de perto e que conhecia muito bem.
Helena Costa Toipa
348
Andrés POCIÑA, Beatriz RABAZA, Maria de Fátima SILVA
(eds), Estudios sobre Terencio. (Universidad de Granada e
Universidade de Coimbra, Granada, 2006), 532 pp.
Reuniram os editores, em torno da figura de Terêncio, um
conjunto de estudos de autores, especialistas da sua obra, oriundos de
Universidades espanholas (de Granada, Ferrol, Valencia, Madrid,
Almería), argentinas (Rosario, U. Nacional del Sur) e portuguesas
(Coimbra, Viseu e Lisboa), resultantes de frequentes e enriquecedores
intercâmbios entre helenistas e latinistas dessas universidades. Os
estudos, na sua maioria originais, sobre a figura do comediógrafo
latino estão divididos, de uma forma muito apropriada, em três
secções.
A primeira, intitulada “Antes de Terêncio”, inclui três artigos que
constituem um “conjunto de aproximaciones a la comedia de
Menandro, com especial atención a todos aquellos aspectos que son
fundamentales en la obra terenciana, impossible de entender si no se
tienen presentes” (p.8). No primeiro artigo, “Menandro e a comédia
grega: o fim de um trajecto”, a autora, Maria de Fátima Silva, ocupase da comédia nova ateniense e de Menandro, destacando as
novidades, em termos de temática, as personagens e as preferências
estruturais e cénicas, e a quota de inovação introduzida por Menandro
nos modelos tradicionais. No segundo estudo, “De la Política a la
Ética: la configuración de los personajes de Menandro” de Carmen
Morenilla, a autora preocupa-se em revelar as características gerais
das personagens de Menandro, insistindo naqueles aspectos que mais
interessaram a Terêncio para construir as suas, na busca de uma
comicidade moralizante. O terceiro artigo, “La recepción de
Menandro en Roma”, de Andrés Pociña, ocupa-se da presença de
Menandro nos autores dramáticos latinos, desde Lívio Andronico, e
nos autores não dramáticos (nomeadamente em Cícero, César, Varrão,
Horácio, Ovídio, Propércio, Plínio-o-Velho, Quintiliano, Marcial,
Frontão, Aulo Gélio ou Apuleio, que sobre ele se pronunciam):
conclui e constata a existência de dois Menandros em Roma: aquele
conhecido da generalidade do povo que frequentava o teatro, e aquele
que deleitou várias gerações de homens cultos, familiarizados com o
grego.
A segunda secção, intitulada “Terencio y sus comedias”, inclui
um conjunto de treze artigos que abarcam alguns aspectos da vida,
obra e pensamento de Terêncio; esclarecem os coordenadores que
“son siempre aspectos particulares, parciales, que nunca hemos
349
planteado como un tratamiento exhaustivo de la figura y la obra de
nuestro comediógrafo, pues sería empresa imposible de realizar en un
volumen como el nuestro.”(p.8). Começa precisamente com um
estudo de José Luís Brandão sobre a “Vida suetoniana de Terêncio:
estrutura e estratégias de defesa do poeta”. Conclui o autor que
Suetónio, na biografia que compôs do comediógrafo, “opera uma
progressiva defesa de Terêncio, através de vários recursos” (p. 123),
ora ponderando as opiniões dos detractores, ora buscando a emulação
com Menandro, ora, para cativar a simpatia dos leitores, deixando a
ideia de um poeta desafortunado, que se auto-exila e morre
precocemente. No estudo seguinte, “El officium del poeta en
Terencio”, de Rosalía Rodrigues, faz-se a análise do papel daquele
que Terêncio considera um bom poeta; da leitura dos seus prólogos,
com efeito, podem deduzir-se os deveres do escritor: entreter o
público com obras bem construídas; não utilizar a cena para
desprestigiar um concidadão, dar a cada personagem a sua própria
personalidade, aceitar as críticas construtivas para poder melhorar a
sua arte.
