Sobre derrotas e conquistas no exercício do direito à cidade

Transcrição

Sobre derrotas e conquistas no exercício do direito à cidade
Sobre derrotas e conquistas no exercício do direito
à cidade: reflexões a partir de experiências recentes
nas cidades da Argentina1
María Carla Rodríguez
María Laura Canestraro
Marianne von Lücken
O trabalho analisa três experiências em cidades importantes da Argentina
(Buenos Aires, Córdoba e Mar Del Plata), onde se coloca em jogo a disputa pelo
direito à cidade. É enfatizado o que Borja (2004) considera uma das dimensões
chaves deste processo: a política institucional que atende às condições para a
formalização, consolidação e desenvolvimento de políticas para sua criação.
Retrocessos, derrotas e conquistas provisórias mostram o direito à cidade como
um campo de disputa essencialmente política.
Políticas urbanas e centralidades excludentes
Na Argentina, desde o começo dos anos 90, os governos vêm exercendo um
papel relevante como gestores das necessárias condições para a implantação
de transformações da escala urbana e como pontapé inicial de processos de
valorização (Herzer 2008). Em pleno auge neoliberal as principais cidades se
envolveram num modelo de políticas urbanas que Arantes (2003) denomina
como a terceira geração urbanística, que incluem o gerenciamento e um léxico
explicitamente empresarial, articulado com uma particular ressurreição do
planejamento urbano: estratégico e flexível, por fragmento e por projeto. Assim,
a política, o Estado e as capacidades públicas se orientaram à dinamização dos
mercados dos quais a cidade sempre foi suporte e base material – começando
pelo solo urbano – e agora, também, ela mesma convertida em objeto de marca.
Tudo isso sob a adequação, modificação e, inclusive, transgressão de diversos
marcos normativos.
1
Está análise se estrutura nos objetivos do projeto UBACYT S431 “Produção social do hábitat
e políticas públicas nas principais cidades da Argentina” (2008-2010) dirigido por María carla
Rodríguez. Articula resultados de dissertações de mestrado, bolsas e pesquisas das autoras.
182 Ciudades para tod@s
Em Buenos Aires, a título de exemplo, destacam-se modificações nos códigos de
planejamento urbano e de obras, criação de corporações de âmbito nacional e da cidade
(Puerto Madero e do Sul), orientação das decisões de investimento em infraestrutura
e revalorização do espaço público, além de um Plano Urbano Ambiental que coroa
juridicamente as mudanças que o precederam (Rodríguez, Bañuelos e Mera, 2008).
Em Córdoba, houve a criação de uma Corporação Imobiliária Provincial, a
transferência de terras públicas para projetos de “marca”, mudanças nos códigos
de construção, um plano de recuperação da orla e zonas circundantes do Rio
Suquia, intervenções na área central e apelo a acordos público-privados.
Em Mar Del Plata, foi elaborado um Plano Estratégico cuja junta promotora
foi impulsionada pelos interesses empresariais e profissionais, sendo que o
município foi convocado a posteriori. Seu diagnóstico resultou em um Plano de
Ordenamento Territorial centrado na valorização da zona costeira – viabilizada
por crescentes processos de privatização do espaço público – como Playas Bristol
y del Sur – e de centros comerciais, com vistas a reposicionar a cidade como
principal destino turístico do país (marca amardelplata).
Inseridas nestas dinâmicas de reestruturação das centralidades urbanas, as
áreas históricas de Villa2 La Maternidad (Córdoba), Villa de Paso (Mar Del Plata) e a
Ex AU3 (Buenos Aires) são objeto de políticas que questionam a permanência de
seus habitantes de baixa renda.
A Ex AU3, Villa La Maternidad e Villa de Paso: entre desocupações forçadas e
resistência
A Ex AU3 é uma extensa faixa de imóveis desapropriados pela intendência3 durante
o último governo militar (1976-1983) para executar uma autopista que não se
concretizou. A ocupação se iniciou no começo dos anos 80. São 15 quarteirões
(aproximadamente 1113 imóveis) numa localização em zonas de classe média e
média-alta (Colegiales, Cohglan, Villa Ortuzar, Saavedra), onde o preço do m²
ronda os U$S 15004.
