Sobre a Psicanálise de Psicóticos1 Decio Tenenbaum2 O que irei

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Sobre a Psicanálise de Psicóticos1 Decio Tenenbaum2 O que irei
Sobre a Psicanálise de Psicóticos1
Decio Tenenbaum2
O que irei apresentar hoje é uma continuação do que apresentei no
Congresso de 2001 em Nice. Essas idéias foram inicialmente desenvolvidas no
livro “Investigando Psicanaliticamente as Psicoses”, lançado no Rio de Janeiro
em 1999
Embora a Psicanálise venha contribuindo significativamente para
melhorar a eficácia do tratamento dos pacientes psicóticos, não podemos falar
que existe uma psicanálise de psicóticos. Não há duas psicanálises, uma para não
psicóticos e outra para psicóticos; assim como não há uma psicanálise de
pacientes bordelines e a discussão sobre a existência de uma psicanálise de
crianças ainda não se encerrou. A Psicanálise surgiu e é eficaz como tratamento
por si só para pacientes neuróticos e alguns poucos casos limitrofes entre a
neurose e a psicose. Para os quadros mais graves, sejam eles neuróticos,
limitrofes ou francamente psicóticos, o uso exclusivo da Psicanálise tem se
mostrado francamente ineficaz, quando não contra-indicado. Isso não quer dizer
em absoluto que a Psicanálise não seja de ajuda também nestes casos. Pelo
contrário, sem ela o prognóstico destes pacientes é bastante sombrio. Mas, é
preciso frisar, utilizar o conhecimento psicanalítico e fazer psicanálise são coisas
diferentes. E o tratamento de pacientes psicóticos exige outros conhecimentos
além do psicanalítico: psicopatológico, psicofarmacológico, do desenvolvimento
dos processos afetivos e cognitivos e de dinâmica grupal (familiar e
institucional).
Esclarecido este primeiro ponto, posso ser mais específico nas diferenças
entre os dois tipos de processos terapêuticos que se utilizam do conhecimento
psicanalítico: a psicanálise propriamente dita e o tratamento psicanalítico de
pacientes psicóticos.
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Como vocês podem ver, a Psicanálise tem como objeto de estudo a
psicologia do inconsciente e como objetivo terapêutico a transformação psíquica.
Ela se passa no campo transferencial e para alcançar seu objetivo utiliza o
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Trabalho apresentado no XIX Congresso Brasileiro de Psicanálise; Recife, outubro/2003.
Membro Efetivo com funções didáticas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
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método hermenêutico e o diagnóstico psicodinâmico. Tem a palavra como seu
instrumento de trabalho e seu foco é o funcionamento mental.
O processo psicanalítico com pacientes psicóticos apresenta algumas
variações em relação ao clássico. Ele tem na psicologia da consciência seu objeto
de estudo e seu objetivo é a reorganização psíquica. Ele se passa nos campos
tranferencial e relacional e para alcançar seu objetivo utiliza os métodos
hermenêutico e cognitivo e os diagnósticos psicodinâmico e fenomenológico. Seu
instrumento de trabalho é a palavra, mas também todas as possibilidades de
expressão do paciente e a pessoa do analista. Seu foco é a desorganização mental
do paciente.
É preciso também mencionar alguns dos entraves teóricos que ainda
obscurecem nossa compreeensão desses diferentes processos psicoterapêuticos.
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Ainda predomina na Psicanálise a concepção freudiana de que a dinâmica
mental é movimentada por conflitos e contradições: da pessoa com ela mesma,
da pessoa com seus desejos, da pessoa com seus objetos externos e
internalizados, da pessoa com a sociedade e da pessoa com a sua cultura, embora
a observação psicanalítica dos pacientes mais graves venha mostrando que o
conflito não é o único motor da dinâmica mental. Inúmeros autores já falam que
as carências afetivas e cognitivas podem ser tão patogênicas quanto certos
conflitos. Infelizmente ainda não foi feita uma revisão da psicopatologia
psicanalítica no sentido de englobar os estados mentais relacionados com as
carências psicológicas que podem advir de falhas nas relações humanas
significativas.
Escolhi Michael Balint e Jaques Lacan como autores que se dedicaram ao
estudo dos relacionamentos iniciais fora da perspectiva do conflito, mas muitos
outros também o fizeram e seria muito interessante um levantamento
comparativo sobre as diferentes perspectivas de abordagem existentes no estudo
psicanalítico das relações humanas.