“Consideraciones generales sobre los modelos de Terencio” de
Aurora López e Andrés Pociña é o texto que se segue: neste artigo,
propõem-se os autores apresentar dados objectivos sobre os modelos
das seis comédias terencianas, as comédias, na sua maior parte
homónimas, de Menandro e de Apolodoro de Caristio, enfatizando a
ideia de que o próprio Terêncio indica, nos seus prólogos,
frequentemente não ter tomado como modelo uma só comédia grega,
mas utilizado elementos procedentes de outras. Trata-se de
comprovar, com este estudo, o que se dissera na primeira secção, nos
artigos que apontavam para a influência de Menandro em Terêncio.
Em “Los prólogos de Terencio: polémica literaria y oratoria
forense”, de Marta Garelli, o estudo seguinte, continua-se, como nos
dois anteriores, o trabalho sobre os prólogos, fontes de informação
diversificada. Desta feita, a autora, constatando que Terêncio
abandonara o omnisciente prólogo expositivo e o utilizara com
propósitos polémicos, analisa-os sob a perspectiva da oratória forense:
estudam-se as figuras do defensor e do acusador, a argumentação
defensiva e as formas que toma a captatio beneuolentiae.
“Phormio. Desorden ciudadano” é a reedição em espanhol de um
trabalho de David Konstan (Brown Univ., USA), que consiste num
capítulo da sua obra Roman Comedy, essencial para o estudo da
comédia latina. Debruça-se o autor sobre o papel das personagens e o
seu tratamento na comédia Phormio.
350
Depois dos estudos sobre os prólogos e sobre a comédia acima
citada, mais dois estudos, mas agora sobre a Hecyra: “Terencio en el
Comicio? Reflexiones sobre la primera y la segunda representación de
la Hecyra” de Román Bravo, e “A Hecyra de Terêncio.
Incompreensão, isolamento e convenção social.”, de Delfim Leão. O
propósito do autor do primeiro é esclarecer os acontecimentos na
primeira e segunda representações da Hecyra, evocados por Terêncio
nos seus prólogos, fazendo o ponto da situação das soluções
apresentadas até ao momento e avançando com a sua própria. No
segundo estudo citado, o autor centra-se na caracterização e análise
dos sentimentos das personagens, destacando, em cada uma delas, ora
a incompreensão de que são vítimas, ora o desencanto, as
expectativas frustradas, o isolamento a que são votadas, o peso das
convenções que sobre elas se abate, a abnegação, as virtudes que
justificam a a humanitas que, desde a Antiguidade se reconhece no
teatro de Terêncio.
Depois dos artigos sobre duas peças em particular, desce-se ainda
mais ao pormenor, com três artigos sobre as personagens: “El servus
terenciano: convergencias y divergencias con la tradición plautina”, de
Beatriz Rabaza, Aldo Pricco, Darío Maiorana; “As cortesãs em
Terêncio”, de Aires Pereira do Couto, e “El personaje secundario en
las comedias de Terencio”, de Carmen González Vázquez. O
primeiro. ocupa-se do estudo de uma das figuras recorrentes nas
comédias de Plauto e de Terêncio: o seruus, destacando-se o
tratamento diferenciado em cada um dos comediógrafos referidos No
segundo, sobre as cortesãs, começa o autor por estabelecer as
diferenças entre as cortesãs plautinas e terencianas, para depois se
centrar na caracterização das terencianas, destacando as duas dignas
representantes da bona meretrix tipicamente terenciana (Bacchis da
Hecyra, e Thaís do Eunuchus), “duas cortesãs que, pela sua
generosidade e nobreza de carácter, se afastam completamente do
conceito habitual de cortesã e não têm paralelo nas cortesãs plautinas”
(p. 290).
O terceiro artigo referido começa por tentar responder à questão
“O que é uma personagem, para passar depois à análise, por comédias,
das características funcionais da personagem secundária em Terêncio,
fundamental para o desenvolvimento e desenlace das suas comédias.