2
3
4
“As villas podem ser definidas como ocupações de solo urbano vazio que produzem traçados
urbanos bastante irregulares, organizados a partir de corredores pelos quais geralmente os
veículos não podem transitar. Constituíram-se prioritariamente mediante práticas individuais
familiares e diferenciadas ao longo dos anos. Nas suas origens, os ocupantes construíam suas
moradias com materiais precários e, com o passar do tempo, realizavam melhorias de diferente
envergadura e qualidade. Inicialmente, conformavam moradias térreas que, a partir de um núcleo
básico, desenvolviam-se progressivamente. Em seguida, com variações segundo a localização e
inserção urbana, inicia-se um processo de densificação que inclui a ocupação de vazios urbanos,
bordas de vias férreas, etc. e a construção em altura”.
Prefeitura
Entre 2001 e 2006 houve um incremento de 54% nos preços do solo da zona norte. Fonte: Unidad de
Sistemas de Información Geográfica, DGEyC. GCBA.
Experiências - Lutas populares 183
Um censo de 2000 cadastrou 942 famílias residentes antes de 1996, porém até
2003 a mesa de delegados estimava um total de 15005. Nos anos 80, o governo
local tolerou a ocupação e iniciou a assinatura de comodatos que outorgavam
uma aparência de legalidade aos habitantes, mas freavam o desenvolvimento de
pretensões posteriores (Rodríguez 2005).
Em 1990 o projeto da autopista6 foi reativado e o Conselho Deliberativo
sancionou em 1991 a ordenança 45520, para alcançar um projeto integral e
combinado, que não prosperou7. Em 1997 se construíram 20 blocos de via rápida,
enquanto ocupantes organizados com o apoio de associações de moradores
frentistas promoviam, através de mobilizações, a resistência a centenas de
notificações de despejo emitidas por Procuração. Em 1998, no marco da
autonomia política, sancionou-se a Lei 8, que institucionalizou a participação da
mesa de delegados e deu lugar ao censo que estabeleceu um padrão de beneficiários
reconhecidos. Em 1999, a Lei 324 criou o Programa de recuperação do traçado ) da
EX-AU3e sua Unidade Executiva para definir um plano de recuperação urbana
para a área, um plano de recuperação patrimonial (que concebe a propriedade
pública como ativo imobiliário com o objetivo de autofinanciamento do projeto)
e um plano de soluções habitacionais para os ocupantes.
Em relação à questão habitacional, entre 2002 e 2007 se desenhou um
menu flexível com quatro alternativas: construção de habitação econômica em
terrenos baldios existentes no traçado (autoconstrução) venda aos ocupantes
daqueles imóveis que se adaptaram às possibilidades das famílias, concessão
de créditos individuais ou coletivos (derivando-os à operação de autogestão do
hábitat – Ley 3418) e incorporação de projetos subsidiados para as famílias de
menos recursos (incluindo comodatos vitalícios para chefes de família pobres
5
6
7
8
Em termos sócio-econômicos, a população é heterogênea. Envolve autopista com equipamento
(oficinas de restauração de móveis, mecânicos, conserto de bicicletas); serviços domiciliares
(entregadores de gás, encanadores, jardineiros), funcionários públicos municipais, assalariados
do setor privado (construção, fábricas alimentícias próximas), trabalhadores de baixa qualificação
ou ocasionais (empregadas domésticas, carregadores) e desempregados.
Os atores empresariais vinculados com a execução da infraestrutura urbana estabelecem acordos
em âmbito nacional, particularmente, com o Ministério de Economia e Obras Públicas (onde são
predefinidas os traçados)
Para incluir empresa rodoviária, possíveis construtoras de habitações públicas em terrenos
remanescentes do traçado organização de ocupante, outros mutuários, associações de moradores
frentistas
Esta Lei, no mesmo período, foi produto da luta de movimentos urbanos de base cooperativa
autogestionada (inicialmente o MOI-CTA e a Mutual de Desalojados de la Boca e, em seguida, dezenas
de atores sociais e políticos no contexto da crise de 2001). Em contraponto à política urbana
neoliberal, foi concebida uma operação que permite a autogestão dos recursos, constituindo um
banco de 100 imóveis de localização central de propriedade das cooperativas, alguns conjuntos
emblemáticos em termos de qualidade e custo, além de uma rede de 500 cooperativas que
atualmente sustentam esta via autogestionada de luta pelo direito à cidade.