Balint e Lacan discriminaram muito bem os diferentes níveis de
funcionamento mental e, consequentemente, do processo terepêutico: no nível
edípico o motor da psicopatologia é o conflito e o objetivo do tratamento é a
solução do mesmo; no nível pré-edípico a psicopatologia expressa uma falha
básica, termo cunhado por Balint e nunca usado por Lacan, cujo tratamento,
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verdadeiro processo de cicatrização, deixa quase sempre uma cicatriz, algum tipo
de defeito psicológico.
Embora estes dois autores apresentem diferentes compreensões quanto à
natureza desta carência básica (para Lacan a falha está relacionada à função
paterna; para Balint, ela decorre da discrepância entre as necessidades biopsicológicas das épocas da formação da mente e o cuidado, atenção e afeição,
material e psicológica, recebida nesta época das pessoas responsáveis pela
criança) para ambos a conseqüência é a mesma: um estado de não estruturação
de certas funções mentais, só parcialmente reversível.
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O fato dos pacientes psicóticos não desenvolverem questões e sim estados
parecidos aos da adição demonstra a insuficiência da teoria do conflito para
explicar a psicose. Excetuando-se os casos de psicose infantil muito precoce, com
os quais não tenho experiência, no meu contato terapêutico com pacientes
psicóticos sempre me deparei com o fato do psicótico não sofrer devido a
conflitos mentais. Se os tem, e como todos os seres humanos é lógico que os tem,
não são eles (os conflitos) que o adoecem.
Ao lidar com estes pacientes tenho encontrado, com uma regularidade
impressionante, pessoas que acabaram encontrando maneiras de não mais
sofrerem com seu desamparo e com suas carências psicológicas básicas,
expressas quase sempre de uma forma bastante peculiar (o delírio) que tenta
superar não só seus fracassos como também as queixas, os ressentimentos e as
mágoas profundas relacionadas às falhas no desempenho das pessoas
responsáveis por suas criações. E o pior é que não são falhas apenas do passado.
Como geralmente continuam vivendo muito ligados a estas pessoas, as falhas se
repetem induzindo a repetidas crises psicóticas e/ou a um alheamento
progressivo do mundo.
Espero ter conseguido deixar claro as diferenças entre os dois processos
terapêuticos e o fato da não exclusividade da teoria do conflito para explicar
todas as doenças mentais. Também espero que, definitivamente, não seja mais
obrigatório se pensar que a técnica e os objetivos terapêuticos com os pacientes
psicóticos devam ser os mesmos daqueles presentes no processo psicanalítico de
pacientes neuróticos. Afinal, nenhum clínico recomendaria o mesmo tratamento
para uma pneumonia e para uma tuberculose pulmonar apenas pelo fato de
ambas acometerem os pulmões. Infelizmente as instituições psicanalíticas fazem
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pior do que este suposto e equivocado clínico: se o psicanalista não empregar a
mesma técnica com todos os seus pacientes ou não está fazendo psicanálise ou
não é psicanalista.
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Por conta da pregnância da teoria do conflito e a despeito do que Freud
nos ensinou sobre o importante trabalho de elaboração no transcurso de um
tratamento psicanalítico, a interpretação3 vem sendo considerada há muitos anos
como a intervenção psicanalítica por excelência. Mas, todo psicanalista já passou
pela experiência do trabalho interpretativo se tornar contraproducente, precisar
ser interrompido ou postergado em determinados momentos ou mesmo durante
longos períodos. Não se tem dado a devida importância à obrigação que todo
psicanalista tem de avaliar e estabelecer adequadamente o ritmo em que novas
informações são fornecidas ao paciente (geralmente por via de interpretações) e o
tempo necessário para que as mesmas sejam integradas ou elaboradas. Este é um
ponto de crucial importância no tratamento de todos os pacientes, não apenas os
psicóticos e, infelizmente, foi esquecido no vasto estudo sobre as chamadas
reações terapêuticas negativas.
A ocorrência durante a sessão de episódios álgicos, mal-estares vagos ou
mesmo angústia4 geralmente é expressão de sobrecarga mental. Nos egóicamente
mais frágeis, a sobrecarga mental se expressa, mais comumente, através de
estados agudos de desorganização mental, seja uma desorganização ampla (o
surto psicótico), seja uma desorganização parcial (da identidade: a
despersonalização ou de aspectos cognitivos da realidade: a desrealização) ou
pequenos momentos de confusão mental. Nestes momentos, por mais bem
intencionada que seja, a interpretação psicanalítica tende a agravar a sobrecarga
mental porque a introdução de qualquer nova informação significa maior
exigência de trabalho para a mente.