Segue-se “La poética dramática: Terencio como programa
retórico”, de Beatriz Rabaza, Aldo Pricco, Darío Maiorana: trata-se de
uma tentativa de “una reformulación del funcionamento del material
teatral de Terencio desde una perspectiva cercana a la especificidad
351
del discurso dramático en sus cruces com la retórica e el discurso
político” (p. 314).
“Amor em Terêncio”, de Francisco Oliveira, é o artigo seguinte.
Propõe o autor uma pesquisa das concepções de amor presentes na
comédia terenciana tomada como produto romano. Essa pesquisa
contempla as seguintes etapas: estudo do amor, como tema de
comédia; o conceito e linguagem do amor em Terêncio; iniciação
sentimental masculina: o amor meretrício; amor e casamento.
Em “Teatralidad cognitiva y psicofísica en el discurso terenciano:
la constitución del auditorio”, o estudo que se segue na ordenação
adoptada, Aldo Pricco, o autor, considerando que, “el discurso
escénico y las condiciones de un sitio de representación otorgan al
espectador la possibilidad de vivir una experiencia, o sea, de alterar,
aunque en medidas exiguas, sus competencias de reflexión, su
sensibilidad, sus esquemas perceptivos, no por el objetivo de algun fin
predeterminado sino sólo por el placer de intertarlo, o por participar de
hábitos comunitarios que, en los casos de los ludi romanos, habilitan
el rito de la asistencia a la representación de una comedia”, faz esta
breve análise que “incluye menciones a la índole ritual del espectáculo
de la palliata, y las condiciones de acción colectiva en que un
espectador de Roma accedía a la experiencia estética de una pieza de
Terencio” (p. 358)
A terceira secção, “Pervivencia e recepción de Terencio”, inclui
seis estudos que se ocupam da perviência de Terêncio e da sua obra ao
longo dos séculos “en obras de otros autores, en ediciones de sus
comedias, convertido el mismo en tema literario, por ultimo en la
investigación filológica.” (p. 9)
Assim, os dois primeiros estudos ocupam-se das remissões e
referências a Terêncio em autores posteriores. No artigo Leituras de
Terêncio nos autores clássicos, a autora, Maria Cristina Pimentel,
tomando como ponto de partida uma frase do Prólogo do Eunuchus
(“Nullum est iam dictum quod non sit dictum prius”), a propõe-se
observar os diversos tipos de leituras e alusões a Terêncio e à sua obra
que se encontram nos autores latinos clássicos. Distingue dois tipos de
texto: em primeiro lugar os que reflectem o uso escolar e se ocupam
de questões gramaticais, isto é, a presença de Terêncio nos currículos
escolares; em segundo lugar, aqueles que registam dados biográficos,
emitem juízos de valor sobre a obra, o desenho das personagens, a
elegância do estilo, desde Suetónio até Amiano Marcelino, passando
por César, Varrão, Horácio, Veleio Patérculo, Aulo Gélio, Ovídio,
entre outros, e principalmente Cícero. O segundo estudo referido, de
352
Arnaldo Espírito Santo, apresenta um título perfeitamente elucidativo
do assunto a tratar: Terêncio nos autores cristãos da Antiguidade
Tardia e Idade Média (séc. IV-XII). Como refere o autor: “seja na
escola, no manual de gramática, no comentário de Donato, no manual
de dialéctica, nas obras de Agostinho, Jerónimo, etc., na produção de
comentários bíblicos, de sermões, de crónicas e anais, na
correspondência epistolar, na reflexão moral e filosófica, em todo o
tipo de textos, Terêncio esteve presente na configuração da escrita, das
imagens e de algum pensamento dos autores cristãos.” (p. 426)
Menciona também o autor épocas privilegiadas da pervivência de
Terêncio.