184 Ciudades para tod@s
e com mais de 65 anos). Em seis anos, até dezembro de 2007, somente 27%
da população recenseada (259 famílias) concretizou algum tipo de solução.
Já nessa época, na Legislatura, iniciou-se a disputa para incorporar esse solo
público ao mercado imobiliário.
O governo Marcri (gestão atual) enfatizou o re-zoneamento e renovação
urbana (são 15 quarteirões avaliadas em mais de 100 milhões de dólares)9. Para
as famílias residentes – estimadas entre 450 a 700, cadastradas ou não – Macri
infringe o marco legal vigente e começa a instrumentar desocupações arbitrárias
e pressão com subsídios ad hoc10, caso a caso, e para os residentes, desocupação
administrativa.
Ao final de 2008 a onda de desocupações tornou-se mais forte. Houve
a intervenção do Poder Judiciário e, em abril de 2009, uma sentença ordenou
a suspensão das mesmas. Os delegados iniciaram ações de amparo perante a
justiça11. O conflito continua “corpo a corpo”, no território.
Com aproximadamente 70 anos12, Villa La Maternidad, é uma das mais antigas
de Córdoba. Cresceu vinculada à linha de trem e atividades econômicas do Bairro
São Vicente13, onde se situa. Está localizada a dez quadras do centro da cidade
e cinco do Terminal de Ônibus. Em meados de 2004, quando foi violentamente
desocupada pelo Governo Provincial, habitavam aí cerca de 350 famílias que
desempenhavam atividades acessíveis à área: construção, serviço doméstico,
coleta e armazenamento de resíduos, comércio ambulante e pequenos serviços
nos hospitais próximos.
A propriedade das terras é uma questão conflituosa. Por um lado, o Poder
Executivo Provincial reclama sua propriedade, em virtude de um projeto histórico
de desenvolvimento urbano14. Por outro, existem planos cadastrais de 1943, que
incluem os atuais lotes da Villa. A partir destes, alguns moradores reclamaram
9
10
11
12
13
14
Empresários do setor imobiliário e da construção trabalham sobre a futura venda dos terrenos
(LPO online).
96 mil pesos para beneficiários da Lei 324 e até 25.000 para os demais ocupantes.
54 pessoas iniciaram a ação de amparo legal. Previamente outras 30 famílias haviam apresentado
outra que está tramitando na Sala II da Cámara del Fuero Contencioso Administrativo y Tributario.
Em Relevamiento de la Agencia Córdoba Ambiente se sustenta que sejam 70 anos; em “Evolución de
Villas de Emergencias en Córdoba 2001-2007, localización y estimación de población”, SEHAS
(2007), estimam-se 65; em www.argentina.indymedia.org/news/2005/03/2700600.php, declaramse 100 anos.
O bairro São Vicente, fundado em 1870, é um dos bairros tradicionais da cidade de Córdoba.
Inicialmente foi zona de veraneio e logo foram se instalando diferentes atividades produtivas,
como Moinhos, Matadouros, fábricas de gelo, de tijolos, de cerveja, atraindo mão-de-obra e
conformando um bairro de operários que pouco a pouco foi se conectando com o centro da
cidade através da criação de infraestrutura urbana.
Projeto Crisol, Lei 1040/11886, pela qual seriam expropriadas para um proprietário particular
(Garzón) para este fim.
Experiências - Lutas populares 185
direito de posse por estarem habitando o lugar, de forma pacífica, por mais de
10 anos.
Em 2001, em função das inundações ocorridas em março de 2000, o governo
provincial declarou a emergência habitacional sentando as bases para o programa
Minha Casa, Minha Vida15, cuja execução implicou a transferência massiva da
população das áreas centrais e arredores, para novos conjuntos habitacionais
denominados bairros ou cidades-bairros16, localizados na periferia. Para tanto, o
município modificou os usos do solo.
A população de Villa la Maternidad, junto com outras17, foi reassentada em
Ciudad de Mis Sueños, a 14 km do centro (adjacente ao bairro Ituzaingó Anexo,
conhecido nacionalmente pelo conflito relacionado aos agrotóxicos e seus efeitos
cancerígenos). O conjunto, inaugurado em 2004, conta com 565 habitações.
