evolução da administração pública da saúde: o papel da
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evolução da administração pública da saúde: o papel da
INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS DO TRABALHO E DA EMPRESA (ISCTE) EVOLUÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE: O PAPEL DA CONTRATUALIZAÇÃO FACTORES CRÍTICOS DO CONTEXTO PORTUGUÊS Ana Maria Escoval da Silva (Mestre) TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM ORGANIZAÇÃO E GESTÃO DE EMPRESAS Orientadores Científicos: Prof. Doutor Cipriano Justo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS) Prof.ª Doutora Elizabeth Reis do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) LISBOA Novembro de 2003 Resumo Através da investigação teórica analisa-se o processo de implementação da contratualização em Portugal e procura-se perspectivar o seu desenvolvimento. Questionam-se ainda os factores críticos que no contexto português condicionam a implementação de políticas de mudança no sector da saúde e perspectiva-se o desenvolvimento deste importante instrumento de mudança à luz dos ensinamentos obtidos, quer na revisão bibliográfica quer nos casos Inglês e Espanhol. Com o presente trabalho pretende-se contribuir para uma correcta sistematização dos principais conceitos sobre políticas de saúde, sistemas de saúde e contratualização e, principalmente, constituir uma base sólida para se continuar a discutir a metodologia de distribuição de recursos mais adequada ao caso Português. Do trabalho desenvolvido conclui-se que a contratualização pode melhorar e recentrar a comunicação à volta do desempenho e dos resultados obtidos e, por essa via, ajudar a recolocar a qualidade do diálogo em torno das políticas, bem como da sua definição, assentando o seu sucesso a médio e longo prazo em três pré-requisitos: (i) um clima de confiança que se deverá estabelecer entre as partes e que se supõe atender a um certo equilíbrio entre considerações formais e informais, a existência de um diálogo permanente, a troca de informação, a negociação, a clareza dos objectivos e o respeito mútuo; (ii) um compromisso em perseguir um objectivo comum e tornar transparentes os resultados obtidos, bem como dos adequados mecanismos de gestão e de avaliação e (iii) uma visão de conjunto que permitirá compreender que a contratualização não poderá cobrir a multiplicidade de factores ligados à gestão do desempenho, à cultura organizacional, às considerações políticas e aos aspectos administrativos que intervêm uma relação contratual. Segundo a opinião dos peritos envolvidos, a história recente da contratualização no sistema de saúde Português, apesar de ainda não existir informação quanto ao real impacte no sistema de financiamento e tendo em conta a fraca capacidade de acompanhamento, a experiência e amadurecimento do processo por parte das agências e dos gestores das organizações, apresenta resultados bastante encorajadores no que se refere às mudanças de atitude, pois parece incentivar as boas práticas de gestão aos diversos níveis. Por outro lado, aqueles peritos defendem que a consolidação do processo é um projecto de médio/longo prazo, que exige continuidade, mas que tem grande imprevisibilidade, dada a sua grande dependência da vontade política. Defendem, ainda, que em termos genéricos a contratualização tem-se limitado à gestão de alguns objectivos, descentralizando algumas decisões e relacionando custos com actividades. No entanto, a hierarquia verticalizada do sistema parece dificultar a inovação e a aplicabilidade do desenvolvimento do processo. Por último, dizem que já estão sobejamente identificados os principais problemas de que o sistema enferma (o Estado deixa-se capturar pelos diferentes actores da área da saúde, não tendo sabido criar uma visão estratégica que lhe permita ser um negociador sério e representante rigoroso dos cidadãos, nem tem actuado como regulador no sistema, existindo consenso entre os diferentes intervenientes na área da saúde sobre como intervir: reformar o sistema de modo a torná-lo mais justo e mais eficiente e investir na criação de instrumentos que apoiem e desenvolvam uma boa governação da saúde. PALAVRAS-CHAVE: Actores; contratualização; reformas e Serviço Nacional de Saúde. Abstract Through a theoretical research, the implementation of the contracting process in Portugal is analysed and its development is envisioned. In addition, the critical factors, which constrain the implementation of change policies in the Portuguese health sector, are questioned. The development of this important tool of change is envisioned in the light of relevant findings, arising both from the literature review and from the British and the Spanish cases. The present work aims at contributing to a correct organization of the main concepts and terms of health policies, of health systems and of contracting, and mainly at building a solid base to support the ongoing discussion about the most adequate resource allocation model for Portugal. From the work developed, one can conclude that contracting can improve and reset communication on performance evaluation and results and thus, help redefine the quality of the dialog on policies as well as on their definition. The medium and long range success of contracting lies in three pre-requisites: (i) a climate of thrust to be established between the parts and which is supposed to consider a certain balance between formal and informal considerations, the existence of a permanent dialogue, the sharing of information, the negotiation, the clarity of objectives, and mutual respect; (ii) a compromise to pursue a common objective and to make results clear, as well as to make clear the adequate management and evaluation mechanisms and (iii) a holistic approach which will enable the understanding that contracting will not cover all the multiple factors related to performance management, to organizational culture, to the political considerations and to the administrative issues that intervene in a contracting relationship. According to the experts involved, the recent history of contracting in the Portuguese health system shows encouraging results, in spite of the absence of information about its real impact on the funding system and bearing in mind the existence of weak accompanying mechanisms. The maturing experience of both the contracting agencies and the organization managers evidence positive signs of behavioural change, since good management practices at different levels seem to have been encouraged. In addition, those experts sustain that the consolidation of the process is a medium/long term project, which needs continuity, but which is highly unforeseeable, as a consequence of its dependency of the political wills. They also support that in general terms, contracting has been, up to now, limited to the management of a few objectives, decentralizing some decisions and relating costs to activities. However, the vertical hierarchy of the system seems to constrain innovation and the applicability of the process achievements. Finally, those experts say that the main problems of our health system are largely known (the State is captured by the different actors, has failed to create a strategic view that enables it to be a serious negotiator and a rigorous representative of its citizens and has not behaved as a system regulator) and that a consensus exist among the different participants in the health sector as to the best way to intervene: to reform the system so as to make it more fair and more efficient and to invest in the development of mechanisms and tools which support and enlarge a sound health governance. KEY WORDS: Actors (stakeholders); contracting; National Health Service (NHS) and reforms. RENÉ PASSET, ECONOMISTA E ROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE PARIS I (PANTEÃO – SORBONE) “O mundo está em plena mutação. Com o computador e a sua instalação em linha, o factor imaterial – a informação – ocupa o lugar da energia como motor do desenvolvimento. Um novo tipo de economia está a nascer.... E, no entanto, os nossos “responsáveis políticos” continuam a pensar e a dirigir segundo conceitos já ultrapassados. ...” “À medida que se realizam, as reformas a que os homens aspiram transformam as circunstâncias que as tinham justificado, tornam-se caducas e exigem novas ultrapassagens. .... A aventura humana continua.” “Desconfiemos dos ideólogos de olhar febril, amantes de sociedades perfeitas, que só têm para nos apresentar certezas, esperando poder impô-las.” A Ilusão Neoliberal, 2002 Adaptado de Eric Rauchway, Professor de História na Universidade da Califórnia Tem-se teorizado muito sobre a auto-suficiência do mercado, criando-se a ideia de que a intervenção do Estado matava a galinha dos ovos de ouro, mas segundo Rauchway foi preciso regulação para criar mercados livres. Foi assim no passado americano com a abolição da escravatura ou com a uniformização do caminho-de-ferro. A regulação não salva os empresários de si próprios, mas pode evitar casos como Enron ou Worldcom. O mercado de capitais desregulado tornou-se fraudulento e, por isso, impõe-se que os governos não abdiquem do seu papel e garantam a competitividade. “Tragam de volta a mão invisível”, pede Rauchway. Financial Times, August 30, 2002, p. 11, "Bring Back the Visible Hand (Regulation and Resistance to Regulation from Slavery to the Present)." Agradecimentos É com muita satisfação que agradeço a todos aqueles (e foram muitos) cujo valioso contributo permitiu que este trabalho pudesse ser uma realidade. Durante os anos de investigação foram inúmeros os contactos estabelecidos com gestores, profissionais e académicos ligados à área da saúde, bem como líderes de opinião e peritos preocupados com as questões quer da saúde, quer da administração pública, que muito me ajudaram no conhecimento e aprofundamento destas temáticas e me disponibilizaram informação e saber. Foram igualmente preciosos os apoios ao nível das contribuições obtidas nos vários comentários ao trabalho, assim como nas sugestões de consulta de novos artigos, livros e documentação, bem como a delicadeza de todos aqueles que se disponibilizaram para responder aos questionários e entrevistas. Gostaria de nomear todos neste agradecimento, mas a impossibilidade natural de o fazer, leva-me a que apenas personalize os que mais de perto me acompanharam nesta longa caminhada: primeiramente os mais penalizados em todo o processo, os meus orientadores científicos – a Professora Elisabeth Reis e o Professor Cipriano Justo, pelo apoio e disponibilidade, saber, competência e rigor colocados desde o primeiro momento no trabalho de investigação realizado. De seguida os meus alunos e colegas da rede do Observatório Português dos Sistemas de Saúde, pois com eles foi possível aprofundar conhecimentos e por eles fui desafiada a aprender mais, aprofundar, corrigir os meus pontos de vista, informar-me e acrescentar conhecimento ao trabalho de investigação em desenvolvimento. Os meus agradecimentos são também extensivos a todos os meus amigos e colegas, que directa ou indirectamente me apoiaram e que felizmente são muitos, o que me permite ter a almofada que me aconchega nos momentos de desânimo, desespero e esmorecimento. Por fim, mas naturalmente não por último, estou grata à minha família. São eles os grandes sacrificados, mas é principalmente com eles que me tem sido possível fazer esta longa caminhada – nomeadamente aos meus filhos e ao Álvaro, o reconhecimento por entenderem os meus silêncios, as minhas ausências, a minha irascibilidade e mesmo assim poder contar com eles em todos os momentos. Os eventuais erros e omissões que este trabalho possa conter são da exclusiva responsabilidade da autora. Índices Índice Sistemático Resumo __________________________________________________________________ 1 Abstract__________________________________________________________________ 1 Agradecimentos ___________________________________________________________ ii Índice Sistemático _________________________________________________________ i Figuras, Gráficos e Quadros _________________________________________________ v 1. Figuras ______________________________________________________________________v 2. Gráficos ____________________________________________________________________ vi 3. Quadros ____________________________________________________________________ vi Abreviaturas Utilizadas____________________________________________________ ix PRIMEIRA PARTE ___________________________________________________ 1 Enquadramento do trabalho de investigação no sector da saúde e desenvolvimento teórico da contratualização ______________________________________________ 1 CAPÍTULO I: FUNDAMENTAÇÃO E OBJECTIVOS __________________________ 1 1. Introdução ___________________________________________________________________1 2. Enquadramento _______________________________________________________________6 2.1 A emergência do modelo empresarial _____________________________________10 2.2 Contributos para a reforma da administração pública na saúde _________________13 3. Fundamentação ______________________________________________________________19 4. Objecto de estudo ____________________________________________________________21 5. Objectivos da investigação ______________________________________________________22 6. Concepção do modelo de investigação _____________________________________________23 7. Quadro metodológico da investigação _____________________________________________24 8. Descrição sumária do trabalho ___________________________________________________26 CAPÍTULO II – REFORMAS E CONTRATUALIZAÇÃO EM SAÚDE NA EUROPA ________________________________________________________________________ 29 Nota introdutória _____________________________________________________________29 A orientação macroeconómica das reformas dos anos oitenta____________________________31 Institucionalismo e reforma da saúde nos anos noventa ________________________________35 Principais reformas. Análise e tendências ___________________________________________37 Teorias da agência e dos custos de transacção________________________________________39 O papel da contratualização _____________________________________________________42 6.1 Contributo das escolas e teorias de gestão para o processo da contratualização ____42 6.2 A participação do cidadão no processo de contratualização ____________________44 6.3 Conceitos de necessidades em saúde ______________________________________47 6.4 Necessidades em saúde e expectativas do cidadão____________________________49 7. Resumo ____________________________________________________________________50 7.1 Estado e mercado _____________________________________________________51 7.2 Descentralização _____________________________________________________51 7.3 Direitos do doente_____________________________________________________51 7.4 Novas funções da saúde pública __________________________________________52 1. 2. 3. 4. 5. 6. CAPÍTULO III: ANÁLISE DO SISTEMA DE SAÚDE E DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO NO REINO UNIDO E EM ESPANHA________________ 53 1. Breve introdução _____________________________________________________________53 2. Reino Unido_________________________________________________________________54 2.1 Princípios do sistema de saúde___________________________________________54 2.2 A reforma dos anos oitenta ______________________________________________54 2.3 Micro-eficiência na gestão hospitalar e descentralização da oferta ______________57 2.4 Quasi-mercado e contrato na gestão da saúde_______________________________59 Tese i Índices Um novo plano para o NHS _____________________________________________61 2.5 3. Espanha ____________________________________________________________________63 3.1 Princípios e caracterização do sistema de saúde _____________________________63 3.2 As reformas dos anos oitenta ____________________________________________66 3.3 As reformas dos anos noventa ___________________________________________68 3.4 Novos desafios para a coordenação regional. O atendimento transregional em saúde 70 3.5 Avaliação do processo das autonomias e das novas formas de organização das instituições de saúde ___________________________________________________72 3.6 A contratualização dos cuidados de saúde __________________________________73 3.7 A gestão das listas de espera ____________________________________________76 4. Resumo ____________________________________________________________________77 CAPÍTULO IV: ANÁLISE DO SISTEMA DE SAÚDE EM PORTUGAL – O CONTEXTO ____________________________________________________________ 81 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Os antecedentes do actual Sistema de Saúde Português ________________________________81 Princípios do sistema de saúde – os anos setenta _____________________________________82 As reformas dos anos oitenta ____________________________________________________84 Os anos noventa - novos desafios para a coordenação regional___________________________85 4.1 Um impulso para a descentralização ______________________________________85 4.2 Os primeiros passos da reforma de 1996-1999 ______________________________86 4.3 As Agências de Contratualização. O início da regulação? _____________________86 4.4 A Contratualização: um instrumento ______________________________________89 Estrutura e actores chave _______________________________________________________90 5.1 Matriz estrutural ______________________________________________________90 5.2 Identificação dos actores chave __________________________________________91 5.3 Oportunidades e obstáculos _____________________________________________92 5.4 Estratégias __________________________________________________________93 Portugal no contexto nacional e internacional________________________________________94 A evolução do Sistema de Saúde à luz de uma revisão bibliográfica________________________98 Resumo ___________________________________________________________________105 CAPÍTULO V: ANÁLISE DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO NA SAÚDE EM PORTUGAL ________________________________________________________ 107 1. Antecedentes, contributos e ensinamentos para o desenvolvimento do processo de contratualização _______________________________________________________________________107 1. 1 Teorias e princípios orientadores ________________________________________108 1. 2 As relações contratuais e a distribuição de recursos _________________________110 1. 3 Conteúdos e tipos de contratos __________________________________________111 1. 4 As críticas e as deficiências da contratualização ____________________________115 2. Compreensão/entendimento sobre o desenvolvimento do processo de contratualização ______117 2.1 O conceito de “Agência” ______________________________________________118 2.2 Finalidade e objectivos das Agências_____________________________________118 2.3 Missão das Agências__________________________________________________120 2.4 Sistema de informação das Agências de Contratualização ____________________123 3. Avançando em direcção ao futuro _______________________________________________126 3.1 Distribuição de recursos. De uma lógica centrada nos serviços para uma lógica contratual __________________________________________________________126 3.2 Impacto da contratualização ao nível dos serviços prestadores ________________127 4. Na senda da responsabilização (accountability) ______________________________________128 SEGUNDA PARTE _________________________________________________ 133 O modelo de análise do processo de mudança da administração pública da saúde baseado na contratualização __________________________________________ 133 CAPÍTULO VI: MÉTODO PARA ANÁLISE DO PROCESSO DE MUDANÇA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE CENTRADA NA CONTRATUALIZAÇÃO _________________________________________________ 135 1. Objectivos _________________________________________________________________135 2. Modelo para análise do papel da contratualização no processo de mudança da administração pública da saúde ___________________________________________________________________136 ii Tese Índices 3. 4. 5. 6. Planeamento e organização da investigação ________________________________________145 Caracterização do projecto de investigação _________________________________________146 Desenho do projecto de investigação _____________________________________________148 O método _________________________________________________________________150 6.1 Os universos de estudo e a técnica de amostragem __________________________150 6.2 Selecção e aplicação das técnicas de recolha e análise de dados _______________155 6.3 A triangulação ______________________________________________________171 CAPÍTULO VII: APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS _____________________ 173 1. Introdução _________________________________________________________________173 2. Apresentação e análise descritiva dos resultados _____________________________________174 2.1 A componente “contexto”______________________________________________174 2.2 A componente “processo de contratualização” _____________________________178 2.3 A componente “processo de mudança” ___________________________________208 3. Resumo ___________________________________________________________________223 CAPÍTULO VIII: VALIDADE DO MODELO CONCEPTUAL PROPOSTO À LUZ DA DISCUSSÃO DOS RESULTADOS______________________________________ 225 1. Discussão dos resultados obtidos _______________________________________________225 1.1 A componente “contexto”______________________________________________225 1.2 A componente “processo de contratualização” _____________________________232 1.3 A componente “processo de mudança” ___________________________________239 2. A contratualização numa nova administração pública da saúde – contributos para a caracterização da realidade portuguesa ___________________________________________250 2.1 Identificação dos factores críticos que no contexto português condicionam a implementação de políticas de mudança no sector___________________________251 2.2 Como pode a contratualização contribuir para o processo de mudança na Administração Pública da Saúde ________________________________________252 CAPÍTULO IX: CONCLUSÕES E PISTAS PARA FUTUROS PROJECTOS _____ 255 1. Conclusões ________________________________________________________________255 2. Observações finais __________________________________________________________260 3. Linhas de investigação futuras _________________________________________________263 GLOSSÁRIO ___________________________________________________________ 265 BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO ____________________________________ 273 1. 2. 34. Bibliografia referenciada no texto_______________________________________________273 Legislação referenciada no texto________________________________________________286 Sites referenciados no texto____________________________________________________287 Bibliografia de apoio metodológico consultada ____________________________________288 ANEXOS ____________________________________________________________ 291 PRIMEIRA PARTE _________________________________________________ 293 ENQUADRAMENTO LEGAL ______________________________________________ 293 Anexo I – Enquadramento legal da Agência de Acompanhamento________________________295 Anexo II – Enquadramento legal da Agência de Contratualização ________________________297 SEGUNDA PARTE __________________________________________________ 299 INSTRUMENTOS METODOLÓGICOS________________________________________ 299 Anexo III – Profissionais, peritos e gestores selecionados para a investigação _______________301 Anexo IV – Principais actores chave do Sistema de Saúde Português _____________________303 Anexo V –Análise SWOT _______________________________________________________305 Anexo VI – Software Policymaker Model___________________________________________307 Anexo VII – Questionário a profissionais e peritos ____________________________________309 Anexo VIII – Contratualização – documento enquadrador ______________________________323 Anexo IX – Questionário a gestores de topo _________________________________________333 Anexo X – Guião para entrevista semi-estruturada a peritos_____________________________337 Anexo XI – Conteúdos da página web desenvolvida___________________________________339 Tese iii Índices TERCEIRA PARTE _________________________________________________ 345 SÍNTESE DOS RESULTADOS _____________________________________________ 345 Anexo XII – Análise de conteúdo – representação gráfica ______________________________347 Anexo XIII – Análise de Conteúdo - Dicionário de Categorias/Subcategorias _______________351 Anexo XIV – Análise descritiva das variáveis – questionário II __________________________359 Anexo XV – Síntese dos normativos da saúde (1970-2002) _____________________________389 iv Tese Índices Figuras, Gráficos e Quadros 1. FIGURAS FIGURA 1 – MODELO GLOBAL DE INVESTIGAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO DA SAÚDE BASEADO NA CONTRATUALIZAÇÃO .............................................................................................. 23 FIGURA 2 – ESTRUTURA DA TESE ............................................................................................. 26 FIGURA 3 – GASTOS GLOBAIS EM SAÚDE NA OCDE (28 PAÍSES), EM 1998 ............................... 39 FIGURA 4 – TIPOLOGIA DO EMPOWERMENT DO CIDADÃO NOS SERVIÇOS DE SAÚDE ................... 46 FIGURA 5 – A POLÍTICA DE SAÚDE NO FINAL DOS ANOS NOVENTA ............................................ 86 FIGURA 6 – OBJECTIVOS DAS COMISSÕES DE ACOMPANHAMENTO EXTERNO DE SERVIÇOS DE SAÚDE (CAESS)................................................................................................... 123 FIGURA 7 – FASES E ACTIVIDADES DO SISTEMA DE INFORMAÇÃO DAS PARA AS AGÊNCIAS DE CONTRATUALIZAÇÃO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE (ACSS) ..................................... 125 FIGURA 8 – AVALIAÇÃO DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO EM PORTUGAL .................... 129 FIGURA 9 – DIMENSÕES DO MODELO DE ANÁLISE (MODELO SIMPLIFICADO) ........................... 137 FIGURA 10 – MODELO DE INVESTIGAÇÃO ............................................................................... 140 FIGURA 11 – ETAPAS DE INVESTIGAÇÃO ................................................................................. 144 FIGURA 12 – DESENHO DO ESTUDO ........................................................................................ 148 FIGURA 13 – ANÁLISE SWOT ................................................................................................ 165 FIGURA 14 – APROXIMAÇÃO SISTÉMICA COM OS ALINHAMENTOS NA ANÁLISE SWOT .......... 167 FIGURA 15 – O PAPEL DA ANÁLISE EXTERNA .......................................................................... 169 FIGURA 16 – A TRIANGULAÇÃO (DE DADOS E METODOLÓGICA) ............................................. 171 FIGURA 17 – MODELO TEÓRICO .............................................................................................. 212 FIGURA 18 – CORRELAÇÕES DO 1º SUB-MODELO .................................................................... 213 FIGURA 19 – CORRELAÇÕES DO 3º SUB-MODELO .................................................................... 213 FIGURA 20 – CORRELAÇÕES PARCIAIS DO 2º SUB-MODELO ..................................................... 214 FIGURA 21 – CORRELAÇÕES PARCIAIS DO 4º SUB-MODELO ..................................................... 215 FIGURA 22 – CORRELAÇÕES PARCIAIS DO 5º SUB-MODELO ..................................................... 215 FIGURA 23 – MODELO I – CONTEXTO MACRO ECONÓMICO/SOCIAL ........................................ 218 FIGURA 24 – MODELO II – PRODUÇÃO E PRODUTIVIDADE...................................................... 218 FIGURA 25 – MODELO III – DESEMPENHO .............................................................................. 218 FIGURA 26 – MODELO IV – RESULTADOS............................................................................... 218 FIGURA 27 – A EVOLUÇÃO DO SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS NO CONTEXTO DA EUROPA E DO RESTO DO MUNDO ...................................................................................... 220 FIGURA 28 – OS DESAFIOS PARA A CONTRATUALIZAÇÃO NA SAÚDE ....................................... 232 Tese v Índices FIGURA 29 – O CONTINUUM DA CONTRATUALIZAÇÃO OU ESPECTRO DA CONTRATUALIZAÇÃO DO DESEMPENHO ............................................................. 235 FIGURA 30 – A INFORMAÇÃO MÍNIMA E O EMPOWERMENT DO CIDADÃO ................................. 238 FIGURA 31 – DIMENSÕES E FACTORES CRÍTICOS RESULTANTE DO MODELO DE INVESTIGAÇÃO................................................................................................... 251 2. GRÁFICOS GRÁFICO I – PERSPECTIVA DE EVOLUÇÃO DO ENVELHECIMENTO EM PORTUGAL (19952050) .................................................................................................................. 94 GRÁFICO II – EVOLUÇÃO DO CONSUMO DE MEDICAMENTOS NA DÉCADA DE NOVENTA ........... 96 GRÁFICO III – IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO AGÊNCIA ................................................................ 182 GRÁFICO IV – LOCALIZAÇÃO DA FUNÇÃO AGÊNCIA ................................................................ 183 GRÁFICO V – ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO DA FUNÇÃO AGÊNCIA ......................................... 184 GRÁFICO VI – FUNÇÕES TÉCNICAS DA FUNÇÃO AGÊNCIA........................................................ 185 GRÁFICO VII – IMPLICAÇÕES INERENTES AO DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO ..................................................................................... 190 GRÁFICO VIII – NOVOS CÓDIGOS COMPORTAMENTAIS RESULTANTES DA INTRODUÇÃO DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO........................................................ 196 GRÁFICO IX – RESPONDENTES DA III AMOSTRA INTENCIONAL – GRUPOS PROFISSIONAIS ....... 200 GRÁFICO X – ANÁLISE EVOLUTIVA DAS COMPONENTES PRINCIPAIS (1970-2000) ................. 216 GRÁFICO XI – VARIÁVEIS EXPLICATIVAS DOS RESULTADOS (1970-2000)............................. 219 3. QUADROS QUADRO 1 – GRAU DE DESEMPENHO DOS SISTEMAS DE SAÚDE................................................... 2 QUADRO 2 – GRAU DE REALIZAÇÃO DOS OBJECTIVOS DOS SISTEMAS DE SAÚDE ......................... 3 QUADRO 3 – PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DOS DOIS MODELOS DE ORGANIZAÇÃO DOS SISTEMAS DE SAÚDE NA EUROPA ......................................................................... 31 QUADRO 4 – CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS DE SAÚDE EM ALGUNS PAÍSES DA UE.............. 33 QUADRO 5 – DESPESA TOTAL EM SAÚDE/ PIB (%) NA UE15 E EUA (1970-2000)..................... 35 QUADRO 6 – ALGUNS CONCEITOS A ANALISAR PARA PROMOVER A PARTICIPAÇÃO DO CIDADÃO.............................................................................................................. 47 QUADRO 7 – NHS DO REINO UNIDO (1950-1998) .................................................................... 59 QUADRO 8 – SISTEMA DE SAÚDE ESPANHOL (1970-1998) ....................................................... 66 QUADRO 9 – SÍNTESE DAS PRINCIPAIS REFORMAS DOS ANOS OITENTA EM ESPANHA ................ 67 QUADRO 10 – SÍNTESE DAS PRINCIPAIS REFORMAS DOS ANOS NOVENTA EM ESPANHA ............. 68 QUADRO 11 – CARACTERIZAÇÃO DO SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS (1970-2000)................ 95 QUADRO 12 – ALGUNS INDICADORES DE SAÚDE EM PORTUGAL (1970-2000) .......................... 97 QUADRO 13 – INICIATIVAS LEGISLATIVAS MAIS RELEVANTES DOS ÚLTIMOS 12 ANOS ............ 104 vi Tese Índices QUADRO 14 – CONTRATOS DE DESEMPENHO NA OCDE ......................................................... 114 QUADRO 15 – ESTRATIFICAÇÃO DA I AMOSTRA INTENCIONAL ................................................. 152 QUADRO 16 – ESTRATIFICAÇÃO DA II AMOSTRA INTENCIONAL (STAKEHOLDERS) .................... 153 QUADRO 17 – ESTRATIFICAÇÃO DA III AMOSTRA INTENCIONAL .............................................. 155 QUADRO 18 – QUADRO DE ANÁLISE DOS PRINCIPAIS ACTORES DA SAÚDE .............................. 176 QUADRO 19 – DISTRIBUIÇÃO DOS RESPONDENTES DA III AMOSTRA INTENCIONAL .................. 200 QUADRO 20 – OBJECTIVOS DA FUNÇÃO AGÊNCIA NA PERSPECTIVA DOS DIRIGENTES............... 201 QUADRO 21 – NÍVEL DE DISTRIBUIÇÃO DE RECURSOS NA PERSPECTIVA DOS DIRIGENTES ....... 202 QUADRO 22 – EFEITOS DA CONTRATUALIZAÇÃO NA PERSPECTIVA DOS DIRIGENTES .............. 204 QUADRO 23 – ANÁLISE EM COMPONENTES PRINCIPAIS .......................................................... 210 QUADRO 24 – VARIÁVEIS POR COMPONENTES PRINCIPAIS E SUA INTERPRETAÇÃO ................. 211 QUADRO 25 – SUB-MODELOS E COEFICIENTES DE CORRELAÇÃO ............................................. 213 QUADRO 26 – MODELO DE REGRESSÃO LINEAR ...................................................................... 217 QUADRO 27 – A SAÚDE EM PORTUGAL ENTRE 1970 E 2000 (CONTINENTE E ILHAS) .............. 230 QUADRO 28 – ESTRATÉGIAS PRECONIZADAS PARA A MUDANÇA E PARA OS ACTORES ............. 245 QUADRO 29 – PERCEPÇÕES DOS ACTORES QUANTO AO PAPEL DA CONTRATUALIZAÇÃO ......... 246 Tese vii Índices Abreviaturas Utilizadas AASS – Agências de Acompanhamento dos Serviços de Saúde ACSS – Agências de Contratualização dos Serviços de Saúde ADSE – Assistência na Doença aos Servidores do Estado ANF - Associação Nacional de Farmácias APAH – Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares APIFARMA – Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica ARS – Administração Regional de Saúde ARSLVT – Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo CA – Conselho de Administração CABG – Bypass arterial coronário CAESS – Comissões de Acompanhamento Externo de Serviços de Saúde CBA – Custeio Baseado nas Actividades ou Activity Based Costing (ABC) CEE – Comunidade Económica Europeia (actualmente União Europeia - UE) CRES - Conselho de Reflexão sobre a Saúde CRI – Centros de Responsabilidade Integrada DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor DEPS – Departamento de Estudos e Planeamento da Saúde DGS – Direcção Geral de Saúde DGS/DSE – Direcção Geral de Saúde/Divisão de Saúde Escolar DRHS – Departamento de Recursos Humanos da Saúde E – Entrevista EUA – Estados Unidos da América FA – Função Agência FNS – Federação Nacional de Cuidados de Saúde GDH – Grupo de Diagnósticos Homogéneos GOP - Grandes Opções do Plano HMO - Health Maintenance Organization IGIF - Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde INE – Instituto Nacional de Estatística INFARMED – Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento INS – Inquérito Nacional de Saúde INSALUD – Instituto Nacional de la Salud IPSS – Instituições Particulares de Solidariedade Social Tese ix Índices MS – Ministério da Saúde/Ministro da Saúde NHS - National Health Service NPM – New Public Management OCDE - Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico OECD - Organisation for Economic Co-operation and Development OGE - Orçamento Geral do Estado OMS - Organização Mundial de Saúde ONU – Organização das Nações Unidas OPSS – Observatório Português dos Sistemas de Saúde RHAs –Regional Hospital Agencies (Agencies Regionaux des Hôpitaux) RU – Reino Unido PERLE - Programa de Recuperação das Listas de Espera PPA – Programa de Promoção do Acesso PIB - Produto Interno Bruto Q - Questionário QW – Questionário na Web RRE - Regímen Remuneratório Experimental para a Clínica Geral SAMS – Serviços de Assistência Médico-Social dos Bancários SES – Secretário de Estado da Saúde SI – Sistema de Informação SLS – Sistemas Locais de Saúde SNS - Serviço Nacional de Saúde SMS - Serviços Médico-Sociais SNS 21 - Serviço Nacional de Saúde do Século XXI SSMJ – Serviços Sociais do Ministério da Justiça UE - União Europeia UE15 – União Europeia dos 15 UK – United Kingdom (Reino Unido) UNICEF - United Nations International Children’s Emergency Fund (Fundo Internacional de Auxílio às Crianças das Nações Unidas) VIH/SIDA – Vírus de Imunodeficiência Humana/Síndroma de Imunodeficiência Adquirida WHO - World Health Organization Tese x PRIMEIRA PARTE Enquadramento do trabalho de investigação no sector da saúde e desenvolvimento teórico da contratualização “Você precisa fazer aquilo que pensa que não é capaz de fazer”. e “No one can make you feel inferior without your consent”. Eleanor Roosevelt “Virtue is more to be feared than vice, because its excesses are not subject to the regulation of conscience.” Adam Smith Capítulo I: Fundamentação e Objectivos CAPÍTULO I: FUNDAMENTAÇÃO E OBJECTIVOS 1. INTRODUÇÃO Os anos oitenta e noventa foram férteis em experiências de reestruturação nos sectores público e privado da economia de diferentes países, nomeadamente na Europa. Em diversos países desenvolvidos foram então implementadas, ou estão ainda em curso, profundas mudanças ao nível dos sistemas de saúde, nomeadamente na estrutura do financiamento e da prestação de cuidados (Dunlop et al, 1995). Os sistemas de saúde, enquanto parte integrante do sistema social, são o resultado e simultaneamente condicionantes da sua envolvente histórica, social, cultural, técnica e política. Por isso torna-se necessário ir para além do subsistema de saúde, prevendo a evolução da respectiva envolvente externa, caso se pretenda actuar eficazmente na sua transformação. Nos finais do século XIX e primeira metade do século XX, desenvolveram-se nos países ocidentais três formas de protecção social concorrentes: em 1883 o modelo de Bismark, na Alemanha, assente na afiliação profissional e financiado pelas quotizações dos salários e dos empregadores; em 1948 o modelo de Beveridge, no Reino Unido (UK), baseado num sistema de cobertura universal de serviços públicos financiado pelo estado e nos Estados Unidos da América (EUA), nos anos trinta1, desenvolveu-se um modelo misto, combinando os seguros privados e as prestações sociais públicas para os grupos sociais mais desfavorecidos (Lambert, 2000). No final do século XX e princípio do século XXI, estes três modelos apresentam-se fortemente contaminados entre si. A Organização Mundial de Saúde (OMS), no seu relatório de Junho de 2000 (WHO, 2000 b), desenvolve uma nova metodologia de análise e avaliação do desempenho dos sistemas de saúde, visando o grau de realização de três objectivos específicos: (i) promoção da saúde (este objectivo pode ser avaliado através do nível e distribuição da saúde na população do país); (ii) respostas às expectativas dos cidadãos em cuidados de saúde e (iii) justiça na contribuição financeira. Nesta formulação os sistemas de saúde são analisados segundo a capacidade de resposta e de realização dos objectivos de saúde traçados por cada país e sobre o grau de 1 Segundo Holly Skdar (is co-author of the repor, Divided Decade: Economic Disparity at the Century’s Turn, available from the Boston-based United for a Fair Economy, www.stw.org), 2000, “Booming Economic Inequality, Falling Voter Turnout - Income Gaps have Grown”, o sistema de bem-estar social dos EUA criado nos anos trinta foi delapidado ao longo da década de noventa, em grande parte como pressão da minoria dos eleitores activos. Hoje, por exemplo, ninguém pode depender de programas assistenciais do Estado por mais de cinco anos, enquanto o número de pessoas sem seguro de saúde cresceu em 11 milhões nos anos noventa. Finalmente, de acordo com o relatório de 1999 (UNICEF, 1999) do Fundo Internacional de Auxílio às Crianças das Nações Unidas (UNICEF), trinta países apresentam uma melhor taxa de mortalidade do que os EUA, apesar de esta ser a nação mais rica do mundo. Tese 1 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos eficiência e de desempenho do seu sistema, corrigido por um factor social – a educação. Esta metodologia inovadora (é a primeira vez que a OMS avança neste tipo de análises e procura fazer uma comparação entre os diferentes países, conjugando vários indicadores e corrigindo-os pelos seus níveis educacionais), procura avaliar o estado de saúde e bem-estar das populações, atribuível ao grau de desempenho dos sistemas de saúde, mas os resultados obtidos foram fortemente contestados por grande parte dos países em análise. Os três países referidos anteriormente, Alemanha, Reino Unido e EUA, situam-se respectivamente em 25º, 18º e 37º lugares no ranking de 191 países da OMS (Quadro 1), relativamente a um índice que combina o nível de saúde e a resposta às expectativas da população em cuidados, embora nos gastos per capita ocupem o 3º, 26º e 1º lugares, respectivamente. Quadro 1 – Grau de desempenho dos sistemas de saúde Países Áustria Bélgica Dinamarca Finlândia França Alemanha Grécia Irlanda Itália Luxemburgo Holanda Portugal Espanha Suécia Reino Unido E.U.A Índice Global Gastos per capita 10 13 20 22 6 14 23 25 11 5 8 32 19 4 9 15 6 15 8 18 4 3 30 25 11 5 9 28 24 7 26 1 Desempenho Saúde Objectivos 15 28 65 44 4 41 11 32 3 31 19 13 6 21 24 72 9 21 34 31 1 25 14 19 2 16 17 12 7 23 18 37 Fonte: World Health Report, 2000, pág. 152-155 Convém igualmente levar em consideração o Sistema de Saúde Francês2, que ocupa a primeira posição neste ranking e um 4º lugar nos gastos per capita, cujo modelo de organização parece ser dos mais complexos de entre todos os países da Europa, já que assenta numa mistura de vários subsistemas (reembolso público associado a um modelo de contrato de serviço público para os tratamentos ambulatórios e hospitais privados; 2 2 O Sistema de Saúde Francês teve a sua origem em 1945, como um modelo híbrido derivado do bismarkiano mas com algumas características beveredgianas – forte intervenção do Estado e cobertura universal. Associa um seguro de doença universal e de âmbito nacional com um regime pluralista de prestações e com a remuneração por acto de uma grande parte dos cuidados médicos. Em relação a estes os poderes públicos exercem um controlo estrito sobre os honorários e os preços, mas um controlo fraco sobre o volume dos factores de produção e sobre a actividade, embora tenham vindo a ser introduzidas, progressivamente, algumas alterações tendentes a corrrigirem parte desses problemas, nomeadamente orçamentos prospectivos contratualizados para os hospitais públicos, através de agências regionais, desde 1994. Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos um modelo público integrado para os hospitais públicos e ainda um seguro voluntário, segundo um modelo de reembolso), mas onde o nível de satisfação dos cidadãos com o seu sistema de saúde continua a ser bastante elevado (OECD, 2002 a). Portugal é nesta análise o 12 º país com melhor sistema de saúde do mundo, medido pelo índice de realização dos objectivos, sendo um dos países que apresenta maior financiamento relativo para o sector (detém o 28º lugar nos gastos per capita). A posição de destaque obtida por Portugal no “ranking” dos países avaliados pela OMS, parece dever-se ao facto de uma das variáveis utilizadas no estudo ter sido a componente social, expressa pelo nível educacional da população. Apresentando Portugal um dos mais baixos índices de literacía da União Europeia (UE), as expectativas quanto à efectividade do sistema são, por essa razão, baixas. Apesar disso, o grau de eficiência do sistema de saúde português é considerado superior ao de alguns dos países mais ricos da UE, como o Reino Unido, a Bélgica e a Dinamarca, tal como se pode observar no Quadro 2. Quadro 2 – Grau de realização dos objectivos dos sistemas de saúde Países Áustria Bélgica Dinamarca Finlândia França Alemanha Grécia Irlanda Itália Luxemburgo Holanda Portugal Espanha Suécia Reino Unido E.U.A Nível de saúde 17 16 28 20 3 22 7 27 6 18 13 29 5 4 14 24 Nível de Resposta (às expectativas da população em cuidados de saúde) Justiça financeira 12-13 16-17 4 19 16-17 5 36 25 22-23 3 9 38 34 10 26-27 1 12-15 3-5 3-5 8-11 26-29 6-7 41 6-7 45-47 2 20-22 58-60 26-29 12-15 8-11 54-55 Fonte: World Health Report, 2000, pág. 152-155. O grau de realização do objectivo de melhorar a saúde dos cidadãos pode ser observado através do estado de saúde da população, que se associa e corresponde ao grau de desenvolvimento do país. Em comparação com 175 países, Portugal situa-se em 27º em termos de desenvolvimento humano (ONU, 2003) e em 29º quando é avaliado o estado de saúde (WHO, 2000 b). Adequar a resposta em termos de saúde às expectativas da população é um objectivo complexo, só realizável com a participação de todos neste processo. Este objectivo poderá ser avaliado através do nível e distribuição desta resposta em termos de cada país, já que uma melhor resposta em termos de saúde tem a ver directamente com a equidade no acesso aos cuidados de saúde. A equidade refere-se aos recursos que devem Tese 3 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos ser igualmente distribuídos entre todos os indivíduos ou grupos sociais, pressupondo recursos iguais para necessidades iguais e recursos diferentes para necessidades diferentes. Este conceito tem em saúde um valor eminentemente ético e social, não sendo compreensível que, ao serem utilizados recursos públicos, alguns tenham cuidados supérfluos e outros não tenham acesso a cuidados de saúde necessários. As premissas em que deve assentar o objectivo de garantia da justiça na contribuição financeira são uma contribuição financeira socialmente mais justa para a saúde e a solidariedade no financiamento, sendo que a solidariedade inerente aos sistemas de saúde deriva do facto da saúde ser encarada como um bem social. Pode avaliar-se a realização deste objectivo em termos de justiça da contribuição financeira, onde Portugal, em comparação com 191 países, se situa entre 58-60, substancialmente abaixo do nível de desenvolvimento do país, encontrando-se entre os piores relativamente aos países desenvolvidos (WHO, 2000 b). Perante a pergunta “Qual o melhor sistema de saúde?”, não há seguramente uma resposta conclusiva mas uma multiplicidade de aproximações, nenhuma delas completamente satisfatória. Para Landes (1998), por exemplo, não deve afirmar-se que existem sistemas de saúde pobres ou ricos mas sim sistemas bem ou mal geridos. Por essa razão, não se devem fazer comparações internacionais arbitrariamente, não só devido a diferenças nos critérios de medida utilizados em diferentes países, mas também porque sociedades diferentes podem ter objectivos diferentes para os seus sistemas de saúde. Os sistemas de saúde distinguem-se entre si principalmente pela quantidade e natureza da sua produção, pela existência de liberdade de escolha, pela equidade no acesso aos cuidados, pelo grau de centralismo da sua organização, pela socialização das suas prestações, pela estrutura das despesas e pela capacidade de se reformarem. Mas o que sobretudo os distingue é a relação entre os custos dos recursos mobilizados e os resultados de saúde obtidos. Numa análise a quarenta critérios de desempenho dos sistemas de saúde de um grupo de 23 países desenvolvidos, Portugal ocupava o primeiro lugar no valor da redução da mortalidade infantil (1985/1995) e o último lugar na redução da mortalidade perinatal (1990), sobrevivência juvenil (1985) e redução da mortalidade por tuberculose (1995) (Lambert, 2000). No indicador custos/resultados3 Portugal ocupa o 7º lugar, tendo à sua frente somente o Canadá, Grécia, Suécia, Áustria, Austrália e Espanha. Mas no que se refere à satisfação com o sistema de saúde actual, Portugal situou-se, segundo Mossialos (1998), em 14º lugar entre os países da UE, com 3,6% das respostas positivas, sendo ultrapassado unicamente pela Itália com 3,4% (a média da UE é de 22,1%). Dados mais actuais, de um estudo assente num inquérito aos comportamentos e atitudes da população portuguesa perante o Serviço Nacional de Saúde (SNS) (Cabral et al, 3 4 Relação entre o crescimento do ratio saúde/PIB e o decréscimo das taxas de mortalidade infantil e de adultos em todas as idades, corrigidas pela idade e pelo sexo, WHO (1998 b). Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos 2002)4, evidenciam relativamente ao acesso aos serviços de saúde que para a esmagadora maioria da população a cobertura geográfica era plenamente satisfatória e, quanto à opinião sobre o SNS, os níveis de satisfação dos utilizadores dos serviços são muito melhores do que as dos inquiridos sem experiência do sistema público. De facto, embora quase 75% dos utentes se revelem satisfeitos com o respectivo Centro de Saúde, apenas um quarto dos inquiridos sem experiência se declara satisfeito com o seu funcionamento e o mesmo se passa com as consultas hospitalares. Esta diferença de opinião entre utentes e pessoas sem experiência pessoal tem sido registada em vários países, não passando frequentemente os juízos de valor das pessoas sem experiência, na opinião daquele autor, de meras opiniões influenciadas pelos media. Os cidadãos querem cuidados de saúde cada vez em maior quantidade e de melhor qualidade, aceitando dificilmente qualquer tipo de restrição ao acesso. Segundo Lambert (2000), as populações dos países com o sistema de saúde predominantemente “beveridgeano” apresentam uma maior insatisfação com o respectivo sistema (Suécia 72%; Reino Unido 85%; Portugal 96,6%) relativamente aos países em que predomina o sistema “bismarkiano” (Áustria e Bélgica 60%; Alemanha 65%; França 75%). Segundo Glaser (1991), o melhor sistema não seria nem aquele que gera grandes desigualdades e que é extremamente caro, como o dos EUA, nem aquele cuja universalidade na cobertura e igualdade no acesso induz escassez inaceitável de produção e priva os cidadãos da liberdade de escolha, como os do Reino Unido e de Portugal. Pode colocar-se então uma questão fundamental, que é saber se o sistema ideal poderá então ser o existente na Alemanha, Holanda, França ou Japão, os quais parecem assegurar à população a universalidade no acesso, além de garantirem a generosidade das prestações presentes no sistema norte-americano, sem aumentar tanto os custos. Para autores como Birnbaum (1997), DeMuro, (1995), Dumont (1995), Enthoven (1993), Johanet (1998), Kervasdoué (1999) e Saltman, et al (1992), os cuidados geridos (managed care5) constituem uma inovação norte-americana no sentido de introduzir maior eficiência no sistema. Este modelo tem vindo a ser experimentado por vários países, visando melhorar a eficiência, a qualidade e a viabilidade económica dos 4 Estes autores subdividem o seu estudo, sobre Saúde e Doença em Portugal, em cinco grandes dimensões que estruturam as relações dos Portugueses com a saúde e a doença: (i) a morbilidade, ou seja o estado de saúde da população e a sua propensão para a doença; (ii) os hábitos de saúde, isto é os cuidados que as pessoas tomam ou não no sentido da promoção da sua saúde e da prevenção da doença; (iii) as condições de acesso e a utilização efectiva dos diferentes serviços públicos e privados; (iv) a avaliação que os utentes fazem dos cuidados de saúde públicos e, por último, (v) as atitudes da população perante as prioridades sociais do Estado, as políticas de saúde, o funcionamento do sistema de saúde, as relações entre serviço público e medicina privada, bem como as atitudes perante a saúde, a doença e a medicina em geral. 5 Sistema de financiamento da saúde, através dum regime de capitação (pré-pagamento em oposição ao pagamento por actos), controlando a gestão do risco. Visa mudar comportamentos dos profissionais (consciencialização dos custos e da necessidade de referenciação), retira a centralização no sistema de prestação hospitalar e utiliza métodos de incentivos e penalidades para remunerar sem intervir na decisão clínica. Substitui o modelo centrado no doente e na doença, com custos crescentes e qualidade discutível e assenta na prestação de serviços de saúde necessários a uma população definida. Pressupõe a existência de mecanismos de controlo dos financiadores que gerem os resultados, através da qualidade e dos custos. Tese 5 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos sistemas de saúde. Embora o conceito tenha surgido no sector privado, cada vez mais os sistemas públicos de saúde procuram inspirar-se nos princípios e nas técnicas do managed care, para melhorar a eficiência e a estabilidade financeira dos respectivos serviços. Será talvez por essa razão que os Franceses, do estudo que têm realizado sobre os diferentes sistemas de saúde, têm procurado tirar ensinamentos da experiência do sistema norte-americano, nomeadamente no que se refere à eficácia de controlo das actividades clínicas e da organização de centros de cuidados integrados, visando garantir os principais objectivos da saúde pública, num quadro de manutenção das despesas globais em saúde. Ainda segundo aqueles autores, parece existir evidência de que o tipo de organizações que conciliam melhor a quantidade de prestações, a equidade e a efectividade se encontram no Japão e nos sistemas escandinavos. Divergem, contudo, no que se refere à privatização do sistema de saúde como forma de resolver os problemas existentes, mas concordam, no entanto, numa solução que assente na contratualização, na descentralização e na regulação, responsabilizando os políticos pelas reformas inacabadas e contraditórias que impeçam a mudança e a melhoria dos sistemas de saúde. 2. ENQUADRAMENTO Nas duas últimas décadas os governos da maioria dos países industrializados têm vindo a ser confrontados com graves crises financeiras e com profundos conflitos políticos, decorrentes do crescimento da despesa com as funções sociais sob sua responsabilidade. De forma a tentar conter o crescimento desta despesa e a tornar os utilizadores dos serviços públicos mais responsáveis na sua utilização, têm vindo a ser introduzidas algumas regras próprias do sector empresarial nos modelos de distribuição de recursos em vigor nos sistemas públicos (Saltman et al, 1992). Assim, a procura de soluções para responder ao impacte das pressões económicas e fiscais tem levado os países ocidentais, independentemente dos seus sistemas políticos e administrativos, a adoptar instrumentos de reforma, aparentemente similares, no sector público. Têm sido países anglo-saxónicos (Reino Unido, EUA, Austrália, Nova Zelândia) a assumir uma posição de liderança nas iniciativas inovadoras de reforma adoptadas. As mudanças iniciadas nestes países, apesar das diferenças que apresentam, convergem em vários aspectos, nomeadamente na ênfase dada à eficiência, à efectividade, à redução de despesas e à competição entre os serviços, tendência que tem vindo a ser adoptada progressivamente nos restantes países. Segundo Pollitt et al (2000), a forte influência das correntes de pensamento económico observada na abordagem à reforma da Administração Pública foi motivada, principalmente, pelos problemas financeiros dos governos, pela necessidade inadiável de afrouxar a taxa de crescimento dos gastos públicos, pela incapacidade em conduzir uma administração cada vez mais ineficiente e consumidora, pelo descrédito em que os serviços públicos caíram e pelas expectativas dos cidadãos em relação à sua qualidade. Além do rigor colocado no controlo das despesas públicas, tem-se assistido a uma preocupação generalizada por parte dos governos em recuperar a confiança dos cidadãos e em melhorar a qualidade dos serviços prestados. 6 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos Estaríamos assim no fim de um período em que o Estado se assumiu como o grande impulsionador do bem-estar social e a sociedade o reconheceu como tal6. Daí a emergência do debate em torno de formas organizacionais que funcionem como alternativa ao actual sistema, o complementem e/ou o reformem. De referir que a reforma do Estado vem sendo reclamada por muitos agentes económicos, sociais e políticos, muitas vezes sublinhando-se a necessidade de reformar instituições, outras sendo apontada a necessidade imperiosa de alterar processos, rotinas e procedimentos e outras ainda duvidando-se da capacidade do Estado, ou até da utilidade da sua intervenção. A organização do Estado que começou a ser posta em causa durante a crise dos anos setenta tinha três dimensões: económica, social e administrativa, todas interligadas. A primeira dimensão era a keynesiana, caracterizada pela activa intervenção pública na economia, procurando garantir o pleno emprego e actuar em sectores considerados estratégicos para o desenvolvimento nacional (telecomunicações, por exemplo). O welfare state7 correspondia à dimensão social do modelo. Adoptado em maior ou menor grau nos países desenvolvidos, o Estado de bem-estar tinha como objectivo principal a produção de políticas públicas na área social (educação, saúde, assistência social, habitação, etc.), para garantir as necessidades básicas da população. Por fim, havia a dimensão relativa ao funcionamento interno do Estado, o chamado modelo burocrático weberiano, ao qual cabia o papel de manter a neutralidade e a racionalidade do aparelho governamental. Assim, torna-se difícil dissociar a reforma do Estado da reforma de muitos aspectos da administração pública, mas convém ter presente a questão dos limites da intervenção do Estado, a qual tem sido objecto de análise de vários autores, entre eles Adam Smith (1987)8, Bentham (1962 e 1970)9 e 6 Em meados da década de setenta, sobretudo a partir da crise do petróleo em 1973, uma grande crise económica mundial pôs fim à era de prosperidade que se iniciara após a Segunda Guerra Mundial. Foi o fim da “era dourada”, o que, segundo Hobsbawm (1996), corresponde ao período em que não só os países capitalistas desenvolvidos, mas também o bloco socialista e parte do Terceiro Mundo, alcançaram altíssimas taxas de crescimento. A principal receita para o contínuo sucesso durante trinta anos foi a existência de um amplo consenso social sobre o papel do Estado, o qual procurava garantir prosperidade económica e bem estar social. 7 No plano histórico, o “social” constituiu-se como registo próprio da modernidade, centrada e estruturada em torno do trabalho. A centralidade do trabalho na organização das sociedades contemporâneas ligava-se, no entanto, por um lado, à capacidade do movimento operário de integrar e articular interesses mais amplos da sociedade e, por outro, à capacidade do Estado em regular e administrar o conflito de interesses divergentes. No âmbito institucional, passou-se de um regime baseado na responsabilidade individual e fundado no direito civil para um regime de solidariedade assente num contrato social, alicerçado na noção de direito social (Ewald, 1986) e estabelecido por um conjunto de leis relacionadas com as condições do trabalho e a proteção aos trabalhadores que perderam a capacidade do uso da força de trabalho (doenças, invalidez, desemprego, velhice, acidentes, etc.), reconvertendo uma noção antes restrita à responsabilidade individual, para uma outra objectiva do risco colectivo, ou seja, o direito social criou as condições de intervenção crescente do Estado na esfera das relações privadas, na empresa e na família, na prevenção de perigos que ameaçam a sociedade, consolidando o princípio de uma responsabilidade pública institucionalizada. 8 “An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations”, 2 volumes (London, W. Strahan & T. Cadell, 1776); second edition, revised, 1778; third edition with Additions and Corrections, 3 volumes (London, A. Strahan & T. Cadell, 1784); fourth edition (London, A. Strahan & T. Cadell, 1786); fifth Tese 7 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos Burke (1790)10, mais actualmente, Buchanan (1972), Nozick (1974) e Rawls (1971),11 entre outros. Convém reter que nomeadamente Rawls convida os cidadãos a uma participação activa de forma a alargar o consenso e a que cada um tenha voz para afirmar a sua própria autonomia. Mas antes de prosseguir este raciocínio, convém ainda referir o papel das Nações Unidas (ONU)12 e o trabalho fundamental desenvolvido por Eleanor Roosevelt13, que, entre outros, como Presidente da Comissão dos Direitos Humanos da ONU 14, nos anos de 1947 e 1948, preparou e redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos edition, (Philadelphia, Thomas Dobson, 1789); a Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, 7 volumes, edited by A. S. Skinner and others (Oxford, Clarendon Press, 1976-1987). Com tradução em português “Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações”, 2 vols., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981-1983. 9 Como se lê em Britannica Concise Encyclopedia, from Encyclopædia Britannica Premium Service, “British economist Jeremy Bentham is most often associated with his theory of utilitarianism. Bentham’s views ran counter to Adam Smith’s vision of “natural rights”. He believed in utilitarianism, or the idea that all social actions should be evaluated by the axiom “It is the greatest happiness of the greatest number that is the measure of right and wrong”. Unlike Smith, Bentham believed that there were no natural rights to be interfered with. His principal publications were: “An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”, (1970), and “Law, Liberty and Government” (1962). The notion of liberty present in Bentham’s account is what is now generally referred to as “negative” liberty freedom from external restraint or compulsion. Nevertheless, he does note that there is an important distinction between one’s public and private life that has morally significant consequences, and he holds that liberty is a good-that, even though it is not something that is a fundamental value, it reflects the greatest happiness principle. 10 Entre os autores e textos dominantes no âmbito da controvérsia política inglesa entre 1790 e 1800, é importante mencionar: (i) Edmund Burke (teórico do conservadorismo e defensor da monarquia, autor de reflexões sobre a Revolução Francesa, 1790); (ii) Thomas Paine (revolucionário republicano e democrata, autor dos Direitos do Homem, 1791-1792) e, (iii) William Godwin (filósofo anarquista, autor de uma investigação acerca da justiça política, 1794). 11 Segundo the Stanford Encyclopedia of Philosophy “The form of social contract described by John Rawls in A Theory of Justice can be called the fictive assembly” and “ Rawls Theory of Justice (1971) is the most influential normative work of political philosophy of the last two generations. In 1993 it was followed by a broader work on Political Liberalism. Rawls later work claims that his concerns are not metaphysical, but political: a stable and workable society in the western liberal tradition. In reality, all his work is a justification of liberal societies against others. Worse, it is a justification of the inequality and injustice in those societies, and a model for a conservative future.” 12 O seu documento constitutivo, adoptado em 1945, estabelece o objectivo de “promover e encorajar o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de todos sem distinção de raça, sexo, língua e religião”, que embora tenha dado um novo estatuto legal internacional aos direitos humanos, não incluía, especificamente, uma declaração internacional de direitos e garantias, defendida por muitos. Essa tarefa foi atribuída à Comissão de Direitos Humanos. 13 Viúva do presidente Franklin Roosevelt, que como presidente da Comissão de Direitos Humanos, argumentou agressivamente para que houvesse uma definição forte e precisa dos direitos humanos, enquanto tentava tornear alguns aspectos entre os vários membros e conciliar diferentes pontos de vista que derivavam de culturas distintas. Muitos especialistas na Declaração Universal lembram que se não fosse pela liderança de Eleanor Roosevelt, o esforço não teria sido bem sucedido, dado que a sua capacidade, visão e especialmente a sua habilidade para conciliar as muitas e opostas visões, foram vitais para o sucesso daquela tarefa. 14 Que incluía Charles Malik (relator da comissão), do Líbano; P. C. Chang, da China; o canadiano John Humphrey, director da Divisão de Direitos Humanos da ONU e o Francês René Cassin (Vice-Presidente), entre outros. 8 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos adoptada por esta organização15. Esta Comissão, envolvendo representantes de mais de cinquenta países, com grandes diferenças ideológicas, culturais e históricas, mas todos eles partilhando uma profunda aversão moral em relação à vastíssima perda de vidas humanas na guerra que havia terminado recentemente (aproximadamente 50 milhões de pessoas), conseguiu fazer aprovar a Declaração Universal e tem procurado, através do trabalho da própria comissão e de outros órgãos da ONU, fazer com que a Declaração Universal se torne uma realidade contínua.16 Voltamos agora às questões da reforma do Estado, sabendo que a redefinição do seu papel na economia e a tentativa de reduzir os gastos públicos na área social, tarefa nem sempre conseguida, foram as duas saídas mais comuns à crise económica e social da antiga organização de Estado. Para responder ao enfraquecimento do modelo burocrático weberiano, foram introduzidos, em larga escala, padrões empresariais na administração pública, inicialmente e com maior força em alguns países anglo-saxónicos (Reino Unido, EUA, Austrália e Nova Zelândia), e depois, gradualmente, na Europa Continental e Canadá. Trata-se de evoluir do modelo burocrático weberiano de Administração Pública, para um outro que inclua algumas características das organizações empresariais, sem as procurar reproduzir, já que estamos perante um sector onde as regras da oferta e da procura seguem uma lógica bem mais complexa do que a mera transacção de bens ou serviços. A este modelo intermédio, que tem sido experimentado nalguns países, dão os anglo-saxónicos a denominação de quasi-mercado. Valerá decerto a pena fazer algumas observações antes de se entrar na discussão de questões mais específicas. Os primeiros países a percorrerem os caminhos da liberalização dos serviços públicos foram o Reino Unido, com a adopção do New Public Management e os EUA, em 1983, com a denominada “Comissão Grace” do governo de Ronald Reagan, para repensar o papel do Estado. As mudanças radicais operadas por Margaret Thacher, durante o governo neoliberal dos anos oitenta e noventa, estão fortemente ligadas a uma ideologia que acredita numa pequena Administração de forte liderança e na eficiência do sector privado e nos Estados Unidos, diversos líderes empresariais defendiam que o sector privado poderia exercer muito melhor certas actividades do que o sector público. Naturalmente que o modelo empresarial e o debate em torno dele não podem ser circunscritos ao contexto da saúde. Pelo contrário, toda a discussão sobre a utilização da 15 Os 30 artigos da Declaração Universal cobrem direitos civis e políticos, assim como os direitos económicos, sociais e culturais, que são estabelecidos como um padrão comum de realização para todas as nações, expresso no seu artigo 1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” 16 Todos os anos, a Comissão de Direitos Humanos da ONU, a mesma organização que foi presidida por Eleanor Roosevelt há mais de meio século atrás, reúne-se em Genebra para avaliar o cumprimento das normas de direitos humanos, por parte dos Estados e para responsabilizar aqueles que não as cumprem. Embora os instrumentos à disposição da comissão, para fazer valer a vontade da comunidade internacional, tenham sido criticados por muitos defensores dos direitos humanos, que as consideram inadequadas, a importância da sua capacidade de expor aqueles que violam os direitos humanos à apreciação pública é de grande relevância. Tese 9 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos empresarialização na administração pública faz parte de um contexto mais vasto, caracterizado pela prioridade dada ao tema da reforma administrativa, quer seja na Europa (Cassese, 1989), no leste europeu ou ainda nos países do terceiro mundo (Caiden, 1991; Collins et al, 1995). O modelo empresarial e as suas diferentes aplicações foram e estão a ser discutidas em praticamente todos os países. Modelos de avaliação de desempenho, novas formas de controlo orçamental e serviços públicos direccionados para as preferências dos consumidores, métodos característicos da empresarialização, são hoje parâmetros fundamentais a partir dos quais, de acordo com as condições locais, os países alteram as anteriores estruturas administrativas. Não existe consenso sobre o modelo empresarial, sendo que alguns discordam totalmente dele, preferindo até nem discuti-lo, mas convém referir que o facto incontestável no debate internacional sobre administração pública, mesmo por aqueles que são severamente críticos da empresarialização, é que o modelo burocrático weberiano não responde mais às expectativas da sociedade contemporânea (Pollitt et al, 2000). Voltado cada vez mais para si mesmo, o modelo burocrático tradicional tem vindo a caminhar em sentido inverso ao das aspirações dos cidadãos. É a partir deste processo que o modelo empresarial começa a preencher um vazio teórico e prático, captando as principais tendências presentes na opinião pública, entre as quais se destacam o controlo dos gastos públicos e a procura da melhor qualidade dos serviços públicos. Segundo Hood, C. (1996), há ainda uma outra observação que reforça a importância de se estudarem as mudanças recentes na administração pública. Ao invés de se constituir numa doutrina rígida e fechada, a empresarialização parece apresentar um grande poder de transformação, incorporando as críticas à sua prática e alterando alguns dos seus conteúdos. Mais do que isso, as actuais transformações apontam para uma diversidade de concepções organizacionais que ultrapassam o simples modelo empresarial, de modo que não existe um paradigma global capaz de responder, tal como uma prescrição, a todos os problemas enfrentados pela crise do modelo weberiano. No contexto da multiplicidade de concepções organizacionais, convém ressaltar que foi o modelo empresarial, inicialmente na sua forma pura, o propulsor das primeiras mudanças no modelo weberiano. Somam-se a isso a força e a centralidade das propostas de empresarialização, preponderantes em termos teóricos e práticas no actual estágio do debate acerca das reformas administrativas. O que não quer dizer que o modelo empresarial não tenha limites e fraquezas. Tem-nos de facto, mas é das insuficiências deste modelo que nascem novas práticas, as quais também se distanciam do antigo padrão burocrático. Trata-se de reconstruir o sector público sob bases pós-burocráticas, as quais encontram na empresarialização um dos seus principais fundamentos. 2.1 A emergência do modelo empresarial Desde finais da década de setenta que a reforma do Estado se tornou uma palavra de ordem em quase todo o mundo. O antigo consenso social sobre o papel do Estado perde força rapidamente e a introdução do modelo empresarial no sector público faz parte deste contexto. Mas em que circunstâncias ocorre esta mudança? 10 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos Pelo menos quatro factores sócio-económicos terão contribuído fortemente para fazer explodir a crise do Estado: (i) a crise económica mundial, iniciada em 1973, na primeira crise do petróleo, e retomada ainda com maior intensidade em 1979, na segunda crise do petróleo. A economia mundial enfrentou um grande período recessivo nos anos oitenta e nunca mais retomou os níveis de crescimento atingidos nas décadas de cinquenta e sessenta; (ii) a crise fiscal foi o segundo factor a enfraquecer as bases do antigo modelo de Estado. Após ter crescido durante décadas, a maioria dos governos não tinha recursos para continuar a financiar os seus défices e, assim, os problemas fiscais tendiam a agravar-se na medida em que se iniciava, sobretudo nos EUA e Reino Unido, uma revolta dos contribuintes (taxpayers) contra a cobrança de mais impostos, principalmente porque não se vislumbrava uma relação directa entre o acréscimo de recursos afectos às políticas públicas e a melhoria dos serviços públicos. Estava em causa o consenso social que sustentara o welfare state; (iii) o terceiro factor consistia naquilo que se denominava como situação de "ingovernabilidade”: os governos estavam inaptos para resolver os seus principais problemas (Holmes et al, 1995), pois encontravam-se sobrecarregados com actividades acumuladas ao longo do pós-guerra, acrescido do facto dos grupos de pressão, os clientes dos serviços públicos e todos os beneficiários das relações neocorporativas, vigentes, não quererem perder o que, para eles, eram conquistas e que para os neoliberais eram grandes privilégios; (iv) por último, a globalização e todas as transformações tecnológicas que transformaram a lógica do sector produtivo também afectaram profundamente o Estado. O enfraquecimento dos governos para controlar os fluxos financeiros e comerciais, conjugado com o aumento do poder das grandes multinacionais, resultou na perda de parcela significativa do poder dos Estados ditarem políticas macroeconómicas. Esta crise do Estado afectou directamente a organização das burocracias públicas. Por um lado, os governos tinham menos recursos e mais défices, sendo que a redução dos custos se tornou uma prioridade. No que se refere à administração pública isto teve dois efeitos: a redução dos gastos com pessoal era vista como um caminho necessário e era preciso aumentar a eficiência governamental, o que implicava, para boa parte dos reformadores da década de oitenta, uma modificação profunda do modelo weberiano, ineficiente, lento e normativista. Por outro lado, o Estado vinha perdendo o seu poder de acção, especialmente se levarmos em conta os problemas da “governabilidade” e os efeitos da globalização. Portanto, surgia não só um Estado com menos recursos, mas um Estado com menos poder. Para enfrentar esta situação, o aparelho governamental precisava ser mais ágil e mais flexível, tanto na sua dinâmica interna como na sua capacidade de adaptação às mudanças externas. Redução de gastos e de pessoal, aumento da eficiência e maior flexibilidade do aparelho burocrático, tudo isto estava contido no modelo empresarial, tal como era proposto pelos reformadores do começo da década de oitenta. A competição gerida substituiria o Tese 11 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos modelo weberiano, introduzindo a lógica do aumento da produtividade existente no sector privado. No entanto, as condições materiais não eram suficientes para sustentar a defesa deste modelo, embora houvesse também uma conjuntura intelectual extremamente favorável às mudanças na administração pública. A ascensão de teorias extremamente críticas às burocracias públicas, como o public choice17 (ou teoria da escolha pública, cujo principal objectivo é o de aplicar um método da ciência económica a um objecto que tradicionalmente tem sido considerado no âmbito da ciência política: grupos de interesse, partidos políticos, processo eleitoral, análise da burocracia, escolha parlamentar e análise constitucional), nos EUA e o modelo neoliberal hayekiano18 (principalmente no Reino Unido), abriu espaço para o avanço do modelo empresarial, como referência, no sector público. Mas a visão negativa referente à burocracia não se vinculava apenas a teorias intelectualmente mais elaboradas. De uma forma indiscutível, a perspectiva do senso comum contra a burocracia expandia-se rapidamente no final da década de setenta e no começo da de oitenta. Contribuía para piorar a imagem da burocracia o facto dela ser classificada muito mais como um grupo de interesse do que como um corpo técnico neutro ao serviço dos cidadãos. Ao sentimento anti-burocrático juntava-se a crença, presente em boa parte da opinião pública, de que o sector privado possuía o modelo ideal de gestão. A administração das empresas privadas tinha uma óptima reputação, apesar dos vários escândalos ocorridos no final da década de setenta, nomeadamente falências e corrupção (Caiden, 1991). Não foi por acaso que Margareth Thatcher levou para o governo um administrador do sector privado, Dereck Rayner, para dirigir o seu plano de reforma administrativa.19 Mas este sentimento difuso, contrário à burocracia pública e favorável aos ideais da iniciativa privada, precisou de um catalisador político para se impor. A vitória dos conservadores no Reino Unido, em 1979 e dos republicanos nos EUA, em 1980, representou a vitória dos grupos que contestavam o antigo consenso social pró-welfare state. Blair e Clinton não vieram alterar grandemente as políticas seguidas por Thatcher e Reagan, a não ser numa maior preocupação na área social. 17 Alguns autores atribuem a origem da public choice, no séc. XVIII, ao estadista, filósofo e matemático francês Marquês de Condorcet (Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat) e à sua “descoberta” do paradoxo do voto e, no séc. XIX, ao escritor e professor de matemática inglês Lewis Caroll (Charles Lutwidge Dodgson). Contudo, a origem mais recente da teoria da escolha pública pode situar-se em seis obras, hoje clássicas, escritas por economistas e um cientista político, nos finais da década de cinquenta e década de sessenta: Duncan Black (1958), James Buchanan e Gordon Tullock (1962), Mancur Olson (1971), Kenneth Arrow (1951), Anthony Downs (1957) e William Riker (1962). 18 “If there are two things most people can agree on these days, they are that free-market capitalism is the only way to organize a society and that the key to economic growth is knowledge. So prevalent are these beliefs that their origins are rarely examined, which is somewhat surprising, since both statements can be traced back, in large part, to Friedrich August von Hayek”, John Cassidy, The New Yorke - about the book, Friedrich A. Hayek (1899–1992), biography, by Alan O. Ebenstein (www.independent.org/tii/forums/010516ipf2.html). 19 É interessante observar que várias pessoas ligadas a interesses empresariais participaram nos debates sobre as reformas das burocracias públicas nos EUA e Reino Unido, (Pollitt et al, 2000). 12 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos Foi neste contexto de escassez de recursos públicos, enfraquecimento do poder público e de avanço de uma ideologia privatizante, que o modelo empresarial se implantou no sector público. Coube aos conservadores ingleses e aos republicanos americanos a iniciativa nesse sentido, introduzindo, num primeiro momento, um modelo empresarial puro, em que prevalecia o ângulo meramente economicista (reduzir custos como principal objectivo) e o desconhecimento da especificidade do sector público. Assiste-se assim à liberalização dos serviços públicos com a adopção da New Public Management (NPM). Esta teoria pressupõe uma mudança no relacionamento entre a decisão política e a Administração, convertendo a lealdade e a hierarquia num sistema de cooperação. Do conjunto de dimensões que a abordagem de NPM apresenta, podem destacar-se as seguintes: • maior controlo, por parte dos cidadãos, dos poderes discricionários da Administração; • padrões de desempenho dos serviços prestados, explícitos e mensuráveis; • utilização de instrumentos e métodos, fiáveis e já experimentados, nas organizações privadas (aproximação de regimes organizacionais); • maior preocupação na utilização dos recursos afectos às entidades públicas. Mas a mudança pressupõe uma profunda compreensão dos desafios e uma estratégia hábil e determinada. Importa pôr em causa a totalidade dos funcionamentos, das regras do jogo, dos métodos e das técnicas a aplicar, para que a Administração Pública se inove, aligeirando as suas estruturas e mentalizando-se de que, sob pena do seu esgotamento funcional, terá de adequar os recursos de que dispõe às responsabilidades para fazer face ao crescente poder dos cidadãos. Ao longo dos últimos quinze anos, entretanto, a new public management sofreu um contínuo processo de transformação. Da inicial perspectiva conservadora, o debate referente ao modelo empresarial tem avançado por terrenos cada vez mais dominados pelas temáticas democráticas. 2.2 Contributos para a reforma da administração pública na saúde Para Mozzicafreddo (2000 e 2001), a discussão em torno da reforma da administração pública é fonte de clivagens políticas e analíticas, dado que a sua importância estratégica, a sua dimensão e as suas funções explicam as diferentes perspectivas com que são encaradas. Além disso, e no que se refere às teorias de gestão da Administração, o sector público é geralmente considerado como sendo inferior ao sector privado, como tendo a aprender com ele, isto é, como sendo o oposto do sector privado. Contudo, segundo este autor, o sector privado ainda está longe de ser autónomo e eficiente, tanto no sentido organizacional, como do desenvolvimento da qualificação dos recursos humanos e da investigação industrial ou profissional. Considera ainda que o pano de fundo contra o qual se desenha o novo modelo de gestão da Administração Pública é uma imagem projectada num ecrã desfocado pelas clivagens políticas. Tese 13 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos A questão fundamental para uma verdadeira mudança na administração pública, colocando-a efectivamente ao serviço dos cidadãos, parece não estar apenas centrada na melhoria dos processos e procedimentos mas principalmente na democratização dos conteúdos das políticas públicas, já que de nada vale ter uma administração eficiente – à imagem da ilusão empresarial – quando se aprofunda, nos cidadãos, a percepção da falta de equidade na distribuição dos recursos públicos e no desigual contributo das receitas do trabalho colectivo. Sumariamente, poderemos dizer que a gestão dos sistemas de saúde tem sido feita segundo dois tipos de mecanismos: pela via da administração pública, que promove o desenvolvimento da integração hierárquica mas torna-o permeável aos vários interesses instalados no sector, ou através de uma integração pelo mercado, que o torna pretensamente eficiente à custa da redução de algumas das actividades que não são consideradas rentáveis, nomeadamente as que se relacionam com factores ambientais, de qualificação dos recursos e de investigação. As reformas da administração pública, ou o modelo pós-burocrático como é referido por alguns autores ou a new public management como é considerada na literatura anglo-saxónica, que têm vindo a ser postas em prática nos países da OCDE, embora tenham por base as mesmas causas e tenham seguido genericamente o mesmo paradigma nas soluções adoptadas, realizaram-se em quadros de referência muito diferentes (Rouban et al, 1995), mas com diversos pontos comuns, nomeadamente (i) o controlo das despesas públicas, (ii) a adopção de técnicas e processos de gestão empresarial e (iii) a mudança de estatuto dos funcionários. Ainda que a new public management constitua uma via interessante para reformar a administração pública tradicional, convém, no entanto, estar atento aos seus críticos e levar em consideração aquilo que alguns autores apontam, baseados sobretudo na evidência dos desempenhos dos sistemas onde essas mudanças já se operaram ou estão em desenvolvimento. Assim, segundo Hood C. (1996), a new public management não tem conteúdo teórico e deve ser entendida como um modelo de gestão pública de matriz britânica, de difícil exportação para outras culturas e estruturas administrativas. Ao analisar os impactes da reforma no Reino Unido, Pollit et al (2000) observa que não se realizaram avaliações das mudanças introduzidas no sistema de saúde durante os governo de Thatcher e Major, tendo havido lugar exclusivamente à definição de estratégias, relatórios e medidas a tomar, embora a administração Blair esteja empenhada na sua avaliação, tendo-se verificado já um efectivo downsizing e um significativo acréscimo de eficiência. Este autor considera ainda que não há indícios consistentes que relacionem a implementação da new public management e o desempenho macroeconómico, dado que os EUA, a Alemanha e o Japão, que constituem as economias mais bem sucedidas, não adoptaram nenhuma das medidas mais radicais, isto é, nem o modelo empresarial puro nem o de managed care. No caso da Alemanha, o denominado sistema de governo descentralizado, permitiu, muito antes do modelo de agência e da new public management, a criação de organizações descentralizadas, que constituem uma das características mais importantes deste modelo (Reichard, 1996). Em 1993 foi implementado um programa de reforma nos governos locais – Novo Modelo de Governo (Neues Steuerungsmodell) – que visou 14 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos introduzir novos conceitos, como a gestão estratégica, os serviços orientados para os clientes, a substituição de normas por contratos, maior flexibilidade na gestão financeira e de recursos humanos e a aproximação da administração aos cidadãos. Alguns autores, nomeadamente Conrad et al (1997), Mccourt et al (2001) e Pollitt et al (2000), defendem que o paradigma do Estado pós-burocrático não é a new public management britânica, mas que o estado burocrático está a mudar e tem de mudar, considerando que essa mudança não se poderá verificar exclusivamente à custa das alterações do processo gestionário, mas no sentido da governação em rede, ou seja, promovendo o desenvolvimento de uma estrutura complexa, em que o modelo vertical baseado na hierarquia e na autoridade dá lugar a um modelo em rede, já que o fornecimento de serviços públicos passará a depender de um conjunto de organizações cuja natureza poderá ser governamental, não governamental ou privada, ao invés de uma só estrutura coordenada com recurso à hierarquia. Outra abordagem económica importante para a contratualização é, de acordo com Eisenhardt, K. (1988 e 1989) e Grossman et al (1983), a teoria do Agente-Principal, que se pode definir como a delegação de funções pelo sector público a agentes institucionais privados ou públicos autónomos e que faz com que as regras de mercado sejam mais respeitadas do que o seriam numa burocracia clássica. As relações entre agente e principal são muito frequentes na economia e são uma das formas codificadas mais antigas de interacção social. Ocorrem sempre que há a presença de pelo menos dois indivíduos: um deles, o principal, deseja que o outro, o agente, realize determinada tarefa e, para isso, contrata-o mediante um pagamento (monetário ou não). Devido às assimetrias de informação, o principal não tem normalmente como monitorizar perfeitamente o agente, que pode escolher que acção tomar entre um número de alternativas possíveis, sendo que esta decisão afectará o bem-estar de ambos. Um exemplo muito citado é o caso da administração central que possui diversos órgãos na sua estrutura. Na elaboração do orçamento cada órgão descentralizado (os agentes) tende a pedir mais recursos do que precisa, porque não tem incentivos para redução de custos, pois isso implicaria menos recursos no ano seguinte. A administração central (o principal) não dispõe de informação actualizada, fiável e rigorosa dos verdadeiros custos da administração descentralizada, e, por isso, não tem como medir a necessidade real de recursos para aquele ano específico. Essa questão ficou conhecida na literatura como compatibilidade de incentivos (incentive compatibility). Há três tipos de relação agente-principal presentes na literatura: o primeiro quando a acção, propriamente dita, do agente não é conhecida e é chamada de risco moral (moral-hazard); o segundo é quando, embora podendo conhecer-se a acção do agente, não se tem como avaliar se foi a mais apropriada do ponto de vista do principal, porque aquele dispõe de determinada informação que este desconhece e é denominada de informação oculta (hidden information). O terceiro tipo, de maior aplicação prática, seria uma combinação dos dois primeiros. Os principais problemas entre agente e principal surgem tanto nas empresas privadas como no sector público, mas uma questão importante a analisar é a que se prende com os incentivos em cada uma das situações. Tese 15 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos Sabemos que o principal incentivo numa empresa privada é o lucro, pelo que os proprietários encontram incentivos significativos que tornam desejável monitorizar o comportamento dos gestores e empregados, de forma a responderem com qualidade à procura dos clientes e ao mais baixo custo, sendo por isso difícil apresentarem comportamentos desinteressados ou inconsistentes no que se refere ao aumento do valor da empresa. Mas há a necessidade de compatibilizar o desejo de maximizar a função objectivo do principal, que pode ser a maximização do lucro, por exemplo, com um nível de utilidade mínima exigido pelo agente (participation constraint), ou um determinado patamar salarial e ainda participação nos lucros, etc. Esta relação dá-se num ambiente de informações assimétricas em que o agente normalmente tem maior informação que o principal sobre o ambiente em que a empresa actua (o proprietário, muitas vezes, não tem, a priori, como julgar uma decisão do gestor), pelo que a solução parece ser o estabelecimento de um contrato que leve em conta ambas as agendas. Esse tipo de problema está presente tanto na área pública como na privada, sendo que as principais diferenças se situam ao nível dos diferentes tipos de incentivos em cada uma das estruturas de propriedade (principalmente da parte do principal) e da monitorização do agente pelo principal (Eisenhardt, K., 1988). Os autores referidos apontam no sentido de que existem mais semelhanças do que diferenças no funcionamento dos sectores público e privado e que podem ser obtidos os mesmos resultados, independentemente do tipo de propriedade. Em ambos se verifica uma significativa delegação de responsabilidades nos gestores, os quais conduzem, conhecem o funcionamento do sector e tomam decisões discricionárias à revelia, quer dos accionistas minoritários, quer do governo ou da sociedade, em última instância. No sector público e de acordo com Rhodes (1997), a criação de agências, ou seja o modelo denominado de quasi-mercado, conduz à fragmentação institucional e à proliferação de organizações que desenvolvem diferentes culturas, dificultando a articulação e implementação de políticas e reduzindo, por essa via, o papel dos ministérios na determinação do que deve ser produzido e na fiscalização da sua prestação. Uma vez que a formulação das políticas fica separada da sua implementação, ficam criadas as condições para o desinvestimento no capital político dos gestores e na sua capacidade de resolver problemas. Mas, em contrapartida, as agências passam a dispor de um conhecimento especializado sobre as matérias que estão a implementar, aumentando as possibilidades de se desenvolver uma gestão com base na evidência e reduzindo a possibilidade de se tomarem decisões baseadas no livre arbítrio. Contudo, estes dispositivos obrigam, como referido anteriormente, à criação de redes de cooperação e articulação fortes, que impeçam a existência de hiatos entre a elaboração da política e a sua execução. Neste novo modelo, o quasi-mercado, os conceitos chave são a competitividade, a eficiência, a escolha do consumidor e o valor do dinheiro, bem como outros princípios que estão intrinsecamente ligados à definição do Estado Providência e dos serviços nacionais de saúde, como a garantia de acesso, equidade, necessidades em saúde e universalidade (Taylor-Gooby, 1991). Este modelo pressupõe ainda a existência de regras claras, rigorosas e responsabilizantes de contratualização entre as partes envolvidas (administração – nacional, regional ou local – instituições, comunidade, 16 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos etc.), assentes na identificação das necessidades em saúde das populações alvo e nos recursos a atribuir para a realização dos cuidados de saúde que lhes dêem satisfação. Embora sejam diversas as técnicas utilizadas no processo da reforma da administração da saúde, a mais importante parece ser a clara distinção das funções de prestação e de financiamento, cuja repercussão prática está presente nalgumas experiências adoptadas por diferentes países, entre eles o Reino Unido com as Executive Agencies, a França com as Regional Hospital Agencies (RHAs) e a Holanda e Suécia com as Agencies. O pressuposto básico em que estas experiências assentam é o de que aos gestores cabe gerir com plena autonomia e responsabilização (negociação de orçamentos globais), sendo posteriormente avaliados pelos resultados obtidos. Particularizando o sector da saúde, Savas (2000) afirma que na maioria dos países da Europa Ocidental esta área constitui uma preocupação crescente, já que a fracção do PIB que lhe é afecta tem vindo a crescer continuamente. Por esta razão, a maior parte destes países têm procurado experimentar vias alternativas que lhes permitam reduzir o peso da despesa do sector social nos Orçamentos de Estado. A segurança social e a saúde estão entre os sectores que têm vindo a ser mais profundamente analisados. Como resultado, a maioria das reformas iniciadas nos sistemas de saúde na Europa Ocidental são em grande parte resultantes da procura de contenção de custos. Mas o acelerado ritmo de crescimento das despesas com a saúde, sobretudo nos últimos quarenta anos e a falta de equidade no acesso aos cuidados de saúde, criaram a necessidade aos governos de repensarem as suas políticas de saúde, tendo levado, naturalmente, a reformas dos sistemas ou, pelo menos, a questioná-los, quer na vertente da eficiência dos serviços, quer na vertente da efectividade dos resultados, (Hindle et al, 1993 e OECD, 1993 b). As despesas em Saúde, que nos últimos anos têm crescido a um ritmo elevado devido ao crescente desenvolvimento científico e tecnológico e ao consequente aumento da oferta em cuidados, levaram os governos a instituir políticas no sentido de melhorar o funcionamento das instituições prestadoras de cuidados de saúde, através do aumento da eficiência e da eficácia dos serviços e do desenvolvimento de novos modelos de gestão, favorecendo a autonomia e responsabilização dos gestores. Para responder a estes desafios, desde meados da década de oitenta e sobretudo no início da década de noventa, alguns países, nomeadamente o Reino Unido, têm vindo a introduzir a contratualização como o instrumento privilegiado da articulação entre os diferentes níveis da administração da saúde. Utilizando um estilo hard ou soft, a contratualização tem permitido questionar os velhos modelos de atribuição de recursos baseados nos custos históricos (modelo do subsídio) e tem vindo a desenvolver uma cultura de diálogo entre os diferentes intervenientes no processo, introduzindo critérios de maior rigor, responsabilização e eficiência. No Reino Unido, em 1989, o Livro Branco (White Paper) já continha um capítulo sobre a nova lógica de identificar necessidades, pelas Autoridades de Saúde, na dinâmica da contratualização. Em 2000, o primeiro-ministro do Reino Unido veio introduzir alterações nas políticas e estratégias vigentes e através de um novo plano (The NHS Plan, 2000) impôs um novo Tese 17 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos caminho para a reforma do National Health Service (NHS) nos anos seguintes20. Estão já em curso algumas das alterações propostas, nomeadamente o desenvolvimento dos centros de saúde, a afectação de 75% do orçamento à área dos cuidados primários e comunitários, a criação de agências de avaliação e de organismos que, através da informação e do conhecimento, irão introduzir uma maior eficiência nos serviços, permitindo uma melhoria no acesso aos cuidados de saúde, com elevados níveis de qualidade. Analisada a experiência de outros países, Portugal introduziu, ao nível das regiões de saúde, as Agências, para procederem à contratualização (em representação do cidadão) dos cuidados de saúde (entre dois níveis da administração: as regiões de saúde e organizações públicas prestadoras de cuidados às populações, nomeadamente hospitais e centros de saúde), procurando promover a acessibilidade e a equidade e também uma melhor explicitação da despesa. Através do Despacho Normativo n.º 46/97 (Anexo I), de 8 de Agosto foi criada a Função Agência21, que deu origem à “agência de acompanhamento”, mais tarde denominada “agência de contratualização” através do Despacho Normativo n.º 61/99 (Anexo II), enquanto entidade intermediária entre a administração, os serviços prestadores de cuidados e o cidadão, actuando no interesse destes de forma a garantir o acesso aos cuidados de acordo com as necessidades. Os seus objectivos, para além da identificação de necessidades e/ou cuidados em saúde, são ainda: proceder à contratualização dos cuidados em saúde, após análise e proposta de distribuição de recursos, monitorizar e avaliar o desempenho das instituições, no que se refere aos cuidados contratualizados e avaliar os ganhos em saúde das populações22. No nosso país, as Agências foram criadas para terem um papel fulcral na regulação do sistema de saúde, desempenhando, segundo Santos (1999, pág. 3), uma função determinante relativamente à identificação de necessidades, afectação de recursos, definição de objectivos, utilizadores e preços. O mesmo autor (1999, pág. 6) é de opinião que a contratualização é um instrumento de tomada de decisão mais transparente, uma ferramenta para coordenar as actividades através do trabalho de equipa, em que os contratos determinam o estabelecimento de prioridades entre os serviços, tornando-os mais eficientes na utilização dos seus recursos. Todos estes processos têm subjacente a necessidade de ser incorporada a visão do cidadão que utiliza os serviços como consumidor final, através da participação no processo de avaliação e acompanhamento e da consulta e discussão com a população ao nível local. Para o efeito, nos diferentes países já foram adoptadas diversas medidas destinadas a simplificar os procedimentos, identificar os responsáveis, permitir a livre escolha dos prestadores, tendo o Reino Unido, desde 1991, adoptado a denominada Carta dos Doentes e a França introduziu a consulta e discussão ao nível local. 