Segue-se Terencio en España: del Medievo a la Ilustración, de
Luís Gil: Terêncio foi conhecido e seguido, em Espanha, desde a
Idade Média até ao Século das Luzes, através da escola, de adaptações
e representações teatrais; a sua presença em autores espanhóis é muito
significativa, como revela este interessante estudo.
Prolegomena Terentiana. Las ediciones renascentistas de
Terencio: organización y estructura, de Manuel Molina, é o título que
surge no Índice, mas que, no estudo propriamente dito, surge como
Prolegomena Terentiana. Modelos de introducción y comentario en
las ediciones renacentistas de Terencio. Começa o autor por salientar
o facto de os preliminares que encabeçam as edições renascentistas
de Terêncio serem de tal forma exaustivos que nada mais parece
possível dizer-se, em termos de teoria dramática, embora considere
que alguns outros aspectos tenham passado despercebidos à maioria
dos estudiosos humanistas. O objectivo do trabalho é apresentar os
diferentes modelos de introdução e comentário que, ao longo do séc.
XVI, se realizaram na Europa sobre as obras de Terêncio.
“Terentius (1997) de Juanjo Prats, o el arte viejo de hacer
comedias”, de Carmen Morenilla, Patricia Crespo, é o estudo de uma
comédia intitulada Terentius, de Juanjo Prats, representada sob a
direcção de Pep Cortés, em 1997; do argumento, o autor conclui que
Juanjo Prats e Pep Cortés criaram esta comédia dentro do espectáculo,
baseando-se fundamentalmente em três comédias de Terêncio,
Hecyra, Eunuchus e Phormio, mas utilizando elementos das outras
três. E diz mesmo “podemos destacar que en Terentius hay de
Terencio exactamente lo mismo que de Menandro o Apolodoro de
Caristos hay en las comedias de Terencio”(p. 510).
Finalmente, Recepción y estudios críticos sobre Terencio en
Espana, de José M Camacho Rojo, encerra esta colectânea de estudos;
trata-se de um repertório bibliográfico sobre a recepção e estudos
353
críticos sobre Terêncio em Espanha, classificado em três partes: 1)
códices, edições e traduções; 2) estudos críticos; 3) recepção e
influência de Terêncio nas literaturas hispânicas.
Esta é, pois, uma obra bem estruturada, que contempla aspectos
fundamentais da vida e obra de Terêncio, bem como dos seus
antecedentes e da sua recepção ao longo dos séculos. Os seus estudos
são diversificados e de grande relevância para os interessados nesta
matéria, pela sua profundidade e pertinência. Não sendo uma obra
exaustiva no tratamento da figura e da obra de Terêncio, é, sem
dúvida, um contributo notável e um útil instrumento de trabalho para
os interessados.
Helena Costa Toipa
354
Catarina Vilaça de Sousa. Roteiro Rota do Fresco (Cuba,
AMCAL, 2003), 171 pp., edição bilingue português/inglês. 10€
«A Rota do Fresco», lê-se na página inicial do site da Câmara
Municipal de Alvito, primeira autarquia a integrar o projecto,
«consiste na criação de um sistema de visitas a uma selecção de
exemplares de pintura mural das capelas, ermidas e igrejas dos
concelhos de Alvito, Cuba, Portel, Viana e Vidigueira, com o intuito
de divulgar, preservar e revitalizar esse património integrado», e,
acrescenta Catarina Vilaça, na Introdução ao Roteiro agora em
análise «democratizar essa descoberta temática recente, permitindo,
também, ao público generalista compreender e usufruir deste
património» (p.7).
O projecto «Rota do Fresco» surgiu em 2001, a partir do trabalho
de investigação de Catarina Vilaça de Sousa, licenciada em História
de Arte e que começou por estudar a pintura mural no concelho de
Alvito. Desse estudo nasceria uma proposta feita ao então presidente
da Câmara para a criação de um circuito de visitas organizadas que
permitisse, não só, divulgar um tipo de património até então pouco
valorizado no nosso país, mas, também, angariar receitas necessárias
para recuperação dos exemplares que o constituem.