A remoção forçada, decidida pelo governo provincial, utilizou técnicas de persuasãochantagem, mediante um levantamento com trabalhadores sociais e a ação de agentes
locais, somados a um subsídio de 300 pesos por família, para facilitar as mudanças.
Somente 32 famílias opuseram resistência, por terem nascido no lugar,
por problemas de saúde associados à nova localização, por deterioração das
condições de trabalho, pelo aumento dos custos em transporte e pela ruptura de
estratégias de subsistência.
A remoção aconteceu de forma violenta em junho de 2004. Usou-se tratores,
o que remete de forma direta a erradicação de vilas durante a última ditadura
militar e que também derrubou, por equívoco, parte das habitações de famílias que
não estavam de acordo com a mudança, semeando pânico. Alguns moradores
buscaram ajuda externa e a resistência foi acompanhada por profissionais,
organismos de direitos humanos e outras organizações18. Formou-se uma
Comissão Contra o Despejo da Villa La Maternidad, que montou uma estratégia
defensiva de difusão e um recurso de amparo. O Estado Provincial, por sua vez,
realizou ações legais de usurpação19.
15 O nome original é Projcto de Emergência para a Reabilitação dos Grupos Vulneráveis afetados pelas
inundaçiões (1287- OC- AR) estruturado no Programa para el apoyo a la Modernización del Estado en
la Provincia de Córdoba a partir de um empréstimo do BID.
16 Cidades-bairross são denominados aqueles conjuntos habitacionais que contam com mais de 250
unidades e possuem equipamento comunitário, tais como posto de saúde, escola, posto policial.
17 Como Mandrake, Los 40 Guasos, Vagones de la Estación Mitre, Guiñazú, além de parte de Villa la
Maternidad.
18 Como CUBa Mbs (Coordinadora de Unidad Barrial), Agrupación Otro Cantar, MTR (Movimiento
Teresa Rodríguez), La Comuna, Indymedia (Centro de Medios Independientes), CEPRODH (Centro de
Profesionales por los Derechos Humanos), SERPAJ (Servicio de Paz y Justicia de Córdoba), profissionais
e estudantes independentes, contatos na cidade de Buenos Aires, com o MOI-CTA, o Movimiento
por la Reforma Urbana, etc.
19 Em virtude da rescisão do Projeto Crisol (Lei 1254), o Estado reclama as terras.
186 Ciudades para tod@s
As negociações tensas e complexas com os que resistiram se transformaram
na assinatura de sucessivos convênios orientandos à urbanização da zona sem
obter, no entanto, resultados concretos20. A organização interna da Villa avançou
com a construção de um centro comunitário, dedicado a tarefas de apoio escolar,
alimentício, recreativo e horta comunitária.
Em 2008, o governo municipal, junto ao provincial e empresas privadas, lançou
um plano diretor, que inclui a construção de um centro cívico e de convenções
adjacente a Villa La Maternidad, evidenciando a persistência do conflito pela
apropriação dessa área. Atualmente, as 32 famílias conseguiram amparo legal
e levam adiante processos por usurpação. Outras famílias regressam de Ciudad
de Mis Sueños e novas se somam. O governo provincial busca negociar de forma
individual, caso por caso.
A Villa de Paso se origina por volta de 1940, sendo uma das primeiras de
Mar del Plata em terras de domínio privado e numa das zonas mais altas – o
bairro San Carlos – mas sem infraestrutura. Por sua localização foi uma das de
maior crescimento21 e atualmente se assenta numa das terras mais valorizadas,
estimando-se em U$S 200 o m² em 2006.
Em 2005, o Município fez o levantamento de 430 famílias (1782 pessoas)22, das quais
aproximadamente 70% se localizavam abaixo da linha de pobreza. Sobre a situação de
posse, o primeiro censo realizado em 1998, identificava situações diversas; proprietárias
(7,7%), cessionários de proprietários ou terceiros (13,7%); inquilinas (1,8%); ocupantes
de fato (68,2%) e outros (8,6%). Porém essa variável foi omitida em 2005.
Já em 1970, levou-se adiante uma primeira tentativa de reassentamento
que não prosperou. Durante o governo de Aprile, o assunto foi reinstalado.