20 “… it is time to move beyond the 1940s monolithic top down centralised NHS towards a devolved health service, offering wider choice and greater diversity bound together by common standards, tough inspection and NHS values”, Delivering the NHS Plan (April 2002). 21 Ministério da Saúde, 1997 b), p. 2 22 Ministério da Saúde, 1999, p. 88-89 18 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos 3. FUNDAMENTAÇÃO O presente trabalho insere-se no contexto do sistema de saúde português e tem como principal objectivo analisar as medidas de reforma e discutir os factores críticos que têm dificultado, ou até mesmo impedido, a introdução de melhorias estruturantes no sistema, no âmbito da mudança da administração pública. Com a introdução da contratualização pretendeu-se dar início a uma mudança de paradigma – deixar de distribuir os recursos em função das necessidades apresentadas pelos serviços para passar a distribui-los na base de contratos rigorosos que traduzam o pagamento adequado dos serviços prestados em função das necessidades em saúde de uma comunidade tipo, reintroduzindo ao mesmo tempo o cidadão no sistema e fazendo-o participar na decisão e avaliação, integrando o próprio corpo da Agência. Trata-se, assim, de analisar o incipiente modelo contratual introduzido no sistema de saúde português em 1996/1997, que se baseia na contratualização dos cuidados de saúde, entre a entidade financiadora e os prestadores e que assenta em critérios de efectividade, qualidade, preço e necessidades em saúde. Para sustentar a argumentação utilizada, recorre-se à experiência das últimas três décadas e, através dos dados disponíveis, procura-se encontrar evidência entre os pressupostos utilizados nas políticas de distribuição de recursos e os resultados alcançados. Um aspecto importante do trabalho consiste em identificar os Actores Chave, também designados como Stakeholders, conforme a designação criada por Russell et al (1981) e bem evidente em Walker23 et al (2001), para explicitar a interacção entre as organizações e o meio envolvente e analisar as razões que estão subjacentes ao falhanço das medidas de mudança definidas e até hoje não concretizadas. Contrariamente a outros países, Portugal não tem conseguido implementar as linhas estratégicas aprovadas e consensualizadas pelos diferentes intervenientes no processo de decisão política. Segundo Andrews (1971)24, Porter (1991) e Prahalad et al (1990)25, embora este último mais preocupado com recursos e core competency, dá-se como adquirido que, no mundo 23 “We must commit ourselves to wrestling with this stakeholder stuff.” say Walker et al (2001). “Only a brave leader explores what the troops really think. ... But to be a true leader in the new economy, we must earn the trust of all our key stakeholders by learning to place faith in people and by weighing their needs and opinions into our business decisions. If we as managers use tools to listen to them, then collaborate with them fairly and intelligently, we will take care of the business and its constituents and, as a result, take care of ourselves as well.” 24 Early 1960s: Harvard professors Kenneth Andrews and C. Roland Christensen articulate the concept of strategy as a tool to link together the functions of a business and assess a company’s strengths and weaknesses against competitors. Trata-se de uma abordagem sistémica, de entre outras possíveis, que pode ajudar-nos a lidar com a ambiguidade e as incertezas do problema da saúde em Portugal, tendo por base uma perspectiva estritamente organizacional. Esta abordagem é o modelo de análise, designado por Análise SWOT, que examina a organização segundo quatro variáveis: (i) strengths (forças); (ii) weakness (fraquezas), (referentes à organização – análise interna); (iii) opportunities (oportunidades) e (iv) threats (ameaças) (estas duas para o meio envolvente). 25 Thus with resource-based theory the knowledge resources of a firm, its human and technological competencies, and the ways in which all these are coordinated, are all central determinants of competitiveness. In some respects the development of the core competency model (Prahalad et al, 1990) is a recognition of these trends at the level of popular management thinking. Tese 19 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos empresarial, para que as organizações tenham sucesso é imprescindível que previamente ao desenvolvimento de um conjunto realista e exequível de metas e políticas sejam definidas as estratégias em função de quatro condições básicas: − Os factores internos, que consideram a análise interna das organizações, isto é, identificam os pontos fortes e fracos das diferentes áreas funcionais, para além dos valores pessoais dos principais dirigentes/gestores; − Os factores externos, que detectam, avaliam e comparam as principais ameaças e oportunidades que resultam da análise externa à organização. Aquelas definem o meio competitivo, bem como as expectativas mais amplas da sociedade, nomeadamente o impacte das políticas públicas e os interesses sociais, entre outros; − O meio envolvente contextual, ou macro-meio ambiente, que condiciona a longo prazo as actividades da organização. Este pode desagregar-se em (i) contexto económico, (ii) sócio/cultural, (iii) político/legal e (iv) tecnológico; − O meio envolvente transaccional ou micro-meio ambiente, que é composto pelos elementos que interagem directamente com a indústria em que a organização actua: O micro-meio imediato, formado pelos clientes, fornecedores, intermediários, concorrentes directos do mesmo segmento, concorrentes indirectos de outros segmentos da oferta e concorrentes substitutos de segmentos da oferta não registada e; O micro-meio mediato, constituído pela comunidade financeira, pela imprensa, pelos grupos de interesses e pelo público em geral. A análise dos factores internos e externos permite a formulação da estratégia com a qual o decisor político/dirigente/gestor procede à afectação de recursos às várias áreas funcionais da empresa, aproveitando as oportunidades e combatendo as ameaças. Segundo Mintzberg et al (1999), a formação da estratégia precisa de envolver o conhecimento individual e a interacção social, tanto cooperativa como conflitual; deve incluir uma análise antes e uma programação depois, além de uma negociação durante o processo de formação da estratégia; e tudo isto deve responder ao que poderá ser um ambiente exigente. Refere ainda este autor que a evolução da estratégia é também incentivada pela concorrência e o confronto. Tendo como base o conhecimento e a investigação desenvolvida nesta área pelos diferentes autores consultados e, levando em linha de conta os objectivos que norteiam o presente trabalho de investigação experimental na área da saúde, desenvolve-se um modelo de análise global (composto pela análise da opinião dos peritos e gestores directamente envolvidos no processo (actores internos), análise da evolução dos recursos envolvidos versus os resultados obtidos e a análise dos actores externos, que permite identificar: (i) a percepção dos peritos sobre o adequado desenvolvimento do processo de contratualização; (ii) o grau de ajustamento do modelo de afectação de recursos ao sector da saúde face aos resultados obtidos e, (iii) os factores críticos que condicionam a implementação de políticas de mudanças no sector. 20 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos Antes de se proceder à apresentação do modelo global de investigação, refere-se o objecto do trabalho e os objectivos que se pretendem alcançar. 4. OBJECTO DE ESTUDO O tema do presente trabalho - Evolução da administração pública da saúde: o papel da contratualização. Factores críticos do contexto português - é extremamente pertinente, tanto em Portugal como a nível internacional. Uma das preocupações dominantes dos governos continua a ser a reforma dos sistemas de saúde, no sentido de os tornar mais eficientes e de travar o acelerado crescimento das despesas, preservando os princípios da solidariedade, garantindo um acesso mais equitativo e melhorando a sua efectividade. Portugal insere-se no conjunto de países que têm vindo a experimentar soluções que nem sempre têm atingido os objectivos fixados e que por vezes são interrompidas ou abandonadas sem terem sido cabalmente avaliadas. Daí a premência da análise agora proposta. Para vários autores, (Arrow, 1963; Culyer, 1971; Lucena et al 1995), o “mercado da saúde” não se comporta como os outros mercados: o "cliente" não conhece bem os produtos que quer consumir (a natureza e o tipo de cuidados de saúde que necessita), razão pela qual é levado a expressar as suas necessidades através de um intermediário o médico – com quem estabelece uma relação de agência (Pereira, 1992). A circunstância de, neste caso, o médico se comportar simultaneamente como decisor e prestador, gera um natural desequilíbrio nas leis que regulam o mercado. Para Dunlop et al (1995) e Schneider et al (1992), os cuidados de saúde são não só uma parte integrante do sistema social, mas também um importante sector económico26. A complexidade do mercado da saúde afecta, naturalmente, as dimensões económica e social. A dinâmica do mercado da saúde depende, entre outras coisas, dos ganhos de produtividade na prestação dos cuidados de saúde e da melhoria no acesso dos cidadãos aos serviços de saúde. Segundo Chernichovsky (1995) e Enthoven et al (1995), entre outros, as recentes reformas, ou propostas de reforma, dos sistemas de saúde, assentariam sobretudo na concorrência para promover a eficiência. Em Portugal, como nos outros países da UE, as expectativas dos cidadãos estão a aumentar, tornando-se cada vez mais exigentes relativamente aos cuidados de saúde que lhes são prestados. Nos últimos anos a procura destes cuidados tem tido um crescimento contínuo devido, entre outras razões, ao envelhecimento da população e ao desenvolvimento tecnológico, traduzido não só no prolongamento da vida, como também nos melhores resultados obtidos no tratamento das doenças (Lucena et al 1995). Sendo os recursos disponíveis escassos e a procura cada vez maior, não existiria outra alternativa que não fosse a sua rentabilização. 26 A percentagem do PIB despendida na área da saúde, em 1999, foi em Portugal de 8,2%, (OECD Health Data, 2002 b), sendo que a componente pública (despesa afecta ao SNS para investimento e exploração) foi naquele mesmo ano de 4,1%, representando 11,6% do OGE (IGIF, 2000). Acresce ainda que segundo dados de 2000 fornecidos, a pedido, pelo DRHS, o Ministério da Saúde emprega cerca de 110.000 efectivos. Tese 21 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos A definição de uma metodologia que permita financiar os cuidados de saúde (tipo e localização das actividades de prevenção, promoção, diagnóstico e reabilitação) em função das necessidades identificadas (deixar de distribuir os recursos aos serviços em função do histórico e dos inputs, para passar a distribui-los com base nos resultados e assente em critérios que terão como suporte a evidência) e com recurso à contratualização responsabilizante, possibilitará a obtenção de significativos ganhos de eficiência e satisfação dos cidadãos. 5. OBJECTIVOS DA INVESTIGAÇÃO Os principais objectivos deste trabalho de investigação, relativamente à metodologia referida, são os seguintes: Quanto ao contexto em que se insere o sector saúde: 1. Clarificar os princípios básicos que sustentam o sistema de saúde; 2. Identificar os principais actores chave que se movimentam no sistema de saúde; 3. Definir a matriz estrutural que lhe está subjacente. Quanto ao processo de contratualização desenvolvido em Portugal, para o sistema de saúde: 4. Explicitar o processo de contratualização e o papel das agências; 5. Determinar a coesão das respostas dos peritos auscultados, relativamente ao processo de contratualização prosseguido em Portugal; 6. Ponderar se os governos central e local devem apoiar o sector de uma forma mais incisiva, de molde a garantir a consolidação do processo de contratualização; 7. Verificar se os profissionais mais envolvidos no processo da contratualização atribuem “importância às políticas governamentais para o sector” e se consideram que essas políticas são consentâneas com a reforma necessária ao sector da saúde; 8. Analisar a qualidade do sistema de informação para os profissionais e a capacidade das organizações envolvidas no processo da contratualização enfrentarem os desafios que se lhes colocam. Quanto ao desenvolvimento e gestão do processo de mudança no sistema de saúde: 9. Discutir a viabilidade da contratualização em Portugal; 10. Verificar o impacte da contratualização ao nível dos serviços prestadores e discutir o processo de negociação com os actores chave; 11. Assinalar as vantagens decorrentes da identificação das necessidades em saúde e discutir como é que elas podem contribuir para o sucesso da contratualização; 22 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos 12. Identificar os factores críticos, que no contexto português, condicionam a implementação de políticas de mudança no sector. Para além dos objectivos formulados, visa-se também poder contribuir com algumas reflexões, que sejam geradoras de vantagens competitivas e de mais valias para o desenvolvimento de um modelo de administração de saúde em rede, que tenha como base o processo de contratualização. 6. CONCEPÇÃO DO MODELO DE INVESTIGAÇÃO Nos sectores económico e social, as últimas décadas têm-se caracterizado por um crescente ritmo de mudança, evidenciada por um aumento da produção, da inovação em produtos e tecnologias, da competitividade e pelas exigências dos cidadãos. A mudança traduz-se na necessidade de adoptar uma actuação flexível, em que permanentemente se equacionem e ajustem objectivos e estratégias, para que as organizações se adaptem à realidade do mercado e a sua permanência se mantenha assegurada. As análises quantitativas e qualitativas são imprescindíveis à tomada de decisões estratégicas. É por essa razão que, segundo Handy C. (1995), os estudos de mercado são indispensáveis. Contudo, a análise quantitativa da produção e da produtividade dos serviços é o cerne das opções estratégicas em que assentam as políticas, as quais se baseiam na inovação, na qualidade da gestão, na qualidade dos serviços e na satisfação do cidadão utilizador e do cidadão profissional. Desta forma, com base nos objectivos deste trabalho e tendo presente os modelos usados para análise política de autores como Walt G. et al (1994) e Walt G. (1999, em Saltman et al 1999), concebeu-se um modelo global de investigação na área da saúde – modelo para análise do papel da contratualização no processo de mudança da administração pública da saúde (Figura 1). Modelo de análise Componente Processo de Contratualização Componente Processo de Mudança Informação qualitativa: Opinião dos Actores Chave (análise SWOT) e revisão bibliográfica Informação qualitativa: Opinião de peritos e de gestores do sistema (análise de conteúdo, análise estatística) e análise documental Informação qualitativa: Apreciação e consenso pelos Líderes de Opinião (Focus Group) Informação quantitativa: Indicadores económicos e sociais Informação quantitativa: Indicadores financeiros, de produção e de desempenho Informação quantitativa: Indicadores de resultados e determinantes da saúde Componente Contexto Fonte: Concebido a partir do modelo apresentado por Walt G. et al (1994) e Walt G. (1999, em Saltman 1999) Figura 1. – Modelo global de investigação da administração da saúde baseado na contratualização O modelo de análise é constituído por três componentes: contexto (através da caracterização do sistema de saúde – como é financiado e gerido e como é que os serviços são prestados; da identificação dos actores chave - quem são os principais actores chave e como é que eles se articulam e interagem e da definição da matriz de Tese 23 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos regulação do sistema - como se caracterizam as relações de regulação e de contratualização no quadro de referência do SNS); processo de contratualização (como se iniciou, desenvolveu e funcionou o processo de contratualização – se funcionou ou não funcionou e porquê) e processo de mudança (identificar se existiu ou não mudança na administração pública da saúde, quais os factores críticos que condicionam essa mudança e qual o papel desempenhado pela contratualização). A investigação foi essencialmente desenvolvida com recurso a revisão bibliográfica, através de recolha de dados das estatísticas e normativos disponíveis; de inquéritos; painéis de peritos e seminários, designadamente: 7. 1. a componente “Contexto” baseia-se na análise das opiniões dos Actores Chave, a partir das respostas obtidas em cinco seminários realizados em finais de 1999 e início de 2000 com o objectivo de avaliar a influência daqueles actores na definição e implementação de uma estratégia no contexto do sistema de saúde português e que conjugada com a análise resultante da revisão bibliográfica procura responder aos primeiros três objectivos. Foi ainda efectuada a análise quantitativa dos dados económicos e sociais que parecem caracterizar o sector da saúde; 2. a componente “Processo de Contratualização”, consubstancia e responde aos objectivos quatro a oito, assentando na aplicação de questionários e entrevistas a peritos e gestores posteriormente analisadas com recurso a análises de conteúdo e estatística e, ainda, na análise dos indicadores financeiros, de produção e de desempenho; 3. a componente “Processo de Mudança”, pretende analisar e responder aos objectivos nove a doze, procurando na opinião dos Actores Chave e nos Líderes de Opinião a confirmação e consensualização das linhas de desenvolvimento da contratualização em Portugal e a identificação dos factores críticos que no contexto português condicionam a implementação de políticas de mudança do sector da saúde. QUADRO METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO O tema central do presente trabalho é a definição e aplicação de métodos para análise do processo de contratualização em saúde. Em particular, procura-se encontrar evidência na introdução do processo de contratualização encetado a partir de 1996/1997, mas com resultados só a partir de 1999, data em que foi possível uma aplicação generalizada ao nível de praticamente todos os hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e de grande parte dos centros de saúde. Analisa-se o processo de implementação da contratualização em Portugal e procura-se perspectivar o seu desenvolvimento. Procuram-se ainda identificar os factores críticos que no contexto português condicionam a implementação de políticas de mudança no sector da saúde. O campo de análise desta investigação é o sistema de saúde português e tem como objectivo colher informação ao nível das fontes tradicionais (Inquérito Nacional de Saúde – INS), morbilidade, mortalidade, estatísticas de produção dos serviços e de recursos) e não tradicionais (envolvimento dos actores chave do sector da saúde, peritos e líderes de opinião) que possa apoiar o desenvolvimento de um modelo de distribuição de recursos aplicável ao nosso país, baseado na contratualização. Com base nesta 24 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos informação identifica-se o desenvolvimento tendencial da contratualização e procuram-se identificar os factores críticos que estão subjacentes ao insucesso da implementação de políticas de mudança através da opinião dos peritos envolvidos e dos actores chave no sector. Os resultados obtidos serão objecto de consensualização através de um painel de líderes de opinião. Em síntese, este trabalho consiste na análise do processo de arranque e desenvolvimento da contratualização, bem como na identificação dos factores condicionantes da sua implementação e disseminação e ainda na discussão das prioridades definidas. Procuram-se também identificar e caracterizar os recursos utilizados no sector da saúde em Portugal nas últimas três décadas e encontrar evidência entre a evolução do consumo desses recursos e os resultados obtidos. Os principais meios de recolha e tratamento da informação utilizados na investigação consistiram em: • pesquisa bibliográfica, sectorial e sobre o enquadramento teórico; • análise de vários documentos, incluindo o tratamento dos dados estatísticos sobre o tema; • análise dos dados do sector, constantes da base de dados da OECD Health Data e das estatísticas dos serviços, bem como o seu tratamento; • contactos directos com vários especialistas, com vista ao cruzamento de conhecimentos, experiências e visões diversificadas; • aplicação de questionários e entrevistas directas e a criação de uma página Web, como principais elementos de recolha de dados e sua análise através da técnica de análise de conteúdo; • auscultação dos actores chave, através da sua participação em seminários desenvolvidos para o efeito. Este painel de líderes de opinião, multidisciplinar e multiprofissional, através de uma metodologia de focus group27, veio contribuir para a identificação dos factores críticos que impedem a implementação de políticas de mudança e para a validação das conclusões obtidas. Os principais produtos da presente investigação centram-se na elaboração de um relatório, que constituirá a tese a apresentar, no desenvolvimento de uma rede de peritos, constituindo-se como um verdadeiro fórum que procurará encontrar o melhor caminho para a discussão sobre o futuro do processo de contratualização em Portugal, na realização de seminários, na publicação de artigos e a eventual edição de um livro, baseado nas conclusões finais do trabalho em curso. As principais fases deste trabalho serão: (i) a auscultação dos peritos envolvidos, que permitirá o desenvolvimento da metodologia mais adequada e o aprofundamento dos 27 O focus group discussion é uma técnica de recolha de dados que obedece a regras e procedimentos específicos (entrevistas a grupos alvo centradas nas reacções individuais e no debate em grupo de tópicos precisos e limitados), utilizada na pesquisa em ciências sociais e que se encontra descrita, entre outros, por Morgan D., ed. (1993) e Stewart, D. (1990). Tese 25 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos instrumentos e ferramentas a usar; (ii) a auscultação das opiniões dos actores chave sobre o seu envolvimento nas políticas na área da saúde, através de focus group; (iii) a utilização de depoimentos técnicos de peritos credenciados, com o objectivo de apoiar/consolidar algumas das principais conclusões, no 3º trimestre de 2003 e (iv) a elaboração do relatório final ainda no decurso de 2003. 8. DESCRIÇÃO SUMÁRIA DO TRABALHO O presente trabalho está estruturado em duas partes distintas, de acordo com o que a seguir se discrimina e ainda de acordo com o explicitado na Figura 2: Estudo do processo de contratualização em saúde Enquadramento do trabalho de investigação A Primeira Parte procura fazer o enquadramento do trabalho de investigação no sector da saúde e o desenvolvimento teórico da contratualização Definição do modelo de análise do processo de mudança da administração pública da saúde A Segunda Parte procura desenvolver o modelo teórico de análise do processo de mudança da administração da saúde, baseado na contratualização e discutir os resultados obtidos Metodologia de Investigação 4 1. Opinião dos Actores Chave (Análise SWOT) 4 2. Opinião de Peritos e Gestores através de entrevistas e questionários (Análise de Conteúdo) 4 3. Análise estatística dos indicadores económicos e sociais; financeiros, de produção e de desempenho e, de resultados 4 4. Análise dos normativosda saúde 4 5. Depoimentos técnicos de peritos Apresentação dos Resultados Discussão dos Resultados Validade do modelo conceptual proposto, à luz da discussão dos resultados Conclusões e pistas para futuros projectos Figura 2 - Estrutura da Tese A Primeira Parte procura fazer o enquadramento do trabalho de investigação no sector da saúde e o desenvolvimento teórico da contratualização, estando estruturada da seguinte forma: 26 Tese Capítulo I: Fundamentação e Objectivos O Capítulo I – Fundamentação e Objectivos, descreve a natureza e âmbito do trabalho, importância do tema escolhido, os objectivos propostos e a metodologia de abordagem seguida nesta investigação. O Capítulo II – Reformas e Contratualização em Saúde na Europa, compreende o enquadramento teórico, onde se procurou, de forma sintética, apresentar uma revisão bibliográfica dos estudos desenvolvidos sobre as reformas da administração pública e sobre contratualização em saúde. No sentido de obter um enquadramento mais abrangente analisam-se sumariamente as principais teorias económicas que parecem contribuir para o conceito em análise. Pretende-se destacar ainda a evolução dos conceitos fundamentais envolvidos, bem como algumas metodologias de aplicação dos respectivos instrumentos de análise. O Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha, delimita o campo de investigação, através de uma análise do sistema de saúde no Reino Unido e em Espanha, dada não só a similitude organizacional entre estes sistemas e o português, como também o processo de desenvolvimento que tem sido prosseguido nesses países e ainda o constituirmos com Espanha o espaço ibérico. Pretende-se, com esta análise, identificar as principais variáveis chave dos sistemas de saúde nestes países, nas vertentes das mudanças operadas e da contratualização, assim como os desafios mais importantes que actualmente se colocam ao sector da saúde. Com o intuito de complementar esta análise apresenta-se uma breve reflexão sobre as diferentes questões que condicionam e simultaneamente parecem potenciar este processo e que deverão estar subjacentes ao desenvolvimento das políticas de saúde, nos países em análise. O Capítulo IV – Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto, clarifica os princípios do sistema de saúde e identifica a matriz estrutural onde estão identificados os principais actores chave da saúde. Apresenta ainda uma breve resenha histórica que procura descrever os principais momentos de evolução do sistema de saúde português. O Capítulo V – Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal, descreve o nível de conhecimento sobre o processo de contratualização e o desenvolvimento do mesmo, no período de 1996 a 2000. Como suporte de recolha de informação utilizou-se a Técnica do Inquérito – Questionário e Entrevista Semi-estruturada, contendo um conjunto de questões passíveis de caracterizar as opções dos peritos envolvidos e ainda o posicionamento dos gestores no processo de mudança então encetado, no que se refere ao desenvolvimento do processo de contratualização para a saúde, em Portugal. Para análise das opiniões dos peritos recorreu-se à aplicação da Técnica de Análise de Conteúdo, única técnica aplicável nesta situação (questionário com perguntas abertas, entrevistas e conclusões dos painéis de peritos envolvidos). Este capítulo avança ainda com a identificação de um caminho a seguir em direcção ao futuro, procurando discutir a inversão do modelo actualmente existente, centrado em serviços, para um modelo centrado nas necessidades em saúde dos cidadãos, onde a contratualização possa ser um elemento central na mudança do sistema. Tese 27 Capítulo I: Fundamentação e Objectivos A Segunda Parte procura definir o modelo de análise do processo de mudança da administração pública da saúde, baseado na contratualização. No Capítulo VI – Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde, centrada na contratualização, procede à formulação das perguntas de investigação, à definição do método e das diferentes técnicas de recolha e de análise a usar, à selecção da amostra, à esquematização dos diferentes procedimentos a seguir e ainda, à definição das técnicas de tratamento de dados. No Capítulo VII – Apresentação dos resultados, apresentam-se os resultados obtidos através das diferentes metodologias aplicadas, nomeadamente a revisão bibliográfica e a análise estatística, para além dos resultados do questionário, complementados pelas conclusões do painel de líderes de opinião, questionados através de um grupo Focus para obtenção de consensos, procurando articular esses resultados em cada uma das componentes do modelo de investigação inicialmente definido. Procuraram-se ainda analisar, através de uma análise SWOT, as principais oportunidades e ameaças que estão subjacentes ao desenvolvimento do processo de reforma da saúde. Para o efeito foram utilizados os resultados de seminários realizados em finais de 1999 e início de 2000 e repetidos em 2002, com a participação dos principais actores chave no sector da saúde, com recurso à técnica de focus group discussion. Os aspectos teóricos inerentes ao tratamento estatístico efectuado foram abordados de uma forma sintética, em virtude do carácter secundário dos mesmos, face ao objectivo central da presente investigação. No Capítulo VIII – Validade do modelo conceptual proposto, à luz da discussão dos resultados, pretende-se discutir o papel da contratualização na evolução da administração pública da saúde em função dos resultados obtidos através das diferentes componentes do modelo de investigação utilizado, procurando responder às perguntas de investigação inicialmente colocadas, ou seja validar o modelo conceptual proposto. E ainda identificar os principais factores críticos que no contexto português complicam ou até impedem o processo de mudança. No Capítulo IX – Conclusões e pistas para futuros projectos, apresentam-se as principais conclusões do trabalho efectuado, que nos parece levarem em consideração as questões essenciais relacionadas com o processo de mudança na administração pública e indicam-se algumas linhas de investigação potenciais, passíveis de desenvolvimento em posteriores estudos da mesma índole. Com o presente trabalho pretende-se também contribuir para uma correcta sistematização dos principais conceitos sobre políticas de saúde, sistemas de saúde e contratualização, mas principalmente constituir uma base sólida para se continuar a discutir a metodologia de distribuição de recursos mais adequada ao caso Português. 28 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa CAPÍTULO II – REFORMAS E CONTRATUALIZAÇÃO EM SAÚDE NA EUROPA 1. NOTA INTRODUTÓRIA A expressão reforma da saúde tem sido utilizada para designar as iniciativas de inovação no modelo organizacional dos sistemas de saúde de quase todos os países nos últimos trinta anos. A reforma tem sido definida como um processo de mudança contínuo e sistemático em diferentes áreas do sistema de saúde. Esta designação, embora clara em termos gerais, não tem permitido a definição do aspecto mais importante do processo: a diferença entre as reformas introduzidas nos anos setenta e oitenta e a nova agenda da década de noventa, baseada na flexibilização da administração pública e na contratualização. Ainda que a análise dos objectivos da reforma deva considerar a especificidade intrínseca do sector da saúde, não podendo os vários desenhos sectoriais serem reduzidos a uma tese única da reforma do Estado, considera-se também necessário proceder à ligação entre as mudanças em curso e a crise do modelo burocrático administrativo para se obter maior rigor analítico no estudo das mudanças implementadas. As primeiras reformas da saúde foram estimuladas pelo imperativo macroeconómico de controlo das despesas públicas neste sector. Nos últimos anos, as inovações têm tido subjacentes os incentivos à criação de um ambiente institucional favorável à melhoria da eficiência dos prestadores, públicos ou privados. A reforma dos anos noventa trouxe novos desafios para as agências e organizações públicas, estimulando a prestação de serviços através de mecanismos de contratualização e introduzindo o quasi-mercado. A contratualização consubstancia, em bases formais, a separação funcional entre financiamento e prestação directa dos serviços. Outro aspecto a ser considerado nas experiências das reformas da saúde é o processo de difusão das inovações. A busca de inovação e novas competências tem feito com que soluções organizacionais, experimentadas em contextos institucionais específicos, sejam adaptadas por determinados sectores preocupados com o desempenho da gestão pública ou com o desenho de novas funções para as organizações públicas. Aquilo que Ham (1998) designa por mecanismo de policy bandwagoning (entrar na onda). As denominadas elites técnicas e a burocracia executiva são os principais agentes responsáveis por um comportamento adaptativo voltado para a introdução de inovações de políticas macroeconómicas e de gestão pública. As democracias europeias estabelecem fortes imperativos de sobrevivência e competitividade política através do julgamento eleitoral realizado periodicamente pelos cidadãos, melhorando por essa via as preocupações com o bom governo e com as temáticas de desempenho sectorial. Tese 29 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Pode considerar-se que a larga difusão dos métodos utilizados nas reformas no sector da saúde servem como campo privilegiado para a avaliação dos efeitos não esperados das mudanças do modelo de gestão pública. Além disso, a falta de estudos e diagnósticos abrangentes e sistemáticos permite que variáveis não controladas interfiram na dinâmica do processo de reforma. Um outro aspecto a considerar é a distinção conceptual das três alternativas organizacionais disponíveis para o sector a partir dos finais do século XIX e primeira metade do século XX: • modelo de Beveridge, baseado no financiamento fiscal, universalidade de acesso e gratuitidade no atendimento em todos os níveis de prestação. Assenta num sistema público, financiado pelos impostos e em que o direito à saúde é independente do trabalho e do emprego, os denominados serviços nacionais de saúde (Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suécia, Grécia, Portugal, Espanha e Itália); • modelo de Bismarck, fundado no seguro social, na estrutura corporativa e no acesso condicionado pela situação de emprego. Caracteriza o mundo germânico (adoptado e adaptado por outros países, nomeadamente Áustria, Holanda e Suíça) e que é fiel à lógica do seguro social, em que o acesso é universal, mas sustentado no esforço contributivo dos salários e dos empregadores; • modelo de mercado, organizado a partir da capacidade de compra do seguro de saúde pelos indivíduos e empresas, sendo o acesso dependente da capacidade de consumo do cidadão/utilizador. Os EUA, são o país que foi mais longe neste tipo de organização, pois tem um sistema misto de seguros sociais e privados, em que se justapõem sistemas concorrentes que exprimem as escolhas sociais do Estado (Medicaid e Medicare), com vantagens e inconvenientes, acabando por se chocar com limitações semelhantes aos de outros sistemas. Umas representam obstáculos ao nível dos recursos e outras constrangimentos sócio-demográficos, de tal forma que os resultados alcançados não são de forma alguma proporcionais aos esforços desenvolvidos para melhorar a saúde. Os modelos organizacionais de Beveridge e Bismarck exigiram, para o seu desenvolvimento, uma forte intervenção do Estado na definição do pacote mínimo de serviços e na negociação das condições do trabalho médico. Alguns países da OCDE (França, Bélgica e Japão) têm ainda um outro tipo de sistema, o misto, que apareceu mais tarde, embora inspirado no sistema bismarkiano, mas que associa o princípio do seguro obrigatório à protecção social, abrindo-se em numerosas prestações, não contributivas, aos mais desfavorecidos. O Quadro 3 resume as principais características dos dois modelos de organização dos sistemas de saúde na Europa. A solução de mercado, que tal como referido anteriormente é aplicada de modo específico nos EUA, apresentou, até aos anos oitenta, uma intervenção residual do Estado na organização da oferta e na regulação do trabalho médico. 30 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Quadro 3 - Principais características dos dois modelos de organização dos sistemas de saúde na Europa Características Modelo Beveridge Financiamento Predominantemente por impostos Gestão orçamental Governamental Assalariados ou remuneração por capitação Predominantemente por quotizações de empregados e empregadores para o seguro social Não-governamental Contratados pelos fundos de seguro social e médicos liberais pagos por honorários Modelo de propriedade Público Não público Países Reino Unido, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Suécia, Espanha, Itália, Portugal e Grécia Alemanha, Áustria, Holanda, Suíça, França, Bélgica Forma de regulação da oferta Directa Indirecta Trabalho médico Modelo Bismarck Fonte: Adaptado de ESCOVAL (1997) e HAM (1998). As reformas portuguesa (1979), italiana (1978/79) e espanhola (1986) representaram a transição de um modelo de seguro social para uma matriz baseada em fundo tributário, com gestão pública e universalização de acesso. Esses processos tardios de adaptação do modelo inglês em Itália, Portugal e Espanha, coincidentes com profundas alterações políticas e sociais, tiveram de encontrar respostas organizacionais para os desafios da procura que afectou grandemente os sistemas existentes, motivando a primeira onda de reformas nos anos oitenta e noventa. 2. A ORIENTAÇÃO MACROECONÓMICA DAS REFORMAS DOS ANOS OITENTA O ajustamento macroeconómico que esteve subjacente às reformas introduzidas nos anos oitenta foi motivado pela forte pressão sobre as contas públicas das despesas com cuidados médicos, relacionadas com o crescimento das doenças crónicas e com o envelhecimento das populações. Este aspecto demográfico foi ainda agravado pela melhoria do poder de compra individual e familiar, pela ampliação do acesso e da cobertura do seguro social, pelo incremento da tecnologia médica, pelo aumento do número de profissionais médicos e pela inflação dos preços dos cuidados de saúde. Na primeira metade da década de oitenta as características predominantes dos sistemas de saúde europeus eram: a universalidade de acesso às diferentes modalidades de cuidados de forma não segmentada; a existência de fundo público de financiamento, através de recursos fiscais ou ampliação do seguro social; a gratuitidade no ponto de utilização e a inexistência de mecanismos de co-pagamento (contribuição obrigatória dos doentes na compra de medicamentos ou na utilização dos serviços); uma equilibrada cobertura geográfica; a utilização de procedimentos de acordo com as necessidades do doente e o acesso gratuito ou altamente subsidiado a medicamentos. Esses mecanismos organizacionais geraram um padrão dominante de oferta pública unificada. A autoridade de saúde pública ou o seguro social tornaram-se os compradores únicos (single payers) de serviços hospitalares e cuidados primários, que Tese 31 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa frequentemente eram de propriedade pública ou contratados. Predominavam relações assalariadas com os médicos ou o pagamento de honorários (WHO, 1993)28 e eram escassos os incentivos à gestão voltada para a qualidade e para o direito do cidadão, como se pode avaliar no Quadro 4 (Normand et al, 1994)29. Este padrão organizacional viu a sua legitimidade enfraquecida durante a década em análise pelo impacto negativo que gerou sobre as contas nacionais ao “medicalizar” os orçamentos públicos (crescimento excessivo da saúde no conjunto das despesas públicas), pelas mudanças na percepção de necessidades do utente/cidadão/consumidor, com a crescente procura por atendimento individualizado (atenta aos direitos e às escolhas do doente) e pelo excessivo custo do tratamento intra-hospitalar. O primeiro processo de reforma do sector saúde na Europa desenvolveu-se pela implementação de uma série de directivas macroeconómicas visando essencialmente a redução das despesas sectoriais. Algumas medidas de curto prazo foram implementadas pelos governos, como o controlo de preços no sector saúde, a introdução do co-pagamento na aquisição de medicamentos, a redução do plano de seguro social e a limitação do emprego no sector. Outras iniciativas de impacto de médio prazo foram as alterações no pagamento aos prestadores, pela alteração dos valores relativos dos honorários médicos e dos métodos de remuneração dos profissionais de saúde (Saltman et al,1997)30. Um outro mecanismo de mercado que tem sido introduzido no âmbito das reformas dos sistemas de saúde na Europa é o recurso a formas de contratualização entre os vários actores, nomeadamente entre os pagadores e os prestadores. A contratualização permite a delegação de responsabilidades e dá aos gestores colocados a nível dos serviços o poder para disporem dos recursos da forma que permita melhor servir a população. A contratualização também tende a melhorar o desempenho dos prestadores. O contrato incorpora a definição do volume de cuidados a fornecer mas também indicadores de qualidade e desempenho. A maior limitação à aplicação deste sistema de avaliação 28 “Mécanismes de remuneration”, in “Évaluation des récentes réformes opérées dans le financement des services de santé”. Raport d’un groupe d`étude de l’OMS, série de rapports techniques, 829, Genéve. Relatório da actividade de um grupo de trabalho constituído para analisar as alterações operadas no financiamento dos serviços de saúde até Dezembro de 1991.Tem um capítulo sobre os movimentos financeiros que vão do consumidor ao prestador de cuidados (mecanismos de remuneração). Descreve sete modos de remunerações principais, aplicados ao prestador individual, ao centro de saúde e ao hospital (p. 44), bem como os incentivos que cada modo de remuneração proporciona (p. 45). 29 Este livro tem dois capítulos muito importantes: o capítulo 8 (Provider payment mechanisms), onde está estabelecido um quadro de referência sobre os diferentes mecanismos de pagamento a prestadores e que os compara quanto à qualidade, contenção de custos e facilidade de administração e o capítulo 12 (Drawing on the experiences of others), que descreve sucintamente os sistemas de saúde do Reino Unido, Canadá, Tailândia, Egipto, Costa Rica, e Alemanha, incluindo as formas de remuneração aos médicos. 30 “Performance-related payment systems for providers”. Publicação em livro dos resultados de um estudo da OMS Europa, desenvolvido na segunda metade da década de noventa, sobre as mudanças e desafios nos sistemas de saúde europeus. Parte do capítulo “allocating resources effectively” é dedicado às várias formas de pagamento a médicos (p. 151-163). 32 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa reside na falência dos sistemas de informação, ou seja na falta de dados disponíveis (Mills, 1998). Quadro 4 - Características dos Sistemas de Saúde em alguns países da UE País Formas de contratação Directa Indirecta (empregados (contratos) do Estado) Modalidades de pagamento aos médicos hospitalares Modalidades de pagamento aos clínicos gerais Salário de acordo com Predominantemente especialidade e antiguidade. honorários Chefes de departamento podem negociar suplementos especiais Bélgica --Todos os serviços Assalariados com grelha nacional Honorários Especialistas, Farmácias, dentistas Assalariados 60% salário e 40% hospitais e 60% e hospitais privados Sistema de incentivos financeiros capitação Espanha dos Clínicos por objectivos Gerais Assalariados em tempo completo Concursos e grelhas salariais nacionais Clínica privada nos hospitais França --Todos os serviços públicos é paga ao acto com Honorários reembolso ao hospital Alguns hospitais têm sistema experimental de incentivos Alguns pagamentos ao acto Assalariados Médicos, Farmácias e poucos Grelha salarial pouco respeitada Assalariados dentistas, hospitais privados Grécia Pagamentos dependentes da hospitais procura equivalentes a 40% do salário mensal. Hospitais Hospitais privados Salário, com pagamento adicional públicos e não lucrativos, para urgências e turnos em Capitação Irlanda especialistas clínicos gerais e hospitais públicos farmácias Pagamento ao acto no sector privado Hospitais Hospitais privados, Assalariados públicos e clínicos gerais e Nos hospitais públicos Capitação Itália clínicos gerais especialistas independentes, incentivos a privados profissionais Pagos pelos serviços prestados aos doentes internados segundo preços --Todos os serviços fixados pelo Ministério da Honorários Luxemburgo Segurança Social em negociação com as organizações representativas dos médicos --Todos os serviços Pagamento ao acto – redução de Holanda Honorários tarifas nos anos oitenta Clínicos gerais, Hospitais privados, Assalariados e hospitais médicos nas áreas Sistema de Portugal públicos e rurais, farmácias e Assalariados incentivos em alguns alguns laboratórios de grupos especialistas análises clínicas Hospitais Clínicos gerais, Assalariados, com dedicação públicos e hospitais privados e exclusiva ou consultores, mas serviços maioria dos podendo exercer clínica privada Capitação Reino Unido comunitários médicos dentistas após o serviço. Sistema de incentivos: prémios de vários níveis Clínicos gerais, Assalariados com base no cargo e especialistas fora do na progressão de carreira. Dinamarca Hospitais hospital, dentistas e Sistema de incentivos p/ cargos de 28% por capitação fisioterapeutas responsabilidade e para trabalho de “urgência”. Alemanha --- Todos os serviços Fonte: Adaptado de Escoval (1997) e Normand et al (1994). Tese 33 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa As medidas de longo prazo mais importantes foram a redução no número de médicos e outros profissionais em formação e da disponibilidade de camas hospitalares, além do estímulo às medidas de prevenção da doença e promoção da saúde, na esperança de reduzir, a longo prazo, a procura de cuidados de saúde. Particularmente importantes foram os limites aos orçamentos para a saúde ou a imposição de metas orçamentais em parte dos sistemas de saúde31. Estas iniciativas produziram impactos importantes na estabilização das despesas públicas e na mudança do modelo assistencial, pela redução de atendimentos hospitalares e pelo incentivo às modalidades assistenciais de cuidados primários. Porém, foram relativamente inócuas sobre o crescimento do sector e do emprego da saúde nesse período (Abel-Smith et al, 1994). O conjunto de mudanças sustentadas por preocupações de ordem macroeconómica, pôs na agenda da gestão pública a necessidade do sector da saúde consumir uma parcela apropriada do Produto Interno Bruto (PIB). Os empreendedores das reformas procuraram argumentar que o motivo principal para o descontrolo dos gastos com o sector estava nas falhas das organizações públicas e do mercado, no excesso de oferta ou no aumento da procura de cuidados de saúde. Foram estes alguns dos principais argumentos que estiveram na base da reestruturação dos mecanismos organizacionais do sector da saúde. O efeito dessas medidas foi uma estabilização, ou ligeira redução, das despesas em saúde a partir da segunda metade da década de oitenta em algumas das economias europeias, nomeadamente da Alemanha, Irlanda, Luxemburgo, Holanda e Suécia, como podemos verificar no Quadro 5. No entanto, países como Portugal e Espanha que encetaram mais tarde medidas tendentes a garantir melhores cuidados de saúde às populações, continuaram a aumentar as despesas em saúde, verificando-se no entanto que é Portugal aquele que tem o maior crescimento da % do PIB afecta à saúde no período em análise (5,6), mas convém acrescentar que este é também o país que em 1970 tinha o menor valor entre os 15 da 31 Segundo Carlos Matias Dias, num trabalho desenvolvido em 1999, para o MS, em alguns países, nomeadamente Reino Unido, República da Irlanda, Espanha, Grécia, Itália, Dinamarca, França, Bélgica, Alemanha, Holanda, Suécia, Finlândia, Noruega e Canadá, os sistemas de remuneração dos médicos hospitalares são baseados no pagamento por acto ou no salário e estão dependentes do tipo de hospital em questão (público, privado, com ou sem fins lucrativos), do tipo de contrato, do volume e tipo de trabalho produzido (trabalho extraordinário, serviços de urgência) e, nalguns países, de acordo com as administrações dos hospitais ou da antiguidade na carreira. Apenas no Reino Unido existe um sistema de incentivos, comum aos médicos de saúde pública e aos médicos hospitalares, que permite a atribuição anual de um número fixo de prémios que associam o mérito profissional (avaliado por uma comissão nacional) a um aumento da remuneração. No entanto, este sistema é alvo de contestação. Ainda neste país os Medical Officers são alvo de uma grelha salarial “protegida” com remuneração escalonada segundo a população da área sob a sua responsabilidade. Em França, alguns hospitais implementaram, a título experimental, sistemas de incentivos económicos ligados a objectivos específicos, a nível de enfermarias e de serviços. Alguns autores pensam que a implementação naquele país do sistema de acreditação médica terá repercussão nas condições de contratação e emprego dos médicos. 34 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa UE (2,6%) e que só na segunda metade dos anos noventa se situa ao nível da média europeia. Quadro 5 - Despesa total em Saúde/PIB (%) na UE15 e EUA (1970 a 2000) 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 U Alemanha 6,3 8,8 8,8 9,3 8,7 10,2 10,6 4,3 Áustria 5,3 7,1 7,6 6,6 7,1 8,6 8,0 2,7 Bélgica 4,0 5,8 6,4 7,2 7,4 8,7 8,7 4,7 Dinamarca 6,1 8,9 9,1 8,7 8,5 8,2 8,3 2,2 Espanha 3,6 4,7 5,4 5,4 6,6 7,7 7,7 4,1 Finlândia 5,6 6,2 6,4 7,2 7,9 7,5 6,6 1,0 França 5,8 7,0 7,6 8,5 8,6 9,6 9,5 3,7 Grécia 6,1 6,4 6,6 7,1 7,5 8,9 8,3 2,2 Irlanda 5,1 7,4 8,4 7,6 6,6 7,2 6,7 1,6 Itália 5,1 6,2 6,9 7,0 8,0 7,4 8,1 3,0 Luxemburgo 3,6 4,9 5,9 5,9 6,1 6,4 6,0 2,4 Holanda 5,9 7,2 7,5 7,3 8,0 8,4 8,1 2,2 Portugal 2,6 5,4 5,6 6,0 6,2 8,3 8,2 5,6 Suécia 6,9 7,7 9,1 8,7 8,5 8,1 10,7 3,8 Reino Unido 4,5 5,5 5,6 5,9 6,0 7,0 7,3 2,8 Média UE15 5,1 6,6 7,1 7,2 7,4 8,1 8,2 3,1 EUA 6,9 7,8 8,7 10,0 11,9 13,3 13,0 6,1 PAÍSES Fonte: OECD Health Data (2002 b) É de referir ainda que, de acordo com OECD Health Data (2002 b), a média da despesa total em saúde, quer nos países da UE, quer da OCDE, se mantém à volta dos 8,0% do PIB, em 2000. Segundo vários autores, a partir do início dos anos noventa, as reformas da saúde evidenciaram efectivamente as variáveis de eficiência microeconómica para gerar, ao menor custo, incentivos à qualidade no atendimento e à satisfação dos utilizadores. As considerações sobre a melhoria da eficiência microeconómica incluíram a busca de soluções organizacionais que favorecessem os resultados globais, tendo os governos procurado estimular a eficiência sistémica, canalizando recursos dos serviços e programas ineficientes e ineficazes para outros de menor custo e mais rentáveis. 3. INSTITUCIONALISMO E REFORMA DA SAÚDE NOS ANOS NOVENTA A adopção da matriz teórica do institucionalismo económico produziu o que Klein (1998) denominou as reformas big bang, ou seja uma estratégia de implementação de reforma abrangente e sistémica, adoptada com sucesso inicialmente pelo Reino Unido e depois difundida ou adaptada por um segundo conjunto de reformas nos países europeus, ao longo da década de noventa. Tese 35 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa A principal questão assinalada por essa matriz teórica são as falhas de mercado na prestação de cuidados de saúde. Na ausência de uma política de regulação, o mercado de saúde conduz a um excesso de oferta em função da assimetria de informação e do risco moral (moral hazard). A assimetria de informação refere-se à questão assinalada por Arrow (1963) sobre a incapacidade do mercado regular a prestação de cuidados de saúde, uma vez que a maioria dos doentes não detém a informação necessária para fazer escolhas como consumidor. Nesse sentido, o pressuposto do modelo clássico da troca perfeita num ambiente de competição entre prestadores (que ofereceria aos cidadãos a melhor escolha associada às suas necessidades) não funciona no sector da saúde, uma vez que é delegada no profissional a decisão sobre o tratamento. Cabe-lhe a ele também decidir sobre o tipo de serviços adequados, originando um eventual conflito de interesses. O problema do risco moral refere-se, por exemplo, aos incentivos e ao excesso de oferta de serviços quando um terceiro é responsável pelo pagamento de grande parte dos cuidados de saúde que os médicos escolhem para o doente. Esses efeitos são, segundo Oxley et al (1994), hipertrofiados nos sistemas que remuneram por honorários médicos. De acordo com Ordeshook (1989), um segundo ponto nas reformas dos anos noventa refere-se ao processo de reengenharia da gestão pública, pela operacionalização de algumas das propostas da public choice, como a implementação de decisões por instituições descentralizadas e/ou por instituições híbridas “a serem inventadas”. Os instrumentos desenvolvidos pela new public management vão de encontro à exigência de integração entre a nova perspectiva macroeconómica para o sector saúde e a reforma da administração pública. A new public management assinala a importância normativa, para a gestão, da avaliação das despesas dos sistemas e organizações públicas (value for money) para tornar viáveis e legítimas as suas actividades e objectivos. Ainda segundo Ordeshook (1989), esta nova perspectiva da gestão esteve na origem da separação entre as funções de financiamento e de prestação de serviços sociais, no pressuposto de que a sobreposição de funções nas organizações públicas aumenta a ineficiência e leva a falhas de responsabilização. Pakenham-Walsh et al (1997) descrevem as principais mudanças que a nova gestão pública introduziu na reforma do sector público inglês, com importantes repercussões no sector da saúde: imposição de novos instrumentos de gestão ao nível central, transferência de funções executivas do governo central para agências autónomas; privatização de algumas funções; reestruturação das agências que permaneceram no sector público através da incorporação de gestores com experiência e visão contratados, por vezes, fora do sector da saúde; introdução de uma nova linguagem, na qual os objectivos das organizações passaram a ser traduzidos em termos de mercado; criação de novos instrumentos de análise, regulação e avaliação do desempenho e disseminação dos êxitos das mudanças de cultura pela divulgação dos resultados da avaliação, através de Benchmarking. Como já foi referido anteriormente, nas reformas dos sistemas de saúde europeus, desencadeadas no início da década de noventa, a maior pressão foi no sentido de dar um 36 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa maior relevo ao papel do sector privado e à lógica de mercado no financiamento e prestação de cuidados de saúde. No entanto, excluindo mudanças radicais nos sistemas de saúde dos países de leste, o que se tem observado é a introdução de alguns mecanismos de mercado nalguns sectores dos sistemas de saúde existentes. As reformas verificadas no Reino Unido, Itália, Espanha, Finlândia e Suécia (mercados desenhados e administrados pelo sector público) são disso exemplos (WHO, 1997 b). Um desses mecanismos foi a introdução de incentivos competitivos (WHO, 1997 b). Em teoria económica a palavra “incentivo” significa um estímulo para actuar de uma determinada forma. Um sistema de incentivos é assim um sistema de recompensas. Uma vez que muito do consumo de recursos está relacionado com as decisões que os médicos tomam e que o seu sistema de remuneração é um factor importante nos orçamentos de saúde (menos importante, no entanto, do que os gastos com medicamentos ou as tecnologias), é fundamental conhecer os incentivos, nomeadamente financeiros, que podem afectar o comportamento dos médicos e o consumo de recursos por eles gerado (AAS IHM 1995, em Dias 1999). Parece consensual que nenhum dos tipos de remuneração experimentados se tem revelado ideal, embora os efeitos perversos de cada um deles possa ser exacerbado pelo ambiente em que o médico está inserido (WHO, 1997 a). 4. PRINCIPAIS REFORMAS. ANÁLISE E TENDÊNCIAS Para Lambert (2000), há quatro questões fundamentais que se podem considerar como básicas na discussão sobre as reformas desenvolvidas ou em curso nos diferentes países: (i) a saúde é um investimento e um recurso para o crescimento económico?; (ii) a saúde é um bem público?; (iii) a procura é induzida pela oferta?; (iv) o desequilíbrio permanente entre a oferta e a procura é incontrolável? Será que a contribuição da saúde para o crescimento económico tem sido na maior parte dos casos negligenciada, tal como a educação e, limitada ao papel de factor residual? E se assim é como poderemos inverter esta tendência e introduzir a discussão sobre os benefícios e proveitos associados ao melhor estado de saúde dos cidadãos, ao invés dos custos decorrentes do tratamento? A natureza de bem público da saúde é apresentada pelos teóricos do “bem-estar” como uma consequência da “falência do mercado” e assim é legitimada a socialização total ou parcial do sistema. Em compensação os teóricos da escolha pública propõem restabelecer uma concorrência moderada sobre o mercado da saúde. A teoria da procura induzida, segundo a qual a procura de cuidados é desencadeada pela prescrição do médico ou do hospital e não induzida pela oferta de cuidados, é geralmente aceite no mundo anglo-saxónico e tende a legitimar um controlo da inflação médica pela regulação da oferta de cuidados. Entretanto a sua viabilidade começa a ser contestada. De referir ainda que o permanente desequilíbrio das contas da saúde parece assentar mais na rigidez estrutural do que em acidentes conjunturais. Uns sublinham o poder dos Tese 37 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa grupos de interesse, já que essa influência é considerada desde há muito como um obstáculo estrutural ao progresso económico nas sociedades latinas 32, outros o bloqueio da produtividade 33 e outros ainda o carácter inflacionista e dualista das ligações entre a medicina ambulatória e a medicina hospitalar, já que os serviços raramente funcionam centrados em redes coerentes de referenciação e mecanismos de avaliação e responsabilização, provocando graves problemas de iniquidade e acessibilidade, além da repetição desnecessária de actos, que oneram grandemente o sistema. Nos últimos vinte anos tem-se assistido a uma mudança de paradigma no que se refere aos métodos de avaliação dos custos e dos resultados dos cuidados de saúde. Antes a avaliação estava centrada nas vertentes técnico/médica, posteriormente passaram a intervir os constrangimentos de recursos e mais tarde foi procurada a conciliação entre a racionalidade económica e médica, isto é, antes era baseada na lógica da racionalização das escolhas orçamentais e as prioridades eram estabelecidas com base em metodologias centradas no custo-utilidade ou custo-benefício. Hoje os métodos de avaliação foram enriquecidos e são bastante mais complexos, pois são orientados por uma lógica de eficiência e de qualidade, dando-se grande atenção aos benefícios esperados em termos de utilidade, equidade, qualidade de vida do cidadão e segurança dos cuidados. No entanto, somos confrontados com uma verdade indiscutível - não há evidência de que os ganhos em saúde e o aumento da esperança de vida nos países desenvolvidos seja proporcional ao nível e ao crescimento das despesas em saúde. Assim, os resultados em saúde não apresentam uma proporcionalidade directa com a afectação de recursos feita a este sector, não sendo também permitido estabelecer uma relação de causa efeito entre os resultados em saúde e a escolha do sistema de saúde, por exemplo, de inspiração bismarkiana ou beveridgiana. Se uma única forma de organização permitisse assegurar os progressos necessários em termos de saúde, garantindo a qualidade e segurança dos cuidados e a sua distribuição equitativa, ao mesmo tempo que continha o crescimento das despesas a um nível razoável, este sistema seria considerado o melhor. Naturalmente este figurino estender-se-ia a todos os níveis de desenvolvimento. Segundo Lambert (2000), a repartição de despesas com a saúde no mundo industrializado atesta o considerável peso relativo dos EUA e Canadá que, representando um terço da população dos países da OCDE, são responsáveis por mais de metade (52%) dos gastos em saúde (Figura 3). 32 Segundo Enthoven (1989), nenhum sistema de saúde escapa à influência do corporativismo, quer seja nos EUA, no Reino Unido ou em França. Refere ainda que acresce a esta influência a proliferação de terapêuticas ineficazes, o que potencia a lógica inflacionista dos cuidados de saúde. 33 De acordo com Baumol (1993), este postulado não se verifica na saúde, pois embora em termos gerais os custos na área dos serviços (predominância de custos com pessoal) aumentem mais rapidamente que a inflação e a oferta de serviços tenda a declinar em quantidade e qualidade, aqui, para além da inflação médica, existem os progressos consideráveis da eficácia diagnóstica e terapêutica e não é hoje admissível tratar uma doença do foro cardiológico ou outro sem recurso às novas tecnologias. 38 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Mas esta assimetria na distribuição dos recursos parece não ter uma relação directa com a forma de organização dos sistemas de saúde, como se pode concluir pela análise dos elementos já referidos anteriormente. Europa (22) América (2) Ásia-Pacífico (4) Fonte: Adaptado de Lambert (2000) Figura 3 – Gastos globais em saúde na OCDE (28 países), em 1998 Poderemos concluir que genericamente todos os países procuram reformar e modernizar os seus sistemas de saúde e que economistas, políticos, profissionais e analistas em geral assentam as suas decisões e investigações em três pilares fundamentais: (i) o binómio gastos efectivos/resultados com qualidade; (ii) o nível de satisfação dos profissionais e utilizadores dos serviços e, (iii) o estado de saúde da população. Apesar disso continua a ser bastante contingente o melhor caminho para atingir os níveis de excelência que ambicionamos e as tendências não parecem avançar no sentido de atenuar o crescimento exponencial dos gastos, nem obter melhores níveis de saúde para as populações. As iniquidades mantêm-se e o acesso aos cuidados necessários nem sempre é mandatório. 5. TEORIAS DA AGÊNCIA E DOS CUSTOS DE TRANSACÇÃO A teoria dos custos de transacção, entendida como os custos correspondentes à monitorização e controlo de uma determinada actividade e que visam assegurar o cumprimento integral dos objectivos estabelecidos, conjugados com a teoria do agente principal34, são duas abordagens que influenciam verdadeiramente o estudo das estruturas que gerem as relações nas organizações e em particular a coordenação das actividades, no caso concreto a contratualização. Podemos afirmar que a um modelo de coordenação e controlo das actividades, baseado na hierarquia, no poder e na autoridade associado a cada posição da organização, contrapõe-se uma perspectiva racional, baseada na teoria económica, que evidencia os 34 A Teoria do Agente-Principal, também chamada Teoria do Agenciamento ou, como é mais conhecida em inglês, Agency Theory, assenta no facto do neo-institucionalismo económico adoptar o paradigma contratualizador na análise das relações entre cidadãos e entre cidadãos ou grupos e as organizações. Nesse paradigma as transacções podem ser modeladas como uma situação que envolve dois actores, um denominado agente e o outro principal. Esta situação é tipicamente a que acontece quando há uma separação entre controlo e propriedade, ou seja, quando há uma delegação de autoridade, por exemplo, quando o agente é um profissional contratado por um empregador (o principal) para realizar uma tarefa pré-especificada. Tese 39 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa custos associados com as transacções que se estabelecem numa relação de troca e, portanto, das estruturas que a governam. Referimo-nos em primeiro lugar a uma corrente económica que tem sido designada por economia neo-institucional ou economia dos custos de transacção, iniciada em especial por Coase (1937, 1960 e 1988) e desenvolvida sobretudo por Williamson (1975, 1985, 1995 e 1996) e que deve ser conjugada com os trabalhos de investigação sobre racionalidade limitada (bounded rationality) de Simon (1982). Dada a importância do tema, esta investigação tem-se desenvolvido bastante e tem vindo a centrar-se em problemas do género: como é que diferentes tipos de instituições, regras ou procedimentos afectam os resultados das escolhas colectivas (políticas) e como é que indivíduos racionalmente constroem, mantêm e mudam instituições em função das suas preferências, crenças e estratégias? Esta linha de investigação deu origem à denominada Economia das Organizações. Os autores que mais marcaram a génese deste ramo de investigação publicaram as suas obras, principalmente, entre o final da década de quarenta e meados da de sessenta, embora tenham prosseguido as suas análises muito para além deste período. As obras mais significativas naquilo que mais tarde se tornariam programas de investigação com alguma autonomia, foram as de Arrow, K. (1951), Black, D. (1948, 1958), Buchanan, J. et al (1962), Downs, A. (1957), Olson, M. (1971, 1982), e Riker, W. (1982). Estas obras deram início a dois programas de investigação: a teoria da escolha pública, public choice, cujos principais mentores foram e são Buchanan e Tullock e, a teoria da escolha social, social choice, que se desenvolveu na continuação da obra de Arrow K. (1951, 1963, 1971) e de Sen A. (1970 a) e b), 1982). Uma influência menos unanimemente reconhecida, mas sem dúvida importante, foi o trabalho de Schumpeter, J. (1943)35. Estes são os dois programas de investigação que maior influência têm nas linhas programáticas da Economia das Organizações. Comum a estas linhas de investigação existe uma abordagem em termos de agentes racionais que actuam num contexto de racionalidade limitada, com custos de transacção, informação imperfeita e instituições (regras estáveis) que condicionam a actuação dos agentes. Trata-se pois de um distanciamento em relação à abordagem neo-clássica tradicional. O novo institucionalismo económico caracteriza-se por: (i) aplicação do individualismo metodológico; (ii) actores racionais, mas de forma limitada (bounded rationality); (iii) importância dos contratos, explícitos ou implícitos; (iv) abordagem individualista das instituições e, (v) raciocínio analítico e por vezes formalizado. O que parece distinguir o “novo” institucionalismo da economia das instituições do “velho” institucionalismo da economia institucional é sobretudo o método de análise. 35 Schumpeter, distingue a doutrina clássica da democracia daquilo que designa por “outra teoria da democracia”. Sobre a primeira diz: “A filosofia da democracia do século XVIII pode ser acomodada na seguinte definição: o método democrático é o “arranjo” institucional para elaborar decisões políticas que reflectem o bem comum (common good), fazendo o povo decidir sobre problemas através da eleição de indivíduos que se reúnem para exprimir a vontade do povo”. A esta doutrina clássica Schumpeter opõe uma outra concepção de democracia que sintetiza da seguinte forma: “O método democrático é o “arranjo” institucional para elaborar decisões políticas no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir através de uma luta competitiva pelo voto do povo” in Schumpeter (1943) pgs. 250 e 269. 40 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Segundo Freitas (2002), a função e os limites da contratualização são eles próprios criticamente importantes para determinar se as transacções no sector público podem ser mais efectivamente realizadas num ambiente de quasi-mercado ou controladas no contexto de uma relação hierárquica mais directa. Diz-nos ainda este autor que a teoria dos custos de transacção sugere que o contrato legal clássico é mais conveniente para situações em que não há interesse em manter relações próximas entre as partes e em que não se prevê uma relação duradoura, insinuando assim que a contratualização entre entidades do sector público, na forma de contratos legais coercivos, é ineficiente. Esta análise lembra ainda que muitas relações de financiamento no sector público devem ser consideradas formas de contratualização relacional informal a longo prazo, mais do que relações contratuais estritamente legalistas e coercivas. A outra abordagem económica importante sobre a contratualização é, tal como referido anteriormente, a teoria do Agente-Principal (Eisenhardt, K., 1988 e 1989; Grossman et al, 1983). A ideia básica desta teoria quando aplicada ao sector público, é de que a delegação de funções a agentes institucionais privados ou públicos autónomos faz com que as regras de mercado sejam mais respeitadas do que o seriam numa burocracia clássica. Mas podem não ocorrer ganhos de eficiência ou podem até ser acompanhados de perda de qualidade dos serviços, sobretudo quando o processo de regulação não está organizado da forma mais adequada. Os factores culturais que tornam a burocracia ineficiente podem gerar uma regulação deficiente ou até inexistente quando se dá a separação entre agente e principal no âmbito dos serviços públicos. Algumas mudanças organizacionais podem ser explicadas através de conceitos de enquadramento derivados desta teoria, os mais significativos dos quais são os incentivos criados pelos contratos, os problemas de informação e risco e, mais genericamente, as relações entre comprador e prestador. Embora não considerado um ideólogo da teoria da agência, Herbert Simon36, um dos fundadores da teoria de gestão moderna, teve grande influência no papel dos agentes e dos custos da agência. Este autor demonstrou que os agentes enfrentam custos resultantes da informação presente e da incerteza sobre o futuro, o que limita fortemente a sua capacidade de tomada de decisão e força-os a tomar decisões rápidas, procurando a primeira solução satisfatória e não a que optimiza e maximiza os resultados, pois outro tipo de abordagem requereria um domínio total sobre a informação. O grande problema da teoria do Agente/Principal é a assimetria de informação e a congruência de interesses entre o agente e o principal (onde cabem o oportunismo, o risco moral e a selecção adversa), aspectos que influenciam a adesão à relação contratual. Para além do seu nível de conceptualização altamente abstracto, tem sido posta em causa a sua aplicabilidade nas organizações do sector público, devido ao 36 Herbert Alexander Simon (1916-2001), economista e especialista em psicologia e ciências da informação, com uma influência decisiva na teoria da gestão e da micro-economia que lhe valeu o Prémio Nobel em 1978, foi o escolhido por Mintzberg para integrar, com Peter Drucker, a galeria dos mais influentes da segunda metade do século XX. Segundo ele a gestão não é a arte de optimizar, pois “Toda a racionalidade no processo de decisão é limitada. O gestor não maximiza, toma decisões que o satisfazem, descobre soluções aceitáveis para problemas bem reais. Contenta-se com alternativas satisfatórias”, (adaptado da entrevista para www.Janelanaweb.com e Executive Digest, em Fevereiro de 2001). Tese 41 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa objectivo demasiado amplo das relações de financiamento que levam a dificuldades na precisão das especificações, à ausência do lucro como medida de desempenho, aos fracos incentivos para o principal monitorizar o desempenho, à multiplicidade de princípios e à existência de objectivos conflituantes neste sector. Esta teoria destaca a importância do controlo sobre o desempenho e a centralidade da informação na relação contratual. Ela fornece um certo número de princípios para o eficiente desenho das relações de financiamento, como a clareza na definição de papéis, de responsabilidades e de especificação dos outputs e outcomes a serem obtidos, assim como a delegação de autoridade sobre os inputs e a monitorização efectiva do desempenho. Desta forma pode entender-se que através da aplicação cuidadosa dos princípios subjacentes às teorias descritas, podem ser atingidos ganhos significativos e reforçado o papel da contratualização. 6. 6.1 O PAPEL DA CONTRATUALIZAÇÃO Contributo das escolas e teorias de gestão para o processo da contratualização Com o aparecimento das primeiras teorias de gestão, inicialmente denominadas de administração, foram valorizados os aspectos internos das organizações, uma vez que a turbulência do meio era praticamente inexistente. Basicamente são quatro as teorias da administração. Na Escola Clássica de Administração, de acordo com Stoner et al (1996), (abordagem racional e profissionalização da administração), destacam-se Frederick Taylor, Henry Gantt e o casal Frank e Lillian Gilbreth, percursores da Teoria Clássica de Administração. O primeiro baseou o seu estudo na determinação científica dos melhores métodos para a realização de qualquer tarefa e no desenvolvimento de um sistema de incentivos para os trabalhadores, de forma a promover uma maior produtividade e a aproximação do gestor ao trabalhador. Henry Gantt, colaborador de Taylor, também propôs um sistema de incentivos mas para incentivar os supervisores a motivarem os trabalhadores a produzirem mais. Criou o “Gráfico de Gantt”, para programar a produção. Henry Fayol, fundador da Teoria Clássica das Organizações (Stoner et al, 1996), sistematizou a prática da administração, subdividindo a função administrativa em seis actividades: técnica (fabricação); comercial (compras); financeira (aquisições); segurança; contabilidade e administração. A Escola Neoclássica de Administração foi criada por Max Weber, “pai da burocracia”, que defendeu a definição de objectivos, regulamentos e normas, racionalizando, prevendo e programando as actividades da organização. Dos seus estudos poderemos considerar que a separação entre a função administrativa e a racionalização das actividades foi o principal contributo para a contratualização. 42 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Por último, Mary P. Follet37, autora do modelo holístico, integrando a pessoa no grupo e Chester Barnard38, que identificou as organizações informais e o equilíbrio entre os objectivos da organização e os individuais, contribuíram para a inclusão nas organizações dos conceitos de equidade, acessibilidade e mudança da cultura organizacional. A Escola Comportamental, de Elton Mayo, Abraham Maslow e Frederick Herzberg (movimento das relações humanas), estudou o comportamento das pessoas no seu local de trabalho, promovendo um sistema de recompensa para os grupos (Stoner et al, 1996). Maslow introduziu o conceito da hierarquia das necessidades (pirâmide paralela ao ciclo de vida das pessoas, constituída por necessidades fisiológicas, segurança, sociais, autoestima e auto-realização), procurando compreender a motivação humana. A Escola Quantitativa, que integra a Management Science, procura analisar através de modelos matemáticos os problemas que surgem na administração, contribuindo dessa forma para a definição de produto e o conhecimento do custo/efectividade (Stoner et al, 1996). A Teoria Evolutiva da Administração, que integra a Abordagem Sistémica, a Abordagem Contingencial e o Novo Movimento das Relações Humanas, incorporou os conceitos de sistemas, subsistemas e sinergia, a melhor técnica para determinados resultados e a qualidade total, contribuindo para a contratualização através dos processos informacionais, a rentabilização dos diferentes recursos e a explicitação dos objectivos. 37 Mary Parker Follett, norte-americana nascida em Boston, foi uma pioneira da gestão e era uma intelectual vanguardista. Muitas das ideias que concebeu no início deste século ainda são propagadas como relevantes pela sociedade japonesa, que enaltece o seu nome. Antes de Mary, a gestão era um território exclusivamente masculino. Vivia-se sob a influência do taylorismo e da sua busca de eficiência através do melhor aproveitamento das máquinas. Foi a primeira pessoa a destacar a importância dos trabalhos em grupo e a estudar a sua dinâmica. Aconselhava os administradores a conhecerem um pouco do trabalho mecânico para melhor desempenharem as suas tarefas - “A sua contribuição foi ter criado uma filosofia de gestão inserida na complexidade da natureza humana”, afirma a biógrafa Pauline Graham. Escreveu no seu livro Dynamic Administration que “O estudo das relações humanas nos negócios e o estudo da técnica da sua condução estão misturados”. Adapatado de Sakellarides, Cíntia “As vozes femininas da gestão”, em Executiva, 5 Março de 2000. 38 Chester Barnard (nascido em 1886 e falecido em 1961), foi um prático por excelência, que foi gestor na companhia de telefones Bell Telephone de New Jersey durante 40 anos, tornando-se mais tarde seu presidente. Foi dos primeiros a estudar os processos de tomada de decisão, o tipo de relações entre as organizações formais e informais e o papel e as funções do executivo. Contrariamente a sociólogos como Max Weber, ele considerava as empresas como instrumentos mais eficazes para o progresso social do que o Estado ou as igrejas. Enquanto estas são baseadas na autoridade formal as empresas regem-se pela cooperação entre indivíduos ligados por uma causa comum. Ele analisou questões como a liderança, a cultura e os valores 30 anos antes de o mundo empresarial se aperceber da sua existência e escreveu “The Functions of The Executive” (editado em 1938 pela Harvard Business School Press, em que referia duas ideias mestras que marcariam Drucker - as organizações são sistemas sociais e não podem deixar de ter uma finalidade “moral” - a de se legitimarem pelos serviços que prestam e escreveu ainda “Organization and Management” (editado em 1948, igualmente pela Harvard Business School Press). As suas obras mantêm uma actualidade surpreendente. (baseado em Exame Executive Digest, edição nº 18 - Management - Em foco II; www.Janelanaweb.com e Jorge Nascimento Rodrigues. Versão 2002 para a revista portuguesa "Cadernos Temáticos", nº 3/2001, publicada pelo Instituto de Formação Turística). Tese 43 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa De acordo com Nogueira et al (2000), à medida que o meio envolvente se tornava mais turbulento, as organizações passaram a actuar como unidades processadoras de informação e a analisar também o seu meio externo (organismos públicos, indústrias/serviços, outras instituições, etc.). Essa perspectiva é partilhada por diferentes autores do campo da teoria das organizações, dentre os quais se destaca Lawrence et al (1967), por terem sido os primeiros a estudar a envolvente externa das organizações, tendo posteriormente, Ansoff (1965), criado o modelo de planeamento estratégico com a finalidade de obter a melhor relação do binómio produto/mercado, partindo das necessidades do cliente (exigências do meio envolvente), dos recursos e capacidades existentes, para formular a estratégia, que não é mais do que a relação que a empresa estabelece com o meio para, através do produto, satisfazer a necessidade do cliente. Mintzeberg et al (1999) apresentam como principais características da empresa a flexibilidade e a capacidade de se ajustar às mudanças do meio envolvente. Os principais contributos que poderemos retirar deste autor para a contratualização são a participação, a responsabilização, a informação para a tomada de decisão, o planeamento, a negociação e a flexibilidade para responder ao meio (Nogueira et al 2000). 6.2 A participação do cidadão no processo de contratualização A participação pode ser definida segundo Saltman (1994), como um processo através do qual os actores chave (stakeholders) influenciam e partilham o controlo sobre iniciativas de desenvolvimento (decisões e recursos que os afectam). Na área da saúde, a importância da participação reside na necessidade estratégica de medir o desempenho do sistema, constituindo um dos mais importantes elementos de feedback sobre a qualidade dos serviços e a referência ideal para basear um sistema de diagnóstico de necessidades. Pretende-se assim associar ao actual controlo político do sistema de saúde uma mediação comunitária, obtendo-se uma aferição efectiva entre as necessidades em cuidados de saúde e a sua prestação, com consequente rentabilização da produção, tanto a um nível qualitativo, como quantitativo. No contexto legislativo Português actual, a participação dos cidadãos está prevista a vários níveis da hierarquia do SNS, assumindo, no entanto, um carácter meramente consultivo, ou seja, uma participação não vinculativa. Este aspecto merece uma reflexão, pois encerra um duplo problema: se por um lado, este tipo de participação assegura em teoria o cumprimento dos valores e dos princípios estratégicos da nossa política de saúde, por outro lado não valoriza a participação dos cidadãos, que já por si apresentam uma fraca cultura participativa, tanto a nível individual como colectivo. Sabe-se que os mecanismos que levam os cidadãos a quererem participar nas dinâmicas das organizações estão directamente relacionados com a obtenção de resultados pessoais ou de grupo. De facto, a persecução desses resultados conduz ao desenvolvimento de um conjunto de comportamentos e atitudes que decorrem do exercício de algum tipo de poder (formal ou informal, a um ou mais níveis). Pode afirmar-se, por isso, que para participar é necessário que o cidadão perceba que detém algum tipo de poder, pois só dessa maneira sente que poderá retirar alguma mais-valia do seu investimento. 44 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa À pergunta: como realizar o empowerment dos cidadãos, a resposta deve ser equacionada em dois planos: Como pode o cidadão participar na gestão do sistema público de saúde? Que estrutura organizacional deve um sistema público apresentar, de forma a promover e garantir a participação dos cidadãos? Na prática, estas questões não podem ser respondidas de forma isolada, pois a interface a desenvolver depende da cultura de cidadania de uma determinada população e do grau de liberdade que um sistema específico permite, no sentido de criar mais ou menos mecanismos de controlo centrais, no seu processo de tomada de decisão. De uma forma geral, o cidadão individual pode exercer o seu poder recorrendo a processos de tomada de decisão, como a escolha de uma instituição específica ou de um profissional de saúde. Se, simultaneamente, o sistema criar formas de afectar recursos de acordo com as suas preferências, o cidadão começa a fazer parte do processo de decisão central, a estar dentro do sistema como sujeito activo e não como objecto de prestação de serviços, uma vez que a distribuição de recursos financeiros passará pela análise do comportamento dos clientes do sistema e não só pelos planos dos seus profissionais. Colectivamente, os cidadãos podem desenvolver o mesmo tipo de comportamentos, mas de forma organizada, optando pelo fornecedor de serviços e contratualizando de acordo com os seus interesses específicos. Além disso, podem exercer pressão sobre o sistema, no sentido de satisfazer necessidades específicas, interferindo directamente na sua gestão política. Consoante o nível de empowerment desejado e as características da população a envolver (binómio estrutura/cultura), assim se procederá ao desenvolvimento do processo participativo dos cidadãos. Partir de um sistema “autocrático”, onde não é permitida ao cidadão a escolha, nem por ele exigida, implica que se desenvolvam mecanismos graduais de participação e empowerment (Figura 4). Toda a negociação a encetar entre a estrutura central e a comunidade envolve a assunção de aprendizagens de parte a parte, uniformizando conceitos, na busca de linguagens comuns. Este aspecto, levanta a questão do “como fazer”. A criação de instituições mediadoras, capazes de cumprir uma missão de equilíbrio de poderes, surge com pertinência óbvia numa fase inicial, enquanto o poder de decisão final se mantém do lado da administração. Um dos mecanismos a considerar nas formulações políticas refere-se aos argumentos clássicos sobre a importância de criar “instituições intermédias” capazes de proteger os indivíduos da exposição directa ao enorme poder do estado. Exemplo destas organizações são as actuais Agências de Contratualização de Serviços de Saúde, em Portugal. A noção de Agência do utilizador dos serviços de saúde pode ser compreendida exactamente como esta instituição intermédia, que procura assistir e defender os interesses dos cidadãos nos seus esforços para conquistar uma autoridade real no processo de tomada de decisão. Tese 45 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa 1. Utilização de mecanismos de voz 2. Utilização de meios legais de defesa - Acções judiciais por má prática - Indemnizações por “erros” - Quadros nacionais de disciplina médica 3. Selecção anual do médico de ambulatório 4. Escolha do médico e do hospital (sem implicações orçamentais) 5. Controlo de recursos pelos eleitos - Ao nível nacional/de cidade/do município 6. Influência na modalidade de tratamento - Pedido de segunda opinião - Participação nas decisões médicas - Escolha de especialistas alternativos 7. Escolha do médico e do hospital (com implicações orçamentais) Fonte: Saltman, 1994, p.204 Figura 4 - Tipologia do empowerment do cidadão nos serviços de saúde Encontramos, no entanto, dois importantes constrangimentos para que a Agência cumpra o seu papel de uma forma eficaz: A manutenção da soberania governamental no processo de decisão, controlando o funcionamento da Agência através de critérios essencialmente financeiros, rejeitando ou não assumindo indicadores, necessidades e prioridades manifestados pelo cidadão (desmotivando a sua participação de uma forma continuada); O âmbito regional que lhe é conferido, responsável por um “gap” entre participação e centralização do poder: • impeditivo de um efectivo “cuidar comunitário” e sinónimo de uma correcta avaliação de necessidades e controlo de outputs; • permeável a enviezamentos no processo de tomada de decisão e aplicação de recursos, uma vez que se gerem a um nível macro, recursos cuja aplicação local não pode ser controlada pelo cidadão, passando despercebidas inúmeras ineficiências. Por outro lado, perdemse com frequência oportunidades, que parecem óbvias aos membros de determinada comunidade, criando-se fenómenos de desacreditação e incompreensão das lógicas que presidiram ao processo de tomada de decisão. Partindo-se do pressuposto atrás referenciado, que a participação não é possível sem o empowerment do cidadão, este deve ser atingido de forma gradual e, logicamente, numa perspectiva de longo prazo. Assim, segundo Mesquita (2002): ◊ 46 Numa primeira fase: Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa - poder-se-ia fazer a orientação por agências de âmbito regional, com representação dos cidadãos nas equipas de acompanhamento, geograficamente referenciadas a comunidades restritas (membros de câmaras municipais, juntas de freguesia, associações de cidadãos), numa tentativa de partilhar experiências, providenciar formação sobre conceitos específicos em áreas como a contratualização, investigação (diagnóstico de necessidades) e mecanismos de avaliação e controlo; - simultaneamente, deveria ser dada a possibilidade ao cidadão de escolher o prestador público de cuidados de saúde; - por último, o financiamento dos prestadores deveria progressivamente ser feito de acordo com a capitação e as características da população a que presta cuidados. ◊ Numa segunda fase: - promover a “independência” da agência de contratualização, onde o cidadão assume o papel de “stakeholder”; - desenvolver o processo de localização das Agências (só assim o cidadão poderá assumir o papel acima referido); - abrir a contratualização ao sector privado a um nível local. De uma forma geral, a transição entre estas duas fases traduz-se nas mudanças referidas e sintetizadas no Quadro 6. Quadro 6 - Alguns conceitos a analisar para promover a participação do cidadão Cidadão Papel Agência do sistema - Cliente - Utente Agência da - Accionista comunidade Exercício de poder - Limitado pelo sistema - Poder efectivo (Actores Chave) Sistema público Mecanismos de controlo Objectivos e/ou regulação Administrativo: central, regional ou local - Comunitário; - Local (Unidade de Saúde) - Participação consultiva - Eficácia - Participação activa - Responsabilização - Eficácia Noções conceptuais - Satisfação - Assimetria de informação - Empowerment /escolha - Informação suficiente Fonte: Adaptado de Mesquita (2002) 6.3 Conceitos de necessidades em saúde Tendo em atenção que a saúde não é uma qualidade absoluta mas um valor com características eminentemente sociais (Brockington F., 1988) e que essas características devem ser procuradas na relação que o indivíduo estabelece com o seu meio, passam-se em revista algumas definições mais usuais de necessidades em saúde. Tese 47 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Pode afirmar-se que o conceito de necessidades em saúde está directamente associado com as relações que cada cidadão mantém consigo próprio e com o meio onde se insere, determinando por essa via os padrões de comportamento que vão influenciar a saúde das respectivas comunidades. Se a saúde se pode definir como um estado de completo bem-estar físico, mental e social 39 e se, de acordo com a Carta de Ottawa (WHO, 1986), a saúde é um dos principais recursos para o desenvolvimento social, económico e pessoal, e uma dimensão importante da qualidade de vida, então o grande investimento dos sistemas de saúde deve ser feito na “promoção da saúde”, entendida como um processo de capacitação que permite a cada um definir e realizar um projecto de vida, no contexto social e cultural em que se inclui e assim influenciar o estado de saúde e as necessidades em saúde individuais e colectivas. Segundo Wilkin, David et al (1992), o conceito de necessidade é central para a oferta de cuidados de saúde, dado que define os seus objectivos. Para estes autores a mensuração das necessidades não é uma descrição objectiva e neutra da população; engloba juízos de valor sobre o que é aceite como objectivo apropriado e o que constitui desvio desse objectivo. Assim, todas as medidas de necessidade englobam juízos acerca do que constitui um objectivo desejável e como devem ser avaliados os desvios desses objectivos. Sendo raramente explicitados, estes juízos dizem respeito a duas áreas relacionadas: o padrão pelo qual a deficiência ou a necessidade deve ser avaliada e quem decide o que é uma necessidade. Muitos autores, entre eles, Bradshaw (1972), Richardson (1994) e Stevens and Gabbay (1991), citados em Robinson J. et al (1996), classificam as necessidades em saúde em (i) necessidades sentidas (que podem ser expressas e não expressas); (ii) necessidades expressas (conhecidas através da procura dos serviços); (iii) necessidades normativas (definidas por líderes e peritos) e (iv) necessidades satisfeitas (conhecidas através da utilização dos serviços). Ainda de acordo com Wilkin, David et al (1992), há três formas de definir os critérios para se avaliar da existência de uma necessidade. Primeiro, as necessidades podem ser avaliadas em relação a padrões ideais, os quais são extremamente difíceis de definir quando se querem aplicar com finalidade prática. É disso exemplo o conceito de saúde da OMS, atrás referido, já que não se consegue definir o estado de necessidade. Segundo, podem ser definidas em termos de um nível mínimo abaixo do qual a população não deve cair, sendo esta uma medida de avaliação bastante usada em termos de política social e de saúde, pelo que têm sido feitos esforços significativos, no sentido de definir padrões mínimos de nutrição, de rendimento, de habitação, de funções básicas (andar, vestir, trabalhar), etc. Esta metodologia, no entanto, é bastante limitada, já que se centra no que é facilmente mensurável e apenas valoriza uma pequena parte do que as pessoas sentem como necessidades legítimas. 39 Um dos princípios da Constituição da WHO, adoptada na Conferência Internacional sobre Saúde em 22 de Julho de 1946, Nova York, tendo entrado em vigor em 7 de Abril de 1948. 48 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Em terceiro lugar, as necessidades podem ser avaliadas por referência a comparações com padrões adquiridos por outros grupos ou indivíduos. Esta medida é semelhante aos padrões mínimos, mas em vez de definições absolutas compara com a média para a população ou para sub-populações dentro dela. Pode dizer-se que este processo representa um compromisso entre ideais indefiníveis e padrões altamente restritivos, sendo que as necessidades em saúde podem ser definidas em termos de padrões conhecidos que se sabem existentes em grupos comparáveis (adultos da mesma idade e sexo vivendo na mesma área) ou praticados pelos mais privilegiados na mesma sociedade. Assim, a escolha de quem decide o que constitui uma necessidade está entre o individual, o grupo profissional ou a sociedade em geral. Deverá, portanto, dar-se atenção à maneira como a necessidade é definida, pois algumas medidas consideram a percepção individual de necessidade uma discrepância entre o que é e o que deveria ser. A desvantagem de considerar as necessidades individuais relaciona-se com o facto de que uma baixa expectativa pode resultar numa baixa percepção de necessidades e, por outro lado, porque se torna difícil comparar necessidades sentidas com necessidades expressas. Algumas das medidas utilizadas em necessidades em saúde tendem a ir para além dos juízos individuais e profissionais e incorporam os valores da sociedade como um todo, através de técnicas em que as pessoas são os juízes, segundo Wilkin, David et al (1992). Assim, as necessidades individuais podem ser avaliadas tendo em conta as normas consideradas aceitáveis por outros, resultando daqui a desvantagem de esta metodologia, ao levar em linha de conta uma grande variedade de opiniões, poder originar padrões que têm pouco a ver com a expectativa individual. Pode assim concluir-se que dos vários processos utilizados para a definição e medição das necessidades nenhum parece ser melhor do que outro, já que a sua selecção deve ter em conta as circunstâncias e os fins em vista. O que se torna importante neste caso é que ao serem determinadas as necessidades se leve em linha de conta a riqueza dos processos conhecidos e se considere o mais adequado à circunstância em questão. 6.4 Necessidades em saúde e expectativas do cidadão A identificação das necessidades em saúde é um pressuposto básico para o planeamento dos cuidados de saúde a prestar à população. Não constituindo um benefício em si mesmo, representa um importante instrumento para a definição de uma estratégia orientada para os resultados de saúde. Apesar disso, o sistema de saúde tem centrado a sua atenção no funcionamento dos respectivos serviços, procurando dessa forma dar resposta às necessidades expressas, geralmente relacionadas com problemas de doença. Uma alternativa a este modelo é o que organiza o sistema de saúde centrado nas necessidades da população, a partir das quais se definem as políticas e se desenvolvem os serviços prestadores de cuidados. Embora mais complexa, esta alternativa constitui um modelo mais adequado para responder às necessidades em saúde de diversa natureza da população. Tese 49 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa Uma vez que na maior parte dos casos não há lugar à livre escolha do prestador de cuidados, em resultado da rigidez das normas que regulam os serviços públicos, a manifestação e a avaliação das expectativas dos seus utilizadores encontra-se consideravelmente limitada. A avaliação das necessidades de cuidados de saúde baseada na informação fornecida por modelos de avaliação das necessidades em saúde das populações, integrando as suas expectativas, constitui um elemento fulcral para reorientar a centralidade do funcionamento e organização dos serviços. Nesta perspectiva, a contratualização de cuidados de saúde não poderá descurar estes dois aspectos, sendo a Agência o dispositivo nuclear do desenvolvimento de todo este processo, centrando-se a sua função principal no estabelecimento do equilíbrio entre os recursos existentes e o meio envolvente sistémico. 7. RESUMO Ham (1998) assinala que o desvio do sistema integrado para o modelo contratual foi um estímulo complementar às políticas de controlo de despesas de nível macroeconómico, gerando iniciativas de fortalecimento da eficiência e da capacidade de resposta aos utilizadores no nível macroeconómico. Os principais instrumentos dessas políticas foram: • a introdução de mecanismos similares aos do mercado em muitos sistemas de saúde. A orientação para o mercado levou à separação de responsabilidades entre financiadores e prestadores do sistema integrado e criou a base para um modelo contratual; • o fortalecimento da gestão dos serviços de saúde, para reduzir as variações de desempenho e introduzir uma forte orientação para o cliente. Esta última proposta visou oferecer ao doente maior poder de escolha e melhorar o acesso, reduzir as listas de espera e incrementar a qualidade da prestação; motivados pelo ideal dos "empreendimentos bem sucedidos", os implementadores de políticas de saúde procuraram melhorar os sistemas de informação, envolvendo médicos, enfermeiros e os níveis de gestão e desenvolver novas responsabilidades na gestão de hospitais e unidades de saúde; • o uso de incentivos orçamentais como um meio de aperfeiçoamento do desempenho. Esta inovação surgiu do reconhecimento de que o orçamento prospectivo global, embora tenha sido eficaz na contenção de despesas, pouco ofereceu em incentivos para que as organizações de saúde fossem responsáveis em relação à satisfação dos utentes; as reformas exploraram as possibilidades de combinar controlo de custos com sistemas de pagamento que permeassem as melhorias de desempenho contratadas. Resumidamente, Saltman e Figueras (1998) afirmaram que quatro grandes temas orientaram as escolhas políticas na formulação da reforma na Europa nos anos noventa: os papéis do Estado e do mercado, a descentralização, os direitos do doente e as novas funções para a saúde pública. 