O projecto estendeu-se depois aos restantes municípios do
Alentejo Central e dele participam ainda a Associação das Regiões de
Turismo do Alentejo, o Departamento do Património Histórico e
Artístico da Diocese de Beja, a Direcção Regional dos Edifícios e
Monumentos Nacionais, o Instituto Português do Património
Arquitectónico e a Delegação Regional de Cultura do Alentejo.
Em rigor, não há ‘uma’ Rota do Fresco, mas várias. A ‘Rota’
consta de cinco visitas individuais, de um dia cada, a igrejas, ermidas
e capelas dos cinco concelhos que integram o projecto, Alvito, Cuba,
Portel, Viana do Alentejo e Vidigueira, completadas hoje com outro
tipo de actividades, como visitas a produtores de gastronomia regional
(enchidos, queijos, mel, azeite, doces). Em alternativa, pode fazer-se
uma visita inter-concelhia, que permite ver, também num dia, um
exemplar em quatro dos municípios intervenientes. Embora designada
do ‘Fresco’, o que a Rota propõe é um passeio pela história da pintura
mural no Alentejo, composta não apenas por exemplares a fresco, mas
também de outras técnicas a seco, de um período cronológico
compreendido, basicamente, entre os séculos XV e XVIII. No
Concelho da Vidigueira, contudo, as ruínas romanas da Villa de S.
355
Cucufate permitirão ao visitante recuar até ao período romano em
Portugal.
Para além dos circuitos de visita aos frescos, o projecto prevê a
curto e médio prazo outro tipo de iniciativas: acções de formação
específicas para formar os técnicos culturais que farão o
acompanhamento qualificado aos visitantes; intervenções de
conservação e restauro nos exemplares de pintura mural integrados na
rota; a criação de uma linha de produtos promocionais; a criação de
um campo de conservação e restauro de pintura mural ou a criação de
um Centro Pedagógico Multimédia que explore este património
peculiar recorrendo a tecnologia multimédia.
Nesse mesmo âmbito, surgiram a exposição «Pinturas
Alentejanas por descobrir» e o Roteiro Rota do Fresco, que aqui
apresentamos. O roteiro foi concebido, segundo a sua autora, como
resposta à necessidade de proporcionar aos visitantes uma obra com a
descrição e explicação dos diversos exemplares de pintura mural que
são alvo de visita. Assim, a obra, pensada para poder ser usada nas
próprias visitas, consta de fichas individualizadas, e ilustradas, por
concelho, de cada uma das igrejas, ermidas ou capelas, onde se
encontram as pinturas. Começa por historiar o monumento, passando
depois à apresentação das pinturas, fazendo análise da sua iconografia,
da técnica utilizada na sua composição e do seu estado de
conservação; este era, em 2003 (data da impressão do roteiro),
infelizmente precário, em boa parte dos casos. Para cada concelho, é
apresentada ainda uma ficha com indicações de outros exemplares
que, por razões várias, não foram integrados no circuito das visitas
mas fazem parte de igual tipologia.
Do Roteiro, bilingue e apresentado em duas colunas paralelas em
cor diferente, em português e em inglês, fazem parte ainda breves
estudos introdutórios sobre o Projecto da Rota do Fresco; a pintura
mural portuguesa, particularmente a alentejana; a técnica de pintura
mural em Portugal, e, ainda uma síntese histórica sobre os concelhos
que integram a(s) rota(s). No final, o leitor/visitante poderá encontrar
ainda um glossário que permite melhor compreender alguns dos
termos técnicos utilizados nas descrições e uma bibliografia básica. O
Conservador/Restaurador Joaquim Inácio Caetano assina os capítulos
«A técnica da pintura mural em Portugal» e o «Glossário de termos
técnicos», Catarina Vilaça os restantes.