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Em seu sentido original de instrumento para a revelação de conteúdos inconscientes.
São três os tipos de angústia: a existencial, a neurótica e a psicótica. Infelizmente a Psicanálise tem se
dedicado apenas ao estudo das angústias neurótica (relacionada a experiências de separação, perda e
castração) e psicótica (relacionada com experiências de desorganização do Ego como a despersonalização,
a desrealização e a perseguição).
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Assim, nos estados de desorganização e de sobrecarga mental, o mais
indicado é tentar refazer a capacidade elaborativa do paciente antes de fornecer
novas informações a respeito dele, do seu mundo interno ou mesmo do mundo
externo. Acompanhar o processo de elaboração (mesmo que delirante) do
paciente, se possível oferecendo alguns elementos cognitivos sobre o processo
que ele está passando e algum balizamento frente a realidade externa e interna
(conforme a situação exigir), provocará alívio da tensão intrapsíquica do
paciente. Agindo-se assim, o momento de ajudar o paciente a conhecer as
motivações inconscientes que contribuíram para a desorganização de sua mente
também chegará.
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Nas neuroses, geralmente o desvelamento do conflito propiciado pela
interpretação do material inconsciente alivia a tensão intrapsíquica porque o
processamento (a elaboração) de certas experiências estava obstaculizado por
ausência de informações fundamentais (repressão) ou por alguma tensão
ambiental, isto é, nas relações interpessoais. Reiniciando-se o processamento das
informações, observa-se o alívio da tensão dentro do sistema e os desvios, as
variantes que estavam sendo usadas (os sintomas neuróticos) deixam de existir.
Na psicose o problema é diferente. Não se trata de uma obstaculização do
processamento de informações. O sistema como um todo desorganizou.
Curiosamente, a mente sempre apresenta uma tendência à reorganização (cujo
fruto, na psicose, é o delírio) que deve ser sempre aproveitada. O objetivo
terapêutico com este tipo de paciente, portanto, tem que ser diferente do objetivo
classicamente descrito. Enquanto o neurótico precisa se tornar consciente de seus
conflitos, o psicótico precisa se tornar consciente de sua fragilidade mental ou
egóica e melhorar sua capacidade de “mentalizar” as situações de vida pelas
quais passou, está passando e irá passar.
Infelizmente sabemos ainda muito pouco a respeito destes processos e
como ajudar o paciente a recuperar (às vezes construir) a capacidade de
mentalizar suas experiências. Apesar de haver um consenso no que diz respeito à
dependência de relações humanas significativas para o desenvolvimento da
capacidade de transformar os fatos vividos em experiências existenciais, ainda
sabemos muito pouco como esse processo (elaboração) se dá.
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O estudo dos aspectos psicológicos ligados ao aprendizado (aquisição de
elementos cognitivos da realidade) revelou que também o aprendizado depende
da presença de relações significativas. Educadores e psicanalistas afirmam que os
processos afetivos são fundamentais para o aprendizado e para o
desenvolvimento mental como um todo, mas a importância dos processos
cognitivos para a elaboração das experiências vividas tornou-se clara para mim
com a contínua observação não só de pessoas que passaram por episódios de
desorganização mental como também de pessoas em situações de ausência de
determinado conhecimento necessário para resolver a situação em que se
encontravam.
É um fato muito comum de se observar. Por exemplo, basta notar como
algumas pessoas reagem quando estão em posição de suposto saber ou de exame
(um professor diante dos seus alunos, um aluno sendo examinado, um membro
do poder executivo diante dos superiores ou de representantes do povo, um
analista diante de seu paciente, etc., etc., etc.), mas não têm os elementos
cognitivos que as capacitariam a sair-se bem na situação. Ao não conseguirem
reconhecer a falha cognitiva, apelam para os processos afetivos. Conforme a
característica de cada um, uns vão tentar sair usando a força de sua posição (é o
autoritarismo), outros através do convencimento afetivo (é a sedução) e outros
através da elaboração de uma parábola que inverte a situação, pois passa a ser o
outro que agora precisa entender e responder (é o delírio).