50 Tese Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa 7.1 Estado e mercado As reformas europeias consideram que não há um conceito de mercado que possa ser útil para o sistema de saúde, ainda que alguns mecanismos da gestão privada tenham sido introduzidos na gestão financeira, na distribuição de recursos ou no estímulo à produtividade do sistema, como a livre escolha do utilizador/consumidor, a contratualização negociada (contrato de gestão) e a concorrência pública. Estas iniciativas refizeram as relações entre Estado e mercado para um modelo híbrido denominado mercado interno (internal market), competição pública ou quasi-mercado. 7.2 Descentralização Outra importante iniciativa das reformas foi a descentralização política e administrativa de certo nível de autoridade para níveis locais e para o sector privado. A descentralização tem sido tomada como uma resposta às limitações das instituições públicas centralizadas, com baixa capacidade de inovação e baixa responsabilização. O êxito da descentralização, contudo, parece estar condicionado à existência de um ambiente de sustentação para o desenvolvimento da capacidade administrativa e da destreza na implementação das decisões. Quando estas condições não são satisfeitas, a descentralização produz resultados negativos, pela fragmentação dos serviços, perda de equidade, manipulação de interesses e fragilização das funções reguladoras do sector público, estimulando estratégias de recentralização, como no caso italiano (Maino F, 1998 em Saltman 1998)40. 7.3 Direitos do doente Neste capítulo, duas inovações têm orientado os sistemas de saúde: • a possibilidade de os doentes escolherem o seu clínico geral ou especialista, o hospital e o próprio médico no hospital, ainda que estas iniciativas não sejam totalmente consensuais entre os países, pois muitos preservaram a função do clínico geral como gatekeeper; • a protecção aos direitos dos doentes, principalmente referidos à responsabilização dos prestadores e à protecção da confidencialidade da informação (esta emergência do direito do doente tem favorecido novas jurisprudências em direitos civis associados às relações entre os médicos e os doentes e entre as organizações de saúde e os seus utilizadores). 40 Na página Web do Department of Social and Political Studies da University of Pavia pode ler-se sobre o Dr. Franca Maino Summer School Co-ordinator, o seguinte: “Franca Maino, is M.Sc. in Politics at the London School of Economics and Political Science (LSE) and Ph. D. in Political Science at the University of Florence, and now research assistant at the Department of Social and Political Studies (University of Pavia). Her main research interests include the Italian welfare state, decentralisation and comparative social policy, with special emphasis on health care policy. Her recent publications include: La politica sanitaria, Bologna, Il Mulino, 2001, L'expérience du revenu minimum d'insertion en Italie, in “Les Politiques Sociales”, 3-4, 2000, pp. 78-87 (with T. Alti), Fiscal Federalism and Health Care Reforms in Canada and Italy, in “Quaderni di Scienza dell’Amministrazione e Politiche Pubbliche” 4, 1999 (with A. Maioni).” Tese 51 Capítulo II: Reformas e contratualização em saúde na Europa 7.4 Novas funções da saúde pública A reforma dos sistemas de saúde na Europa tem originado reflexões sobre o papel dos serviços e dos profissionais de saúde pública, dado o reconhecimento de que os serviços médicos têm um impacto muito limitado em determinadas situações de saúde da população. Os determinantes de saúde dependem de políticas públicas inter-sectoriais específicas, como nomeadamente a educação, a habitação e a criação de empregos. Esta “nova saúde pública” foi fortalecida pela difusão internacional, em fins da década de oitenta, da promoção da saúde e da prevenção da doença. Segundo WHO (1997 c), um aspecto considerado importante é o aumento do investimento na formação de profissionais de saúde pública e, em paralelo, a criação de oportunidades de carreira/trabalho com níveis de remuneração idênticos aos dos seus colegas a trabalhar nos cuidados especializados. Parece importante obter a colaboração de profissionais de saúde pública (talvez com formação de base não só na área médica) nos níveis central e regional do planeamento e avaliação da prestação de cuidados de saúde. A saúde pública tem sido também colocada no centro das reformas, em função da mudança do papel do Estado nas tarefas de financiamento, delegando para outros agentes no contexto da descentralização, nomeadamente municípios; organizações públicas e semi-públicas e empresas privadas, as tarefas directas de fornecimento de serviços. Por outro lado, a saúde pública tem assumido um importante papel nas actividades reguladoras, através do desenvolvimento, criação e implementação de instrumentos de avaliação e de indicadores de eficiência, efectividade e qualidade dos programas, excedendo o papel de simples agente de coerção derivado das vigilâncias epidemiológica e sanitária. 52 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha CAPÍTULO III: ANÁLISE DO SISTEMA DE SAÚDE E DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO NO REINO UNIDO E EM ESPANHA 1. BREVE INTRODUÇÃO Para podermos analisar o sistema de saúde e o processo de contratualização em outros países e daí tirarmos alguns ensinamentos para a análise do nosso sistema e procurando não ser muito exaustivos, nem muito descritivos, limitámos a análise ao Reino Unido e Espanha, quer pela semelhança do tipo de organização dos sistemas relativamente ao nosso, quer pelo processo de desenvolvimento que tem sido prosseguido nesses países, quer ainda pela proximidade geográfica (espaço ibérico), no caso de Espanha. O Reino Unido é um exemplo onde o Estado de Bem-Estar Social foi consolidado ao longo dos anos, a partir de um amplo movimento de lutas sociais e em que apesar dos anos de política neoliberalizante, a partir do governo Thatcher, terem trazido grandes alterações ao modelo, o NHS continua a ser a base do sistema de saúde deste país, podendo afirmar-se que, independentemente dos resultados alcançados com as reformas introduzidas, o Reino Unido busca incessantemente melhorar o seu sistema e garantir os cuidados aos seus cidadãos. Mantém um caminho, um rumo e uma estratégia facilmente identificáveis. Convém, no entanto, ter presente que o processo de renovação da administração pública inglesa, onde o NHS se insere, tem como ponto de partida o Relatório Fulton, elaborado em 1968 (Comissão Parlamentar de Reforma), que apontava a necessidade de aumentar a eficiência dos funcionários, a falta de preparação dos quadros para a gestão dos serviços públicos, uma excessiva hierarquização e inexistência de contratos entre o nível central e as comunidades. Propunha também um perfil mais profissional e menos político para os gestores, para além de formação e reestruturação para superar os problemas existentes. Espanha é outro exemplo que poderemos utilizar, mais próximo de nós, um sistema igualmente público, mas com um processo de desenvolvimento que deve ser considerado quando analisamos a realidade portuguesa. Independentemente da forma como se deu a reestruturação dos modelos de protecção social em países da Europa, o Sistema de Saúde Espanhol esteve ligado ao desenvolvimento da Segurança Social desde os anos quarenta. Em 1978, com a promulgação da Constituição Espanhola, é reconhecido no artigo 43º o direito à protecção da saúde. No desenvolvimento da Constituição, a “Lei Geral de Sanidade” de 1986 criou o Sistema Nacional de Saúde, considerado um bom Sistema de Saúde tendo em conta os principais indicadores económicos e de Saúde e a opinião dos cidadãos. Tese 53 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha 2. 2.1 REINO UNIDO Princípios do sistema de saúde O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS), baseado no princípio da universalidade, garante cuidados de saúde, gratuitos, a todos os cidadãos desde 1948. O seu financiamento é assegurado pelos impostos, proporcionais ao rendimento dos contribuintes. Os profissionais de saúde são tecnicamente autónomos, têm liberdade de instalação e de prescrição, podem exercer no sector privado, no sector público ou em ambos. Caso pretendam exercer no domínio público, devem estabelecer um contrato com o NHS. Os cuidados de saúde primários são assegurados pelos clínicos gerais (General Practitioners - GP), a quem são garantidos recursos para a aquisição de cuidados secundários ou terciários para os seus utentes. Esta medida esteve na origem de um mercado interno (internal market) no seio do sector da saúde. Actualmente os hospitais do NHS agrupam-se em estruturas públicas independentes, conhecidas por "trusts", que asseguram a prestação de cuidados secundários e terciários e têm como objectivos principais a melhoria quer da eficiência, quer do acesso. Este quasi-mercado, adoptado no período da primeira ministro Thatcher, foi responsável por uma verdadeira descentralização e por uma maior autonomia das instituições prestadoras de cuidados. Em 2000 foi elaborado um novo Plano para investir no NHS e que assenta em melhorias estruturais a introduzir ao longo de cinco anos. Foi apresentado como um Plano que visava mudanças profundas em todo o NHS. Como já foi referido, de acordo com o WHO (2000 b), o Reino Unido ocupa o 18º lugar como país com melhor sistema de saúde do mundo, medido pelo índice global de realização dos objectivos, índice que combina o nível de saúde e a resposta às expectativas da população em cuidados, embora nos gastos per capita ocupe o 26º lugar, entre 191 países em análise. 2.2 A reforma dos anos oitenta As mudanças no NHS foram condicionadas pela iniciativa de criação do mercado interno ou quasi-mercado para a prestação de cuidados de saúde. Esta preocupação na reorganização do padrão de oferta derivou do facto do governo Thatcher ter desistido do seu projecto inicial, de alterar o sistema de comprador único (single payer). Walsh, N. (1997),41 defende que as iniciativas da proposta de mercado interno desenvolvidas no NHS a partir do fim dos anos oitenta, foram principalmente: 41 Sobre Nicola Walsh, lê-se na página Web do Health Services Management Centre of The University of Birmingham “was Fellow and Project Manager for one of four research teams commissioned by 54 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha • a separação de funções entre os níveis central e local, para que o executivo desenvolvesse capacidades de formulação de políticas; • a transformação das autoridades sanitárias em compradores de cuidados de saúde e o aumento da actividade dos clínicos gerais através de incentivos à sua transformação em gestores de fundos públicos para aquisição de serviços; • ao nível da prestação, incentivos à transformação dos hospitais públicos em empresas autónomas (trusts) habilitadas a competir no mercado, inclusive com os hospitais privados, pelos recursos disponíveis para atendimento aos utentes. Ham (1998) assinala que a introdução de incentivos à competição deu-se sob forte regulação. Assim, para ele, os efeitos da reforma nesse plano são geradores de um mercado gerido no acesso aos cuidados de saúde e não de um verdadeiro mercado interno. Os reformadores procuravam responder, com a flexibilização e a incerteza, ao “problema da captura” pelos prestadores públicos, hospitais e clínicos gerais, ao configurar novas modalidades de aquisição de serviços que permitiam introduzir responsabilização e avaliação de desempenho. Na reforma, a sobreposição da gestão e prestação de serviços pelas autoridades sanitárias distritais foi substituída gradualmente pela separação de papéis, facilitada pela emergência das novas entidades de prestação autónoma de serviços. Em 1996 quase todos os hospitais e serviços comunitários de saúde eram dirigidos por empresas autónomas. Essas novas instâncias de gestão permitiram às autoridades sanitárias desenvolver mecanismos de aquisição de serviços destinados às populações residentes nas áreas em que actuavam. Foi assim definida uma nova forma de financiamento para os distritos sanitários, tendo como critério de distribuição orçamental a dimensão da população servida, ponderada por algumas variáveis, nomeadamente sexo e idade. Foram também introduzidas mudanças ao nível dos cuidados primários. Os clínicos gerais passaram a organizar-se em cooperativas (fundholding), para a gestão de um orçamento que tinha como objectivo a aquisição progressiva de serviços hospitalares, medicamentos e incentivos aos profissionais. Os recursos crescentemente transferidos the Department of Health in June 1998, to conduct a national evaluation of all first wave Personal Medical Service (PMS) pilot sites. The team at Birmingham looked at the setting up and implementation of the PMS initiative across a range of different organisational models. The team also looked at whether or not the PMS initiative produced any positive outcomes in relation to accountability, integration and responsiveness. The national programme seeks to assess the impact of the new policy initiative in relation to seven key principles: fairness, efficiency, effectiveness, flexibility, responsiveness, integration and accountability. The aim of this programme is to assess the PMS policy initiative in relation to a set of criteria defined by these principles. For example, in relation to accountability, the evaluation criteria are concerned with whether the pilots are improving accountability to local communities and to the health authority. Tese 55 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha para a gestão dos fundholders foram sendo deduzidos dos recursos controlados pelas autoridades sanitárias distritais. Segundo Ham (1998), essas mudanças transformaram o sistema nacional integrado num modelo contratual que estabelecia o vínculo entre financiadores e prestadores. O objectivo dos contratos era a especificação dos custos, qualidade e quantidade de cuidados, embora na reforma inglesa o contrato não se tenha tornado um verdadeiro instrumento legal mas mais um instrumento de gestão que procurava codificar os acordos entre financiadores e prestadores. O impacto dessas medidas foi a mudança no equilíbrio de poder entre os diferentes interesses no NHS: de um velho sistema integrado e hierarquizado passou para um modelo mais flexível, descentralizado e assente num conjunto de processos contratuais. Esta matriz enfraqueceu o tradicional poder dos prestadores, especialmente dos hospitais de agudos. Na nova posição de financiadores, as autoridades locais foram desafiadas a trabalhar em articulação com os clínicos gerais para decidirem que serviços comprar e onde contratar. Isso reflecte a posição fortalecida dos clínicos gerais como porta de entrada no sistema (gatekeepers) e referenciadores no acesso aos serviços hospitalares (Maynard, A. et al, 1996). A perspectiva dos reformadores é de que a separação das funções geraria um aumento de produtividade com ganhos para os cidadãos. Os estudos divergem sobre o significado real da melhoria de desempenho verificada após a reforma, visto existir a possibilidade de uma artificialidade dos indicadores, uma melhor informação e a sobre-orçamentação do sector ao longo do período da reforma. Segundo Klein (1998), as escolhas dos doentes não foram afectadas pelas mudanças introduzidas, sendo até mesmo fortalecidas pela exigência de divulgação do “pacote de serviços” feita aos clínicos gerais, prática até então inexistente no NHS. Outro indicador de responsabilização, a lista de espera para tratamento hospitalar, apresenta algumas melhorias em áreas específicas. O nível de insatisfação com o NHS reduziu-se, embora não se possa afirmar que a reforma, por si só, tenha sido responsável pelos progressos verificados a esse nível (Maynard, A., 1999). Ao efectuar uma comparação entre o passado e o presente, tentando daí retirar as ilações possíveis para o futuro do NHS, Klein (1998) afirma que não há razão para pensar que a dinâmica do novo modelo irá necessariamente ser discriminatória no que se refere à equidade; ao invés, potencialmente, ela oferece uma oportunidade para fortalecer a equidade. O paradoxo pode estar no facto de que um decisor preocupado em atingir a equidade pode ter na reforma pós-1991 mais instrumentos e mecanismos disponíveis do que tinha no sistema anterior a 199142. 42 Essa percepção de Klein pode ser uma das explicações plausíveis para as correcções, dentro de limites, do desenvolvimento da reforma promovida pelo gabinete Blair ao longo do ano de 1999. 56 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha 2.3 Micro-eficiência na gestão hospitalar e descentralização da oferta A reforma mais recente trouxe importantes inovações em relação à anterior, ao centrar-se em sectores específicos e não só na saúde, ao voltar-se para a regulação de custos e volume de produção e não apenas para a despesa total e ao introduzir mudanças macroeconómicas, de natureza organizacional, para promover eficiência e responsabilização. Uma das primeiras inovações a ser introduzida visava a melhoria da eficiência na gestão hospitalar, com o objectivo de atenuar a autonomia médica, geradora de despesas e custos. Habitualmente no meio hospitalar essas decisões são tomadas sem se basearem em parâmetros de gestão e sem a informação suficiente sobre os custos das diferentes opções disponíveis. Nas situações em que essas opções estão disponíveis existe grande resistência em adoptá-las, devido à cultura existente sobre autonomia da profissão. Uma outra fonte de ineficiência na gestão hospitalar estava relacionada com a pouca qualidade das infra-estruturas e também do controlo do trabalho dos profissionais. Na maioria dos casos, serviços que poderiam ser produzidos de forma mais efectiva através de outsourcing, por terceiros, permaneciam com a produção internalizada no hospital. Outro ponto de inovação foi a flexibilização na divisão de trabalho, já que muitas tarefas que podiam ser resolvidas por profissionais de menor qualificação eram normalmente desempenhadas por médicos. Na reengenharia da administração dos hospitais procuraram introduzir-se novos métodos de controlo de materiais e produtos de consumo e regular a incorporação de tecnologias através da introdução de uma gestão baseada em objectivos e na negociação de metas contratuais. Foram ainda introduzidas mudanças nas remunerações dos profissionais médicos, maioritariamente baseadas em honorários, dado que com frequência os valores pagos no NHS tinham variações de grande amplitude e pouca ou nenhuma relação com os cuidados prestados, nem parecendo estar assentes em critérios de custo-efetividade. Outra inovação, ainda no nível macroeconómico, foi o grau de exigência que os financiadores (autoridades sanitárias, seguradores privados ou negociadores de seguro social) passaram a ter face aos hospitais. Esses fundos serviram para se adoptarem condutas mais responsáveis em relação à qualidade da prestação de serviços que contratavam e para melhorar a eficiência na distribuição de recursos. Essa reorientação visava especialmente os prestadores, nomeadamente os hospitais, habituados a uma lógica desregrada de gastos e formação de preços. Os financiadores adoptaram novos papéis na definição das relações contratuais com os prestadores, com incentivos e penalizações, para que os orçamentos ficassem dentro de Principalmente se for considerada a longa história de vetos políticos às principais inovações sugeridas pelos executivos conservadores nas duas décadas anteriores. Tese 57 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha limites ou tectos acordados. Deixaram de financiar as organizações hospitalares deficitárias, que passaram a correr o risco de falência e/ou encerramento. Nesse processo de mudança, os compradores/financiadores foram incentivados a tornarem-se agentes mais eficientes, isto é, gestores de orçamento mais permeáveis à consideração de mérito e custo-efetividade através do aumento da responsabilidade sobre a qualidade e a quantidade de cuidados de saúde que adquiriam. Essa condição de negociação permitiu ao financiador adoptar estratégias abrangentes e de longa duração que afectaram a oferta ao nível dos cuidados primários, secundários e comunitários. Conseguiram também alguns progressos na capacidade de limitar as intervenções médicas desnecessárias, apesar da dificuldade em defini-las dada a resistência dos profissionais médicos que alegam a confidencialidade do acto médico. A competição que foi introduzida tem difundido a contratualização para o financiamento dos serviços hospitalares, dado que, contrariamente à orçamentação baseada no histórico ou no reembolso da despesa apresentada por um prestador, os contratos têm como finalidade a procura da competitividade de um determinado serviço entre diferentes prestadores. Os contratos também abriram a possibilidade de manutenção dos preços aferidos aos custos nos casos em que haja grandes divergências. Os contratos possibilitam, sobretudo, os mecanismos formais para especificar e monitorizar indicadores de desempenho (qualidade, quantidade e custos dos serviços). A reforma pela contratualização competitiva permitiu aos prestadores maior autonomia de gestão e o desenvolvimento de instrumentos de responsabilização organizacional (definição de objectivos, metas e sistema de informação para avaliação). Isso tem sido acompanhado, na maioria dos casos, de maior flexibilidade administrativa, pois as organizações, quando públicas, adquirem a autonomia de contratação, demissão, incentivos e remunerações de pessoal. Um outro desenvolvimento da regulação macroeconómica nas reformas dos anos noventa, tal como foi implementado no Reino Unido, terá sido o fortalecimento dos clínicos gerais nas funções de primeiro contacto com o sistema de saúde e no controlo de custos e promoção de efectividade. No primeiro caso, os clínicos gerais tanto podem zelar pela melhor continuidade de atendimento ao doente como actuar como barreira ao risco moral, nomeadamente as múltiplas visitas ao médico pelo mesmo episódio de doença ou o excesso de procedimentos onde há muita oferta de médicos. A utilização do clínico geral como gatekeeper (responsável pela referenciação para o nível secundário ou especializado, quando não for o caso de emergência) reduz esses riscos e permite, adicionalmente, o seguimento mais coerente da trajectória do doente. No segundo caso, os clínicos gerais que optaram pela condição de compradores (fundholders) tornaram-se responsáveis por um orçamento com o qual providenciam os 58 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha cuidados necessários e adquirem medicamentos e serviços secundários para os utentes que lhe estão afectos. Essa opção procurou incentivar a eficiência e a efectividade dos prestadores e também a assimilação, pelos clínicos gerais, do papel de negociadores dos doentes na relação com os prestadores dos níveis secundário e terciário (Oxley et al, 1994). O Quadro 7 resume o impacto do ajuste macroeconómico em alguns dos indicadores do NHS do Reino Unido entre 1950 e 1998. Quadro 7 - NHS do Reino Unido (1950 - 1998) 1950 1998 U 37 2,9 542 000 10,72 183 0003 178 0003 24 0001 29 375 410 154 40,1 2 494 4,3 0,8 251 000 4,2 141 300 57 600 260 500 170 450 1 310 000 60,0 1 667 (32,7) (2,1) (53,7%) (6,5) (22,8%) (67,6%) 985,4% 141 75 219,4% 19,9 (33,1%) Indicador Disponibilidade total de camas por médico Camas por enfermeiro e auxiliar de enfermagem Total de camas disponíveis Camas disponíveis por mil habitantes Disponibilidade média de camas para agudos Disponibilidade média de camas de saúde mental Disponibilidade média de camas para idosos Pessoal médico e dentistas em hospital por 100 mil habitantes Pessoal de enfermagem por 100 mil habitantes Total de pessoal em hospitais Clínicos Gerais por 100 mil habitantes Habitantes por clínico geral Fonte: OECD Health Data (2002 b); Notas: 1 1975; 2 1960, 3 1959 2.4 Quasi-mercado e contrato na gestão da saúde Le Grand et al (1993), sugerem que a principal característica dos quasi-mercados, no contexto das reformas dos anos noventa, é a substituição do monopólio de prestação pública pela prestação independente e competitiva em relação ao mercado tradicional. O que leva a questionar quais são as diferenças que podem ser assinaladas aos níveis da oferta e da procura. No nível da oferta, o quasi-mercado actua, até certo ponto, como o mercado tradicional, onde existem em competição organizações produtoras de bens e serviços. De acordo com o já referido anteriormente, na área de saúde existem, após a separação entre financiadores e prestadores, hospitais e serviços em competição por clientes. No entanto, essas organizações não estão necessariamente à procura da maximização do lucro nem tão pouco são de propriedade privada. São organizações sem fins lucrativos, com objectivos públicos e regidos por legislação especial, ainda que de baixa complexidade jurídica em relação à administração pública (Le Grand, 2001). No nível da procura, o quasi-mercado difere dos mercados tradicionais porque a capacidade de consumo do comprador não é definida em termos monetários. Apresenta, ao contrário, a forma de orçamentação vinculada à compra de um serviço ou ao uso do voucher, ou então efectiva-se pela centralização numa agência de compra pública. Na maioria dos casos não é o utilizador que faz a escolha directa em relação às decisões de compra de serviços. Esta função é delegada numa terceira parte, como neste caso do Reino Unido, à cooperativa de clínicos gerais ou à autoridade de saúde. Tese 59 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha De referir que o acesso ao médico de clínica geral (GP) se faz com facilidade através dum esquema de referência, dado que todos têm o direito de estar registados num GP perto da sua residência e se precisarem de ajuda ou de conselhos sobre como se devem registar ou encontrar um GP podem contactar o NHS Direct 43 ou o Centro de Saúde que é gerido pela autoridade de saúde local. Em resumo, o quasi-mercado para a prestação de serviços de protecção social é diferente dos mercados convencionais em três aspectos: (i) pela existência de organizações não lucrativas em competição; (ii) pela centralização do poder de compra numa agência pública ou pela atribuição da decisão do consumo na forma de voucher em vez de dinheiro e, em muitos casos, (iii) pela representação dos consumidores por agentes, evitando que os beneficiários actuem directamente no mercado (Le Grand et al, 1993). Considera-se que a criação do mercado interno ou do quasi-mercado nos sistemas de saúde tem sido a mais importante mudança organizacional e cultural desde a criação do modelo inglês em fins da década de quarenta. Nesse ambiente, os contratos foram assumidos como principal instrumento de coordenação das mudanças, gerando um complexo sistema de credenciação e contratualização. A prática da contratualização criou um novo conjunto de valores e mudou a cultura organizacional na gestão pública, ou seja a cultura da competição, da negociação contratual, do planeamento das actividades e do marketing (Flynn, R. et al, 1997). A focalização no agente principal44 teve grande influência nas motivações e nas estratégias utilizadas pelos responsáveis pelas reformas para formalizar a situação em que o Estado (principal) contrata um terceiro (agente) para realizar uma tarefa de relevância pública em troca de um pagamento. Assume-se que os actores em situação contratual têm interesses próprios e que o agente pode não cumprir o contrato estabelecido, principalmente porque principais e agentes podem não ter os mesmos objectivos ou unanimidade nas metas. O principal deve, então, procurar minimizar esse risco através da monitorização do desempenho, ainda que permaneça o problema da assimetria de informação e da confiança contratual das situações de delegação de funções (North, 1990 e 1992). De qualquer modo, a teoria do agente principal realça o significado do controlo sobre o desempenho e a centralidade da informação nas relações contratuais (Flynn, R. et al, 43 O NHS Direct é um serviço telefónico grátis e confidencial, disponível nas 24 horas do dia e nos 365 dias do ano e visa dar resposta aos cidadãos que precisem de informações sobre qualquer problema de saúde, urgente ou não urgente, ou informações acerca dos serviços disponíveis. Os enfermeiros do NHS Direct informam como se podem resolver alguns problemas de saúde e quando precisam de ir ao GP ou à urgência do hospital (serviços de acidentes e emergência). 44 A teoria do agente principal é defendida sobretudo pelos responsáveis da reforma administrativa do Estado desenvolvida em vários países, que partem do princípio que a gestão pública deve responsabilizar-se mais directamente pela função de principal (que financia e controla) e menos pela função de agente (que faz). Pode ou não concordar-se com esta tese, mas deve reconhecer-se que, nos últimos anos, devido aos processos de descentralização dos serviços públicos, a relação contratual externa passou a abranger entidades de direito privado, que passaram a funcionar como parceiros ou terceiros agentes, estando por fazer em muitos deles a avaliação dessas alterações. 60 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha 1997), tendo sido utilizada como matriz de fundamentação cognitiva para a reforma do Estado. Uma outra matriz de fundamentação teórica tem sido a análise dos “custos de transacção económica” das empresas e organizações em ambiente de incerteza sobre qual a melhor escolha do modo de produção de bens. Em certas condições as organizações têm duas opções: a verticalização integrada e hierarquizada de toda a produção ou a compra de componentes ou serviços de fornecedores especializados pela contratação no mercado competitivo. Argumenta-se que a verticalização e o mercado são mecanismos alternativos para lidar com transacções. Onde os contratos são difíceis de serem especificados, devido à complexidade, incerteza e informação inadequada e insuficiente, as organizações recorrem a métodos mais burocráticos para organizar a produção, por serem mais eficientes. As organizações procurarão sempre minimizar os custos de transacção, ao mesmo tempo que procuram reduzir eventuais riscos. Flynn, R. et al (1997), assinalaram a utilidade da teoria dos custos de transacção por chamar a atenção para os processos de contratualização e para as estruturas de governação que orientam as escolhas estratégicas das organizações. No centro da discussão já apareciam as considerações sobre os elevados custos de transacção para compra e venda de serviços, as quais estiveram na origem das principais alterações introduzidas, em 1999, na reforma iniciada na década de noventa. Como assinalam Appleby (1994 a) e b)) e Appleby et al (1992), a contratualização no campo da saúde parece exigir altos custos de transacção, devido ao facto dos contratos serem caros para redigir, complicados para executar e difíceis de implementar. Essa contratualização exigiria melhorar o ambiente para a cooperação entre prestadores e compradores, levando principalmente ao alargamento do período de validade dos contratos. Estes tenderiam a perder a lógica da negociação anual e a ganhar a forma de acordo de médio/longo prazo, como consta na proposta do gabinete Blair para aperfeiçoamento da reforma da saúde do Reino Unido da década de noventa (Klein, 1998; Maynard, 1999). 2.5 Um novo plano para o NHS O novo Plano para o NHS, apresentado em 2000, tem como principal objectivo, segundo os seus autores, proporcionar aos britânicos um serviço de saúde ajustado ao século XXI: um serviço de saúde centrado no cidadão. Desde que foi criado, o NHS promoveu melhorias substanciais no nível de saúde dos britânicos mas não atingiu os níveis que os cidadãos esperavam obter e que os profissionais queriam prestar. Estudos sobre o desempenho do NHS mostraram que o público queria ver: (i) aumentos salariais para os profissionais que desenvolvessem novas formas de trabalho; (ii) diminuição dos tempos de espera e cuidados de alta qualidade centrados no doente e, (iii) melhorias nos hospitais locais e nos cuidados primários. Tese 61 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha De acordo com o novo Plano, o NHS não tem conseguido realizar a prestação desejada devido a debilidades organizacionais. São referidas, designadamente, as carências de médicos, enfermeiros e outros profissionais, para além de outros problemas de base. Concluem que o NHS tendo sido fundado em 1948, não foi procedendo às indispensáveis reformas para responder aos desafios que os seus utilizadores foram colocando. Por exemplo, carece de padrões nacionais de desempenho, verificam-se separações obsoletas entre os profissionais, com reflexos profundos no trabalho em equipa e barreiras entre os serviços, além de ausência de objectivos e incentivos bem definidos para melhorar o desempenho, assim como a ausência de centralidade do cidadão. Estes problemas sistemáticos, que datam de 1948, foram equacionados neste novo Plano, o qual apresenta outras formas de estruturar o NHS. Este Plano refere ainda que os sistemas em vigor noutros países não conduzem a melhores cuidados de saúde, entendendo-se por isso que os princípios do NHS são correctos mas as práticas precisam de ser alteradas. De acordo com este novo compromisso o NHS irá crescer 50% em termos económicos e um terço em termos reais. Mais dinheiro irá originar, até 2010, investimentos extra nas instalações e equipamentos do NHS, nomeadamente 7 000 camas nos hospitais e nos cuidados intermédios; cerca de 100 novos hospitais; 500 novos centros de cuidados primários e cerca de 3 000 consultórios para clínicos gerais, e ainda instalações limpas e modernas e melhor alimentação nos hospitais. Perspectivam-se também sistemas de informação modernos nos hospital e nos consultórios de clínicos gerais e investimento em recursos humanos, nomeadamente a contratação de mais consultores, clínicos gerais, enfermeiros e terapeutas, bem como a criação de mais 1 000 vagas em cursos de medicina. O novo plano aposta na reestruturação do NHS para se centrar nas necessidades do doente, pelo que o investimento deve ser acompanhado de reformas organizacionais. Propõem também um novo relacionamento entre o MS e o NHS, de forma a incrementar a confiança que os cidadãos têm nos profissionais de saúde e a transferir o poder e a autonomia do nível central para os serviços locais de saúde enquanto a modernização avança. O MS deverá estabelecer novos padrões de referência, fixados através de auditorias regulares a todos os organismos de saúde, efectuadas por inspectores independentes da Comissão para a Modernização da Saúde. O “Instituto Nacional para a Excelência Clínica” deverá assegurar que o acesso a medicamentos indispensáveis e eficazes no tratamento de algumas doenças, como as oncológicas, não estão dependentes de regras capitacionais de atribuição de recursos ao nível regional, de forma a evitar problemas de iniquidade. Uma “Agência da Modernização” está em desenvolvimento para promover as boas práticas. O novo plano perspectiva ainda a actualização dos contratos com os clínicos gerais e internistas, mas os pagamentos adicionais (que irão subir) terão de corresponder a um aumento significativo de produtividade. Outra questão importante é que os consultores 62 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha no início de carreira não serão autorizados, em princípio durante sete anos, a trabalhar simultaneamente para o sector privado. Os utentes terão uma palavra activa no NHS. Ser-lhes-ão concedidos novos poderes e maior influência no modo de funcionamento do NHS, nomeadamente as suas opiniões sobre os serviços de saúde locais irão ter influência na verba que lhes é atribuída. Além disso, as sondagens de opinião e os fora sobre doentes irão ajudar os serviços a recentrar o seu funcionamento. Está definido neste Plano que serão estabelecidos acordos com os prestadores privados de forma a permitir ao NHS uma utilização mais efectiva das instalações e equipamentos dos hospitais privados, sempre que isso seja rentável e melhor para os doentes. O Reino Unido espera que com este Plano o NHS venha trazer melhorias para os seus utentes, diminuindo sobretudo as desigualdades. Para ajudar a concretizar estes objectivos propõem-se, entre outras, aumentar e melhorar os cuidados primários em áreas carenciadas; introduzir programas de rastreio para mulheres e crianças e criar serviços para ajudar a deixar de fumar. 3. 3.1 ESPANHA Princípios e caracterização do sistema de saúde O sistema de saúde espanhol, à semelhança de muitos outros, caracteriza-se por um conjunto de reformas imperfeitas, em que tem predominado um regime de seguro de doença obrigatório através do Instituto Nacional de la Salud (INSALUD), um dispositivo público para os cuidados primários e ainda uma rede de hospitais públicos. Associa de uma forma bastante complexa o financiamento público com o financiamento privado e prestações igualmente pelos sectores público e privado. Os sistemas de saúde de qualquer país representam uma fonte de interesse político muito importante devido às repercussões eleitorais inerentes aos mesmos. Constituem um pilar básico do Estado de Bem-Estar e do Sistema de Protecção Social. Actualmente, os Sistemas de Saúde bem como todos os serviços de saúde transformaram-se em novas áreas de negócio com um interesse económico crescente e a Espanha não é naturalmente excepção. O Sistema de Saúde Espanhol esteve ligado ao desenvolvimento da Segurança Social desde os anos quarenta e só em 1978, com a promulgação da Constituição Espanhola, foi reconhecido, no artigo 43º, o direito à protecção da saúde. Com a aprovação da Lei Geral de Saúde n.º 14 de 1986, foi configurado o Sistema de Saúde Espanhol, tendo sido criado um Sistema Nacional, de cobertura universal e financiamento público através de impostos, integrado funcionalmente pelos serviços de saúde de todas as regiões autónomas. Este sistema é considerado um bom sistema de saúde tendo em conta os principais indicadores económicos e de saúde com os quais é Tese 63 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha avaliado qualquer sistema de saúde, mas o Sistema Nacional de Saúde não está formalmente separado do conceito de Segurança Social. O Sistema de Saúde cobre cerca de 99% da população espanhola e estende-se por todo o território, independentemente do lugar de residência dos cidadãos. As prestações de saúde estão ordenadas mediante um Real Decreto Legislativo do ano 1995 e os principais objectivos que lhe estão subjacentes, no que se refere à cobertura e à prestação são: - Atingir uma cobertura de 100% da população espanhola; - Vincular a protecção da Saúde à condição de cidadão; - Atribuir um título que acredita o direito à saúde; - Implementar novas prestações utilizando a avaliação de tecnologias de saúde; - Melhorar o atendimento em função da evolução demográfica; - Limitar a introdução de novos medicamentos potenciando os genéricos; - Manter a contribuição do utente relativamente ao preço do medicamento. O financiamento é um elemento fundamental em qualquer sistema de saúde. Nesta matéria, a lei geral de saúde estabeleceu os critérios de distribuição de recursos às regiões autónomas que assumissem as funções e serviços do INSALUD e que se baseavam na população abrangida (população com direito a cuidados de saúde no âmbito da segurança social, há altura difícil de determinar), mas com um período de transição de dez anos. Aquando do momento da transferência, o critério utilizado assentava no custo dos serviços que iria progressivamente convergindo para o critério de base capitacional, definido. Até 1999, o financiamento fez-se através das contribuições sociais (empresários e trabalhadores) e das contribuições do Estado. Actualmente, o financiamento é público e realiza-se por via impositiva. A despesa em saúde situa-se em cerca de 7,7% do PIB, embora se tenha observado uma tendência para o seu aumento, na última década. Isto parece dever-se, tal como em outros países, fundamentalmente a três factores: evolução demográfica da população, inovação tecnológica muito acelerada e pressões do sector farmacêutico. No que se refere à organização e à gestão, qualquer sistema de saúde deve propor-se três objectivos: obter melhores resultados em saúde (efectividade), conseguir um custo razoável (eficiência) e melhorar a qualidade da assistência recebida pelo utente. No entanto, no sistema de saúde espanhol os problemas de gestão burocrática nos serviços, o aumento da qualidade exigido pela população e a tentativa de realizar uma melhor utilização dos recursos financeiros do sistema, levaram o Parlamento Espanhol a aprovar, em 1996, um conjunto de alterações legislativas no sistema de saúde das quais se destaca a extensão de novas formas de gestão nas instituições de saúde tais como: empresas públicas, consórcios e fundações de saúde, cooperativas de profissionais e consórcios administrativos. 64 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha Embora estas novas formas de gestão já existissem em algumas regiões espanholas, como é o caso da Catalunha, foram desenvolvidas e aprofundadas a partir de 1997, sobretudo nas novas unidades hospitalares. O Sistema de Saúde Espanhol transferiu a gestão da saúde para as 17 regiões (comunidades autónomas), em que o país está dividido, nomeadamente Catalunha, Valência, País Basco, Galiza, Canárias, Navarra e Andaluzia, que já assumiram essas mesmas competências e as restantes que receberam os serviços através do INSALUD. O mecanismo mais importante de coordenação entre as diferentes regiões autónomas e a Administração do Estado no que se refere à saúde é o Conselho Inter-territorial de Saúde, presidido pelo Ministro da Saúde e constituído pelos responsáveis máximos de Saúde das Comunidades Autónomas e pelos altos dirigentes da Administração do Estado. Segundo Brooks (1971, em OECD 1992), o sistema público era muito fragmentado, insuficientemente coordenado, demasiado burocrático, bastante centralizado e insuficientemente gerido. O acesso aos cuidados privados dependia da capacidade financeira dos cidadãos. O sector de terceiros pagadores tem sido praticamente da responsabilidade do INSALUD (o ramo de saúde do sistema de segurança social), conjugado com vários regimes obrigatórios destinados aos funcionários, os quais, no conjunto, eram responsáveis por aproximadamente 68% do total das despesas de saúde e cobriam 90% da população, em 1980. Outros dispositivos financiados pelos impostos representavam cerca de 8% das despesas. O seguro de doença voluntário (essencialmente destinado aos trabalhadores independentes) representava, em 1980, cerca de 3% do total das despesas de saúde. Espanha tem tido desde há muitos anos um número excessivo de médicos, o que implica necessariamente desemprego na profissão e remunerações relativamente baixas. Para obviar a isto foi instituído, em 1979, um numerus clausus para os estudos médicos, que não resolveu inteiramente o problema. Quanto ao número de camas, ao número de dias de internamento por habitante, à demora média e ao número de internamentos globais, Espanha tinha os mais baixos dos países da OCDE, segundo Schieber et al (1991, citado em OECD, 1992). No que se refere ao número de medicamentos consumidos por habitante o valor era ligeiramente superior à média calculada para aqueles países, nos anos oitenta, e segundo dados da OECD (2002 b), as despesas totais em saúde, relativamente ao PIB, passaram de 1,5%, em 1960, para 7,7% em 2000, tendo um aumento de 6,2 no período em análise, o que corresponde a 413,3%. O Quadro 8 resume o impacto do ajuste macroeconómico em alguns dos indicadores do Sistema de Saúde de Espanha entre 1970 e 1998, doze anos após a criação do SNS. No que se refere aos resultados em saúde e na análise da esperança de vida à nascença, segundo Le Grand (1987, em OECD 1992), após a estandardização por idades, Tese 65 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha Espanha registaria uma maior dispersão das idades de morte do que os restantes países em análise. Face a estes resultados Rodriguez et al (1990) concluíam que esta é a principal consequência das desigualdades sócio-económicas subjacentes na sociedade espanhola. Quadro 8 - Sistema de Saúde Espanhol (1970-1998) 1970 1998 U 157 598 153 433 (2,6%) Camas disponíveis (1 000 habitantes) 4,7 3,9 (0,8) N.º de camas para agudos (1 000 habitantes) 3,52 Indicador Total de camas disponíveis N.º de camas de saúde mental N.º de camas para idosos Pessoal médico e dentistas em hospitais (100 mil habitantes) Pessoal de enfermagem (100 mil habitantes) Total de pessoal em hospitais 3,2 (0,3) 47 2563 19 035 (97,8%) 41 2702 10 575 (74,4%) 2301 290 60 80 320 240 366 130 85,2% 7,7 4,1 197 Despesas totais em Saúde (% PIB) 7173 3,6 1 2 3 Fonte: OECD Health Data (2002 b); Notas: 1990; 1985; 1975 Segundo um inquérito da responsabilidade da Comisión de Análisis y Evaluación del Sistema Nacional de Salud, efectuado por Blendon et al (1991), só 21% dos Espanhóis estivessem satisfeitos com o seu sistema de saúde, embora 71% dos que tinham recebido cuidados estavam satisfeitos com o tratamento. Esta é no entanto uma constatação em todos os países em que estes estudos têm sido realizados, o que pode querer significar que as pessoas se pronunciam desfavoravelmente pelo que ouvem dizer, mas após contacto com os serviços, como provavelmente as expectativas são baixas, então a opinião altera-se face à resposta encontrada e as percentagens de satisfação sobem significativamente, embora estes números sejam mais baixos do que os de outros países considerados no estudo daqueles autores. De acordo com o World Health Report (2000 b), Espanha ocupa o 7º lugar como país com melhor sistema de saúde do mundo, medido pelo índice global de realização dos objectivos, índice que combina o nível de saúde e a resposta às expectativas da população em cuidados, sendo que nos gastos per capita ocupa o 24º lugar. 3.2 As reformas dos anos oitenta Nos anos oitenta o governo Espanhol introduziu importantes alterações no seu sistema de saúde, não só a criação do SNS, como atrás se referiu, como ainda um conjunto de medidas tendentes a consolidar o sistema nacional de saúde. As principais reformas introduzidas consistiram em estender o seguro de doença obrigatório à quase totalidade da população (anteriormente só cerca de 90% é que eram cobertos); em integrar e planificar melhor os cuidados primários e os cuidados hospitalares; em recorrer mais ao financiamento através de impostos e em confiar progressivamente a gestão do sistema de saúde às regiões autónomas. 66 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha No início desta década (as principais reformas introduzidas estão sintetizadas no Quadro 9) o sistema de saúde apresentava bastantes pontos fortes: a igualdade de acesso aos cuidados de saúde podia considerar-se boa, a mortalidade perinatal era baixa, os cidadãos tinham uma boa opinião do seu sistema e as despesas de saúde podiam considerar-se a um nível bastante razoável ou até baixo (5,3% do PIB, para uma média europeia ponderada de 5,4%). Quadro 9 – Sintese das principais reformas dos anos oitenta em Espanha ANO 1981 1984 1985 1986 1987 1988 1989 PRINCIPAIS REFORMAS A Catalunha tornou-se a primeira região autónoma a ficar responsável pelo seu próprio sistema de saúde, no quadro da segurança social; Criação, nesta região, do processo de homologação para serviços hospitalares. Os trabalhadores independentes são integrados no regime de seguro de doença obrigatório e os seguradores privados são exonerados da obrigação de apenas oferecerem uma cobertura global; Andaluzia torna-se a segunda região autónoma a ficar responsável pelo seu próprio sistema de saúde, no quadro da segurança social; Princípio da aplicação da reforma dos cuidados primários. Instalação de equipas de cuidados primários compostas por médicos assalariados trabalhando a tempo inteiro em centros de saúde que cobrem uma zona geográfica definida. Primeiras tentativas no sentido de um reforço da função de gestão hospitalar e de uma melhoria da informação sobre a gestão; Criação de uma comissão central de garantia da qualidade para acompanhar exames confidenciais, entre pares, nos hospitais públicos. Publicação da Lei Geral de Saúde que institui um Sistema Nacional de Saúde (SNS), o que implica a transferência das responsabilidades do INSALUD para as regiões autónomas e a criação de 17 serviços regionais de saúde, no âmbito da segurança social; Extensão da cobertura de doença da segurança social a todos os membros da família reconhecidos como dependentes, que anteriormente era limitada aos filhos e pessoas deficientes; Instituição de regras de garantia de qualidade para os cuidados primários. Os médicos que trabalham em hospitais públicos são incentivados financeiramente a trabalharem a tempo inteiro para o sector público e têm a possibilidade de receber prémios de produtividade; Publicação de uma lei que reorganiza a gestão do INSALUD. Valência é a terceira região autónoma a ficar responsável pelo seu próprio sistema de saúde, como já anteriormente referido; O País Basco é a quarta região autónoma a assumir a responsabilidade do seu sistema de saúde. Extensão aos indigentes do benefício do sistema de cobertura do INSALUD, condicionado aos recursos existentes; Introdução de uma nova modalidade de repartição do financiamento central entre contribuições de segurança social e impostos, procurando tornar o financiamento mais progressivo. A taxa da segurança social para os cuidados médicos é fixa e os impostos cobrem a parte residual. Fonte: Casasnovas et al (2001) De referir, no entanto, que os cidadãos que nunca tinham tido emprego regular estavam excluídos do sistema financiado pelo INSALUD, os serviços eram considerados ineficazes e com falta de qualidade e o grau de insatisfação por parte dos utentes, era elevado. Existiam igualmente grandes listas de espera e os cuidados ambulatórios prestados no sector público eram desvalorizados e tinham pouca aceitação. O pessoal técnico e a elevada tecnologia dos hospitais tinha boa reputação, mas segundo Saturno (1988, em Casasnovas et al, 2001), os serviços de urgência estavam sobrecarregados, o tempo de espera para internamento era bastante elevado e o conforto era negligenciado. Um outro problema era a fronteira, ou falta dela, entre os sectores público e privado. Os médicos ocupavam um lugar num serviço público e simultaneamente tinham uma Tese 67 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha actividade privada. Segundo Guillen, M. (1989 e Rodriguez et al, 1990, referidos em OECD 1992), não havia para estes profissionais qualquer incentivo para melhorarem o serviço que prestavam aos seus doentes no sector público. O conjunto de reformas introduzidas ao longo da década de oitenta caracterizaram-se, principalmente, por terem sido lentas e bastante incompletas, dado que por exemplo do número de equipas de cuidados primários previstas só metade estavam constituídas em meados dos anos 90 e a transferência das responsabilidades de gestão para as regiões, só 20 anos depois (2002), parece ter-se tornado efectiva. 3.3 As reformas dos anos noventa Ao longo da década de noventa, as principais reformas introduzidas estão sintetizadas no Quadro 10 e podemos verificar que se o direito ao acesso aos cuidados de saúde se pode considerar como um pressuposto inquestionável em ordem ao exercício do direito à protecção de saúde, a igualdade e equidade impõem-se como princípios inexoráveis do seu reconhecimento e exercício. A identificação do tipo de cuidados necessários e o estabelecimento de medidas definidoras do seu conteúdo coloca um difícil equilíbrio entre a protecção subjectiva do direito e os condicionalismos de limitação da despesa pública que tem de atender aos princípios de eficiência. Quadro 10 – Sintese das principais reformas dos anos noventa em Espanha ANO 1991 1992 1994 1997 1998 PRINCIPAIS REFORMAS Navarra é a quinta região autónoma a ficar responsável pelo seu próprio sistema de saúde, no quadro da segurança social; A Galiza é a sexta região autónoma a assumir a responsabilidade do seu sistema de saúde, nos moldes anteriormente referidos. Estabelecimento de uma lista negativa de medicamentos; Adopção de medidas tendentes a tornarem o mercado dos produtos farmacêuticos mais concorrencial. Decisão de tornar os hospitais mais autónomos, transformando-os em corporações quase públicas, a fim de avançar no sentido da estratégia governamental de convergência europeia. Canárias são a sétima região autónoma a ficar responsável pelo seu próprio sistema de saúde, como referido anteriormente; Aprovação, pelo Conselho de Política Fiscal e Financeira, do Modelo de Financiamento para a Saúde, para o período de 1994-1997, que contou com o apoio de todas as Comunidades Autónomas. Aprovação, pelo Conselho de Política Fiscal e Financeira, do Modelo de Financiamento para a Saúde, para o período de 1998-2001, que contou, igualmente, com o apoio de todas as Comunidades Autónomas. Obrigatoriedade de utilização do cartão de identificação dos cidadãos, em todos os serviços do Sistema Nacional de Saúde. Fonte: Adaptado de Casasnovas et al (2001) A identificação dos cidadãos que têm direito a cuidados de saúde foi considerado um objectivo fundamental, não só como elemento de planeamento de saúde, programação e gestão dos serviços de saúde, como também para permitir um adequado acesso em condições de equidade. 68 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha Segundo Casasnovas et al (2001), no âmbito da gestão o INSALUD não só regulou especificamente a legislação sobre documentação de identificação dos cidadãos, como através da resolução da presidência executiva, de 23 de Julho de 1998, estende, talvez de forma discutível, expressamente a obrigatoriedade de utilização do cartão de identificação a todos os serviços do sistema nacional de saúde. Esta regulamentação foi complementada, em 3 de Fevereiro de 1999, com a emissão de cartões de saúde para os estrangeiros menores de dezoito anos. Para se poder avaliar a relação entre o processo de descentralização ou transferência de responsabilidades para as regiões e a política de gastos em saúde, é muito importante ter em conta que este processo não foi único, já que cada região teve o seu próprio processo, levado a cabo em momentos diferentes, em circunstâncias distintas e utilizando diferentes parâmetros para o cálculo do seu financiamento. Qualquer avaliação do impacto desse processo de transferência deve ponderar adequadamente estas diferenças. 3.3.1 Modelo de financiamento para a saúde, nas regiões autónomas (1994-1997) O processo de descentralização iniciou-se em 1978, com a aprovação da Constituição Espanhola, que tem um capítulo específico sobre a organização do território onde se define que as regiões podem assumir as competências em matéria de saúde e higiene e que incluem as relativas à saúde pública, hospitais, saúde mental, planeamento, etc. O financiamento, que actualmente se encontra transferido para todas as regiões, rege-se pelos mecanismos estabelecidos pela lei orgânica de financiamento das regiões. Por outro lado, a Constituição determina que a legislação básica e o regime económico da segurança social é uma competência exclusiva do Estado, sem prejuízo de que a execução dos seus serviços possa ser transferida para as regiões. Face a esta determinação: (i) as regiões que acederam à autonomia por uma via diferente da contemplada no artigo 143º da Constituição, são as únicas que puderam assumir as competências em matéria de saúde e, (ii) as que acederam à autonomia através do referido artigo 143º, devem ter reflectida esta competência no seu estatuto de autonomia para poderem assumir as funções e serviços do INSALUD, circunstância essa que não se verificou até ao final de 1998, altura em que todas as regiões modificaram o seu estatuto. 3.3.2 Modelo de financiamento para a saúde, nas regiões autónomas (1998-2001) O modelo de financiamento para a saúde, que vigorou de 1998 a 2001, nas regiões autónomas em Espanha, manteve fundamentalmente como critério de distribuição de recursos o da capitação, calculado a partir dos dados disponíveis da população, referentes a 1996. Tese 69 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha Este modelo continha entre outros o conceito de financiamento dos cuidados de saúde prestados aos deslocados, através do chamado “fondo de asistencia hospitalaria”, que agregava o atendimento aos deslocados e a formação dos Médicos Internos Residentes (MIR)45, sendo que a sua quantificação e distribuição correspondeu a negociações políticas em cada momento, mais do que a critérios empíricos ou normativos objectiváveis. Os critérios de distribuição continuaram a ser objecto de grande controvérsia, levando a que o financiamento da saúde nas regiões autónomas se tenha transformado num dos aspectos mais polémicos do processo de descentralização iniciado em 1978. 3.3.3 Modelo de financiamento para a saúde, nas regiões autónomas (2002-....) Em Julho de 2001, o Consejo de Política Fiscal y Financiera aprovou o novo sistema de financiamento posteriormente regulamentado pela Lei n.º 21/2001, de 27 de Dezembro, para vigorar a partir de 2002 e que apresenta como principal característica a integração de todo o tipo de fundos para o financiamento da saúde. Este modelo apresenta importantes e inovadoras características relativamente aos modelos anteriores, nomeadamente no que se refere ao cálculo do valor global a distribuir, assente em critérios de repartição próprios, ao estabelecimento de fundos específicos, às garantias para o estabelecimento e avaliação dos gastos e à existência de recursos próprios de cada uma das comunidades e dos cidadãos, bem como na aplicação de fórmulas de compensação. 3.4 Novos desafios para a coordenação regional. O atendimento transregional em saúde O processo de descentralização em saúde, que culminou em 31 de Dezembro de 2001 com o desaparecimento do INSALUD, dando lugar a uma estrutura de coordenação e reordenação administrativa dos recursos humanos e materiais por parte do Ministério da Saúde, pode gerar desigualdades, dado existirem muitas dúvidas sobre o fluxo de doentes (como geri-los e como reorientá-los), que até agora eram atendidos no âmbito do INSALUD. O novo modelo de financiamento, já referenciado, que entrou em vigor em 2002, contempla um fundo de coesão, conceptualmente desenhado para financiar o atendimento a doentes deslocados, em que, teoricamente, é garantida a equidade ao acesso, independentemente do lugar de residência do doente, tendo o modelo sido inspirado no funcionamento da Organização Nacional de Transplantação. Convém no entanto notar que a evidência mostra que as taxas de realização de transplantes de coração e fígado são significativamente mais altas nas regiões com oferta própria, o 45 Normativa Reguladora General de Formación Sanitaria Especializada, Ley 24/1982, de 16 de Junio, sobre prácticas y enseñanzas sanitarias especializadas (B.O.E. de 29 de Junio de 1982). 70 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha que leva a que se questione se existe verdadeira equidade ou se tal não passa de letra morta (Urbanos et al, 2001). A solução, baseada em acordos bilaterais ou multilaterais inter-comunitários, apresenta maiores custos de transacção e com a fragmentação do INSALUD perdem-se economias de escala em termos organizacionais e de gestão, parecendo não resolver o problema, já que as regiões emissoras correm o risco de serem discriminadas, dado que em função do seu poder de negociação são vulneráveis à assimetria de informação das listas de espera e suportam o risco da existência dessa informação estar separada por lugar de origem dos doentes. Valerá a pena pensar na opção de integração em redes inter-regionais, pois as experiências de redes multicêntricas, já estabelecidas para os ensaios clínicos e outras colaborações científicas e investigacionais, podem ser aproveitadas para o desenvolvimento de acordos assistenciais. As questões fundamentais a colocar serão: (i) até que ponto o sistema de saúde espanhol está disposto a reconhecer o direito à igualdade de acesso aos serviços de saúde independentemente do lugar de residência?; (ii) até que ponto está disponível para articular reformas que garantam na prática esse direito?; (iii) qual deve ser o limite máximo da diversidade regional no direito aos cuidados de saúde? e (iv) qual deve ser o valor mínimo das garantias individuais de assistência? Segundo Cabello, J. (2003) embora o novo sistema represente um grande avanço no financiamento para as regiões autónomas, quer no que se refere à metodologia de distribuição, quer nos montantes globais afectos às diferentes regiões, do ponto de vista da equidade ele apresenta-se como uma solução pouco satisfatória. Mas para Casasnovas (2003), as avaliações que se fazem actualmente sobre equidade em saúde são bastante mais complexas do que anteriormente, pois há desigualdades nos gastos resultantes quer de diferenças no financiamento básico estatal (incorporado no financiamento geral), quer nos valores que as comunidades autónomas acrescem aos afectos à saúde a partir da evolução dos seus rendimentos (um tema de prioridades políticas para as autonomias), ou das contribuições adicionais dos cidadãos (impostos directos, taxas, co-pagamentos). Este autor entende ainda que actualmente é mais correcto falar de igualdade do que de equidade, dado que é um conceito mais claro e menos susceptível de manipulação política. Para ele, o caminho continua a ser apreender as realidades causadoras das diferenças individuais em saúde e combatê-las através de programas de promoção da saúde e de prevenção da doença e sobretudo fora dos serviços de saúde convencionais. Tese 71 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha 3.5 Avaliação do processo das autonomias e das novas formas de organização das instituições de saúde O processo de transferência de competências na área da saúde para as sete regiões, efectuada ao longo dos últimos vinte anos, esteve sujeito a diferentes correlações de forças políticas a nível central e na sua inter-relação com as existentes ao nível de cada uma das comunidades (Casasnovas et al, 2001). Segundo estes autores, a avaliação não é naturalmente simples, pelo facto de existir certa opacidade no fornecimento de dados sobre a actividade desenvolvida e nos resultados obtidos, mas parecem estar a ter grandes repercussões tanto no sistema de saúde como nos utentes e nos profissionais. As principais repercussões no sistema de saúde parecem ser: - Competitividade e não cooperação entre as unidades de saúde; - Não aumento da eficiência; - Introdução de critérios empresariais; - Prevalência da rentabilidade económica sobre a qualidade assistencial; - Fragmentação dos centros e do sistema de saúde. As repercussões mais importantes que se podem assinalar para os utentes são as seguintes: - A concorrência interna pode derivar em riscos de não solidariedade e falta de cooperação; - A competitividade não regulamentada pode originar desigualdade na dotação de recursos aos centros e, consequentemente, podem verificar-se diferenças no acesso às prestações de saúde em quantidade e/ou qualidade. E, por último, as repercussões a mencionar para os profissionais são: 72 - O objectivo único de rentabilidade económica afecta as condições laborais dos profissionais de saúdes; - A redução dos orçamentos está relacionada com a diminuição do pessoal; - Diversificação de formas de contratação de profissionais; - Perda de influência dos sindicatos; - Desprofissionalização dos gestores de saúde; - O horário de trabalho passou a ser maior com menores períodos de descanso; - Os períodos de férias passaram a ser mais amplos; - As remunerações variáveis passaram a ser preponderantes; Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha 3.6 - Os ratios de pessoal dos quadros passaram a ser menores; - A participação dos profissionais na gestão da saúde é diminuta. A contratualização dos cuidados de saúde O objectivo das propostas mais recentes de organização, financiamento e gestão do sistema de saúde espanhol, é a melhoria da eficiência, sem prejuízo da equidade já conseguida, tendo este país procurado introduzir na reforma do seu sistema de saúde, como instrumento privilegiado, a contratualização, quer a nível externo, quer interno. 3.6.1 Contratualização externa no sistema de saúde espanhol A principal fonte de financiamento dos serviços regionais de saúde é uma subvenção que é transferida em bloco pelo governo central, de acordo com critérios estabelecidos no “decreto de devolução” baseado, principalmente, na população de cada Comunidade Autónoma (Flynn, R. et al, 1997). Actualmente, a gestão económica e a administração dos serviços de saúde estão totalmente entregues às Comunidades Autónomas, embora ainda num contexto de alguma legislação e regulamentos nacionais. Contudo, apesar de muitos aspectos dos serviços prestadores terem sido reformados, passados dez anos, o seu impacto na modernização organizacional e gestionária do sistema de saúde é pouco visível, especialmente se comparada com as expectativas iniciais. Foi entendido que as estruturas burocráticas dos serviços de saúde centrais (INSALUD), caracterizadas por uma forte integração vertical, uma provisão pública de serviços e pela submissão a regras da Administração Pública, eram incapazes de resolver, a longo prazo, o duplo desafio de controlar o crescimento das despesas públicas com a saúde e oferecer um amplo pacote de serviços a todos os cidadãos espanhóis, o que levou a que desde o início do ano 2002 as Comunidades Autónomas se tenham substituído ao INSALUD. A ideia de comprar cuidados de saúde em Espanha decorre paralelamente com a aprovação da Lei de Bases da Saúde Espanhola, em 1986. No entanto, a primeira vez que a ideia de competição de mercado (quasi-mercado) é abertamente mencionada no sector público da saúde é no chamado Relatório de Abril, um conjunto de propostas de reformas para o sistema de saúde, aprovado no Parlamento e apresentado ao governo em 1991. O objectivo da reforma era alcançar um maior nível de eficiência, mantendo o nível de equidade existente. Este relatório propôs a diferenciação das funções de financiador das de prestador e a configuração dos hospitais e centros de cuidados primários como empresas públicas regidas pelo direito privado. A opção pela competição simulada ou criação de um mercado interno requer, basicamente, uma abordagem dos problemas de regulamentação e de gestão. Relativamente ao primeiro, os dois aspectos mais importantes são a cobertura e a Tese 73 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha qualidade, que têm que ser garantidas em qualquer caso. Quanto à gestão, a necessidade de aumentar a autonomia é óbvia. Segundo Cabases et al (1999), a estrutura administrativa actual tem que dar lugar a novas formulações legais que permitam a autonomia da gestão, a transferência do risco para os gestores e a responsabilidade financeira para os profissionais de saúde. A compra de serviços de saúde toma-se assim um dos aspectos da estratégia da saúde, consistindo na aquisição de serviços de tratamento, reabilitação, diagnóstico, prevenção e promoção de cuidados de saúde às organizações prestadoras. O instrumento de compra era o contrato, que consistia na selecção do prestador e na negociação de um acordo com este, acerca dos serviços a serem prestados e das contrapartidas monetárias. Os contratos de serviços de saúde estabelecidos pelo sector público com prestadores privados, com ou sem fins lucrativos, tinham, caracteristicamente, um carácter complementar ou subsidiário relativamente às actividades desenvolvidas pela Segurança Social. Em 1992, deu-se uma mudança fundamental, quando em decreto-lei foi determinada a possibilidade de contratualização com serviços já assegurados pela rede pública, criando o cenário para a competição futura. A estratégia de mudança na gestão de serviços públicos de saúde em Espanha, que está orientada para a separação funcional entre financiadores, compradores e prestadores, desenvolveu dois mecanismos paralelos de reforma: 1. A introdução do contrato-programa em todas as organizações públicas de saúde (tanto hospitais como centros de saúde); 2. A criação de empresas públicas de cuidados de saúde, reguladas pelo direito privado, como experiência piloto. Conceptualmente, o contrato-programa pode ser definido como um instrumento de relação entre a tutela e as instituições públicas de saúde, que liga a actividade ao orçamento atribuído a cada unidade (Cabases et al, 1999). De acordo com estes autores, os contratos de prestação de serviços de saúde assinados pelo sector público com prestadores privados, com e sem fins lucrativos, tem tido como característica a complementaridade e subsidiariedade das actividades de cuidados de saúde desenvolvidas pela segurança social. A lei de cuidados de saúde regula a ligação entre os prestadores privados e os prestadores públicos, através de uma dupla via: a articulação e, a mais prevalente, a do acordo. A diferença entre elas assenta no facto de que o acordo pressupõe a completa integração das unidades privadas na rede pública e está submetido a um regime substancialmente idêntico ao dos serviços públicos, enquanto a articulação pressupõe uma ligação mais difusa, limitada a alguns serviços que o sector público não proporciona. Afirmam também estes autores que, complementarmente, existem outras relações convencionadas na legislação dos cuidados de saúde, tais como as relações directas 74 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha entre a segurança social e unidades de cuidados de saúde. Estas articulações estão estabelecidas por lei, com o intuito de desenvolver um regime operacional programado, que está totalmente coordenado com o das unidades públicas de cuidados de saúde na estrutura de planeamento sectorial. Diferem substancialmente das articulações pela sua natureza legal, uma vez que as unidades privadas permanecem sujeitas a um regime legal substancialmente idêntico ao dos serviços públicos. Estas formas de articulação estimulam a rede pública. Segundo ainda aqueles autores, uma alteração fundamental ocorreu em 1992 quando, por decreto, foi estabelecido que a consolidação do SNS requeria que a autoridade de saúde distinguisse claramente a área dos seguros de saúde da prestação de cuidados de saúde. Propunha aquele diploma regular a elaboração da proposta e a monitorização das articulações com as entidades públicas ou privadas que podiam ter um carácter substitutivo dos serviços que eram, até aí, prestados pelo INSALUD. Foi a primeira vez que tal facto foi reconhecido e em que unidades externas à segurança social podiam ser entidades substitutivas e não terem somente um carácter de subsidiárias. Isto foi um passo para a contratualização externa de serviços já prestados pela rede pública, delineando o contexto da competição futura. Algumas das características da regulação das articulações mais comuns estabelecidas na lei geral dos cuidados de saúde são, entre outras:(i) o seu objecto é a prestação de cuidados de saúde com outros meios que não os seus próprios, levando em conta a utilização óptima dos recursos próprios em cuidados de saúde da segurança social; (ii) a prioridade deve ser dada às entidades sem fins lucrativos em condições análogas de preço, qualidade e valor global despendido; (iii) os serviços não devem ser contratualizados se não estiverem de acordo com os objectivos do Sistema Nacional de Saúde. Isto quer dizer que o desenho da contratualização externa está de algum modo ligado com o conceito de subsidiariedade, com preferência pelas instituições não lucrativas e em ligação com a estratégia da saúde, como uma referência obrigatória. 3.6.2 Contratualização interna – o contrato programa A estratégia de mudança na gestão dos serviços públicos de saúde em Espanha, que está orientada para a separação funcional do financiamento e da compra da prestação de serviços, através da rede pública de serviços de saúde, desenvolveu-se com maior ou menor ênfase em dois mecanismos de reforma paralelos – a introdução do contrato programa em todas as organizações públicas de cuidados de saúde, quer hospitais, quer unidades de cuidados de saúde primários, e a criação de empresas públicas de cuidados de saúde (baseadas no direito privado) como experiências piloto. Cabases et al (1999) procuraram determinar em que medida os contratos programa são instrumentos úteis para o desenvolvimento da gestão e para o controlo da despesa com os cuidados de saúde. Conceptualmente o contrato programa pode ser definido como um instrumento de relação entre a autoridade de saúde e os prestadores públicos, que ligam a actividade ao financiamento atribuído a cada uma das organizações prestadoras. Entre os objectivos a serem alcançados pelo contrato programa devem ser realçados, entre outros: (i) transparência das obrigações e objectivos definidos para Tese 75 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha cada unidade de saúde; (ii) promoção da autonomia e descentralização na gestão; (iii) promoção ou estimulo à gestão eficiente das unidades de saúde e, finalmente (iv) tornar possível a contratualização interna. O contrato programa típico, com duração anual, que era estabelecido entre os serviços centrais do INSALUD e as suas instituições prestadoras, definia: (i) os objectivos dos serviços, com indicação do volume de actividade referenciada aos objectivos de saúde; (ii) o financiamento, usualmente um contrato com especificação do volume; (iii) a quantidade de outras fontes de financiamento que a unidade possa ter; (iv) os mecanismos de incentivo, normalmente baseados na distribuição dos ganhos orçamentais e, (v) as sanções devidas por prestações abaixo ou acima do contratualizado. 3.7 A gestão das listas de espera As listas de espera, quer cirúrgicas quer diagnósticas, constituem uma das principais fontes de insatisfação dos utilizadores do sistema público de saúde e a repercussão em termos de saúde ao prolongar o tempo de espera para obter um diagnóstico ou para ser intervencionado é muito significativa, dado que em muitos casos esperar implica aumentar a gravidade das doenças, às vezes de forma irreversível, e/ou prolongar a incapacidade e o sofrimento dos doentes. Para além disso, a existência de listas de espera implica perdas de equidade na medida em que a liberdade de escolha dos doentes está limitada e também porque o acesso difere entre centros e, ainda, porque a opção pelo tratamento no sector privado só está ao alcance de uma parte da população, aquela que detém recursos económicos suficientes. Para a adequada gestão das listas de espera é imprescindível que o grau de necessidade clínica e a efectividade do tratamento actuem como critérios de inclusão nas listas, dado o grau de incerteza sobre os benefícios esperados, além de que a prescrição médica estará menos influenciada por factores alheios à necessidade de intervenção ou tratamento, tal como o sistema de pagamento ou a capacidade produtiva. O desenvolvimento de investigação epidemiológica, que confirme a efectividade do tratamento para os diferentes doentes, configura-se como uma estratégia básica, embora actualmente a investigação constitua ainda uma função marginal e pouco reconhecida no âmbito da prática clínica (Peiró 1999, em Peiró 2000). Segundo Lázaro et al (2001), existem três estratégias para a redução das listas de espera: (i) actuar sobre a procura, reduzindo as referenciações; (ii) actuar sobre a oferta, aumentando a capacidade de resposta, e (iii) melhorar a gestão, aproveitando melhor os recursos disponíveis e reduzindo os tempos perdidos. Em Espanha foram introduzidas medidas transitórias para redução de listas de espera, nomeadamente prolongamento dos tempos de atendimento e derivação dos doentes para o sector privado, as quais têm tido um êxito muito limitado e, em alguns casos, até um efeito perverso, como por exemplo o aumento do número de pessoas em lista de 76 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha espera, associado ao aumento da capacidade produtiva e, inclusive a selecção de intervenções não prioritárias que maximizam o pagamento aos médicos (Marquez et al, 1994). Embora as listas de espera, por todas as razões já invocadas, devam ser consideradas como um indicador de falta de qualidade, também podem ser o único estímulo à produtividade profissional, embora os programas específicos possam ser encarados como formas de proporcionar benefícios económicos extra aos profissionais. Por outro lado, os programas para redução das listas de espera geridos da forma que tem sido usada quer em Espanha quer em Portugal, encaminhando uma parte dos doentes para serviços convencionados ou contratados onde os profissionais trabalham simultaneamente no público e no privado, constitui uma perversão e não contribuirá para solucionar verdadeiramente o problema, perpetuando-o ou até agravando-o. Segundo González et al (2001), o objectivo das listas de espera concentrou-se basicamente nos serviços cirúrgicos. As estratégias que permitirão aumentar a eficiência, neste campo, algumas das quais já postas em prática, passam: (i) pelo incremento da cirurgia ambulatória, (ii) pela separação entre a cirurgia electiva e urgente, (iii) pela flexibilização dos horários dos cirurgiões e dos blocos operatórios, (iv) por criar uma lista de doentes de “aviso imediato” para colmatar os espaços das desistências ou cancelamentos, (v) por estabelecer procedimentos para reduzir os cancelamentos e, (vi) por melhorar a qualidade dos cuidados directos dos médicos e activar mecanismos de avaliação multidisciplinar prévios à admissão hospitalar com o objectivo de facilitar a reavaliação dos doentes que necessitem. Por outro lado, as equipas deveriam organizar-se previamente e estabelecer compromissos, a médio prazo, relativamente aos níveis de actividade. Os desenvolvimentos organizacionais no âmbito das listas de espera passam também por uma melhoria das fontes de informação, dado que a ausência de critérios homogéneos entre os níveis central e regional, no que se refere à terminologia e à medição dos tempos de espera, impossibilita o seu cabal conhecimento e impede a sua adequada gestão. São igualmente desconhecidas as consequências na saúde e os problemas assistenciais que geram, bem como o seu reflexo nos custos. A aposta é a da definição de uma política clara de transparência. 4. RESUMO No Reino Unido o White Paper (1989) contém um capítulo sobre a nova lógica de identificar necessidades pelas Health Authorities na dinâmica da contratualização, sendo que esta evoluiu como parte de uma reestruturação fundamental do Estado Providência. Segundo Murray et al (2000), as suas funções são centrais ao mercado interno e à separação comprador/prestador (purchaser/provider). A criação de um mercado interno nos anos oitenta no NHS constituiu a mais profunda das mudanças culturais e organizacionais, desde a sua criação em 1948. Pretendeu-se que as unidades prestadoras de cuidados de saúde (hospitais e centros de saúde) Tese 77 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha passassem a organizar-se como sub-modelos empresariais com autonomia de gestão, cujo financiamento dependia da obtenção de contratos com as administrações de saúde e com os clínicos gerais - GP fundholders, (Santos, R., 1999, pág. 5). Estas mudanças alteraram radicalmente o funcionamento do NHS, através dos seguintes mecanismos: − As autoridades regionais de saúde foram dotadas de recursos financeiros para comprarem cuidados de saúde; − Existência de competição entre os prestadores; − Contratualização de responsabilidades entre financiador e prestador; − Introdução da filosofia de cuidados geridos, facultando aos clínicos gerais a possibilidade de serem responsáveis pela saúde global dos seus clientes, não só na assistência directa mas também no seu encaminhamento e pagamento dos cuidados prestados. Segundo Jenkins, K. (1995), a contratualização introduzida na Grã-Bretanha teve consequências significativas sobre a estrutura da administração pública e também influenciou a sua auto-imagem, tornando-a menos resistente à mudança, já que os serviços, de um modo geral, melhoraram em celeridade, eficiência e confiança. Ainda no contexto britânico, parecem colocar-se outros problemas, nomeadamente o relacionamento entre a Agência e as Finanças, dado que num contexto de escassez de recursos públicos, onde a lógica das agências é a do output e a do governo é a do input financeiro, potencia eventuais conflitualidades entre os dois organismos. Outra crítica prende-se com a distinção entre cidadão e consumidor, dado que se a agência se preocupa apenas com os seus clientes ou consumidores, facilmente estes podem organizar-se em grupos de interesse que irão procurar influenciar aquela estrutura em benefício próprio e não do interesse público. O Novo Plano, introduzido em 2000, veio reforçar o papel da contratualização e o da avaliação e acompanhamento, procurando responder mais e melhor aos cidadãos. No que se refere a Espanha, de acordo com Freire (2001), a organização actual do sistema nacional de saúde resulta de um processo crónico de reformas sucessivas, em que as novas estruturas se sobrepõem, sem anular as preexistentes. Há presentemente uma grande concentração de desafios: da reforma do sistema de financiamento geral da saúde e das regiões, o “Concierto Vasco” e a assumpção das competências transferidas para as dez regiões, que ainda mantinham gestão directa do INSALUD. Estas reformas colocam um repto e oferecem uma oportunidade histórica para o sistema de saúde espanhol. De acordo com González et al (2001), as prioridades organizacionais respondem à urgência das reformas, já que foram necessários vinte anos para concluir a 78 Tese Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha transferência de competências na área da saúde para sete regiões e apenas alguns meses para terminar o processo com as restantes e para definir o papel, fundamentalmente de coordenação, do Ministério da Saúde e para tomar decisões de reordenação administrativa dos recursos humanos e materiais da organização central do INSALUD. Segundo esta autora a descentralização territorial coloca desafios organizacionais em várias frentes. O primeiro refere-se aos doentes deslocados e ao funcionamento dos centros e serviços transfronteiriços. As regiões mais pequenas não têm, nem devem ter, de acordo com critérios de eficiência, uma gama de serviços completa para oferecer aos seus cidadãos. Devem referenciá-los para fora, quer a nível de determinados tratamentos, quer de diagnósticos, continuando Madrid a ter centros de referência. Relacionado com esta prioridade, constituindo também uma fonte de iniquidades territoriais, encontra-se o problema da coordenação e gestão das listas de espera, igualmente um problema de todos os países com serviços nacionais de saúde. Mas não se pode falar de coordenação sem informação e, por isso, a criação de um sistema de informação de saúde, integrado que permita avaliar o sistema globalmente, admitindo comparações entre as diferentes componentes, é igualmente uma prioridade neste país. Um outro grupo de desafios organizacionais prende-se, segundo González et al (2001), com a eficiência, dado que a integração vertical eficaz entre níveis, saúde e segurança social, no atendimento continuado a doentes crónicos, idosos e deficientes, que salvaguarde as barreiras institucionais, gera consensos acerca da conveniência em estabelecer modelos longitudinais de seguimento dos doentes, de forma a obter melhores resultados relativamente aos ganhos em saúde e à redução de custos. As reformas e contra-reformas organizacionais ao nível da gestão, nomeadamente as formas jurídicas e a contratualização, representam esforços significativos para melhorar a eficiência clínica e de gestão. Convém ainda referir algumas das preocupações expressas por alguns profissionais de saúde do país vizinho que se prendem com o pacto de financiamento estabelecido em 2002 e que permite que cada uma das Comunidades Autónomas possa definir orçamentos próprios, podendo criar desigualdades territoriais bastante significativas. O balanço geral da contratualização parece ser no entanto positivo, embora para os vários autores referidos apenas pareça ter havido melhorias nítidas ao nível dos resultados financeiros, dado ser esta a componente mais visível do processo. Acrescentam ainda que o impacto de variáveis externas adversas, indecisões políticas e falta de outras medidas complementares, não têm permitido que a contratualização atinja os resultados possíveis e desejáveis. Apesar disso, gestores e governantes, consideram a experiência um sucesso, basicamente devido à maior transparência adquirida pelas operações e pelos resultados. Um outro benefício, este de natureza política, foi que a contratualização tem servido de base para a estratégia de reforma da administração pública directa e para a melhoria do Tese 79 Capítulo III - Análise do sistema de saúde e do processo de contratualização no Reino Unido e em Espanha desempenho no sector público em geral, nomeadamente em Espanha, sob a égide da responsabilização e autonomia de gestão. O trabalho de Shirley, M. (1998 a) b) e c), sobre a contratualização nos países em desenvolvimento, não apoia, no entanto, a tese de que tal processo contribua para a melhoria do desempenho no sector público. Como principais dificuldades identifica o artifício utilizado pelos dirigentes e governantes ao definirem metas e objectivos demasiado fáceis de atingir, explorando a impreparação dos profissionais dos órgãos de fiscalização e a falta de sistemas de informação que permitam um bom acompanhamento e avaliação. São também apontadas deficiências aos sistemas de incentivos, que estipulavam prémios e penalidades para agentes e prestadores, mas em que os Estados dificilmente cumprem a sua parte no contrato. No entanto os contratos, quando realizados com o sector privado, parecem ser em geral muito mais eficazes, sendo que esta diferença pode ser atribuída ao facto de serem por vezes colocados grandes obstáculos ao funcionamento de mecanismos de mercado no sector público, dado que teoricamente nada impede que este possa beneficiar do mesmo tratamento que os governos dão às empresas privadas contratadas. 80 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto CAPÍTULO IV: ANÁLISE DO SISTEMA DE SAÚDE EM PORTUGAL – O CONTEXTO 1. OS ANTECEDENTES DO ACTUAL SISTEMA DE SAÚDE PORTUGUÊS Embora em Portugal coexistissem diversos tipos de unidades de saúde que prosseguiam funções de prestação de cuidados, segundo Reis, V. (1999), foi só em 1946, com a publicação da Lei n.º 2 011, de 2 de Abril, que foi criado um padrão de organização de serviços. Esta Lei, só regulamentada em 1968 através do Estatuto e do Regulamento Geral dos Hospitais, deu corpo, ainda segundo aquele autor, a um dispositivo inovador assente num sistema regionalizado, voltado para a organização e hierarquização técnica dos vários serviços existentes e a criar. Já naquela altura se procurava introduzir racionalização na distribuição e utilização dos recursos existentes e procurava-se igualmente criar serviços específicos para a resolução de alguns problemas de saúde, nomeadamente a saúde mental, lepra e tuberculose. Mais tarde, após a criação da Direcção Geral dos Hospitais (final da década de cinquenta) e do Ministério da Saúde na década de sessenta, foi possível implementar e estruturar uma rede de serviços de saúde e desenvolver um modelo de seguro social obrigatório, tipo Bismarkiano, o qual foi cobrindo progressivamente uma parte cada vez mais significativa da população activa (primeiro os trabalhadores por conta de outrem, posteriormente os trabalhadores independentes e num segundo tempo os respectivos familiares). A prestação de serviços, da responsabilidade da Previdência Social, era essencialmente constituída por cuidados ambulatórios e assentava nos profissionais de actividade liberal, cobrindo praticamente todo o território nacional. A componente da prestação de cuidados hospitalares era detida principalmente pelas misericórdias e outras entidades de origem religiosa. Ao Estado competia um papel essencialmente supletivo, relativamente aos restantes actores do sistema, passando mais tarde a assumir uma intervenção reguladora, em troca dos subsídios e contribuições atribuídos às organizações religiosas ou outras sem fins lucrativos, o que lhe facilitou a introdução de princípios e normas na gestão e funcionamento nos hospitais daquelas organizações. Em 1965, através do Decreto-lei n.º 46 301, de 27 de Abril, foi definida uma nova modalidade de financiamento hospitalar, que estabeleceu como responsáveis pelos assistidos: (i) os próprios e as suas famílias (a quem era feito um inquérito assistencial para determinação da sua capacidade de pagamento) e, (ii) os terceiros responsáveis, que poderiam ser: empresas seguradoras, no caso de acidentes de viação ou de trabalho; o próprio Estado, através da Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE), para os seus funcionários; outras instituições de previdência social ou de auxílio mútuo Tese 81 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto e obras sociais, para os respectivos associados ou beneficiários. É nesta década que surgem os mais tarde denominados subsistemas de saúde como, por exemplo e para além da ADSE, os Serviços Sociais do Ministério da Justiça (SSMJ) e os Serviços de Assistência Médico-Social dos Bancários (SAMS) que se consubstanciam como formas de seguro, principalmente com base profissional e normalmente de inscrição obrigatória (Campos, 1983; Carreira, 1996). Os subsistemas detinham frequentemente prestadores e serviços próprios ou contratavam prestadores privados, permitindo a existência de planos de saúde alternativos ao esquema então existente, o qual assentava, principalmente, nos postos das Caixas de Previdência e nos hospitais, maioritariamente das misericórdias. Esta complementaridade e sobreposição manteve-se e permanece ainda hoje, no seio de um SNS universal e tendencialmente gratuito, o que cria naturais ineficiências, iniquidades e até sobre-utilização de cuidados de saúde. Em 1968, como já se referiu, foi publicado o Estatuto Hospitalar, através do Decreto-lei n.º 48 357, de 27 de Abril e o Regulamento Geral dos Hospitais, pelo Decreto-lei n.º 48 358, da mesma data, que vieram definir, entre outras matérias, a rede hospitalar, sua organização e gestão e algumas das principais carreiras específicas de pessoal da saúde (Campos, 1983). Estes diplomas ainda hoje continuam actuais e em vigor para muitas das componentes ali definidas. 2. PRINCÍPIOS DO SISTEMA DE SAÚDE – OS ANOS SETENTA Em 1970, através dos Decretos-lei n.º 498/70 e 499/70, o Estatuto Hospitalar foi profundamente alterado e a gestão assumiu maior profissionalização. No ano seguinte, foi publicado o pacote legislativo conhecido como “legislação Gonçalves Ferreira”, o qual veio introduzir profundas alterações organizativas e até mesmo conceptuais na estrutura do sistema de saúde, através dos Decretos-lei n.º 413/71 e 414/71, que criaram os centros de saúde e, segundo Ferreira (1989), revalorizaram a área de intervenção dos cuidados primários, introduzindo uma nova lógica de funcionamento num sistema até então centrado principalmente na actividade hospitalar, complementada pela actividade ambulatória da Previdência Social. Assim, no início da década de setenta, o Estado continuava a manter um papel formalmente supletivo como prestador e financiador dos cuidados de saúde, mas, segundo Reis, V. (1999), tinha ganho uma capacidade assinalável no sector da saúde, a qual exercia, ainda que de forma incipiente. Neste período, para além duma cobertura irregular da população e duma distribuição assimétrica dos profissionais e das unidades de saúde, o nível de saúde dos portugueses era baixo, bem como o nível de profissionalização nas diferentes componentes do sistema, mas foi nessa década que o sistema de saúde português sofreu uma enorme evolução. Em meados da década de setenta, sobretudo a partir do choque petrolífero de 1973, uma grave crise económica mundial pôs fim à era de prosperidade que se iniciara após a Segunda Guerra Mundial. Era o fim da “era dourada” - na definição de Hobsbawn E. 82 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto (1996), período em que não só os países capitalistas desenvolvidos mas também o bloco socialista e parte do Terceiro Mundo alcançaram altíssimas taxas de crescimento. Portugal só no fim da década de sessenta e sobretudo com a legislação de 1968 e 1971 atrás referida, iniciou o processo de mudança organizacional, acentuado com a revolução de 1974, particularmente entre 1976 e 1979, em que o sistema de saúde português sofreu uma viragem e conheceu profundas modificações, também no plano dos princípios, definidos na Constituição da República Portuguesa de 1976 e regulamentados pela Lei de Bases da Saúde de 1979. Tratou-se de um movimento em claro contra-ciclo económico, com o sistema português a aproximar-se de modelos implementados num clima de prosperidade económica, que viabilizara o seu desenvolvimento e que, entretanto, já terminara. O Programa de Acção do Ministério dos Assuntos Sociais, de Outubro de 1974, veio estruturar este Ministério e definir os objectivos da política social, lançando as bases do Serviço Nacional de Saúde (SNS), através da identificação dos seus princípios básicos, pela definição duma política de saúde e instituindo como elemento integrador do sistema a saúde, contrariamente ao sistema de previdência social, anteriormente em vigor, que assentava no tratamento da doença. Segundo Campos (1983), apesar das hesitações políticas, a década de setenta correspondeu em Portugal às de cinquenta ou sessenta para os outros países. A cobertura da população por esquemas de seguro-doença passou de 56% em 1970 para 100% em 1978. Distribuíram-se médicos recém diplomados pelos serviços periféricos, facultando o acesso à saúde a populações que até então nunca o haviam tido. Em termos financeiros e a custos reais, a importância do sector saúde quase triplicou ao longo daquela década (a % do PIB passou de 2,6 em 1970, para 6,0 em 1985). Os valores essenciais do SNS então criado e do sistema de saúde em geral eram: A salvaguarda incondicional da dignidade humana; O direito à protecção da saúde; A solidariedade entre todos os portugueses para garantir aquele direito; O reconhecimento da natureza social das prestações de saúde; O respeito pelos valores democráticos da cidadania. Como princípios orientadores do SNS, podem salientar-se: Universalidade na cobertura; Equidade no acesso e na utilização dos cuidados; Garantia da protecção financeira em relação aos custos que os cuidados de saúde podem acarretar; Possibilidade de maior liberdade de escolha dos prestadores e dos utilizadores, no quadro dos recursos disponíveis; Tese 83 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Sustentabilidade no desenvolvimento do sistema. O SNS ficou a cobrir potencialmente toda a população, passando os cidadãos a usufruir, de acordo com a Constituição, do direito à saúde, através de um serviço universal, compreensivo e gratuito, embora se tenham mantido os denominados subsistemas de saúde, permitindo a duplicação de benefícios e a utilização selectiva do sistema por parte de alguns cidadãos. Em síntese, podemos afirmar que embora a legislação publicada no início da década de setenta já tivesse constituído uma tentativa de reforma do sistema de saúde e de assistência, é só a partir de 1974 que coexistiram condições sociais e políticas, integradas no processo de democratização do país, que levaram à criação, em 1979, do SNS, permitindo, para além da cobertura da população, a criação da carreira médica de clínica geral e medicina familiar, entre outras. A Lei de Bases da Saúde só viria a ser posta em prática já durante a década de oitenta, dado que a regulação do sistema, bem como a sua implementação e consolidação, foram difíceis, complexas, incompletas e morosas. 