A linguagem utilizada na composição, sem descuidar o rigor, é
acessível e clara, mas também interessante, com fotografias de boa
qualidade, pormenorizadas e devidamente legendadas. Concebido a
356
pensar nos visitantes, o roteiro constitui não só um complemento às
informações in loco, mas uma importante forma de divulgação do
projecto. Pode, também, tornar-se numa excelente motivação para
aqueles que ainda não conhecem a Rota.
Ana Elias Pinheiro
357
25 Sítios Arqueológicos da Beira Interior (Maio / Dezembro
2005). Catálogo da Exposição, ARA – Associação de
Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património da Beira
Interior / Câmara Municipal de Trancoso, Trancoso, 2005. 56 p.,
ilust., Depósito Legal: 227278/05.
A presente publicação, editada em conjunto pela ARA Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património da
Beira Interior e pela Câmara Municipal de Trancoso, corresponde à
exposição 25 Sítios Arqueológicos da Beira Interior, organizada pela
ARA. A mostra, composta por pósteres alusivos a uma selecção de
sítios arqueológicos da Beira Interior, circulou entre os cerca de 20
concelhos dos distritos de Castelo Branco e da Guarda em cujo
território se localizam os sítios abordados. Posteriormente, a
exposição percorreu outros caminhos, estando patente no Ateneu de
Coimbra e, mais recentemente, no Centro Regional das Beiras da
UCP, em Viseu; prevê-se ainda a sua exibição, no decurso de 2006, no
Museu Nacional de Arqueologia.
A exposição e o catálogo não pretendem apresentar uma
amostragem dos mais importantes sítios arqueológicos da Beira
Interior, embora alguns possuam uma importância que excede o
próprio contexto regional; trata-se efectivamente de uma selecção dos
locais onde têm sido realizadas escavações arqueológicas nos últimos
anos, algumas das quais ainda em curso. Pretende-se, assim, dar a
conhecer os resultados dos trabalhos efectuados por diversos
investigadores, motivando os cidadãos para a salvaguarda e
valorização do rico património arqueológico da região. Como salienta
Jorge de Alarcão, na apresentação deste catálogo (p.3):
«É aos cidadãos que esta exposição essencialmente se destina.
Não é para os arqueólogos que ela é feita. É feita por arqueólogos,
mas destinada àqueles que, não sendo arqueólogos nem historiadores,
gostam de saber da história e do património (…)».
O catálogo apresenta, em primeiro lugar, um mapa com a
localização dos diversos sítios seleccionados (p.2) e a apresentação da
autoria de Jorge de Alarcão (p.3). Segue-se a abordagem dos sítios
arqueológicos; para cada um reservaram-se duas páginas: a primeira
ostenta a ampliação de uma foto (ou de um detalhe da foto) alusiva ao
local, com a indicação da povoação / freguesia (Castelo Mendo /
Folgosinho) ou da região de implantação (Vale do Côa), bem como o
concelho; uma segunda página, encimada por um subtítulo (alusivo ao
topónimo e/ou à tipologia do sítio arqueológico) apresenta o texto e
358
uma selecção de fotos e plantas dos vestígios no local, bem como
fotos ou desenhos de algum do espólio arqueológico aí encontrado;
num dos casos (Vilas Ruivas, Ródão), inclui-se ainda uma proposta de
reconstituição do habitat identificado; finalmente, indica-se o nome
do(s) autor(es) do texto, geralmente os responsáveis pelas prospecções
e/ou escavações arqueológicas realizadas no local. A numeração de
todas as ilustrações dos diversos textos remete para uma lista de
legendas no final do catálogo (pp. 54-56), tendo parte dos autores
optado por acrescentar a essa lista um conjunto de referências
bibliográficas relativas ao sítio arqueológico abordado; refira-se que,
parte das legendas (6-7) e a bibliografia respeitante a Idanha-a-Velha
surgem, por lapso informático, no topo da p. 56, antes das legendas do
Templo romano de N. Sª das Cabeças.