Em 1997, um Conselheiro, ex presidente da Asociación Vecinal de Fomento (AVF)
– Associação de Moradores para Fomento – do bairro propôs o revisão do
zoneamento e o reconhecimento dos direitos de posse a alguns habitantes. A
proposta, no entanto, não obteve apoio. Em 1999 foi aprovado o Programa de
Relocalización Asentamiento Precario Poblacional Paso (Programa de Realocação
Assentamento Precário Populacional Paso), que omite o reconhecimento de
tais direitos e repassa o compromisso do Estado com a garantia do direito a
moradia para zonas periféricas, carentes de infraestrutura de serviços.
20 O último convenio entre os moradores da villa e o Ministério de Desenvolvimento Social foi
assinado no dia 2 de janeiro de 2009.
21 Como o caso de La Maternidad também se vincula com a acessibilidade às fontes de trabalho
(pesca, gastronomia ou construção), por parte de seus habitantes – a maioria migrante de outras
províncias.
22 Existe oscilação sazonal. No verão acontece um incremento e em seguida, muitos regressam
para suas cidades de origem. Por isso também variam os níveis de trabalho. Naquele momento
somente 9% tinha emprego formal.
Experiências - Lutas populares 187
Por este motivo, o município impulsionou a desapropriação a seu favor, com
sentido inverso aos processos de regularização fundiária, levados em municípios
do AMBA nos anos 90, sendo que esta medida favorecia a posterior transferência
e regularização dos ocupantes, para projetos que foram sustentados pelo
desenvolvimento de organizações territoriais.
Originariamente se considera a desculpa de financiar a operação de realocação
e cobrir os gastos indenizatórios de títulos de propriedade. Porém os tempos se
dilataram e o financiamento habitacional partiu do governo provincial, com o
Programa Bonaerense IX – Dignidad. A desapropriação, no entanto, não foi freada,
sendo poucos os proprietários originários das terras que se apresentaram perante
o município para conciliar os termos da indenização referente ao pagamento dos
lotes23.
Em 2003, os moradores dos arredores da Villa formaram a Comisión
Administratora Mixta Municipalidad-Vecinos para la Erradicación Del Asentamiento
Paso (Comissão Administrativa Mista Município-Moradores para a Erradicação
do Assentamento Paso), para pressionar pelo reassentamento. Contudo, tal
remoção recebeu resistência nos bairros de destino, com ações de mobilização,
exposições perante o Conselho Deliberativo e ações judiciais, em geral
encabeçadas pelas AVF. Quando os habitantes da Villa protestaram, pedindo
indenização para desocupar seus terrenos e escolher onde viver, estas AVF os
apoiaram taticamente. Porém a resistência na Villa contra o reassentamento foi
escassa, limitando-se sempre a ordem de indenização-escolha.
Os prazos de execução (240 dias) se estenderam e a demora trouxe novos
conflitos. A primeira remoção de 18 famílias se concretizou recentemente em
novembro de 2006 e logo houve paralisação das obras.
No início de 2008, produziu-se a ocupação de 145 unidades habitacionais
em construção no bairro El Martillo destinadas ao reassentamento, por
aproximadamente 300 moradores do bairro Pueyrredón, também com críticas
necessidades habitacionais. Em virtude das reclamações das empresas
construtoras e também da intermediação municipal, a desocupação foi
concretizada em menos de 24 horas.
As 20 famílias seguintes foram reassentadas recentemente, em novembro de
2008 e fevereiro de 2009, no Bairro Las Heras, paralelamente a licitação de obras
de água e esgoto. Neste contexto, em janeiro de 2009, 54 famílias de Puyrredón
reincidiram na ocupação de El Martillo gerando diversas práticas autogestoras e
acompanhadas por uma rede de organizações. No dia 17 de abril, a justiça local
23 Aproximadamente 15 lotes, sendo que o resto seria denunciado como herança vacante). Sem
dúvida, estavam dadas as condições para uma solução alternativa como, por exemplo, a
urbanização da Villa.
188 Ciudades para tod@s
ordenou a desocupação, que se traduziu num forte exercício de repressão policial.