3. AS REFORMAS DOS ANOS OITENTA A década de oitenta foi coincidente com uma subida menos acentuada dos gastos públicos com saúde (0,9 % do PIB), sendo que na parte final do Governo de maioria absoluta social-democrata os gastos privados com saúde, particularmente os gastos das famílias, tiveram um crescimento significativo (1,1% do PIB). Em 1981 foram criadas as primeiras barreiras no acesso aos serviços de saúde, através da introdução das denominadas taxas moderadoras, mas é também na década de oitenta que é introduzida uma outra barreira económica ao acesso, com a redução da comparticipação dos medicamentos pelo Estado. É ainda nesta década que as transferências de verbas do SNS para o sector privado têm um acréscimo significativo, atingindo em 1989 29,2% das despesas do SNS. Mas é também neste período que são avançadas as medidas indispensáveis para consolidar a mudança preconizada pela Constituição de 1976 e delineadas no final da década de setenta. É de referir, no entanto, que as contradições são constantes e que as decisões oscilam entre medidas caracterizadoras de um SNS naturalmente de natureza predominantemente pública, com medidas de revalorização do sector privado, concretizadas, por exemplo, nos meios complementares de diagnóstico e terapeûtica, sobretudo das tecnologias de ponta (ou, ainda, por exemplo, a diálise, cujo mercado é ainda hoje detido em mais de 90% pelo sector privado). Os anos oitenta conhecem ainda o fenómeno da descentralização/desconcentração da saúde, através da criação de dezoito Administrações Regionais, coincidentes com os distritos, as quais coordenavam principalmente a actividade dos centros de saúde mas que, tal como ainda hoje, tinham pouco poder de intervenção. 84 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Foi também neste período que os médicos passaram a trabalhar numa base de assalariamento e em tempo completo. A nova lei de Gestão Hospitalar, Decreto-lei 19/88, de 21 de Janeiro e Decreto Regulamentar 3/88, de 22 de Janeiro, vieram trazer novas regras à gestão dos hospitais e possibilitar a introdução de níveis intermédios de gestão, através da criação dos centros de custos e de responsabilidade, os quais, todavia, nunca vieram a ser devidamente implementados. 4. OS ANOS NOVENTA - NOVOS DESAFIOS PARA A COORDENAÇÃO REGIONAL O Sistema de Saúde português é do mesmo tipo do original SNS britânico, em que o Estado domina a estrutura e actua como proprietário, fornecedor, empregador e financiador dos serviços de Saúde. Até 1989 era missão do Estado promover a socialização da Medicina. A alteração Constitucional introduzida nesse ano veio estabelecer o conceito de saúde tendencialmente gratuita, traduzida na participação no pagamento dos cuidados. A revisão constitucional de 1989 e a publicação da Lei de Bases da Saúde de 1990, veio permitir que a prestação de cuidados pudesse ser assegurada, para além do Estado, por outros entes públicos ou privados (com ou sem fins lucrativos), garantindo ao Estado Português a possibilidade de celebrar acordos e convenções com entidades privadas para esse fim. Deu assim corpo ao “Sistema de Saúde Português”, constituído pelo SNS e por todas as entidades que desenvolviam a promoção, a prevenção e o tratamento na área da saúde e, ainda, todas as actividades privadas e profissionais liberais que acordassem com o SNS a prestação de alguma daquelas actividades à população. De assinalar que, segundo Reis, V. (1999), a cobertura em matéria de cuidados de saúde da população portuguesa não era nesta década muito diferente da que existia nas anteriores, designadamente na década de oitenta. 4.1 Um impulso para a descentralização Por seu turno, no Estatuto do SNS (1993) consagra-se, para além das formas que podem revestir o recurso a terceiras entidades mediante a celebração de acordos, convenções ou contratos, tendo em vista a prestação de cuidados de saúde, a possibilidade de celebração de contratos com outras entidades para a gestão de instituições públicas de saúde, procurando descentralizar e até desconcentrar a prestação. Nos termos da lei pode ainda o Estado celebrar contratos-programa entre ARS e autarquias locais, Misericórdias ou outras instituições particulares de solidariedade social, com vista a recuperar e a gerir instituições ou serviços prestadores de cuidados de saúde, procurando melhorar quer o acesso, quer a cobertura da população. Tese 85 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto 4.2 Os primeiros passos da reforma de 1996-1999 A estratégia para a saúde - Saúde um Compromisso (MS, 1998 a) e 1999), começada a definir pelo Ministério da Saúde em 1997, traduziu uma nova política de saúde cujos principais elementos são os que constam da Figura 5. Elementos da Política de Saúde Dimensões Estratégicas Instrumentos de Gestão Compromisso explícito para melhorar a saúde Governação horizontal para a saúde Sustentabilidade financeira Reforma da gestão dos Centros de Saúde e Hospitais Política para as profissões Contratualização Papel dos sectores social e privado Sistema da qualidade na saúde Remunerações associadas ao desempenho Fontes: “Saúde. Um Compromisso – A Estratégia de Saúde para o virar do Século (1998-2002)”, 1999, MS/DGS; “Saúde em Portugal. Uma estratégia para o virar do século (1998-2002)”, 1998, MS/DGS Figura 5 – A política de saúde no final dos anos noventa As principais linhas mestras contidas em “Saúde. Um Compromisso” são: A mudança centrada no cidadão e nas necessidades de saúde da população; A obtenção de ganhos em saúde como determinante principal da acção dos serviços de saúde; O envolvimento e funcionamento de todas as componentes da rede do sistema de saúde (público, privado e social). A estratégia de saúde pressupõe o envolvimento e a convergência de diversos sectores, social e económico e de toda a sociedade no espaço colectivo da intervenção em saúde, sendo dada especial atenção quer ao desenvolvimento de parcerias para a saúde e ao reforço da participação do cidadão e da comunidade, quer aos programas e projectos de cooperação inter-sectorial, inter-ministerial e extra-governamental. O desenvolvimento do SNS depende, em larga medida, da evolução das atitudes e comportamentos do cidadão, dos profissionais e dirigentes da saúde, dos agentes económicos, sociais, culturais e políticos, ou seja, dos diferentes actores (stakeholders) da sociedade portuguesa. 4.3 As Agências de Contratualização. O início da regulação? Institucionalizadas pelo Despacho Normativo n.º 46/97 (Anexo I), as agências de acompanhamento foram instaladas junto de cada ARS e tinham como missão fundamental desenvolver um processo negocial (contratualização) de atribuição de recursos às entidades prestadoras de cuidados, com base em critérios explícitos de acessibilidade, adequação e efectividade, partindo da avaliação das necessidades em saúde e cuidados de saúde. 86 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Para o efeito, as instituições (hospitais e centros de saúde) elaboravam o orçamento-programa, documento que estabelecia o equilíbrio entre as necessidades em saúde, a produção prevista e o desenvolvimento dos serviços e, ainda, a utilização dos recursos, cabendo à respectiva agência proceder ao acompanhamento daqueles orçamentos, bem como à avaliação sistemática da evolução do desempenho e dos resultados atingidos. Este instrumento, de natureza económico-financeira e relacional, veio permitir a introdução de alterações no processo de financiamento do sistema, possibilitando a afectação de recursos em função da produção real, ou seja, de introdução de critérios objectivos para distribuir, acompanhar e avaliar com rigor os resultados em saúde. Pretende-se, assim, estimular o desenvolvimento do desempenho das instituições, promovendo o apoio a projectos e iniciativas inovadoras com vista ao incremento da sua eficiência, mas exigindo-lhes responsabilidades na sua execução. Convém aqui referir que o financiamento dos serviços de saúde (hospitais públicos e centros de saúde), tradicionalmente era baseado no histórico de anos anteriores ajustado para a inflação. Nos hospitais, desde 1990 que foi introduzido o sistema de pagamento prospectivo46, baseado nos grupos de diagnóstico homogéneos (GDH), para os beneficiários dos subsistemas de saúde e de outras entidades públicas ou privadas, que utilizam os serviços do SNS (Escoval, 1997). A nível internacional os GDH têm vindo a ser considerados como uma das modalidades que melhor se adequam às finalidades do sistema, já que mantêm o elemento prospectivo e eliminam o efeito de superar o orçamento. No entanto, para alguns autores, nomeadamente Barnum et al (1995), o pagamento prospectivo parece não ser a forma mais adequada para pagar prestadores públicos de saúde, nem mesmo para os cuidados primários, pois pode induzir o crescimento das prestações de saúde. Para Portugal (Solon, 1990), foi elaborada uma proposta para alteração do sistema de pagamento aos hospitais, baseada numa combinação de duas opções (pagamento baseado nas necessidades globais47 e pagamento prospectivo), em detrimento de outras 46 Este sistema de pagamento caracteriza-se por: (i) conhecimento da quantidade e da qualidade produzida, isto é, definição de toda a informação que possibilite a caracterização da produção hospitalar e, (ii) definição do preço a pagar, relacionado com a medição da produção hospitalar, e que passa pela definição da unidade física de pagamento e pela sua enumeração. Uma das grandes dificuldades deste sistema está na definição dos preços de mercado, obrigando, geralmente, à fixação de preços políticos. Estes preços estão directamente relacionados com os custos e relacionam a produção com a despesa efectuada. 47 Esta modalidade de pagamento tem duas características principais: em primeiro lugar, o hospital recebe antecipadamente um montante global, baseado numa estimativa das suas necessidades, em segundo lugar, o pagamento é calculado com base numa previsão das necessidades em cuidados de saúde da área de atracção do hospital e não no número e tipo de doentes que estão, efectivamente, a receber esses cuidados. As necessidades podem ser estimadas de várias formas, como por exemplo, levar-se em linha de conta a população residente na área de atracção do hospital procedendo, depois, a um ajustamento em função da distribuição etária (os idosos necessitam, em média, de mais cuidados de saúde) ou em função da morbilidade e da mortalidade. A associação de riscos pode diminuir consideravelmente a incerteza agregada. Depois de terem sido estimadas as necessidades de cada área, o financiamento total é, então, distribuído entre hospitais, na proporção das respectivas necessidades, de forma que, a cada um, corresponderá um orçamento que se baseia na previsão da quantidade de Tese 87 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto modalidades de pagamento dos serviços, nomeadamente o modelo baseado no reembolso de custos razoáveis48. Esta proposta que assentava, não só nas razões anteriormente indicadas, como também no pressuposto de que iriam ser definidas as funções das Regiões de Saúde, como veio a acontecer, não chegou a ser implementada. Mas, a fórmula de pagamento proposta incluía uma componente que levava em conta as necessidades estimadas. Algumas das principais vantagens seriam as seguintes: • Uma maior integração entre os diversos tipos de serviços de saúde (cuidados primários, unidades de tratamento intermédias e hospitais), dado que estão tutelados pela mesma entidade; • Maiores incentivos para fazer corresponder tipos de serviços e unidades prestadoras de cuidados às necessidades globais das pessoas e não apenas a necessidades parciais (como, por exemplo, necessidades em cuidados hospitalares, separadamente das necessidades em cuidados preventivos); • Cada unidade prestadora de cuidados de saúde preocupar-se-ia em evitar desperdícios de recursos de outras unidades da mesma área, uma vez que esses desperdícios afectariam o seu próprio orçamento; • Melhorar-se-ia a continuidade de cuidados, dado que todas as unidades prestadoras de cuidados de saúde beneficiariam de uma maior articulação. Quando em 1996 foi iniciado o projecto para a criação de agências regionais (de acompanhamento) em cada Administração Regional de Saúde (ARS), visava-se modificar a maneira como os recursos eram distribuídos no SNS. Estas agências constituíam uma secção autónoma em cada região de saúde, que desempenhava a função de financiador de serviços clínicos e hospitalares. A primeira agência regional foi criada em 1997 e, actualmente, existem agências nas cinco regiões de saúde49. Uma das ideias chave era a de modificar o pagamento aos hospitais em geral e aos cuidados de saúde primários, passando de orçamentos retrospectivos para orçamentos prospectivos e introduzir uma relação directa com os custos de produção, ou seja, cuidados hospitalares necessários, no período considerado. Após ser fixado o orçamento e uma vez que este não é calculado com base no número e tipo de doentes que, de facto, recebem cuidados, o hospital deverá tomar as precauções necessárias para não o ultrapassar. Este método é preferível ao reembolso de custos razoáveis, na medida em que os hospitais são incentivados a evitar desperdícios de recursos. 48 O que distingue este modelo é o facto do hospital apresentar os custos reais com o tratamento dos doentes e estes serem reembolsados a custos considerados razoáveis (um problema associado a esta modalidade tem a ver com a definição do conceito do que é “razoável”). Os custos podem ser reembolsados doente a doente. Por exemplo, o hospital pode passar uma factura para cada doente e enviá-la à entidade financiadora, que o reembolsará na medida em que esses custos forem entendidos como razoáveis. Esta modalidade é muito utilizada quando os hospitais tratam doentes cobertos por esquemas de seguros privados, como é o caso da Alemanha, Austrália e Japão. Este foi também o principal método utilizado quer na Europa quer nos Estados Unidos. Neste último país não só para as companhias de seguros privadas, como também para os esquemas de seguros estatais – Medicare e Medicaid. No entanto, o maior sistema de seguro público americano, Medicare, alterou, em 1983, o seu método de financiamento para o pagamento prospectivo, dado que a experiência veio demonstrar que são poucos os incentivos para controlar o consumo de recursos. 49 Auditoria ao Serviço Nacional de Saúde (1999), Relatório Final do Tribunal de Contas. 88 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto orçamentos baseados na previsão dos custos reais em vez de orçamentos baseados no histórico e em que mais tarde se evoluiria para um modelo que levasse em consideração as necessidades em saúde. Foi em 1999 que, pela primeira vez, as negociações baseadas em contratos e orçamentos prospectivos envolveram todos os hospitais e ARS, bem como uma parte significativa dos centros de saúde. Propôs-se e foi aceite que no primeiro ano desta operação 3% do orçamento dos hospitais fosse afectado através do contrato-programa estabelecido, visando premiar o desempenho, sendo que aquela percentagem seria progressivamente aumentada, de ano para ano, dado que a maior parte do orçamento estava já hipotecado ao pagamento da produção (Ministério da Saúde, 1999 b). A agência negociaria com o conselho de administração (CA) de cada hospital e com a direcção de cada centro de saúde, os quais seriam responsáveis pelo cumprimento das condições contratuais. Aqueles órgãos dirigentes deveriam contratualizar, dentro das suas instituições, através de mecanismos de contratualização interna, com os responsáveis dos respectivos serviços, unidades, núcleos ou até programas e projectos. Os contratos poderiam ser negociados com instituições públicas ou privadas, embora inicialmente se privilegiasse a contratualização com as públicas. Esperava-se que este sistema aumentasse a acessibilidade a serviços mais eficientes e de melhor qualidade. As agências não chegaram a funcionar por um período de tempo suficiente, havendo considerável incerteza relativamente ao seu impacto no SNS. O seu poder foi bastante limitado, dado que não lhes foi possível introduzir, na qualidade de financiadores, mecanismos que permeassem ou penalizassem os bons e os maus desempenhos. Contudo, espera-se que a perda de garantia do pagamento aos hospitais e restantes serviços de saúde, com base no histórico e a introdução do pagamento relacionado com a produtividade, venham a aumentar a preocupação com os custos e a incentivar a eficiência (WHO, 1999). 4.4 A Contratualização: um instrumento A diferenciação e heterogeneidade inerentes à complexidade dos serviços envolvidos e os efeitos da competição de quasi-mercado torna improvável que haja um único padrão consistente no modo de contratualização, já que o seu processo é apenas uma parte de um conjunto muito mais amplo de relações. Por isso, a contratualização tem que ser analisada no contexto em que se insere e tem que ser compreendida não como um conjunto de documentos formais, para trocas económicas entre um decisor e um agente, mas como acordos construídos socialmente, negociados e discutidos, introduzidos num ambiente de elevada complexidade e constante mudança organizacional. A contratualização requer, necessariamente, níveis significativos de confiança. Isto é verdade nas situações em que as relações de longo prazo são consideradas cruciais para o intercâmbio, em que a precisão absoluta da especificação e da monitorização não é exequível, e a interdependência é elevada. A contingência, a incerteza e a falta de informação são problemas fundamentais, que obrigam os financiadores a desenvolver relações de trabalho que minimizem os riscos de exploração oportunista por parte dos Tese 89 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto fornecedores, mas que também salvaguardem a colaboração, a lealdade e a reciprocidade. Estes aspectos gerais são tão ou mais relevantes quando aplicados aos serviços de saúde, onde a confiança a variados níveis é um pré-requisito, face à sua organização em grupos e em rede. A “pouca ou muita confiança” nas relações de emprego pode ser extrapolada para a contratualização: nas relações com elevado nível de confiança, as partes têm valores e objectivos semelhantes, sentem-se obrigadas a apoiarem-se mutuamente, têm perspectivas de longo prazo, partilham livremente a informação e não consideram que os problemas se devam a má vontade. Nas relações de pouca confiança, pelo contrário, as partes têm objectivos e interesses diferentes, esperam constantemente trocas equilibradas, calculam cuidadosamente os custos e benefícios, protegem a informação, minimizam a dependência da outra parte e atribuem os erros a má fé ou incompetência que conduz a sanções. A teoria da contratualização ainda não está completamente desenvolvida. Existem questões por resolver (ex.: risco moral, selecção adversa, contratos incompletos, ausência de contratos a longo prazo, etc.), o que toma difícil prever, por enquanto, os seus efeitos reais (Flynn, R. et al 1997, pp. 9). Na verdade, a contratualização é apenas uma parte de um conjunto de intervenções necessárias e inadiáveis na reforma do SNS. Segundo WHO (2003), a contratualização não é um fim em si mesmo, mas um instrumento. 5. ESTRUTURA E ACTORES CHAVE Para a observação contexto (período regional e local), interacções entre antagonismo). 5.1 dos actores intervenientes no sistema torna-se necessário definir o de tempo e comportamento face à realidade europeia, nacional, identificar os actores e o seu grau de influência e analisar as eles (convergência, cooperação pontual, desacordo ocasional e Matriz estrutural A dificuldade em pensar a reforma da saúde parece prender-se com a crença no carácter racional dos actores. O planeamento integrado desde há cerca de vinte anos tem vindo a perder importância, ganhando preponderância a definição de estratégias e objectivos claros e responsabilizantes. Mas as estratégias em saúde parecem ser mais uma resultante do compromisso sobre a forma como os actores se vão comportar. Segundo Sakellarides (1999), os seis principais pilares para gerir a mudança são: (i) a centralidade do cidadão; (ii) o descongelamento das organizações (flexibilizar, experimentar e autonomizar); (iii) a coesão da gestão; (iv) os resultados (objectivos); (v) o clima (comunicar) e, (vi) o investimento no conhecimento. Convém, no entanto, ter presente que o fulcro estratégico do sistema de saúde em Portugal tem sido colocado nos actores sociais e no sistema, necessitando ser transferido para o cidadão. 90 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Existem algumas questões introdutórias na representação da saúde e que se podem enquadrar da seguinte forma: 5.2 1. Centrada no sistema: inputs – processos – outputs – outcomes; 2. Centrada nos actores sociais: poder/autoridade/agenda/actores; 3. Centrada no cidadão, em que podemos vê-lo como: (i) doente dependente; (ii) cliente/pagador; (iii) consumidor/utilizador; (iv) co-produtor; (v) responsável pela sua saúde e controlador da mesma e, (vi) cidadão, elemento do contrato social. Identificação dos actores chave Os principais actores chave (individuais e organizacionais) que foram identificados constam dos Anexo III e IV onde, para além da identificação e do cargo, estão identificadas as organizações que representam na área social os cidadãos, os doentes e os profissionais e, na área económica, a indústria, o comércio, etc.. São muitos e variados e têm de ser levados em linha de conta em todo o pensamento que está subjacente ao desenvolvimento de estratégias para o sector, já que o reconhecimento da pluralidade das forças e dos actores que compõem o sistema interagem entre si e o vão modificando, permitindo concluir que os métodos e as ferramentas para alterar a realidade não sejam já tanto uma construção exterior a essa realidade, resultado da expertise dos gestores, mas antes os produtos de várias combinações e compromissos acordados e assumidos pelos diversos actores em negociações ou jogos de estratégia que têm como finalidade ganhos de influência e de poder. Na saúde, a complexidade do meio envolvente e do próprio sistema organizacional imprimem uma dinâmica permanente de mudança que impõe uma visão estratégica da gestão. Só desta forma o sentido dessa mudança será tal que permitirá o aprofundamento das políticas sociais. O processo de mudança envolve não só ameaças mas também oportunidades. Para Thiétart (1984), estes constrangimentos e ameaças não são predominantemente de natureza económica, mas fazem antes parte das dimensões humana (político-cultural) e organizacional (burocrática) do processo de formulação da estratégia. O equilíbrio mútuo dos factores condicionantes ou a sua ruptura, com o predomínio de uma das partes, condicionam o sentido e o ritmo da evolução do sistema de saúde português porque lhe impõem, à priori, limites de enquadramento. Segundo Sakellarides (1999), é constrangedora a sub-cultura de carácter normativo, burocrático e autoritário que concebe um sistema de saúde centralizado e uniforme, uma gestão de comando e controlo, uma organização rígida, conservadora, estática e defensiva face a novos desafios, frustrando sistematicamente todas as expectativas de mudança. Tese 91 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Para este autor, constrangedora é ainda a sub-cultura que é beneficiária da ausência de responsabilização, que colhe benefícios individuais excessivos face aos limitados investimentos e responsabilidades assumidas, que opera segundo critérios tácticos de oportunidade e adopta a linguagem do mercado e da competitividade, mas só muito superficialmente adere aos princípios de competência e qualidade que lhes estão subjacentes. São sub-culturas complementares e interdependentes, cujo denominador comum é a desresponsabilização e que, quando efectivamente convergem, configuram uma assombrosa trama de resistência ao desenvolvimento. Há, no entanto, factores de facilitação, aos quais corresponde uma cultura de objectivação, participação e desenvolvimento em saúde, centrada nas necessidades e preferências do cidadão, que reconhece como principais veículos de superação de tantos problemas o desejo e a capacidade de inovar na procura de respostas apropriadas para as complexas questões da saúde. 5.3 Oportunidades e obstáculos Os sistemas de saúde não se comportam como compartimentos estanques nas sociedades onde se inserem. Pelo contrário são fortemente influenciados, no curto e no longo prazo, pelo contexto político, cultural, económico, científico e tecnológico. Constituem oportunidades o ambiente político, que favorece o imperativo de uma Estratégia Nacional que combata a ineficiência do Sistema de Saúde, o ambiente mediático que evidencia as preocupações com essa mesma ineficiência e a falta de participação dos cidadãos no seu controlo, a par de um interesse crescente pelos problemas de saúde e pelos sucessos da medicina moderna. É previsível que os múltiplos aspectos que agora confluem fortemente nos processos de construção Europeia em curso venham a ter, já a relativamente curto prazo, uma influência visível e crescente sobre os sistemas de saúde. Dado o carácter essencialmente político do calendário da construção Europeia (nomeadamente na introdução do Euro, nas condições do pacto de estabilidade, e na abertura a Leste) é evidente o défice de estudos suficientemente aprofundados sobre as implicações deste calendário político nos sistemas de protecção social dos países membros, principalmente daqueles que são menos desenvolvidos (como é o caso de Portugal e outros países do sul da Europa). Pode dizer-se que a situação é hoje já muito complexa e introduz importantes elementos de incerteza, que é necessário, pelo menos parcialmente, superar. Neste contexto é possível identificar um conjunto relativamente vasto de áreas de interesse e acontecimentos recentes que é importante conhecer mais aprofundadamente. Tendo em vista os múltiplos aspectos acima referidos há que prestar uma atenção muito especial ao que parecem ser já consideráveis e crescentes assimetrias no espaço ibérico da saúde, podendo argumentar-se que é já difícil formular e implementar políticas de saúde em Portugal sem tomar em consideração o contexto Europeu da saúde e o espaço Ibérico. 92 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Os obstáculos mais imediatos são colocados pela necessidade absoluta do empenhamento profissional e de uma comunicação efectiva entre os diversos grupos profissionais envolvidos na prestação de cuidados, num ambiente em que predomina o corporativismo, a desmotivação e uma permanente conflitualidade interdisciplinar. Por exemplo, no que se refere aos actores externos do sistema e no actual contexto em que existem elevadas dívidas do SNS, os representantes farmacêuticos não parecem ter razões para aderir a um programa que poderá implicar um acréscimo de investimento da sua parte (garantia de fornecimento de produtos com comparticipação directa), sem contrapartidas aparentes. Por outro lado, o baixo nível médio de educação da população é o último e, eventualmente, o mais difícil dos obstáculos, face ao curto espaço de tempo estabelecido para se atingirem as metas estabelecidas para a implementação duma estratégia. 5.4 Estratégias O processo de definição e implementação duma estratégia para a saúde foi na última parte dos anos noventa uma preocupação, ou melhor dizendo, um compromisso assumido com o objectivo de traçar um rumo que norteasse o desenvolvimento dos serviços de saúde na busca das melhores respostas para os cidadãos. Foi decidido politicamente elaborar, pôr à discussão e adoptar uma estratégia, como um quadro de referência para o estabelecimento de metas de saúde a nível local, assim como para as iniciativas concretas que as permitissem realizar. A estratégia de saúde ao definir metas concretas que explicitassem o compromisso da saúde, constituiu um importante instrumento de informação, comunicação e participação e procurou promover o investimento em saúde, identificando formas viáveis para aproximar os objectivos de desenvolvimento dos serviços de saúde com melhorias expressas nas metas de saúde, visando principalmente: mobilizar os órgãos de comunicação social para acções diversificadas de promoção da política de saúde, utilizando técnicas inovadoras que assegurassem audiências significativas e informação eficaz; promover a visibilidade das sociedades científicas e das organizações profissionais através da sua participação específica nos Programas de Saúde, particularmente em acções de formação; criar sistemas de incentivos para as unidades prestadoras que conseguissem melhorar os resultados; estabelecer contrapartidas (prazos de pagamento, benefícios fiscais, etc.) para garantir a adesão dos principais actores do sector; criar um programa de controlo da qualidade, em que estivessem envolvidas as associações de doentes e as entidades especializadas em cada uma das matérias. Tese 93 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto A estratégia da saúde procurava ser progressivamente um projecto de toda a sociedade portuguesa, liderado pelo Ministério da Saúde e assentando num conjunto de valores e princípios largamente reconhecidos, quer em termos nacionais quer internacionais, nomeadamente no contexto europeu. 6. PORTUGAL NO CONTEXTO NACIONAL E INTERNACIONAL Parece ser um dado adquirido que está realizado, quase até à exaustão, o diagnóstico da situação do sector da saúde. Contudo, afirma-se que a solução para muitos dos problemas inventariados só pode ser conseguida através de mudanças operadas no status, sendo que estas medidas implicam a alteração de situações estáveis, desse modo atingindo os interesses estabelecidos 50. Surge assim, em toda a sua clareza, a necessidade de, no processo da reformulação da estratégia, se ultrapassarem etapas de natureza política e organizacional que tornem possível a evolução do sistema para dispositivos que correspondam de maneira mais adequada às necessidades dos cidadãos, cujos direitos não devem ser ultrapassados por quaisquer interesses ou privilégios individuais ou de grupo. É de levar em linha de conta também as projecções conhecidas para o problema do envelhecimento em Portugal (Gráfico I), pois segundo a ONU (1998), continua a observar-se a redução do peso relativo da população jovem, que apresenta o valor de 15,9% nos 0-14 anos contra 16,0% no ano anterior e a importância relativa da população em idade activa (15-64 anos) de 67,5% (67,7% em 2000). Gráfico I – Perspectiva de evolução do envelhecimento em Portugal (1995 – 2050) 3000000 2500000 2000000 65 - 74 anos 1500000 75 e mais anos 1000000 500000 0 1995 2030 2050 Fonte: United Nations, World Population Trends: The 1998 Revision 50 Todos os cidadãos deveriam ter acesso ao Relatório do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano). Está disponível na Internet em www.undp.org/hdr2003/. Na pág. 237: Portugal, em 175 países, aparece no 23º lugar. Isso corresponde a um “desenvolvimento humano elevado”. Medem-se aqui, entre outros: a esperança de vida à nascença (75,9 anos); taxa de alfabetização de adultos (92,5%); taxa de escolarização bruta combinada do primário, secundário e superior (93%); PIB per capita (18 150 USD - dólares americanos). Mas somos um dos piores países da União Europeia - só a Grécia está depois de nós, em 24º lugar. 94 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Sabe-se ainda que a projecção da esperança de vida à nascença em Portugal, para ambos os sexos, será ente 2045 e 2050 de 81 anos e para os anos 2295-2300 de 95,5 anos. Saliente-se, igualmente, o aumento da proporção da população idosa (65 e mais anos de idade), que nos últimos quarenta anos mais do que duplicou, passando de 8,0% para 15,6% (1960-2000). Em síntese, o fenómeno do envelhecimento traduziu-se por um decréscimo de 35,1% na população jovem, isto é, com idades compreendidas entre os 0 e os 14 anos e um incremento de 114,4% na população idosa. Este facto é mais evidente entre as mulheres, tendo a importância relativa aumentado nesses mesmos anos, traduzindo a sua maior longevidade. A tendência crescente do índice de envelhecimento fica a dever-se ao aumento da esperança de vida, com o consequente crescimento da percentagem de população idosa e o declínio da percentagem de jovens na população em geral, resultante dos diminutos níveis de natalidade. O índice de dependência total, ou seja, o número de jovens e de idosos em cada 100 indivíduos em idade activa (15-64 anos), situa-se em 48,1 em 2001. O índice de dependência de jovens baixou de 23,7 para 23,6 indivíduos, enquanto o ratio de idosos na população potencialmente activa aumentou de 24,2 para 24,5 indivíduos em 2001. O índice de envelhecimento é bem revelador da evolução demográfica recente: aumentou de 102 para 104 idosos por cada 100 jovens (2000-2001). O Quadro 11 resume o impacto do ajuste macroeconómico em alguns dos indicadores do Sistema de Saúde Português entre 1970 e 2000. Quadro 11 – Caracterização do Sistema de Saúde Português (1970 – 2000) Indicadores N.º camas por médico N.º camas por enfermeiro e auxiliar de enfermagem N.º de camas disponíveis (1 000 habitantes) N.º de camas para agudos (1 000 habitantes) Demora média Pessoal médico (1 000 habitantes) Pessoal de enfermagem (1 000 habitantes) Clínicos Gerais (1 000 habitantes) Instituições com hospitalização Centros de Saúde Extensões ou postos de atendimento sem internamento Despesas totais em Saúde (% PIB) Despesa pública em saúde (% PIB) Despesa privada em saúde (% PIB) 1970 2000 ∆% 8,3 5,5 6,3 4,2 15,3 0,92 1,5 0,73 582 2064 2 246 2,6 1,6 1,0 2,31 (72,3) (74,5) (38,0) (21,4) (52,3) 257,6 115,7 (33,3) (59,3) 36,9 (18,8) 215,4 262.5 140,0 1,4 3,9 3,32 7,31 3,2 3,3 0,5 237 282 1 8241 8,2 5.8 2.4 Fontes: INE e Estatísticas da Saúde (DEPS e DGS). Notas: 1 1999; 2 1998; 3 1982, 4 1975 Segundo OECD Health Data (2002 b), o aumento anual em gastos per capita em cuidados de saúde nos países abrangidos ultrapassou na última década o crescimento económico geral per capita em cerca de 50% (3.3% vs 2.2%). Em 2000, os países da Tese 95 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto OCDE gastaram em cuidados de saúde uma percentagem adicional de 0,8% do seu PIB em relação a 1990, elevando a média não ponderada da OCDE para 0.8%. Uma das causas do aumento dos gastos está relacionada com a introdução de novas tecnologias da saúde, nomeadamente medicamentos (Gráfico II). Gráfico II – Evolução do consumo de medicamentos na década de noventa 20.000 18 . 0 0 0 16 . 0 0 0 14 . 0 0 0 12 . 0 0 0 10 . 0 0 0 17 7 9 1 8.000 12738 6.000 10 3 15 4.000 2.000 4223 4506 4 9 11 6 13 4 6483 6865 0 Marcas For m a s A p r e se nt a çõe s f a r m a c êu t i c a s 19 9 0 19 9 5 19 9 9 Fonte: INE - Estatísticas de Saúde (1999). Contribuem para esse aumento principalmente as novas apresentações farmacêuticas e os novos tratamentos para algumas doenças, nomeadamente o VIH/SIDA e neoplasias. De referir ainda o diminuto peso dos genéricos no mercado de medicamentos em Portugal, embora o actual executivo tenha feito dessa área uma das suas apostas da política de saúde. Os EUA gastaram com a saúde a parcela mais elevada do PIB, tendo passado de 11,9% do PIB em 1990 para 13% em 2000. A seguir aos EUA encontram-se a Suécia, com 10,7% e a Alemanha com 10,6%. Na outra extremidade da escala, dentro dos países da OCDE, posicionam-se a Coreia, Luxemburgo, México e a República Eslovaca, os quais, em 2000, gastaram 5,6% dos respectivos PIB com a saúde. Os EUA continuam igualmente a gastar muito mais em saúde numa base per capita do que qualquer outro país (mais de 4 600 Euros per capita, ou seja mais de duas vezes a média dos países da OCDE, que é de quase 2 000 Euros), apesar de 14% da população não ter qualquer tipo de cobertura. Acresce ainda que só cerca de 24,2% tem seguros públicos de saúde, mas os gastos públicos per capita nos EUA são igualmente elevados, situando-se na terceira posição dos países da OCDE (Docteur, 2003). Portugal, com um pouco menos de 1500 Euros per capita em 2000, encontra-se logo a seguir à Espanha, ambos abaixo da média da OCDE. Os países da UE15 com maior percentagem do PIB gasto com a saúde em 2000 foram a Alemanha, a Dinamarca e a França, sendo os de menor percentagem a Grécia e Portugal. 96 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto A nível da OCDE a Islândia é o país com mais gastos públicos per capita em 2000, seguida da Alemanha. As tecnologias médicas modernas constituem um dos principais determinantes da subida dos custos com a saúde. Os dados de saúde da OCDE mostram as tendências na difusão das tecnologias médicas nos últimos vinte anos. Houve um crescimento rápido na utilização de procedimentos tecnológicos intensivos para tratar doenças e problemas de saúde importantes em quase todos os países. O número de intervenções cirúrgicas, como por exemplo o bypass arterial coronário (CABG) e a angioplastia coronária, aumentaram rapidamente nos anos noventa, particularmente em países que começaram com baixos níveis de utilização destes métodos (p. ex. a Austrália, Dinamarca, Hungria e Nova Zelândia no caso da angioplastia coronária). No entanto, no fim dos anos noventa, as taxas de CABG e angioplastia coronária nos Estados Unidos eram mais do dobro das dos países da OCDE onde eram mais elevadas. Estas diferenças na frequência de procedimentos médicos dispendiosos ajudam a explicar parte do diferencial nos gastos globais em saúde entre os Estados Unidos e os outros países. Mas há mais questões em saúde para além dos gastos que determina. Avaliar o impacto dos gastos em saúde e o uso de tecnologias médicas é uma tarefa complexa, que envolve indicadores gerais da saúde das populações, tais como a esperança de vida à nascença, a mortalidade infantil e os resultados clínicos, conforme se pode analisar no Quadro 12, o que vem confirmar que há melhoria significativa no decurso das três décadas em análise, quanto à evolução de alguns indicadores de resultados em saúde. Quadro 12 – Alguns indicadores de Saúde em Portugal (1970 - 2000) 1970 2000 ∆ Esperança de vida à nascença (M) 70,8 79,11 8,3 Esperança de vida à nascença (H) 64,2 72,01 7,8 Anos de vida potencialmente perdidos (M) 12 822,0 3 312 9 510 Anos de vida potencialmente perdidos (H) 18 676,8 7 516 11 160,8 Mortalidade infantil (‰) 55,5 5,5 50 Mortalidade perinatal 38,9 8,22 30,7 % de partos em estabelecimentos de saúde com internamento 37,5 99,31 61,8 Indicadores Fontes: INE e OECD Health Data (2002 b). Notas: 11999; 21996 O primeiro conjunto de resultados não é exclusivamente influenciado pelo uso de tecnologias modernas, uma vez que muitos outros factores de risco sociais e ambientais têm um papel relevante. Por exemplo, apesar dos avultados gastos em saúde nos Estados Unidos, a esperança de vida à nascença e a mortalidade infantil dos Americanos é comparável à média da OCDE e abaixo da mediana, o que significa que mais de metade dos países do OCDE se classificam melhor nestas medidas do que os Estados Unidos. Tese 97 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto Estes resultados na saúde das populações podem ser parcialmente associados aos factores de risco a que diferentes populações estão expostas. Enquanto os Estados Unidos obtiveram um grande sucesso na redução de consumo de tabaco, tendo as taxas de consumo diário mais baixas dentro dos países da OCDE a seguir à Suécia, a parcela da população sofrendo de obesidade é a mais alta. A obesidade nos países da OCDE tem vindo a aumentar continuamente. Em Portugal, apesar das taxas de consumo de tabaco serem das mais baixas (4º lugar, logo a seguir ao Canadá), foi o único país da OCDE em que se verificou um aumento de consumo na década (19 para 20,5%). No mesmo período, países como a Dinamarca conseguiram uma considerável redução (de 44,5 para 30,5%) passando do consumo mais elevado para a 7ª posição. 7. A EVOLUÇÃO DO SISTEMA DE SAÚDE À LUZ DE UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA É importante conhecer a evolução do sistema de saúde português num passado recente, período de uma grande riqueza de acontecimentos que nos ajudam a compreender melhor os factores que mais concorreram para o seu desenvolvimento e configuração actual. Alguns dos factos mais relevantes para os quais se deve chamar a atenção, é a situação no início da década de setenta, quando se começaram a esboçar no sistema de saúde importantes modificações que convergiram, em 1979, na criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS): - indicadores socio-económicos e de saúde muito desfavoráveis no contexto da Europa Ocidental de então (56/00 de mortalidade infantil e 37/00 de mortalidade perinatal, em 1970); - diversidade de serviços de saúde – grandes hospitais do Estado, uma vasta rede de hospitais das misericórdias, postos médicos dos serviços médico-sociais da previdência; serviços de saúde pública (centros de saúde a partir de 1971); médicos municipais; serviços especializados para a saúde materno-infantil, tuberculose e doenças psiquiátricas; sector privado particularmente desenvolvido na área do ambulatório; - baixa capacidade para financiar os serviços públicos da saúde (a despesa com saúde era de 2,6% do PIB em 1970); - profissões da saúde, principalmente médicos, que acumulavam diferentes ocupações de forma a conseguirem um nível de remuneração e de satisfação profissional aceitável. De 1971 a 1985 o país atravessou um período de grandes transformações internas e externas, em condições particularmente desfavoráveis de subdesenvolvimento. A reforma do sistema de saúde e da assistência, legislada em 1971, “a reforma de Gonçalves Ferreira”, que incluiu o estabelecimento dos “centros de saúde”, constituiu já um esboço de um verdadeiro SNS. Foi no entanto a partir de 1974 que se criaram as condições políticas e sociais para que este fosse adoptado, em 1979: 98 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto - assistiu-se à transição de um financiamento parcialmente contributivo (contribuições para a Previdência) para um financiamento baseado no orçamento geral do estado. Este facto criou logo, desde as suas origens, um importante constrangimento no financiamento do SNS; - tratava-se de fazer convergir num sistema coerente as várias estruturas de prestação de cuidados de saúde existentes. Isso nunca foi totalmente conseguido; - houve um aumento significativo da formação de médicos em Portugal (209% entre 1970 e 1985), o que permitiu, primeiro, o estabelecimento do “Serviço Médico na Periferia” e, logo depois, a criação da carreira de clínica geral e medicina familiar; - acresceu a implementação da nova carreira de clínica geral em circunstância não muito favoráveis, dada a sua inserção nas estruturas administrativas dos SMS, sem qualquer investimento na transformação destas, o que teve consequências negativas na eficiência dos cuidados de saúde primários. De salientar ainda que: - uma parte significativa do associativismo médico opôs-se publicamente ao SNS, propondo como alternativa um sistema de saúde baseado na “medicina convencionada”, ou seja no financiamento público da medicina privada. Esta situação continua a ter importantes implicações para o sistema de saúde português; - se mantiveram ou estabeleceram fora do SNS subsistemas de saúde, como a ADSE; - a adopção do SNS em Portugal não foi um acontecimento isolado integra-se num movimento mais amplo que contempla outros países do sul da Europa: Itália (1978), Portugal (1979), Grécia (1983), Espanha (1986). Estas circunstâncias fizeram com que o SNS tenha sofrido, desde o seu início, de um conjunto significativo de debilidades: - uma base financeira frágil, com ausência de inovação nos modelos de organização e gestão, quando ainda se começavam a expandir as suas infra-estruturas; - um estado de coexistência assumida entre o financiamento público do SNS e o da “medicina convencionada” e, simultaneamente, uma grande falta de transparência entre os interesses públicos e privados; - dificuldades no acesso e baixa eficiência dos serviços públicos de saúde, que resultam dos factores acima indicados. Segundo o OPSS (2002), a criação do SNS fez parte da democratização política e social do país, permitindo, num período de tempo relativamente curto, uma notável cobertura da população portuguesa em serviços de saúde. Ao mesmo tempo tornou possível uma estrutura de carreiras para as profissões da saúde. As limitações associadas ao contexto Tese 99 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto económico, social e cultural em que o SNS foi criado e onde se desenvolveu, bem como a incapacidade do sistema político e do Estado para superaram estas debilidades iniciais, marcaram fortemente a sua posterior evolução. A partir de 1985 e até 1995 o desafio centrou-se na qualificação do sistema de saúde português. Com a adesão em 1986 à CEE, actualmente UE, a aposta foi a mudança da fronteira público/privado a favor do privado, através da Lei de Bases da Saúde de 1990, sem prejuízo de medidas destinadas a melhorar o SNS. De reter, ao nível do contexto interno e externo, que as crises económicas dos anos setenta, relacionadas principalmente com o aumento súbito do preço da energia, marcaram o fim de um período de considerável crescimento económico e uma rápida expansão dos sistemas de protecção social na Europa. Durante a década de oitenta a filosofia política de Reagan e Thatcher marcaram uma época e os países do sul da Europa, saídos há pouco tempo de regimes autoritários – Grécia, Portugal e Espanha – entram na CEE; no final da década caiu o “muro de Berlim”. No sector da saúde faz-se sentir um movimento de opinião a favor do fortalecimento dos mecanismos de mercado nos sistemas de saúde Europeus: defende-se um aumento do financiamento privado; aponta-se para a necessidade de estabelecer uma clara separação entre o “financiador” e o “prestador” de cuidados de saúde; apoia-se a introdução de mecanismos de competição e de mercado no sistema prestador e promove-se um maior peso do sector privado na prestação de cuidados de saúde. Sugere-se que uma das principais causas da ineficiência dos sistemas de saúde está no peso excessivo do Estado na prestação de cuidados de saúde. Pela primeira vez as teses de um académico norte-americano, Enthoven, influenciam explicitamente as propostas de reforma do SNS inglês; na Holanda, Dekker, um executivo da “Phillips”, lidera uma comissão que estuda a introdução de instrumentos de competição e mercado no sistema de saúde. Em Espanha um político de prestígio, Abril Martorell, preside a uma comissão que propõe novas orientações para o sistema de saúde de Espanha. O Banco Mundial torna-se influente nas reformas dos sistemas de saúde do leste da Europa. Portugal acabava de se integrar na CEE. Vive um período de crescimento económico e de estabilidade política. Os governos passaram a ser de legislatura com apoio maioritário no Parlamento. Em 1990 é aprovada uma Lei de Bases de Saúde que se insere, genericamente, na matriz filosófica acima referida. No entanto, no período de tempo a que corresponde este ciclo político, há que distinguir três fases com orientações e prioridades distintas: - 100 na primeira, de 1985 a 1990, a ênfase foi posta na separação mais clara entre os sectores público e privado. Procuraram melhorar-se as remunerações e condições de trabalho dos profissionais de saúde no sector público. Portugal começava a sair da situação própria dos países menos desenvolvidos, caracterizados por pluri-emprego associado a remunerações pouco mais que simbólicas. As resistências a esta clarificação e a forma como o processo foi gerido deram origem a um clima de elevada conflitualidade, particularmente durante o ano de 1989; Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto - na segunda destas fases, de 1990 a 1993, uma nova equipa ministerial procura a pacificação da conflitualidade gerada no período anterior, através da confirmação dos benefícios previstos para as carreiras profissionais, mas com o abandono das principais contrapartidas - uma separação mais clara entre o público e o privado e uma melhoria da gestão dos recursos humanos do SNS. A agenda predominante passou então a ser o desenho e a implementação de um “seguro alternativo” de saúde; As disposições regulamentares da Lei de Bases de 1990, como o ”Estatuto do SNS”, acabam por ser aprovadas só em 1993; - na última e mais curta fase deste ciclo, de 1993 a 1995, a ideia do seguro alternativo de saúde foi completamente abandonada. A agenda política passou a centrar-se na possibilidade de aumentar o financiamento privado no sistema de saúde e na ideia da gestão privada das unidades públicas de saúde. Aprova-se, muito próximo do fim do ciclo, a experiência da gestão privada do Hospital Fernando da Fonseca. O receituário do SNS torna-se universalmente disponível. As listas de espera cirúrgicas nos hospitais portugueses começam a assumir proporções preocupantes, surgindo segundo Alves et al (1996), o programa de recuperação das listas de espera (PERLE). Durante este ciclo, numa linha de continuidade com o período que o antecedeu, há um importante investimento nas infra-estruturas do SNS (centros de saúde e hospitais). No entanto, na área dos recursos humanos a falta de uma política sustentada por uma análise prospectiva da evolução das profissões da saúde e em medidas daí decorrentes, tem tido sérias consequências para o desenvolvimento do sistema de saúde. Apesar de importantes contribuições para a arquitectura do SNS, como as Regiões de Saúde e as “unidades funcionais de saúde”, os princípios que informam a Lei de Bases da Saúde e os dispositivos normativos que a veicularam tiveram pouco impacto sobre o funcionamento dos serviços de saúde portugueses e não influenciaram os pilares que sustentavam as suas disfunções. O sistema de saúde continua a expandir-se com as vantagens daí decorrentes para aqueles que dele beneficiam, mas sem contudo corresponder ao desafio crítico da sua qualificação: os problemas do acesso aos cuidados de saúde (consultas, cirurgias) começam a tornar-se cada vez mais evidentes, a desadequação do modelo de administração pública tradicional às necessidades da saúde é já evidente e, o entrelaçar entre interesses públicos e privados agrava-se. De 1996 a 1999, em Portugal a preocupação política esteve centrada na reforma do SNS (SNS 21), sem perda da melhoria da articulação público/privado. No contexto Europeu, ao período liberalizante dos anos oitenta e princípios dos anos noventa, sucede-se um outro, onde uma das ideias predominantes é a da “reinvenção da governação”, ou seja, dar maior flexibilidade e capacidade de inovação à administração pública tornando-a mais empresarial, recentrar os serviços públicos no cidadão cliente e passar de uma gestão dos recursos para uma gestão de resultados: - reconhecem-se as disfunções dos aparelhos que gerem os regimes de bem-estar, assim como a necessidade de reformulá-los profundamente (mais atenção às pessoas e menos às organizações), sem pôr em causa os seus Tese 101 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto princípios fundamentais, nem confiar excessivamente nas virtualidades do mercado em domínios como a saúde; - dá-se mais importância às especificidades da saúde – o sistema de saúde não pode ser gerido nem como uma descomunal burocracia (apesar do Estado ter um lugar muito importante a desempenhar), nem como um negócio (apesar de conter domínios abertos à competição e ao mercado); - as teses de Enthoven em relação ao SNS inglês, as conclusões dos relatórios Dekker (Holanda) e Martorell (Espanha), foram só parcialmente implementadas e por essa e, possivelmente outras razões, não tiveram o impacto esperado; - permanecem alguns dos dispositivos ensaiados durante a década de oitenta e princípio da de noventa (uma melhor distinção entre o financiador e o prestador, contratualização), mas agora num contexto diferente; - emerge uma atitude mais aberta aos dados empíricos, às observações e à experimentação e uma maior desconfiança em relação a posições dogmáticas e preconceituosas. Começam a reconhecer-se os desafios muito particulares que a gestão de “sistemas sociais complexos” colocam às sociedades actuais. De acordo com o OPSS (2002 e 2003), em Portugal foi em finais de 1995 que se iniciou um novo ciclo político que se caracterizou por menores condições de estabilidade que o anterior (falta de uma maioria política parlamentar). Apesar de mais curto que o anterior, neste ciclo político também se podem distinguir três períodos distintos. No primeiro, de 1995 a 1999, a saúde não é considerada como uma prioridade política da legislatura. Esta prioridade foi atribuída à educação e ao combate à pobreza (solidariedade e segurança social). O mandato do Ministério da Saúde (MS) pareceu ser o de tomar as medidas necessárias para melhorar progressivamente a situação da saúde e preparar uma “reforma da saúde” para ser implementada em condições políticas mais favoráveis (nova legislatura, com eventual apoio parlamentar maioritário). Foi criado o Conselho de Reflexão sobre a Saúde (CRES), em fins de 1995 e que apresentou a sua análise e propostas definitivas em 1998 (CRES, 1998). Neste contexto, o projecto de reforma “SNS 21”, que incorpora importantes contribuições de relatório do CRES, desenvolveu-se numa lógica de elaboração e negociação detalhada com um início de implementação difícil, aguardando condições de apoio político e financiamento mais favoráveis para uma acção mais intensa. Um dos aspectos mais importantes da agenda política durante este período foi o de conjugar o binómio “responsabilização na gestão/flexibilização das organizações”, com a introdução progressiva de remunerações associadas ao desempenho (começando pelo RRE - Regímen Remuneratório Experimental para a clínica geral) e com a reactivação do princípio das incompatibilidades na celebração das convenções de prestação de cuidados de saúde com o sector privado. Esta orientação não foi bem recebida por alguns sectores profissionais, sendo acompanhado por período de conflituosidade de alta visibilidade pública. 102 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto O segundo período deste ciclo político, de 1999 a 2001, inicia-se em condições muito favoráveis, dado que é o início de uma segunda legislatura com a mesma liderança política (continuando, no entanto, sem apoio parlamentar maioritário), em que o governo assume explicitamente a prioridade da saúde, decidindo-se pelo consequente reforço no OGE e foi também constituída uma nova equipa ministerial, sem o desgaste que o exercício do poder provoca em área tão exigente como é a da saúde. Houve um vasto conjunto de medidas de reforma estudadas, negociadas, legisladas e algumas em início de implementação e pareciam existir as condições políticas para mobilizar uma base de apoio para fazer uma reforma que corresponderia a necessidades muito sentidas pela população portuguesa. No entanto estas expectativas positivas não se confirmaram. À medida que o crescimento económico vai tendo lugar, vai sendo possível canalizar mais recursos financeiros para o sistema de saúde e para as remunerações dos profissionais. Estas são oportunidades importantes para melhorar simultaneamente a gestão e a organização dos sistemas de saúde. A governação da saúde parece não ter sido capaz de gerir essas oportunidades. Finalmente teve lugar um curto terceiro e último período neste ciclo político, de 2001 a 2002, com uma duração de cerca de 8 meses, dos quais menos de 6 meses de competência de governação plena. Estas circunstâncias limitam a profundidade e relevância da sua análise. No entanto alguns aspectos merecem ser referidos: - retomou-se a ideia que é necessário um “projecto” de reforma da saúde redefinindo um número limitado de orientações: ganhos em saúde, confiança e auto-estima, a qualidade da despesa, a organização e gestão dos serviços de saúde, formação e investigação (Grandes Opções do Plano (GOP), Ministério das Finanças, 2002); - promoveram-se muito activamente um conjunto de estudos técnicos destinados a concretizar as orientações acima referidas e foram assumidas posições que decorrem em grande parte do contexto muito particular em que este período da governação teve lugar, nomeadamente as direcções clínicas e o controlo do défice. Apesar das muitas iniciativas de mérito que tiveram lugar neste ciclo (Quadro 13), pode dizer-se que ele constituiu uma oportunidade perdida para a reforma da saúde em Portugal. É importante tirar daqui os ensinamentos mais relevantes, mas pode concluir-se que ao longo dos dois ciclos políticos que abarcam cerca de década e meia, apesar das diferenças de agenda política observadas e dos méritos de muitas das iniciativas tomadas, são evidentes as semelhanças em termos da fragilidade das concepções e instrumentos da governação da saúde. Iniciou-se entretanto um novo ciclo político, que de alguma forma dá sequência a algumas das iniciativas legislativas anteriores, aprofunda outras e introduz sobretudo uma orientação mais privatizadora, que por razões que se prendem com a sua recente Tese 103 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto implementação não poderão ser objecto de análise neste estudo, a não ser uma ligeira referência assente no trabalho de análise produzido pelo OPSS e publicado no seu Relatório de Primavera 2003. Quadro 13 – Iniciativas legislativas mais relevantes dos últimos 12 anos Início dos anos noventa Finais dos anos noventa Início dos anos dois mil Carreiras médicas - Decreto-lei n.º 73/90 de 6 de Março e Decretolei n.º 396/93 de 24/11 Aplicação do novo regime jurídico ao Hospital de S. Sebastião Decreto-lei n.º 218/96 de 20 de Novembro Agências de acompanhamento dos serviços de saúde - Despacho normativo n.º 46/97 de 8 de Agosto Plano de Reorganização da Farmácia Hospitalar - Resolução do CM n.º 105/2000 de 11 de Agosto Regras de acesso dos utentes do SNS ao regime convencionado - Despacho n.º 17381/2000 de 25 de Agosto Clausulado tipo da convenção para a prestação de cuidados de saúde na área da cirurgia Despacho n.º 17799/2000 de 31 de Agosto Princípios, procedimentos e regras no acesso dos utentes do SNS, ao sector social - Despacho n.º 19554/2000, do Gabinete da MS de 29 de Setembro Plano de Acção de Combate ao Alcoolismo - Resolução do Conselho de Ministros n.º 166/2000 de 29 de Novembro Patologias e actos nas convenções e protocolos: particulares, Mútuas, IPSS e Misericórdias, Despachos 4581-A, B, C, D/2001 de 6 de Março Criação de estrutura de missão “Parcerias Saúde” - Resolução do CM n.º 162/2001 Nomeação dos directores clínicos e enfermeiros directores - Decreto-lei n.º 39/2002 de 26 de Fevereiro Empresarialização dos hospitais – Resolução do Conselho de Ministros n.º 41/2002 Lei de Bases da Saúde - Lei n.º 48/90 de 24 de Agosto Estatuto do medicamento (fabrico, comercialização e comparticipação) - Decreto-lei n.º 72/91 de 8 de Fevereiro Regime de celebração das convenções - Decreto-lei n.º 97/98, de 18 de Abril Estabelece o regime e aprova as taxas moderadoras - Decreto-lei n.º 54/92 e Portaria n.º 338/92 de 11 de Abril Regime remuneratório experimental dos médicos de clínica geral - Decreto-lei n.º 117/98 de 5 de Maio Lei Orgânica do MS - Decreto-lei n.º 10/93 de 15 de Janeiro Intervenção articulada do apoio social e dos cuidados de saúde continuados, Despacho conjunto n.º 407/98 de 18/6 (MS e MTSS) Lei de Saúde Mental e organização da psiquiatria e saúde mental - Lei n.º 36/98, de 24 de Julho e Decreto-lei n.º 35/99 de 5 de Fevereiro Estatuto do SNS - Decreto-lei n.º 11/93 de 15 de Janeiro Administrações Regionais de Saúde - Decreto-lei n.º 335/93 de 29 de Setembro Criação do Programa Específico de Recuperação de Listas de Espera (PERLE) – Despacho do MS de 1 de Março Comparticipação de medicamentos prescritos em exercício privado - Despacho n.º 14/95 do MS de 12 de Junho Cartão de utente do SNS Decreto-lei n.º 198/95, de 29 de Julho e Portarias n.º 981 e 982/95 de 16 de Agosto Contrato para a gestão do Hospital Fernando Fonseca Portaria n.º 279/95 de 8 de Setembro Programa de promoção de acesso aos cuidados de saúde - Lei n.º 27/99 de 3 de Maio Instituto da Qualidade em Saúde (IQS) - Portaria n.º 288/99 de 27 de Abril Regime dos Sistemas Locais de Saúde - Decreto-lei n.º 156/99 de 10 de Maio Criação, dos Centros de Saúde de 3ª geração - Decreto-lei n.º 157/99 de 10 de Maio Unidade Local de Saúde de Matosinhos - Decreto-lei n.º 207/99 de 9 de Junho Serviços de Saúde Pública Decreto-lei n.º 286/99 de 27 de Julho Centros de responsabilidade integrados nos hospitais - DL 374/99 de 18 de Setembro 104 Tese Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto 8. RESUMO Nos últimos trinta anos Portugal sofreu, em períodos de tempo particularmente curtos, algumas transformações de extraordinária importância: reconquista da liberdade, democratização, descolonização e integração dos retornados em 1974, adesão à CEE em 1986 (tratado assinado a 12 de Junho de 1985, em Lisboa) e integração na União Monetária Europeia em 2000. Neste período, que corresponde a uma geração, há obra realizada e objectivos atingidos. A reforma do sistema de saúde e da assistência legislada em 1971, “a reforma de Gonçalves Ferreira”, que incluiu o estabelecimento dos “centros de saúde”, constituiu já um esboço de um verdadeiro SNS. Foi no entanto a partir de 1974 que se criaram as condições políticas e sociais para que este fosse adoptado em 1979. No entanto, para melhor entender algumas das questões que ainda hoje o afectam é importante recordar as condições em que o mesmo foi criado: - a adopção e implementação do SNS estão associadas à democratização, e coincidiu com o processo de descolonização que a acompanhou; - fez parte do processo de expansão do sistema de protecção social português que caracterizou o início da democracia. Fez-se a contra-ciclo em relação à situação económica mundial dos anos setenta - as “crises do petróleo”. São ainda de referir: a reforma de 1971, a lei do SNS, a implementação da carreira médica de clínica geral e familiar e a expansão do sistema de saúde. Segundo OPSS (2002), a partir de 1985 e até 1995 o desafio centrou-se na qualificação do sistema de saúde português. Com a adesão em 1986 à CEE, a aposta foi a mudança da fronteira público/privado a favor do privado, através da Lei de Bases da Saúde de 1990, sem prejuízo de medidas destinadas a melhorar o SNS. Ainda de acordo com aquela fonte, de 1996 a 1999 em Portugal a preocupação política esteve centrada na reforma do SNS (SNS 21), sem perda da melhoria da articulação público/privado e no contexto Europeu, ao período liberalizante dos anos oitenta e princípios dos anos noventa sucedeu-se um outro, onde uma das ideias predominantes é a da “reinvenção da governação”, ou seja, dar maior flexibilidade e capacidade de inovação à administração pública tornando-a mais empresarial, recentrar os serviços públicos no cidadão-cliente e passar de uma gestão dos recursos para uma gestão de resultados. O ponto de vista do OPSS (2003) no seu Relatório de Primavera, no que se refere à análise do processo da governação da saúde, em curso, é o seguinte: - “As numerosas medidas tomadas pelo Ministério da Saúde durante o primeiro ano reflectem o teor do programa de governo legitimado politicamente; - O sistema político Português prepara propostas eleitorais e de governo, com uma limitada base técnica – ou seja, os ideários Tese 105 Capítulo IV - Análise do sistema de saúde em Portugal – o contexto políticos não são acompanhados por estudos detalhados sobre soluções técnicas concretas que deles decorrem; 106 - O estudo dos processos de governação da saúde nos últimos anos mostra importantes descontinuidades de orientação, mesmo entre governos que têm origem nas mesmas forças políticas. Assim, a opção de adoptar um programa de reformas, que se vai implementando incrementalmente durante um mandato de quatro anos, à medida que os estudos técnicos, ensaios sobre o terreno e os processos negociais se vão desenrolando, dissipa em vez de fortalecer a sua base política da apoio. Este é um trabalho necessário, mas pouco visível e não substitui a obra sobre o terreno; - Neste contexto o Ministério da Saúde optou por iniciar uma “reforma da saúde” imediatamente após o início da sua actividade, o que deu origem a uma considerável intensidade governativa durante o primeiro ano do mandato; - Nestas circunstâncias não é razoável esperar que durante um tão curto espaço de tempo tenha sido possível proceder de uma forma aceitável à legitimação técnica das soluções adoptadas; - Por isso terá de investir agora fortemente num importante esforço de fundamentação técnica, que permita estabelecer objectivos concretos, avaliá-los, divulgar os resultados e proceder aos ajustamentos necessários; - O pior que poderia acontecer seria o governo da saúde não sentir a necessidade de o fazer, ir perdendo a capacidade crítica de avaliação objectiva à medida que a força das convicções necessárias para gerir um processo de mudança complexo e duríssimo como este, vai ajudando a perder a tolerância pela divergência de opinião. Ficaria o teatro político. Perder-se-ia um impulso e uma oportunidade importante para melhorar a governação da saúde.” Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal CAPÍTULO V: ANÁLISE DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO NA SAÚDE EM PORTUGAL 1. ANTECEDENTES, CONTRIBUTOS E ENSINAMENTOS PARA O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO Contract model in contrast to integrated model: Contract model The system of health service provision which involves contracts between three separate parties: a) the beneficiaries or patients; b) the fund-holders or purchasers acting on behalf of the beneficiaries; and c) the providers of services (WHO, 1998 a.). In a more narrow sense, the contract model is mainly used for a system of direct payments, under contract, from the insurers or third parties to the providers for services rendered to insured patients (who receive benefits in kind). … This narrow definition is contrasted with the patient reimbursement model, which is for compulsory or voluntary health insurance involving cash reimbursement of patients for all or part of the cost of medical care received (OECD, 1992). Integrated model Compulsory or voluntary health insurance or third-party funding in which both the insurance and provision of health care is supplied by the same organization in a vertically integrated system (OECD, 1992). In this model, doctors are typically paid by salary and hospitals are typically funded by global budgets. Benefits are supplied to patients in-kind, often free of charge. The public version of this model involves government financing and provision of health care and is often funded mainly out of general taxation. In the US, the voluntary form of this model is better known as the staff model of the health maintenance organisation. “Integration” as such is not only used for integrated model, but also for types of care provisions in which providers offering differing services (e.g., ambulatory care, inpatient care, rehabilitative care) provide them in an integrated way. The term used for the systems of health service finance and management in which both the financing and provision of health services are supplied by the same organization with no separation between purchasers and providers, i.e. the health care providers are directly employed (or “owned”) by the third-party payers and managerially accountable to a series of governing bodies. This is commonly found in so-called national health services under the Beveridge system (WHO, 1998 a) e 2000 a). Until the reform introducing the purchaser-provider split, the United Kingdom was considered to be the classical example of an integrated model (www.observatory.dk). Tese 107 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal O desenvolvimento do processo de contratualização em Portugal, para além da decisão do Ministério da Saúde em encetar nesse novo ciclo político mudanças estruturais no sector, teve como principal impulso o movimento reformista, no mesmo sentido dos países da UE em geral e do Reino Unido e Espanha em especial, tal como referido anteriormente. De assinalar igualmente os contributos de autores como Campos, A. (1999), Mozzicafreddo, J.51. e Santos, B. (1998)52. Estiveram ainda presentes neste modelo de desenvolvimento e na opção por este instrumento de mudança teorias e princípios diversos, tais como: a teoria do agente principal, a new public management (NPM) e a aprendizagem organizacional, ligadas naturalmente ao processo de reflexão sobre o modelo integrado de distribuição de recursos em contraste com o modelo contratualizado e responsabilizante. 1. 1 Teorias e princípios orientadores A teoria do agente-principal, já abordada em capítulo anterior, parece poder ligar-se com a questão do controlo social das agências, sendo que uma perspectiva admissível na óptica do agente-principal é quando a sociedade civil é o principal e a burocracia descentralizada, o agente. Esta pressão de controlo suplementar pode ser utilizada para reforçar o incentivo do agente, para procurar atingir os objectivos dos seus dois principais: a população e a burocracia fiscalizadora, quando eventualmente o interesse de ambos for o mesmo, ou seja, o interesse público. A questão do controlo social pode então passar a centrar-se em quem deve participar nessa força de controlo suplementar, ou seja, este problema parece ser similar ao que ocorre nas empresas, principalmente nos grandes grupos. Kosnik, R. (1987) coloca esse problema do ponto de vista do agente-principal analisando a composição dos conselhos de administração dos grandes grupos. Os conselhos devem agir na defesa dos interesses dos accionistas, mas sabe-se entretanto 51 “ … O processo de reforma da administração pública permite e necessita de várias formas complementares de administração do serviço público. A contratualização é uma delas, tal como são, por exemplo, o desenvolvimento de agências administrativas independentes, normalmente denominadas Institutos Públicos, as instituições de parcerias, a subcontratação nas actividades e nos fornecedores. …” Extracto de depoimento inserto no trabalho de investigação. 52 “… A refundação democrática da administração pública está nos antípodas da proposta do Estado-empresário, nomeadamente na formulação que lhe foi dada por Osborne e Gaebler (1992). Como um dos mitos principais da cultura política americana é o Estado ser um obstáculo à economia, não surpreende que as propostas do Estado-empresário, aparentemente destinadas a revigorar a administração pública, tenham redundado num ataque global a esta, fragilizando ainda mais a sua legitimidade na sociedade americana. A noção de empresa ocupa hoje uma posição hegemónica no discurso contemporâneo sobre a reforma organizacional (du Gay, 1996: 155) e, de par com ela, a noção de contratualização das relações institucionais. Não restam dúvidas que a reconceptualização do governo e do serviço público em termos de formas empresariais envolve a reimaginação do social como uma forma do económico (Gordon, 1991: 42-5 in du Gay, 1996: 156). Assim, para Osborne e Gaebler, o governo deve ser uma empresa que promove a concorrência entre os serviços públicos; centrado em objectivos e resultados mais do que na obediência a regras, deve preocupar-se mais em obter recursos do que em gastá-los; deve transformar os cidadãos em consumidores, descentralizando o poder segundo mecanismos de mercado em vez de mecanismos burocráticos (du Gay, 1996: 160). O modelo burocrático é considerado inadequado na era da informação, do mercado global, da economia baseada no conhecimento, e é, além disso, demasiado lento e impessoal no cumprimento dos seus objectivos. …” 108 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal que ocorrem situações de hegemonia da gestão, ou seja, por vezes a administração consegue utilizar a corporação em benefício próprio, por omissão, negligência ou mesmo cooptação do conselho. Este autor conclui que para evitar este fenómeno é importante considerar os seguintes factores: a proporção de conselheiros estranhos à empresa, por exemplo, sem ligações familiares ou de negócios com os administradores, a proporção de conselheiros com experiência em gestão e a proporção de conselheiros com interesses contratuais no bom funcionamento da instituição, ou melhor, conselheiros cujo interesse seja coerente com o interesse público. Uma condição importante, portanto, é que a instância de controlo social seja escolhida de forma independente e sem a participação da administração, isto é, do agente. O sistema de incentivos é uma questão fundamental, pois trata-se basicamente de delinear o processo mais adequado para obter a concordância entre os interesses do agente e os do principal. Normalmente, os esquemas de incentivos centram-se à volta de uma bonificação baseada no desempenho sobre algum indicador, tal como produtividade, volume de produção, lucros, valorização das acções em bolsa, ou outros. A escolha do indicador não é pacífica pois, por exemplo, nos EUA, as gratificações aos executivos de topo baseadas na valorização das acções em bolsa, tem sido duramente criticada, com base em que, para atingir esta valorização, a estratégia usada tem sido a do downsizing, que valoriza a empresa no curto prazo (pois a perspectiva de redução de custos é atraente para os investidores em bolsa) mas pode ser bastante prejudicial ao desempenho da empresa no curto e médio prazo. No caso em que há que levar em consideração as condições específicas da prestação de um serviço público, onde não existe a dimensão do lucro, devemos preocupar-nos em determinar se o incentivo monetário aos executivos virá do Estado ou de receitas próprias. Para além disso torna-se ainda imprescindível conhecer o indicador de desempenho que servirá de base para que a retribuição monetária possa ser muito bem definida. Devemos ainda considerar os aspectos da contratualização referentes aos processos de aquisição de conhecimento que levam à aprendizagem organizacional. Alguns autores, nomeadamente Stewart et al (1994), afirmam que a própria forma contratual pode ser um grave obstáculo à flexibilidade, uma vez que os termos do contrato, quando definidos, geram uma preocupação muito particular sobre o contrato e não sobre o processo, prejudicando aquela aprendizagem. Nevis et al (1995) definem a aprendizagem organizacional como a capacidade, ou os processos, dentro de uma organização que visam manter ou melhorar o desempenho a partir da experiência, sendo que, segundo eles, a aprendizagem organizacional é um fenómeno sistémico, porque permanece na organização mesmo quando os indivíduos mudam de postos de trabalho. Para estes autores as bases de conhecimento da organização é que vão possibilitar a construção de aprendizagens que se traduzirão em habilidades organizacionais. Daí o papel fundamental dos factores que, segundo a terminologia de Huber (1991)53, promoverão a aquisição, a disseminação e a utilização do conhecimento. 53 Para Huber the Organizational Learning is “An entity learns if, through its processing of information, the range of its potential behaviors is changed”. Tese 109 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal Como vimos anteriormente, um dos grandes obstáculos à contratualização, apontados pelas diversas experiências, é a insuficiência de conhecimentos dos órgãos responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização em preparar e acompanhar a contratualização. Evidentemente, a questão da gestão efectiva das bases de conhecimento da organização coloca-se aqui de forma aguda, dado que essa gestão diz respeito não apenas aos conhecimentos técnicos específicos de cada instituição de saúde como também aos conhecimentos tácitos sobre a própria relação contratual. Algumas das questões a considerar na abordagem das organizações como sistemas que aprendem, são: - O conhecimento é algo detido pelas pessoas ou está sob a forma de "know-how" publicamente acessível? - Os métodos de partilha do conhecimento são formais, regulados, gerais ou por meios informais? - A aprendizagem é incremental/correctiva ou transformativa/radical? - Estimula-se o desenvolvimento de aptidões individuais ou de grupo? A implementação, com êxito, da contratualização depende, além dos imperativos apontados pela teoria económica, de certos cuidados no âmbito da teoria da administração pública, em particular da gestão do conhecimento e dos sistemas de aprendizagem. Estes cuidados devem ser mais acautelados no que respeita à governação, não só por esta se localizar, por definição, do lado mais prejudicado do ponto de vista da assimetria de informações, como pela dificuldade inerente de se administrarem eficientemente as bases de conhecimento e os sistemas de aprendizagem no contexto de uma administração pública burocrática. 1. 2 As relações contratuais e a distribuição de recursos Dois pontos críticos parecem emergir da utilização da contratualização: - a compatibilização entre os objectivos de serviço público e empresariais. Existe grande divergência no que se refere ao valor das transferências compensatórias feitas como contrapartida dos custos adicionais que incidem sobre as empresas ao prestarem determinados serviços economicamente injustificáveis mas com implicações sociais; - a definição dos fluxos financeiros entre a empresa e as despesas públicas, principalmente no que se refere às fontes para investimentos: recursos próprios, endividamento e capitalização. No caso dos recursos próprios há grande influência da actuação dos governos na administração das taxas. O endividamento também apresenta problemas pois o governo procura atenuar os encargos financeiros do endividamento, externo e interno. A capitalização, ou seja, o investimento de recursos públicos nas empresas, necessária quando as metas de investimento excedem os recursos da empresa, também é um foco de tensão. 110 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal Acrescem outros problemas, como por exemplo, os organismos públicos demonstrarem tendência para subavaliarem as suas potencialidades, de forma a tornar as metas, principalmente as de produtividade, mais facilmente atingíveis e a dificuldade em implementar formas de pagamento baseadas no desempenho, devido a resistências de classe profissional ou até sindical. Não se deve também ceder à tendência de construir sistemas de acompanhamento, controlo e avaliação de desempenho que pretendam extrair toda a informação, pois aumenta significativamente os custos. Estes sistemas devem servir apenas como fonte de informação para a avaliação das políticas, proporcionando melhores condições para se negociarem os novos contratos bem como para orientarem o sistema de incentivos. 1. 3 Conteúdos e tipos de contratos Os contratos definem relações entre muitos grupos de participantes no sistema de saúde, pelo que o tipo de contrato é extremamente variável. Segundo Ensor T. et al (1997) e Sheiman I. et al (2002), a tipologia das relações contratuais deverá ser baseada essencialmente nas partes contratantes, no estatuto legal dos contratos, no conteúdo do contrato e na abrangência da contratação. As relações entre as partes contratantes, compradores e prestadores, estabelecem-se em cada país de acordo com o modelo adoptado pelo sistema de saúde (Beveridge, Bismarck ou outro). Relativamente ao estatuto legal, a contratação distingue-se entre o tipo hard e o soft. No primeiro tipo de contratação as partes contratantes são relativamente autónomas e defendem activamente os seus interesses. No segundo, os contratos têm um baixo grau de formalidade e as partes contratantes vêem limitada a identidade dos seus interesses. As relações entre pagadores/compradores e prestadores depende mais intensamente da cooperação, do suporte mútuo, da confiança e da continuidade na relação e são opostas à competição e ao oportunismo. Este tipo de contratos são aqueles que menos probabilidades têm de serem legalmente obrigatórios. Neste sentido, a contratualização pode ser um processo de negociação entre, pelos menos, duas partes os pagadores e os prestadores, resultando num entendimento mútuo, que envolve direitos e obrigações específicas. Este acordo pode ou não ser legalmente obrigatório e pode ser uma variante hard ou soft. O papel dos compradores nas diferentes contratações depende do estatuto legal dos prestadores. Quando se contrata com prestadores privados, independentes ou autónomos, as autoridades de saúde actuam como compradores, com todos os direitos e responsabilidades. Quando contratam com prestadores públicos, as autoridades de saúde actuam como agentes cumprindo os deveres acordados. A distinção entre comprador e agente pode ser feita de acordo com a distinção efectuada entre os contratos hard e soft, tal como o relacionamento comprador/prestador pode ser baseado em ambos os contratos. Nos contratos agente/prestador o relacionamento é mais parecido com as relações informais, baseados na confiança, continuidade e cooperação e envolvendo a variante soft da contratação. Tese 111 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal Em termos de acordos contratuais no sector público a análise sugere dois pontos-chave: • A contratualização entre entidades do sector público, sob a forma de contratos coercíveis, é em geral ineficiente, já que permitindo o recurso a uma terceira parte independente para resolver os desacordos envolve provavelmente altos custos de transacção e reduz a efectividade da coordenação e as possibilidades de controlo em propriedade comum; • Na extensão em que os contratos no sector privado fornecem uma analogia para o sector público, mais do que a abordagem estrita das regras legais é a contratualização relacional que deve ser usada como modelo. A contratualização relacional implica relações a longo prazo. Há poucas tentativas para identificar à partida todas as contingências que podem emergir e as relações são mais baseadas na confiança e na cooperação do que no vínculo prescritivo das regras legais. Quanto ao conteúdo dos contratos e de acordo com as negociações que se estabelecem entre compradores/agentes e prestadores, são normalmente usados três tipos de contratos: - Contratos globais, que podem ser comparados a um orçamento para um serviço definido, em que o comprador ou agente acorda pagar um valor em troca do acesso a uma série de serviços claramente definidos. Este tipo de contrato predomina devido às deficiências de informação, tal como no custo-efectividade dos tratamentos e nas estruturas dos custos. Nos contratos globais não há especificação do número de utilizadores (volume), nem do custo por utente. Contudo, muitas vezes os indicadores dos serviços surgem com maior e melhor detalhe do que os que foram definidos no contrato escrito. Este pode incluir um acordo específico relativamente ao número de doentes a serem tratados, ou dos serviços ou cuidados oferecidos pelos prestadores. Os contratos globais podem ainda adicionalmente incluir o volume de serviços que podem ser prestados e também a prestação/monitorização da qualidade. - Contratos de custo-volume representam um aperfeiçoamento dos contratos globais, em que o pagamento por serviços específicos é mais explícito relativamente aos serviços oferecidos. Este contrato pode obrigar no acordo que o comprador ou agente pague uma quantia específica por um número único de pessoas a serem tratadas, numa determinada especialidade. Num maior aperfeiçoamento, os pagamentos podem ser diferenciados de acordo com os serviços distribuídos. Por exemplo, alto custo, médio custo e baixo custo. - Contratos custo por caso ou acto, em que um único custo é atribuído para cada item de serviço ou prestação. O uso limitado deste tipo de contrato é porque requer uma informação de custos extremamente detalhada, o que não é fácil. O sistema de informação do custo por caso/acto tratado, é um processo que precisa de ser desenvolvido e é muitas vezes usado em conjunto com outros recursos de gestão mais efectivos. 112 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal Outro critério em que se baseia a tipologia das relações contratuais é a abrangência da contratação, que define o alcance das relações reguladas por contratação e em que a situação normal é aquela em que o comprador contrata com o prestador individualmente. Uma alternativa a este tipo de contrato individual poderia ser um contrato entre comprador e um grupo integrado de prestadores. Aos diferentes tipos de contrato, anteriormente enunciados, correspondem diferentes riscos. Assim, os contratos globais ou de custo-volume são utilizados quando os contratantes preferem minimizar o seu risco, pois grande parte do risco está inerente ao pagamento de custos marginais em casos adicionais. Nos contratos custo por caso tratado, os contratantes têm maior liberdade de escolha dos prestadores, mas correm o risco de, em situações imprevistas de aumento repentino de situações, terem que pagar por cada um dos casos o custo total inerente ao tratamento específico (custos totais mais custos marginais). Outros aspectos que é preciso ter em conta na utilização deste modelo contratual, é evitar que os contratos espelhem unicamente a relação quantidade-preço em detrimento da relação qualidade-preço, a possibilidade de criação de monopólios e a extensão das consequências/penalizações em caso de incumprimento para a comunidade. Ao nível da definição de preços é possível: as entidades financiadoras imporem as suas regras aos prestadores, com apresentação unilateral da tabela de preços (caso dos GDH); negociação das tabelas de preços, iguais para todos os prestadores; aceitar a concorrência também pelos preços. O conceito de contrato em saúde tem várias dimensões que importa realçar: a) É um instrumento de monitorização: - implementação de sistemas de planeamento, - incremento à competição entre serviços prestadores de cuidados de saúde; b) É celebrado a partir de um processo negocial, que compatibiliza interesses de utilizadores (ou seus representantes/3ª entidade/Agência) e prestadores, sobre prestação de serviços em saúde; c) engloba também a avaliação: - das necessidades dos utilizadores, - dos recursos disponíveis, - de afectações alternativas, - dos resultados esperados; d) onde se define: Tese 113 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal - que recursos afectar, - a que necessidades, - a que utilizadores, - a que preço, - com que objectivos, - em que período de tempo. Assim, um contrato estabelece um princípio de compra e venda de cuidados de saúde entre utilizadores e prestadores à volta de critérios de necessidade, efectividade, qualidade e preço. Mas a tipologia de contrato a seguir, bem como os seus conteúdos, podem ainda ser abordados (OECD, 1999 b), segundo uma relação baseada no desempenho, tal como pode ser observado em alguns países da OCDE, tais como Reino Unido, Noruega, Dinamarca, Austrália, Nova Zelândia, entre outros (Quadro 14). Quadro 14 - Contratos de desempenho na OCDE Tipo de contrato Conteúdos do contrato - ACORDOS DE ENQUADRAMENTO - CONTRATOS DE ORÇAMENTO - ACORDOS DE DESEMPENHO ORGANIZACIONAL - ACORDOS DE DESEMPENHO COM CHEFE EXECUTIVO - ACORDOS DE PRESTADOR/FINANCIADOR - ACORDOS DE PARCERIA - - - - ACORDOS DE SERVIÇO DE CLIENTES/UTILIZADORES - Cobrem estratégias e prioridades para um departamento ou Agência. Conferem autonomia ao Director Executivo, Ex. Contratos de Agência no RU e Noruega. Autoridade orçamental agregada e flexibilidade para gerir recursos em troca de objectivos de desempenho acordados. Focalização nos níveis orçamentais, Ex. Contratos de Agência na Dinamarca. Entre Governo e Conselho Executivo ou entre este e um gestor de topo. É específico, detalhado, operacional, orientado para processos e outputs. Entre Governo e C. Executivo (para complementar os acordos de desempenho organizacional) ou entre gestor de topo e gestores intermédios a vários níveis, Ex. Agências na Austrália, N. Zelândia, RU. Baseado na clarificação das responsabilidades através da separação do papel de financiador e de prestador dos serviços. Também podem ser feitos dentro da organização. Assente na distribuição de recursos financeiros sem incluir necessariamente ligações ao desempenho. São declarações de níveis de serviço prestados por um programa ou serviço aos respectivos clientes/utilizadores, especificando a qualidade e o nível dos serviços a prestar. Não são negociados. Podem ainda seguir um quadro em que o Estado, ao financiar o fornecimento de bens e serviços, pode utilizar uma metodologia de distribuição de recursos assente no subsídio incondicional, que normalmente está associada ao modelo integrado de distribuição de recursos, ou baseada nos contratos clássicos, inteiramente executórios, geralmente de difícil realização, ou assente num contrato mais relacional identificado com o modelo contratualizado e responsabilizante na sua fase inicial. 114 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal No caso português, os conceitos anteriormente traduzidos encontram-se reflectidos nos diferentes tipos de contratos estabelecidos no sector público do SNS, sendo este compromisso operacionalizado entre as Agências de Contratualização e os serviços de saúde. Assim, deverão ficar estabelecidos, por negociação, os objectivos, a monitorização das actividades e a avaliação final, para que a produção se oriente para as necessidades em saúde da comunidade. No sector público, a contratualização pretende que os serviços sejam prestados para garantir um benefício público no uso dos recursos e não unicamente benefícios individuais. Como já foi referido, este mecanismo de contratualização tem a capacidade de introduzir competição e liberdade de escolha logo, em termos de equidade, os consumos também podem ser diferentes. De acordo com critérios estabelecidos, se os contratos forem feitos com prioridade de áreas mais desfavorecidas e grupos de risco, a contratualização repõe, também, algum grau de equidade. Em Portugal foram criadas cinco Agências que visavam contratar, com os hospitais e centros de saúde, orçamentos-programa e contratos-programa que reflectiriam metas de produção, de desempenho e de qualidade, fixando objectivos económico-financeiros e de eficiência. Tanto nos hospitais como nos centros de saúde a contratualização interna é muito incipiente. O desenvolvimento futuro deste modelo de tipo contratual implica entre outros aspectos: a) O desenvolvimento de um sistema de recompensas e penalizações ao nível gestionário, para repor alguma legalidade e responsabilização pelo uso de recursos comuns, só possível após alteração jurídica da administração pública e implementação efectiva de uma base de informação; b) Meios de aumentar a participação do cidadão no processo de contratualização em toda a sua extensão; c) A contratualização traduzir ganhos em saúde para a comunidade, ou seja, assente em resultados e não apenas nos aspectos processuais. 1. 4 As críticas e as deficiências da contratualização Autores como Drucker (1996), Hamel et al (2000), Jenkins (1995) e Shirley (1998 a), defendem que as principais dificuldades encontradas para o sucesso da contratualização, no caso dos organismos públicos na maior parte dos países, parecem ser os seguintes: - Falta de orientações apropriadas por parte dos governos; - Dificuldade em associar objectivos e metas pré-fixadas e devidamente quantificadas ao orçamento da saúde; - Desarticulação entre orçamento e execução financeira; Tese 115 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal - Falta de um programa de reestruturação organizacional; - Insuficiente capacitação dos profissionais para a organização e gestão dos serviços de saúde; - O não envolvimento da área das Finanças. No caso das entidades da administração local surgem ainda outros problemas, nomeadamente a dificuldade em identificar claramente a missão do órgão e dos clientes e a inexistência de sistemas de acompanhamento, controlo e avaliação. Mas a contratualização pode ter êxito, principalmente no que se refere à autonomia concedida quanto à gestão de pessoal, fixação de preços e desburocratização na prestação de contas, embora tenha surgido como grande obstáculo a dificuldade em implementar a autonomia na aquisição de materiais, equipamentos e serviços, devido à legislação vigente em grande parte dos países. Frequentemente a contratualização não atinge os seus objectivos, devido basicamente a falhas na negociação do contrato (informação assimétrica, impreparação do órgão fiscalizador e inexistência de um objectivo agregador), problemas na concessão de autonomia às organizações e problemas conceptuais no acompanhamento e na avaliação do desempenho. No que se refere às dificuldades encontradas com a negociação dos contratos, a teoria do agente-principal não se pronuncia, pois apenas analisa os problemas que surgem no cumprimento do contrato e não os problemas inerentes à sua elaboração. É claro que boa parte da solução aqui não pode vir da teoria económica, mas sim da teoria da administração pública. Em particular, a formação e o conhecimento técnico das partes contratantes parece ser um factor determinante na elaboração dos contratos, principalmente quanto à qualificação do pessoal do órgão fiscalizador. Um outro problema, que pode ser adequadamente tratado quando se prepara uma negociação apropriada do contrato, é envolver desde o início todos os actores interessados, como por exemplo os órgãos do Estado responsáveis pela área das Finanças. O sistema de informação e de acompanhamento deve ser desenhado de forma a permitir a avaliação da política global, bem como para permitir informar e apoiar um adequado sistema de incentivos, elemento fundamental na harmonização dos interesses, quer do agente quer do principal. No caso português, embora se perspectivassem três fases de desenvolvimento, não se chegou a ultrapassar a primeira fase, que assentava na negociação de orçamentos-programa aplicados às instituições públicas de saúde (mesmo aqui nem todas foram abrangidas), não se tendo sequer experimentado a aplicação do modelo à generalidade dos serviços de saúde (incluindo os privados, com e sem fins lucrativos), previstos para uma segunda fase e muito menos se avançou para a terceira fase, eventualmente sobreponível com a segunda, em que se previa o desenvolvimento de novos modelos de financiamento, os quais poderiam variar desde contratos globais de 116 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal prestação de cuidados a uma conjunto populacional predefinido, até contratos mais especificados para a prestação de uma parte dos cuidados. O desenho e o desenvolvimento do sistema de informação e de acompanhamento foi perspectivado conjuntamente com profissionais dos serviços, os técnicos das agências e os responsáveis das regiões de saúde, visando a referida harmonização de interesses políticos e técnicos, mas também a esse nível os passos dados foram curtos e lentos. Poderemos assim concluir que as críticas e as deficiências ao processo de contratualização na saúde em Portugal não podem com facilidade ser identificadas, já que a decisão sobre a sua implementação não parece ter sido assumida politicamente, inviabilizando naturalmente o seu desenvolvimento e a assumpção séria pelos actores envolvidos. 2. COMPREENSÃO/ENTENDIMENTO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO As funções que o Estatuto do Serviço Nacional de Saúde estabelece para as ARS são: planeamento, distribuição de recursos (financeiros), orientação e coordenação de actividades, gestão de recursos humanos, apoio técnico e administrativo e avaliação do funcionamento das instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde. Estas funções podem ser sistematizadas em quatro funções de gestão estratégica: 1ª - definição de uma estratégia regional de saúde, enquadrada na estratégia nacional, nomeadamente funções de planeamento e de definição de necessidades em saúde; 2ª – ordenação e regulação, naquilo que se refere à definição e à decisão do que deve ser feito, onde deve ser feito e por quem deve ser feito, à distribuição de recursos (financeiros), gestão de recursos humanos e orientação e coordenação de actividades; 3ª – apoio aos serviços prestadores de cuidados de saúde, nomeadamente apoio técnico e administrativo, cooperação na formação indispensável à capacitação dos profissionais, orientação e apoio ao desenvolvimento de actividades; 4ª – “Agência”/Acompanhamento dos serviços de saúde, no que se refere à avaliação (mais no sentido da monitorização) do funcionamento das instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde, garantindo a melhor qualidade, eficiência e equidade na utilização dos recursos e assegurando que o financiamento é atribuído de acordo com os cuidados de saúde prestados, baseados nas necessidades dos cidadãos. Estas quatro funções apareciam amalgamadas e insuficientemente diferenciadas e desenvolvidas. O resultado desta amálgama é que nenhuma delas era cabalmente desempenhada. Não se definiam estratégias de saúde, as diferentes instituições não se configuravam num sistema regulado, o apoio era escasso e ninguém pedia contas. Tese 117 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal A diferenciação técnica daquelas quatro funções levou à necessidade da separação formal de alguma ou de algumas delas, no caso vertente da função de “agência/acompanhamento”. Aquela função procura assegurar a melhor qualidade, eficiência e equidade na utilização dos recursos (públicos e privados) para a saúde, em função de critérios técnicos definidos com base em metodologias cientificamente comprovadas e empiricamente demonstradas. Cabe-lhe assim zelar pelos interesses de quem paga directa ou indirectamente os cuidados de saúde, os cidadãos, accionistas do SNS, na expressão de Saltman et al (1992), quer através dos impostos, quer indirectamente quando abrangidos por seguros, quer ainda directamente em diversas situações. 