A intensidade dos sentimentos de vergonha, de constrangimento, o
emprego de mecanismos de dissociação, recusa ou rejeição da experiência são
bastante comuns nessas situações e revelam a capacidade disruptiva que pode
ter a experiência de falhas nos processos cognitivos5. A observação desses fatos
teve me mim o efeito de confirmar indelevelmente o axioma de que no ser
humano a ausência do conhecimento tem sido, e costuma ser, preenchida pelo
mito (individual ou grupal). Nos psicóticos também vemos as falhas dos
processos cognitivos serem preenchidas pelos processos afetivos (a mitologia
individual), mas de uma forma peculiarmente pessoal devido à desorganização
do próprio Ego6.
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Eksterman, A. (1986) Lacunas Cognitivas no Processo Analítico, in Boletim Científico da Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, R.J.
6
Na minha perspectiva, o Ego nada mais é do que um sistema virtual que operacionaliza o funcionamento
dos diversos sistemas (mnêmicos, volitivos, identificatórios, sensoriais, perceptivos, cognitivos, afetivos e
etc.) e programas (de aproximação da realidade e de interação ambiental em seus diferentes níveis de
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Talvez influenciados pelos importantes conceitos freudianos de
racionalização e intelectualização, acabamos nos afastando do estudo sobre o
papel que os elementos cognitivos têm no processo de elaboração. Creio que não
estarei errado ao afirmar, seguindo Abram Eksterman, que o Ego se forma e se
consolida não só através das experiências vividas nas relações humanas
significativas, mas também através da aquisição de elementos cognitivos
(informação, conhecimento). Aplicando esta hipótese à nossa prática terapêutica
posso afirmar que não se forma Ego através da interpretação de conflitos
inconscientes. Este tipo de intervenção psicológica serve para ampliar e para
fazer modificações na estrutura egóica, mas não forma e nem a consolida, às
vezes a desestabiliza.
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Minha experiência levou-me a concluir que a desorganização mental
costuma ocorrer basicamente em duas situações:
1. Na invasão da consciência de Processo Primário de Pensar carreado por
anseios pessoais ou culturais inseridos nas diversas situações da vida. Os
melhores exemplos são as crises que acontecem na emergência da
adolescência, no entrada na vida profissional, em torno do casamento e etc.
2. Em situações de maior exigência egóica, nas quais as falhas da estrutura
cognitiva se tornam evidentes. Nessas situações, o Processo Primário de
Pensar preenche as lacunas e as rachaduras existentes nos processos
cognitivos de uma forma peculiarmente individual e geralmente realizando o
desejo de vencer a exigência a que o indivíduo sucumbiu. Os melhores
exemplos desta situação podem ser vistos nas crises desencadeadas em
circunstâncias de mudança de vida, de saúde e etc.
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Ainda na minha experiência, são três as situações existenciais que
demandam maior exigência egóica quanto à elaboração (processo que envolve a
cognição e a afetividade):
1. A perda de uma relação significativa: por reeditar o rompimento diádico.
relacionamento: íntimo, pessoal e social) mentais, tornando possível a transformação dos fatos vividos
(sejam impulsos, desejos, situações reais, situações imaginadas e etc.) em experiências existenciais.
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2. A rejeição dentro de uma relação significativa: por instalar uma contradição
na mente caracterizada pela experiência da perda de uma relação
significativa, embora a pessoa esteja presente. É a “presença
enlouquecedora”, uma contribuição ao “objeto enlouquecedor” de García
Badaracco7.
3. A realização, cultural ou biológica: por desencadear ampliações e mudanças
na identidade.
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Considero estas três experiências fundamentais porque estão relacionadas
com elementos básicos da biologia, da cultura e do desenvolvimento psicológico.
A inclusão de qualquer uma dessas três vivências no espaço mental depende da
capacidade elaborativa do Ego e irá sempre provocar alterações significativas em
alguns dos mais importantes sistemas e programas em funcionamento na mente.
Elas, portanto, têm a capacidade potencial de provocar a desorganização de um
ou mais desses sistemas e programas.
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Como se realiza a tarefa terapêutica? Tenho algumas idéias. A
reorganização do Ego é feita através do diálogo terapêutico, que deve ser natural,
nada tecnificado ou estereotipado. Para a relação terapêutica se estabelecer é
fundamental que o paciente tenha um ambiente mínimo de sustentação e que o
analista seja capaz de criar um “Espaço de Segurança” na relação com seu
paciente, já que só em um “Espaço de Segurança” o paciente conseguirá tomar
consciência de sua fragilidade mental. Tenho observado que as defesas
onipotentes são as mais empregadas na ausência de um “Espaço de Segurança” e
a interpretação das mesmas sem a construção do referido “espaço” coloca o
paciente numa situação mentalmente insuportável, a qual pode provocar, como
reação, a interrupção do tratamento ou uma atuação com o colorido hetero ou
auto-agressivo. O analista tem um papel fundamental na criação do “Espaço de
Segurança” 8.