Atualmente, foram reassentadas somente quase 60% da população da
Villa, enquanto que os sem-teto, expulsos de Martillo, mantêm um processo
organizativo de corte autogestivo que luta pela garantia do direito à habitação.
O direito à cidade como campo de disputa
A análise comparativa mostra como o espaço urbano se reestrutura de maneira
dinâmica e atua como meio para o desdobramento de processos sociais,
econômicos, culturais e políticos24. Esta dinâmica conflituosa em torno do uso e
destino centralidades urbanas denota antagonismos constituintes da sociedade
capitalista, tal como estão sendo desenvolvidos em contextos sócio-políticos
democráticos.
A centralidade está se tornando um bem de caráter crescentemente exclusivo
e excludente, minando a possibilidade de constituição do direito à cidade como
um universo integrador, ao replicar modelos exteriores que incluem como peça
recorrente a reestruturação de áreas centrais a serviço das dinâmicas de valorização.
Os governos locais – com níveis díspares de autonomia se consideramos que
a cidade de Buenos Aires é quase uma província – apresentam a tendência a
atuar como facilitadores desses processos, que privilegiam a atores públicos e
privados de níveis superiores. No entanto também, em contextos democráticos,
esses mesmos governos locais, em particular nos âmbitos legislativos, vêm
gerando campos de negociação/confrontação que possibilitaram incluir vozes e
estratégias dos setores de baixa renda. O poder judiciário também aparece, com o
mesmo sentido, abrindo espaços para incluir mais vozes nessa disputa.
No plano institucional, o conflito se desdobra entre distintos direitos como
parte de uma dinâmica social antagônica: por um lado aqueles que sustentam
critérios de radicação ligados ao reconhecimento do processo histórico – e
organizativo – de povoamento e uso dos habitantes – com independência
da relação entre renda e o preço do solo que habitam –; e, por outro, marcos
institucionais que privilegiam negócios de mercado amparados no direito
ilimitado de uma propriedade privada, que tende a apagar suas histórias
arbitrárias e expropriadoras de constituição.
Neste contexto, naturalizam-se definições da política privatizadora do solo
público, argumentando fins de redistribuição social, que bem poderiam acontecer
com outros instrumentos (venda setor 5 e de Villa de Paso, para fazer habitações
ou infraestrutura).
24 Seguindo o tipo de orientação proposta por Henry Lefevbre em “A Revolução Urbana” (1970)
Experiências - Lutas populares 189
Estes conflitos pela apropriação do solo central envolvem tramas interativas
que evidenciam fronteiras porosas entre Estado e sociedade civil: existem atores
e interesses de classe em ambos os lados do mostrador, suas lógicas se viabilizam
através da articulação de redes, cujo nível de análise privilegiado é médio e
diacrônico. Essas tramas canalizam a agitação e moldam a institucionalidade em
função de correlações de forças que modulam as pressões estruturais.
Finalmente, os direitos das camadas populares, somente são defendidos
na presença de organização e desenvolvimento de estratégias políticas para
transformar as relações sociais e então concretizá-las.
Bibliografia
Borja J. (2004), “Los derechos en la globalización y el derecho a la ciudad”, Revista Mientras
Tanto, Barcelona.
Canestraro M.L. (2006); “De acciones y omisiones en la apropiación del espacio.
Reflexiones a partir de una política urbana”, Tesis Maestría en Ciencia y Filosofía
Política (UNMDP), mimeo.
Herzer H. (2008); Con el corazón mirando al sur; Espacio editora; Buenos Aires.
Retaroli, Eguiren, Alvarez, Cohen, Rubioli (1997); Los Barrios Pueblos de la Ciudad de
Córdoba. La Ciudad objeto didáctico; Ediciones Educor, Córdoba.
Rodríguez M.C., Mera G. y Bañuelos C. (2008) “Políticas urbanas en ciudad de Buenos
Aires”. En Con el corazón Mirando al Sur. Herzer H. (comp). Espacio editora;
Buenos Aires.
Rodríguez M.C. (2005), Como en la estrategia del caracol...Ocupaciones de edificios y
políticas municipales del hábitat en la ciudad de Buenos Aires; El Cielo por Asalto,
Buenos Aires.
Smith N. (2002), “New globalism, new urbanism: gentrification as global urban strategy”
Antipode. Blackwell. USA.

Documentos relacionados