2.1 O conceito de “Agência” A assimetria de informação no processo de prestação de cuidados de saúde e a escassez de alternativas viáveis para responder às necessidades expressas, torna as escolhas do utilizador difíceis. A utilização de cuidados de saúde envolve uma transferência de responsabilidades do utilizador para o prestador (relação de Agência54). Quando se trata da relação de um grupo ou sociedade com os serviços de saúde, essa transferência de responsabilidades requer, para ser efectiva, a intervenção de uma terceira entidade que crie as interdependências necessárias à sua concretização. É essa problemática que constitui a característica central da relação agência em que os prestadores, ou uma terceira entidade, desempenham o papel de agente em nome e no interesse dos utilizadores ou da sociedade. A função agência é intermediária (como garante da qualidade e adequação dos serviços prestados) entre o cidadão e os serviços prestadores de cuidados. Pressupõe uma distinção clara entre o financiamento (na vertente da captação de recursos) e o pagamento (distribuição de recursos) dos cuidados de saúde e a sua prestação. Trata-se de diferenciar estas funções do ponto de vista operativo. A interacção com os cidadãos e com os serviços é garantida através do acompanhamento do desempenho, da análise sistemática das necessidades, avaliações e preferências/expectativas dos cidadãos e da disseminação da informação daí resultante. 2.2 Finalidade e objectivos das Agências A função agência individualizada, visa representar e defender os interesses dos cidadãos e da sociedade no que respeita à aplicação judiciosa dos recursos postos à disposição de todos (Freitas, 2002; Ministério da Saúde, 1996 e 1997 b); Nogueira et al, 2000; Santos, 1999). Mas convém aqui introduzir a noção de stewardship55, a qual, segundo Saltman 54 A relação de “agência” (agency relationship) é a situação em que o indivíduo delega as suas decisões sobre consumo ou produção numa outra pessoa que passa a actuar como seu “agente”. O fenómeno surge no sector da saúde como consequência da ignorância do consumidor com respeito às suas próprias necessidades e às características dos bens que as possam satisfazer, daí resultando uma delegação de poderes de aquisição de bens no prestador de cuidados (Pereira, 1992). 55 Termo que podemos traduzir por “provedoria” ou “intendência”, mas que não tem correspondência directa com nenhuma palavra da língua portuguesa no contexto específico em que é utilizado. A teoria 118 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal et al (2000), aponta para uma governação ética dos sistemas de saúde, para a reconfiguração do papel do Estado no sistema de saúde, através do repensar das instituições nele envolvidas no que respeita à sua eficiência, à avaliação dos resultados do seu funcionamento e aos princípios normativos que devem orientar a acção dos diferentes níveis envolvidos. A relação entre stewardship, uma das funções mais importantes dos sistemas de saúde, segundo WHO (2000 b), p.119) e a função agência fica assim estabelecida de modo intenso, com a tónica no desempenho do Estado assente na procura do interesse público, numa sociedade pluralista e informada. Há como que um novo impulso para a acção responsabilizante do Estado no campo da saúde, com base numa reinvenção do “contrato social”, em que o Estado se coloca claramente ao lado do cidadão (enquanto um seu agente responsável, num contexto de relação agente-principal), assumindo a dimensão moral das suas experiências reformistas. Os principais objectivos da função agência são: • participar na previsão de necessidades em cuidados de saúde (natureza e volume) para as quais há que garantir respostas adequadas; • produzir e divulgar conhecimento sobre os serviços de saúde e promover a utilização desse conhecimento por parte da administração e por parte dos cidadãos; • recolher, analisar e tratar reclamações, opiniões e outros documentos apresentados pelos cidadãos sobre os serviços de saúde e providenciar para que estes elementos tenham as devidas consequências práticas, isto é, sejam parte integrante do processo de decisão, na administração de saúde e na gestão dos serviços; • acompanhar o desempenho das instituições e serviços prestadores de cuidados de saúde na resposta àquelas necessidades; • participar gradualmente no processo de atribuição/distribuição dos recursos financeiros pelas instituições de saúde da região; • participar na celebração e acompanhamento de acordos e convenções com entidades privadas e Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) para a prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS; • participar na celebração, no acompanhamento e na revisão de contratos de gestão de serviços públicos com entidades privadas; • participar na avaliação dos ganhos em saúde e bem-estar obtidos com os recursos financeiros gastos; • promover o controlo sistemático e efectivo da contratualização efectuada, com base num plano com definição clara de objectivos a atingir e usando metodologias de investigação/acção; da “provedoria” (stewardship theory) é um modelo que aparece sustentado pela necessidade de eficiência e de custo efectividade. Tese 119 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal • ter um sistema explicito de incentivos para a melhoria do desempenho. A atribuição/distribuição dos recursos financeiros pelas instituições de saúde de cada região deve assentar em critérios de racionalidade técnica (com abrangência integradora) e de equidade social. A metodologia da distribuição deve assumir formas de rigor e consequências crescentes: a) criação de mecanismos de acordo/negociação com os serviços de saúde; b) desenvolvimento de sistemas integrados de informação de gestão; c) desenvolvimento de novos modelos de financiamento, nomeadamente através de orçamentos-programa; d) desenvolvimento de mecanismos de controlo e avaliação de desvios com o consequente sistema de incentivos/penalizações. O conceito de orçamentos-programa tem origem na necessidade de ligar a actividade prevista ao volume de recursos financeiros atribuídos a uma organização. Radica, portanto, no conceito de que o envelope financeiro de uma instituição deve estar, antes de mais, associado à sua actividade e não dependente da sua estrutura interna e que as várias etapas de financiamento seguem escrupulosamente esta regra. Numa primeira fase, o modelo orçamentos-programa foi aplicado parcialmente, isto é, só abarcou parte das instituições públicas de saúde; simultaneamente contratualizaram-se projectos específicos com um número significativo de hospitais (30 experiências nas regiões de: Lisboa e Vale do Tejo, Centro e Norte). Numa segunda fase, previu-se estender a aplicação do modelo à generalidade dos serviços. E numa terceira fase, eventualmente sobreponível com a segunda, perspectivava-se o desenvolvimento de novos modelos de financiamento. O desenho final desses modelos estava necessariamente condicionado pela estratégia política a ser definida, podendo variar desde contratos globais de prestação de cuidados a um conjunto populacional predefinido, até contratos mais especificados para a prestação de uma parte dos cuidados. 2.3 Missão das Agências As Agências de Acompanhamento (Anexo I),56 actualmente de Contratualização,57 (Anexo II) dos Serviços de Saúde (ACSS) tiveram início em 1996, através da criação da primeira Agência, como um dos instrumentos para uma nova política de saúde (Saúde. Um compromisso. A Estratégia para o virar do século – 1998/2002) orientada para um compromisso explícito no sentido de melhorar a saúde, adoptando metas 56 Despacho Normativo n.º 46/97, de 8 de Agosto 57 Despacho Normativo n.º 61/99, de 12 de Novembro 120 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal concretas para a realização de ganhos em saúde e assumindo a centralidade do cidadão como vector a desenvolver e a integrar na sua actuação (Ministério da Saúde, 1999 a). Foram desenvolvendo uma nova relação entre o cidadão contribuinte, o financiamento das instituições e os prestadores de cuidados de saúde, visando garantir uma base de financiamento estável, de investimento em saúde e de redução de gastos desnecessários, promovendo atitudes e comportamentos, no sentido da garantia da qualidade dos cuidados de saúde prestados à comunidade. As agências de contratualização, apesar de recentes, desenvolveram um importante trabalho orientado para a identificação de necessidades de base populacional, para a análise de produtividade e para a negociação orientada por critérios de adequação, eficiência e qualidade, formalizando acordos através dos orçamentos-programa ou de contratos-programa. A par desta actividade, as ACSS só a partir de 1998/99 começaram a estar preparadas para fazer o acompanhamento dos serviços de saúde relativamente ao cumprimento do acordado/contratado, desenvolvendo metodologias, equipas e um conjunto de indicadores que lhes permitiam, dum modo simples, transparente e rigoroso, efectuar esse acompanhamento (Ministério da Saúde, 1999 b). Contudo, faltava-lhes ainda promover a audição e a participação activa dos cidadãos e dos grupos da comunidade no sistema de saúde, bem como constituírem-se em elemento facilitador do processo de comunicação, mediante a produção de informação e sua divulgação aos serviços e à comunidade e proceder à avaliação dos progressos registados, nomeadamente dos ganhos em saúde alcançados. As ACSS procuraram assegurar a melhor utilização dos recursos públicos para a saúde e zelar pelos interesses de quem paga (os cidadãos), directa ou indirectamente, os cuidados de saúde, através de compromissos que se operacionalizavam por uma negociação que constituía um processo de contratualização, no qual estavam implícitos a fixação de objectivos , a monitorização e a avaliação final. Os objectivos das ACSS, definidos aquando da sua constituição, eram os seguintes: • identificar as necessidades ou cuidados de saúde para as quais há que garantir respostas adequadas; • propor ao Conselho de Administração das ARS a distribuição dos recursos financeiros pelas instituições de saúde da Região e proceder à contratualização dos respectivos cuidados de saúde; • produzir e divulgar informação sobre os serviços de saúde e promover a utilização desses conhecimentos por parte das administrações e por parte dos cidadãos; • incorporar na sua acção a opinião do cidadão; • acompanhar o desempenho das instituições relativamente à prestação dos cuidados de saúde e recursos financeiros contratualizados e contribuir para o desenvolvimento de um sistema explícito de incentivos/penalizações; Tese 121 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal • dar parecer sobre a celebração de acordos e convenções com entidades privadas lucrativas e IPSS para a prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS e fazer o seu acompanhamento; • participar na avaliação dos ganhos em saúde obtidos com os recursos financeiros gastos. A instalação das Agências não constituiu um processo simultâneo em todas as Administrações Regionais de Saúde. Apesar das dificuldades existentes na vertente de recursos humanos, as ACSS foram instaladas nas cinco ARS, embora demasiado dependentes dos respectivos Conselhos de Administração. Em 1998 foi dado início ao desenvolvimento dum sistema de informação, que visava apoiar o processo de negociação e discussão com as instituições prestadoras de cuidados de saúde e efectuar uma análise rigorosa dos dados que sustentavam os orçamentos programa. Ao mesmo tempo que se procurou consolidar o processo de organização e funcionamento das Agências, através da definição de instrumentos de apoio ao processo de negociação e acompanhamento com base numa estrutura nacional que integrava todos os intervenientes no processo (Secretariado Técnico das Agências), considerou-se como prioritário reforçar o papel do cidadão na Função Agência e criar metodologias que permitissem avaliar não só as necessidades em saúde como também o impacto dos cuidados de saúde contratualizados em termos de ganhos em saúde. Dado que a função agência tem a ver com a representação dos interesses e preferências do cidadão-contribuinte, de acordo com Craveiro, A. (2000), foram criadas as Comissões de Acompanhamento Externo de Serviços de Saúde (CAESS), as quais visavam assegurar uma representação do cidadão, através das autarquias e das organizações do consumidor e tinham como principal objectivo veicular informação dos serviços de saúde aos utentes e transmitir a opinião dos utentes aos Serviços de Saúde, entre outras (Figura 6). Mas o desinteresse demonstrado pelo Ministério da Saúde, a partir de 2000, por esta dimensão da contratualização contribuiu para o seu progressivo esvaziamento ou transformação em mais uma função administrativa das regiões de saúde. Previa-se, ainda, que a distribuição de recursos passasse progressivamente a ser feita com base em processos de contratualização a três níveis: a) entre a Administração Central e as Administrações Regionais de Saúde; b) entre as Administrações Regionais de Saúde e os Sistemas Locais de Saúde (SLS); ou entre as Administrações Regionais de Saúde (através das respectivas Agências) e as diversas instituições de saúde (hospitais, centros de saúde e outras), enquanto os SLS não estivessem constituídos; c) entre as administrações das instituições de saúde e os seus centros e departamentos ou unidades operacionais de prestação de cuidados de saúde. O último nível objectiva a sede de processos de diálogo, compromisso e contratualização interna. É nele que se insere o conceito de Centros de 122 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal Responsabilidade Integrada (CRI)58 nos hospitais, coincidente com departamentos, serviços ou outras formas de organização onde se traduzam as decisões de aplicação de recursos em função de benefícios concretos para os utentes e para a sociedade. Legenda A. Veicular informação dos Serviços de Saúde aos 0 utentes e transmitir a opinião dos utentes aos Serviços de Saúde; A B. Mudar mentalidades no sector da saúde; B C. Recentrar os serviços de saúde nas necessidades dos utentes; C D. Mediar entre serviços de saúde e utentes; D E. Ser provedor dos utentes; E F Mediar entre serviços de saúde e outras instituições; F G. Estabelecer um novo equilíbrio de poderes no G sector da saúde; 1 2 3 4 5 6 7 8 9 H H. Fazer lobbying em nome dos utentes, junto do poder gestionário dos Serviços de Saúde Fonte: Craveiro, A. (2000). Figura 6 – Objectivos das Comissões de Acompanhamento Externo de Serviços de Saúde (CAESS) O Despacho Normativo n.º 61/99, já referenciado, criou o Conselho Nacional das Agências e veio regulamentar as Agências de Contratualização, definindo o seu desenvolvimento e enquadramento, mas a indispensável institucionalização não se verificou, devido a uma inversão na política de saúde. O processo foi primeiramente desacelerado e a partir de 2001 foi dado por findo o contrato que existia para apoio ao sistema de informação, resultando daí grandes atrasos no processo de negociação e monitorização dos orçamentos programa, embora as orientações políticas dadas no final de 1999, já fossem no sentido de atribuir às ACSS um papel de mero monitorizador da produção e não o nobre papel de contratualizador. 2.4 Sistema de informação das Agências de Contratualização A compreensão do funcionamento do sistema compreende três actividades complementares: a recolha, o tratamento e a divulgação da informação, complementadas ainda por um elemento estrutural - o sistema de informação. Dadas as deficiências do sistema de informação existente, que não era aceite pelos intervenientes neste processo uma vez que os dados utilizados eram sistematicamente postos em causa pelas instituições e o trabalho era grandemente dificultado, isso veio 58 Decreto-Lei n.º 374/99, de 18 de Setembro. Tese 123 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal criar a necessidade de desenvolver um modelo próprio, mesmo assumindo os potenciais erros, devido à inexperiência e à escassez de recursos humanos. Inicialmente, na ACSS de Lisboa construiu-se um sistema de indicadores de análise e acompanhamento da execução dos orçamentos-programa (económicos e de eficiência), baseados quer no histórico de cada instituição, quer na análise comparativa com os desempenhos propostos noutros hospitais do mesmo grupo, discutidos com as instituições a acompanhar, procurando transparência e objectividade dentro do sistema e tentando motivar os prestadores, através da introdução de regras e princípios claros e objectivos. Mas, o Sistema de Informação das ACSS inseria-se, também ele, no contexto da estratégia definida pelo Ministério da Saúde, cujo objectivo era promover uma mudança estrutural profunda de forma a melhorar continuamente a qualidade global dos cuidados de saúde prestados aos utentes, aumentando simultaneamente a eficiência dos recursos disponíveis, através de um novo modelo de gestão das instituições de saúde. O principal objectivo do sistema consistia no tratamento da informação de apoio ao novo modelo de administração, que assentava na filosofia de contratualização, na qual existe uma responsabilização da entidade de saúde contratada que se traduz num compromisso de volume e qualidade de serviços a prestar, tendo como contrapartida um financiamento adequado do SNS. O sistema de informação decorre assim da necessidade de implementação de um novo modelo de gestão nas suas diferentes vertentes, a saber: • desenvolvimento de indicadores para o acompanhamento da contratualização; • apoio regular à contratualização e à actividade de contratualização com as diferentes entidades, através da recolha, tratamento e preparação da informação; • serviços de formação e consultoria nas áreas informática e financeira, por intermédio da equipa de acompanhamento das agências. Os serviços de acompanhamento e o sistema de informação de suporte são uma ferramenta base do processo de mudança, permitindo legitimar quantitativamente as mudanças organizacionais efectuadas e evidenciar os ganhos que todas as partes obtêm com o novo modelo. A implementação do novo modelo de gestão, queria-se suportada por um conjunto de actividades agrupadas nas fases clássicas da gestão - análise, planeamento, execução e avaliação. Estas fases devem ser entendidas como cíclicas, sendo exemplificado na Figura 7 o tipo de actividades a executar em cada uma dessas fases. O sistema necessário ao suporte destas actividades incluía duas componentes: 1. 124 sistema de orçamentação, que permitisse introduzir objectivos globais e preparar os de negociação, cruzar expectativas de qualidade, volume e custo, consolidar orçamentos, construir cenários, simular alterações e comparar o realizado com o orçamentado; Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal 2. sistema de acompanhamento à execução dos orçamentos-programa, através da comparação dos dados financeiros e de produção recolhidos trimestral/semestral/mensalmente das instituições de saúde com os orçamentos contratados com essas mesmas instituições sempre ligado a um acompanhamento observacional/descritivo do contexto. •Análise de necessidades •Avaliação de capacidade •Determinação de prioridades •Quantificaçãode objectivos Globais Análise Planeamento Avaliação •Monitorização da produção •Volume •Qualidade •Controlo orçamental •Avaliação de contratos •Benchmarking Avaliação de resultados e ganhos em saúde • • • • Orçamentos Programa Consolidação de orçamentos programa Negociação de orçamentos programa Plano de convenções Execução • Recolha de dados para acompanhamento (financeiros, produção, qualidade e resultados) Fonte: Ministério da Saúde (1999 b) - Relatório de avaliação das Agências de Contratualização, DGS, documento de trabalho. Figura 7 – Fases e actividades do sistema de informação para as Agências de Contratualização dos Serviços de Saúde (ACSS) O objectivo do sistema de orçamentação era suportar, de uma forma o mais eficiente possível, o processo de negociação que culminava no orçamento de cada instituição de saúde, discutido ao nível das Agências. Desta forma o sistema cobriria os seguintes pontos: disponibilização de suportes de introdução do orçamento num formato universal (folha de cálculo), caminhando para a integração com os sistemas de informação das instituições; carregamento automático dos dados enviados através do suporte referido, evoluindo para um carregamento em tempo real, sempre que necessário; construção e execução de análises comparativas dos orçamentos, com análise de tendências, tirando partido do histórico que se está a formar na base de dados; consolidação de orçamentos através de múltiplas hierarquias (ex.: consolidar por tipo de instituição mas também por sistema local de saúde ou grupos semelhantes de instituições), possibilitando a análise de desvios entre uma instituição e a média das instituições do mesmo tipo; construção e execução de análises do tipo “What-if”; cruzamento de dados de produção com dados financeiros; Tese 125 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal definição de perfis de consulta. Se o uso conjunto dos indicadores foi um passo importante para o estabelecimento de uma relação aberta e de cooperação, cativando o interesse dos hospitais e centros de saúde, outra iniciativa foi a elaboração de termos de referência para a construção dos documentos económico-financeiros e planos de actividades, reunidos nos Orçamentos-programa, visando a definição de conceitos base fundamentais para o estabelecimento de uma linguagem comum entre as instituições e as agências. Uma das maiores deficiências nos objectivos de curto prazo das ACSS prendeu-se com a dificuldade em efectuar um adequado acompanhamento, não só devido à não apresentação dos indicadores de desempenho, por parte dos hospitais, como pela escassez de recursos humanos, o que inviabilizava uma actuação atempada por parte das Agências. 3. 3.1 AVANÇANDO EM DIRECÇÃO AO FUTURO Distribuição de recursos. De uma lógica centrada nos serviços para uma lógica contratual De acordo com as recomendações para uma reforma estrutural expressas no Relatório do CRES (CRES, 1998), existem dois tipos de sistemas para distribuir os recursos: (i) integrados, em que os prestadores, institucionais ou individuais, são directamente dotados ou pagos por quem superiormente os dirige e emprega e (ii) contratuais, em que os prestadores são independentes das entidades financiadoras e com estas estabelecem contratos de prestação, observando-se o princípio da distinção entre o “comprador” de serviços e o “prestador”. Poderemos também olhar as diferentes modalidades de pagamento de serviços ou modelos de distribuição de recursos em saúde na maior parte dos países da UE que assentam no pagamento dos serviços efectuados pelos prestadores e que incluem nomeadamente: modelos baseados na produção/orçamentos prospectivos (por exemplo baseados em GDH); modelos baseados em orçamentos globais; pagamento dos serviços (na Alemanha, por exemplo, é usado um sistema que combina o pagamento dos serviços com orçamento); modelos baseados na capitação. Estas diferentes modalidades são ainda conjugadas ou integram outras formas de pagamento, como por exemplo: pagamento de ganhos em saúde: pagamento de incentivos com base nos resultados obtidos, nomeadamente uma percentagem de população imunizada numa determinada comunidade; 126 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal pagamento da qualidade: pagamento de incentivos quando é atingida determinada qualidade nos resultados e no processo, como por exemplo: (i) desempenho acima da média, permitindo elevados pagamentos aos hospitais com baixas taxas de infecção pós operatória; (ii) incentivos para evitar o recurso a tratamentos especializados, isto é, pagar aos clínicos gerais de forma a incentivar o tratamento adequado dos cidadãos quando a eles recorrem reduzindo a taxa de referenciação e (iii) formação médica, incentivando-a através do pagamento aos profissionais que adiram a programas de educação permanente. 3.2 Impacto da contratualização ao nível dos serviços prestadores De acordo com o que já se explicitou, a contratualização poderá definir-se, no contexto de uma nova política de saúde, como o processo de negociação que permite operacionalizar a melhor utilização dos recursos públicos para a saúde e zelar pelos interesses de quem paga, directa ou indirectamente os cuidados de saúde e nos quais estão implícitos a fixação de objectivos, a monitorização e a avaliação. O processo de contratualização, que envolve culturas organizacionais diferentes e os próprios cidadãos individualmente ou organizados em associações de prestadores informais ou de voluntariado, tem fortes possibilidades de se traduzir em inércia, em ineficácia e em conflitos, se não estiver enquadrado numa estratégia global com um razoável suporte de consenso e de compromisso, incompatível com um processo prolongado de incerteza. O desenvolvimento do processo de contratualização interna (gestão participada, por objectivos) torna necessários novos modelos de organização e de gestão nas organizações de saúde, de que faz parte a introdução de níveis intermédios de gestão, como atrás se referiu. Esses dispositivos de gestão intermédia deverão procurar adequar a estrutura institucional à estratégia organizacional, requerendo para o efeito as seguintes condições: gestão por objectivos, descentralização, responsabilização e delegação da autoridade. Devem igualmente ser abordados os seguintes aspectos: (i) avaliação de resultados – critérios de desempenho financeiro e conceito de ganhos em saúde, preços de transferência interna; (ii) características, objectivos e processos de fixação; (iii) estrutura organizacional e engenharia de processos com referência ao custeio baseado nas actividades (CBA) e ao Balanced Scorecard; (iv) capacidade de negociação dos gestores intermédios versus critérios objectivos de avaliação do desempenho e, (v) a relação com os directores de serviço e a coesão das organizações de saúde. Segundo Freitas (2002), a vantagem da introdução de mecanismos que incentivem a eficiência, o controlo dos gastos, a orientação para a satisfação das necessidades da população, não merece qualquer dúvida, mas as decisões das vias a adoptar são eminentemente políticas, entre as quais a hipótese de introduzir mecanismos de privatização do sector, seja a curto ou médio prazo. Tese 127 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal Caso tal venha a acontecer, fica por experimentar a hipótese de melhorar os instrumentos, de alterar o ambiente e de conceber novas estruturas de acompanhamento. Ficam também por satisfazer parte das questões e seguramente não se poderá dizer que se esgotaram as oportunidades de gerir o SNS dentro da esfera pública, das quais a contratualização era uma das vias possíveis, senão a mais viável. Todavia, os modelos contratuais são incontornáveis e o processo desenvolvido, com as necessárias adaptações conforme o futuro do SNS e do sistema de saúde, prevê-se que será reproduzido. 4. NA SENDA DA RESPONSABILIZAÇÃO (ACCOUNTABILITY) Como resulta de toda a revisão bibliográfica, nomeadamente os Relatórios de Primavera (2001, 2002 e 2003) do OPSS, os regimes de bem-estar na saúde resultaram a partir dos fins do séc. XIX na institucionalização obrigatória de intermediários (seguradores/3ºs pagadores públicos) entre os contribuintes que necessitavam de assegurar acesso aos cuidados de saúde e os serviços capazes de assegurarem esses cuidados. Estes “intermediários” públicos moviam-se num quadro de referência que integrava dois tipos de responsabilizações – a primeira em relação ao Estado que os tinha instituído como “terceiros pagadores”, a segunda em relação aos contribuintes, de quem estes intermediários eram também agentes ou representantes. No sistema de saúde português, como noutros, a primeira destas vertentes de responsabilização diluiu-se pela falta de diferenciação das funções de regulação, gestão e intermediação da administração pública na saúde e, a segunda perdeu-se pela falta de distinção entre financiador e prestador, assim como pelo afastamento radical entre o contribuinte e o seu agente. Não é de admirar portanto que um dos principais eixos das reformas dos sistemas de saúde na Europa, durante a última década, tenha sido exactamente o reforço ou reconstituição destas relações da responsabilização. Assim se assegura o “triângulo clássico” do regime de bem-estar na saúde: cidadão – intermediário/agente – prestador. As principais alternativas para avaliação dos dispositivos organizacionais desta “função agência” que hoje se colocam, no contexto europeu são: (i) mercado competitivo entre terceiros pagadores públicos (Alemanha e Holanda) ou (ii) descentralização e democratização de um terceiro pagador único (Reino Unido e países nórdicos). Os dispositivos de contratualização constituem um dos principais instrumentos de responsabilização dos sistemas de saúde mais desenvolvidos. Em Portugal, o desenvolvimento das Agências de Contratualização, como atrás se referiu, teve início em 1996/7. Nas recomendações da OECD (1999 a) para Portugal, pode ler-se “... reforçar a capacidade das ARS para fixarem contratos de prestação em função das necessidades em saúde” e, no seguimento efectuado em 2000 por aquele organismo, “... prosseguir o programa da contratualização e criar rapidamente novas agências”. Também as recomendações do relatório do Tribunal de Contas (1999), na sua auditoria ao SNS, apontavam para a necessidade de expandir o processo de contratualização: “... deverá rapidamente ser alargado a todas as instituições de saúde o mecanismo da 128 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal contratualização, o qual permitirá ajustar o financiamento à produção e, consequentemente, a fixação de metas da produção com vista à obtenção de um maior grau de eficiência no desempenho das instituições. Em consonância com o referido, deverão ser instituídos mecanismos para a avaliação do desempenho dos responsáveis e, bem assim, a criação dos meios adequados que permitam aferir o desempenho da gestão e, por conseguinte, os níveis de economia, eficácia e eficiência verificados nas instituições de saúde, tirando-se dos mesmos todas as consequências adequadas”. A propósito da contratualização em Portugal, Freitas (2002) entende que se trata dum processo inovador, que conduz a uma mudança gradual mas muito significativa no panorama vigente da gestão das organizações, mitigado pela impossibilidade das Agências assumirem um papel mais decisivo na distribuição de recursos, prejudicada ainda pela sua dependência da estrutura que gere a prestação; pelo modelo de financiamento existente que remunerava essencialmente com base no histórico e ainda pelo desajustamento dos preços, que não revelavam o crescimento dos custos, levando ao descrédito desta ferramenta. Acresce ainda que um passivo crónico a ser absorvido através de saneamentos financeiros de vária origem, premiando os menos eficientes e descredibilizando aqueles que procuraram implementar mecanismos racionais de controlo de custos, porque as suas instituições eram, por isso, alvo de penalização indirecta. A figura a seguir apresentada (Figura 8) descreve sucintamente a avaliação do processo de contratualização no nosso país. 1996 Organização Criação da Agência de Lisboa Qualificação 1997 Despacho (1) que institui as Agências e Criação das Agências do Centro e Alentejo Seminário Internacional de Contratualização 1998 1999 2001 2000 2001 Criação das Agência do Norte e do Algarve Seminário Nacional das Agências Informação Sistema de informação para Contratualização (2) Coordenação Secretariado Técnico das Agências Conselho Nacional das Agências (3) 1998 1999 1996 2000 1997 Fonte: OPSS (2002),”Relatório de Primavera de 2002”. Notas: (1) Despacho Normativo n.º 46/97, de 11 de Julho de 1997; (2) Deslocado das agências e centralizado e, (3) Despacho Normativo n.º 61/99, de 12 de Novembro (descontinuado). Figura 8 - Avaliação do processo de contratualização em Portugal A contratualização é um processo que pressupõe o cumprimento de um ciclo de fases sucessivas, nomeadamente: a) identificação de necessidades e de prioridades de saúde bem como das expectativas dos cidadãos; Tese 129 Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal b) negociação com os prestadores do tipo, volume e custos/preços dos cuidados a prestar para dar resposta àquelas necessidades; c) acompanhamento do desempenho dos prestadores, tendo em conta a perspectiva do cidadão face ao acordado e desencadeamento das respectivas consequências; d) avaliação final do cumprimento dos orçamentos-programa ou dos contratos-programa e desencadeamento das respectivas consequências; e) determinação dos ganhos em saúde e bem-estar conseguidos. Cada uma destas fases exige capacidades técnicas e "know-how" bastante complexos, que só a experiência permite construir progressivamente. A história recente das ACSS e do desenvolvimento dos seus recursos e capacidades permitiu já avançar em algumas daquelas fases, embora o ciclo da contratualização esteja ainda longe de se considerar concluído, nem suficientemente aprofundado. Desde já é possível realçar, neste processo, o seguinte: desenvolvimento de sistemas de informação de apoio à contratualização; maior clareza e transparência de como são aplicados os recursos públicos; identificação de pontos de ineficiência e quantificação, sempre que possível, de capacidades instaladas insuficientemente aproveitadas; primeiros sinais de modificação do padrão habitual de prestação de cuidados, procurando adequá-los mais às necessidades da população; obtenção de compromissos para a melhoria de produtividade e redução de ineficiências traduzidas, nomeadamente, na produção contratualizada e nos orçamentos económicos acordados. Apesar das ACSS não terem passado, basicamente, da sua fase de instalação e de formação e desenvolvimento dos seus recursos, foram identificados alguns sinais positivos da sua acção. Porém, a medição do seu verdadeiro impacto só seria possível quando tivesse sido concluído o primeiro ciclo completo da contratualização, o que pressupõe também a existência de consequências tangíveis, positivas e negativas, associadas a este processo. Pela experiência e ensinamentos já recolhidos, era realista prever que esta capacidade de influência e impacto pudesse ter sido atingida no ciclo 2000/2001. Isso pressupunha, no entanto, que todos os outros instrumentos e factores de mudança fossem implementados, nomeadamente, mecanismos de melhoria de qualidade e, naturalmente, a própria institucionalização das Agências. Segundo Freitas (2002), constata-se que funcionou a relação entre a Agência e os hospitais, resultando daí o estabelecimento de relações de exigência e rigor, das quais algumas perpassaram para dentro daquelas instituições. Os gestores dos hospitais sentiram que eram ouvidos nas decisões relevantes (muitas vezes a ARS pediu pareceres 130 Tese Capítulo V: Análise do processo de contratualização na saúde em Portugal à Agência para determinados assuntos), houve uma dimensão motivacional importante, clarificaram-se muitos aspectos que condicionavam a actividade e que não aparecem nos indicadores de desempenho normalmente utilizados pelos serviços centrais por falta de tempo de implementação deste processo, alinharam-se objectivos entre a Agência de Contratualização e os Hospitais. Mas, a contratualização não pode funcionar como elemento isolado. O seu grau de impacto dependerá sempre do ritmo de implementação dos restantes instrumentos de mudança e da introdução de um novo modelo de administração pública em saúde, mais responsabilizante e actuante. Todas as indicações disponíveis apontam, no entanto, para uma marcada desaceleração do processo de contratualização em 2000 e 2001. No entanto, se tivermos em conta que, segundo Erikson E. (1959 e 1982), para identificarmos qualquer objecto, torna-se necessário: (i) distingui-lo de qualquer outro; (ii) atribuir-lhe um significado e, (iii) conferir-lhe um valor, caso não se considere a função agência e a contratualização como instrumentos necessários, não se lhe atribua significado, muito menos se lhe confira valor, não se poderá desenvolver tal função, dado que ela a existir será mais uma entre outras. Tese 131 SEGUNDA PARTE O modelo de análise do processo de mudança da administração pública da saúde baseado na contratualização “Comece tudo o que pensa que pode fazer ou sonha poder. A ousadia tem dentro de si genialidade, poder e magia”. Goethe “Não confunda jamais conhecimento com sabedoria. Um ajuda-o a ganhar a vida; a outra a construir uma vida”. Sandra Carey Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização CAPÍTULO VI: MÉTODO PARA ANÁLISE DO PROCESSO DE MUDANÇA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE CENTRADA NA CONTRATUALIZAÇÃO 1. OBJECTIVOS O modelo clássico da administração pública baseada em princípios de hierarquia e autoridade, na qual a administração da saúde se integra, está a ser abandonado em todos os países da Europa Ocidental, aparecendo em sua substituição um modelo assente nos princípios de descentralização, flexibilização, autonomia, diferenciação organizacional, e privatização, entre outros. A ideia fulcral que hoje prevalece é a de que ao Estado cabe ser um garante da prestação dos serviços públicos (não tendo de ser um prestador directo) e um regulador dos produtores de cuidados de saúde, assente no princípio fundamental da responsabilização (accountability). Como elementos basilares inseridos no conceito de responsabilização atrás explicitado, são de considerar: a cidadania, a regulação, a qualidade e a contratualização, que funcionarão como factores convergentes para uma mudança sustentada, sendo impensável e pouco credível que a inovação da gestão da saúde possa acontecer se cada um deles for desenvolvido em momentos diferentes, ou até considerados como peças independentes que funcionarão per si. Segundo Tullio Parenzan (1997, citado em Moreira, V. et al,1999)59, no momento actual existe a tendência para utilizar o menos possível a actividade autoritária ou a gestão directa nas várias áreas da actividade pública, assistindo-se a uma utilização de instrumentos contratuais, à criação de suportes instrumentais ou auxiliares e outras formas de gestão mais afastadas da administração pública, ou seja, uma mudança de paradigma do papel do Estado, que corresponde à passagem de uma cultura paternalista para uma cultura assente na contratualização. Verificam-se, hoje, mudanças culturais profundas nos sistemas de saúde. As missões e papéis dos principais actores da saúde confundem-se entre si e as expectativas dos utilizadores são cada vez mais elevadas. Os sistemas evoluem em direcções ainda pouco conhecidas. Por isso, é imprescindível fazer um diagnóstico completo, preciso e 59 “Encontramo-nos num momento no qual existe a tendência para recorrer o menos possível à actividade autoritária, e mesmo à gestão directa, nos vários sectores da actividade pública, enquanto se regista uma tendência para o emprego de instrumentos contratuais, para a criação de entes instrumentais ou auxiliares, para outras formas de gestão mais ou menos afastadas das administrações públicas. De facto, a actividade administrativa de direito privado tornou-se entretanto numa forma normal de actividade, relativamente à actividade autoritária, quando anteriormente era considerada secundária. Além disso, trata-se de uma realidade ainda em evolução, que pode vir a dar corpo provavelmente a um novo modelo de administração” (Parengan, in Centro Studi Amministrativi, 1997: 425). Tese 135 Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização partilhado pelos diferentes actores (profissões de saúde e parceiros) de forma a poder aplicar-se uma verdadeira reforma dos sistemas de saúde. Apesar do incremento verificado na investigação sobre a efectividade e a eficiência dos serviços de saúde, em resposta à grande ênfase colocada na necessidade do controlo de custos dos cuidados de saúde seguida em todos os países ocidentais, não se verificou igual desenvolvimento investigacional na área da identificação das necessidades em saúde. Por isso, a opção pelo tema foi determinada, pelo interesse pessoal sobre a temática da contratualização, pelo interesse crescente sobre a reforma da administração, nomeadamente na área da saúde, mas principalmente por ter integrado uma equipa que pretendeu introduzir mudanças através de diversos projectos de investigação, entre eles o processo de contratualização e de se terem confrontado com grandes dificuldades técnicas, políticas e culturais, que reduziram ou até mesmo impossibilitaram o desenvolvimento dos projectos e impediram a sua cabal implementação. Não obstante o pouco debate interno produzido e as constantes alterações de rumo político que entretanto foram acontecendo e, até mesmo o esquecimento a que foram votados os projectos em curso, o papel da contratualização na evolução da administração pública da saúde e sobretudo os factores críticos que no contexto português condicionam a implementação de mudanças, apresentou-se como um tema actual e oportuno, capaz de despertar, animar e suscitar o interesse da investigadora. O presente estudo tem como objectivo prioritário avaliar o papel da contratualização na evolução de um modelo de administração pública da saúde em que a distribuição dos recursos está centrada nos inputs, para um modelo centrado nos resultados, isto é, o desenvolvimento de modelos e metodologias de decisão baseadas na distribuição de recursos de acordo com as necessidades em saúde de uma comunidade tipo e não somente nas necessidades dos serviços. A justificação para a apresentação deste tipo de modelos deve-se ao facto de se entender que uma distribuição de recursos que não leve em linha de conta a avaliação das necessidades em saúde e os resultados alcançados, pode ser geradora de ineficiências e de iniquidades, já que se pode limitar a pagar cuidados de saúde que não permitam a obtenção dos ganhos em saúde que é esperado alcançar em qualquer tipo de população, de acordo com o nível de recursos envolvidos. 2. MODELO PARA ANÁLISE DO PAPEL DA CONTRATUALIZAÇÃO NO PROCESSO DE MUDANÇA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE O facto do processo de contratualização em Portugal ser ainda uma experiência relativamente recente, sendo que os poucos estudos efectuados se circunscrevem a aspecto específicos, decidiu-se construir um quadro de referência, baseado no mapa de análise do sistema de saúde utilizado pelo OPSS, que delimitasse o estudo. A Figura 9 representa o modelo simplificado da relação entre o Estado, a Administração, os prestadores, os cidadãos e os restantes stakeholders, não se descrevendo os processos internos das diferentes componentes. 136 Tese Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Figura 9- Dimensões do modelo de análise (modelo simplificado)60 Identificam-se três dimensões principais: A relação de “Agência” entre o Estado e a Administração de Saúde (função de mediação), consubstanciada no acordo em torno de um Contrato-programa, que procurará responder pela adequada distribuição dos dinheiros públicos e recebendo o direito de influenciar o financiamento e as orientações estratégicas de desenvolvimento do sistema de saúde; A relação de “Agência” entre a Administração e os cidadãos, procurando através dela dar resposta quer às expectativas, quer aos cuidados de saúde necessários, além da avaliação das necessidades para construção do quadro negocial e do grau de satisfação obtido; A relação “contratual” entre a Administração e os Prestadores, consubstanciada nos acordos em torno de orçamentos-programa de referência, obtidos com base em negociação entre as partes, constituindo-se como contratos relacionais, necessariamente softs, traduzindo recursos a atribuir e resultados esperados, tendo como base a obrigatoriedade de ser prestada toda a informação relevante para acompanhamento e avaliação do desempenho, acoplada ao financiamento resultante da negociação. O presente estudo debruçar-se-á sobre as três dimensões, procurando dar maior ênfase às duas primeiras, dado que a terceira foi objecto de um estudo específico, em que Freitas (2002) estuda a maneira como decorreu a relação inovadora da contratualização ao nível dos hospitais, medindo as opiniões de actores que estiveram directa ou indirectamente ligados ao processo, procurando ainda analisar os indicadores de desempenho no período em que o mesmo decorreu. 60 Configuram-se espacialmente os principais sistemas envolvidos e os percursos/relações dominantes no pretendido processo de mudança na administração pública da saúde, através da introdução da contratualização, procurando identificar-se os principais factores que condicionam essa mudança. Tese 137 Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Procurar-se-ão principalmente as razões que dificultam ou até impedem o desenvolvimento dos processos que pretendem introduzir a mudança e tentar-se-ão encontrar os fundamentos dessa obstrução (culturais, do sistema político, ou até das agendas dos diferentes stakeholders). Trata-se de uma distinção segundo critérios de pertinência “avaliativa” do processo de contratualização, baseada nas opiniões dum grupo de representantes dos principais stakeholders, como testemunhas privilegiadas do processo e, ainda, com o apoio de uma amostra significativa de gestores e decisores do sistema, que procuraram descrever as suas vivências na implementação daquele processo e explicar as razões do seu insucesso, ou melhor dizendo, do seu fraco sucesso. Não se avaliam os processos internos nas diferentes dimensões em estudo nem, em profundidade, as decisões políticas que impediram a indução e disseminação do processo. No primeiro caso justificar-se-á um estudo aprofundado da governação em Portugal, dado que as reformas encetadas nas mais diversas áreas têm vindo a ser sistematicamente adiadas criando uma desmotivação profunda dos profissionais empenhados e colocando em causa o desenvolvimento económico e social do país. Não se avaliam igualmente em profundidade as relações entre os cidadãos e o Estado, dado que o desenvolvimento de uma teoria explicativa para as razões que têm levado à ausência de participação dos cidadãos nas componentes mais sensíveis das decisões políticas e/ou a desatenção demonstrada para com os mesmos, quer como contribuintes, quer como eleitores, pelos políticos, implicaria aprofundados estudos sociológicos e comportamentais, que extravasam o objectivo da presente análise. Este estudo visa aprofundar o conhecimento sobre o contexto económico, social, cultural e político, que subjaz ao sector da saúde, no qual se ousou introduzir um processo de contratualização (como se preparou o início do processo, como se programou a sua implementação e disseminação e porque não foi possível fazer a sua indução cultural) que visava encetar um inovador processo de mudança (introduzindo responsabilização, descentralização, flexibilização e eficiência) que falhou e, face a isso, identificar os principais factores críticos que o condicionaram. Procura-se ainda identificar se hoje existirão mais e melhores condições para o seu sucesso. Considera-se, neste modelo, que a definição da política compete ao Estado, balizado em alternativas técnicas profundamente estudadas, que a estratégia é da responsabilidade da administração de saúde e que a evidência e o rigor científico estão sempre presentes nas decisões políticas assumidas, dado estarmos perante um bem cujo valor é inquestionável e num sector onde a equidade e a qualidade têm de caminhar em conjunto. Existe um modelo subjacente a esta investigação, baseado nos conceitos apresentados sobre os sistemas de saúde e considerados nos modelos de Walt et al (1994) e Savas (2000), referentes à análise das políticas e da contratualização em saúde, em que se identificam três dimensões nas reformas ou processos de mudança: 1. o contexto, que engloba os princípios, a estrutura e os actores e ainda a matriz de regulação (porque funcionou/não funcionou?); 138 Tese Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização 2. o processo - como se iniciou, como foi feita a sua indução e disseminação (o que foi e como foi implementado?) e, 3. o desenvolvimento (quem fez / não fez / não deixou que se fizesse?). Porque não se analisa apenas a decisão política, mas as suas consequências, juntam-se outros elementos de análise: a produção legislativa que tem enquadrado e moldado o desenvolvimento do sistema, nas últimas três décadas (causas de acção e consequência de decisão) e os resultados obtidos (efeitos). Completa-se este modelo de investigação com um outro elemento que procura obter algumas indicações para eventuais correcções no futuro e simultaneamente permitir a validação externa que este tipo de metodologia exige (factores críticos no contexto português). Resulta do exposto que a contratualização é entendida, no que se refere à sua compreensão, como um complexo de elementos que interagem simultaneamente, nomeadamente: o contexto em que a mesma se desenvolve (actores e conceitos constituintes); a forma como foi iniciado e desenvolvido o processo; a razão porque foi, ou não, possível fazer o processo de indução, bem como a sua disseminação; que efeitos teve ao nível político e organizacional; de que forma a sua descontinuidade poderá inviabilizar, a curto prazo, o retomar do conceito e quais são os factores críticos sobre os quais é necessário trabalhar, de forma a reaver o processo de mudança (Figuras 10 e 11). Não sendo despicienda a visão holística, a percepção do processo desenvolvido deverá ser segmentada, analisando-se, per si, cada um dos elementos citados. Quanto aos resultados esperados ao nível das organizações envolvidas e de acordo com os objectivo políticos e técnicos definidos, centraram-se principalmente na melhoria da eficiência e adequação da utilização dos recursos aos resultados esperados, na orientação e intensificação da actividade e na melhoria da acessibilidade. Logo, as questões pragmáticas de investigação que se propõem residem em três áreas de análise: o contexto, o processo de contratualização e o processo de mudança, procurando-se através delas encontrar a melhor forma para responder à multiplicidade de dúvidas, interrogações, incertezas, indecisões, mas também às certezas, convicções, opiniões e até crenças às quais por vezes se adere, sem base em conhecimento científico, na experiência ou na experimentação. Cada uma das três áreas de análise foram subdivididas em diferentes dimensões, as quais se decompõem em elementos através dos quais se procura desenvolver a linha de investigação proposta. Explicitam-se seguidamente os principais objectivos deste estudo, os quais pretendem ser atingidos através das questões de investigação que de seguida se identificam. Mas, como um modelo pode ser entendido como um sistema de perguntas às quais se procura dar respostas de forma articulada e lógica, então as perguntas de investigação e a precisão de uma relação entre conceitos - o modelo - também é um conjunto de conceitos logicamente articulados entre si por supostas relações (Quivy et al, 1998). De acordo ainda com estes autores, na realização de um trabalho a estruturação em torno de uma ou de várias perguntas ou hipóteses é imprescindível a uma verdadeira investigação, pois elas revelam o espírito de descoberta, característica essencial a qualquer trabalho científico. Tese 139 Conceitos Dimensões 140 Elementos de análise Sociedade civil e poder local Uso eficiente dos recursos Processo de contratualização Escolha dos utilizadores Acesso à informação Liberdade de escolha Equidade no financiamento Sistema de Informação (SI) da FA Condições de êxito e de fracasso Tese Figura 10 - Modelo de Investigação Participação do cidadão na FA Processo e instrumentos de negociação na FA Desenvolvimento do processo Efeitos do processo Papel da Sub-região na FA Funcionamento da FA Funções técnicas da FA Tipo de mandato da FA Organização do trabalho da FA Fase de arranque ou processo inicial Modelo de identificação de necessidades em saúde Implicações inerentes ao desenvolvimento do processo Impacto da contratualização a diferentes níveis Importância da contratualização em diferentes dimensões Para evitar perversões do processo de contratualização Para potenciar a implementação da contratualização Desenvolvimento da contratualização – base cultural Mudança comportamental dos dirigentes envolvidos no processo da contratualização Mudança comportamental dos cidadãos decorrente da contratualização Melhoria da eficiência Variação da actividade Aumento da acessibilidade Modelo de contratualização implementado Novos códigos comportamentais Processo de contratualização Indução Desenvolvimento do processo de contratualização Processo de contratualização Introdução e monitorização Os actores e os conceitos Localização da FA Mecanismos de competição Comunicação social Igualdade de acesso Listas de espera Modelos de organização da FA Qualidade dos serviços prestados Fornecedores e outros actores sociais Controlo das despesas com saúde Importância da Função Agência (FA) Contextualização do processo de contratualização Controlo de preços Matriz reguladora Organizações profissionais Estrutura e actores chave (stakeholders) Fase de arranque e processo inicial Preparação Cobertura universal Princípios básicos do sistema de saúde Contexto Relação Agência/outras estruturas do MS Criação de padrões de desempenho/produção para negociação Sistema de informação (SI)da FA Organização da FA Localização da FA Modelos alternativos à FA Modelos alternativos de contratualização O futuro e a contratualização Disseminação Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Conceito Dimensões Elementos de análise Negociação com os Stakeholders Sistema de informação e sua disponibilização Regulação e legislação Tese Figura 10 - Modelo de Investigação (continuação) Sociedade civil e poder local Monitorizar Recursos humanos (competências de gestão) Fornecedores e outros actores sociais Comunicação social Liderança para a mudança Apelo à participação com comunicação dos objectivos e Organizações profissionais mudanças esperadas Operacionalização da mudança Sustentabilidade financeira Planear a mudança Diferenciação de funções (planeamento, financiamento e prestação) Política de saúde Viabilidade da contratualização Processo de mudança da administração pública da saúde Influências externas Valores culturais e sociais 141 Manutenção das actividades de rotina Outros factores contextuais Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Assim, e: - quanto ao contexto em que se insere o sector saúde: Comparativamente com outros países da Europa, nomeadamente Espanha e Reino Unido, porque será que Portugal desenvolveu tão tardiamente o processo de contratualização? Sendo a contratualização um dos elementos fulcrais para a mudança, até que ponto será ela viável sem o desenvolvimento de outras componentes, nomeadamente a regulação, a qualidade, a cidadania e a inovação na gestão? Para atingir os objectivos definidos as questões operacionais desenvolvem-se em três dimensões: 1. Clarificar os princípios básicos que sustentam o sistema de saúde; 2. Identificar os principais actores chave que se movimentam no sistema de saúde; 3. Definir a matriz estrutural que lhe está subjacente. - quanto ao processo de contratualização desenvolvido em Portugal para o sistema de saúde: Qual deve ser a estrutura responsável pela contratualização em Portugal e qual o seu desenvolvimento? Que padrão de contratualização mais se adequará ao contexto português? Uma fase relacional curta ou mais longa e assente num processo negocial informal, passando posteriormente à fase contratual executória (convencional)? Porque é que não foi possível fazer a indução cultural no processo de desenvolvimento da contratualização? Será expectante que o cidadão possa assumir um papel mais intervencionista e facilitador da contratualização? Para atingir os objectivos definidos as questões operacionais desenvolvem-se em cinco dimensões: a. Contextualização do processo de contratualização; b. Fase de arranque ou processo inicial; c. Desenvolvimento da contratualização – base cultural; d. Processo de contratualização; e. Modelos alternativos de contratualização. Em que se procura: 142 4. Explicitar o processo de contratualização e o papel das agências; 5. Determinar a coesão das respostas dos peritos auscultados, relativamente ao processo de contratualização prosseguido em Portugal; Tese Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização 6. Ponderar se os governos, central e local, devem apoiar o sector de uma forma mais incisiva, de molde a garantir a consolidação do processo de contratualização; 7. Verificar se os profissionais mais envolvidos no processo da contratualização atribuem “importância às políticas governamentais para o sector” e se consideram que essas políticas são consentâneas com a reforma necessária ao sector da saúde; 8. Analisar a qualidade do sistema de informação para os profissionais e as organizações envolvidas no processo da contratualização enfrentarem os desafios que se lhes colocam; - quanto ao desenvolvimento e gestão do processo de mudança no sistema de saúde: Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da contratualização parece ser a cultura burocrática e de não responsabilização predominante na administração pública. Em que circunstâncias a relação contratual funcionará de forma facilitadora? Será que hoje, à luz dos actuais constrangimentos, decorrentes da pressão para cumprimento dos critérios de convergência da UE, estão reunidas melhores condições para o abandono de uma cultura paternalista existente na administração pública da saúde em Portugal e para o desenvolvimento de uma cultura assente na contratualização? 9. Discutir a viabilidade da contratualização em Portugal; 10. Verificar o impacte da contratualização ao nível dos serviços prestadores e discutir o processo de negociação com os actores chave; 11. Assinalar as vantagens decorrentes da identificação das necessidades em saúde e discutir como é que elas podem contribuir para o sucesso da contratualização; 12. Identificar os factores críticos que, no contexto português, condicionam a implementação de políticas de mudança no sector. Mas, procura-se ainda que peritos se pronunciem e dêem o seu depoimento sobre as conclusões, nomeadamente sobre a resposta encontrada à pergunta de partida da investigação desenvolvida: Quais os factores críticos do contexto português que condicionaram a sua indução e disseminação? Após a construção do modelo, dos conceitos e das dimensões de estudo, surge cronologicamente no quadro das etapas de investigação a definição dos procedimentos metodológicos, questão que vai ser abordada no capítulo seguinte. Tese 143 144 Análise SWOT CONTEXTO Revisão Bibliografia Tese Questionário II Entrevistas PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO Questionário I, entrevistas e página Web Figura 11. Etapas de investigação Porque será que, comparativamente com outros países da Europa, nomeadamente Espanha e Reino Unido, Portugal desenvolveu tão tardiamente o processo de contratualização? Sendo a contratualização um dos elementos fulcrais para a mudança, até que ponto será ela viável sem o desenvolvimento dos restantes elementos, nomeadamente a regulação, a qualidade, a cidadania e a inovação na gestão? Qual deve ser a estrutura responsável pela contratualização em Portugal e qual o seu desenvolvimento? Que padrão de contratualização mais se adequará ao contexto português? Uma fase relacional curta ou mais longa e assente num processo negocial informal, passando posteriormente à fase contratual executória (convencional)? Porque é que não foi possível fazer a indução cultural no processo de desenvolvimento da contratualização? Será expectante que o cidadão possa assumir um papel mais intervencionista e facilitador da contratualização? Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da contratualização parece ser a cultura burocrática e de não responsabilização predominante na administração pública. Em que circunstâncias a relação contratual funcionará de forma facilitadora? Será que hoje, à luz dos actuais constrangimentos, decorrentes da pressão para cumprimento dos critérios de convergência da UE, estão reunidas melhores condições para o abandono de uma cultura paternalista existente na administração pública da saúde em Portugal e para o desenvolvimento de uma cultura assente na contratualização? Quais os factores críticos do contexto português que condicionaram a sua indução e disseminação? Perguntas de investigação INOVAÇÃO E MUDANÇA Estatísticas Legislação CONCLUSÕES Depoimentos técnicos Capítulo VI:Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização 3. PLANEAMENTO E ORGANIZAÇÃO DA INVESTIGAÇÃO Dada a especificidade e complexidade do tema procura-se aqui fazer uma descrição precisa e minuciosa do processo de investigação. De forma a garantir a coerência interna da descrição, irá descrever-se a metodologia utilizada, sempre que possível, pela ordem cronológica com que foi empregue, dado o contexto político em que a pesquisa se desenvolveu, facilitando dessa maneira a leitura dos resultados obtidos. Sabendo-se que, segundo Grawitz (2001), toda a investigação deve usar processos operativos rigorosos, bem definidos, transmissíveis, adaptados ao tipo de problema e aos fenómenos em estudo e susceptíveis de serem reproduzidos, optou-se pela conjugação de um vasto conjunto de instrumentos de investigação, cuja matriz final consubstancia um modelo de análise da administração da saúde, baseado na contratualização. Depois de identificado o tema, procedeu-se a uma vasta pesquisa bibliográfica, com o objectivo de se conseguir uma maior actualização sobre a temática e de conhecer como utilizaram outros países esta metodologia e qual o processo de desenvolvimento face ao contexto político em cada um deles. Foram utilizadas como fontes privilegiadas os sites da OCDE61, OMS62, Observatório Europeu dos Sistemas de Saúde63, Centro de Investigação do NHS do Reino Unido64, Centro Americano do Medicare e do Medicaid65; Instituto Nacional de la Salud (INSALUD), agora Instituto Nacional de Gestión Sanitaria66 e as bases de dados Medline, HealthPlan e Pubmed, para identificação dos artigos científicos considerados mais relevantes. Para o aprofundamento teórico e obtenção de outras informações complementares, mais actualizadas do que os artigos científicos disponíveis, foram consultadas várias obras e documentos recolhidos no INSALUD, na Health Services Management Unit e Biblioteca da Universidade de Manchester e ainda na Public Health & Health Professional Development Unit da Universidade de Lancaster. Para o efeito deslocou-se a investigadora, em quatro períodos diferentes, ao Reino Unido (Agosto de 1997, Dezembro de 1998, Março de 1999 e Julho/Agosto de 2000) e em dois períodos a Espanha (Madrid, Julho de 1998 e Maio de 2001). Tem ainda mantido um contacto permanente quer com os organismos da saúde e universitários referidos e com o WHO European Office for Integrated Health Care Services em Barcelona, bem como com o Departamento de Métodos Quantitativos para Economia e Gestão da Universidade de Las Palmas e com a Direcção Geral de Planeamento do INSALUD. 61 www.oecd.org 62 www.who.org 63 www.observatory.dk 64 www.centre.public.org.uk 65 http://cms.hhs.gov/default.asp?fromhcfadotgov=true 66 www.insalu.es Tese 145 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização No que se refere à realidade portuguesa, utilizou-se a bibliografia disponível sobre o sistema de saúde, incluindo os documentos produzidos pelo Ministério da Saúde, no período de 1996 a 2002 e ainda os relatórios e documentos que foram sendo elaborados quer pelas Agências de Contratualização, quer pelos órgãos centrais (ministério e departamentos centrais) e regionais (ARS). A etapa que se seguiu foi a formulação do problema, procedendo-se à delimitação do quadro teórico-conceptual e à definição dos objectivos e perguntas de investigação, estes últimos de importância decisiva na orientação de todo o processo de pesquisa e que permitiram a concepção da estrutura operacional de orientação para a investigação, o plano de pesquisa. Depois de definido o tema e especificados os seus objectivos, havia que caracterizar o projecto de investigação e decidir sobre os métodos que melhor serviriam os fins em vista para, depois, conceber os instrumentos de recolha de informação mais apropriados. 4. CARACTERIZAÇÃO DO PROJECTO DE INVESTIGAÇÃO O desenvolvimento de uma investigação tem subjacentes vários e diferentes motivos e destinatários mas, sempre, com o objectivo de obter respostas a determinadas questões, mediante a aplicação de métodos científicos. Estas questões podem destinar-se a suprir uma lacuna em conhecimento, ou a pôr à prova uma hipótese, ou ainda verificar se uma proposição geralmente admitida é realmente sustentável (Selltiz et al, 1986). Segundo estes autores, serão as formulações daquelas questões, razões de natureza intelectual ou prática, que irão conduzir, respectivamente, aos dois tipos em que tradicionalmente a investigação é categorizada: investigação pura, básica, ou fundamental (Bogdan et al, 1998 e Miles et al, 1994) e investigação aplicada. De acordo com estes dois últimos autores, a investigação será fundamental quando no interesse do investigador tiver como objectivo aumentar o seu conhecimento ou compreensão geral sobre o fenómeno e, como destinatários, as comunidades académica e científica; será aplicada, quando visar obter resultados que possam ser directamente utilizados na tomada de decisões práticas ou na melhoria de programas e na sua implementação e tiver vários tipos de audiência (professores, administradores e políticos) que possuam a preocupação comum pelas implicações práticas imediatas do processo de investigação. Para Bogdan et al (1998) e Selltiz et al (1986), mesmo que no início de um estudo não se determine, necessariamente, qual será a natureza da sua contribuição final, as razões que estiveram na origem desta pesquisa permitiriam classificá-la, desde logo, como uma investigação aplicada. Uma investigação com características predominantemente exploratórias e descritivas, porque teve como finalidade adquirir e aprofundar conhecimentos pouco elaborados ou escassos, que permitissem uma formulação mais precisa do problema em estudo, o estabelecimento de prioridades ou o desenvolvimento de hipóteses para futuras investigações. 146 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Mas podemos classificá-la, igualmente, como qualitativa. Primeiro, e de acordo com Moreira, C. (1994), porque a investigação se baseia na captação da subjectividade do fenómeno em estudo, através do envolvimento de indivíduos considerados como actores (stakeholders), cujas perspectivas, “visões”, ou “quadros de referência” necessitam de ser detalhadamente investigados, antes que as suas acções possam ser devidamente interpretadas e explicadas. Segundo, porque o nível de mensuração do problema (objecto de estudo) é qualitativo, ou seja, porque os tipos de dados com que se iria trabalhar eram principalmente categoriais (Grawitz, 2001) e representados verbalmente. Sendo uma investigação qualitativa, ela é necessariamente descritiva (Bogdan et al, 1998), realizada através de grupos de discussão, que participam de um amplo “debate” sobre temas relacionados com os objectivos da investigação ou através de entrevistas em profundidade sobre amostras pequenas. Tem como característica básica a riqueza e a magnitude das informações recolhidas e como finalidade retirar conceitos, modelos, hipóteses e ideias sobre determinado tema ou assunto, utilizando como instrumento de recolha de dados questionários ou entrevistas. No presente estudo os dados recolhidos incluem transcrições de comunicações em seminários, questionários, entrevistas e, ainda, participações através da Web. Os resultados escritos da investigação contêm citações feitas com base naqueles dados, para ilustrar e substantivar a sua apresentação. Posteriormente a discussão dos resultados é enriquecida com o depoimento técnico de dois peritos da área da administração pública e da política e sistemas de saúde. Procura-se ao final do trabalho de investigação garantir a qualidade e correcção da análise efectuada e atestar do rigor científico da metodologia seguida. Na investigação qualitativa parte-se normalmente de extensas bases de interesse, que vão sendo definidas e simplificadas à medida que o estudo avança e vai sendo possível a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interactivos pelo contacto directo do investigador com a situação estudada, procurando entender o fenómeno segundo a perspectiva dos sujeitos. Para Selltiz et al (1986), num estudo com estas características estaria determinada, à partida, a necessária flexibilidade do plano de investigação, de forma a permitir uma abordagem dos múltiplos aspectos do problema, sendo irreflectido formular hipóteses. Para Bogdan et al (1998) e Merriam (1998), a pesquisa qualitativa apresenta algumas características centrais que são inerentes à maioria das suas tradições, das quais merecem destaque: (i) a investigação qualitativa é comparável a um guarda-chuva, cobrindo vários tipos de pesquisa; (ii) baseia-se na óptica da realidade construída por indivíduos interagindo nos seus mundos sociais; (iii) é um esforço para entender situações únicas como parte de um contexto particular e das suas interacções; (iv) a preocupação básica é entender o fenómeno sob a perspectiva dos actores e não do investigador; (v) o investigador é o instrumento primário de recolha de dados, ao invés de levantamentos e questionários inanimados, com larga aplicação do computador; (vi) habitualmente envolve trabalho de campo; (vii) utiliza estratégia indutiva de pesquisa e, (viii) é ricamente descritiva, pois evidencia processos, sentidos e conhecimentos. Tese 147 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização 5. DESENHO DO PROJECTO DE INVESTIGAÇÃO O desenho do projecto de investigação que se concebeu seguiu de perto a metodologia de análise de Donabidean67, que assenta principalmente na análise dos inputs, do processo e dos resultados (outputs), já que se trata de avaliar o processo de mudança na administração pública, centrado na contratualização (Figura 12). 1 Input Processode demudança mudança Processo na Administração na Administração Pública,centrado centradonos nos Pública, resultados resultados Lei de Bases da saúde -1990 5 Hospital Fernando Fonseca 6 Análise SWOT A (Portugal) Processo 2 ARS Lisboa – 1996 - 2000 7 t1 OUTPUTS Estudo R e I n o U n I d o E s p a n h a P o r t u g a l 4 Input Separação Público Privado 3 Input Modernização do SNS Experiências de outros países europeus Inputs Processo Revisãosistemática sistemática Revisão Output 1 B C t3 Output 2 Output 3 Tempo 4 Output 4 Análise D Questionários/entrevistas/Web (Análise de Conteúdo) Outputs Exemplo de relação financiamento/produção/saúde (1) Integração cultural da contratualização: Ex Educação (2) e experiência portuguesa com centros de saúde (3) e experiência médico/dentária (4) Análise E t2 Síntese 8 Processo de Mudança Predominantemente : Político Técnico operacional, Cultural Figura 12 – Desenho do estudo Assim, como inputs principais contou-se com a informação colhida acerca de outros países europeus, principalmente os casos inglês e espanhol, embora sejam levadas em linha de conta, igualmente, as experiências desenvolvidas em outros contextos, nomeadamente Canadá, Finlândia, Dinamarca e Itália, entre outros, que nos anos noventa ensaiaram ou aplicaram novos modelos de administração nos seus sistemas de saúde, ou simplesmente introduziram alterações nos modelos vigentes. Posteriormente analisou-se a realidade portuguesa, procurando-se sobretudo a visualização dos momentos de ruptura ou alteração política com impacto significativo na organização e ordenação do sistema económico e social, nos últimos trinta anos, e 67 Sobre este autor, lê-se em WHO, (2000), “Evidence and Information for Policy”, in Bulletin of the World Health Organization, 78 (6) “During the 1960s and 1970s two major contributions provided lasting legacies that have guided succeeding generations in their quests to improve the quality and distribution of health services. The first was Avedis Donabedian’s seminal partition of medical care analyses into the elements of structure, process, and outcome. A classic article in the Milbank Memorial Fund Quarterly “Evaluating the quality of medical care”, preceded by a dozen years the publication of his widely acclaimed treatise entitled “Explorations In Quality Assessment and Monitoring”. The second volume, published in 1972 in Britain, was a slim classic by the late Archie Cochrane entitled “Effectiveness and Efficiency: Random Reflections on Health Services”. 148 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização pretendendo, a partir dessa realidade, retirar as ilações que nos pareceram mais adequadas para explicar, do ponto de vista cultural, os factores críticos que no contexto português impedem ou constrangem a implementação de mudanças significativas na administração pública. Circunstâncias como o 25 de Abril, a adesão à UE, os nove anos de governação social-democrata, seguidos dos seis anos de governação socialista, a criação dos cuidados de saúde primários, a onda legislativa do início dos anos noventa e a nova onda reformista do final dos anos noventa, conjugada com a adesão à moeda única europeia, são acontecimentos de uma riqueza extraordinária que podem ajudar a contextualizar o problema e a entender os fenómenos que na área da saúde, por vezes, nos parecem inexplicáveis. Para completar a contextualização e procurar reduzir a complexidade da análise, ouviram-se alguns dos principais actores da saúde e, através duma análise SWOT aplicada no final do ano de 1999 e início de 2000, procurou-se clarificar o papel de cada um deles e verificar da existência dum pensamento estruturante ou de uma clara estratégia definidora do papel que individualmente cada um tem na estratégia e desenvolvimento do sistema de saúde, ou seja, no final, concluir da existência ou ausência dum pensamento estratégico sustentado por parte daqueles que se movem nesta área. Esta metodologia foi posteriormente repetida, no ano 2002, dado o quadro actual de mudanças estruturais anunciadas. O processo de contratualização, encetado em Portugal em 1996 e que visava introduzir regras claras de relacionamento entre o Estado regulador e os prestadores de cuidados, conjugadamente com a introdução de uma mudança de paradigma - responsabilizar, avaliar e negociar, ao invés de distribuir sem controlo e sem avaliação - mas simultaneamente pretendendo substituir o tradicional modelo de comando e controlo por um modelo que incrementasse a eficiência e o desempenho, foi analisado através dum questionário, conjugado com entrevistas e com a criação de uma página na Web, onde os intervenientes no processo avaliariam o desenvolvimento deste método, em cinco vertentes principais: (i) a descrição do que aconteceu, caracterizando o processo de arranque; (ii) o processo de desenvolvimento, levando em linha de conta a base cultural; (iii) o processo de contratualização, propriamente dito, (iv) outras formas e modelos alternativos que poderiam ter sido escolhidos e, (v) uma visão sobre o processo de desenvolvimento, para se poder alcançar um dos diferentes modelos alternativos que parecem poder colocar-se, ou seja, o ponto de chegada. Através da informação estatística e legislativa disponível fez-se uma análise que nos permitisse retirar conclusões sobre o estado da arte. Assim, procurou-se analisar a relação entre os dados de contexto económico-social, recursos, financiamento, produção e desempenho, com indicadores que evidenciam o estado de saúde dos portugueses, conjugadamente com a produção normativa num continuum de trinta anos (1970-2000); avaliou-se a integração cultural e o conhecimento do processo de contratualização através do trabalho de análise e investigação de alguns técnicos e profissionais de saúde e, procurou-se ainda, avaliar o processo de contratualização encetado na área da educação. Tese 149 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Por último e perante algumas das conclusões obtidas através dos instrumentos anteriormente descritos, procurou confirmar-se pela aplicação de um questionário estruturado/entrevista a directores, administradores da maioria dos hospitais públicos e ainda a coordenadores regionais e sub-regionais, com responsabilidade pelos centros de saúde, se de facto sentiam que a contratualização tinha efectivamente introduzido algumas mudanças no desempenho dos dirigentes da saúde e se, no entender destes actores privilegiados do sistema, o cidadão teria aumentado a sua participação no acompanhamento e monitorização dos prestadores de saúde. Através das conclusões obtidas com base na informação trabalhada, procurou-se discutir e auscultar especialistas que dessem o seu testemunho sobre estas conclusões e comentassem a discussão dos resultados, que se elaborou a partir da matriz de conhecimento obtida durante o processo de investigação. 6. O MÉTODO Procurar-se-ão descrever os momentos fundamentais do processo de investigação que, depois da definição dos objectivos e das perguntas de investigação colocadas, constituíram a função do método de pesquisa e que, de acordo com Almeida et al (1995), serão; (i) a selecção das técnicas operadas por referência ao objecto e à teoria que o constrói; (ii) o controlo das condições úteis de exercício das mesmas técnicas para a produção de diversos resultados parciais e, (iii) o relacionamento desses resultados, de forma a poder obter-se um produto final. No final de 1999 e início de 2000, data em que aconteceu uma mudança de Ministério da Saúde e em que foi proclamada a alteração das linhas estratégicas vigentes, fez-se a auscultação dos profissionais de saúde, envolvidos no processo de contratualização, através de questionários, entrevistas e todos os meios que pudessem ser usados para registar e documentar os factos. Igualmente se tornava importante obter os pontos de vista dos principais actores (stakeholders) da saúde e para esse fim o método que entendemos mais adequado foi o de organizar um conjunto de seminários, em que lhes seria pedido que viessem discutir connosco o sistema de saúde e as mudanças perspectivadas, bem como nos transmitissem o seu pensamento estratégico. Foi igualmente decidido contar ainda, com a análise crítica dos alunos do Mestrado em Gestão dos Serviços de Saúde do ISCTE, que como grupo interessado na discussão e aprofundamento destas matérias, em muito poderiam enriquecer a discussão e o conhecimento. Tendo por base a urgência na discussão, mas não devendo descurar as questões metodológicas, seguiram-se as principais etapas a que um estudo metodologicamente concebido e cientificamente comprovado deve obedecer. 6.1 Os universos de estudo e a técnica de amostragem Definidos os objectivos do trabalho, colocou-se a questão de saber qual a população ou universo de estudo, como seleccionar a amostra e como determinar a sua dimensão. De 150 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização acordo com Miles et al (1994) e com base na situação já atrás identificada, foi o quadro teórico-conceptual e os problemas da pesquisa que, ao determinar os pontos de interesse e as fronteiras no interior das quais seriam escolhidas as amostras, permitiram a identificação dos actores objecto da investigação. Numa primeira análise, a população teria de corresponder aos profissionais do sector da saúde que fossem testemunhas privilegiadas, isto é, de acordo com Quivy et al (1998), interlocutores válidos que, pela sua posição, acção ou responsabilidades, tivessem conhecimento do problema. Assim, considerou-se como universo, na primeira parte deste estudo, o conjunto de interlocutores privilegiados do sector da saúde que colaboraram, desenvolveram e acompanharam o processo de contratualização, quer pelos seus saberes, quer pelo seu conhecimento do sistema de saúde português, quer pela sua sensibilidade para a temática em estudo, quer ainda pelo seu envolvimento e posicionamento político no sector da saúde e concretamente pela sua participação no processo de mudança. Para a selecção da amostra, dada a natureza qualitativa do estudo e o objectivo de desenvolvimento de um modelo que englobasse várias instâncias do problema, a representatividade da amostra assumia menos importância. Não se verificando preocupações de generalização, a melhor estratégia de amostragem consistiria na utilização de uma técnica de amostragem não probabilística do tipo intencional (Moreira, C., 1994). Merriam (1998) afirma que na pesquisa qualitativa é indicado o uso da amostra não probabilística, da qual se destaca a amostra intencional, que consiste em identificar e seleccionar uma amostra em que seja possível obter as informações necessárias para o estudo. A lógica e o poder da amostra intencional reside na selecção da informação rica de casos para o estudo em profundidade. A amostragem intencional é uma forma de amostragem por conveniência, em que as unidades amostrais são seleccionadas intencionalmente pelo investigador, que considera que esses casos possuem as características representativas do universo de estudo ou porque de alguma forma os considera apropriados. A utilização desta técnica de amostragem intencional (amostra de conveniência), segundo Silva et al (1997), tem como pressuposto básico uma “boa” intuição e uma estratégia adequada para seleccionar os elementos que devem ser incluídos na amostra. Quanto à dimensão da amostra, segundo Ghiglione et al (2001), ela não deve depender apenas da heterogeneidade das reacções na população, face ao problema colocado, mas também, e sobretudo, do método de análise empregue. Mas quer devido às limitações de tempo e recursos, quer pela sensibilidade do tema, ela teria que ser fixada antes do início do trabalho de campo e, por outro lado, o número de pessoas a entrevistar iria depender da utilização que se pretendia dar aos resultados e que no caso vertente seriam conjugados com os resultados de outros métodos aplicados. Mas ainda, segundo aqueles autores, quando se utiliza a técnica de entrevista semi-estruturada, é raro surgirem novas informações após a vigésima ou trigésima Tese 151 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização entrevista. No entanto, no presente estudo procurou-se incluir o máximo de profissionais que estavam directamente ligados ao processo de contratualização, bem como os actores mais identificados com a saúde, ou seja, o nosso objectivo era atingir a quase totalidade dos profissionais mais directamente envolvidos e os actores mais representativos nos três tipos de análise efectuados. Assim, na primeira parte, a amostra era inicialmente constituída por vinte e oito elementos, tendo-se obtido apenas respostas de catorze especialistas, devido decerto ao momento de transição política, à falta de tempo dos profissionais, ou até mesmo à desvalorização do processo. Quanto à composição da amostra, a regra foi, necessariamente, a sua heterogeneidade. O que se desejava era a pluralidade de perspectivas, em relação ao modelo de contratualização desenvolvido e as suas principais características. Assim, foi assegurada esta heterogeneidade, quanto à formação profissional dos peritos, quanto ao tipo de instituição que representam, à localização geográfica onde exercem a sua actividade e, também, quanto ao cargo que desempenhavam à altura da realização do estudo. Foi esta última característica que deu origem à estratificação utilizada neste trabalho e que consta do Quadro 15. QUADRO 15 - Estratificação da I amostra intencional Número de participantes seleccionados Categorias Académicos Enfermeiros Gestores Médicos de Clínica Geral Médicos de Saúde Pública Políticos Economistas 2 1 7 6 7 1 4 TOTAL 28 A identificação dos participantes que integraram a I e a II amostra intencional ou de conveniência e o respectivo cargo constam do Anexo III. Perante algumas dificuldades encontradas a partir do contacto com profissionais e peritos, fomos procurar informação junto das entidades mais representativas, enquanto actores principais do sistema, considerando-se a importância da informação como subsídio indispensável para as linhas de acção a adoptar. De forma mais específica, procurou-se também identificar o tipo de estratégia que cada um prossegue e a opinião destas entidades acerca do papel do Estado como garante da saúde das populações, observar se há um padrão nas estratégias seguidas, identificar o posicionamento de cada uma face às medidas de mudança em curso, verificar o auto-posicionamento na matriz de distribuição dos actores. Nesta segunda parte do processo de investigação a população era necessariamente composta pelos actores privilegiados do sistema, os Stakeholders, identificados no Anexo IV. Para compor a amostra da pesquisa, seleccionou-se um grupo de entidades representativas de nove áreas profissionais, organizacionais e dos sectores de prestação: médicos, enfermeiros, administradores hospitalares, técnicos de saúde, indústria, 152 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização misericórdias, mutualidades, prestadores privados, sindicatos e departamentos centrais do Ministério da Saúde (Quadro 16). QUADRO 16 - Estratificação da II amostra intencional (Stakholders) ÁREAS ACTORES Ministro da Saúde (MS) e Secretário de Estado da Saúde (SES) Direcção Geral da Saúde (DGS) Governo Administrações Regionais de Saúde (ARS) Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde (IGIF) Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) Representantes dos doentes Grupos de Cidadãos Associações de defesa de doentes ONG’s e IPSS União das Misericórdias União das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) União das Mutualidades Ordem dos Médicos Ordem dos Médicos Dentistas Organizações Profissionais Ordem dos Enfermeiros Ordem dos Farmacêuticos Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) Representante dos prestadores privados Sindicatos Federação Nacional de Cuidados de Saúde (FNS) Sindicatos dos Médicos Sindicato dos Enfermeiros Sindicatos dos Técnicos de Saúde Representantes da área do medicamento Associação Nacional de Farmácias (ANF) Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) Associação dos consumidores Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO) Comunicação social Televisão/Rádio/ Imprensa As entidades foram seleccionadas aleatoriamente a partir de critérios prévios para a delimitação do universo, os quais levaram em conta as seguintes características: carácter permanente; abrangência nacional; representatividade; mediação entre a sociedade e o poder público e formação de opinião. A identificação dos representantes das entidades respondentes foi preservada em função do objectivo da pesquisa, que não era o de estudar um caso ou casos específicos que pudessem dar margem a comparações indesejadas, mas o de identificar necessidades e processos envolvidos na busca de informação credível. Dos actores convidados para participarem nos seminários responderam afirmativamente os que estão identificados no Anexo V, os quais se disponibilizaram para apresentar as suas posições sobre o sistema de saúde e sobre o processo de mudança em curso e a discutirem as suas próprias estratégias, quer as que prosseguem, quer as que julgam adequadas no futuro. Tese 153 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Convidámos ainda alguns peritos que comentaram as posições dos actores, à luz duma estratégia de mudança e tendo em conta a dificuldade de implementação das medidas já definidas. Uma vez que se tornava muito importante deixar que os intervenientes expusessem livremente as suas opiniões e através delas conseguirmos enriquecer o nosso conhecimento sobre a estratégia dos actores e, também, porque desejávamos recolher contributos para a identificação dos principais factores críticos presentes num processo de mudança, o que exige a ponderação de diversos elementos para imaginar as tendências de evolução dum sistema, efectuámos seminários de discussão aberta através da técnica de brainstorming, como uma forma eficaz para encorajar a produção de ideias e que permite respostas rápidas às questões colocadas. Pretendíamos partilhar e confrontar ideias, centrar a atenção sobre a capacidade de resposta do sistema face aos factores externos que o condicionam e equacionar de forma estruturada as decisões estratégicas dos actores, de modo a concebermos estratégias de actuação, o que envolve frequentemente uma análise SWOT - strengths (pontos fortes), weaknesses (pontos fracos), opportunities (oportunidades) e threats (ameaças). O objectivo é identificar as decisões estratégicas, mobilizando as pessoas para criar mais pontos fortes e reduzir as fraquezas do sistema, explorando e maximizando as oportunidades e evitando ou até mesmo combatendo as ameaças (constrangimentos). pois através desta técnica seria possível obter contribuições significativas para identificar os factores críticos que condicionam a mudança. Nesta parte da investigação procurou-se seguir de perto a metodologia, os ensinamentos e recomendações sobre a técnica de Análise de Actores, disponível através dum software de apoio à decisão estratégica (Software Policymaker68), cuja metodologia se descreve em anexo (Anexo VI) e que foi desenvolvida por Michael R. Reich (Reich, M., 1996), Director do Centro de Estudos e Desenvolvimento das Populações em Harvard, Professor e Investigador de Políticas de Saúde, que se preocupa com o desenvolvimento das políticas públicas de saúde em países pobres. Este software foi-nos fornecido pelo próprio autor a partir dum contacto estabelecido via Internet. Numa terceira parte, considerou-se como universo do estudo o conjunto de gestores de topo da saúde, directores ou administradores delegados dos hospitais públicos, administradores hospitalares e outros técnicos, que nos hospitais tivessem acompanhado o processo de contratualização e coordenadores sub-regionais que acompanharam e participaram no processo de contratualização ao nível dos centros de saúde, pelo conhecimento directo sobre o desenvolvimento da contratualização no caso português, e ainda pelo seu envolvimento e posicionamento no sector e concretamente pelas suas participações no processo de mudança. No que se refere à composição da amostra, a regra continuou a ser a sua heterogeneidade e pluralidade de perspectivas em relação ao modelo de contratualização desenvolvido e às suas principais características. Assim, foi assegurada esta 68 Policymaker Computer-Aided Political Analysis: Improving the Art of the Feasible, by Michael R. Reich and David M Cooper, version 2.3.1, December 9, 2000, Brookline, USA. 154 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização heterogeneidade quanto à formação profissional dos peritos, quanto ao tipo de instituição que representam e, sobretudo, à localização geográfica onde exercem a sua actividade e função que desempenham na estrutura, como dirigentes da saúde. Foi esta última característica que deu origem à estratificação utilizada nesta amostra e que consta do Quadro 17. QUADRO 17 - Estratificação da III amostra intencional Número de participantes seleccionados Categorias Directores Hospitalares 6 Administradores Delegados 39 Administradores Hospitalares 23 Coordenadores Sub-regionais 6 Médicos 3 Economistas 4 TOTAL 81 A identificação dos participantes que integraram a amostra inicial e o respectivo cargo constam igualmente do Anexo III. 6.2 Selecção e aplicação das técnicas de recolha e análise de dados Dada a natureza do objecto de estudo, o tipo de dados a recolher e o tipo e número de elementos que viriam a ser observados, impunha-se, também, uma selecção das técnicas de recolha e análise de dados. Considerando que os procedimentos de observação e posterior análise são seleccionados em função dos objectivos do estudo, impunha-se a opção por uma abordagem qualitativa para esta parte da análise, pela natureza do objecto do estudo, já que se trata não só de uma questão económica mas que envolve também aspectos éticos e simbólicos. O tema tem além disso, directa ou indirectamente, incidências políticas, implica processos de reestruturação económica e espacial e é muito influenciado pelos valores e representações sociais e culturais dominantes. Por estas razões a abordagem qualitativa, através da opinião dos actores e peritos, mostra-se a mais pertinente e adequada para identificar o modelo de administração que melhor se lhe ajusta. A técnica a que se recorreu foi a Técnica dos Informadores–Chave da Comunidade (Justo, 1993), que não sendo uma técnica de consenso, já que não conta com os momentos de informação de retorno nem de interacção, constitui um processo específico de recolha de informação que pode ser utilizado como base de trabalho em qualquer uma das técnicas de consenso. Para Zelditch, M. (1971 referenciado em Vala, 1987), a recolha de informação baseada em informadores-chave é a técnica mais adequada para a auscultação de especialistas sobre normas e acontecimentos observáveis, mas que podem passar despercebidos. Aqui Tese 155 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização os consensos alcançados são principalmente concordâncias entre as opiniões expressas pelos intervenientes. Segundo Pineault et al (1993 em Justo, 1993), a selecção dos participantes pode ser feita aleatoriamente a partir de uma lista de informadores chave que obedeçam aos critérios previamente estabelecidos, devendo-se ter em atenção que as respostas obtidas constituem a resposta actual dos respondentes sobre o tema em análise, não tendo valor predictivo. Ainda de acordo com este último autor, baseando-se em Hubert (1991), pode utilizar-se um questionário estruturado ou não estruturado e as respostas deverão ser agrupadas em temas, permitindo constituir conjuntos de enunciados operacionais pela aplicação da Técnica de Análise de Conteúdo. Segundo Kerlinger (1980) e Ghiglione et al (2001), certas propriedades qualitativas, como a atitude e as opiniões, podem representar-se como um atributo quantitativo mediante a sua divisão analítica em dimensões parcialmente isoladas. Seguimos, por isso, um procedimento aberto (exploratório), em que as diferenças, as semelhanças e as transformações devem ser interpretadas para se obter uma caracterização dos estados observados. Face à complexidade do objecto de estudo tornou-se clara a necessidade de recorrer a uma combinação de métodos e técnicas de investigação que pudessem apoiar a pesquisa. Foi, no entanto, necessário elaborar os procedimentos, estabelecer normas, abandonar algumas vias e corrigi-las. Na selecção dos métodos a utilizar teria de se recorrer às técnicas de investigação qualitativa, tal como referido anteriormente, mais precisamente às técnicas de recolha de dados com perguntas abertas e à técnica de análise de conteúdo das respostas obtidas, sustentado em Vala (1987), que a recomenda nas situações em que o investigador não se sente apto para antecipar todas as categorias ou formas de expressão que podem assumir as representações ou práticas dos sujeitos questionados. Pretendendo-se efectuar um estudo com várias dimensões e abordagens e em que com a investigação se pretendia obter o máximo de informação possível sobre o processo da contratualização e sabendo-se ainda que algumas das pessoas dificilmente estariam disponíveis para uma longa entrevista, optou-se pela implementação de um plano de inquérito. Sendo o inquérito uma técnica que acciona diversas técnicas de recolha de dados, entre elas a entrevista e o questionário, considerou-se que, aplicando a técnica do questionário, se conseguiria um conjunto suficientemente significativo de unidades de observação que permitiria retirar inferências do observado, e utilizando a técnica da entrevista, para o efeito uma entrevista semi-estruturada a informadores privilegiados, se poderia conduzir uma observação tão profunda quanto as dimensões da realidade em análise. A metodologia então adoptada para responder às necessidades de informação e atender à complexidade e aos objectivos da pesquisa baseou-se na triangulação de técnicas para recolha de dados. Essa triangulação, oriunda da psicologia organizacional, consiste na utilização complementar de entrevistas informais, questionários e análise documental de livros, artigos, relatórios e outras publicações. Segundo Jick (1983), a triangulação apresenta diversas vantagens, na medida em que pode ser utilizada não só para se 156 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização examinarem vários aspectos do mesmo fenómeno como também para proporcionar novos elementos ao entendimento da questão. 6.2.1 Técnicas de recolha Combinam-se assim várias técnicas de recolha de informação, extensivas e intensivas, de forma a garantir a representatividade dos resultados a obter, dado que se referem a uma realidade tão particular quanto complexa. Esta pesquisa faz-se num contexto marcadamente pragmático. Trata-se de uma pesquisa para a acção e não somente de uma investigação pela investigação, pois o inquérito pretende obter a opinião dos especialistas envolvidos no desenvolvimento da contratualização, bem como dos dirigentes da saúde que, como veículos de facilitação ou obstrução, participaram no processo encetado em Portugal em 1996/1997 e, através dela, alinhar um conjunto de indicações que possam apoiar o desenvolvimento e aprofundamento desta temática. Recorreu-se também à técnica de observação, que resultou da fase de implementação do processo de contratualização, que se coordenou, dinamizou e acompanhou e que permitiu registar emoções, compromissos, expressões que complementam os dados recolhidos. Conjugou-se ainda este conhecimento com a evidência recolhida através das experiências e modelos desenvolvidos em outros países. A análise SWOT, outra técnica utilizada, visa conhecer a posição dos principais actores e através dela compreender melhor o xadrez em que se desenrolam as acções que contextualizam o sistema de saúde e o seu desenvolvimento. Por último, efectuou-se uma análise quantitativa, análise de séries temporais aos dados disponíveis de produção, de recursos, económico-sociais, financeiros, de desempenho e de resultados nos últimos trinta anos (1970-2000), o que conjugado com a informação já disponível e com a análise da produção legislativa de igual período, permitiu identificar, com maior clareza e rigor, os factores críticos que no contexto português impossibilitam ou dificultam a implementação e desenvolvimento de políticas na área da saúde, no caso vertente a contratualização. Este exercício mostra que o diálogo entre as pesquisas intensivas (qualitativas) e as extensivas (quantitativas) deve ser estabelecido e incentivado, podendo revelar-se enriquecedor, seja ao nível dos conteúdos e temáticas, seja ao nível da sugestão de pistas para exploração e interpretação dos resultados. 