7
García Badaracco (1994), p.47.
Desde os estudos sobre o comportamento animal fornecidos pela Etologia sabemos que inúmeras espécies
precisam desse espaço para se desenvolverem e procriarem. Cada espécie constrói e mantém esse espaço de
uma maneira. Nos seres humanos, esse espaço é psicológico, construído e mantido pelas relações
significativas.
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O ritmo dos encontros vai depender das condições materiais do paciente
(condições financeiras, distância, etc.) e do analista (disponibilidade de tempo),
como também das condições subjetivas do paciente (capacidade egóica ainda
preservada: maior ou menor necessidade de ego auxiliar) e do analista
(capacidade de desempenhar o papel de ego auxiliar e não de superego auxiliar).
Além disso, em hipótese alguma devemos tentar ser a tela branca para as
projeções do paciente. Como Dante fez com seu Virgílio, devemos ser o
companheiro de viagem através dos infernos da desorganização mental. Uma
vez construído o “espaço de segurança” através de uma relação real e humana, o
analista vai poder observar a realidade e a adequação das percepções e dos
pensamentos do seu paciente, defensivamente encobertos pelas alucinações e
delírios. Poder-se-á iniciar então, e só então, o delicado trabalho de
conscientização da realidade das próprias percepções e pensamentos do
paciente. Na minha experiência, a conseqüência deste trabalho é a inegavelmente
dolorosa e sofrida consciência das falhas irreparáveis das figuras de apego. Se,
por um lado esta consciência diminui a culpa pelas críticas, pelos desejos
homicidas e por todas as formas de expressão da raiva e do ressentimento
impotentes, por outro lado engendra a percepção da verdadeira dimensão
existencial do paciente. Muitos pacientes e familiares interrompem o tratamento
neste momento.
A consciência da fragilidade mental é adquirida em etapas. Não se deve
incentivar a livre-associação, assim como também não se deve forçar o
aparecimento de lembranças reprimidas e nem de complexos inconscientes.
Tanto a livre associação como o aparecimento de lembranças e de complexos
reprimidos correspondem à entrada de Processo Primário de Pensar na
consciência, o que implica numa maior exigência de trabalho elaborativo para o
Ego. Não se deve favorecer a entrada de mais Processo Primário de Pensar na
consciência enquanto não houver Ego suficientemente forte para levar adiante o
trabalho de elaboração. Cabe ao analista a administração desse processo, caso
contrário a conseqüência costuma ser uma nova desorganização, o
aprofundamento da desorganização em curso ou alguma reação negativa do
paciente em relação ao analista.
Aproveitar os momentos oportunos para dar informações ao paciente
sobre o seu próprio funcionamento mental tem se mostrado muito útil no
processo de reestruturação egóica. Costumo aproveitar as experiências atuais dos
pacientes para demonstrar (apresentar) como suas reações psicológicas ao seu
ambiente estão “protegidas” em suas criações mentais (delírios e alucinações);
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como estas criações mentais, aparentemente estranhas e absurdas, são criadas a
partir dos processos psicológicos do próprio paciente; como situações passadas
traumáticas são atualizadas nestas experiências e expressas em suas peculiares
criações mentais ao invés de serem reconhecidas como lembranças e/ou como
feridas psicológicas provenientes das relações do paciente.
Tenho ponderado bastante quanto ao uso de interpretações
transferenciais, pois elas tendem a dissolver a transferência e a identificação
(elementos básicos do vínculo terapêutico, portanto fundamentais para que o
processo se desenvolva) ao tornarem conscientes estes processos inconscientes.
Também tenho ponderado bastante quanto ao enfrentamento das técnicas
defensivas dos pacientes. De uma maneira geral, acredito que as defesas devem
ser preservadas.