A selecção proposta permite identificar uma interessante
variedade de sítios, quer do ponto de vista tipológico, quer do ponto
de vista cronológico-cultural; efectivamente, somos transportados
desde as mais remotas raízes, com os vestígios paleolíticos da região
de Ródão, junto ao Tejo, ou da arte do Vale do Côa, até aos fortins e
baterias da Serra das Talhadas (Proença-a-Nova), datados dos séculos
XVIII-XIX, passando por locais com ocupação proto-histórica,
romana ou medieval, em muito dos casos implantados numa paisagem
deslumbrante e com estruturas arquitectónicas imponentes.
Se é certo que nem todos serão acessíveis à plena fruição, apesar
do seu interesse patrimonial, a maioria, com as adequadas medidas de
protecção e valorização, poderá ser disponibilizada ao público em
geral e à actividade turística em particular. Aliás, tais medidas estão
em curso em diversos sítios, alguns dos quais integram já os circuitos
habituais do turismo educacional e cultural; entre esses, destaque-se,
na área do Côa, o sítio do Prazo, com ocupação desde o Paleolítico à
Idade Média, ou os diversos núcleos de gravuras do Parque
Arqueológico Vale do Côa, no concelho de Sabugal, o Povoado do
Sabugal Velho e, no âmbito das Aldeias Históricas, Idanha-a-Velha.
Em outros casos, os estudos arqueológicos em curso apontam para a
conservação e valorização do sítio ou monumento arqueológico, não
só pelo seu elevado interesse científico e patrimonial, mas também
pelo seu enquadramento paisagístico, como exemplifica o notável
templo romano de N. Srª das Cabeças, em Orjais (Covilhã), situado
numa posição privilegiada, em plena encosta da Serra da Estrela.
Tendo em conta que o público-alvo da exposição e respectivo
catálogo não domina necessariamente a terminologia arqueológica,
houve o cuidado de elaborar textos rigorosos mas acessíveis ao
359
público geral; todavia, e muito pontualmente, permaneceram algumas
referências de difícil descodificação para os não iniciados (por
exemplo, “25.000 anos BP” ou “regras vitruvianas”). De qualquer
modo, o cuidado gráfico da edição e a qualidade dos textos
proporcionam uma leitura agradável e útil para todos, quer se trate dos
cidadãos em geral, de professores e alunos de diversos graus do
ensino, de turistas nacionais, de guias e animadores turísticos, ou
mesmo de investigadores.
O catálogo, tal como a exposição, é, pois, uma meritória iniciativa
no que respeita à divulgação pública dos resultados da investigação
arqueológica realizada na Beira Interior. É igualmente um importante
contributo para o desenvolvimento de medidas concretas no que
respeita à fruição de todo este património pelos cidadãos e um
documento a ter em conta na rentabilização do património
arqueológico como recurso turístico, inclusive à escala regional.
Porque não considerar, por exemplo a criação de uma rota
arqueológica na Beira Interior?
Em conclusão, diríamos que este catálogo, cumpre e amplifica os
objectivos da exposição que esteve na sua base, podendo, servir de
ponto de partida para futuros (e urgentes) projectos na área do
Turismo Cultural, numa «região que, desde a arte rupestre paleolítica
do Côa (…) aos castelos medievais e aos solares barrocos, tantos
motivos tem de inegável interesse» (p.3).
Luís da Silva Fernandes
360
Flávio LOPES, Teresa GAMBOA (coord.), 90 anos de
Turismo em Portugal – Conhecer o Passado, Investir no Futuro,
Conselho Sectorial do Turismo / Ministério da Economia, 2001. 48
p., ilust., ISBN: 972-737-193-0.