6.2.1.1 O questionário No presente estudo adoptou-se como principal técnica de recolha de dados primários o questionário, embora sabendo-se que é considerado, por muitos autores, frio e impessoal, porque o entrevistado responde fora da situação estudada e ainda porque não permite perceber a dinâmica do fenómeno em análise. Contudo, a sua aplicação Tese 157 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização está indicada quando se requer um primeiro levantamento sobre o tema em estudo. Alguns autores, nomeadamente Merriam (1998), entendem que na investigação qualitativa se devem adoptar, principalmente, as técnicas de entrevista e observação, mas admitem o questionário, sobretudo se conjugado com as duas técnicas já referidas. A opção pelo questionário teve como principal objectivo facilitar a recolha de dados, devido à dispersão dos especialistas a entrevistar e à dificuldade de agendas e ainda pelo facto da quantidade e diversidade das questões a abordar ser de facto elevada, obrigando a entrevistas muito longas. Tornando-se necessário determinar a duração aproximada de preenchimento de cada questionário, e sendo fundamental testar esta técnica, a versão inicial do questionário foi aplicada em dois elementos que não constituíam a amostra. Depois deste pré-teste, foram introduzidas as alterações consideradas pertinentes e que se situaram sobretudo ao nível de uma maior desagregação de algumas das questões e numa melhor clarificação do que se pretendia em cada um dos grupos de questões, através duma breve introdução em cada um desses grupos. Foi então estabelecido um contacto telefónico com os peritos seleccionados, para apurar a sua disponibilidade em participar no estudo. Neste contacto, explicou-se o âmbito em que o estudo se realizava, referiram-se os seus objectivos e explicou-se como e por que razão cada participante tinha sido escolhido, referindo-se, ainda, o tempo aproximado de preenchimento do questionário (Anexo VII). Foi, igualmente, acordada a via de expedição do documento (fax, carta, e-mail). Também se assegurou a confidencialidade das declarações prestadas. Dada a vastidão do tema e porque se pretendia uma colaboração efectiva por parte dos entrevistados, foi feita referência a alguns tópicos relacionados com a temática, fazendo-o acompanhar de um documento, escrito para o efeito (Anexo VIII), visando uma maior e melhor clarificação sobre o tema. A necessidade de complementar a presente investigação, tal como referido anteriormente, levou ao desenvolvimento de um II questionário (Anexo IX), que foi aplicado telefonicamente a 51 dos 81 gestores de topo da saúde primitivamente seleccionados. Este questionário, tal como o I, foi inicialmente sujeito a um pré-teste aplicado a dois elementos que não constituíam a amostra, de forma a determinar a duração aproximada do contacto telefónico para preenchimento de cada inquérito. Depois deste pré-teste, foram introduzidas as alterações consideradas relevantes e que se situaram sobretudo numa melhor clarificação de algumas das questões. Foi então estabelecido o contacto telefónico com os peritos seleccionados, para apurar a sua disponibilidade em participar no estudo ou proceder de imediato ao preenchimento do questionário desenvolvido. A indisponibilidade ou falta de tempo de alguns dos dirigentes não nos permitiram em tempo útil atingir o nosso objectivo inicial, que era o de auscultar todos os coordenadores sub-regionais (18) e um dirigente de cada um dos principais hospitais públicos (63) que tivessem acompanhado o processo de contratualização ao nível dos hospitais e dos centros de saúde. 158 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização 6.2.1.2 A entrevista semi-estruturada Segundo Moreira, C. (1994), uma vez que o objecto de estudo constituía um novo terreno de pesquisa, era exigida uma abordagem mais flexível, como estratégia de investigação. Uma vez que a técnica de recolha de dados teria de conter, maioritariamente, perguntas abertas e as questões a colocar não deveriam estar todas previamente definidas, a opção teria de recair, parcialmente, como já se referiu, sobre a técnica de entrevista, ou seja, sobre um procedimento de investigação que utilizasse a comunicação oral como forma de recolha de informações. Esta técnica, pela sua flexibilidade, dá a possibilidade de repetir questões ou de as formular de uma outra maneira, garantindo que são compreendidas, de formular outras perguntas, a fim de esclarecer o significado de uma resposta, de desafiar o relato do entrevistado para apurar a consistência das suas respostas e, ainda, de criar uma atmosfera que permita ao respondente expressar opiniões que, habitualmente, são desaprovadas (Selltiz et al, 1986). Os tipos de entrevistas são diferenciadas pelos diversos autores, através de um contínuo grau de estruturação que, na opinião de Ghiglione et al (2001), corresponde a “um percurso entre um quadro de referência perfeitamente constituído e outro que gostaríamos de conhecer”. Assim, porque o objectivo do estudo condicionava, à partida, o tipo de entrevista a escolher, teria que se optar pela estruturação, possível, da técnica. De facto, dada a natureza essencialmente exploratória do estudo e a necessidade de investigar a estrutura do quadro de referência dos participantes, relativamente a um tema cujas características essenciais resultavam do seu carácter alargado e ambíguo, impunha-se, segundo aqueles autores, a entrevista semi-estruturada como uma das técnicas de recolha de dados. Um tipo de entrevista em que a liberdade do entrevistador constituiria, ao mesmo tempo, a sua maior vantagem e a maior desvantagem. Uma flexibilidade que poderia conduzir, segundo Selltiz et al (1986), à falta de analogia entre as entrevistas, para além de que a sua análise seria mais difícil e morosa do que nos outros tipos de entrevistas padronizadas. Para compensar este risco e obviar aos seus possíveis efeitos, utilizou-se, como recomenda Moreira, C. (1994) e Duverger (1996), um guião de entrevista, um instrumento particularmente apropriado para a entrevista semi-estruturada. A entrevista semi-estruturada é, assim, uma entrevista não directiva suportada em algumas questões, que ao longo do encontro se vão ajustando à característica do entrevistado e aos conteúdos pretendidos pelo investigador, razão da sua flexibilidade. O entrevistador possui um guião com um conjunto de assuntos que constituem um suporte importante às questões que devem ser colocadas a todos os entrevistados. Os guiões são elaborados com base na revisão de literatura, devendo ser usados vocábulos de forma que as pessoas entendam os conteúdos das perguntas. Tese 159 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Assim, sem qualquer intenção de estruturação, ou seja, sem querer limitar o tipo de questões a colocar ou impor qualquer ordem na sequência da entrevista, deixando o entrevistado desempenhar um papel crucial na definição do conteúdo da entrevista e na condução do estudo, foi concebido o guião de entrevista que consta do Anexo X e no qual se incluíram os tópicos que se pretendiam ver abordados pelos entrevistados, para permitir, posteriormente, alguma comparabilidade nas informações recolhidas. Consistindo a entrevista semi-estruturada num dos principais instrumentos de recolha de informação, tornava-se necessário determinar a duração aproximada de cada entrevista, razão pela qual era fundamental adquirir alguma sensibilidade na aplicação desta técnica. Por esse motivo, a versão inicial daquele guião foi testada em dois elementos que não constituíam a amostra. Depois do pré-teste, foi efectuado um contacto telefónico com os peritos seleccionados, para apurar a sua disponibilidade em participar no estudo. Neste contacto explicou-se o âmbito em que o estudo se realizava, referiram-se os seus objectivos e explicou-se como e por que razão cada participante tinha sido escolhido, referindo-se ainda, o tempo aproximado da duração da entrevista. Foi, igualmente, acordada a data, hora e local para a realização da entrevista. Foi igualmente assegurada a confidencialidade das declarações prestadas. Dada a vastidão do tema e uma vez que se pretendia uma colaboração profícua por parte dos entrevistados, foram feitas referências a alguns tópicos relacionados com a temática, fazendo-a acompanhar de alguma documentação sobre o assunto. Sendo uma das bases do estudo a entrevista semi-estruturada e considerando a análise de conteúdo que posteriormente se pretendia aplicar às declarações recolhidas, era recomendável a gravação da entrevista (Bogdan et al, 1998, Lessard-Hebert et al, 1994 e Moreira, C., 1994), apesar das considerações negativas que muitas vezes são levantadas acerca do uso de um gravador durante uma entrevista. A maioria dos peritos seleccionados para entrevista foram desmarcando sistematicamente as reuniões agendadas, tendo sido possível realizar somente uma entrevista, consentindo o entrevistado na gravação das suas declarações, na sequência de autorização que lhe tinha sido explicitamente solicitada. É de salientar que, no decurso da entrevista, a própria referência ao tema sugeria ao respondente, de imediato, a abordagem de muitos dos aspectos contemplados no guião que elaborámos, pelo que a sua utilização foi praticamente desnecessária. 6.2.1.3 A página Web Actualmente a evolução das tecnologias de informação já nos permite criar uma forte interactividade e trabalhar em rede informação pertinente. Optou-se, por isso, por criar uma página Web (no espaço das páginas pessoais do servidor da teleweb), onde com maior facilidade os peritos poderiam dar as suas opiniões e ir reunindo todos os elementos que fossem considerados pertinentes para o desenvolvimento do processo de contratualização, conforme consta do Anexo XI. 160 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização A mudança de rumo ao nível político, conjugada com o facto de não serem dados quaisquer tipo de sinais no sentido do desenvolvimento e implementação das medidas adoptadas pelo anterior Ministério da Saúde, vieram desorientar os profissionais e fazer com que a sua participação ao nível de estudos deste tipo não fosse nem uma prioridade, nem sequer desejável. Tal postura veio saldar-se por uma fraca ou quase nula participação neste instrumento de recolha de opiniões. Além disso, verificou-se o encerramento definitivo dos serviços da teleweb, sem qualquer tipo de aviso prévio e sem que tenha sido dada qualquer hipótese de ser feita a migração para outro serviço similar. A conjugação destas situações resultou em que somente fosse possível o aproveitamento de três participações, cujos resultados irão ser objecto de análise conjunta com os questionários e entrevista. 6.2.1.4 O depoimento técnico Com o objectivo de clarificar e até avaliar algumas das conclusões retiradas da análise dos resultados obtidos a partir da aplicação da Técnica de Análise de Conteúdo às respostas obtidas nos questionários, nas entrevistas e ainda as obtidas através da Web, conjugadas com os resultados da Análise SWOT, bem como com toda a análise estatística e revisão bibliográfica feitas, procurou obter-se o depoimento técnico consistente junto de perito profundamente conhecedor dos sistemas de saúde e da administração pública portuguesa, de modo a esclarecer melhor as dimensões e os factores críticos resultantes do modelo de investigação. As dimensões e factores críticos descritos explanam as dificuldades encontradas para o desenvolvimento da contratualização, no contexto da administração pública da saúde e constituem ideias tipo, que permitem caracterizar, sem avaliação normativa, vários pontos de estrangulamento da organização do sistema da saúde, sendo admissível e mais ou menos provável que elas possam ser contornadas em função da evolução da sociedade e das políticas adoptadas. O depoimento técnico mais não é do que um pequeno contributo para a sustentação das conclusões do trabalho de investigação, resultantes do trabalho desenvolvido com os actores identificados e ainda com especialistas, actores privilegiados do sistema, constituindo uma mais valia para o trabalho de investigação e a confirmação da tentativa de rigor e transparência colocados neste processo. 6.2.2 Técnicas de análise Com o objectivo de clarificar os principais conceitos, modelos e teorias do conhecimento em análise quantitativa e qualitativa utilizados, faz-se uma ligeira abordagem a cada um deles, combinando-se várias técnicas de análise da informação disponível, com o objectivo de garantir os melhores e mais rigorosos (consistentes) resultados, dado que, tal como já referido, trata-se de uma realidade de grande complexidade e exigindo grande transparência, precisão e verdade no seu estudo. Tese 161 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização 6.2.2.1 A Análise de Conteúdo Conhecedores de que a pertinência de um método de análise não pode ser julgado noutras bases que não as do seu ajustamento à situação - na qual o analista intervém, face ao tipo de investigação em presença - optámos pela Técnica de Análise de Conteúdo para análise dos questionários e das entrevistas efectuadas, bem como das opiniões colhidas através da Web. Esta técnica, tal como Berelson (1952) a definiu, permite “a descrição objectiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação” (Costa, A. 1987, referenciado em Vala, J., 1987), mas não serve somente para descrição pois, segundo Bardin (2000), é a inferência que permite a passagem da descrição e interpretação, enquanto atribuição de sentido, às características do material, as quais foram levantadas, enumeradas e organizadas. Trata-se de uma técnica de análise que constitui um processo complexo, exigindo muito rigor e objectividade, pois torna possível a apreensão e estruturação de informações de carácter qualitativo, deduzindo resultados e conclusões. Ou ainda, na linha de Berelson (1952, Cartwright, 1953 e Krippendorf, 1980, como refere Vala J., 1987), a análise de conteúdo é considerada uma “técnica de investigação que permite fazer inferências, válidas e replicáveis, dos dados para o seu contexto”. Também segundo Vala, J. (1987), seguindo Lewin, K. (1935), “não há análise de conteúdo sem uma boa teoria. Não há modelos ideais em análise de conteúdo. As regras do processo da inferência que subjaz à análise de conteúdo devem ser ditadas pelos referentes teóricos e pelos objectivos do investigador.” A finalidade da análise de conteúdo será, pois, efectuar inferências, com base numa lógica explicativa sobre as mensagens cujas características foram inventariadas e sistematizadas. Se por um lado, segundo Vala (1987), esta era a técnica privilegiada para tratar o material não estruturado proveniente de entrevistas ou questionários com perguntas abertas, recolhido num estudo onde não tinham sido definidas hipóteses de partida, por outro, segundo Bardin, L. (2000), a análise de conteúdo, na sua função heurística, permitiria enriquecer a tentativa exploratória e aumentar a propensão à descoberta. A análise de conteúdo pode ser utilizada em pesquisas que se refiram a qualquer um dos níveis de investigação empírica, com a vantagem de em muitos casos funcionar como técnica não obstrutiva. Mas pelo facto de não possuir um formato rígido mas somente algumas regras, por vezes dificilmente transponíveis (Bardin, L., 2000), exige, por isso, a adaptação aos objectivos pretendidos e, consequentemente, uma maior explicitação de todos os procedimentos utilizados. Assim, como já foi indicado, para responder adequadamente ao volume de informação a tratar, na avaliação das opiniões dos peritos, recorremos à técnica de análise de conteúdo para a descodificação dos questionários, das entrevistas e opiniões obtidas através da Web, construindo grelhas e categorias que nos permitiram, no final, fazer a análise do nível descritivo e correlacional, procurada neste estudo. 162 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização A análise de conteúdo das transcrições foi feita com recurso à análise temática que, na prática, consistiu em isolar os temas presentes nas transcrições, com o objectivo de os reduzir a proporções operacionalizáveis e comparáveis. Esta técnica envolve, segundo Bardin, L. (2000), um conjunto de processos (classificação, diferenciação e sub-modelo), que têm por base critérios previamente definidos, os quais, ainda segundo aquele autor, devem ser aplicados seguindo três critérios: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. Recorre-se portanto a uma primeira fase, de inventariação, onde se tentam isolar todos os elementos e, a uma segunda, de classificação, em que se distribuem os elementos pelas categorias, de forma a organizar as mensagens. O primeiro critério, de pré-análise, foi constituído por actividades não estruturadas, organizando, operacionalizando e sistematizando as ideias de partida, para orientação do desenvolvimento das sucessivas operações do plano de análise, de acordo com o descrito por Bardin, L. (2000). Foi realizada a leitura exaustiva do conjunto das transcrições e definidas as categorias de análise. Categorias, segundo Bardin, L. (2000), definidas como rubricas que, sob um título genérico, reuniriam um grupo de elementos, as unidades de registo, em função dos caracteres comuns daqueles elementos. São classes constituídas como meio de classificar e codificar os dados recolhidos e que Vala (1987) refere poderem ser concebidas "à priori ou à posteriori, ou ainda através da combinação destes dois processos". De facto, como aconselha Miles et al (1994), parte das categorias derivaram do quadro teórico-conceptual previamente formulado e das perguntas de investigação elaboradas. Por isso, a leitura do conjunto das transcrições permitiu a confirmação de algumas das categorias inicialmente previstas e a definição de outras, pelo que o sistema de codificação inicial foi aperfeiçoado e validado após a recolha dos dados, pela leitura das transcrições. Neste estudo, o critério de categorização foi semântico, ou seja, recorreu-se a categorias temáticas. A unidade de registo, unidade de significação a codificar, correspondente ao segmento de conteúdo a considerar como base da categorização, foi o tema. A unidade de contexto, definida como aquela que serviu de unidade de compreensão para codificar a unidade de registo, foi o parágrafo (Bardin, L., 2000). Depois de desenvolvidas as categorias, foi elaborada uma lista de códigos. A atribuição de um código a cada categoria teve como objectivo facilitar a memorização do sistema de codificação e permitir a classificação dos parágrafos das transcrições, em função do tema que a ele se associava, reduzindo desta forma a quantidade de informação em unidades imediatamente analisáveis. Foram utilizados, na generalidade, códigos descritivos, definidos por Miles et al (1994), como aqueles que, sem sugerir qualquer interpretação, se limitariam a atribuir uma categoria a um segmento de texto. Contudo, foi necessário recorrer a códigos Tese 163 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização explicativos, mais inferenciais, definidos pelo mesmo autor como aqueles que indicariam que um determinado segmento de texto ilustrava um padrão deduzido, a partir do significado das informações prestadas. Quer no critério correspondente à exploração do material, quer no de tratamento dos resultados, procedeu-se à codificação, de acordo com as orientações previamente estabelecidas e no seu estado .bruto, para que os mesmos se pudessem tornar significativos e válidos, segundo Bardin, L. (2000). Como recomenda Miles et al (1994), foram construídas grelhas para entradas, recolhidas em forma de matriz de sub-modelos, para evidenciar as frases retiradas da análise efectuada e fazer emergir as características de cada um dos quadros de referência dos entrevistados, bem como permitir a comparação entre os diferentes informadores. 6.2.2.2 A análise SWOT As incertezas que envolvem o processo de formulação da estratégia torna-a por vezes uma tarefa simultaneamente incómoda e desafiante para os decisores. Por isso, o processo estratégico da mudança organizacional deverá assentar numa análise da competitividade, o mais detalhada e profunda possível. É na profundidade dessa análise que residem as razões e as motivações para a mudança. Este processo de análise da realidade organizacional constitui o diagnóstico estratégico e com ele pretende-se efectuar um levantamento, tão exaustivo quanto possível, da realidade interna e externa da organização em estudo e, dessa forma, avaliar a sua competitividade. Para efectuar a análise mais adequada à realidade organizacional necessitamos de utilizar um modelo, que directa ou indirectamente permita elaborar o diagnóstico de situação. Aquele que, para diversos autores, se apresenta como o que permite uma maior fiabilidade nos resultados, pela identificação das prioridades e uma abordagem sistémica, de entre outras possíveis, que simultaneamente pode ajudar-nos a lidar com a ambiguidade e as incertezas do problema da saúde em Portugal, tendo por base uma perspectiva estritamente organizacional, é o modelo de análise, designado por Análise SWOT, criado em 1951 por Kenneth Andrews e Roland Christensen, professores da Harvard Business School, a qual foi posteriormente aplicada por numerosos académicos (Andrews, K. 1971). A análise SWOT é um dos modelos mais difundidos para fazer o diagnóstico estratégico da organização. O que se pretende é definir as relações existentes entre os pontos fortes e fracos da organização, com as tendências mais importantes que se verificam na sua envolvente global, seja ao nível do mercado global, do mercado específico, da conjuntura económica ou das imposições legais, entre outras. Através desta metodologia poderá fazer-se a identificação das forças e fraquezas da organização, das oportunidades e ameaças do meio envolvente e do grau de adequação entre elas. Quando os pontos fortes de uma organização estão de acordo com os factores críticos de sucesso para satisfazer as oportunidades de mercado, a organização será, por certo, 164 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização competitiva a longo prazo, sendo que um passo essencial na definição da estratégia consiste numa avaliação cuidadosa da “posição” da organização (Ansoff, H. 1965). Esta análise, tendo presentes as “ambições” explícitas na missão e grandes objectivos, deve incidir em dois pontos-chave: o ambiente externo (quais são as oportunidades e as ameaças?) e o ambiente interno à organização (quais são as forças e as fraquezas?). Mas, o seu objectivo principal é estudar as capacidades internas da organização e capacitar os decisores a formular as metas e os objectivos com fins apropriados às exigências do meio envolvente em que a organização existe. A análise SWOT (Figura 13) examina a organização segundo quatro variáveis: (1) strengths (forças) e (2) weakness (fraquezas), referentes à organização – análise interna; (3) opportunities (oportunidades) e (4) threats (ameaças), para o meio envolvente, segundo Hindle, T. et al (1994). Esta análise cruza os pontos fortes e fracos da organização com as oportunidades e ameaças da respectiva envolvente externa. Forças (strengths) (pontos fortes da organização) Fraquezas (weakness) (pontos fracos da organização) Oportunidades (opportunities) (alterações previsíveis no meio envolvente que podem transformar-se em oportunidades) Ameaças (threats) (alterações previsíveis no meio envolvente que podem transformar-se em ameaças) Fonte: Ansoff, H. I. (1965), “Corporate Strategy”. Figura 13: Análise SWOT Daquele cruzamento resultam os quatro quadrantes, para cada um dos quais se traçam estratégias globais. O conceito de análise SWOT, embora aparentemente estático, encerra uma força e dinâmica superiores às que se podem detectar à primeira vista. As forças (strenghts) são vantagens internas da organização em relação às concorrentes e que, uma vez identificadas, devem ser olhadas sob três vertentes: (i) explorar (de que modo se pode aproveitar para ganhar ou acentuar as vantagens concorrenciais?), (ii) reforçar (o que é necessário fazer para as reforçar?) e, (iii) proteger (são algo tão importante que deve ser protegido?). As fraquezas (weaknesses) são desvantagens internas da organização em relação às concorrentes. Poderá ser útil encará-las sob duas perspectivas: (i) inverter (será possível inverter a situação que lhe deu origem?) e, (ii) minimizar (caso não seja possível eliminá-la, que acções podem ser tomadas para minimizar os seus efeitos?) As oportunidades (opportunities) são aspectos positivos da envolvente com o potencial de aumentar a vantagem competitiva da organização. Há dois pontos a considerar: (i) timing (muitas são válidas apenas numa janela temporal muito limitada, pelo que há que ponderar bem a altura de intervir) e, (ii) explorar (no processo de selecção, e em ligação Tese 165 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização directa com o que foi dito sobre a atractividade destas, as respostas às seguintes questões podem fornecer pistas valiosas para realizar a escolha sobre: a) o que se ganha ou perde explorando a oportunidade? e o que se ganha ou perde não explorando a oportunidade?). As ameaças (threats) são aspectos negativos da envolvente com o potencial de diminuir a vantagem competitiva da organização. Existem várias atitudes que podem ser seguidas, nomeadamente: (i) combater, tentando inverter, eventualmente com recurso a alianças estratégicas e, (ii) aproveitar a força do adversário para lhe levar a melhor. Para o sistema de saúde a ideia é a de avaliar, através de uma reflexão aprofundada na qual devem participar a maioria dos actores intervenientes na área, quais são estes elementos, sendo que a elaboração do diagnóstico estratégico através do modelo SWOT deve levar à formulação de objectivos estratégicos, os quais deverão ser consentâneos com as conclusões a que se chegou na análise efectuada e estarem adequados aos seguintes princípios: • Coerência horizontal, em que os objectivos dos órgãos situados no mesmo nível organizacional devem estar em consonância e ser coerentes entre si para evitar conflitos e incompatibilidades; • Coerência vertical, onde os objectivos de um nível organizacional devem ajudar à realização dos objectivos do nível imediatamente superior; • Comunicação total, em que os objectivos globais da organização devem ser conhecidos e compreendidos por todos os seus níveis hierárquicos. Por outro lado, a efectividade e utilidade dos resultados depende de três factores principais: • Os objectivos têm que estar quantificados; • Deverá estar definida a unidade de medida para avaliar a evolução dos vários objectivos; • Deverá ser definido um horizonte temporal, ou seja, terá de haver um timing preciso para a execução do processo e aplicação dos resultados. Todo Bom (1999) considera que esta metodologia apresenta fundamentalmente duas limitações, a saber: • Não existe relação entre a análise interna e a análise externa; • A falta deste relacionamento pode não destacar alguma força ou fraqueza, as quais individualmente não são relevantes, mas quando articuladas com uma oportunidade ou ameaça do meio envolvente permitem atribuir-lhe o seu real valor relativo. O autor fundamenta a sua opinião no facto da análise SWOT ser uma observação estática, que carece da integração da variável “tempo”, cuja inclusão poderá reforçar o seu dinamismo, embora a sequência da análise temporal apenas permita observar as mudanças internas ocorridas, pela análise interna e a verificação da turbulência envolvente, pela análise externa (Todo Bom (1999, pp. 49). 166 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização Parece então possível dar uma dinâmica diferente nesta evolução do modelo SWOT, o que confirma que com a inclusão da variável “tempo”, é possível dizer que as “ameaças”, num dado momento, podem ser “oportunidades” num momento futuro. A componente temporal é cada vez mais importante na estratégia organizacional. Muitas das “ameaças” podem ser equacionadas como uma avaliação de quando é que a organização deve introduzir novos modelos dos produtos ou serviços já existentes, sejam eles evoluções dos modelos actuais ou modelos substitutos. As organizações devem, antes do mais, fazer um esforço para melhorar as suas competências. Só desta forma estarão aptas a tirar o máximo proveito das oportunidades que vão surgir. Tudo é uma questão de decidir qual é o timing mais apropriado para efectuar as alterações necessárias aos produtos, ou aos serviços, propostos aos clientes. Mas para a integração global da análise não parece suficiente a inclusão da variável “tempo” - é necessária uma observação mais global que inclua a interacção entre a organização e o meio envolvente. Para alguns autores, referidos por Todo Bom (1999),69 é possível construir combinações entre as quatro variáveis iniciais, aumentando assim o poder de análise deste instrumento e criando um modelo de análise global, em que o relacionamento entre as variáveis através de quatro “alinhamentos” permite uma maior aproximação sistémica, como se pode verificar através da Figura 14. Oportunidades Desafio Constrangimento Pontos Fortes Pontos Fracos Alerta Perigo Ameaças Fonte: Todo Bom, L., (1999), A Systemic Approach to the Swot Analysis, in Revista de Economia e Gestão, Vol. IV – 1/1999. Figura 14 - Aproximação sistémica com os alinhamentos na análise SWOT Os alinhamentos podem definir-se da seguinte maneira: (i) desafio – as forças que permitem à organização usarem todas as oportunidades que estão ao seu alcance, ou seja equipas jovens, competentes e motivadas, que respondem com soluções às exigências do mercado e, em que a ligação ao meio académico permite à organização manter-se em contacto com a actualidade tecnológica; (ii) constrangimento – as fraquezas que inibem a organização de tirar vantagem das oportunidades interessantes, tais como a ausência de troca de 69 O’Reilly, C. & Thusman, M. Winning Trough Innovation , HBS Press, 1997 e Ghoshal, S. & Barlett, C. The Indivualized Corporation, Heinemann, 1998. Tese 167 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização experiências que inibe a organização de tirar vantagem das competências da envolvente externa, enquanto a falta de recursos humanos e a sua grande rotatividade impedem o crescimento e a adaptação da organização ao normal desenvolvimento do mercado; (iii)alerta – as forças que permitem que a organização não seja invadida por possíveis ameaças, como por exemplo uma organização permanentemente centrada em si mesma pode limitar a competitividade, ou uma organização eficiente e com custos controlados está melhor preparada para enfrentar a competitividade; (iv) perigo – as fraquezas que aumentam as ameaças de negócio e põem em risco a existência da organização e que podem identificar-se como a capacidade de adaptação das organizações, podem definir a sua posição no mercado, enquanto a excessiva utilização de recursos externos pode prejudicar a relação da organização com o cliente, em virtude da existência de competidores que oferecem soluções globais. Todo Bom refere que esta abordagem permite a utilização desta ferramenta ao longo do processo de mudança, particularmente em organizações de baixa complexidade, ao invés da tradicional utilização exclusiva na fase de diagnóstico estratégico. E apresenta um modelo do alinhamento para a análise SWOT do processo de mudança, em que é introduzida a alteração do entendimento e nomenclatura dos alinhamentos propostos inicialmente, passando a designar-se por iniciativa, determinação, monitorização e elasticidade. As significativas alterações produzidas na matriz inicial permitem que este novo modelo seja muito mais poderoso na análise, já que interliga e relaciona os aspectos internos com o meio envolvente da organização. Contudo, este autor na sua abordagem conclui pela não aplicabilidade do seu modelo de análise do processo de mudança em organizações mais complexas ou de elevada turbulência, sendo nestes casos mais aconselhável o uso do modelo da aproximação sistémica, como é o caso da saúde. A escolha da matriz SWOT original ou de qualquer uma das evoluções anteriormente referidas será fruto da adaptação às circunstâncias da análise que se pretende efectuar. De qualquer modo o diagnóstico estratégico efectuado deve estar organizado em termos funcionais. Para isso é útil associar a cada ponto forte ou fraco um departamento ou área funcional da organização. Assim, a análise SWOT é um instrumento precioso para qualquer gestor analisar, em profundidade, o ambiente interno em articulação com a envolvente externa da organização, e daí construir uma grelha para as decisões estratégicas a tomar. A maioria dos decisores conhece bem o sistema e é capaz de identificar as suas forças e fraquezas, mas dever-se-á fazer uma avaliação para validação das suas assunções. Uma das formas de validação é através da demonstração quantitativa da evidência, de forma a colocar cada problema numa perspectiva adequada. Ao incluir a evidência como parte da análise SWOT o decisor começa a identificar um conjunto de perguntas e respostas que irão apoiar a formulação de uma estratégia sólida e adequada. 168 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização No que se refere à análise interna no actual sistema de saúde português, se aplicarmos os instrumentos de análise da escola de Porter (escola de posicionamento), podemos concluir que o sector privado, atento às ineficiências crónicas do sector público, investe proporcionalmente às oportunidades do mercado, apostando em modelos de fluxo de trabalho inseridos na cadeia de continuidade de cuidados, posicionando-se no mercado partilhado como referência em termos de eficiência. A realização da análise externa é uma tarefa mais difícil pela grande multiplicidade de variáveis implicadas e não deve ser um fim em si mesma. Ela deve ser dirigida e premeditada, podendo conduzir directamente às alternativas de decisão estratégica (Figura 15). Decisões estratégicas Onde competir Como competir Bases da competição Identificação Tendências/eventos futuros Ameaças/oportunidades Incertezas Análise Áreas com necessidade de informação Análise de cenários Figura 15: O papel da análise externa As oportunidades não cobertas e as ameaças identificam-se pela análise de informação relativa ao mercado (segmentação, partilha, barreiras, estrutura de custos, factores críticos de sucesso), economia, política, leis, ética, tecnologias, grupos de actores (competidores, fornecedores, clientes, parceiros sociais, organizações profissionais e sindicais, etc.). Todos estes factores afectam a prestação de cuidados de saúde em geral e dos serviços de saúde em particular e devem ser tidos em conta na análise da envolvente externa. A investigação teve por base os seguintes objectivos: (i) avaliar a fase de arranque ou processo inicial da contratualização; (ii) discutir o processo de desenvolvimento; (iii) analisar o processo de contratualização propriamente dito e, (iv) fomentar a discussão acerca de modelos alternativos que possam sustentar o desenvolvimento futuro da contratualização. Os objectivos, os participantes e a metodologia seguida constam do Anexo V. Com base em cinco seminários, realizados entre Dezembro de 1999 e Fevereiro de 2000, procuraram-se seleccionar os actores chave mais significativos do sector da saúde (representantes das organizações profissionais – ordens e associações; representantes das organizações sindicais; representantes dos prestadores não públicos Tese 169 Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização de cuidados de saúde – misericórdias, mutualidades, privados; representantes da indústria) e através da sua auscultação deduzir sobre a existência de pensamento estratégico e sobre a sua capacidade de influência nas políticas de saúde. A partir desta abordagem efectuou-se uma análise SWOT, a qual permitiu identificar um conjunto de pontos fortes e fracos, os quais levando em linha de conta as oportunidades e os obstáculos do meio envolvente poderão auxiliar na definição de uma estratégia que permita dar continuidade ao processo de desenvolvimento e consolidação das políticas e estratégias em curso, nas quais se inclui a contratualização. 6.2.2.3 A análise estatística Na análise quantitativa e de modo a permitir uma familiarização com os métodos de análise de dados multivariados, quer na sua vertente descritiva, quer na sua vertente inferencial e tendo em conta os objectivos em estudo e a natureza das variáveis consideradas, procedeu-se a uma análise estatística com base nos seguintes princípios teóricos: Análise descritiva dos dados Foi realizada a análise das frequências das respostas, calculadas medidas de tendência central (média e moda), medidas de dispersão (desvio padrão), medidas de associação (coeficiente de correlação de Pearson) e cruzamentos entre duas variáveis. Análise inferencial Fez-se igualmente uso da estatística inferencial, que se baseia na utilização de testes estatísticos que permitem confirmar se a diferença entre os valores observados e os esperados é considerada significativamente diferente no universo ou, se pelo contrário, resulta apenas de erros amostrais: testes de χ2.para a independência de 2 variáveis, testes t para a igualdade de médias de 2 grupos, análise de variância simples, bem como as alternativas não paramétricas, sempre que o pressuposto de normalidade não se verifique ou as dimensões amostrais sejam reduzidas. Análise em componentes principais Com o objectivo de reduzir o número de dimensões presentes e de encontrar variáveis explicativas não correlacionadas entre si, será aplicada a análise em componentes principais. Neste caso partiu-se de um universo de 135 variáveis originais, com observações para os últimos trinta anos e que se pretende reduzir a um menor número de dimensões que serão posteriormente utilizadas num modelo de regressão linear múltiplo como variáveis explicativas do comportamento dos resultados em saúde. 170 Tese Capítulo VI: Método para análise do processo de mudança da administração pública da saúde centrada na contratualização 6.3 A triangulação Segundo Creswell (1994), o termo triangulação, retirado da navegação e da estratégia militar, diz respeito ao uso de diferentes métodos num mesmo estudo, com o objectivo de anular os erros inerentes a cada um deles. Greene et al (1989), sustentam que, como todos os métodos têm enviezamentos e limitações, o uso de mais do que um método faz com que o estudo tenha maior validade. A lógica requer que os métodos sejam diferentes quanto aos seus pontos fortes e limitações e que sejam utilizados para analisar o mesmo fenómeno, pois de contrário não se atingiria o objectivo fundamental da triangulação. A triangulação é assim uma combinação de tantas perspectivas metodológicas quanto possível no estudo do mesmo fenómeno (Bogdan et al, 1998). Os diferentes tipos de triangulação usados habitualmente são: (i) de dados; (ii) de investigador; (iii) de teoria e, (iv) de metodologia. Por isso, dadas as diferentes análises de dados e metodologias efectuadas e a riqueza das suas conclusões, procurou-se apresentar e discutir os resultados à luz de duas das formas de triangulação: (i) dos dados (uso de múltiplas fontes de informação) e, (ii) metodológica (uso de múltiplos métodos para estudar um problema único), de acordo com a Figura 16 a seguir apresentada: Dados de recursos, produção e resultados (análise estatística) Legislação (Análise em profundidade) Revisão Bibliográfica (Análise em profundidade) Entrevistas (Análise de conteúdo) Triangulação dos dados e da metodologia Questionários (Análise de conteúdo e análise estatística) Página Web (Análise de conteúdo) Painel de peritos (Análise SWOT) Estatísticas (Análise de dados) Figura 16. A triangulação (de dados e metodológica) Tese 171 Capítulo VII: Apresentação dos resultados CAPÍTULO VII: APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS 1. INTRODUÇÃO A análise e tratamento dos dados resultantes do trabalho de campo desenvolvido, assim como o resultado das discussões e opiniões dos actores e peritos envolvidos, pretendem identificar os diferentes factores críticos do contexto português que condicionam a evolução da administração pública da saúde e qual o papel da contratualização, nesse mesmo contexto. Na elaboração deste capítulo foram seguidas as seguintes estratégias de pesquisa: 1. Revisão sistematizada de documentos, relatórios e informação disponíveis sobre a temática em apreço, quer através de fonte primárias, quer secundárias (publicações que indexam a informação bibliográfica de uma grande quantidade de artigos, por assunto, palavras-chave, autores, revistas, etc.), em que se analisam os resultados de maneira cuidadosa e pormenorizada, de forma a enquadrar o melhor possível o problema a investigar. Quando apropriado (e possível) utilizam-se sínteses estatísticas sobre os dados, produzindo neste caso uma análises em profundidade70; 2. Análise SWOT com base na opinião dos actores chave do sistema de saúde; 3. Análise de conteúdo (Anexos XII e XIII) dos resultados de questionários e entrevistas efectuados a actores intervenientes no processo de contratualização; 4. Análise estatística dos resultados de questionários aplicados a dirigentes da saúde (Anexos XIV), sobre o início e desenvolvimento do processo de contratualização; 5. Aplicação de métodos estatísticos multivariados, medidas de correlação, estatística inferencial e modelo de regressão linear múltipla, às séries de dados referentes ao contexto macroeconómico/social, aos recursos técnicos, humanos e financeiros, à produção e produtividade, ao desempenho e aos resultados, nas três últimas décadas; 6. Revisão e análise crítica dos normativos referentes às últimas três décadas (Anexos XV). As conclusões obtidas serviram de base à identificação de três componentes de análise do sistema de saúde, de acordo com o modelo definido inicialmente (contexto, contratualização e processo de mudança), os quais foram validados por uma equipa de especialistas. 70 Não nos vamos preocupar com a discussão das tecnicidades inerentes aos exemplos aqui constantes, limitamo-nos a proceder a um levantamento sistemático das premissas, argumentações, coerência interna e validade experimental dos contributos listados. Tese 173 Capítulo VII: Apresentação dos resultados 2. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DESCRITIVA DOS RESULTADOS Seguindo o modelo inicialmente proposto, a análise descritiva dos resultados apresentar-se-á subdividida nas três componentes identificadas: contexto, contratualização e processo de mudança, articulando de forma estruturada as seis estratégias de pesquisa atrás enunciadas. 2.1 A componente “contexto” 2.1.1 Opinião dos actores chave – Análises SWOT e do Campo de Forças Para tornar possível o aprofundamento desta temática, concorrer para o conhecimento sobre o papel que teve a contratualização na evolução da administração pública da saúde e, principalmente, conhecer os factores críticos do contexto português que obstacularizam o processo de mudança e ensaiar, ainda, um quadro de reflexão sobre esta matéria, convidaram-se actores significativos da área da saúde (representantes de ordens, associações e sindicatos das profissões da saúde, dos órgãos centrais do Ministério da Saúde, dos prestadores privados, com e sem fins lucrativos), a pronunciarem-se sobre a sua percepção do sistema de saúde actual e dos mecanismos de reforma, nomeadamente a contratualização. Recorreu-se ainda a líderes e peritos envolvidos e devidamente reconhecidos no âmbito desta área, de forma a obter respostas, entre outras, às seguintes questões: (i) haverá um modelo de administração mais adequado para a área da saúde e mais custo/efectivo do que o vigente? (ii) que forma deve esse modelo assumir? (iii) como operacionalizá-lo? (iv) que estratégia seguir para a sua aplicação? e, por último, (v) porque falharão sistematicamente as mudanças encetadas? Para dar corpo a esta metodologia realizaram-se, em 1999, cinco seminários, em que com recurso à técnica de brainstorming71 se procurou, através de perguntas concretas dirigidas aos actores presentes, responder ou dar pistas para as questões já enunciadas, estimulá-los para com criatividade se pronunciarem sobre as políticas de mudança em curso, sobre as suas próprias estratégias e, mais concretamente, sobre o processo de contratualização. Procurou-se, mais especificamente, que cada um dos actores envolvidos discutisse e se pronunciasse sobre as seguintes questões: - Se tinham estratégia definida para a reforma do sistema de saúde; - Como actuavam e se posicionavam face à mudança e que tipo de estratégia utilizavam; - Como viam o papel da contratualização no contexto da mudança. A grande riqueza da discussão, a qualidade dos argumentos aduzidos, a comparação das ideias, a atenção sobre os factores do meio envolvente que afectam o sistema e as 71 O brainstorming é uma técnica para reuniões de grupo que visa ajudar os participantes a vencer as limitações em termos de pensamento criativo e pretende promover um ambiente favorável à geração de ideias e soluções inovadoras. Foi desenvolvida pelo publicitário Alex F. Osborn, em 1957, mas continua a ser um dos métodos mais conhecidos para estimular a criatividade e a política de inovação nas organizações (Apllied Imagination (1957, N.Y: Charles Scribner and Sons). 174 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados estratégias que, explícita ou implicitamente, estão presentes no pensamento e actuação dos actores, sobressaem nas conclusões retiradas dos seminários realizados e que se procura aqui de forma sucinta transcrever. Passados três anos, em 2002, recorreu-se à mesma metodologia, utilizando de novo os seminários e procurando fomentar a discussão através da técnica de brainstorming. Para o efeito, repetiram-se as perguntas e procurou verificar-se: (i) se tinha havido alterações significativas no sistema que pusessem em causa a metodologia anteriormente seguida e impedissem a comparação da evolução do pensamento dos actores nestes dois momentos, (ii) se continuavam verdadeiras as dimensões definidas e, (iii) o que se acrescentava e/ou retirava à análise SWOT anteriormente realizada. Com base nas discussões realizadas ficou assim constituída a matriz SWOT, que sintetiza as principais oportunidades e ameaças (problemas), relativas à envolvente do SNS e ainda os pontos fortes e fracos referentes aos seus factores internos, os quais condicionam ou potenciam o processo de mudança da administração da saúde: PONTOS FORTES (S) 1. Qualidade de profissionais do SNS; 2. Existência de alguns serviços de grande qualidade técnica; 3. Existência de estratégias para responder a grupos específicos de doentes (por exemplo, diabéticos); 4. Melhoria nas tecnologias médicas que incrementam as possibilidades de intervenção diagnóstica e terapêutica. OPORTUNIDADES (O) 1. Início da separação entre financiador e prestador, através das agências; 2. Introdução de algumas regras de mercado no sector da saúde, na sequência da tendência internacional de substituição dos modelos burocráticos centralizados de comando e controlo para ambientes mais liberais; 3. Implementação do novo estatuto jurídico de gestão hospitalar; 4. Entrada de grupos financeiros e multinacionais no sector; 5. Aumento das expectativas e das necessidades dos cidadãos no que respeita a mais e melhores serviços, em termos de qualidade e acessibilidade; 6. Priorização da saúde nas medidas estratégicas do governo. PONTOS FRACOS (W) AMEAÇAS (T) 1. Grande fragilidade na rede de cuidados continuados; 2. Falta de lideranças locais fortes; 3. Comportamentos ineficientes e práticas enraizadas; 4. Aumento crescente dos custos e dos gastos em saúde; 5. Ausência de política para as profissões, num quadro de mudança de modelo contratual; 6. “Cultura” das diferentes profissões de saúde; 7. Grande absorção das organizações na gestão corrente; 8. Duplicação de funções dos órgãos centrais e regionais da saúde; 9. Pouca autonomia administrativa e financeira; 10. Falta de cultura assente na contratualização e no mercado. 1. Falta de mecanismos de enquadramento, regulação e controlo de gestão para o sistema, por parte do Estado; 2. Diferentes lobbies do sector (profissionais e alguns fornecedores); 3. Desconhecimento sobre as linhas de orientação política do Governo quanto ao desenvolvimento do SNS; 4. Falta de continuidade dos Governos; 5. Entrada de grupos financeiros e multinacionais no sector; 6. Falta de reconhecimento de medidas de reforma anteriormente adoptadas; 7. Assimetrias nas capacidades instaladas dos prestadores privados; 8. Falta de envolvimento por parte dos actores externos; 9. Restrições orçamentais. Tese 175 Capítulo VII: Apresentação dos resultados Com base nos resultados dos dois momentos de análise (1999 e 2002) e ainda da revisão bibliográfica de publicações do sector da saúde e de artigos publicados na imprensa generalista escrita no mesmo período, procurou-se fazer a Análise do Campo de Forças, com recurso a uma técnica próxima da de grupos orientados “focus group”, analisando os diferentes actores intervenientes na área da saúde (Quadro 18) no que se refere à avaliação das suas posições face às mudanças encetadas, ao seu poder e ao interesse manifestado pelas mesmas e cujas conclusões podem ser analisadas neste quadro. Quadro 18 – Quadro de análise dos principais actores da saúde ÁREAS ACTORES Ministro da Saúde (MS) e Secretário de Estado da Saúde (SES) Direcção Geral da Saúde (DGS) Governo Representantes dos doentes ONG’s e IPSS Organizações Profissionais Prestadores privados Sindicatos Representantes da área do medicamento Associação dos consumidores Comunicação social Administrações Regionais de Saúde (ARS) Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde (IGIF) Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) Grupos de Cidadãos Associações de defesa de doentes União das Misericórdias União das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) União das Mutualidades Ordem dos Médicos Ordem dos Enfermeiros Ordem dos Farmacêuticos Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) Federação Nacional de Cuidados de Saúde (FNS) Sindicatos dos Médicos Sindicato Enfermeiros Sindicatos dos Técnicos Associação Nacional de Farmácias (ANF) Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor (DECO) Television/Rádio/ Imprensa Ano 1999 Ano 2002 Posição Poder Interesses Posição Poder Interesses A 9 a, b, c, e A 10 a, b, c, e A 6 a, c, e N 3 b, c A 8 a, c, e N 4 a, b, e O 7 a, e N 8 a, e N N 5 3 a, e b A N 6 3 a, c, e b N 3 b N 3 b, e O 3 b, e O 6 a, b, e N 3 b, e N 3 a, b, e N O A N 3 5 5 5 b a-d-e d d N N O O 4 9 7 5 a, b, e a, d, e d, e a-d A 3 d N 3 a-d O 5 e N 5 a, e A A A 1 3 2 d d d N O O 5 6 4 d, e d, e d, e N 6 e O 7 d, e N 5 e N 6 d, e A 3 b A 3 b, e N 7 e N 9 a, e Posição: A = apoio; N = não mobilizados; O = oposição; Poder: Análise de campo de forças (0 a 10); Interesses: ª político; b social; c científico/social; d profissional; e económico Em 2002, passados três anos, a avaliação do posicionamento estratégico de cada actor apresenta grandes alterações, dado que houve de facto uma mudança muito significativa de posições (13 em 22), sendo que 9 posições não sofreram alterações, 4 deslocaram-se em sentido mais favorável (O→N; N→A) e 9 deslocaram-se em sentido negativo (A→N; A→O; N→O). É interessante analisar exaustivamente estas alterações, que podem ser visualizadas no quadro seguinte, nomeadamente as que se referem aos 176 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados actores que mais directamente participaram na contratualização (DGS, IGIF, ARS), não parecendo, no entanto, verificarem-se mudanças comportamentais que permitam concluir que estes actores se envolveram no processo de mudança, ou tão pouco que acreditam nele. Sabendo-se que actualmente se verificam alterações significativas do enquadramento conjuntural do SNS, mais ainda, ao nível estrutural estão em curso mudanças cujo impacte ainda está por calcular, emerge do discurso dos diferentes actores sociais a necessidade de inclusão da problemática da contratualização. Acrescenta-se ainda a alteração do contexto e orientação políticas, traduzidas nas palavras dos actores como falta de continuidade das políticas governamentais e ausência de significado e de significação do enquadramento em que a mudança e a contratualização são concretizadas. Aqui pode salientar-se a omissão da função reguladora por parte do Estado, o que muito preocupa peritos e profissionais envolvidos, bem como alguns dos actores. A falta de informação e de entendimento sobre as linhas políticas de desenvolvimento do SNS é um dos grandes e graves obstáculos referidos pelos actores que integraram os diferentes painéis (sendo bastante mais mencionado em 2002 do que em 1999), tendo aumentado inevitavelmente a sua resistência às mudanças perspectivadas. De notar que não sendo evidente a existência de estratégia definida para a reforma do sistema de saúde por parte destes actores, há pelo menos no segundo momento da análise um sentimento de perplexidade face às tão profundas mudanças enunciadas, embora vistas com grande expectativa, centrada sobretudo no novo estatuto jurídico para a gestão hospitalar, nas alterações previstas ao nível dos cuidados de saúde primários e na introdução de mecanismos de mercado, o que tem feito emergir fortes alianças tácticas, dado que os interesses não são coincidentes, sendo difícil prever os resultados dessas coligações. Foi esta conjuntura que facilitou as alianças. De salientar que, como é normal, as posições dos actores não são coincidentes e algumas das mudanças perspectivadas, como por exemplo a alteração dos modelos de pagamento aos prestadores e a eventual entrada de grupos financeiros e multinacionais no tecido empresarial da saúde, trazem muita insegurança e parecem agradar a uns mas desagradam necessariamente a outros, embora quase todos tenham grandes expectativas e acreditem que é possível uma melhoria do sistema. Procurando encontrar resposta à questão enunciada sobre como actuavam e se posicionavam face à mudança e que tipo de estratégia utilizam, verifica-se que dada a tendência internacional de substituição dos modelos burocráticos centralizados de comando e controlo (mando/hierarquia) para ambientes centrados numa lógica de mercado, o aumento incontrolável dos custos e a falência das funções públicas de financiador, prestador e regulador e, ainda, as conhecidas restrições orçamentais, poderá até estar facilitada a aceitação das mudanças e eventualmente verificar-se alguma alteração na habitual falta de compromisso dos actores. O facto do actual Governo (XV governo constitucional) ter incluído a saúde nas suas medidas estratégicas prioritárias, bem como a anunciada separação entre o financiador e Tese 177 Capítulo VII: Apresentação dos resultados o prestador e a introdução de regras de mercado no sector da saúde e ainda a tendência para adopção de fontes de financiamento e de regulação públicas, parecem ser boas notícias para o sector, mas convém levar em consideração as medidas de reforma anteriormente adoptadas, visíveis na sentida melhoria nos indicadores de referência que permitem comparar o desempenho das instituições, identificadas pelos actores, em contraponto à descredibilização do processo de contratualização por parte do Ministério da Saúde. De salientar que um outro factor de contexto que poderá influenciar os desenvolvimentos futuros na saúde e a adopção de medidas inovadoras, como por exemplo a contratualização, prendem-se com as exigências decorrentes da nossa integração no espaço comunitário, nomeadamente o pacto de estabilidade, a moeda única, a livre circulação de pessoas e o seu impacto nas questões relacionadas com o acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde, no espaço europeu. 2.2 A componente “processo de contratualização” 2.2.1 A perspectiva dos actores intervenientes no processo de contratualização Análise de Conteúdo A análise dos dados resultantes do trabalho de campo desenvolvido através de questionários e entrevistas, bem como das opiniões colhidas através da Web, pretendia identificar a perspectiva dos actores intervenientes no processo de contratualização com o objectivo de compreender as diferentes componentes deste processo. Assim, para operacionalização deste conteúdo, foram seguidos os seguintes passos: • • Análise de conteúdos com a apresentação dos agrupamentos, categorias e subcategorias; Análise dos resultados apoiada na análise de frequências. 2.2.1.1 Análise de conteúdo com apresentação das categorias e subcategorias A técnica utilizada para o tratamento do material recolhido, através dos três instrumentos já referidos (questionários, entrevistas semi-estruturadas e questionários na Web), foi a Análise de Conteúdo. Trata-se de uma técnica de análise que exige grande rigor e objectividade, pois torna possível a apreensão e estruturação de informações de carácter qualitativo, inferindo resultados e conclusões dessa informação. Para responder adequadamente ao volume de informação a tratar seguiu-se o processo de categorização recomendado por Bardin, L. (2000), que envolve um conjunto de processos (inventariação, classificação, diferenciação) que têm por base critérios previamente definidos, os quais, segundo o mesmo autor, se desenvolvem em duas etapas: a primeira, de inventariação, onde se tentam isolar os elementos; e uma segunda, de classificação, em que se distribuem os elementos pelas categorias, de forma a organizar as mensagens. Assim, e após a análise dos discursos dos entrevistados, procedeu-se às leituras repetidas e atentas de todas as entrevistas e questionários, de forma a retirar as unidades de análise mais relevantes para a conceptualização do 178 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados objectivo, a partir das quais foram construídas as categorias e as subcategorias que, para um melhor entendimento, se enquadram nos grandes agrupamentos em análise. Apresentam-se, de seguida, esses agrupamentos, categorias e subcategorias encontradas, as quais se registam sequencialmente, de forma a permitir uma rápida, fácil e adequada leitura: Agrupamentos, Categorias, Subcategorias I. Contextualização do processo de contratualização 1. A importância da Função Agência (FA) • • • • • • • • 2. Modelos de organização da FA • Existem diferentes modelos/instrumentos da FA Reforma e reestruturação do Sistema de Saúde Reforma da Administração Melhor (re)distribuição de recursos Separação entre financiamento e prestação Valorização do cidadão Melhor desempenho profissional Introdução dos mecanismos de responsabilização Introdução dos mecanismos de avaliação II. Fase de arranque ou processo inicial 1. Localização da FA • • • 2. Organização do trabalho da FA • • • • Órgão regional estratégico/regulador da Administração Órgão fortemente participado pelos cidadãos Outros 3. Tipo de mandato da FA • • • • • • • • • De acordo com o Despacho de criação da FA Dependente do conhecimento/competência técnica Outros Equipas especializadas por áreas de prestação Outros Análise detalhada dos orçamentos-programa Processo de negociação Decisão sobre financiamento dos serviços Monitorização dos orçamentos-programa Coordenação e normalização de procedimentos Desenvolvimento/ manutenção do sistema de informação 6. Papel da Sub-região na FA Coincidente com as diferentes funções técnicas Reuniões de negociação convocadas pela ARS Reuniões regulares na Agência Reuniões de Acompanhamento nas Instituições Outros 7. Processo e instrumentos de negociação na FA • • • • • Equipas especializadas por áreas geográficas 4. Funções técnicas da FA 5. Funcionamento da FA • • • • • Equipas especializadas por projectos • Acompanhamento do processo nos Centros de Saúde (CS) • Participação na discussão do orçamento programa dos CS • Outros 8. Participação do cidadão na FA • • Processo formal de negociação Processo informal de negociação Existência de participação com interacção do cidadão Existência de mecanismos de participação Orçamento programa Existência de conteúdo do instrumento de negociação Outros tipos de instrumentos de negociação 9. Sistema de Informação (SI) da FA • • SI com conteúdos de produção, recursos e resultados SI da ARS adaptado à FA Tese 179 Capítulo VII: Apresentação dos resultados 1. Implicações inerentes ao desenvolvimento do processo • • • • • • • • • • • • Económico/legais Políticas Organizacionais Financeiras Outros 3. Importância dimensões • • • • • • • • • • • • • • 2. Impacto da contratualização a diferentes níveis da contratualização em diferentes 4. Evitar perversões do processo de contratualização • • • Estratégia da saúde Auditoria clínica Estratégia clínica Avaliação de qualidade Prestadores de cuidados Financiadores/pagadores/compradores Procura de serviços Monitorização e controlo Regulação dos prestadores Controlo e avaliação global do sistema Papel dos clínicos gerais Sistema de informação integrado Desenvolvimento organizacional Necessidades em saúde 5. Potenciar a implementação da contratualização • • Maior envolvimento político • • • Maior equidade e racionalização na distribuição de recursos Hospitais Centrais e Especializados Hospitais Distritais Hospitais de Nível I Centros de Saúde Cuidados continuados Cuidados a dependentes Instituições privadas sem fins lucrativos Discussão pública do processo Maior responsabilização das entidades envolvidas Introdução de mecanismos de avaliação 6. Modelo de identificação de necessidades em saúde • • • • Criação dum sistema de consequências (prémios e penalizações) Satisfação das necessidades da população Conhecimento de outras experiências Distribuição de recursos numa base populacional Verificação de adequação à realidade do país Outros Outros IV. Processo de contratualização 1. Novos códigos comportamentais 2. Modelo de contratualização implementado • Clarificar o processo de contratualização • Discutir o processo de desenvolvimento • Acordar sobre os resultados a alcançar • Fomentar o diálogo entre os actores • Assumir compromissos • Aceitar e dar voz aos cidadãos • Incrementar o acompanhamento e a monitorização • • Modelo alternativo Concordância com o modelo seguido V. Modelos alternativos de contratualização 1. Localização da FA • 2. Organização da FA • • Coincidente com a ARS 3. Sistema de informação (SI) da FA • • • Coordenador e várias equipas por unidade de saúde Outros modelos 4. Criação de padrões de desempenho/produção para negociação • Evoluir para um SI mais integrado São necessários Evoluir para um SI mais detalhado Outros 5. Relação Agência/outras estruturas do MS • • Desconcentradas das ARS Integradas no SNS 180 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados 2.2.1.2 Análise descritiva das categorias e subcategorias Depois da transcrição integral das entrevistas e das sucessivas leituras, foi iniciado o processo de levantamento e análise de conteúdo para as grelhas de categorias (I. Contextualização do processo de contratualização; II. Fase de arranque ou processo inicial; III. Processo de desenvolvimento da contratualização – base cultura; IV. Processo de contratualização e, V. Modelos alternativos de contratualização), agrupadas em dimensões categoriais, as quais foram exaustiva e exclusivamente estruturadas, permitindo incorporar as unidades de registo (segmento do discurso palavra ou conjunto de palavras da linguagem do entrevistado/respondente consonantes com as subcategorias definidas), seleccionadas a partir dos conteúdos das entrevistas e questionários. Este procedimento foi gerador de um conjunto de grelhas de análise de registo, onde foram colocadas as unidades de registo extraídas de cada entrevista. Posteriormente foram construídas quatro grelhas de análise de enumeração. A sua construção foi baseada nas subcategorias, em que zero (0) indica ausência e um (1) a presença das unidades de análise, nas respectivas subcategorias por entrevista e questionário realizados. Foi ainda desenvolvida a representação gráfica que consta do Anexo XII. Para o desenvolvimento do processo foi indispensável a criação do dicionário com o significado das subcategorias (Anexo XIII), que constituiu a “medida” de objectivação da análise de conteúdo, pois explica e limita a amplitude do conteúdo de cada subcategoria/unidade temática. 2.2.1.3 Análise de resultados apoiada nas análises de conteúdo e de frequências Após análise qualitativa dos conteúdos das entrevistas/questionários, procedeu-se ao tratamento estatístico, utilizando a análise de frequências das ocorrências por subcategoria, ao mesmo tempo que se desenvolveu uma avaliação comparativa dos significados dos conteúdos. Torna-se importante realçar que os questionários, entrevistas e respostas da Web realizadas aos diferentes profissionais e peritos envolvidos no processo, foram orientados sobre diferentes guiões de entrevista, embora possuam o mesmo número de categorias em análise, sejam iguais em conteúdo e posicionamento em termos temporais e prossigam o mesmo objectivo, razão pela qual o tratamento dos resultados destes três instrumentos se fez em conjunto. Para não sobrecarregar a análise de resultados com muitas figuras, só foram seleccionadas as que se consideraram mais significativas. Ao longo do processo de análise não iremos ser exaustivos e por isso vão ser feitas referências somente aos aspectos mais relevantes relativos aos resultados, que serão ilustrados sempre que possível através das frequências que se podem observar na representação gráfica geral (Anexo XII). De forma a poderem ser atingidos os objectivos de explicitação do processo de contratualização e do papel das agências e determinar a coesão das respostas dos peritos Tese 181 Capítulo VII: Apresentação dos resultados auscultados relativamente ao processo de contratualização prosseguido em Portugal, procurou-se, para além de contextualizar este processo, avaliar, quer o arranque, quer a fase inicial deste processo (1996/1997). Visando começar a analisar a contextualização do processo de contratualização e no que se refere às estruturas que iniciaram este processo, ou seja à importância da Função Agência (FA), consideram os peritos quanto à existência desta Função (Gráfico III) e ao seu desenvolvimento, que ela parece ser indispensável/vital para a reforma e reestruturação do sistema de saúde português (57%), pois permite reordenar as relações entre os vários agentes e entidades envolvidas introduzindo princípios e mecanismos de responsabilização e transparência “accountability” (50%) e de maior rigor na avaliação, bem como, na redistribuição dos recursos (justiça distributiva) (57%). Gráfico III – Importância da função agência 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% 1. Refo rma e reestruturação do Sistema de Saúde 2. Refo rma da A dministração 3. M elho r (re)distribuição de recurso s 4. Separação entre financiamento e prestação 5. Valo rização do cidadão 6. M elho r desempenho pro fissio nal 7. Intro dução do s mecanismo s de respo nsabilização 8. Intro dução do s mecanismo s de avaliação Esta função corresponde assim a uma necessidade para a reforma do sistema de saúde e do SNS (57%) e para uma verdadeira mudança na administração dos serviços de saúde, tendo um papel fundamental na avaliação/acompanhamento das actividades dos serviços (hospitais e centros de saúde) assim como na adequação entre estes e as despesas geradas. As respostas obtidas apontam no sentido de a mesma ser: “Uma necessidade para a reforma do Sistema de Saúde e do SNS” (Q. n.º 1); “Considero a Agência essencial para uma verdadeira separação entre financiamento e prestação e uma boa forma de garantir que, em mercado interno, as instituições públicas da saúde possam cumprir cabalmente com as suas obrigações perante os cidadãos.” e “É também uma forma para que os profissionais cumpram a sua missão como prestadores públicos de cuidados de saúde e para que esta prestação se torne mais transparente para a sociedade.” (Q. n.º 8); “Estabelece um diálogo lógico mercê da utilização de critérios assentes em identificação de necessidades de saúde de base populacional da consequente necessidade de recursos para a cobertura dos cuidados de saúde gerados, sendo assim um óptimo instrumento de articulação dos diferentes níveis de administração de saúde.” (Q. n.º 2). 182 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados Embora os respondentes concordem com a existência da Função Agência, à pergunta sobre que modelos de organização colhiam a sua simpatia, as respostas foram pouco significativas e do seguinte teor: “Não creio que se deva falar em modelos ou designações alternativas mas, sim, de formas instrumentais alternativas para assegurar a mesma função.” (Q. n.º 9). No que respeita à Fase de Arranque ou Processo Inicial, foi pedido aos respondentes que se pronunciassem com base no modelo existente para a função agência, ou seja sobre o ponto de partida para o processo de desenvolvimento da contratualização, quanto à localização daquela função, bem como no que se refere à sua organização e ainda quanto aos conteúdos deste processo. Quanto à localização da função agência (Gráfico IV), as opiniões são de concordância com a agência como função da A.R.S, verificando-se que 43% dos peritos respondentes concordam com a actual localização da função agência, isto é, tendo como ponto de partida para o processo de desenvolvimento da contratualização a agência como função da A.R.S.. Gráfico IV – Localização da função agência 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% 1. Órgão regional estratégico/regulador da Admin. 2. Órgão fortemente participado pelos cidadãos 3. Outros Mas entendem que “De momento o modelo criado é o melhor, mas no futuro, após a reforma do Estado e da administração pública, as ARS poderiam assumir inteiramente esta função desde que: (i) deixassem de ser tutela hierárquica dos estabelecimentos de saúde; (ii) assumissem verdadeiramente a administração de saúde de uma população e, (iii) tivessem uma forte participação no seu parecer decisional. Como uma instância intermédia de intervenção no sistema, autónoma, onde estejam representados os interesses dos cidadãos e da administração de saúde, com a função de, atendendo às necessidades em saúde da população regional, garantir a prestação de cuidados de saúde através da aplicação criteriosa dos recursos disponíveis, de forma eficiente e com a máxima equidade.” (Q. n.º 9). Os restantes respondentes entendem que esta não é a melhor localização, pelo que para garantir a efectiva separação entre financiamento e prestação, as Agências deveriam ter uma posição independente das ARS sob o ponto de vista funcional, isto é: (i) independente/separada dos estabelecimentos de saúde; (ii) órgão estratégico de administração de saúde e regulação regional e, (iii) fortemente participado por representantes comunitários. Alguns entendem ainda que: “deveria depender directamente da DGS com uma Agência por cada ARS” (Q. n.º 4) e que seria importante ser: “(i) independente/separado dos estabelecimentos de saúde; (ii) órgão estratégico de administração de saúde e regulação regional; (iii) fortemente participado por representantes comunitários” e, ainda, “para que seja fundamental uma estreita colaboração com a ARS é necessário garantir uma imparcialidade de Tese 183 Capítulo VII: Apresentação dos resultados funcionamento e de critério a adoptar, até pela garantia de igual representatividade administração/cidadão” (Q. n.º 8). No que se refere à organização do trabalho da função agência, 43% dos especialistas respondentes entendem (Gráfico V) que a mesma se deve centrar em equipas especializadas por áreas de prestação, dado que parece ser essa a forma de garantir um adequado acompanhamento e apoio aos serviços que encetam estas novas metodologias. Gráfico V – Organização do trabalho da função agência 0% 20% 40% 60% 80% 100% 1. Equipas especializadas por projectos 2. Equipas especializadas por áreas geográficas 3. Equipas especializadas por áreas de prestação 4. Outros Os especialistas entendem que “a organização integrava uma componente técnica e uma componente comunitária. Cada equipa é que materializava verdadeiramente o espírito e funções da Agência (a Agência é como que uma federação de equipas que actuam de forma harmonizada). Cada uma delas dedica-se a uma circunscrição geográfico-populacional de 100.000 a 500.000 habitantes (unidade de saúde, sistema local de saúde ou outra designação), havendo profissionais com maior nível de conhecimentos na área dos cuidados primários e outros nos secundários, mas as equipas integravam elementos de ambas as áreas. O seu ponto de partida são os problemas, as necessidades/prioridades de saúde e os recursos disponíveis. A sua acção orienta-se para que sejam atingidos resultados previamente definidos.” (Q n.º 9). Outros especialistas, ainda entendem que dadas as dificuldades iniciais sentidas pelos profissionais, a organização foi estabelecida de acordo com os recursos disponibilizados: “a nomeação de um coordenador parece ser a forma correcta de valorizar a função. A organização do trabalho da Agência era em equipas por unidade ou de projecto para o desenvolvimento conceptual de áreas da Agência, p. ex., sistema de participação e qualidade, sistema de incentivos, termos de referência, etc. articuladas matricialmente, embora em algumas das Agências não se possa falar em equipas especializadas. O mais frequente, dada a escassez inicial de recursos humanos, foi a organização assentar em três áreas: cuidados primários, hospitais e comissões de acompanhamento externo dos serviços de saúde (CAESS), aos quais se agrupavam, sempre que necessário e possível, peritos de diferentes especialidades ou áreas – criando equipas multidisciplinares”, sendo que” numa fase inicial do trabalho todos os elementos participavam, dividindo depois o mesmo consoante a maior especialização de cada um” (Q n.º 4). Mas esta situação foi-se alterando, de acordo com os respondentes, “conforme o coordenador, as solicitações do CA da ARS e o próprio estádio dos técnicos a colaborar em cada momento na Agência e, ainda, na sequência de debates internos, em 1999, para permitirem integrar a participação do cidadão e da comunidade no 184 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados processo de contratualização. Em teoria, a maioria dos colaboradores das Agências concordaram com este passo. Na prática, foi um processo não totalmente conseguido.” (E. A). O tipo de mandato (delegações) explícito que as Agências detinham, em cada uma das regiões, era diferente, mas maioritariamente são de opinião que o mandato era o explicitado no despacho de criação da função agência (57%) e visava “definir os termos de referência para os orçamentos programa, normalizar a sua execução pelos centros de saúde e hospitais e discutir/negociar o processo e produção e propor a distribuição duma pequena parcela financeira; o controlo do programa acesso; a aprovação, proposta de distribuição de verbas e acompanhamento de projectos específicos hospitalares,” (Q n.º 1) e, para outros ainda, que “esse mandato era parcialmente escrito, embora genérico, mas também oral, sendo para uns sempre o mesmo e para outros tendo sido alterado em 1999, mas que foi evoluindo ao longo dos tempos.” (Q n.º 9). Outra resposta ainda a ter em conta é a de que “o funcionamento dependia sobretudo do nível de conhecimentos, competência, know-how e instrumental técnico existente nas Agências. O seu mandato é, assim, relativamente subsequente ao tamanho das suas pernas para caminhar” (29%) (Q n.º 9). As funções técnicas da função agência (Gráfico VI), segundo os especialistas eram principalmente a análise detalhada dos orçamentos programa (71%) e a monitorização (50%) desses mesmos orçamentos. Ainda apontado como relevante era o processo de negociação (43%) e a decisão sobre financiamento dos serviços de saúde (36%). Gráfico VI – Funções técnicas da função agência 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100% 1. Análise detalhada dos orçamentos-programa 2. Processo de negociação 3. Decisão sobre financiamento dos serviços 4. Monitorização dos orçamentos-programa 5. Coordenação e normalização de procedimentos 6. Desenvolvimento/manutenção do sistema de informação Segundo os especialistas, apesar das competências explanadas no diploma legal que regia o seu funcionamento serem latas, algumas agências “incidiam a sua actividade Tese 185 Capítulo VII: Apresentação dos resultados essencialmente e numa primeira fase na análise, discussão e negociação dos orçamentos programa dos hospitais e centros de saúde, com toda a actividade prévia necessária, nomeadamente a definição de critérios para atribuição de prémios financeiros às instituições hospitalares e posterior acompanhamento da respectiva execução do programado.” (Q n.º 9). Sobre o funcionamento da função agência em relação à ARS, a opinião dos entrevistados é a de que a divisão de responsabilidades internas das agências era coincidente com as diferentes funções técnicas (57%), isto é, organizavam-se genericamente “segundo as funções identificadas e por vezes individualizando a área da satisfação e participação do cidadão” (Q n.º 1), mas em algumas delas essa divisão era “muito difícil de realizar, dada a escassez de recursos humanos e a quantidade sempre crescente de trabalho. Para além disto, as principais decisões eram todas precedidas de discussões internas onde os eventuais problemas eram levantados e as responsabilidades eram subdivididas em duas áreas principais: hospitais e centros de saúde, mas como assentava em equipas multidisciplinares todos detinham conhecimento das duas áreas, embora a fase das negociações, pela sua grande exigência, era sempre acordado previamente quem as faria.” (Q n.º 8). Quanto às reuniões de negociação, 43% dos peritos afirmam que as mesmas eram efectuadas “nas agências com a presença do CA da região, em ambiente formal para discussão e assumindo uma função inicialmente pedagógica. Eram convocadas formalmente pelo CA da ARS, mas quem as conduzia era a equipa da agência e tinham a participação de elementos dos serviços financeiros da ARS e do CA da instituição em análise (por vezes, este fazia acompanhar-se de responsáveis por alguns departamentos), bem como o coordenador da sub-região, no caso dos centros de saúde. A negociação era feita com base num documento preparado pela agência e em alguns casos pelo planeamento e informática da região, sendo analisadas e discutidas as propostas das instituições para o seu movimento assistencial no ano seguinte, bem como a sua adequação ao orçamento económico proposto.” (Q n.º 5). 36% dos respondentes afirmam ainda que as reuniões internas eram semanais e, tal como as de negociação, realizavam-se na Agência e, enquanto 29% referem que as reuniões de acompanhamento se realizavam nos estabelecimentos. O papel da sub-região nesta função, no entender de alguns dos especialistas “devia fazer equipa com os centros de saúde de forma a assumir o papel de parte interessada nas áreas em que a falta de autonomia se evidenciava”, ainda que para outros devesse ter “apenas um ligeiro papel quando eram discutidos os dados de produção e financeiros dos centros de saúde”, embora 43% entendam que o seu principal papel era o de “estarem presentes e participarem em algumas reuniões dos hospitais nos casos em que os sistemas locais de saúde estavam a avançar e em todas as reuniões de discussão dos orçamentos programa dos centros de saúde, como “cúmplice” (Q n.º 1). Mas 29% entendem que o seu papel era o de co-responsável com estes, dado que deveria ser conhecedor do acompanhamento que era feito e do que era necessário melhorar, traduzido na seguinte expressão: “no que respeita às discussões dos orçamentos programa dos centros de saúde, as sub-regiões assumiram sempre um 186 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados papel aglutinador, ajudando as instituições no preenchimento da informação e funcionando como porta-voz no diálogo com a Agência.” (Q n.º 3). No que se refere à preparação e desenvolvimento do processo e aos instrumentos de negociação, tiveram início durante o ano de 1996, inicialmente para os hospitais e posteriormente para os centros de saúde, sendo o processo negocial “meramente pedagógico para discutir consonâncias entre: actividades/despesas; produção/capacidade instalada; estratégia da região/estratégia da instituição, cabendo à Agência de Lisboa (a primeira a ser criada), clarificar níveis de actuação e mecanismos prospectivos para os custos/despesas e verificar a dissonância nestes binómios, definindo as margens de negociação no momento de discussão” (Q n.º 1). Noutras agências, que só se iniciaram em 1998, “o processo continuou a ter carácter pedagógico e dado ser o primeiro ano de contacto com as instituições de saúde, o processo negocial traduziu-se não numa verdadeira negociação, uma vez que foram aceites os números propostos pelas instituições, mas numa discussão em torno do movimento assistencial apresentado, índices de produtividade e rentabilização da capacidade instalada e, finalmente, ênfase na importância da coerência global do Orçamento Programa, para que este pudesse funcionar como um verdadeiro instrumento de gestão. Trata-se apenas de explicitar uma base de informação que sustentasse um processo de comunicação onde se descriminassem algumas expectativas de desempenho.” (Q n.º 3). Quanto ao conteúdo do instrumento de negociação, 57% dos respondentes afirmam que “o conteúdo sumário para discussão do orçamento eram os dados de produção, os económico-financeiro (análise relacional), de produtividade e de recursos. A discussão dos projectos específicos assentava na proposta apresentada pelas instituições de saúde”. Posteriormente, passaram a fazer a “análise prévia do orçamento-programa, reuniões com os CA das regiões, análise das propostas de alterações ao orçamentoprograma e contactos telefónicos com os vários responsáveis. E em relação aos projectos específicos, era feita a análise dos projectos, as discussões com os responsáveis e com os CA das instituições para elaboração do contrato programa” (Q n.º 8). Parte dos peritos (43%) afirmam ainda que o instrumento negocial era “o orçamentoprograma (que inicialmente era mais um instrumento para clarificação de alguma informação que servisse de base a um processo de comunicação entre a agência e a administração da instituição) e os indicadores obtidos a partir deste e para os projectos específicos, era o contrato-programa. O orçamento-programa era constituído por um plano de actividades, mapas de movimento assistencial relativos ao realizado no ano anterior, a previsão para o ano em curso e para o seguinte, com a respectiva quantificação de custos no orçamento económico, complementado com a situação económico financeira da instituição.” (Q n.º 9). Entendem alguns especialistas (29%) que “o instrumento negocial não estava bem desenvolvido, mas acrescentava valor ao processo, embora talvez se pudesse substituir com benefício o modelo em uso, dando-lhe, inicialmente, uma tónica mais virada para o processo de acompanhamento que permitisse ir criando um sistema de informação e uma prática de leitura externa das instituições menos formal e, provavelmente, mais Tese 187 Capítulo VII: Apresentação dos resultados efectiva na construção do modelo dos orçamentos programa e com discussões mais pequenas e mais detalhadas em áreas previamente definidas que se iriam constituir como as prioridades de discussão em cada ano” (Q n.º1 ), “um memorando sucinto de compromissos/objectivos de desempenho e resultados a atingir, isto é um contrato, em que os detalhes ficariam para as equipas de administração/gestão institucional. Assim, seriam fundamentais os outputs e os outcomes e não tanto os inputs e os processos throughputs.” (Q n.º 9). Ainda em 1996, deu-se igualmente início ao desenvolvimento do processo de pensamento sobre a organização do sistema de saúde centrado no cidadão e foi equacionada a participação do cidadão na função agência, sendo que as principais iniciativas terão sido, de acordo com os respondentes, “a maior divulgação das ideias estratégicas e muitos documentos produzidos; maior ênfase nos mecanismos de voz existentes nos serviços; a constituição de comissões de acompanhamento externo dos serviços de saúde (CAESS) e ao nível dos centros de saúde foi fomentada a criação do gabinete do utente, com representantes nas sub-regiões e regiões de saúde.” (Q n.º 1), mas só 36% dos especialistas afirmaram que existiam mecanismos de participação, embora 21% afirmem que a participação tem a interacção do cidadão. Quanto aos conteúdos que revestia a participação do cidadão, é entendimento pelos respondentes que a mesma se verificava “nos órgãos formais – conselhos gerais, comissões consultivas e concelhias, através da apresentação de reclamações e sugestões. respondendo aos questionários de satisfação quando eram internados; na participação em alguns inquéritos de satisfação; em visitas aos estabelecimentos; na recolha de opiniões, críticas e sugestões; na participação em reuniões de negociação dos orçamentos programa e ainda na participação em visitas de acompanhamento, embora, como um utilizador que identificava as necessidades e falhas na prestação dos cuidados de saúde, ele devesse ser ouvido e o sistema lhe deveria ficar grato por essa participação”, embora entendam que “essa participação tenha mudado ao longo do tempo. Em 1997 deu-se início à formação, em parceria com as autarquias, das comissões de acompanhamento externo dos serviços de saúde (CAESS) e em 1999 os estudos de satisfação dos utentes aumentaram; os orçamentos programa para 2000 reforçaram itens e consequentemente indicadores na área da satisfação, participação e qualidade.” (Q n.º 1). O Sistema de Informação (SI) da função agência, básico para o desenvolvimento do processo de contratualização, teve como principal objectivo “o tratamento da informação de suporte ao novo modelo de gestão e foi sendo construído a par e passo com o desenvolvimento do próprio processo. As agências passaram a dispor de uma base de dados em tempos e momentos diferentes e de acordo com a sua implementação (1997; 1998; finais de 1998 e no 4º trimestre de 1999). Tratava-se de um sistema integrado e o seu principal conteúdo eram os dados de estrutura – capacidade instalada, de produção – histórica e prospectiva, de recursos humanos e financeiros e ainda os indicadores construídos com base nesses dados e respectivos relatórios.” (Q n.º 1). Tratando-se de um sistema que tem de reunir informação de produção, financeira e de recursos e dispor de um quadro de indicadores de acompanhamento, de monitorização, de controlo e de avaliação, foi perguntado aos especialistas se conheciam algum sistema 188 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados de informação já disponível que se pudesse adequar ao processo em desenvolvimento, sendo que 50% referiram que “escolheriam o que foi desenvolvido na região de Lisboa e que foi o seleccionado pelo Ministério” (Q n.º 9) e afirmam ainda estar de acordo com “a forma como foi sendo criado e desenvolvido o embrião do sistema de informação” (Q n.º 2), mas entendem que “deveria existir menor dependência da empresa privada que o desenvolveu e melhor ligação ao sistema de informação das regiões” (Q n.º 1). Entendem ainda que “o suporte informático deveria ser de mais fácil utilização e estar integrado com os sistemas de informação das instituições e simplificar os dados a pedir em termos de número e especificidade.” (Q n.º 4). As principais críticas colocadas pelos respondentes são as seguintes: “deveriam passar a escrito muito daquilo que apenas está na cabeça das pessoas que participaram neste processo” e deveria haver “maior entrosamento entre o “outsourcing” e as equipas de contratualização.” (Q n.º 5). Rematam dizendo que: “a informação é o pilar sobre o qual assenta a discussão dos orçamentos programa com as instituições de saúde. Assim e à priori, era fundamental o desenvolvimento a nível da Direcção-Geral da Saúde de conceitos estatísticos precisos que abranjam com uma maior amplitude a realidade hospitalar e a dos cuidados primários. A imprecisão existente actualmente conduz a comparações altamente contestáveis, até pelo facto de servirem de base a financiamentos extraordinários que acabam por beneficiar a organização estatística da instituição e não o movimento assistencial em si.” (Q n.º 3). Em resumo, consideram os especialistas que a estrutura responsável pela contratualização em Portugal deve ser a função agência e que na sua fase de arranque se verificaram aspectos muito positivos ao nível do SNS, mas mais de carácter pedagógico do que prático, uma vez que a mesma não foi acompanhada dos instrumentos que permitissem operacionalizar a perspectiva de que a um determinado orçamento deve estar sempre associada uma determinada produção. Consideram também os peritos que a Agência é essencial, útil e imprescindível para uma verdadeira separação entre financiamento e prestação e uma boa forma de garantir que, em mercado interno, as instituições públicas da saúde possam cumprir cabalmente com as suas obrigações perante os cidadãos. Acrescentam ainda estes especialistas que esta é também uma maneira para que os profissionais cumpram a sua missão como prestadores públicos de cuidados de saúde e para que esta prestação se torne mais transparente para a sociedade. Visando analisar o Processo de Desenvolvimento da Contratualização - Base Cultural existente e a necessidade de se introduzirem correcções procurando encontrar uma maior efectividade para esta função mais de acordo com as actuais linhas políticas, poder-se-ão perspectivar quais os desenvolvimentos futuros face ao actual estado de arte da administração de saúde em Portugal. Com o propósito de se poder reflectir se os governos central e local devem apoiar o sector de uma forma mais incisiva, de molde a garantir a consolidação do processo de contratualização e verificar se os profissionais mais envolvidos no processo atribuem “importância às políticas governamentais para o sector” e se consideram que essas Tese 189 Capítulo VII: Apresentação dos resultados políticas são consentâneas com a reforma necessária ao sector da saúde, procurou-se avaliar o desenvolvimento do processo de contratualização. Assim, foi perguntado aos especialistas que implicações inerentes ao desenvolvimento do processo de contratualização (Gráfico VII) julgavam reconhecer a cada um dos níveis que a seguir são apresentados, sendo esta uma das categorias onde se observou uma maior concordância. Gráfico VII – Implicações inerentes ao desenvolvimento do processo de contratualização 0% 20% 40% 60% 80% 100% 1. Económico/legais 2. Políticas 3. Organizacionais 4. Financeiras 5. Outros Ao nível das implicações organizacionais, 79% dos especialistas entendem que: “O espaço entre órgão autónomo ou função apropriada pela região de saúde ou desconcentrada dum organismo central de Administração do SNS são modelos organizacionais plausíveis, embora com alguma dificuldade em garantir uma produção que satisfaça as necessidades da população, bem como grande dificuldade na implementação da contratualização interna nos serviços.” (Q n.º 1); “Este processo também não é compatível com a actual estrutura de funcionamento da Administração Pública, num contexto de total desresponsabilização por ausência de mecanismos que a imponham.” (Q n.º 5); “Seria importante adoptar regras de contratualização entre as Administrações e os utilizadores com base nas necessidades em saúde de base populacional.” (Q n.º 2); bem como “em termos organizacionais, a pressão exercida sobre o CA conduzirá (em princípio) a uma responsabilização dos directores dos serviços numa resposta adequada aos compromissos assumidos perante a tutela. São conhecidas iniciativas de contratualização interna, das quais se infere claramente que só agora se começa a olhar para as questões da gestão, até aqui perfeitamente desconhecidas. Este mexer de mentalidades poderá lavrar caminho para futuros projectos, seja o mais arrojado de mudança global das regras do sistema de saúde, seja o mais restrito como a criação de níveis intermédios de gestão.” (Q n.º 3). Quanto aos principais problemas económico/legais, 71% dos especialistas entendem que: “a contratualização regional tem de estar enquadrada numa estratégia de administração de todo o SNS; a criação dum quasi-mercado interno sem a clara delimitação entre o público e o privado não lhes parece real; existe dificuldade na arbitragem de conflitos; a actual legislação é restritiva a qualquer introdução de reorganização dos serviços com objectivos de maior eficácia e eficiência dos mesmos, bem como o facto de não existirem mecanismos que permitam validar o processo de contratualização, premiando os que cumprem e penalizando os que não cumprem, quer ao nível local, quer institucional.” (Q n.º 1). Discutem ainda que “o bom registo de residentes/inscritos gera necessidades em saúde cuja cobertura implica despesas públicas centradas no cidadão, existindo um problema 190 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados que é o facto do SNS não ter rácio de profissionais para dar cobertura (poderão convencionar ou contratar) a essas necessidades e ainda que os problemas actuais das instituições de saúde decorrem do próprio sistema e não do processo de contratualização em si, ainda que seja discutível que o possa prejudicar grandemente pela incapacidade dos dirigentes imprimirem no terreno os compromissos assumidos perante a Agência.” (Q n.º2 ). No que se refere às implicações políticas, 71% dos respondentes entendem igualmente que: “A função é facilmente vendável como ideia e torna-se muito apetecível a este nível se num modelo politicamente controlável.” (Q n.º 1); “Podia ter-lhe sido dado algum mandato na clarificação para a racionalização do público/privado.” (Q n.º 9); “Necessidade de grande envolvimento político para que a contratualização seja considerada como uma peça verdadeiramente estratégica.” (Q n.º 8); “Dotar os serviços de chefias mais competentes e com mais técnicas e tecnologias de apoio aos mesmos.” (Q n.º 4); “Este processo não é de todo compatível com nomeações de órgãos de gestão com base em escolhas partidárias.” (Q n.º5 ); “Necessidade de delegação de competências e de diálogo permanente entre o Ministério, os órgãos centrais, regionais e locais e as agências” (Q n.º 1); “Com base em estudos epidemiológicos, de base fiável, com uma política centrada no utilizador/cidadão e adequada às despesas públicas e não ao custo histórico.” (Q n.º 2). Entendem ainda que as agências de contratualização “poderão ser uma bandeira política em termos de estratégia de saúde porque finalmente se questionam as instituições de saúde sobre a sua actividade, a forma como rentabilizam a sua capacidade instalada – recursos humanos, físicos e tecnológicos, e a eficiência na gestão dos seus recursos financeiros. Todavia, espera-se que igualmente se coloque no decisor político a percepção inequívoca dos graves constrangimentos existentes na gestão competitiva do sector público da saúde, só ultrapassáveis por uma mudança nas regras de gestão da administração pública.” (Q n.º 3). Quanto às implicações financeiras, 64% dos peritos são de opinião que se deve verificar “uma progressiva diferenciação entre prestador e financiador, redução de ineficiências; progressiva transparência para o cidadão.” (Q n.º 1); “Uma maior adequação dos gastos aos procedimentos, implica levar até às últimas consequências a adequação do pacote financeiro à produção.” (Q n.º 4); “Recursos a atribuir para a necessidade dos cuidados de saúde (não tem por base o histórico) mas exige identificação das necessidades em saúde das populações, sendo que a este nível, o impacto da contratualização poderá ser mínimo, uma vez que existem défices acumulados nas instituições altamente inibidores de qualquer cumprimento dos compromissos assumidos.” (Q n.º 2). Questionados sobre o verdadeiro impacte da contratualização a diferentes níveis, 57% dos especialistas entendem que foi ao nível dos hospitais distritais que foi sentido o maior impacto, “parece ter havido uma maior resposta às necessidades e uma melhor articulação com os centros de saúde; uma maior responsabilização e melhoria do sistema de informação e recolha de dados (maior fiabilidade) e levou ainda os órgãos dirigentes a olharem para as instituições de outra forma e a envolveram os seus profissionais na definição e discussão dos objectivos, bem como a alterar a habitual Tese 191 Capítulo VII: Apresentação dos resultados leitura do histórico, para a identificação da capacidade instalada, da produtividade e consequente despesa.” (Q n.º 1). Com uma menor percentagem (50%), vêm no entender dos peritos os hospitais centrais e especializados em que o efeito terá sido “quase nulo a curto prazo; muito escasso, enquanto estes não estiveram organizados em níveis intermédios de gestão com financiamento autónomo e “indexado” à produção; reduzido ou quase nenhum dada a necessidade de alterar a habitual leitura do histórico, para a identificação da capacidade instalada, da produtividade e consequente despesa.” (Q n.