Um outro elemento muito importante, sempre presente no tratamento de
pacientes psicóticos e com ampla repercussão no funcionamento mental deles é
a luta (pré-consciente) contra a própria (e freqüentemente também do ambiente)
estigmatização. Essa empreitada costuma gerar sintomas secundários como a
dissimulação, uma certa necessidade de se mostrar normal, a negação das
próprias experiências psicológicas e outros mais. Apesar de ter uma importância
direta nos relacionamentos afetivos e sociais dos pacientes, esta é uma área quase
sem nenhum estudo. Minha impressão de que a ausência deste esforço do
paciente em vencer a sua própria (e a do meio) estigmatização costuma ser sinal
de maior deteriorização egóica também precisa de melhor investigação.
Resumindo, se as psicoses são expressões da desorganização da mente nas
quais os processos afetivos ocupam e preenchem as lacunas e rachaduras dos
processos cognitivos, não devemos tratar psicanaliticamente os psicóticos
tentando descobrir e/ou revelar novos ou excluídos sentidos psicológicos nas
suas criações mentais (delírios e alucinações), como, aliás, se faz com os sintomas
histéricos. No tratamento psicanalítico de pacientes psicóticos devemos utilizar
suas produções mentais para entender as falhas, desagregações e rachaduras dos
processos cognitivos, delirantemente coladas pelos processos afetivos. Para isso,
o conhecimento sobre o desenvolvimento dos processos afetivos e cognitivos é
fundamental.
Ao longo da história do movimento psicanalítico muito já se discutiu
sobre quem deveria medicar os pacientes graves em análise. Sem querer estipular
uma regra geral em algo que não pode ter regra geral, minha experiência diz que
a resposta à pergunta está na dependência do conhecimento psicofarmacológico
10
e na maneira como o psicanalista irá usar a medicação. Saber usar as diferentes
drogas, conhecer seus diferentes efeitos e para-efeitos e usá-las de acordo com os
movimentos psicodinâmicos do paciente, e não apenas de acordo com a
sintomatologia produtiva, não costuma atrapalhar o desenvolvimento do
trabalho psicanalítico. Pelo contrário, com estes pacientes geralmente é o que
permite o desenvolvimento inicial do processo terapêutico.
Deve-se sempre avaliar as indicações e as contra-indicações do
encaminhamento para medicação por outro profissional. Sendo o próprio
psicanalista a medicar seu paciente evita-se a, de outra forma inevitável, disputa
quando dois profissionais acompanham o mesmo paciente. E, todos sabemos,
essa disputa se presta como uma luva para a manipulação defensiva dos
familiares, do próprio paciente ou dos próprios profissionais.
Outro ponto a ser considerado ao se pensar em medicar um paciente e
quem irá fazê-lo é a freqüente reação de fracasso, passiva ou ativamente vivida, e
de perda de confiança do paciente em seu analista. É muito comum o psicanalista
que não consegue lidar bem com seus próprios limites assistenciais racionalizar
essas reações do paciente atribuindo-as ao próprio: necessidade de idealização,
necessidades onipotentes, etc. Ao entender assim, o analista acaba reeditando na
relação com seu analisando o sistema de comunicação usual na vida deles: mais
uma vez eles são usados como depositários das insuficiências ou dos fracassos
alheios.
Era isso que eu tinha preparado para apresentar para vocês. Obrigado
pela atenção.
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Bibliografia:
1. Balint, M. (1979) The Basic Fault. Tavistock publications, N.Y.
2. Bowlby, J. (1993) Apego. Ed. Martins Fontes, S.P.
3. Bowlby, J. (1993) Separação. Ed. Martins Fontes, S.P.
4. Bowlby, J. (1993) Perda. Ed. Martins Fontes, S.P.
5. Eksterman, A.J. (1986) Lacunas Cognitivas no Processo Psicanalítico, in
Boletim Científico da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro,
R.J.
6. Etchegoyen, R.H.(1987) Fundamentos da Técnica Psicanalítica. Ed. Artes
Médicas, P.A.
7. García Badaracco, J.E. (1994) Comunidade Terapêutica Psicanalítica de
Estrutura Multifamiliar. Ed. Casa do Psicólogo, S.P.
8. Lacan, J. (1988) O Seminário, Livro 3, As Psicoses. Ed. Jorge Zahar, R.J.
9. Tenenbaum, D. (1999) Investigando Psicanaliticamente as Psicoses. Ed. Sette
Letras, R.J.
10. Thomä, H.; Kächele, H. (1992) Teoria e Prática da Psicanálise, vol.I –
Fundamentos Teóricos. Ed. Artes Médicas, P. Alegre.
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