Em 2001, o Conselho Sectorial do Turismo (órgão de consulta e
aconselhamento estratégico do Ministério da Economia) decidiu
assinalar, com uma exposição e diversas iniciativas, a passagem dos
90 anos da institucionalização da actividade turística em Portugal,
com a criação, em 1911, do primeiro órgão oficial português do
Turismo em Portugal. A exposição, intitulada 90 anos de Turismo em
Portugal – Conhecer o Passado, Investir no Futuro, bem como as
iniciativas a ela associadas, permitiu, nas palavras de Luís Braga da
Cruz (p. 3), «uma visão atenta do passado, dos mecanismos de
impulso da actividade, dos erros e excessos cometidos, das
fragilidades encontradas e das vantagens obtidas»; realçou «a
percepção exacta das nossas vantagens, que vão do clima à
gastronomia, da estabilidade e vivência democrática às riquezas
patrimoniais»; suscitou a reflexão e o debate sobre o futuro da
actividade turística, necessariamente alicerçado num «esforço
acrescido de profissionalismo para que, através da qualidade e da
diferenciação, se aumente a competitividade»; finalmente, constituiu
uma homenagem a todos os que «ajudaram a construir o presente».
O catálogo da exposição que ora apresentamos prolonga no tempo
essa iniciativa tão oportuna quanto rara no panorama português. Após
a apresentação de Luís Braga da Cruz, na qualidade de Ministro da
Economia, o catálogo está cronologicamente organizado em dez
secções, nove das quais relativas às décadas compreendidas entre
1911-1919 e 1990-2001, sendo a última secção relativa ao futuro do
Turismo a nível nacional e internacional. Cada secção inicia com uma
frase alusiva ao turismo na época, apresenta uma página de texto com
uma análise do sector nessa década e conclui com três páginas de
reproduções de documentação e imagens respeitantes à actividade e
promoção turística no período considerado desde cartazes
promocionais, brochuras, e guias turísticos até postais e fotos da
época.
A viagem proposta conduz-nos, em primeiro lugar, ao
pioneirismo e entusiasmo da I República e ao desenvolvimento eivado
de hesitações, desconfianças e contradições do Estado Novo, apenas
ultrapassadas na década de 1960-69. Depois, apesar das quebras
registadas no turismo tradicional nos dois anos a seguir ao 25 de
361
Abril, o novo regime democrático declara a indústria turística como
actividade prioritária e a década de 1970-79 termina com um novo
fôlego, apostando-se cada vez mais na formação de profissionais
qualificados. Na década seguinte assiste-se à materialização de uma
política de dinâmica local com a criação das Regiões de Turismo e ao
reforço de Portugal como destino turístico, face à entrada na CEE. A
década de 1990-01 traz a aposta da CEE no conhecimento das culturas
dos Estados Membros, no incentivo às viagens sem fronteiras no
espaço europeu e na promoção da Europa como destino turístico. Em
Portugal, promove-se o Turismo Cultural, reorganizam-se as
estruturas estatais e privadas do sector turístico e organizam-se
eventos como a EXPO’98. Finalmente, um olhar sobre o futuro, com
as projecções da OMT relativas à actividade turística até 2020 e uma
análise sintética das perspectivas e desafios do desenvolvimento do
turismo em Portugal, com o Euro2004 à vista.
O catálogo termina com uma preciosa cronologia, situada entre
1911 e 2001, organizada de acordo com as décadas analisadas;
finalmente apresenta-se a composição do Conselho Sectorial do
Turismo e a ficha técnica.
Este catálogo é, pois, um importante instrumento de
conhecimento da evolução do Turismo em Portugal, útil quer para
profissionais, investigadores, docentes e alunos da área do turismo,
quer para todos os interessados na actividade turística, tanto a nível
económico, como a nível cultural.
Por outro lado, lembra-nos toda a rica documentação relativa à
actividade turística e à sua promoção, particularmente de cariz
iconográfico, dispersa por várias entidades e particulares, que urge
inventariar, preservar e divulgar.
Finalmente, recordemos a apresentação do catálogo, concordando
que esta «visão atenta do passado» nos permite, «permanentemente,
procurar ensinamentos para o futuro».
Luís da Silva Fernandes

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