º 1); mas pensam que “houve melhorias no sistema de informação e nos circuitos de emissão de facturação; sensibilização e eventual responsabilização interna pelo cumprimento dos compromissos assumidos, embora com resultados lentos”. (Q n.º 3). Em igual percentagem, aqueles especialistas pensam também que os efeitos referidos para os hospitais distritais e centrais poderão ser melhor sucedidos em mais pequenos, nomeadamente nos de nível I - “talvez seja ainda possível, em instituições de menor dimensão, algum impacto significativo na redução de custos unitários e um maior controlo na produtividade dos seus profissionais; uma melhor resposta às necessidades e melhor articulação com os centros de saúde; maior responsabilização e reconhecimento das suas funções; procura de ajuda para resolução de problemas graves, principalmente ao nível do financiamento.” (Q n.º 3). No que se refere aos centros de saúde e para os que vão ter autonomia, 50% dos peritos pensam que “poderá ter reflexos a curto prazo na adequação, eficiência, satisfação de profissionais e de utentes e modelo de gestão participativo com contratualização interna e uma maior responsabilização e reconhecimento das suas funções, bem como uma nova perspectiva na abordagem dos cuidados prestados e novo instrumento de trabalho interno com os profissionais.” (Q n.º 1); “Levou os órgãos de direcção a conhecerem melhor as suas instituições e os recursos que a sua actividade envolve, sobretudo ao nível da identificação da população, da análise dos utilizadores e que percentagem utilizam os serviços, da produtividade e dos custos daí decorrentes, bem como dos objectivos expressos e dos alcançados.” (Q n.º 5); “A este nível as consequências mais significativas da contratualização serão a criação dum patamar até agora inexistente de informação e análise de indicadores de gestão por parte dos responsáveis destas instituições, preparando-os para a autonomia administrativa e financeira. Por outro lado, é possível que haja efeitos positivos na melhoria de dificuldades existentes na comunicação e articulação com os hospitais.” (Q n.º 3). Quanto aos cuidados continuados (43%), incluindo os serviços de saúde comunitários e os cuidados domiciliários a dependentes (29%), incluindo os idosos, os peritos entendem que estas áreas foram as menos conseguidas: “Os resultados dependerão da ligação conseguida pelas agências entre produção e qualidade, mas poderão trazer ganhos de produção claramente induzidos pela estratégia de saúde.” (Q n.º 1). Como recomendação, os especialistas referem que “A contratualização, na sua vertente de exigência de prestação de cuidados de saúde com eficiência e que satisfaçam as necessidades e expectativas dos cidadãos, poderá conduzir a uma aposta definitiva nos cuidados continuados e domiciliários. Há todavia que não esquecer um eventual efeito perverso duma contratualização muito virada para a redução de custos médios 192 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados unitários, uma vez que o expurgar destas situações típicas de cuidados continuados, conduzirá a um aumento automático dos respectivos custos” (Q n.º 3). Referem ainda os especialistas que “as instituições privadas (com e sem fins lucrativos) deviam ter sido objecto de contratualização simultaneamente com a área pública, pois a sua não inclusão enviesa a visão pelos técnicos da agência do sistema local e nacional de saúde, devendo haver a possibilidade de contratualização com o SNS num regime de complementaridade e não alternativo” (Q n.º 1). Pediu-se também para hierarquizarem, por grau de importância da contratualização em diferentes dimensões, algumas das componentes do processo de contratualização, levando em linha de conta as afinidades entre elas, ficando assim listadas: 1º - Sistema de informação; 2º - Criação de instrumentos de negociação; 3º - Avaliação do desempenho; 4º - Gestão intermédia/descentralização/autonomia dos prestadores; 5º Melhoria da qualidade; 6º - Processo de negociação; 7º - Níveis de contratualização; 8º Redução dos custos; 9º - Descentralização do pagador; 10º - Preços. Tendo ainda por base o actual estado de arte da administração de saúde e o processo de contratualização já existente, pediu-se para referirem sucintamente a importância de um conjunto de catorze elementos, explicitando a opinião quer sobre o conceito que lhe está subjacente, quer sobre a relevância do mesmo na actual estrutura do sistema e nos processos de negociação encetados neste sector, sendo que nem todos os peritos responderam a todas as questões colocadas, pelo que se optou por transcrever as opiniões referentes aos que foram objecto de um maior número de respostas. Estratégia de saúde (57%): “Se para além de descritiva, ajudar a priorizar, é um elemento essencial para o processo de negociação. Essencial para o enquadramento de todo o processo e co-responsabilização do poder político. É básico fazer um bom diagnóstico da situação para, com base em conceitos epidemiológicos, definir Estratégias em Saúde. Não existe, cada Ministério dá “novas versões” à Estratégia anterior. Aproximando os problemas sentidos pelas instituições de saúde e as necessidades das populações dos órgãos da administração central, a estratégia e as políticas neste âmbito poderão concretizar-se de uma forma mais adequada, deixando de ser meras intenções escritas no Programa do Governo.” (Q n.º 1). Monitorização e controlo (57%): “Funções de administração dos serviços raramente levadas a cabo sistematicamente e que a Agência veio pôr na agenda do dia. Essencial para uma tomada de decisão responsável e responsabilizável a todos os níveis. Existe um esforço. No grupo de acompanhamento sub-regional (sub-região Porto) e região no que refere aos C. S.. Actualmente os coordenadores da sub-região não estão integrados no acompanhamento hospitalar. A monitorização e controlo dos compromissos assumidos pelas instituições de saúde é fundamental para imprimir credibilidade à contratualização. Actualmente creio que se dá muita importância à fase inicial da negociação em detrimento do acompanhamento. Seria importante distinguir numa reunião o cumprimento ou não dos objectivos, com atribuição do respectivo prémio ou penalização.” (Q n.º 9). Tese 193 Capítulo VII: Apresentação dos resultados Financiadores/pagadores/compradores (57%): “diferenciações ainda estranhas ao nosso Serviço Nacional de Saúde e por isso com relações ainda muito pouco clarificáveis. Essencial para nos aproximarmos do “valor do dinheiro” e da actividade de prestação de cuidados. A nível dos financiadores da prestação de cuidados de saúde, há a referir inequívocas melhorias no sistema de informação que darão maior confiança ao IGIF para utilizar outros elementos da actividade assistencial do hospital, que não apenas os do internamento, nos seus critérios de atribuição do subsídio de exploração. Por outro lado, a melhoria nos circuitos de emissão de facturação poderão levar acréscimos de facturas globais para os subsistemas.” (Q n.º 1). Necessidades em Saúde (57%): “terra de todos em termos de linguagem/intenções com uma discussão conceptual e metodológica ainda por fazer. Essencial para uma atribuição justa. Seria importante, mas tornava-se necessária a avaliação global das instituições de saúde. A determinação das necessidades em saúde das populações é fundamental para que, num processo de contratualização de cuidados de saúde, as instituições possam direccionar a sua oferta da forma mais adequada. Actualmente, pelo menos a nível da região Norte, este levantamento assenta no essencial na análise das listas de espera dos hospitais, o que dada a inexistência de uma lista nacional integrada torna este mecanismo insuficiente.” (Q n.º 2). Sistema de informação integrado (Agência, Instituições, ARS) (50%): “Noção perto do mítico mas chave para o desenvolvimento do SNS; oportunidade perdida na RSLVT, talvez por não enquadramento mais global. Essencial para todos estarem conhecedores dos valores das variáveis de estado e poderem monitorizar e iniciar acções correctivas, se necessário. Está a haver um esforço neste sentido. Um sistema de informação integrado poderá ser da maior importância, todavia neste momento os pressupostos de uniformização de conceitos e de auditoria clínica não estão cumpridos para que se possa eficazmente comparar instituições.” (Q n.º 1). Instituições prestadoras de cuidados - curta e longa duração (50%): “necessidade de investir na sua reorganização a partir da clarificação da sua missão – investir em saúde. A contratualização externa (e principalmente, a interna) irá necessariamente conduzir a grandes alterações organizacionais. É necessário fazer a articulação em sistemas locais.” (Q n.º 10). Avaliação da qualidade (50%): “grande chapéu ainda com tónica em processos e não em resultados e muito sujeito aos fenómenos de captura locais. Importante, embora independente do processo de contratualização; este pressupõe que a qualidade existe, é avaliador e controlador. Definição de programa de qualidade e quantificação de objectivos para acompanhante e consequente avaliação – actualmente existe já aplicado o MoniQuor. O actual estado da arte coloca as Agências de Contratualização num patamar inferior à avaliação da quantidade dos cuidados de saúde propostos.” (Q n.º 9). Para evitar eventuais perversões resultantes do processo contratual, foi perguntado aos peritos como actuariam de forma a atenuá-las ou até mesmo evitá-las, sendo que maioritariamente estes entendem que para tal deverão ser introduzidos mecanismos de avaliação (79%) e uma maior responsabilização das entidades envolvidas (57%): “Construindo simultaneamente um sistema de incentivos/penalizações para reforçar o 194 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados sistema de acompanhamento/realizado. Sistema de estudo/determinação de necessidades em saúde objectivado.” (Q n.º 1); “Fazer um bom acompanhamento sub regional com perfil lógico e personalizado dos profissionais de forma a dar a perceber a adequação do rácio recursos/ganhos em saúde.” (Q n.º 2); “Emissão de normativos estatísticos reguladores da actividade hospitalar, notas explicativas do preenchimento do orçamento-programa, auditorias clínicas e de informação estatística, atender na contratualização à possibilidade de subida de custos médios unitários por cuidados domiciliários ou continuados, lista de espera nacional integrada.” (Q n.º 3). No que se refere à categoria em que se procura perceber como procederiam os especialistas para conseguirem desenvolver progressivamente e potenciar a implementação do processo de contratualização, evitando eventuais recuos, parece existir muita desconfiança quanto à implementação das políticas, sendo que alguns afirmam mesmo que “Os objectivos da contratualização não deveriam estar dependentes da mudança ministerial, porque é difícil prosseguir o desenvolvimento face ao desconhecimento e à vontade de inovar.” (Q n.º 2), mas afirmam também que um caminho poderia ser “Criando um sistema de consequências (prémios, “rewards”, incentivos, penalizações, etc.), equidade e racionalidade na distribuição de recursos.” (Q n.º 9) e que “é fundamental a captação de profissionais para as Agências de Contratualização, nomeadamente de administradores hospitalares com alguma experiência na actividade hospitalar, para que os processos de negociação não sejam ridicularizados por desconhecimentos básicos do funcionamento das instituições. Por outro lado, garantir que seja por mecanismos de carreira, seja por incentivos remuneratórios ou de formação profissional, os profissionais envolvidos integrem os projectos com algum grau de permanência e acompanhem durante um período contínuo pré-determinado as mesmas instituições (por exemplo 3 anos). Por fim, a autonomia das Agências e a regulamentação legal das suas competências é fundamental para que não fique o seu funcionamento dependente das estruturas políticas internas da respectiva ARS, ou de orientações que não sejam as nacionais discutidas em sede de Secretariado Técnico das Agências, pois caso contrário geram-se desigualdades nos processos e critérios nas diversas regiões.” (Q n.º 3). Foi também perguntado como lhes parecia que deveria ser desenvolvido o processo, de forma a progressivamente se dispor de um modelo de identificação de necessidades em saúde que permitisse a aplicação de metodologias de distribuição de recursos mais eficientes e efectivas e reorganizar a Agência com base populacional, sendo que esta foi uma categoria em que só cerca de um terço dos especialistas se pronunciou, tendo no entanto afirmado que se deveria: “Articular com outras instituições para obter (através de estudos já feitos ou a implementar) dados que alimentassem esse modelo.” (Q n.º 4) e sobre quais as entidades que deveriam desenvolver essas metodologias: a Agência; a região; um órgão central; uma estrutura independente; ou, em meio académico, a resposta foi bastante elucidativa “Por todos. É um processo complexo que necessita de muitos contributos de diversas origens, perspectivas e saberes, mas são as agências que têm um investimento em técnicos e metodologias que deve servir de base ao desenvolvimento deste processo. No entanto seria útil reforçar a componente investigacional com parcerias com alguns meios académicos, o que poderia dar-lhe também alguma individualidade perante a Região. Falta também uma visão central (e não necessariamente um órgão).” (Q n.º 9). Tese 195 Capítulo VII: Apresentação dos resultados Em resumo, os especialistas entendem que o padrão de contratualização que melhor parece adequar-se ao contexto português é uma fase relacional assente num processo negocial informal, dado que os serviços evidenciam défices de prestação e que a contratualização pode conduzir a uma melhor regulação, o que implicará necessariamente uma melhor articulação e integração dos cuidados de saúde. Esta fase relacional será tanto mais longa quanto menor o empenhamento político no seu desenvolvimento e só poderá/deverá passar a uma fase contratual executória quando estiverem garantidas as condições minímas de responsabilização, avaliação e transparência, de forma a evitar rupturas na prestação. Há necessidade de se proceder a uma identificação das necessidades de base populacional e à análise de produtividade de cuidados de saúde necessários negociados com critérios de adequação, eficiência e qualidade, formalizando o acordado nos orçamentos-programa e garantindo um adequado acompanhamento em relação ao contratado e o desenvolvimento de indicadores de avaliação que permitam um isento e rigoroso benchmarking. Os peritos entendem também que para além desta função dever ser um órgão regional, estratégico e regulador, também fortemente participado pelos cidadãos, sendo que uma possível solução para o seu desenvolvimento seria a sua criação como uma entidade com funções bem definidas, com orçamento próprio e localizada junto do gabinete do Ministro ou da Secretaria de Estado ou sobreponível a cada uma das ARS. Conscientes e conhecedores de que é impossível existirem sistemas perfeitos, parece, no entanto, haver necessidade de solicitar uma avaliação sobre o Processo de Contratualização desenvolvido ao longo dos últimos quatro anos em Portugal, procurando perceber as razões fundamentais porque não foi possível fazer a indução cultural no processo de desenvolvimento da contratualização já que este processo pretendia estabelecer novos códigos comportamentais (Gráfico VIII) nas relações institucionais entre prestadores, autoridades de saúde, profissionais e utilizadores, entre outros. Gráfico VIII – Novos códigos comportamentais resultantes da introdução do processo de contratualização 0% 20% 40% 60% 80% 100% 1. Clarificar o processo de contratualização 2. Discutir o processo de desenvolvimento 3. Acordar sobre os resultados a alcançar 4. Fomentar o diálogo entre os actores 5. Assumir compromissos 6. Aceitar e dar voz aos cidadãos 7. Incrementar o acompanhamento e a monitorização Foi perguntado aos especialistas até que ponto é que julgavam que tinha sido conseguido estabelecer esses novos códigos comportamentais e quais os que consideravam ter sido melhor interiorizados tendo-se obtido a seguinte hierarquização para os mais significativos: assumir compromissos (57%); clarificar o processo de contratualização (50%); acordar sobre os resultados a alcançar e fomentar o diálogo 196 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados entre os actores (43%) e ainda, incrementar o acompanhamento e a monitorização (36%), justificando tais posições com as seguintes afirmações: “Foram dados os primeiros passos de uma longa caminhada: (a) clarificar o que se tem e o que se faz; (b) discutir o que se tem e o que se faz com aquilo que se tem; (c) acordar algum objectivo de melhoria de produtividade e eficiência; (d) iniciar práticas de diálogo e prestação de contas com entidades “exteriores”; (e) assumir alguns compromissos no desenvolvimento de dinâmicas de qualidade; (f) aceitar dar “alguma voz” aos cidadãos; (g) iniciar os primeiros passos de acompanhamento e avaliação do acordado. Mas faltam os passos seguintes.” (Q n.º 9); “… é cedo para serem retiradas grandes conclusões. De qualquer forma existe uma postura diferente entre as instituições e a Agência de Contratualização, nem que seja pelo cuidado da justificação da informação que apresentam como objectivos assistenciais. É talvez mais por esse motivo que alguns hospitais possam ter aumentado a sua actividade assistencial, apenas secundariamente indo de encontro às necessidades dos utentes. A consciencialização e a responsabilização dos Conselhos de Administração acredito ser um objectivo que foi atingido.” (Q n.º 3). Quanto ao modelo de contratualização implementado, foi perguntado aos especialistas se concordavam com o modelo experimentado e com a sua evolução e que explicitassem um outro modelo alternativo que lhes parecesse mais adequado e como é que viam o seu desenvolvimento e implementação. As respostas obtidas foram pouco expressivas, sendo de salientar que os respondentes consideram que: “A contratualização dos serviços de saúde, mesmo que incipiente e incompleta cria, a pouco e pouco, condições para a “desconstrução” ou “desmontagem”, sem grandes sobressaltos (alguns haverá!) da pirâmide hierárquico-burocrática centralista de comando e controlo, hoje completamente desadequada” (Q n.º 9). Pretendia-se com a contratualização estabelecer novos códigos de comportamento nas relações institucionais entre prestadores, autoridades de saúde, profissionais e utilizadores, mas isso só foi conseguido parcialmente em relação ao que seria necessário, bem como em relação ao que seria possível, na medida em que as próprias agências criaram exemplos de relações muito distintas e por vezes díspares e, de acordo com a opinião de alguns dos peritos, os modelos pedagógicos sem consequências práticas raramente induzem alterações reais e concretas nos serviços. Mas parece ser entendimento dos peritos que se torna importante a substituição progressiva do tradicional modelo de comando e controlo centrado ao nível dos órgãos centrais, e até regionais, por um modelo mais responsabilizante, que desconcentre e descentralize efectivamente a decisão no nível local e institucional. É ainda opinião de alguns que com a mudança ministerial em 1999 foi gerada uma indefinição que pôs em causa os bons resultados alcançados com o processo de negociação encetada. De qualquer forma permaneceu uma postura de relacionamento diferente entre as instituições e a função agência, talvez pela necessidade de justificação da informação que apresentam com objectivos assistenciais quantificados, alguns hospitais aumentaram a sua actividade, indo de encontro às necessidades dos utentes. A consciencialização e a responsabilização dos dirigentes parece ter sido um objectivo atingido. Tese 197 Capítulo VII: Apresentação dos resultados Pediu-se aos especialistas que ao pensarem sobre o desenvolvimento futuro do processo de contratualização em Portugal, admitissem a possibilidade de existência de vários Modelos Alternativos de Contratualização, como ponto de chegada e dessem a sua opinião sobre o que mais se adequaria ao sistema de saúde, de acordo com a cultura e os valores do nosso país. Procurou-se assim sintetizar a visão dos peritos envolvidos neste processo quanto ao necessário desenvolvimento, aprofundamento e consolidação da contratualização. Quanto à localização da função agência, os especialistas entendem que a mesma deverá ser coincidente com a ARS: “seria mais adequado colocá-la como uma função da região de saúde, a funcionar mais autonomamente, ou a funcionar integradamente com esta, mudando a sua natureza, missão e funções. Poderia ainda ser uma função regional a funcionar isoladamente, com autonomia própria, mas a coordenação da função deveria ser regional, embora a sua operacionalização devesse basear-se numa estrutura de pequenas equipas de contratualização organizadas em rede, cada uma dedicada a um conjunto populacional mais restrito (100.000 a 500.000 habitantes).” (Q n.º 9). Quanto à organização da função agência as opiniões dividem-se mas apontam que o modelo organizacional mais adequado parece ser “um coordenador e várias equipas organizadas por unidades de saúde, já que é a que permite uma abordagem populacional mais integrada e portanto susceptível de conseguir melhores ganhos sistémicos em custo-efectividade e micro-eficiência global do sistema, ou uma estrutura matricial juntando articuladamente um coordenador por região.” (Q n.º 9). Pronunciaram-se também sobre os conteúdos do processo de contratualização, considerando ajustada “a utilização de orçamentos programa para sustentação do processo negocial (plano de acção/orçamento económico), a utilização de orçamentos-programa combinados com projectos específicos e a utilização de orçamentos-programa de base, combinados com uma distribuição anual baseada no desempenho, bem como a afectação de recursos na base capitacional, ajustados de acordo com indicadores de saúde, morbilidade, mortalidade e sócio/económicos, às unidades de saúde, sendo ainda de considerar outros modelos mistos que sirvam quer o tipo de prestadores em presença, quer os resultados de saúde pretendidos.” (QW n.º 1). Tendo em atenção que o sistema de informação da função agência é básico para o desenvolvimento do processo de contratualização, procurou-se conhecer se, de acordo com o conhecimento que os respondentes detinham sobre o tipo de informação disponível, o processo de contratualização deveria assentar no sistema de informação disponível que progressivamente deveria ser melhorado, agregando toda a informação de produção, económica e de resultados, bem como sobre a capacidade instalada dos prestadores do SNS, ou se tinham uma opinião diferente sobre esta área, mas aqui também as opiniões se dividem, considerando que “o sistema deveria ser compatível com o sistema de informação que contenha idêntico conteúdo relativamente ao sector privado e social convencionado com o SNS, devendo evoluir-se para uma arquitectura mais integrada de sistema de informação de saúde que permita a respectiva circulação e interactividade entre os diversos agentes e entidades.” (Q n.º 9). 198 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados Sobre o que lhes oferecia dizer sobre a necessidade de criação de padrões de desempenho/produção para a negociação, ou seja o desempenho óptimo que se deve esperar de uma determinada capacidade instalada, os especialistas afirmam maioritariamente (71%) que os mesmos são necessários e que “Devia ser uma das áreas de investigação operacional instalada.” (Q n.º 1). A forma como os respondentes vem a relação da agência com outras estruturas do ministério (IGIFS, DGS, SES, etc.), é a seguinte: “Só haverá futuro para as Agências se a Administração Central do SNS for reformulada; nesse contexto poderão ser órgãos desconcentrados a cumprirem a função para que foram criados.” e “Noutro contexto poderão vir a ser órgãos de planeamento integrado (incluindo controlo e avaliação) de cada uma das ARS.”; “Não deve existir duplicação de funções ao nível destas estruturas, mas sim complementaridade” (Q n.º 1); “Muito confusa, demasiada confrontação de “poder” e pouca vontade de partilhar de uma forma aberta e clara sem “perder poder” (Q n.º 2); “A relação da Agência de Contratualização com estas instituições tem de ser de extrema proximidade e colaboração, o que creio ser conseguido pelo pleno funcionamento do Secretariado Técnico das Agências” (Q n.º 3). Em resumo, segundo a opinião dos peritos o processo de contratualização parece não ter ainda conseguido estabelecer novos códigos de comportamento nas relações institucionais entre prestadores, autoridades de saúde, profissionais e utilizadores, mas tê-lo-ia sido se não tivesse havido uma inflexão na política do Ministério da Saúde, uma vez que o ambiente envolvente contraria todo o processo de mudança. Por outro lado, é importante não esquecer alguns constrangimentos do sector público de saúde, nomeadamente a nível de recursos humanos, em particular os médicos e enfermeiros. Acresce ainda que a função agência deveria acompanhar a estratégia de saúde e ter um papel mais preponderante na orgânica do Ministério, pois só assim poderia materializar-se o papel de representante dos cidadãos na contratualização. Talvez possam ser estas algumas das razões que justificarão o não ter sido possível fazer a indução cultural no processo de desenvolvimento da contratualização. 2.2.2 A perspectiva dos dirigentes envolvidos no processo de contratualização Foi desenvolvido e aplicado um questionário sobre a mudança comportamental dos principais dirigentes envolvidos no processo da contratualização na saúde, em Portugal, para aferir sobre a percepção que os mesmos detinham sobre este processo e as reais implicações nas suas atitudes e procedimentos. Procurava ainda saber-se se a contratualização teria potenciado uma maior participação dos cidadãos. 2.2.2.1 Apresentação dos resultados por agrupamento 2.2.2.1.1 A função “Agência” Os respondentes, correspondentes à III amostra intencional (Quadro 19), representam 63% do universo seleccionado e distribuíram-se pelas diferentes categorias, da seguinte forma: Tese 199 Capítulo VII: Apresentação dos resultados QUADRO 19 – Distribuição dos respondentes da III amostra intencional Número de participantes seleccionados Número de respondentes % no total Directores Hospitalares 6 4 67 Administradores Delegados 39 24 62 Administradores Hospitalares 23 14 61 Coordenadores Sub-regionais 6 6 100 Médicos 3 3 100 Economistas 4 -- 0 81 51 63 Categorias TOTAL E a distribuição das frequências, é a seguinte: Gráfico IX – Respondentes da III amostra intencional - Grupos profissionais Grupo profissional 80 % 60 40 20 0 Director hospitalar Administrador delega Dirigentes regionais Grupo profissional Na questão 1 procurava-se obter o grau de concordância dos principais actores envolvidos no processo da contratualização na saúde sobre a importância da função agência, através da seguinte afirmação: “As Agências de Acompanhamento (agora de contratualização) dos Serviços de Saúde (ACSS) foram criadas como um dos instrumentos para uma nova política de saúde orientada para um compromisso explícito no sentido de melhorar o desempenho dos serviços de saúde, adoptando metas concretas para a realização de ganhos em saúde e assumindo a centralidade do cidadão como vector a desenvolver e a integrar na sua actuação. Foram explicitando uma nova relação entre o cidadão contribuinte, o financiamento estável, o investimento em saúde e a redução de gastos desnecessários, promovendo atitudes e comportamentos, no sentido da garantia da qualidade dos cuidados de saúde prestados à comunidade.”. Nas respostas obtidas verifica-se que 45,1% (23) dos respondentes, num total de 51 concordam totalmente e 52,9% (27) concordam em parte com esta afirmação (média: 1,57; moda: 2 e desvio padrão: 0,54, numa escala de 1 (concordo totalmente) a 3 (discordo totalmente)). No que se refere à posição dos diferentes grupos de dirigentes, verifica-se que 100% dos directores hospitalares e dos dirigentes regionais e ainda 97,4% dos administradores delegados ou hospitalares concordam totalmente ou em 200 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados parte com esta afirmação, ou seja o grau de concordância é muito semelhante nos três grupos de dirigentes. Na questão 2, procurava-se perceber até que ponto os objectivos definidos para a função agência tinham sido atingidos e quais as diferenças percepcionadas pelos diferentes grupos de dirigentes, através da afirmação “As agências de contratualização têm procurado assegurar a melhor utilização dos recursos públicos para a saúde e zelar pelos interesses de quem paga, directa ou indirectamente os cuidados de saúde, através de compromissos que se operacionalizam numa negociação, que constitui o processo de contratualização, no qual estão implícitos a fixação de objectivos, a monitorização e a avaliação final.” (Q n.º 5), e em que se pedia para que os respondentes classificassem por ordem de importância, numa escala decrescente, os objectivos que conseguiram ser atingidos pelas Agências, sendo que 1 representava o maior grau de importância e 8 o menor, ou seja, a não resposta à pergunta (resposta deixada totalmente em branco) era considerada como não tendo sido minimamente atingido. Os resultados obtidos (Quadro 20) hierarquizaram esses objectivos da seguinte forma: Quadro 20 – Objectivos da função agência na perspectiva dos dirigentes Objectivos atingidos pelas agências 2.1. Identificar as necessidades ou cuidados de saúde para os quais há que garantir respostas adequadas. 2.2. Propor ao CA das ARS a respectiva distribuição dos recursos financeiros pelas instituições de saúde da região e proceder à contratualização dos cuidados de saúde com as mesmas. 2.3. Produzir e divulgar informação sobre os serviços de saúde e promover a utilização desses conhecimentos por parte das administrações e por parte dos cidadãos. 2.4. Incorporar na reorientação do sistema de saúde a opinião do cidadão. 2.5. Acompanhar o desempenho das instituições relativamente à prestação dos cuidados de saúde e recursos financeiros contratualizados. 2.6. Dar parecer sobre a celebração de acordos e convenções com entidades privadas e IPSS para a prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS. 2.7. Participar na avaliação de ganhos em saúde e bem-estar obtidos com os recursos financeiros gastos. Média Desvio Padrão Moda 4,4 2,13 5 3,92 2,43 1 4,36 1,95 5 6,32 3,24 1,73 1,93 7 1 5,56 2,20 8 5,06 2,34 8 Nota: escala de 1 a 8, em que 1 ⇒ o maior grau de importância e 8 ⇒ o menor grau de importância (resposta deixada totalmente em branco) acompanhar o desempenho das instituições relativamente à prestação dos cuidados de saúde e recursos financeiros contratualizados, propor ao CA das ARS a distribuição desses recursos pelas instituições de saúde da Região e proceder à contratualização dos cuidados de saúde com as mesmas, foram os objectivos melhor conseguidos, segundo 72% e 64%, respectivamente dos respondentes e com uma moda igual a 1; produzir e divulgar informação sobre os serviços de saúde e promover a utilização desses conhecimentos por parte das administrações e por parte dos cidadãos e identificar as necessidades ou cuidados de saúde para os quais há que garantir respostas adequadas, foram o terceiro e quarto objectivos melhor conseguidos segundo 54% e 52% dos respondentes, respectivamente); Tese 201 Capítulo VII: Apresentação dos resultados incorporar na reorientação do sistema de saúde a opinião do cidadão, em que 58% entendem que este foi o objectivo menos conseguido, com a média mais elevada (6,32) e uma moda igual a 7; participar na avaliação dos ganhos em saúde e bem-estar obtidos com os recursos financeiros gastos e dar parecer sobre a celebração de acordos e convenções com entidades privadas e IPSS para a prestação de cuidados de saúde no âmbito do SNS, em que 40% entendem que estes objectivos foram dos menos conseguidos. 2.2.2.1.2 O processo de contratualização Na questão 3 pretendia-se confrontar os dirigentes com os resultados obtidos com o processo de contratualização, perguntando-se: “A distribuição de recursos previa-se passar progressivamente a ser feita com base em processos de contratualização a três níveis (regional, institucional e intra-institucional). Indique em seu entender a que níveis é que essa distribuição foi conseguida na sua instituição e também na sua região”. Dos resultados obtidos (Quadro 21) pode concluir-se que maioritariamente (61%), os gestores entendem que a distribuição entre as ARS e as instituições de Saúde (hospitais, centros de saúde) foi o nível em que a distribuição foi mais conseguida, com uma média de 1,95, uma moda de 2 e um desvio padrão de 0,74, embora refiram que esta distribuição era mais pedagógica do que efectiva. Quadro 21 – Nível de distribuição de recursos na perspectiva dos dirigentes A distribuição de recursos Média Desvio Padrão Moda 3.1: entre a administração central e as ARS. 3.2 entre as ARS e as instituições de saúde. 3.3 entre as administrações das instituições de saúde e os seus centros de saúde e departamentos ou unidades operacionais de prestação de serviços de cuidados de saúde. 2,10 1,95 0,75 0,74 2 2 2,33 0,81 3 Nota: escala de 1 a 3, em que 1 ⇒ muito importante e 3 ⇒ pouco importante Há 41% que referem que ela só foi conseguida muito parcialmente entre a administração central e as ARS (média de 2,10, uma moda de 2 e um desvio padrão de 0,75), na medida em que havia vários departamentos centrais envolvidos no processo e a distribuição regional nunca aconteceu, já que se manteve a afectação directa do IGIF aos hospitais e, ainda 49% afirmam que entre as Administrações das instituições de saúde e os seus centros e departamentos ou unidades operacionais de prestação de cuidados de saúde essa distribuição, que se traduzia pela internalização do processo de contratualização nas instituições, não foi conseguida (média de 2,33, uma moda de 3 e um desvio padrão de 0,81). Perguntou-se também, na questão 4, se os gestores entendiam que “os processos de responsabilização (existência de consequências relativamente à utilização de recursos, ou seja, caso não sejam atingidos os resultados negociados a instituição não verá cobertos os défices gerados) e avaliação introduzidos nas organizações acarretam 202 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados sempre alterações comportamentais (significa que normalmente os profissionais introduzem um maior rigor e preocupação na apresentação dos resultados e uma maior preocupação no acompanhamento da actividade) e se com a Agência isso também tinha acontecido”. Teoricamente os gestores concordam com esta afirmação, mas afirmam que na prática as agências pouco contribuíram para uma cultura de responsabilização, dado terem sido esvaziadas de competências, isto é, não tinham recursos financeiros para introduzir mecanismos para premiar ou penalizar as instituições. Média Desvio padrão Moda 1,62 0,57 2 Nota: escala de 1 a 3, em que 1 ⇒ concordo totalmente e 3 ⇒ discordo totalmente Segundo estes actores as agências não chegaram a integrar plenamente a estrutura das ARS. Por sua vez, o poder político não assumiu na íntegra e de forma coerente e contínua a função das agências. Por outro lado ainda, entendem que as agências têm promovido novas atitudes e comportamentos no que respeita à análise quantitativa assistencial, mas sem reflexos evidentes na eficiência. A questão 5 questionava os gestores sobre se poderemos considerar que a introdução da contratualização veio trazer alterações no processo de distribuição de recursos, nomeadamente passando a ser feito mais em função dos resultados, ao que estes actores responderem que o peso que tem ainda o “histórico” na formulação do orçamento financeiro das instituições diminui o impacto deste efeito, embora considerem que a introdução de mecanismos de contratualização melhora naturalmente a distribuição de recursos. Por outro lado, o financiamento relativamente aos hospitais continua a ser feito pelo IGIF e sem haver intervenção das Agências nessa distribuição. Segundo estes actores não há evidência empírica de que a distribuição de recursos, nomeadamente os financeiros, tenha sido efectuada de forma consistente em função dos resultados e por isso os valores estatísticos encontrados nas respostas obtidas são os seguintes: Média Desvio padrão Moda 1,94 0,71 2 Nota: escala de 1 a 3, em que 1 ⇒ concordo totalmente e 3 ⇒ discordo totalmente Convém também referir que o processo não atingiu em todas as regiões o mesmo grau de desenvolvimento e que os gestores entendem que a avaliação é mais quantitativa, mais baseada no volume de produção do que nos resultados em saúde e na satisfação do utente. Na questão 6 perguntava-se se a introdução da contratualização veio trazer algumas alterações no comportamento dos dirigentes da saúde, nomeadamente maior rigor e preocupação no processo de discussão dos resultados, quer institucional, quer Tese 203 Capítulo VII: Apresentação dos resultados intra-institucional. Os resultados obtidos apontam para uma concordância quase total, sendo os valores estatísticos encontrados os seguintes: Média Desvio padrão Moda 1,42 0,54 1 Nota: escala de 1 a 3, em que 1 ⇒ concordo totalmente e 3 ⇒ discordo totalmente Alguns entendem, no entanto, que a gestão ainda se centra na resolução de problemas pontuais, mas que houve aumento de preocupação na análise dos resultados quantitativos ao nível institucional, embora as alterações no comportamento dos gestores e dirigentes não tenham sido substanciais. 2.2.2.1.3 O papel do cidadão A questão 7 relembrava estes actores que ao mesmo tempo que se foi tentando consolidar o processo de organização e funcionamento das Agências se considerou como prioritário reforçar o papel do cidadão na “Função Agência” e criar metodologias que permitissem avaliar não só as necessidades em saúde como também o impacto dos cuidados de saúde contratualizados em termos de ganhos em saúde. Por isso pedia-se para recordarem os últimos cinco anos e indicarem as alterações nas atitudes dos cidadãos verificadas ao nível da sua freguesia, concelho ou distrito. As respostas apontam maioritariamente para o facto de não terem sido sentidas quaisquer alterações no comportamento dos cidadãos, conforme se pode analisar no quadro a seguir apresentado (Quadro 22). Quadro 22 – Efeitos da contratualização na perspectiva dos dirigentes Efeitos da contratualização % concordância 7.1. Não sentiu qualquer alteração no comportamento dos cidadãos. 53% 7.1. Sentiu um grande envolvimento e participação dos cidadãos ao nível da sua instituição de saúde. 2% 7.3. Não sentiu grande envolvimento e participação dos cidadãos ao nível da sua instituição de saúde. 98% 7.4. Sentiu grande envolvimento e participação dos cidadãos ao nível da comunidade em geral nas questões de saúde. 10% 7.5. Sentiu uma progressiva participação e criação de grupos ou núcleos de cidadãos preocupados com as questões da saúde. 16% Nota: escala de 1 e 2, em que 1 ⇒ sim e 3 ⇒ não Há um dos actores que afirma que se o cidadão tem mais capacidade reivindicativa isso se fica a dever à actuação dos meios de comunicação e não à actuação das agências. E um outro explicita melhor o seu pensamento afirmando que os cidadãos não conhecem bem as agências e o seu comportamento é condicionado pela comunicação social. Por último, na questão 8 procurava-se saber se as alterações de comportamento, eventualmente verificadas, estariam relacionadas com a criação das ACSS e com a introdução de uma nova cultura de responsabilização e avaliação introduzidas e ainda com a preocupação de inclusão do cidadão no sistema. 204 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados A resposta a esta questão já ficou parcialmente dada na anterior, mas convém referir algumas das considerações apresentadas pelos gestores, dado que não houve concordância com a afirmação, conforme se pode verificar pelos valores das estatísticas apresentadas: Média Desvio padrão Moda 2,58 1,36 3 Nota: escala de 1 a 3, em que 1 ⇒ concordo totalmente e 3 ⇒ discordo totalmente É opinião de alguns dos gestores que as alterações de comportamento dos cidadãos têm principalmente a ver com a evolução social e dos meios de comunicação, ou seja devido à mediatização dos problemas da saúde, embora achem que qualquer processo de avaliação introduz sempre alterações de comportamento. Em resumo, os dirigentes envolvidos afirmam que o processo de contratualização é essencial ao desenvolvimento do sistema de saúde em Portugal e que a criação das agências foi a mais importante medida inovadora implementada na saúde na última década, mas que é necessário dotá-las da influência necessária ao desenvolvimento da sua actividade. Entendem também quanto à participação do cidadão que as alterações são tímidas e fruto do desenvolvimento generalizado da sociedade portuguesa, decorrendo provável e naturalmente do processo político-social na saúde e não da acção das agências, mas acreditam que o impacto da função agência foi importante no interior do sistema de saúde e dentro dele no comportamento do pessoal dirigente das organizações hospitalares, pelo que será expectante que o cidadão possa assumir futuramente um papel mais intervencionista e facilitador da contratualização. 2.2.3 Diferentes perspectivas sobre a contratualização Segundo várias entidades, líderes de opinião e políticos, nomeadamente Pedro de Almeida (Secretário de Estado do Turismo), Observatório do Turismo, IAPMEI, Ordem dos Médicos, Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, Conselho de Administração da Associação de Municípios de Trás-os-Montes e Alto Douro, Pedro Ferreira da Faculdade de Economia de Coimbra, Vítor Ramos da ENSP e, ainda de acordo com o expresso em algumas publicações, nomeadamente OPSS (2001 e 2002), Revista de Saúde Pública da ENSP72, Terceiro Quadro Comunitário de Apoio73, Programa do XV Governo Constitucional e Relatório de 2001 do Director Geral e Alto-comissário da Saúde74), podemos verificar que a palavra contratualização tem vindo a ser adoptada com grande frequência e começa a ser aceite como um conceito abrangente e com um significado próprio, rico e claro, embora alguns se questionem sobre se existe o termo contratualização. Segundo vários autores não existe. Existem sim, registados no Dicionário Aurélio, pág. 469, os termos contratualidade (qualidade de contratual) e contratualismo - na filosofia do Direito, doutrina segundo a qual o Estado foi estabelecido mediante contrato entre os cidadãos, ou entre eles e o soberano. 72 www.ensp.unl.pt 73 www.saudexxi.min-saude.pt 74 www.dgsaude.pt Tese 205 Capítulo VII: Apresentação dos resultados No glossário do Terceiro Quadro Comunitário de Apoio, Contratualização é a associação, pela autoridade de gestão e por período determinado, de entidades públicas ou privadas à gestão técnica, administrativa e financeira da respectiva intervenção operacional, mediante a celebração de contratos programa homologados pelo membro do Governo competente. As entidades associadas à gestão passam a constituir, através da contratualização, organismos intermédios (DL 54-A/2000, 36.º, 1). Na Revista de Saúde Pública, editada pela ENSP, no seu número temático de 2001 sobre cuidados de saúde primários, a propósito da experiência portuguesa na Contratualização com Centros de Saúde pode ler-se: “a experiência portuguesa de contratualização tem sido dominada pelos hospitais. Este texto analisa as diferenças conhecidas ou previsíveis da contratualização com os centros de saúde quando comparada com a dos hospitais. Os primeiros passos de contratualização em saúde em Portugal tiveram lugar num contexto caracterizado por outras iniciativas de reforma – como por exemplo os projectos de reorganização dos cuidados de saúde primários e dos sistemas locais de saúde – que não se revelou particularmente estável. A contratualização num “quasimercado” público pressupõe do lado da “Agência” o conhecimento das necessidade a atender e o de um preço “justo” para negociar, enquanto que requer do lado dos prestadores o conhecimento das suas funções de “produção”. Tanto num pólo como no outro as experiências regionais estão ainda num período inicial de desenvolvimento, reflectindo o facto deste processo estar ainda a dar os primeiros passos no país (as primeiras iniciativas datam de 1996). Este será um longo caminho de amadurecimento institucional e de criação das capacidades técnicas necessárias. No entanto, já é possível observar progressos importantes quer na elaboração e negociação de orçamentos-programas quer na presença de «representantes» do cidadão no processo negocial. Pelo seu grau de autonomia e pela sua organização interna, é mais fácil ao hospital do que ao centro de saúde estabelecer uma «contratualização interna» que permita realizar adequadamente a «contratualização externa» negociada com o financiador. A reorganização prevista para os centros de saúde pode superar em parte esta dificuldade.” No caso particular da contratualização por parte da Agência de Contratualização com os Centros de Saúde na Região de Lisboa e Vale do Tejo (ACSSLVT, 2000), podem tirarse algumas conclusões, tal como se explicita de seguida: O caso dos Centros de Saúde Numa apreciação global dos resultados desta experiência para o período de 1996 a 2000, é possível concluir que a discussão sobre os dados de produção e as experiências realizadas na organização da participação dos utentes dos centros de saúde tiveram efeitos positivos. Em contrapartida o trabalho ainda incipiente naquilo que diz respeito à determinação das necessidades em cuidados de saúde da comunidade não permitiu dar mais relevo às questões relacionadas com a promoção da saúde. De efeitos menos positivos foi também a diminuição do interesse pelo processo de contratualização por parte de diversos órgãos centrais e regionais do sistema de saúde. Para ilustrar um pouco melhor a aplicação da contratualização na área da saúde, apresentam-se seguidamente dois casos concretos, de um hospital e de um programa específico, através dos quais se podem analisar algumas das potencialidades desta metodologia: 206 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados O caso do Hospital de São Sebastião O caso do programa de intervenção médico/dentária Com o Estatuto Jurídico do Hospital de São Sebastião (HSS) pretendeu-se que a contratualização do financiamento tivesse por base o tipo e número de actividades a desenvolver e concomitantemente uma agilização da contratação dos meios necessários ao seu funcionamento. Embora este aspecto do estatuto traduza potenciais ganhos em saúde, convém garantir que as actividades contratualizadas correspondem às reais necessidades da população que a instituição serve e não às mais lucrativas, afastando o espectro de uma possível “escolha de utentes”. O estatuto jurídico do HSS estabelece uma filosofia de gestão do tipo empresarial, com base na contratualização das actividades a desenvolver e os recursos necessários à sua prossecução: contrato e orçamento programa. A evolução para esta filosofia de gestão acarreta potenciais ganhos em saúde e em termos de cultura organizacional favorece uma perspectiva de responsabilidade e responsabilização. O Relatório de 2001 do Director Geral e Alto-comissário da Saúde, na avaliação do programa de intervenção médico/dentária, feito com recurso à contratualização com profissionais de saúde, refere que os ganhos em saúde obtidos com a aplicação do Programa de Saúde Oral, permitem-nos hoje colocar entre os países de moderada prevalência de doença, com indicadores aos 12 anos de idade, índice de CPO75 igual a 2.95, compatíveis com os preconizados pela OMS para a Região Europeia que é de 3 (Saúde Oral na Deficiência – Orientações e formulário de candidatura para a apresentação de projectos. DGS. DSE, 2000). Mas este não é um processo exclusivo da saúde. Também nos documentos do Ministério da Educação para a autonomia e financiamento do ensino superior, é defendido que o desenvolvimento da autonomia das instituições de ensino superior público levanta, desde logo, uma questão de fundo, associada ao financiamento: na medida em que essas instituições dependem, quase em exclusivo, de financiamentos públicos, até que ponto poderão usufruir de uma verdadeira autonomia institucional? É defendido que a compatibilização da autonomia com o financiamento público passa por uma via de contratualização e de responsabilização mútua, assente em três pilares sem os quais a autonomia será uma permanente fonte de tensões e não poderá vingar: (i) a existência de mecanismos claros e transparentes de financiamento do funcionamento das instituições, baseados em critérios objectivos devidamente consensualizados, centrando a negociação orçamental no plafond global para o conjunto das instituições a partir de referenciais solidamente construídos; (ii) o estabelecimento de contratos de desenvolvimento institucional inseridos em programas estratégicos a acordar entre o Ministério da Educação e cada uma das instituições, onde se estabeleçam objectivos e quantifiquem metas de desenvolvimento, dentro de um equilíbrio entre os interesses, apetências e capacidades de realização demonstrados pela instituição e as expectativas políticas para o desenvolvimento global do sistema nacional de ensino superior, num conceito de rede articulada e coerente de instituições de ensino superior e, (iii) a prestação clara de contas por parte das instituições, não só no plano administrativo e financeiro, através dos relatórios de contas e auditorias — no âmbito interno e perante o Estado — mas também e mais importante, perante a Sociedade, ao nível da eficiência de actuação face a objectivos e metas traçados, pela via de processos de avaliação credíveis e transparentes. Os princípios básicos em que devem assentar os critérios de financiamento público são, por conseguinte: (i) o princípio da objectividade e transparência nos critérios de financiamento; (ii) o princípio da contratualização entre as instituições de ensino 75 Média de dentes cariados, perdidos e obturados. Tese 207 Capítulo VII: Apresentação dos resultados superior e o Estado e, (iii) o princípio da responsabilização, da racionalidade e da eficiência na utilização de recursos, com a correspondente prestação de contas. Para o referido Secretário de Estado do Turismo Pedro de Almeida, a contratualização não é um fim em si mesmo, mas apenas um meio para a obtenção do identificado objectivo e que só será concretizada se for comprovado que os parceiros têm representatividade, massa crítica e estão mais próximos dos clientes nas áreas de produto que pretendem incrementar. Devem, ainda, apresentar resultados das acções que realizam, os quais deverão ser devidamente avaliados - a propósito da promoção turística da cidade de Lisboa promovida pela respectiva Câmara Municipal afirmou que a contratualização tinha de ser condicional, já que poderia haver lugar à contratualização da promoção externa a qual, no entanto, só poderia ocorrer se os parceiros candidatos demonstrassem capacidade de fazer melhor com os mesmos meios disponíveis. O programa do XV Governo Constitucional, no IV capítulo - Reforçar a justiça social. Garantir a igualdade de oportunidades – saúde tem explícito que irão ser adoptados procedimentos de gestão rigorosos que permitam: - atribuir orçamentos específicos e adequados à natureza das instituições, de acordo com um plano estratégico de contratualização; - estabelecer incentivos financeiros ligados a ganhos de produtividade, à flexibilidade na criação de equipas de trabalho e à mobilidade funcional e geográfica. Em saúde, segundo opinião dos peritos envolvidos na investigação, pode definir-se contratualização como “o processo pelo qual partindo da avaliação das necessidades em saúde e de serviços de saúde, se estabelecem mecanismos negociais de atribuição de recursos aos serviços para prestar cuidados na base de critérios explícitos de acessibilidade, adequação e efectividade”, mas segundo Freitas (2002), uma outra definição de contratualização pode ser “um processo de relacionamento entre financiadores e prestadores, assente numa filosofia contratual, envolvendo uma explicitação da ligação entre o financiamento atribuído e os resultados esperados, baseada na autonomia e responsabilidade das partes e sustentado num sistema de informação que permita um planeamento e uma avaliação eficazes, considerando como objecto do contrato metas de produção, acessibilidade e qualidade”. 2.3 A componente “processo de mudança” 2.3.1 Apresentação do método para definição do modelo estatístico De forma a explicar os resultados em saúde e a procurar encontrar as variáveis mais significativas, recolheram-se dados dos últimos trinta anos, para centro e trinta e cinco variáveis que se agruparam posteriormente em nove matrizes de recolha dessas mesmas variáveis. A saber: 1. Contexto macro/económico/social; 208 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados 2. Processo (variáveis): 2.1 Recursos financeiros do sistema de saúde; 2.2 Gastos do SNS; 2.3 Recursos humanos; 2.4 Estrutura; 2.5 Produção; 2.6 Produtividade; 2.7 Desempenho; 3. Resultados em saúde. A análise em componentes principais procura identificar um pequeno número de dimensões que expliquem as relações existentes entre as variáveis que descrevem um conjunto de indivíduos, isto é, procura-se simplificar a informação proveniente de um quadro com diversas variáveis e indivíduos através da redução do número de variáveis necessárias para descrever esses indivíduos, o que nesta investigação parece ter toda a pertinência, dado o elevado número de variáveis e o reduzido número de observações. É recomendável proceder-se a uma análise exploratória de cada variável antes de dar início à análise em componentes principais e caso a assimetria seja muito pronunciada, segundo Reis, E. (2001), pode haver necessidade em transformar uma ou mais variáveis, o que parece igualmente justificar-se nesta situação. Parece ainda importante conhecer as correlações entre todas as variáveis, de forma a prever os grupos de variáveis que se irão formar. O teste de esfericidade de Bartlett, que permite testar se a matriz de correlações das variáveis originais é uma matriz identidade e sendo o nível de significância associado ao teste em todos eles de 0,000 (inferior a 0,05), isto significa que existem correlações significativas entre as variáveis originais, logo rejeita-se a hipótese da matriz de correlações ser a matriz identidade. Foram eliminadas as variáveis com elevado número de missing values e, nas restantes, os missing values foram substituídos por estimativas encontradas pelo método de regressão linear. 2.3.2 Apresentação dos resultados Com recurso ao Programa SPSS for Windows, versão 11.5, foi criada uma base de dados com a informação referente aos últimos trinta anos para as centro e trinta e cinco variáveis seleccionadas, tendo-se efectuado as diferentes análises estatísticas que nos permitiram obter os resultados que se apresentam seguidamente. Tese 209 Capítulo VII: Apresentação dos resultados A estatística de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO), que compara as correlações simples com as parciais observadas entre as variáveis iniciais para cada um dos elementos (Quadro 23), apresenta valores médios ou bons (valores inferiores a 0,700 são considerados menos adequados), o que significa que esta medida global é satisfatória e que se torna aconselhável fazer uma análise em Componentes Principais. Quadro 23 – Análise em Componentes Principais Componentes principais Contexto macro/económico/social Gastos do SNS Recursos Financeiros do Sistema Recursos Humanos Estruturas de resposta especializadas Produção Desempenho Produtividade Resultados Adequabilidade dos dados Estatística de KMO 0,628 (R) 0,858 (B) 0,720 (M) 0,683 (R) 0,747 (M) 0,809 (B) 0,829 (B) 0,673 (R) 0,868 (B) Teste de Bartlett (p - value) 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 Análise dos valores próprios (%) de variância explicada 89,4 92,2 71,0 84,3 93,0 86,5 80,7 76,2 92,0 Foram também analisadas as comunalidades, ou seja a proporção da variância de cada variável explicada pelas componentes retidas. As comunalidades iniciais são iguais a 1, e após a extracção variam entre 0 e 1, sendo considerados aceitáveis valores superiores a 0,5. O critério de extracção das componentes utilizado foi a percentagem de variância explicada, onde se considera razoável assumir componentes que expliquem até uma percentagem acumulada de 70 % e como, no caso em análise, a variância que é explicada por cada uma das componentes principais varia entre 71,0 e 93,0 %, podemos considerar estar perante boas soluções. Com o objectivo de extremar os valores das saturações de modo a que cada variável fique associada apenas a um factor, executa-se a rotação das matrizes das componentes, sendo que neste caso para cada conjunto de variáveis foram encontradas as soluções apresentadas no quadro seguinte (Quadro 24). Aqui se inclui também a interpretação das componentes, com base nos pesos das variáveis em cada uma delas: (i) Contexto macro económico/social; (ii) Gastos do SNS; (iii) Recursos Financeiros do Sistema; (iv) Recursos Humanos; (v) Estruturas de resposta especializadas; (vi) Produção; (vii) Desempenho; (viii) Produtividade e, (ix) Resultados. Todas as dimensões estão definidas em sentido positivo, à excepção dos resultados. Por exemplo o contexto macro económico/social aumenta quando o PIB aumenta e a taxa de analfabetismo diminui, o que significa desenvolvimento, ou a produção que também aumenta, pois quer os doentes saídos, o número de doentes consultados ou atendidos na urgência aumentam. 210 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados No entanto, os resultados têm uma interpretação inversa, uma vez que os valores da dimensão aumentam quando aumenta, por exemplo, a taxa de novos casos de tuberculose, os anos de vida potencialmente perdidos nos homens e nas mulheres, a taxa de suicídio (100 000 habitantes), as mortalidades perinatal e infantil ou a percentagem de partos não assistidos e isso deve portanto ser entendido como “falta” de resultados ou perdas em saúde. Quadro 24 – Variáveis por componentes principais e sua interpretação Variáveis por componentes principais Contexto macro económico/social População residente PIB preços constantes PIB per capita Taxa de analfabetismo Gastos do SNS PIB/SNS Verbas SNS Investimento (PIDDAC e outros) Financiamento ARS Financiamento Hospitais Despesa SNS Custos pessoal Gastos convencionados Défice financeiro Recursos Financeiros do Sistema Despesa pública em saúde (% PIB) Despesa privada em saúde (% PIB) Despesa total em saúde (per capita) Despesa pública em saúde na despesa total Despesa em medicamentos Recursos Humanos Médicos inscritos Médicos (100 000 habitantes) Enfermeiros/estab. saúde com internamento Enfermeiro/100 000 habitante Técnicos superiores de saúde c/ internamento Enfermeiros estab. saúde sem internamento Auxiliares AM estab. c/ internamento Auxiliares AM estab. saúde sem internamento Estruturas de resposta especializada Total camas/1 000 habitantes Total camas Total de estabelecimentos com internamento Saturação 0,825 0,984 0,966 -0,996 0,866 0,991 0,921 0,993 0,991 0,995 0,989 0,998 0,886 0,985 0,605 0,963 0,612 0,952 0,975 0,979 0,968 0,968 0,902 0,760 0,922 0,850 0,945 0,969 0,978 Variáveis por componentes principais Produção Doentes saídos Consultas cuidados primários Consultas hospitais Urgências Desempenho % Financiamento ARS % Financiamento hospitais % pessoal/despesa total % medicamentos/despesa total % convencionados/despesa total Produtividade Demora média Consulta/médico (hospitais) Consulta/médico (cuidados primários) Doente saído por cama Resultados Taxa novos casos diagnosticados (tuberculose) % população com 65 e mais anos Esperança de vida homens Esperança de vida mulheres Anos de vida potencialmente perdidos homens Anos de vida potencialmente perdidos mulheres Taxa de suicídio 100 000 habitantes Taxa de natalidade Taxa de mortalidade por cancro Taxa de mortalidade por acidentes de viação Mortalidade perinatal Mortalidade infantil % de partos não assistidos Saturação 0,931 0,895 0,960 0,932 0,963 -0,961 0,794 0,832 0,927 -0,937 0,627 0,956 0,929 0,992 -0,989 -0,993 -0,994 0,996 0,993 0,785 0,935 -0,952 0,854 0,994 0,982 0,983 2.3.2.1 Correlações entre as componentes Vamos agora analisar as correlações entre as várias dimensões encontradas, com o objectivo final de procurar compreender os resultados em saúde, dado que o que se pretendia era estimar um modelo de regressão que permitisse explicar aqueles resultados a partir das variáveis explicativas (contexto macro económico/social; gastos do SNS; recursos financeiros do sistema; recursos humanos; estruturas de resposta especializadas; desempenho; produtividade e resultados). O modelo teórico subjacente é o seguinte: Tese 211 Capítulo VII: Apresentação dos resultados - O contexto macro económico/social explicaria os gastos do SNS, os recursos humanos, os recursos financeiros do sistema e as estruturas de resposta especializada (1º sub-modelo); – Por sua vez, os gastos do SNS, os recursos financeiros do sistema, os recursos humanos e as estruturas de resposta especializada explicariam as alterações ocorridas na produção (2º sub-modelo); – Os recursos humanos explicariam as alterações no desempenho (3º sub-modelo); – A produtividade (variável mediadora entre a produção e os resultados) seria explicada pelos gastos do SNS, pelos recursos humanos, pelos recursos financeiros do sistema, pelo desempenho e pela produção (4º sub-modelo); – E, por último, os resultados seriam explicados por variações no contexto macro económico/social, nas estruturas de resposta especializada, na produtividade, na produção e no desempenho (5º sub-modelo). Em resumo, seria o seguinte o modelo teórico (Figura 17) subjacente a esta análise: Gastos do SNS Produtividade Recursos Financeiros do Sistema Contexto macro económico e social Produção Desempenho do Sistema Resultados Recursos Humanos Estruturas de resposta especializada Figura 17 – Modelo teórico No entanto, o reduzido número de observações e a existência de elevadas correlações entre as diferentes variáveis explicativas, torna problemática a estimação dos parâmetros deste modelo de regressão linear no seu conjunto, pelo que se optou por começar por analisar as correlações entre as variáveis: correlações lineares de Pearson e correlações parciais que identificam o grau de associação linear entre duas variáveis, controlando o efeito de uma ou mais das restantes variáveis. Assim, através do coeficiente de correlação de Pearson podemos concluir que, por exemplo no 1º sub-modelo (Figura 18), o contexto macro económico/social está muito correlacionado linearmente com todas as variáveis, em sentido positivo: recursos humanos (0,991); recursos financeiros do sistema (0,982) e gastos do SNS (0,894), à excepção das estruturas de resposta especializada, em que o sentido da relação entre as variáveis é negativo mas igualmente muito elevado (-0,990). 212 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados Gastos do SNS 0,894 Recursos Financeiros do Sistema 0,982 Contexto macro económico/social 0,991 Recursos Humanos - 0,990 Estruturas de resposta especializadas Figura 18 – Correlações do 1º sub-modelo E, ainda no que se refere ao 3º sub-modelo (Figura 19), o desempenho está muito correlacionado linearmente com a variável recursos humanos, em sentido negativo (- 0,948). Recursos Humanos Desempenho - 0,948 Figura 19 – Correlações do 3º sub-modelo Para se proceder a uma melhor e mais completa análise dos resultados apurados, apresentam-se (Quadro 25) os sub-modelos e respectivos coeficientes de correlação. Quadro 25 – Sub-modelos e coeficientes de correlação Regressão 1º sub-modelo Gastos do SNS Recursos Financeiros Recursos Humanos Estruturas 2º sub-modelo Gastos do SNS Recursos Financeiros Recursos Humanos Estruturas 3º sub-modelo Recursos Humanos 4º sub-modelo Gastos do SNS Recursos Humanos Recursos Financeiros Desempenho Produção 5º sub-modelo Contexto Estruturas Produtividade Produção Desempenho Coeficientes de Correlação Pearson Contexto Produção Desempenho Produtividade Resultados 0,894 0,982 0,991 -0,990 0,862 0,956 0,942 -0,938 -0,948 0,948 0,895 0,918 -0,888 0,909 0,990 0,999 -0,921 0,942 -0,947 Tese 213 Capítulo VII: Apresentação dos resultados Dado que existe uma grande correlação entre as variáveis e ainda porque algumas delas estão igualmente correlacionadas entre si, fez-se a análise parcial de cada um dos sub-modelos, procurando encontrar as variáveis que melhor explicavam as variáveis dependentes em análise. Para o efeito recorreu-se à correlação parcial. Assim, relativamente à produção (2º sub-modelo), observam-se correlações muito elevadas e positivas com os recursos financeiros (0,956); os recursos humanos (0,942) e os gastos do SNS (0,862) e negativas com as estruturas especializadas (-0,938). No entanto, quando se analisam as correlações parciais (Figura 20) que medem o grau de associação linear entre duas variáveis controlando o efeito das restantes variáveis, apenas os recursos financeiros do sistema mantêm uma correlação significativa e positiva com a produção (0,565). Recursos Humanos - 0,143 Recursos Financeiros do Sistema 0,565 Gastos do SNS Estruturas de reposta especializadas Produção 0,261 0,248 Figura 20 – Correlações parciais do 2º sub-modelo No que se refere à produtividade (4º sub-modelo), verificam-se também correlações bastante elevadas e positivas (Quadro 25) com: os gastos do SNS (0,948); os recursos financeiros (0,918); a produção (0,909) e os recursos humanos (0,895) e, muito negativa com o desempenho (-0,888). No entanto, quando se determinam as correlações parciais (Figura 21), verifica-se que as contribuições significativas e positivas advêm dos gastos (0,798) e da produção (0,612) e negativas com os recursos financeiros do sistema (-0,505). 214 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados Gastos do SNS 0,798 Produção 0,612 - 0,505 Produtividade Recursos Financeiros do Sistema 0,248 Recursos Humanos - 0,098 Desempenho do sistema Figura 21 – Correlações parciais do 4º sub-modelo Por último e no que respeita aos resultados (5º sub-modelo), também se observam correlações muito elevadas e positivas (Quadro 25) com: as estruturas de resposta especializadas (0,999); com o contexto macro económico/social (0,990) e com a produção (0,942) e também muito negativas com o desempenho (- 0,947) e com a produtividade (- 0,921), embora quando se determinam as correlações parciais (Figura 22) se verifique existir só uma contribuição significativa e negativa das estruturas de resposta especializadas (- 0,953). Produtividade 0,172 Estruturas de resposta especializadas Produção Contexto macro económico/social - 0,953 0,106 Resultados 0,086 - 0,079 Desempenho do sistema Figura 22 – Correlações parciais do 5º sub-modelo A redução conseguida é significativa e os resultados a que chegámos permitem-nos um trabalho interessante, que conjugado com os restantes métodos estatísticos utilizados e com outras metodologias já enunciadas, nos permitem retirar algumas ilações e conclusões, que devem ser sempre analisadas cuidadosamente, já que as análises macro, como é o caso, raramente podem ser conclusivas, mas podem ajudar a melhorar a compreensão dos fenómenos. Com base na transformação das variáveis e na sua associação a uma única dimensão, procurámos analisar a evolução das componentes e investigar sobre o comportamento Tese 215 Capítulo VII: Apresentação dos resultados das soluções finais encontradas, conforme se pode analisar no gráfico seguinte (Gráfico X), procurando-se ainda uma explicação para os resultados aí encontrados. Gráfico X - Análise evolutiva das componentes principais (1970-2000) Gastos SNS 2,500 Produção 2,000 Produtividade 1,500 Desempenho Sistema R. Fin. Sistema R Humanos 1,000 0,500 0,000 -0,500 Estrutura resposta esp. Contexto Sócio Econ. Resultados -1,000 -1,500 -2,000 -2,500 1970 1972 1974 1976 1978 19801982198419861988199019921994 199619982000 Anos Pode verificar-se que a crescente evolução dos resultados, significativamente pronunciada a partir da segunda parte da década de setenta, parece acompanhar a curva do contexto sócio-económico, mas naturalmente também a correspondente aos recursos financeiros globalmente afectos ao sistema de saúde. Já a curva dos gastos do SNS, significativamente abaixo da dos resultados na década de oitenta e na primeira parte da década de noventa, ultrapassando-a de forma acentuada na última parte da década de noventa, pode querer significar a mudança de política então ocorrida na realidade portuguesa (passando dum governo liberal para um de pendor mais socialista). Igualmente interessante poderá ser a leitura sobre o comportamento das estruturas especializadas (camas, hospitais, etc.) que parece indiciar que os resultados em saúde continuaram a melhorar independentemente da acentuada redução dessas estruturas. Uma última questão prende-se com o comportamento da componente desempenho, que medida pelas variáveis seleccionadas nos diz que esse número índice tem vindo a decrescer significativamente, tendo atingido o seu pico inferior em 1994, sendo que posteriormente teve alguma retoma, mas em 2000 volta a apresentar números bastante baixos. 2.3.2.2 Os modelos O modelo de regressão linear múltipla permite prever o comportamento de uma variável dependente a partir de uma ou mais variáveis independentes, informando sobre a margem de erro dessas previsões. Existem vários métodos que permitem seleccionar a forma como as variáveis independentes entram na análise. 216 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados Tendo em conta os objectivos em estudo considerou-se pertinente utilizar o método stepwise. Este procedimento de selecção de variáveis introduz no modelo uma variável de acordo com o poder explicativo da variável dependente (Quadro 26). Quadro 26 – Modelo de regressão linear (β) (t - student) 0,894 0,982 0,991 -0,990 n. s. 0,000 0,000 0,000 0,000 p. > 0,05 Recursos Financeiros 0,956 0,000 Recursos Humanos n. s. p. > 0,05 Estruturas Recursos Humanos Gastos do SNS n. s. -0,948 0,876 p. > 0,05 0,000 0,000 n. s. p > 0,05 -0,553 0,026 Recursos Humanos Recursos Financeiros Produção Desempenho Produtividade Desempenho Beta p –value Variável independente Variável dependente (explicativa) (explicada) Contexto Gastos do SNS Contexto Recursos Financeiros Contexto Recursos Humanos Contexto Estruturas Gastos do SNS n. s. p > 0,05 0,682 n. s. 0,000 p > 0,05 -0,999 0,000 n. s. p. > 0,05 Produção n. s. p. > 0,05 Desempenho n. s. p. > 0,05 Produção Contexto Estruturas Produtividade Resultados Coeficiente de determinação - R2 ajustado 0,792 0,963 0,991 0,979 0,911 0,895 0,936 0,999 n. s. – não significativo A cada passo, a variável independente que tem a menor probabilidade de inclusão fica fora da equação se aquela probabilidade é suficientemente pequena, ou seja, as variáveis incluídas na equação de regressão vão sendo removidas sequencialmente, sendo a variável com menor correlação parcial com a variável dependente a primeira a ser removida do modelo, e assim sucessivamente. Este procedimento termina quando já não existem variáveis no modelo que satisfaçam o critério de inclusão. O modelo de regressão linear permite equacionar uma percentagem de variação da variável dependente que é explicada pelas variáveis que se mostraram estatisticamente significativas enquanto factores explicativos. A restante variação é explicada por outros factores não contemplados no modelo. De referir ainda que, para além da percentagem de variação explicada, que podemos analisar através do coeficiente de determinação, que é medido pelo quociente entre a variação explicada e a total (R2), é necessário averiguar acerca do sentido da associação entre as variáveis. Assim, procede-se também a uma análise dos valores de ß (Beta). Posteriormente, procuraram sintetizar-se os modelos finais encontrados para as variáveis em análise, os quais se discriminam seguidamente: Tese 217 Capítulo VII: Apresentação dos resultados • O contexto macro económico/social explica de forma elevada e positiva (Figura 23) as variações dos gastos do SNS, dos recursos financeiros da saúde, dos recursos humanos e de forma negativa das estruturas de resposta especializadas. + + Contexto macro económico/social + - Gastos do SNS Recursos Financeiros Recursos Humanos Estruturas de resposta especializada Figura 23 – Modelo I - Contexto macro económico/social • A produção é explicada de forma significativa e positiva apenas pelos recursos financeiros, sendo a produtividade explicada pela produção e pelos gastos do SNS (Figura 24) de forma positiva e pelos recursos financeiros de forma negativa. Produção + + Gastos do SNS Recursos Financeiros Recursos Financeiros Produtividade + - Figura 24- Modelo II – Produção e Produtividade • O desempenho (Figura 25) é explicado de forma negativa apenas pelos recursos humanos. Recursos Humanos - Desempenho Figura 25 - Modelo III – Desempenho • Os resultados (Figura 26) são apenas explicados de forma negativa pelas estruturas de resposta especializadas. Estruturas de resposta especializadas - Figura 26 - Modelo IV – Resultados 218 Tese Resultados Capítulo VII: Apresentação dos resultados Poderemos assim concluir que a estimação dos modelos vem confirmar os resultados anteriormente obtidos com as correlações parciais (Gráfico XI). Gráfico XI - Variáveis explicativas dos resultados (1970-2000) Produção 2,500 2,000 Produtividade 1,500 1,000 Desempenho Sistema 0,500 Estrutura resposta esp. 0,000 -0,500 Contexto Sócio Econ. -1,000 -1,500 Resultados -2,000 -2,500 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 1994 1996 1998 2000 Anos 2.3.3 Revisão e análise crítica dos normativos referentes aos últimos trinta anos Apesar da legislação publicada no início da década de setenta constituir já uma tentativa de reforma do sistema de saúde (Anexo XV) e da assistência, é só a partir de 1974 que coexistiram condições sociais e políticas, integradas no processo de democratização do país, que levaram à criação, em 1979, do SNS (Figura 27). O SNS permitiu a cobertura da população portuguesa, mediante a criação de uma rede de infra-estruturas de serviços prestadores desses cuidados de saúde, o desenvolvimento de carreiras dos profissionais de saúde, a criação da carreira médica de clínica geral e medicina familiar, entre outras. As limitações associadas ao contexto económico, a influência da conjuntura económica internacional na década de oitenta, a influência das reformas dos sistemas de saúde na Europa, vêm acentuar a importância da separação entre os sectores público e privado, a necessidade de melhorar a remuneração e as condições de trabalho dos profissionais de saúde no sector público. Tendo por base esse contexto, o poder político procura introduzir a ideia de seguro alternativo e a possibilidade de aumentar o financiamento privado no sistema de saúde. Essa ideia de privatização, aliada à de liberalização do “mercado da saúde” e de competição, leva à introdução de mecanismos legislativos facilitadores da gestão privada de unidades de saúde e à aprovação da experiência de gestão privada do Hospital Fernando da Fonseca. Uma outra forma, igualmente facilitadora da entrada de prestadores privados complementarmente às estruturas do SNS, foi iniciada com a tentativa de resolução do problema das listas de espera através do PERLE. Tese 219 1800 Hospital de São Nicolau com Albergaria (1164) 1ª Misericórdia (1498) Hospital Real de Todos os Santos (1504) Hospital Termal das Caldas da Rainha (1512) Âncora Medicinal para Conservar a Vida com Saúde (1721) Vacina contra Varíola (1796) 1845 Bacilo Koch (1890) 1900 1900 Primeiros cursos de enfermagem (1881) 1990 1950 Angiografia Cerebral por Egas Moniz (1927) Leucotomia por Egas Moniz PRÉMIO NOBEL (1948) Democracia (1974) C.E.E. (1986) 1990 Carreira Médica de Clínica Geral (1982) EURO (2002) 2000 Tese 2003 Plano Nacional de Saúde OBSERVATÓRIO PORTUGUÊS DOS SISTEMAS DE SÚDE Novos Estatutos Hospitalares (1998/2002) Novas Leis de Cuidados de Saúde Primários (1999/2002) 2000 Genoma Humano (2001) AVALIAÇÂO DO DESEMPENHO Reformas de G.Ferreira Estratégia da Saúde (1998) e A. Sampaio (1971) Criação dos Centros de Saúde (1972/73) Serviço Méd. na Periferia (1976) Serviço Nacional de Saúde (1979) GOVERNANÇA DA SAÚDE OBSERVATÓRIO EUROPEU Figura 27 - A evolução do Sistema de Saúde Português no contexto da Europa e do resto do Mundo 1845 Criação das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto, dos cursos de parteiras e fundação das Escolas de Farmácia (1836) Pílula anovulatória (1960) Promoção da Saúde (1986) Metas em Saúde (1984) Cuidados de Saúde Primários (1978) POLÍTICAS DE SAÚDE História da Estatuto Hospitalar Regulamento Geral dos Medicina Portuguesa (1947) Hospitais (1968) 1950 Penicililina (1945) BISMARCK ( 1883) BEVRIDGE (1943) História da Medicina em Portugal. Doutrinas e Criação da Junta de Instituições Saúde Pública (1813) (1899) Criação da Instituição Vacínica (1812) 1800 Fonte: Adaptado de Sakellarides (2003). Desenvolv. da Saúde (Portugal) Desenvolv. da Saúde (Europa e resto do Mundo) Contrato Social (1762) PROTECÇÃO SOCIAL 220 Capítulo VII: Apresentação dos resultados Capítulo VII: Apresentação dos resultados No início da década de noventa acentuou-se a ideia da necessidade de introdução de responsabilização, flexibilização e maior capacidade de inovação à administração pública, procurando contrariar a linha de desenvolvimento do período liberal dos anos oitenta, mas esta nunca foi verdadeiramente conseguida. Por sua vez, torna-se evidente a incapacidade do SNS em dar resposta às necessidades das populações, nomeadamente no acesso aos cuidados de saúde (consultas e cirurgias), torna-se evidente a desadequação do modelo de administração pública tradicional e acentua-se a promiscuidade entre interesses públicos e privados. Nesta segunda metade da década de noventa é projectada uma reforma para o sector da saúde, assente na criação de novos mecanismos de orientação estratégica, de responsabilização, de inovação, descentralização e flexibilização das organizações, entre as quais se enunciam: a Estratégia da Saúde, as Agências de Contratualização, o Regime Remuneratório Experimental da Clínica Geral (i.e., remuneração associada ao desempenho), gestão de doenças crónicas, a ideia de hospital-empresa – Hospital S. Sebastião de Santa Maria da Feira, os Centros de Responsabilidade Integrados, os Centros de Saúde de 3.ª Geração, os Sistemas Locais de Saúde – Unidade Local de Saúde de Matosinhos e a resposta às listas de espera através do Programa de Promoção do Acesso (PPA). A não implementação no terreno de muitas destas ideias estratégicas levaram ao descrédito destas políticas e abriram caminho ao eventual desmantelamento do SNS e à aposta na privatização do sector. Por sua vez, o acentuar do problema do financiamento e do défice da saúde (vincado pela conjuntura de crise económica internacional, europeia e nacional) e do problema das listas de espera atomiza o discurso e a prática política, o que só agora com o início da nova legislatura parece começar a ser contrariado, emergindo essencialmente um discurso prático de implementação de ideias reformistas do SNS, alargando-o a uma ideia ainda imprecisa e sem contornos definidos de Sistema Nacional de Saúde, perspectivando um papel acrescido de importância aos Sectores Privado e Social da Saúde. Como forma de assegurar a sobrevivência do sistema e construir as bases para uma alteração profunda e criativa do sistema, poder-se-á entender que não será fácil uma abordagem grandemente inovadora, sendo necessário seguir o processo adaptativo, mas dever-se-á manter a defesa intransigente dos direitos e garantias dos cidadãos no que se refere à protecção da saúde, assumindo-se a necessidade de alterar o sistema de forma a tornar efectivo este desiderato, não sendo de recusar qualquer opção de mudança, desde que a mesma concorra para o objectivo fundamental de garantia do melhor nível possível de saúde dos portugueses. Os alicerces dessa mudança, de acordo com o trabalho de investigação deverão ser: 1. um sistema de informação eficaz, que permita o diagnóstico dos problemas, apoie na escolha das soluções e mantenha um processo de controlo permanente das actividades desenvolvidas; Tese 221 Capítulo VII: Apresentação dos resultados 2. um processo de distribuição de recursos financeiros prospectivo, baseado em critérios objectivos de base capitacional, a implementar através de mecanismos de contratualização e que crie incentivos para promover a equidade, a acessibilidade e a qualidade; 3. a busca de novas formas de organização do processo produtivo, mais efectivas e eficientes, quer através da reformulação dos objectivos e produtos dos serviços de saúde numa perspectiva integradora dos problemas de saúde, quer através do redesenho do mercado a que se dirigem, reforçando neste a liberdade de escolha e a auto-selecção, desde que não prejudique os princípios fundamentais do sistema; 4. a criação de uma cultura de responsabilização, seja como alavanca do reforço do poder dos órgãos formais, seja como atributo indispensável à regulação do exercício do poder informal das profissões de saúde nas organizações do SNS, que se caracterizam por uma estrutura burocrático-profissional; 5. um sistema de comunicação entre todos os actores, facilitando o consenso e a eliminação de conflitos previsíveis, através da procura de objectivos comuns e da identificação de cada grupo com o sistema; 6. um processo de gestão de conflitos, através da negociação permanente e criação de mecanismos reguladores. Nesta matéria será necessário dotar o cidadão, parte mais fraca do sistema pela assimetria do domínio da informação e características intrínsecas das organizações de saúde, de um reforço da sua posição, através de modelos de intervenção que excedam a mera representatividade, centrando-se na participação activa nas grandes decisões, conduzindo-os a uma posição de poder reforçado que lhes permita intervir no processo negocial em equivalência com os outros actores; 7. uma clarificação da missão, finalidades e objectivos do sistema e de cada actor, seja qual for o seu papel, promovendo sinergias positivas no longo prazo em detrimento de iniciativas cuja vantagem se extingue no curto prazo e que poderão vir a comprometer os princípios básicos do SNS; 8. o desenvolvimento de uma política de formação e informação que mude atitudes, comportamentos e culturas, levando à emergência de novas formas de relacionamento entre os diferentes actores, assumindo-se estes como autores do novo sistema de saúde, oriundo da discussão pela sociedade civil, cabendo ao Estado a garantia dos princípios absolutos como a ética, a solidariedade e a dignidade. Os instrumentos que deverão ser utilizados são muitos daqueles que já estão em desenvolvimento e outros que deverão ser desenvolvidos e aprofundados, nomeadamente: (i) as experiências de contratualização; (ii) os programas de melhoria do acesso; (iii) a RIS - rede de informação; (iv) as alterações no regime jurídico de organizações do SNS; (v) a promoção da centralidade do cidadão no sistema através de uma participação activa; (vi) os modelos de gestão intermédia, mais responsabilizantes; (vii) novos processos de articulação entre as entidades, centradas numa área geo-populacional e abrangendo uma vasta área de intervenção social, que não se extingue no sector da saúde. 222 Tese Capítulo VII: Apresentação dos resultados A mudança sustentada num sector desta complexidade leva tempo, nunca pode acontecer numa lógica política de curto prazo e faz-se de avanços e recuos, embora se deva ter presente que a mesma é submetida frequentemente a votação, onde os resultados imediatos são relevantes e as medidas de fundo passam despercebidas. Mas a mesma só poderá ser realizada pela sociedade civil, apoiada por uma administração profissional, num papel essencialmente catalisador. 3. RESUMO A história recente da contratualização no sistema de saúde português, apesar de ainda não existir informação quanto ao real impacte no sistema de financiamento e tendo em conta a capacidade de acompanhamento, a experiência e amadurecimento do processo por parte das agências e dos gestores das organizações, apresenta resultados bastante encorajadores no que se refere às mudanças de atitude, pois parece incentivar as boas práticas de gestão aos diversos níveis. A consolidação do processo é um projecto de médio/longo prazo, que exige continuidade, mas que tem grande imprevisibilidade, dada a sua grande dependência da vontade política. Em termos genéricos a contratualização tem sido até ao momento presente a gestão de alguns objectivos, descentralizando algumas decisões e relacionando custos com actividades. No entanto, a hierarquia verticalizada do sistema parece dificultar a inovação e a aplicabilidade do desenvolvimento do processo. Porquê então insistir na contratualização? A expansão das redes públicas de prestação de serviços e o desenvolvimento de administrações próprias não colocou a necessidade de contratualização interna até bastante recentemente. Nas décadas de oitenta e noventa, ao mesmo tempo que se desenvolviam debates sobre a “redução do papel directo do Estado”, a organização empresarial sugeria que contratos poderiam facilitar a obtenção de eficiências, pelo simples mecanismo de informar explicitamente os actores do valor dos recursos envolvidos na produção. Um contrato é basicamente um compromisso formal entre duas partes, em que uma parte se compromete a prestar um serviço, a outra paga pelo mesmo e desde que as duas partes sejam razoavelmente independentes tentam distribuir os riscos inerentes ao contrato, sendo que as situações reais frequentemente impõem obstáculos a uma distribuição equilibrada de riscos: • O fornecedor dos serviços pode ter uma posição oligopolista, além de ser privilegiado com a primazia da informação sobre a função de produção; • O comprador, em contrapartida, pode ser a fonte de financiamento maioritária para os fornecedores da área geográfica. Não admira, por exemplo, que no Reino Unido se tenha passado de contratos anuais a trianuais, de modo a diminuir os riscos de instalação e actualização de equipamento dos produtores de serviços. Tese 223 Capítulo VII: Apresentação dos resultados Por outro lado, o contrato necessita ter força de obrigação legal, para a eventualidade de alguma das partes se sentir lesada com o não cumprimento do contratado, embora, apesar desta exigência, na prática dos contratos privados é frequente que as partes se preocupem mais em investir o tempo necessário ao estabelecimento de relações de confiança mútua duradoura que em detalhar os mecanismos de acção legal em caso de litígio. No caso de contratos entre administração e prestadores públicos pode resultar que a comunhão de objectivos (serviço público) se sobreponha às diferentes funções de cada agente. No caso do Reino Unido (RU) as instruções iniciais do Ministério da Saúde indicavam claramente que preferiam que os agentes resolvessem os diferendos sem recurso aos tribunais. No caso português da Saúde, as Agências pretenderam materializar esta separação entre comprador, financiador e prestador. 224 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados CAPÍTULO VIII: VALIDADE DO MODELO CONCEPTUAL PROPOSTO À LUZ DA DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 1. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS OBTIDOS Neste capítulo procede-se à leitura interpretativa dos resultados centrados nas várias perguntas anteriormente formuladas, procurando-se igualmente enunciar as diferentes respostas encontradas e, através delas, validar ou não o modelo conceptual proposto. Assim, indicamos a pergunta e de seguida enveredamos pela sua discussão, enquadrando-a nas três componentes do modelo (contexto, processo e mudança). 1.1 A COMPONENTE “CONTEXTO” A primeira pergunta enquadradora do contexto em que se insere o sector saúde é a seguinte: Porque será que comparativamente com outros países da Europa, nomeadamente Espanha e Reino Unido, Portugal desenvolveu tão tardiamente o processo de contratualização? Podemos iniciar a discussão com base nos vários aspectos referenciados, mas levando em linha de conta quer os princípios básicos que sustentam o sistema de saúde quer os principais actores chave que se movimentam no sistema e, naturalmente, a matriz estrutural que lhe está subjacente, a qual assenta na nossa história, cultura e nível de desenvolvimento económico e social. Como já foi referido anteriormente, os anos oitenta e noventa foram férteis em experiências de reestruturação nos sectores público e privado da economia de diferentes países, nomeadamente na Europa, tendo sido implementadas profundas mudanças ao nível dos sistemas de saúde, sobretudo na estrutura do financiamento e da prestação de cuidados. Enquanto parte integrante do sistema social, os sistemas de saúde são o resultado e, simultaneamente, condicionantes da sua envolvente histórica, social, cultural, técnica e política. Torna-se por isso necessário ir para além do subsistema de saúde, prevendo a evolução da respectiva envolvente externa, caso se pretenda actuar eficazmente na sua transformação. Convém, por essa razão, ir um pouco mais atrás e ter em atenção que o neoliberalismo nasceu após a Segunda Guerra Mundial na Europa Ocidental e na América do Norte, traduzindo uma reacção política contra o intervencionismo público e o Estado de Bem-Estar Social (Welfare State). Friedrich August von Hayek publicou, em 1944, "The Road to Serfdom" – “O caminho da servidão”, a obra que constituiu aquilo que se pode designar como a carta de fundação do neoliberalismo e que mais não era do que um ataque a toda a limitação pelo Estado ao livre funcionamento dos mecanismos de mercado. Tese 225 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados Em 1947, quando os fundamentos do estado social se estabelecem efectivamente na Europa do pós-guerra, Von Hayek, entre outros, constituíram uma sociedade consagrada à divulgação das teses neoliberais, visando combater o Keynesianismo e as medidas de solidariedade social que prevaleciam após a Segunda Guerra, e preparar os fundamentos teóricos futuros de um outro tipo de capitalismo. Durante este período o crescimento do capitalismo é particularmente rápido e permanente ao longo das décadas de cinquenta e sessenta. Mas tudo se altera após a eclosão da grande crise do modelo económico do pós-guerra, em 1974. O conjunto dos países capitalistas desenvolvidos entra numa profunda recessão. Pela primeira vez combinam-se uma taxa de crescimento baixa e uma inflação elevada, favorecidas por esta situação e as ideias neoliberais começam a ganhar terreno. No Reino Unido, o Serviço Nacional de Saúde (NHS), fundado em 1948, é baseado no princípio da universalidade, garante cuidados de saúde gratuitos a todos os cidadãos e leva em linha de conta as diferenças locais no que diz respeito aos cuidados de saúde. O financiamento é baseado nos impostos e redistribuído pelo governo a hospitais e médicos. Há uma agência de planeamento governamental central e, a nível local, há cerca de cem autoridades de saúde que são directamente responsáveis por “adquirir” serviços de saúde dentro da sua área de actuação, quer a prestadores públicos, quer privados e com base nas necessidades da população. A reforma encetada neste país em 1989, por M. Thatcher, foi inspirada no modelo americano de PFI - Private Finance Initiative e assentou em designações como competição gerida e mercado interno, que representam o princípio de separação das funções de prestação e financiamento e na ideia básica “o dinheiro que segue o doente”. Aliás, quem elaborou os aspectos fundamentais desta reforma foi o norte-americano Enthoven, que se encontrava muito ligado aos Health Maintenance Organisation (HMO) do seu país. Ao nível dos prestadores foram criados os trusts (hospitais, clínicas e serviços locais) e desenvolvido o sector privado, cujos serviços são pagos pelo NHS com base na contratualização. Os contratos são ponderados de acordo com a qualidade dos cuidados prestados e do custo-efectividade global, o que encoraja as instituições na busca da eficiência e desencoraja o racionamento. Os médicos também se podiam reunir em grupos, desde que o número ponderado de utentes fosse suficiente (até 5 000). Estes agrupamentos de médicos detinham um orçamento negociado com a autoridade local de saúde, prestavam os cuidados de saúde à população local e agiam como prestadores independentes de trusts comunitários. Os clínicos gerais, dentistas e farmacêuticos são prestadores independentes dentro do NHS e não são, genericamente, considerados assalariados do mesmo. Em todos os casos são propostos contratos anuais com os prestadores, baseados no número de utentes a serem atendidos por especialistas, a quantia a receber pelo prestador e o nível desejado de serviço. Os utentes têm a opção de adquirir um seguro de saúde privado adicional. Com as alterações introduzidas pelo novo plano para o NHS, apresentado em 2000, foi perspectivada a actualização dos contratos com os clínicos gerais e internistas, sendo 226 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados que os pagamentos adicionais (que aumentaram) tiveram de corresponder a um aumento significativo de produtividade. Os consultores no início de carreira não são autorizados, em princípio durante sete anos, a trabalhar simultaneamente para o sector privado. Foram estabelecidos acordos com os prestadores privados de forma a permitir ao NHS uma utilização mais efectiva das instalações e equipamentos dos hospitais privados, sempre que isso seja rentável e melhor para os doentes. Actualmente o Reino Unido está apostado em alterar o estatuto dos trusts, empenhando-se na criação de fundações (baseados na experiência desenvolvida por Espanha) que irão gerir os hospitais públicos, dado que os utentes não vêem com bons olhos a privatização e por ser entendido que esta é a forma mais adequada para a transferência de responsabilidade da gestão directa do NHS para entidades externas. O plano introduzido em 2000 veio reforçar o papel da contratualização, nomeadamente ao nível dos cuidados primários, os quais foram melhorados em áreas carenciadas, tendo sido introduzidos programas de rastreio para mulheres e crianças e criados serviços visando a promoção da saúde e a prevenção da doença. Foi igualmente reforçada a vertente da avaliação e acompanhamento, procurando responder mais e melhor aos cidadãos. Em Espanha, o outro exemplo que utilizámos, o Sistema de Saúde Espanhol não está formalmente separado da Segurança Social. Actualmente o SNS cobre 99% da população e estende-se por todo o território nacional, independentemente do lugar de residência dos cidadãos. As prestações de saúde estão ordenadas mediante um Real Decreto Legislativo de 1995. Até 1999 o financiamento do sistema de saúde fazia-se através das contribuições sociais (empresas e trabalhadores) e de contribuições do Estado. Actualmente, o financiamento é público e tem carácter de obrigatoriedade. Dado que o SNS é formado pelos sistemas de saúde regionais, o financiamento das regiões é atribuído numa base capitacional. No entanto, no sistema de saúde espanhol, à semelhança do que se passa em outros países, os problemas de gestão burocrática nos serviços tradicionais, a procura da população exigindo um aumento da qualidade e a tentativa de realizar uma melhor utilização dos recursos financeiros do Sistema, levaram o Parlamento Espanhol a aprovar em 1996 um conjunto de modificações legislativas, entre as quais se destaca a extensão de novas formas de gestão nos serviços de saúde tais como: empresas públicas, consórcios de saúde, fundações de saúde, cooperativas de profissionais e consórcios administrativos. E para melhorar a gestão e organização do sistema propuseram-se três objectivos: obter melhores resultados em saúde (efectividade), conseguir um custo razoável (eficiência) e melhorar a qualidade do atendimento ao utente. A estratégia de mudança na gestão dos serviços públicos de saúde em Espanha, que está orientada para a separação funcional do financiamento e da compra de serviços, através da rede pública de serviços de saúde, desenvolveu-se com maior ou menor ênfase em dois mecanismos de reforma paralelos – a introdução do contrato programa em todas as organizações públicas de cuidados de saúde, quer hospitais quer unidades de cuidados de saúde primários e a criação de empresas públicas de cuidados de saúde (baseadas no direito privado) como experiências piloto. Tese 227 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados Embora aquelas novas formas de gestão já existissem em algumas regiões espanholas, como é o caso da Catalunha, foram desenvolvidas a partir de 1997, sobretudo nos novos hospitais. Mesmo que a avaliação não seja simples, pelo facto de existir certa opacidade no fornecimento de dados sobre a actividade desenvolvida e os resultados obtidos, na verdade estão a ter uma série de repercussões tanto no sistema de saúde como nos utentes e nos profissionais, conjugadamente com os grandes desafios que actualmente se colocam, nomeadamente a reforma do sistema de financiamento autonómico geral, do financiamento da saúde, o “Concierto Vasco” e a conclusão do processo de transferência de competências para as dez regiões, que ainda mantiveram até ao final de 2002 uma gestão directa do Instituto Nacional de la Salud (INSALUD). As prioridades organizacionais parecem responder às necessidades das reformas, já que está a ser concluída a transferência de competências na área da saúde para as restantes regiões e está a ser definido o papel, fundamentalmente de coordenação, do Ministério da Saúde e tomadas as decisões de reordenação administrativa dos recursos humanos e materiais da organização central do INSALUD. As reformas organizacionais ao nível da gestão, nomeadamente as formas jurídicas e a contratualização, representam esforços significativos para melhorar a eficiência clínica e de gestão, embora o pacto de financiamento estabelecido em 2002 e que permite que cada uma das Comunidades Autónomas possa definir orçamentos próprios, poderá criar desigualdades territoriais significativas. Mas o balanço geral da contratualização parece ser positivo, embora apenas pareça ter havido melhorias nítidas ao nível dos resultados financeiros, dado ser esta a componente mais visível do processo. Um outro benefício, de natureza política, foi que a contratualização tem servido de base para a estratégia de reforma da administração pública directa e para a melhoria do desempenho no sector público em geral neste país, sob a égide da responsabilização e autonomia de gestão. Em Portugal, a estruturação do modelo assistencial para a saúde – entendendo este como uma das componentes de uma política social – foi estabelecido tardiamente e claramente vinculado aos interesses dos grupos de interesse que se movem no sistema os actores sociais. Há quase meio século a conjuntura era a de um país pobre, desprovido das liberdades fundamentais, com as infra-estruturas sociais e de saúde muito incipientes, ou até mesmo inexistentes. Apesar das dificuldades houve um grupo de médicos 76 que apresentou propostas de mudança, levando à criação das carreiras médicas (carreira considerada como exemplar a nível internacional), projectando até aos nossos dias um serviço de excelência profissional e de dedicação ao serviço público. Naquela altura a opção do Governo foi a de não considerar aquele Relatório, tendo sido recuperado somente 15 anos mais tarde. 76 Foi um grupo de jovens médicos dos HCL que deu origem a um movimento inovador, principiado em 1958, no âmbito da Ordem dos Médicos, de que era Bastonário o Prof. Jorge Horta, do qual resultou o chamado Relatório das Carreiras Médicas, publicado em 1961, e de que foi relator o Prof. Miller Guerra. Este relatório, elaborado na sequência de prolongadas reuniões efectuadas por comissões de médicos das três secções regionais da Ordem dos Médicos (Norte, Centro e Sul), constou, essencialmente, de um exaustivo levantamento das deficientes condições das organizações nacionais de saúde e assistência, seguido de um planeamento de estruturação das carreiras desse grupo profissional, abrangendo toda a rede hospitalar nacional, baseada essencialmente no modelo dos HCL. 228 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados Um maior conhecimento da evolução do sistema de saúde português e dos principais factores, internos e externos, que mais têm influenciado o seu desenvolvimento, permite explicar melhor a sua configuração actual e também identificar e compreender mais facilmente as oportunidades e os obstáculos para a sua transformação. O 25 de Abril veio projectar as bases de um sistema de protecção social, encetando um longo caminho de aproximação à Europa, a qual integramos geográfica, histórica e culturalmente e permitiu ainda o alargamento das carreiras médicas a toda a rede hospitalar nacional e, mais tarde, aos centros de saúde. É indiscutível que esta dupla medida, acidental e não programada, representou um passo muito importante de toda a história do nosso sistema de saúde. A criação, em 1979 e o subsequente desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), resultaram da convergência efectiva daqueles que contribuíram para a democratização do país, dos que tiveram a visão e capacidade de liderar ou de contribuir para o processo político que o formalizou e daqueles que tiveram a competência técnica para o idealizar e desenhar. E, à semelhança do que já tinha acontecido com o grupo de médicos atrás referidos, foi possível uma vez mais superar a conjuntura e delinear um caminho. Hoje, para a opinião pública, o SNS, apesar de continuar a representar a excelência técnica na saúde em Portugal, já não corresponde, no seu desempenho actual, às expectativas e necessidades dos portugueses. Não se trata tanto de construir e expandir a capacidade dos serviços de saúde, mas fazê-los funcionar bem. Isso tem a ver com gastar bem os recursos disponíveis, melhorar as instalações e os equipamentos, introduzir novas tecnologias: biomédicas, de informação, de gestão. Trata-se, sobretudo, de criar uma cultura de serviço público de qualidade com os seus valores, com hierarquias técnicas competentes, rigorosas e inovadoras, com rigor, transparência, disponibilidade negocial e democraticidade na tomada de decisões de gestão. Pretende-se, além disso, de promover o envolvimento efectivo do cidadão/contribuinte/cliente/doente. Esta é uma agenda muito ambiciosa. Para a conseguir é preciso mobilizar amplamente o que de melhor a sociedade portuguesa tem para oferecer, em experiência política, em entendimento social e cultural, em visão sobre o futuro da nação e da sua envolvente europeia, em competências técnicas relevantes. Já existem contribuições legislativas e outras para esse efeito, mas para além disso existe um longo e difícil caminho a percorrer. É indispensável ter uma ideia sobre o futuro da nossa população e da sua saúde que enquadre as conjunturas e o conjunto de medidas para que elas passem a fazer algum sentido. Todas as questões já enunciadas parecem, pois, explicar as razões que estiveram subjacentes ao facto de Portugal ter desenvolvido tão tardiamente o processo de contratualização, comparativamente com outros países da Europa, nomeadamente Espanha e Reino Unido: • partiu tarde de mais para a organização do sistema; Tese 229 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados • fundou o seu SNS num momento em que todos os outros países já definiam ou redefiniam reformas de fundo; • a despesa pública real em saúde no nosso país era bastante inferior à média da União Europeia; • o nível de gastos era quase insignificante quando no resto da Europa se construíram os grandes sistemas de saúde públicos, além de que se universalizou o direito ao acesso, incorporando, desde 1979, cerca de 9,8 milhões de utilizadores sem o correspondente crescimento dos recursos; • raramente definiu uma estratégia e a conseguiu levar até ao fim; deixou-se prender nas malhas dos interesses corporativos, sem nunca ter desenvolvido estratégias de negociação adequadas. Contudo, é importante ressaltar que, durante os últimos trinta anos, Portugal sofreu sucessivamente, em períodos de tempo particularmente curtos, transformações de importância transcendente: a democratização em 1974 com a posterior integração de uma elevada população (cerca de um milhão) de retornados, a entrada na CEE em1986 e a integração na União Monetária Europeia em 2000, num ambiente de rápida transição de paradigma tecnológico. Durante este período, ocorreram enormes mudanças na população, na saúde e nos recursos que lhe foram atribuídos, conforme mostra o Quadro 27. Quadro 27 – A Saúde em Portugal entre 1970 e 2000 (Continente e Ilhas) Indicadores Mortalidade infantil (%0) Esperança de vida à nascença (homens) Esperança de vida à nascença (mulheres) N.º de internamentos N.º de médicos inscritos Partos hospitalares (%) População (n.º de residentes) Despesa total em Saúde (per capita, € PPP) 1970 2000 U 58,6 64,2 70,8 618.664 8.156 37.5 8.668.267 40,0 5,0 73,2 80,2 1.195.608 32.904 99,2 10.356.117 1.441,0 (914,7) % 9 (anos) 9,4 (anos) 93,3 % 303,4 % 164 % 19,5 % 3502,5 Fonte: INE Todos estes aspectos devem ser levados em linha de conta quanto se prefiguram expectativas quanto à evolução de sistemas sociais complexos, como é o da saúde e considerá-los quando se avança com processos de privatização. De nada têm servido os reiterados relatórios de peritos indicando a perversão de algumas experiências, feitas em numerosos países e no nosso e as advertências sobre as comparações entre a saúde pública e a privada, nomeadamente: 230 - Que a gestão submetida a critérios de mercado aumenta significativamente o dinheiro e tempo gasto nas actividades administrativas, que alguns autores apontam em cerca de oito vezes superior à gestão pública directa; - Que a eficiência que garante o negócio da saúde privada consegue-se eliminando doentes e processos que consomem mais recursos de saúde, Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados diminuindo drasticamente a quantidade e qualidade dos contratos de trabalho, afectando gravemente a qualidade do atendimento; - Que uma das causas fundamentais dos incumprimentos laborais é o desempenho de actividades na privada por parte de profissionais da área pública, de forma que para a optimização dos recursos, tanto materiais como humanos, necessitaríamos separar claramente um sistema do outro, evitando a progressiva dependência a todos os níveis da saúde pública pela privada. Em conclusão, os sistemas de saúde de qualquer país constituem um pilar básico do Estado de Bem-estar e do Sistema de Protecção Social. Actualmente os sistemas de saúde, nomeadamente os serviços de saúde, transformaram-se em novas áreas de negócio com um interesse económico crescente, continuando a emergir os interesses dos grupos que se movem no sistema, contribuindo para retardar ou acelerar os processos de reforma ou a introdução de mudanças no sistema. Alguns autores referem que o impacto de variáveis externas adversas, indecisões políticas e falta de medidas complementares, não têm permitido que a contratualização atinja os resultados possíveis e desejáveis. Apesar disso gestores e governantes nos diferentes países consideram a experiência um sucesso, basicamente devido à maior transparência adquirida pelas operações e pelos resultados, mas em Portugal, tal como em processos anteriores, não parece existir convergência de opiniões a este respeito e embora alguns considerem a contratualização como o caminho que é preciso percorrer, outros ainda continuam ou a não a valorizar, ou a desvalorizarem-na ou até mesmo a considerarem que Portugal na saúde não necessitará de maior transparência nos processos nem de melhores resultados. Sendo a contratualização um dos elementos fulcrais para a mudança, até que ponto será ela viável sem o desenvolvimento dos restantes elementos, nomeadamente a regulação, a qualidade, a cidadania e a inovação na gestão? O desenvolvimento de um sistema de saúde depende grandemente da evolução das atitudes e comportamentos do cidadão, dos profissionais e dirigentes da saúde, dos agentes económicos, sociais, culturais e políticos, ou seja dos diferentes actores (stakeholders) da sociedade portuguesa. Por outro lado, tal como foi referido anteriormente, uma estratégia de saúde pressupõe o envolvimento e a convergência de diversos sectores, nomeadamente o social e o económico, no espaço colectivo da intervenção em saúde, devendo ser dada especial atenção quer ao desenvolvimento de parcerias para a saúde e ao reforço da participação do cidadão e da comunidade, quer aos programas e projectos de cooperação inter-sectorial, inter-ministerial e extra-governamental. A mudança em saúde, conforme se pode concluir não só das diferentes referências bibliográficas consultadas como ainda da opinião dos peritos envolvidos nesta investigação, implica a adopção de instrumentos de gestão fundamentais pela administração/mediação, tais como: a contratualização, o sistema da qualidade na saúde, as remunerações associadas ao desempenho, mas também na esfera da regulação o desenvolvimento de mecanismos de regulação articulados com a introdução de Tese 231 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados mecanismos de inovação na gestão e organização do sistema prestador (Figura 28). Pelo que não parece viável o desenvolvimento da contratualização sem que a regulação, a qualidade, a cidadania e a inovação na gestão sejam uma realidade. Governação Mediação Regulação Qualidade Os Desafios para a Contratualização na Saúde Contratualização Desempenho Centros de Saúde Inovação Continuidade, coordenação e integração de cuidados Hospitais Cidadania “clinical governance” Prestação Fonte: Adaptado de OPSS (2003), “Relatório de Primavera”. Figura 28 – Os Desafios para a Contratualização na Saúde Podemos assim considerar que respondemos com clareza e rigor às duas questões e que demonstrámos a importância do contexto no sistema de saúde, não sendo desejável em momento algum a importação de experiências ou modelos desadequados ao tecido em que nos inserimos, nem tão pouco desenhar soluções para o sistema de saúde que não passem igualmente por considerar que é este contexto, matizado social, cultural e economicamente, que tem de servir e ser servido pelo modelo de organização da saúde que for desenvolvido. Ele condiciona e é condicionado por todas as variáveis analisadas. 1.2 A COMPONENTE “PROCESSO DE CONTRATUALIZAÇÃO” Quanto ao processo de contratualização para o sistema de saúde, desenvolvido em Portugal, colocaram-se quatro perguntas de investigação, que iremos procurar responder trazendo à discussão o conhecimento que foi sendo obtido ao longo de todo o estudo. De acordo com o trabalho de investigação realizado e de forma a serem atingidos os objectivos definidos, foram colocadas questões aos peritos envolvidos e que se desenvolvem em cinco dimensões: (i) contextualização do processo de contratualização; (ii) fase de arranque ou processo inicial; (iii) desenvolvimento da contratualização – base cultural; (iv) processo de contratualização e, (v) modelos alternativos de contratualização e que, conjugadamente com os restantes instrumentos metodológicos desenvolvidos, procurou: 232 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados - Explicitar o processo de contratualização e o papel das agências; - Determinar a coesão das respostas dos peritos auscultados relativamente ao processo de contratualização prosseguido em Portugal; - Ponderar se os governos central e local devem apoiar o sector de uma forma mais incisiva, de molde a garantir a consolidação do processo de contratualização; - Verificar se os profissionais mais envolvidos no processo da contratualização atribuem “importância às políticas governamentais para o sector” e se consideram que essas políticas são consentâneas com a reforma necessária ao sector da saúde; - Analisar a qualidade do sistema de informação para os cidadãos, os profissionais e as organizações envolvidos no processo da contratualização para enfrentarem os desafios que se lhes colocam. Quanto à primeira questão de investigação colocada e que foi: Qual deve ser a estrutura responsável pela contratualização em Portugal e qual o seu desenvolvimento? Parece haver consensualidade entre todos os peritos no que se refere à existência da Função Agencia e ao desenvolvimento do processo de contratualização, referindo alguns que aquela é indispensável/vital para a reforma e reestruturação do sistema de saúde português, pois permite reordenar as relações entre os vários agentes e entidades envolvidas, introduzindo princípios e mecanismos de responsabilização “accountability” e de maior rigor na avaliação e na redistribuição dos recursos (justiça distributiva). Dizem igualmente que a Agência representou uma entidade de controlo mais próxima: provavelmente mais exigente e pressionante, mas também uma cara mais familiar e que se vê obrigada a envolver-se com as próprias instituições. Com os Centros de Saúde este duplo papel teve ainda mais acentuada a vertente de apoio técnico, pois que estes serviços dispunham de muito pouca informação sobre gastos e não tinham a capacidade gestionária necessária (pelo menos os mais pequenos) para elaborar uma proposta de Orçamento–Programa nos termos desejados pelo Ministério da Saúde, pelo que o desafio foi o de apoiar primeiro para exigir depois. Consideram também os peritos envolvidos na investigação que a Agência é essencial, útil e imprescindível para uma verdadeira separação entre financiamento e prestação e uma boa forma de garantir que, em mercado interno, as instituições públicas da saúde possam cumprir cabalmente com as suas obrigações perante os cidadãos. É também uma forma para que os profissionais cumpram a sua missão como prestadores públicos de cuidados de saúde e para que esta prestação se torne mais transparente para a sociedade. Esta função corresponde, assim, a uma necessidade para a reforma do sistema de saúde e do SNS e para uma verdadeira mudança na administração dos serviços de saúde e tem um papel fundamental na avaliação/acompanhamento das actividades dos serviços Tese 233 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados (hospitais e centros de saúde) assim como na adequação entre estas e as despesas geradas. Consideram ainda alguns que a Função Agência teve aspectos muito positivos ao nível do SNS, mas mais de carácter pedagógico do que prático, uma vez que não foi acompanhada dos instrumentos que permitiram pôr em prática a perspectiva de que a um determinado orçamento deve estar associada uma determinada produção. Tendo por base esta matriz de reflexão podemos afirmar que a contratualização dos serviços de saúde, mesmo que incipiente e incompleta, criou, a pouco e pouco, condições para a “desconstrução” ou “desmontagem”, sem grandes sobressaltos, da pirâmide hierárquica-burocrática centralista de comando e controlo, hoje completamente desadequada. De acordo ainda com a opinião dos peritos não parecem existir, de momento, outras formas instrumentais alternativas para assegurar esta mesma função. Segundo Saltman (1994), a criação de instituições mediadoras capazes de cumprir uma missão de equilíbrio de poderes surge com pertinência óbvia enquanto o poder de decisão final se mantém do lado da administração. Um dos mecanismos a considerar nas formulações políticas refere-se aos argumentos clássicos sobre a importância de criar “instituições intermédias” capazes de proteger os indivíduos da exposição directa ao enorme poder do estado. Exemplo destas organizações em Portugal, como ficou demonstrado anteriormente, são as Agências de Contratualização de Serviços de Saúde. A noção de agência do utilizador dos serviços de saúde pode ser compreendida exactamente como esta instituição intermédia, que procura assistir e defender os interesses dos cidadãos nos seus esforços para conquistar uma autoridade real no processo de tomada de decisão e deve ser a estrutura responsável pela contratualização, podendo configurar-se quase como um Provedor dos cidadãos. No futuro, e após a reforma do Estado e da administração pública, as ARS poderiam assumir inteiramente esta função desde que: (i) deixassem de ser tutela hierárquica dos estabelecimentos de saúde; (ii) assumissem verdadeiramente a administração de saúde de uma população e, (iii) tivessem uma forte participação no seu parecer decisional. Fica assim inquestionavelmente dada resposta à primeira questão. Para um melhor entendimento sobre o modelo de contratualização, a seguir foi colocada a seguinte questão: Que padrão de contratualização mais se adequará ao contexto português? Uma fase relacional curta ou mais longa e assente num processo negocial informal, passando posteriormente à fase contratual executória (mais dura)? Podemos afirmar que, de acordo com as opiniões dos peritos a seguir sintetizadas, o padrão de contratualização que mais parece adequar-se ao contexto português, parece ser uma fase relacional mais ou menos longa e assente num processo negocial informal: “um processo negocial de distribuição de recursos, com base na determinação das necessidades a satisfazer, substituindo as relações hierárquicas, próprias da abordagem administrativista tradicional, por instrumentos privatísticos como as relações contratuais, ainda que não puras, 234 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados procurando separar o financiador do prestador, criando uma ligação explícita entre os recursos atribuídos e as metas a alcançar e assente na autonomia e responsabilização”; “é o processo comunicacional que permite estabelecer um compromisso informal de distribuição da variação de um dado volume de recursos financeiros aos serviços prestadores de cuidados de saúde, por parte de uma entidade diferenciada da Administração Regional de Saúde, para pagar um dado volume de produção de cuidados”; “processo de estabelecer um compromisso formal (ainda que sem seguir todos os requisitos de um contrato de direito privado) entre duas partes ou entidades interessadas na realização de determinada (s) actividade (s) ou no fornecimento de determinado serviço”. Os principais objectivos que lhe estão subjacentes parecem ser: (i) orientar o sistema para a satisfação das necessidades expressas e normativas em saúde da população; (ii) documentar a boa aplicação quer dos recursos financeiros colocados à disposição dos serviços de saúde, quer da tecnologia disponível e, (iii) melhorar a efectividade dos cuidados de saúde. O processo negocial deverá ser bastante mais importante que o contrato na promoção duma gestão estratégica centrada nos resultados e daí a premência em facilitar a participação, conhecer os meios de que se dispõe e limites negociais, definir claramente os objectivos e prioridades na negociação, conhecer a capacidade, limites e objectivos da outra parte e procurar estratégias integradoras que maximizem os benefícios para ambas as partes. Segundo OECD (1999 b), o continuum da contratualização ou espectro da contratualização do desempenho, num quadro em que o Estado financia o fornecimento de bens e serviços, move-se numa linha em que num extremo se situa o subsídio incondicional e no outro os contratos clássicos, inteiramente executórios. À medida que nos movemos nessa linha, condições adicionais vão sendo impostas ao beneficiário do subsídio. Essas condições criam obrigações no beneficiário e obrigações recíprocas no financiador, que forçam a que, neste caso, o prestador só receba caso satisfaça as condições previamente definidas. Até certo ponto torna-se difícil distinguir um subsídio em condições de grande detalhe (subsídio condicional) de um contrato de compra real (Figura 29). Descrição pouco detalhada do desempenho esperado Subvenção/Subsidio incondicional Descrição mais detalhada do desempenho esperado Subvenção/Subsidio condicional Contratualização relacional Contrato clássico Contrato real/executório Fonte: OECD. Performance contracting – Lessons from performance contracting case studies: a framework for public sector performance contracting. Paris: OECD, Head of Publications Service (OECD, 1999 b). http://www.oecd.org/puma/ Figura 29 - O continuum da contratualização ou espectro da contratualização do desempenho Em Portugal e de acordo com a opinião de peritos e dirigentes da saúde, deverá introduzir-se rigor e responsabilização no sistema de saúde, passando duma situação de subsídio incondicional (distribuição em função dos gastos, sem qualquer avaliação de Tese 235 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados desempenho ou preocupação de eficiência), para contratos relacionais com a Agência, inicialmente como uma função “pedagógica”, para passar, posteriormente e, à medida que o sistema de informação for sendo aperfeiçoado e que seja conseguida uma boa aprendizagem do processo negocial, para contratos reais, executórios, com explicitação escrita do acordo a que foi possível chegar entre as duas partes, onde se incluem as obrigações de ambas, bem como as inerentes contrapartidas, nomeadamente recompensas e penalizações. É ainda opinião dos peritos que se deveria desenvolver um sistema de contratualização em cascata, em que a agência central de contratualização negociaria com as agências regionais e estas contratualizariam com as estruturas locais os cuidados de saúde a prestar. Além disso, desenvolver-se-ia o processo de contratualização interna e ajustar-se-ia a remuneração dos prestadores aos objectivos e à qualidade e a dos gestores ao nível de desempenho das respectivas instituições. Fica assim documentado que, de acordo com a opinião dos peritos envolvidos na investigação, o processo de contratualização deverá assentar inicialmente numa fase relacional mais ou menos longa e num processo negocial informal (contratualização relacional), de acordo com o empenho político que o mesmo tiver e deverá ir sendo progressivamente desenvolvida passando quando possível a uma fase contratual mais dura (contrato quasi-real), pois, dadas as especificidades da saúde e o nível de desenvolvimento dos instrumentos de gestão e sistemas de informação disponíveis, pode ser perigoso introduzir muito rapidamente contratos executórios, que poderão levar ao desmantelamento do sistema, à falência de algumas das instituições e até mesmo à quebra na prestação de cuidados de saúde vitais para os cidadãos. Com o objectivo de discutir exactamente o tema do desenvolvimento e disseminação desta metodologia, foi colocada uma terceira questão: Porque é que não foi possível fazer a indução cultural no processo de desenvolvimento da contratualização? Para o desenvolvimento deste instrumento e para que cumpra o seu papel de uma forma eficaz, encontramos, no entanto, dois importantes constrangimentos: (i) a manutenção da soberania governamental no processo de decisão, controlando o funcionamento da Agência através de critérios essencialmente financeiros, rejeitando ou não assumindo indicadores, necessidades e prioridades manifestados pelo cidadão (desmotivando a sua participação de uma forma continuada) e, (ii) o âmbito regional que lhe é conferido, responsável por um “gap” entre participação e centralização do poder. Mas não serão só estas as razões que explicam a não adesão ao processo. Em 1998, Ham assinalou que o desvio do sistema integrado para o modelo contratual foi um estímulo complementar às políticas de controlo de despesas de nível macroeconómico, gerando iniciativas de fortalecimento da eficiência e da capacidade de resposta aos utilizadores no nível micro económico. Os principais instrumentos dessas políticas foram: a introdução de mecanismos similares aos do mercado em muitos sistemas de saúde; o fortalecimento da gestão dos serviços de saúde, para reduzir as variações de desempenho e introduzir uma forte orientação para o cliente e o uso de incentivos orçamentais como um meio de aperfeiçoamento do desempenho. 236 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados Um outro elemento chave da contratualização é a avaliação, já que é necessário verificar a adequação do contrato, efectuar o acompanhamento do mesmo e monitorizar os resultados e a qualidade. A avaliação pode apresentar várias formas: (i) um diálogo permanente entre as partes, no que se refere ao desempenho relativo aos objectivos; (ii) um relatório anual dos resultados alcançados, num quadro de avaliação global dos programas e serviços; (iii) uma revisão periódica pela entidade responsável e, (iv) uma verificação externa e independente (auditores externos, comissões parlamentares, académicos, etc.). Tendo presente o clima cultural e organizacional da nossa administração pública, o sistema de avaliação do processo de contratualização consistiria na combinação de uma revisão quadrimestral pela entidade responsável do cumprimento do contrato, associado a uma entrevista presencial. Em síntese, avaliar permanentemente o comportamento de indicadores estratégicos, de avaliação global, sendo a periodicidade conforme os indicadores e objectivos. Ou ainda, uma outra hipótese que poderia ser baseada em auditorias, imediatamente após se detectarem variações significativas nos indicadores sentinela e auditorias temáticas, pelo menos uma vez por ano e por instituição, procurando facilitar a gestão, promovendo o benchmarking e recolhendo informação para futuros processos negociais. Todas as auditorias seriam, naturalmente, efectuadas pelas Agências, que para isso deveriam ter um processo de autonomização maior em relação à estrutura prestadora. Seria ainda necessário, segundo os peritos, avaliar anualmente o sucesso de cada organização e auditar as Agências, anualmente, por entidades alheias ao Ministério da Saúde: Tribunal de Contas e/ou Inspecção-Geral de Finanças. A avaliação pressupõe consequências que deverão ser o ajustamento da produção e dos recursos para o período seguinte, a disponibilização pelas duas partes de informação para a negociação seguinte e uma auditoria externa, da responsabilidade da comissão parlamentar de saúde, de dois em dois anos, o que permitiria à instância política tomar decisões informadas sobre os ajustamentos a fazer ao sistema e aos recursos a serem-lhe afectos. De acordo com os peritos, a nossa cultura e a forma de organização da nossa administração pública impedem que a indução cultural no processo de desenvolvimento da contratualização possa ser uma realidade, mas admitem que caso o empenhamento político fosse o adequado a mudança aconteceria, mesmo num contexto em que os diferentes actores apresentassem fortes resistências. No que se refere à discussão sobre o papel do cidadão, foi colocada a seguinte questão: Será expectante que o cidadão possa assumir um papel mais intervencionista e facilitador da contratualização? Partindo-se do pressuposto que a participação não é possível sem o empowerment do cidadão, este deve ser atingido de forma gradual e, logicamente, numa perspectiva de longo prazo. Para que o cidadão possa assim assumir um papel mais interventivo e facilitador da contratualização e de acordo com OECD (2001), a informação mínima Tese 237 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados que deve ser disponibilizada e sobre a qual se deve trabalhar é a que consta da Figura 30. Convém, no entanto, referir, que de acordo com a opinião de alguns dos peritos envolvidos no processo, “há actualmente uma mediatização dos cuidados de saúde e os cidadãos posicionam-se muitas vezes como sujeitos desses cuidados, adoptando um caderno reivindicativo de direitos sem obrigações”, o que deve ser ponderado enquanto se preparam e implementam os sistemas de informação e comunicação. Oferta de cuidados: Serviços prestadores de cuidados existentes na zona em que os cidadãos habitam ou trabalham e forma de lhes aceder; Informação sobre a capacidade instalada em cada uma destas unidades de saúde e, se possível, estimativa do número de actos que é possível e desejável esperar-se. Desempenho das unidades de saúde: Produção das unidades de saúde em número de consultas, intervenções e urgências; Publicitação das listas de espera (número de pessoas e tempos de espera) por cirurgia e consulta; Indicação das taxas de cobertura dos centros de saúde e do número de cidadãos sem médico de família; Informação sobre projectos de qualidade existentes nas várias unidades de saúde e, se possível, suas conclusões, para aumentar não só o conhecimento que os cidadãos têm destas unidades mas também a sua transparência para com a sociedade; Informação sobre modernização e racionalização das unidades de saúde. Participação dos cidadãos: Tipologia das reclamações nos serviços públicos de saúde e possibilidade de cada cidadão ter acesso à fase em que está a sua reclamação; Possibilidade de cada cidadão ter acesso, pelo número de utente, à sua posição na lista de espera. Informação genérica aos cidadãos: Doenças mais vulgares e em relação às quais há algum espaço de intervenção do cidadão para as evitar ou diminuir o seu impacto; Sinais de risco e de alerta; Plano de vacinação aprovado; Medicamentos e farmácias; Hábitos propiciadores de uma vida saudável. Fonte: OECD (2001). Citizens as Partners: Information, Consultation and Public Participation in Policy-making. OECD, Paris. Figura 30 – A informação mínima e o empowerment do cidadão Segundo ainda estes peritos “as Agências não conseguiram montar adequadamente uma estratégia de comunicação que dê visibilidade à sua actuação e que se constitua como veículo de transferência de conhecimento e informação para os cidadãos. A sua existência não tem sido garante da participação efectiva dos cidadãos”, provavelmente porque os governantes não conseguiram ainda entender a importância que o cidadão assume e o que poderá significar ignorar que o desenvolvimento deve estar ao serviço desse mesmo cidadão, sendo que na área da saúde isso assume uma importância vital. 238 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados 1.3 A COMPONENTE “PROCESSO DE MUDANÇA” Quanto ao desenvolvimento e gestão do processo de mudança no sistema de saúde, foram colocadas duas perguntas de investigação, com o objectivo de perceber como se pode fazer a mudança, ou melhor dizendo, quais são os verdadeiros factores que a condicionam. A primeira questão colocada foi a seguinte: Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da contratualização parece ser a cultura burocrática e de não responsabilização predominante na administração pública. Em que circunstâncias a relação contratual funcionará de forma facilitadora? De acordo com OECD (1999 b), a contratualização é um meio de gerar comportamentos desejados no contexto das estruturas de gestão desconcentradas. Os países vêem a contratualização como uma forma de articular a definição dos objectivos e apoiar os novos métodos de controlo de gestão e de monitorização e de deixarem aos gestores a responsabilidade das operações correntes. Mais precisamente, a contratualização comporta todo um conjunto de instrumentos de gestão que permitem delimitar, no sector público, as responsabilidades e as expectativas das partes tendo em vista alcançar os resultados negociados de comum acordo. Face a este ponto de vista, o assumir da responsabilização por parte dos principais intervenientes no processo parece ser o caminho para a reforma do sector público, tendo-se perguntado aos peritos como actuariam para que a contratualização pudesse ser uma medida a implementar no curto prazo. As respostas foram no sentido de que “apenas se deram os primeiros passos do processo de contratualização. A distribuição de recursos manteve-se em paralelo com o trabalho das Agências, através do IGIF; ou seja, não se chegou a fazer verdadeira contratualização, mas apenas explicitação da relação recursos/actividade, reduzindo o impacte e impossibilitando as Agências de conseguirem promover mais responsabilização, já que a gerariam se distribuíssem os recursos e se para as instituições houvessem consequências”. Para os peritos as “Agências visavam promover a eficiência e permitir uma melhor distribuição de recursos, mas inicialmente o sistema combateu a contratualização” e, como “não há contratualização externa sem existir a interna e sem um bom sistema de informação” e ainda porque no entender destes especialistas “a contratualização externa é inevitável e levará à contratualização interna”, concluem, que o processo de contratualização é essencial ao desenvolvimento do Sistema de Saúde em Portugal e que a escassez de recursos e o nível de exigência por parte de cidadãos e profissionais, hoje mais informados e esclarecidos, levará à inevitabilidade de desenvolvimento do processo de contratualização. Acresce, no entanto, que a falta de vontade política, mas principalmente o desconhecimento e talvez a falta de informação sobre os novos caminhos que têm sido seguidos em outros países mais desenvolvidos, nomeadamente sobre a evidência dos Tese 239 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados modelos aplicados com sucesso, levaram os nossos governantes a não valorizarem o processo da contratualização e a necessidade do seu desenvolvimento e fortalecimento, impedindo a sua normal indução, o que veio pôr em causa o normal percurso das reformas delineadas, as quais se viram precocemente abortadas. A principal causa apontada para o fracasso das políticas de saúde dos últimos anos e o grande obstáculo ao desenvolvimento da contratualização parece ter sido a cultura burocrática e de não responsabilização predominante na administração pública, sendo que a relação contratual que se esperava viesse a funcionar de forma facilitadora não foi bem aceite, principalmente porque parece existirem fortes interesses arreigados, que os nossos governantes não foram capazes de combater. A segunda questão colocada, de importância fundamental para o entendimento sobre o desenvolvimento da contratualização no actual contexto económico/social, decorrente do cumprimento dos critérios de convergência da UE e também dos compromissos que nos assistem como elementos dum espaço europeu mais globalizante com outros desafios, mas igualmente com outras e mais diversificadas oportunidades, foi a seguinte: Será que hoje, à luz dos actuais constrangimentos, decorrentes da pressão para cumprimento dos critérios de convergência da UE, estão reunidas melhores condições para o abandono de uma cultura paternalista existente na administração pública da saúde, em Portugal e para o desenvolvimento de uma cultura assente na contratualização? A resposta a esta pergunta parece ser afirmativa, mas os resultados poderão ser perversos, já que a introdução de uma visão meramente economicista, com o objectivo de cumprir os referidos critérios, pode levar à manutenção de uma estrutura verticalizada e obstaculizante de comando e controlo, igualmente desresponsabilizante e até geradora de maiores desperdícios, ineficiências e iniquidades. Para além disso, pode levar também ao abandono daquilo que são as principais responsabilidades do Estado, no que se refere à disponibilização de cuidados de saúde para aqueles que deles necessitem e à alienação de estruturas de prestação fundamentais, mas que pela sua especificidade e complexidade sejam consideradas caras e por isso não desejáveis. Assim e de acordo com o explicitado pelos peritos, parecem existir todas as condições para o desenvolvimento do processo de contratualização, dado que os problemas económicos e sociais existentes e a obrigatoriedade de cumprimento dos critérios de convergência parecem até obrigar o sistema a uma mais séria, rigorosa e transparente gestão, o que aponta necessariamente para a implementação desta metodologia. De forma a estruturar adequadamente a matriz de referência a utilizar nesta parte do estudo, procurou-se: (i) discutir a viabilidade da contratualização em Portugal; (ii) verificar o impacte da contratualização ao nível dos serviços prestadores e discutir o processo de negociação com os actores chave; (iii) assinalar as vantagens decorrentes da identificação das necessidades em saúde e discutir como é que elas podem contribuir para o sucesso da contratualização e, (iv) identificar os factores críticos, que no contexto português, condicionam a implementação de políticas de mudança no sector. 240 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados 1.3.1 Viabilidade da contratualização em Portugal Os gestores envolvidos no processo de contratualização concordam que as Agências de Acompanhamento (actualmente de contratualização) dos Serviços de Saúde foram criadas como um dos instrumentos para uma nova política de saúde, orientada para um compromisso explícito no sentido de melhorar o desempenho dos serviços de saúde, adoptando metas concretas para a realização de ganhos em saúde e assumindo a centralidade do cidadão como vector a desenvolver e a integrar na sua actuação, tal como referem expressamente: “as agências foram explicitando uma nova relação entre o cidadão contribuinte, o financiamento estável, o investimento em saúde e a redução de gastos desnecessários, promovendo atitudes e comportamentos, no sentido da garantia da qualidade dos cuidados de saúde prestados à comunidade”. Daí que se possa concluir que o processo de contratualização veio, segundo os peritos envolvidos na investigação, trazer como efeitos positivos mais relevantes: 1. Transparência de processos; 2. Efeito de responsabilização (accountability) perante a entidade externa; 3. Novo modelo de gestão; 4. Preparação da autonomia dos Centros de Saúde, através da introdução duma vertente de gestão, fundamental para a autonomia administrativa e financeira; 5. Avaliação em termos de eficácia/eficiência, através do desenvolvimento de novos indicadores de desempenho institucional e com estudos de aplicabilidade de alguns indicadores globais de eficiência; 6. Aproximação dos órgãos da Administração Central ao terreno e aos constrangimentos existentes nas instituições de saúde e mais oportunidades de interacção entre níveis da administração; 7. Gestão nas instituições por objectivos/metas assistenciais, com base em indicadores de produtividade e rentabilização da capacidade instalada; 8. Maior agregação de dados sobre os Serviços; 9. Co-responsabilização/cumplicidade dos prestadores e instituições; 10. Perspectivas de maior autonomia económico-financeira; 11. Desenvolvimento da informação e do sistema de informação, através da sistematização da informação nas instituições de saúde; 12. Primeira abordagem das capacidades subutilizadas e análise do esgotamento das capacidades instaladas; 13. Aumento da actividade no movimento assistencial, indo de encontro às necessidades de saúde das populações decorrente duma maior e melhor explicitação dos níveis de produção e produtividade; 14. Conhecimento, pela primeira vez, dos valores de alguns indicadores, possibilitando a comparação, ainda que relativa, dos indicadores de gestão das Tese 241 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados instituições de saúde (início ainda que ténue de benchmarking, com alguns custos unitários comparáveis); 15. Responsabilização dos Conselhos de Administração, num objectivo comum de garantir o cumprimento dos compromissos assumidos perante a Agência, através dum diálogo mais objectivo entre os órgãos de “regulação” regional e os estabelecimentos; 16. Indução da necessidade de desenvolver práticas de contratualização internas e consciencialização dos responsáveis directos pelos serviços assistenciais para as questões de gestão; 17. Utilização de um instrumento de gestão, o Orçamento–Programa, que traduza, com maior coerência e objectividade, a realidade assistencial e económico-financeira da instituição, ou seja, o início de práticas de acordo/compromisso e verificação do seu cumprimento; 18. Envolvimento de representantes dos cidadãos e autarquias; 19. Eventual controlo dos custos; 20. Maior previsibilidade dentro do sistema. Um outro efeito positivo de igual relevância foi a modificação da cultura organizacional, através do esforço e melhoria na informatização do sistema, permitindo a eficiência de medidas a implementar pelas instituições. Apesar das limitações, convém reconhecer que as correntes de direcção são no sentido de reflectirem prioridades estratégicas no contexto social e de cuidados de saúde, dos quais emergem. Num horizonte de separação entre financiamento e prestação, com autonomia progressiva para os serviços prestadores, a contratualização pode tornar-se apenas o elo de ligação com os objectivos do sistema, sobretudo se o prestador for uma entidade particular. Saliente-se que a lógica do orçamento-programa tem sido baseada nos objectivos e na medição de produção dos serviços, o que justifica um contrato financeiro acordado através dum sistema transparente e previamente estabelecido. Será necessário adaptar a estrutura institucional e desenhar tanto a de estratégia da saúde como a estrutura dos contratos no sentido de conseguir a eficaz integração de ambos. Convém ainda referir que foram igualmente identificados um conjunto de efeitos negativos, dos quais destacamos, por ordem decrescente de importância: 242 i. Maior número de pedidos de dados às instituições, muitos deles sem consequências, com evidente sobrecarga e aumento de custos administrativos; ii. Existência de grandes discrepâncias no desenvolvimento das agências nas diferentes regiões; iii. Excessiva concentração na produção sem atender às necessidades em saúde; iv. Falta de confronto das metas assistenciais propostas pelas instituições com as reais necessidades em saúde; Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados v. Sem reflexos na melhoria da articulação entre níveis de administração (central, regional e local), surgindo em muitos casos como mais um; vi. Desarticulação entre financiamento regional e orçamentos; vii. Alguma marginalização ou auto-marginalização das ARS; viii. As exigências feitas em sede de contratualização não foram acompanhadas pela distribuição de outras regras de gestão fundamentais para que os CA dos hospitais pudessem ser plenamente responsabilizados pelo cumprimento das metas negociadas; ix. Não trouxe grandes benefícios na questão dos ganhos em saúde, ou pelo menos não pôde mostrar impacto nem tornar visível essa conexão; x. Sem sistema de consequências, o processo torna-se inconsequente e descredibiliza-se; xi. Focalização excessiva nos detalhes técnicos com afastamento dos aspectos estratégico-políticos e de cidadania; xii. Pela falta de contornos regulamentares precisos da Função Agência, assistiu-se a uma influência/interferência negativa no seu normal funcionamento, pela dualidade de orientações provenientes dos órgãos centrais e regionais; xiii. Criou-se, em algumas áreas, a perigosa ilusão que as Agências serviam para controlar os custos do SNS; xiv. É necessária uma maior formação em técnicas de negociação e condução de reuniões, uma vez que uma postura por parte da Agência ou ARS de agressividade ou inquisição provoca reactividade imediata por parte dos responsáveis das instituições, nomeadamente em questões que possam afectar a sua autonomia administrativa e financeira; xv. Pode ajudar a criar ilhotas tecnocráticas marginais; xvi. O insuficiente acompanhamento da execução dos orçamento-programa poderá conduzir à falta de credibilidade de todo o processo de contratualização; xvii. Pouco impacto financeiro no subsídio de exploração dos hospitais resultante da contratualização, o que minimiza perante alguns deles o esforço a efectuar para o cumprimento das metas assistenciais; xviii. Possibilidade das instituições hospitalares adoptarem critérios de recolha de informação de movimento assistencial consoante os resultados pretendidos, por ausência de critérios estatísticos precisos; xix. Podem ser beneficiadas financeiramente instituições, não pela realidade objectiva do movimento assistencial que produzem, mas pelo seu sistema de informação ir de encontro aos critérios estabelecidos para a contratualização; xx. A opção estratégica pela utilização deste sistema não pode ficar comprometida ou ser posta em causa consoante os interesses políticos Tese 243 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados supervenientes, sob pena de descredibilizar qualquer actuação futura de introdução de mudanças no sistema de saúde português. Mas é importante ter presente que o ciclo da contratualização que foi conceptualmente definido se iniciava com a identificação das necessidades em saúde e em cuidados de saúde, com posterior análise do orçamento-programa e terminava com a avaliação de desempenho, respeitante ao período de exercício, ou seja, comparava valores esperados (perspectiva da Agência), com valores previstos (perspectiva das organizações) e valores realizados. As consequências dos desajustamentos, materializadas pelos critérios de atribuição de prémios/penalizações financeiras, dependiam do seguinte: - Grau de cumprimento das metas e utilização dos meios; - Adesão a objectivos estratégicos (como programas de qualidade); - Envolvimento dos CA dos hospitais e direcções dos centros de saúde nos aspectos formais de elaboração do orçamento-programa, processo negocial e acompanhamento da execução. Mas, de acordo com a opinião dos peritos, não houve qualquer tipo de consequências para os desajustamentos verificados, já que não houve vontade política para levar até às últimas consequências esse processo, tendo sido retirada capacidade de decisão às agências, ao não as fortalecerem com mandatos explícitos e nem sequer levar pela frente a aplicação da legislação existente. Actualmente verificam-se alterações significativas do enquadramento conjuntural do SNS. Mais ainda, ao nível estrutural avizinham-se mudanças cujo impacte ainda está por vislumbrar. A este nível salienta-se a inclusão da problemática da contratualização e das suas possíveis implicações, tão bem expressas no discurso dos diferentes actores sociais que fizeram parte dos painéis que intervieram nos seminários realizados. Acrescenta-se ainda à alteração do contexto e orientação políticas, a ausência de significado e de significação do enquadramento em que a mudança e a contratualização são concretizadas. Aqui pode salientar-se a omissão da função reguladora por parte do Estado, que muito preocupa a maior parte dos actores, aumentando inevitavelmente a sua resistência à mudança perspectivada. 1.3.2 Impacte da contratualização ao nível dos serviços prestadores e posição dos actores A insustentabilidade financeira do SNS colocou na agenda política a necessidade de implementação de reformas no sector da saúde. Quase todos os actores intervenientes neste sector parecem estar de acordo sobre essa necessidade, mas as divergências surgem quanto às medidas reformadoras a implementar. Através da aplicação da análise SWOT, comparando os dois momentos de recolha de dados e fazendo a análise conjugada das variáveis posição, poder e interesses dos 244 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados actores, verificamos que o maior número de actores com poder se situa numa posição de apoio e são estes os que têm maior influência na elaboração das referidas reformas. O facto do poder dos actores derivar em grande parte da sua capacidade económica e porque as reformas se fazem sentir, predominantemente, nesta área, justifica que estes se coloquem na posição de apoio e que os interesses expressos incidam nas áreas económica e política. Os interesses científicos, por serem mais estáveis e menos afectados por reformas deste tipo, assumem menos relevo na expressão dos actores. Dos actores que aceitaram participar neste processo de avaliação verifica-se existir um grupo que não apresenta posições estratégicas definidas, mas os que as apresentam, explicita ou implicitamente, são claras e bem estruturadas, têm uma visão organizada e moderna; possuem uma posição estratégica na comunidade e até de fácil acesso para o cidadão, sendo que alguns até desempenham um papel de aconselhamento e de ajuda social. Por outro lado, alguns constituem-se como monopólios em algumas áreas, sendo que o Estado não desenvolveu estratégias de negociação que lhe permitam consolidar posições. Conjugando as linhas de força da acção dos diferentes actores e de acordo com as opiniões expressas em todos os debates realizados, podemos concluir que as reformas em curso têm grande dificuldade na sua implementação, dadas as resistências que emergem, não só pela elevada quantidade de alterações anunciadas como também pela pouca negociação e auscultação dos principais parceiros. Os actores sociais encontram-se maioritariamente em oposição à mudança, pelas mais diversas razões, nomeadamente alguns sindicatos não concordam com a mudança que se perspectiva, por a mesma poder pôr em causa o SNS, embora o sindicato médico apresente uma posição de não mobilizado. Assim, exceptuando o próprio Ministério da Saúde, o INFARMED e a Associação dos Consumidores, que apoiam a mudança, os restantes actores apresentam posições de não mobilizados e de oposição. Relativamente às estratégias utilizadas por estes actores sociais, podemos considerar que elas se agrupam em dois tipos (Quadro 28), as que os actores entendem que devem ser prosseguidas pelo Ministério e aquelas que eles pretendem seguir e que são: Quadro 28 – Estratégias preconizadas para a mudança e para os actores Estratégias preconizadas para a mudança Estratégias a seguir pelos actores Estratégia integrada numa lógica de planeamento das necessidades em saúde do país, garantindo-se acesso, equidade e qualidade dos cuidados prestados. Luta pela manutenção dos seus estatutos sociais e pela inserção como parceiros no diálogo para a mudança. Implementação das reformas. Exposição das insuficiências dos novos modelos de gestão. Procurar a manutenção das actuais regras de mercado. Promover o reforço da centralização da gestão do sistema e sua responsabilização. Procurar junto da tutela o desenvolvimento de mecanismos de avaliação/monitorização pelo Estado. Oposição à mudança. Reforço do SNS. Não valorizar o papel da regulação por parte do Estado. Potenciar o profissionalismo das organizações de saúde. Tese 245 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados No que se refere às suas percepções quanto ao papel da contratualização no contexto da mudança, verificam-se as posições a favor e contra que são descritas no quadro que a seguir se apresenta (Quadro 29). Quadro 29 – Percepções dos actores quanto ao papel da contratualização A favor Contra Contratualização deve ser utilizada como diagnóstico de necessidades, potenciando a capacidade de resposta dos recursos existentes. A contratualização, se provocar a desfragmentação do SNS. Apenas no contexto da contratualização interna Isolada não funciona exigindo a existência de outros instrumentos (CRI, ULS; etc.) Contratualização vista como forma de concessão da gestão que leva ao aumento da produção. Contra a contratualização, pela possível extinção de pequenas unidades de prestação de cuidados. Tendo-se presente a existência de risco: - Risco associado ao financiador/prestador: distribuição de recursos sem garantia para o financiador do resultado final e para o prestador o risco de não cumprir com os objectivos e/ou perda económica. - Risco de concentração da oferta: pode prejudicar o utente. - Risco associado à negociação: ao admitir-se preços iguais para serviços iguais em circunstâncias diferentes (tendendo a penalizar os serviços com melhor qualidade) Não à contratualização e sim a à cooperação Como forma de articulação entre o SNS e o sector privado. Como forma de regulação dos monopólios e de reestruturação do mercado Apenas com a verificação dos seguintes pressupostos: - definição da população-alvo dos cuidados de saúde; definição de áreas estratégicas de produção de cuidados; - garantia dos recursos mínimos para a qualidade da prestação. Só se existirem regras claras e coerentes associadas a uma estabilidade operacional De salientar a preocupação geral da falta de capacidade negocial das partes, pouca “cultura contratual”, a falta de regulação Pública e a ineficiência dos Sistemas de Informação. É evidente que há expectativas relativas a algumas das mudanças delineadas na actual agenda política e é expectante que algumas delas sejam concretizadas, criando necessariamente oportunidades para um aproveitamento por parte daqueles que pretendem a privatização do sistema prestador, com todas as implicações daí decorrentes, já que segundo alguns dos actores não há uma linha de orientação política clara, mas sim a vontade de alienar o actual SNS, sem modelo alternativo que o substitua e com graves reflexos para a população em geral. Os actores estão atentos e têm um papel fundamental no desenvolvimento do processo, as suas estratégias, mesmo que implícitas, estão presentes em todos os acontecimentos, mesmo naqueles em que parece não emergir uma posição activa. Por outro lado, a governação não parece rege-se por princípios de rigor, missão e equidade, o que impede toda e qualquer reforma séria e estruturante. O cepticismo dos actores fundamenta-se ainda na falta de enquadramento para a implementação da mudança com outras linhas de reforma convergentes que lhe sirvam de sustentáculo. Quanto aos resultados obtidos através da análise SWOT 246 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados conjugadamente com a Análise do Campo de Forças, algumas alterações foram verificadas, porém não suficientes para o sucesso do processo de contratualização. 1.3.3 Identificação das necessidades em saúde e sua contribuição para o sucesso da contratualização As actividades mais comuns de uma organização prestadora de cuidados de saúde são os serviços em que o doente/utilizador/cliente é atendido por um especialista de cuidados de saúde ou uma equipa, a quem apresenta uma questão de saúde para ser resolvida. As expectativas e objectivos daquele cidadão comum, quanto a estes serviços, são normalmente descritas como obtenção de informação e de ganhos funcionais e de saúde. Mas o sistema prestador de cuidados de saúde tem uma missão mais ampla, relativamente aos cidadãos, dado que os cuidados de saúde são fundamentais na prevenção e noutras actividades destinadas à população e à sociedade. Contudo, estudos internacionais mostram que o impacte desses cuidados de saúde na sociedade e no bem-estar da população é limitado, pois há estimativas que sugerem que a sua influência é de um quinto quando comparada com o impacte do contexto económico/social (educação, ambiente, emprego, etc.), ou seja, o seu contributo para esse bem-estar é somente de 20%. Os cuidados de saúde são também, frequentemente impotentes na resolução dos diferentes problemas de saúde da sociedade. A prevenção e a gestão do problema da droga, por exemplo, terá provavelmente mais sucesso se os principais actores da sociedade local, autarquias e cidadãos, acordarem a estratégia e as acções a realizar, sendo que os profissionais dos cuidados de saúde podem oferecer a sua especialização como apoio a essa actividade comunitária. Se estes são os princípios seguidos e se são também aqueles que balizam o processo de contratualização, estamos perante uma oportunidade que nos permite dar sequência a tal processo e com ele contribuir para a reforma da administração pública da saúde e com isso concorrer para uma melhor distribuição dos recursos e do investimento em saúde, cooperando directamente para melhorar os resultados em saúde. 1.3.4 Investimento e resultados em saúde É verdade que o contexto económico/social contribui de forma inequívoca, quer directa, quer indirectamente, para os resultados em saúde, como mostram os modelos de regressão utilizados na metodologia apresentada e é igualmente verdade que essa componente não é facilmente transformada pelos intervenientes na área da saúde, mas a forma como são definidas as políticas e como essas mesmas políticas são aplicadas num sentido de maior equidade no acesso aos cuidados de saúde, ou privilegiando grupos ou actores específicos do sistema, condicionam e são grandemente condicionadoras dos resultados alcançados em saúde. Tese 247 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados Exemplo disso é o encontrado nos resultados da análise estatística efectuada em que verificamos, embora salvaguardando os enviezamentos esperados deste tipo de análises macro e ainda a fraca consistência da informação disponível, que os resultados em saúde são explicados principalmente pelas estruturas especializadas de saúde e de forma negativa, parecendo significar que os ganhos em saúde serão tanto maiores quanto maior for o investimento nesse tipo de estruturas de saúde, ficando por demonstrar se os mesmos seriam igualmente explicados pelo maior investimento em estruturas de ambulatório ou, quiçá, em actividades de promoção da saúde ou prevenção da doença. É ainda verdade que o contexto influencia e explica praticamente todas as restantes variáveis. Podemos referir como efeito grandemente positivo o investimento na prevenção da doença, através da introdução do Plano Nacional de Vacinação e do Planeamento Familiar, que vieram introduzir melhorias significativas ao nível da natalidade e mortalidade em Portugal, reduzindo a taxa de mortalidade infantil de 914,17 % em cerca de três décadas e colocando o nosso país, neste indicador, ao nível dos mais desenvolvidos do mundo. Fica no entanto uma pergunta: será que com a introdução de uma política centrada principalmente numa visão economicista, onde estão ausentes, por um lado as preocupações de identificação de necessidades dos cidadãos, de prevenção e promoção da saúde e, por outro lado, os mecanismos de regulação e de dar voz ao cidadão (segundo a agenda conhecida), se irão manter os níveis de resultados em saúde já alcançados nestas áreas e os necessários em muitas outras, como por exemplo os que se prendem com novas doenças e problemas de saúde pública (VIH/SIDA, toxicodependência, etc.)? 1.3.5 O modelo e a organização da estrutura de contratualização De acordo com a opinião de vários dos especialistas que participaram na investigação, a contratualização é indispensável ou até mesmo vital para o processo da reforma e reestruturação do sistema de saúde português, já que permite reordenar as relações entre os vários agentes e entidades envolvidas, introduzindo princípios e mecanismos de responsabilização “accountability” e de maior rigor na avaliação e na redistribuição dos recursos, isto é, introduz maior justiça distributiva. É ainda opinião daqueles especialistas que a contratualização dos serviços de saúde, mesmo que incipiente e incompleta, cria, a pouco e pouco, condições para a “desconstrução” ou “desmontagem”, sem grandes sobressaltos, da pirâmide hierárquico-burocrática e centralista de comando e controlo, hoje completamente desadequada, sendo que propõem o desenvolvimento da contratualização muito sobre a visão do desenvolvimento da função até agora denominada de “Agência” e na qual assenta a responsabilidade de contratualizar com os prestadores, os cuidados de saúde necessários à população que serve, o que, de acordo com estes especialistas, poderia vir a ter a seguinte organização: - 248 A Coordenação: uma estrutura de coordenação regional; Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados - A Operacionalização: deve basear-se numa estrutura de pequenas Equipas de Contratualização, em rede, cada uma dedicada a um conjunto populacional restrito (100.000 a 500.000 habitantes); - A Organização: estrutura matricial, agregando equipas organizadas por unidades de saúde, por grupos de doença ou por áreas de ganhos em saúde, de forma a permitir uma abordagem populacional mais integrada e portanto susceptível de se conseguirem melhores ganhos sistémicos em custoefectividade e micro-eficiência global do sistema; - O Processo de Contratualização: a afectação de recursos às unidades de saúde na base capitacional, ajustados de acordo com indicadores de saúde morbilidade, mortalidade, sócio/económicos, entre outros; - O Sistema de Informação: o processo de contratualização deverá assentar no sistema de informação já existente que deverá ser progressivamente melhorado, agregando toda a informação de produção, económica, de resultados e sobre a capacidade instalada dos prestadores do SNS, devendo evoluir-se para uma arquitectura mais integrada de sistema de informação de saúde que permita a circulação e interactividade de informação entre os diversos agentes e entidades; - Os indicadores padrão de desempenho versus de produção em que assenta a negociação, isto é, o nível de desempenho óptimo que se deve esperar face a uma determinada capacidade instalada: deverão ser definidos e assentarem em critérios científicos, podendo ser uma das áreas de investigação operacional a criar. Não basta, no entanto, estabelecer padrões gerais únicos a aplicar de forma uniforme, porque cada valência/área tem a sua especificidade própria com diferentes padrões de desempenho. Por outro lado, é importante ter em atenção alguns constrangimentos do sector público da saúde, nomeadamente a nível dos recursos humanos; - A relação da Agência com as outras estruturas do Ministério: só haverá futuro para esta Função se a Administração Central do SNS for reformulada e nesse contexto poderão vir a ser órgãos desconcentrados a cumprir a função para que foram criadas e reforçando-se o papel de representante dos cidadãos. A relação da Agência de Contratualização com as restantes estruturas do Ministério tem de ser de extrema proximidade e colaboração, o que pode ser conseguido através do Secretariado Técnico das Agências ou do Conselho Nacional das Agências, já criado, ou de uma estrutura nova que se reja por princípios semelhantes aos já enunciados. Segundo a opinião dos peritos, o processo de contratualização ainda não conseguiu estabelecer novos códigos de comportamento nas relações institucionais entre prestadores, autoridades de saúde, profissionais e utilizadores, mas tê-lo-ia conseguido se não tivesse havido uma inflexão na política do Ministério da Saúde, uma vez que o ambiente envolvente contraria todo o processo de mudança. Tese 249 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados 1.3.6 O papel da contratualização Os limites da contratualização, de acordo com McGuire (2000), situam-se ao nível da verificação se os problemas actuais no sistema de saúde são atribuíveis a uma má gestão na prestação dos serviços, o que poderá ser verificado pela transparência do processo da contratualização. Se o problema residir na ineficácia das políticas escolhidas, a contratualização deixa de ser sensível ao fenómeno. No entanto, os estudos de caso no Canadá e na Austrália, analisados em OECD (1999 a) permitem concluir que a contratualização pode melhorar e recentrar a comunicação à volta do desempenho e dos resultados obtidos e por essa via ajudar a recolocar a qualidade do diálogo em torno das políticas e, naturalmente, da sua definição. Seguindo ainda aquela publicação, o sucesso a médio e longo prazo da contratualização, mau grado a multiplicidade de formas e de circunstâncias em que a mesma se tem desenvolvido nos países da OCDE, nomeadamente Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia, Noruega, Reino Unido ou ainda Austrália, Bélgica, Canadá, França, Espanha e Estados Unidos, assenta em três pré-requisitos: (i) um clima de confiança que se deverá estabelecer entre as partes77 e que se supõe atender a um certo equilíbrio entre considerações formais e informais, à existência de um diálogo permanente, à troca de informação, à negociação, à clareza dos objectivos e ao respeito mútuo; (ii) um compromisso em perseguir um objectivo comum e tornar transparentes os resultados obtidos, bem como dos adequados mecanismos de gestão e de avaliação e (iii) uma visão de conjunto, que permitirá compreender que a contratualização não poderá cobrir a multiplicidade de factores ligados à gestão do desempenho, à cultura organizacional, às considerações políticas e aos aspectos administrativos que intervêm numa relação contratual. Assim, torna-se importante discutir agora os resultados da nossa investigação, no sentido de identificar os principais factores críticos que condicionam e impedem o desenvolvimento do processo de mudança, tal como já foi referido anteriormente. 2. A CONTRATUALIZAÇÃO NUMA NOVA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE CONTRIBUTOS PARA A CARACTERIZAÇÃO DA REALIDADE PORTUGUESA – Procuram aqui identificar-se as principais dimensões e factores críticos que no contexto português condicionam, ou até impedem, o bom desenvolvimento duma mudança sustentada na área da saúde, discutindo-se o papel da contratualização na nova administração pública da saúde, continuando a assumir-se que é missão dessa Administração Pública existir onde não existe mercado, entendido como iniciativas particulares lucrativas, para responder com suficiente consistência e abrangência às 77 Segundo a recomendação de OECD (1999 b), dever-se-á levar em consideração o sublinhado por Jonathan Boston, “The New Contractualism in New Zealand: Chief Executive Desempenho Agreements”, in Davis Glyn, Bárbara Sullivan et Anna Yeatman (1997), éditeurs, The New Contractualism, Macmillan Education Austrália, que refere “l’importance d’un environnement politique et stratégique relativement stable, exempt de changements fréquents de gouvernement et de ministres, afin que les parties au contrat aient la possibilité de colaborer pendant une certaine périod de temps, afin d’atteindre les objectifs visés et de réduire au minimum les coûts de transaction associés à l’établissement de nouveaux contrats et de nouvelles relations.” 250 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados necessidades, colectivamente expressas, de sobrevivência e qualidade de vida dos cidadãos. 2.1 IDENTIFICAÇÃO DOS FACTORES CRÍTICOS QUE NO CONTEXTO PORTUGUÊS CONDICIONAM A IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS DE MUDANÇA NO SECTOR A partir da investigação desenvolvida conseguem identificar-se um conjunto de factores críticos que ajudam a caracterizar e diferenciar as diferentes dimensões em análise (Figura 31) e que a seguir se apresentam. Dimensões Factores vitais/decisivos/críticos Viabilidade da contratualização Política de saúde Diferenciação de funções (planeamento, financiamento, prestação e regulação) Sustentabilidade financeira Recursos humanos (competências de gestão) Regulação e legislação Outros Negociação Operacionalização factores com os Actores da mudança contextuais Sistema de informação e sua disponibilização Apelo à participação com comunicação dos objectivos e mudanças esperadas Liderança para a mudança Planear a mudança Monitorização e acompanhamento Organizações profissionais Fornecedores e outros actores sociais Comunicação social Sociedade civil e poder local Valores culturais e sociais Influências externas Manutenção das actividades de rotina Figura 31 – Dimensões e factores críticos resultantes do modelo de investigação Estes factores são, no entender dos peritos envolvidos na investigação, críticos para a mudança em saúde e decisivos para continuar a garantir cuidados de saúde de qualidade à população. Embora a maioria destes factores nos pareçam de fácil resolução, o que é verdade é que para os contornar exige-se vontade política (não governar em função de calendários eleitorais, mas sim em função daqueles que elegem), transparência de métodos e processos (o que nem sempre acontece e que na actual discussão sobre casos mediáticos nos leva a acreditar que será difícil de atingir), empenhamento dos cidadãos (o que obriga à organização da sociedade civil e dos grupos de cidadãos, doentes ou Tese 251 Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados familiares), exigindo aquilo a que têm direito e organização por parte dos profissionais (impondo trabalhar com qualidade). 2.2 COMO PODE A CONTRATUALIZAÇÃO CONTRIBUIR PARA O PROCESSO DE MUDANÇA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DA SAÚDE Procurando aprofundar mais a investigação e com o objectivo de tornar mais clara e transparente a conclusão deste trabalho e de discutir os factores críticos que condicionam o processo de modernização do sistema de saúde, solicitou-se a peritos externos ao sistema, que pelas suas posições políticas, investigação, aprofundamento e estudo se têm preocupado com o funcionamento e desempenho da administração pública da saúde em Portugal e, ainda, que pelas suas posições críticas têm mostrado a importância destas temáticas, que dessem o seu depoimento sobre a seguinte questão: A administração pública parece tender a não definir claramente a sua função principal: planeamento estratégico, planeamento de infra-estruturas dos serviços de saúde e desenvolvimento de recursos, apoio à inovação, desenvolvimento da qualidade e acções de formação internas, financiamento e contratualização de prestação de serviços. Ao desenvolver uma “nova administração pública”, mais focalizada nos resultados do que nos recursos e mais sensível ao cliente-cidadão, quais serão, em sua opinião, as principais vantagens na adopção da “contratualização por desempenho”? Os depoimentos foram que: O processo de reforma da administração pública permite e necessita de várias formas complementares de administração do serviço público. A contratualização é uma delas, tal como são, por exemplo, o desenvolvimento de agências administrativas independentes, normalmente denominadas institutos públicos, as instituições de parcerias, a subcontratação nas actividades e nos fornecedores. Considero, no entanto, que os processos de reformas devem ser equacionados, no contexto do serviço e do interesse público, segundo algumas ideias e princípios orientadores. Certamente que é difícil e problemático definir o que é o serviço público, mas esse é um dos parâmetros necessários às reformas da administração. Os processos de reforma, neste caso específico da contratualização serão adequados desde que evidenciem uma diferença de valor para o cidadão contribuinte. Por um lado os ganhos no equilíbrio custos/benefícios, caso o modelo de organização proposto responda a esse objectivo, devem corresponder a ganhos na qualidade dos serviços e na acessibilidade dos seus utilizadores. O equilíbrio entre o binómio eficiência-eficácia e a equidade nas prestações sociais, reguladas pela entidade pública, está na base da aceitação de modelos diferenciados de administração do serviço e do interesse público. Por outro lado, as novas formas de prestação dos serviços, reguladas indirectamente pela autoridade pública, não serão pertinentes sem a necessária progressão nos investimentos clínicos, na qualificação dos agentes envolvidos e no aumento da rapidez de circulação da informação integrada, ou seja, ganhos de simplificação administrativa e de qualidade dos serviços prestados aos cidadãos. Nesse sentido, a separação de funções – prestação, financiamento e regulação - e a prestação em modelos diferenciados – contratualização, subcontratação, parcerias – afiguram-se como modelos de modernização flexíveis para a modernização da administração pública e, sobretudo, para contrariar o actual modelo baseado no desequilíbrio parcial entre custo/benefício e equidade de prestação de serviços. Assinale-se, porém, que a introdução de separação das funções, nos modelos de gestão de produtos e a introdução de concorrência na prestação de serviços não pode estar apenas condicionada pela lógica do mercado e do orçamento, nem distanciada da capacidade aquisitiva dos cidadãos/contribuintes, mas estreitamente articulada à lógica do serviço público e ao contexto da redistribuição equitativa dos contributos e dos benefícios. 252 Tese Capítulo VIII: Validade do modelo conceptual proposto à luz da discussão dos resultados Com base nessas opiniões procuraram rever-se os pontos mais controversos ou menos sólidos dos resultados obtidos e das conclusões que a partir daí se identificaram, levando em linha de conta os desenvolvimentos da actual governação em Portugal e os desenvolvimentos destas mesmas áreas ao nível europeu. Para estes últimos contributos não se procedeu a qualquer outro tratamento específico ou análise metodológica, a não ser a que resulta da sua incorporação nesta parte da discussão dos resultados e através dos testemunhos destes peritos procuraram aclarar-se alguns pontos, nomeadamente os que se referem à distinção dos contornos do processo de contratualização no sector público e no sector privado, contribuindo para uma maior e melhor clarificação do tema. Com os contributos e saberes destes peritos e profissionais que concorreram para a investigação, procurou-se ainda abrir uma janela sobre as principais linhas de desenvolvimento do sistema de saúde português. Tese 253 Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos CAPÍTULO IX: CONCLUSÕES E PISTAS PARA FUTUROS PROJECTOS 1. CONCLUSÕES A implementação da contratualização não requer a existência de uma total separação ou de competição entre prestadores e financiadores A competição entre as organizações poderá introduzir processos desadequados na prestação de cuidados de saúde, se não forem acauteladas questões essenciais como a regulação e a qualidade. Uma das formas de se poder garantir que os cuidados prestados são adequados é através da implementação de um sistema de qualidade que seja reconhecido e integrado, pois só desta forma se clarificarão os processos de trabalho adoptados por cada organização, de maneira a responder com um serviço que possa satisfazer os desejos explícitos ou implícitos dos seus consumidores ou utilizadores, dentro de determinados pressupostos económicos. Mas a contratualização também é possível em sistemas integrados e sem a introdução de mecanismos de competição (uma contratualização menos formal), conseguindo obter-se resultados satisfatórios através da diferenciação de funções, introduzindo-se progressivamente a desejável separação entre o financiamento e a prestação (Savas et al, 1995 e 1999). Ou seja, a contratualização pode funcionar bem em sistemas integrados, à semelhança do que se passou no Reino Unido depois da reforma Blair (a reforma Thatcher tinha introduzido o mercado interno, com contratos duros entre prestadores – clínicos gerais e hospitais), em que a contratualização actuou como planeamento conjunto, assente em contratos negociados entre a entidade responsável pelo planeamento e os prestadores, mas onde, simultaneamente, tinha vindo a ser estabelecida uma reformulação profunda no NHS, com a introdução de critérios de eficiência, de responsabilização e qualidade, alterações ao nível dos recursos humanos, das modalidades de gestão e do rigor e transparência do sistema de informação. A bibliografia e os peritos envolvidos no trabalho de investigação apontam para a existência de grandes vantagens na implementação gradualista dos mecanismos de contratualização (pressupõe uma mudança de paradigma – duma cultura paternalista para uma cultura assente na contratualização), assente num processo de negociação entre uma grande diversidade de actores, num sector de grande complexidade e delicadeza, como é o da saúde. A prestação de cuidados de saúde com um melhor custo benefício parece constituir um dos principais objectivos da contratualização e o benchmarking de processos e de resultados deve vir a ser facilitado pelo crescente desenvolvimento dos sistemas de informação. Como a actual linha de mudança do sistema irá conduzir necessariamente à competitividade entre serviços públicos e privados, muito provavelmente Tese 255 Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos manifestar-se-ão sérias desvantagens para os primeiros, se não se verificar urgentemente uma renovação profunda do SNS em Portugal. A contratualização com diferenciação de funções pode ser usada num modelo integrado visando uma aproximação gradual à separação entre prestação e financiamento Se for decidido utilizar a contratualização para a introdução de uma clara diferenciação entre prestação e financiamento, deverá ser levado em linha de conta que existem diferentes e múltiplos factores que a condicionam, tais como: a sustentabilidade do sistema, a qualidade da informação disponível para apoiar o processo de negociação, monitorização e avaliação e o desenvolvimento dos recursos humanos e das profissões de saúde. Num sistema integrado pode igualmente funcionar uma modalidade de contratualização menos formal, que pode ser a base para o desenvolvimento da organização do sistema com introdução de competição e regulação adequadas. Por exemplo, no Reino Unido, durante a introdução da diferenciação entre prestadores e financiadores, as autoridades de saúde ao nível distrital usaram a contratualização não somente na distribuição de recursos para os hospitais, que entretanto tinham sido organizados em trust, mas também como impulso para a gestão descentralizada nos serviços e organizações de saúde, utilizando a contratualização interna com o rigor e responsabilização que a mesma introduz. Igual procedimento foi seguido em Espanha, onde foram criadas as denominadas clínicas, correspondentes aos nossos CRI. Este processo representou nestes países uma valiosa oportunidade para a introdução de mecanismos sérios de eficiência e de avaliação das organizações. Em Portugal, a contratualização também veio permitir utilizar critérios de avaliação e responsabilização, mas não passou duma fase embrionária, dado que o processo foi parado e não foi ainda retomado. De acordo com as últimas reuniões com os prestadores, não se prevê uma retoma consistente do processo mas somente a prática da discussão da produção, baseada em alguns indicadores de eficiência e sem qualquer relação séria com a distribuição de recursos, o que fará com que o processo, mais uma vez, não tenha condições de credibilização. Se existir uma clara política de saúde a contratualização deverá estar ligada e ser parte integrante dessa mesma política A contratualização pode contribuir de uma forma adequada para a correcção das políticas de saúde, embora isso nem sempre tenha acontecido nos países onde tem vindo a ser implementada. Por exemplo, em Espanha a contratualização não está ligada aos objectivos da política de saúde e parece não existir intenção de a usar como tal, mas é usada na distribuição de recursos, dado que nos anos oitenta foi experimentada a competição entre prestadores e financiadores, como forma de redução de custos e de introdução de maior eficiência, sendo que a afectação de recursos está, normalmente, assente em mecanismos contratuais. No RU, a contratualização é utilizada para pressionar a obtenção das metas em saúde, estrategicamente definidas e quando um país decide utilizar os mecanismos da 256 Tese Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos contratualização para implementação das suas políticas de saúde, torna-se necessária a definição prévia dos objectivos e metas a atingir. Esta forma apresenta mais valias significativas para as autoridades de saúde prepararem a correcta e adequada separação entre prestadores e financiadores e introduzirem mecanismos sérios e rigorosos de melhoria dos resultados em saúde. Se os países utilizarem a contratualização como um instrumento para a implementação das suas políticas de saúde são capazes de aprenderem as adequadas regras do jogo, que lhes permitem um desenvolvimento harmonioso dos recursos humanos e possibilitam a consolidação das mais correctas linhas de actuação para o sector. A contratualização deve ser considerada como parte da gestão global para a mudança As lições que se podem retirar das experiências inglesa e espanhola dizem-nos que se a contratualização for desenvolvida os actores devem considerar este mecanismo simplesmente como uma parte do processo de reforma do sistema de saúde. Nos processos de mudança dos sistemas de saúde é fundamental um envolvimento de todas as partes interessadas, o que é particularmente crucial em sistemas pluralistas. Como Walt et al (1994) discutiram e observaram no RU e na Alemanha, os actores são o elemento mais importante do processo de qualquer mudança. Além disso as estratégias não deverão ser centradas somente na contratualização mas considerando-a como parte da gestão global do processo de mudança. Pela compreensão da contratualização como uma das componentes do processo dinâmico da mudança, os actores deveriam ser encorajados a focalizarem-se mais na implementação deste processo do que no conteúdo dos contratos. Embora ambos os aspectos sejam importantes, afigura-se que a implementação daquele instrumento tende a ser baseada no conteúdo, negligenciando o processo de mudança. Do ponto de vista da expectativa criada pelo processo de reforma, a contratualização inicial é entendida como parte dum largo processo de mudança, tornando-se claro que a implementação da contratualização não é um problema estritamente técnico. Pode também requerer mudanças culturais (tal como o envolvimento da comunidade nos processos de decisão) Alguns países, nomeadamente a Alemanha, têm desenvolvido estratégias de comunicação visando fomentar políticas públicas para toda a população, embora nem sempre tenham procurado envolver os cidadãos no processo de decisão mas apenas influenciar a opinião pública. Antes de relançar a contratualização é importante considerar os factores que condicionam a sua concretização O principal factor a analisar é a questão da sustentabilidade do processo e do sistema. Com efeito, a contratualização pode ser considerada mais dispendiosa que a gestão centralizada de comando e controlo. Isto verifica-se porque no dia a dia da contratualização existem mais transacções que num sistema de comando e controlo. Os custos totais de transacção podem ser substanciais e afectar a sua viabilidade. Complementarmente, mesmo que se verifiquem ganhos de eficiência, os custos surgem primeiro que aqueles. A experiência no Reino Unido mostrou que o crescimento da Tese 257 Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos despesa no NHS, desde a década de sessenta, acompanhou as reformas no mercado interno (Glennerster et al, 1994 em Savas, 2000). Este factor não é o único determinante da sua concretização. Aquele estudo enfatizou a necessidade de considerar outros factores organizacionais e gestionários quando um país decide usar os mecanismos de contratualização. No RU tem-se observado que a ausência de competências nesta área e de recursos humanos especializados é uma dificuldade constante. Durante o período de transição devem também ser disponibilizados incentivos para a actualização dos recursos humanos, tal como para o aumento de competências. Mas se as diferenças nos incentivos ou outros factores provocarem uma situação em que existam grandes diferenciais entre os intervenientes no processo, no que se refere ao conhecimento e competências, esta assimetria pode provocar comportamentos oportunistas que comprometem os benefícios da contratualização. A contratualização não necessita, inicialmente, de ser enquadrada e reforçada por um quadro legislativo para ser efectiva É essencial o claro entendimento e implementação da diferenciação de funções entre prestadores e financiadores, dado que isto constitui a base da negociação contratual, mas a diferenciação de funções deverá ser acompanhada de mudanças na matriz dos dispositivos legais. A necessidade de maior ou menor complexidade naquela matriz depende naturalmente do país em análise. Há países que optaram por uma matriz legislativa detalhada e forte, mas o RU por exemplo, favoreceu o desenvolvimento de uma matriz ligeira, em que os contratos não estão legalmente reforçados. Contudo, em todos os países foi necessária legislação específica para o seu desenvolvimento, mas principalmente para a sua consolidação. Em Portugal, a legislação vigente conjugada com o despacho de criação das agências e mais tarde com o despacho de criação do respectivo conselho nacional, constituía uma matriz legislativa simplificada que permitia que este processo fosse desenvolvido sem sobressaltos, mas ficou-se a aguardar que, por via de um qualquer decreto-lei, a distribuição dos recursos passasse a ser da competência de um nível de decisão mais operacional e mais próximo das instituições. Como é entendido que quem distribui o dinheiro tem o poder, não foi possível fazer com que a distribuição fosse transferida para aqueles que procediam à negociação. A participação dos cidadãos no processo de contratualização pode ser fortalecida A responsabilização dos profissionais e das organizações de saúde, bem como a satisfação dos cidadãos com os cuidados de saúde prestados, são objectivos das políticas de saúde na maioria dos países, mas é difícil encontrar mecanismos efectivos através dos quais os cidadãos possam influenciar a prestação dos serviços e a qualidade dos cuidados. 258 Tese Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos A adopção, por alguns países, de processos de comunicação que se espera possam dar voz ao cidadão e permitam que estes possam, com as suas opiniões, influenciar decisivamente a escolha do caminho em que se desenvolvem e operam os serviços de saúde, pode ser o princípio para uma mudança de paradigma - de um modelo centrado nos profissionais para um modelo centrado nos cidadãos, aqueles a quem os serviços se dirigem. A contratualização pode contribuir para criar regras que favoreçam uma participação efectiva dos cidadãos na prestação dos cuidados de saúde, mas alguns especialistas que participaram na investigação acreditam que o desenvolvimento e proliferação dos meios de comunicação e informação, bem como o mundo global em que nos movemos, são os maiores responsáveis pela alteração nos comportamentos e na participação dos cidadãos na área da saúde. Convém, no entanto, referir que a contratualização poderá futuramente garantir aos doentes a escolha entre prestadores e a possibilidade de decidirem sobre formas alternativas de tratamento. Os cidadãos poderão igualmente participar em órgãos locais ou regionais que cooperem no acompanhamento e monitorização dos cuidados de saúde, como era o caso das comissões de acompanhamento que funcionaram em algumas das unidades de saúde na região de Lisboa e Vale do Tejo. Mas a contratualização é somente um instrumento na promoção das políticas de saúde e se a implementação da contratualização não for seguida de medidas que promovam o desenvolvimento de canais que permitam aos cidadãos expressar os seus pontos de vista e darem as suas opiniões, a participação efectiva destes nunca poderá ser melhorada. A contratualização pode potenciar a avaliação de necessidades e a definição de prioridades O volume crescente dos meios afectos à área da saúde tornam imprescindível a aplicação de metodologias que garantam equidade na distribuição dos recursos às instituições. Embora a partir de 1981 tenha sido procurado um modelo de financiamento para os hospitais com base na produção e em custos unitários médios directos, que substituísse o esquema vigente na década de setenta, eminentemente retrospectivo, com base na despesa e tenham sido introduzidas, a partir de 1986, as bases para um sistema de financiamento de tipo prospectivo, através dos Grupos de Diagnóstico Homogéneos (GDH), só dez anos mais tarde, em 1996, com a consolidação desse modelo foi possível começar a aplicar com algum rigor o processo de distribuição de recursos para os hospitais. Mas a nível dos cuidados primários e no contexto de um SNS regionalizado, só a partir de 1998 foram definidos alguns critérios para financiamento das ARS numa base capitacional ajustada pelas especificidades das respectivas populações. Esta nova metodologia de financiamento lançaria as bases para a consolidação de mecanismos de pagamento prospectivo e de negociação, que encontram a sua extensão natural na figura de contratualização, expressa nas negociações entre as Agências de Contratualização das ARS e as instituições da respectiva região. Contudo, o divórcio entre as Agências e os departamentos centrais não permitiram uma verdadeira inclusão Tese 259 Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos desta metodologia no processo de contratualização, contribuindo igualmente para a descredibilização do processo. Do modelo público integrado e central que caracterizou o SNS do início da década de oitenta, procurou-se evoluir para um modelo público contratual assente na partilha de responsabilidade e informação entre a administração central e as administrações regionais, em que competiria à primeira a definição das grandes linhas que garantissem a execução equilibrada da política de saúde nacional e às segundas a negociação dos orçamentos-programa das instituições no quadro de uma necessária ligação entre o orçamento, os recursos disponíveis e a produção. A contratualização pode oferecer poucos benefícios se a capacidade do sistema não for aumentada Segundo a opinião dos peritos a contratualização não influencia directamente o sistema de saúde. Se o país decide utilizar o mecanismo da contratualização, é necessário investir para incrementar a capacidade do sistema antes que a contratualização possa trazer alguns dos benefícios esperados. As pessoas envolvidas no processo entendem que a utilização da contratualização num contexto de integração de cuidados de saúde representa a maior mudança. A nova estrutura organizacional muda com as novas regras e funções e esta capacidade de gestão ligada a estas mudanças necessita ser incrementada. A capacidade institucional também necessita ser desenvolvida. A legislação existente necessita ser revista e nova legislação desenvolvida. É ainda necessário construir ou melhorar os sistemas de informação, para que lidem com a grande complexidade das interacções associadas à contratualização. O diferencial entre a capacidade de recolha e o processamento da informação é talvez o maior problema na fase inicial do processo e implementação da mudança. Portugal está numa fase de desenvolvimento em que os especialistas entendem que a implementação da contratualização poderá trazer benefícios significativos ao sistema, dado que tudo ou quase tudo está por fazer e, sobretudo, estamos perante um sistema demasiado centrado na aglomeração de todas as funções, sem qualquer separação (prestação, financiamento, regulação, etc.). Urge fazer alguma coisa para melhorar o sistema, produzir mais e com maior qualidade. 2. OBSERVAÇÕES FINAIS A diferenciação de funções e a introdução da contratualização são peças fundamentais para o processo de mudança na administração da saúde A contratualização poderia ser inserida no actual contexto do sistema, bem como a diferenciação das funções de financiamento, prestação e planeamento, mas sem a introdução de competição, podendo futuramente vir a introduzir-se esse mecanismo em algumas áreas onde a mesma poderá melhorar a produtividade, dado que a falta de 260 Tese Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos cobertura à população, expressa nas listas de espera e as dificuldades sociais e económicas do país não parecem aconselhar a existência de competição, potencialmente geradora de desequilíbrios e marginalizações em algumas áreas da prestação. Assim, a contratualização melhoraria o desempenho, a eficiência e a equidade na distribuição de recursos, potenciando a mudança gradual na administração da saúde. A contratualização deve ser implementada de forma generalizada a todo o sistema de saúde A contratualização não poderá nem deverá ser implementada somente em algumas regiões ou para alguns tipos de serviços, dado que a distribuição de recursos deve ser pensada de forma global, em base capitacional e procurando de forma equilibrada responder a todas as necessidades. Caso se opte por introduzir rigor só a uma parte do sistema, corre-se o risco de ter grandes e graves desequilíbrios entre os serviços e de potenciar as iniquidades, facilitando a rejeição de casos mais complicados e mais caros e promovendo a existência de respostas diferenciadas para os que podem e os que não podem pagar, criando maior injustiça social do que a que decorre actualmente das listas de espera existentes. É fundamental rever a organização de serviços e unidades de saúde de forma a viabilizar a implementação do processo de mudança É fundamental alterar a organização de serviços e unidades de saúde e se tal não acontecer a modernização da administração de saúde estará posta em causa. As estruturas de saúde não podem continuar a ser geridas sem responsabilização, nem avaliação, mas as regras ainda vigentes, nomeadamente na contratação de pessoal, nas aquisições de produtos e serviços e nas decisões de investimento no sector, impedem qualquer gestor de poder garantir resultados, quer eles sejam ou não negociados. É igualmente impossível gerir sem descentralizar a decisão e responsabilizar igualmente os níveis intermédios de gestão. A escassez de recursos leva necessariamente à necessidade de priorização de cuidados a prestar e de investimentos a realizar e por isso é urgente envolver todos os profissionais, motivando-os e partilhando com eles a decisão. A formação e treino dos recursos humanos são essenciais na implementação do processo de contratualização O desenvolvimento e a formação dos recursos humanos são um dos factores críticos para a implementação da contratualização, mas também para qualquer tipo de mudança que queiramos introduzir, dado que os profissionais de saúde são superiormente preparados para o desempenho técnico nas suas áreas mas desconhecem, quase em absoluto, as elementares regras de gestão. Tese 261 Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos Colhendo dos restantes países, que já implementaram ou estão em fase de implementação de reformas no sector da saúde, os ensinamentos possíveis para adequar à realidade do nosso país, parece fundamental associar a formação indispensável à obtenção de competências e treino nas áreas fundamentais e indispensáveis à mudança e reforma do sistema, nomeadamente: gestão de serviços de saúde, epidemiologia, saúde pública, economia da saúde e técnicas de negociação. Participação e empowerment do cidadão são fundamentais As propostas de mudança não explicitam que mecanismos serão implementados para levar os cidadãos a expressar as suas perspectivas e participar no processo de inovação. Contudo, não existe a tradição destes expressarem as suas opiniões. Assim, sugere-se que formas mais específicas de participação sejam desenvolvidas. Da experiência de participação no Reino Unido e em outros países pode concluir-se que representantes eleitos, comissões de saúde e outros grupos, tendem a ser mais respeitados e aceites pela população. A formalização da participação dos cidadãos poderá aumentar a legitimidade ao nível necessário de implementação da reforma do sistema e, a longo prazo, é esperado que o interesse e participação também aumentem. A contratualização poderá ajudar no desenvolvimento de mecanismos de participação e também no processo de aprendizagem que é necessário fazer. A contratualização é um excelente mecanismo que o governo poderá utilizar para a racionalização do sistema O uso de mecanismos de contratualização pode potenciar os ganhos em saúde, já que o processo de contratualização poderá ajudar os profissionais a desenvolverem com maior rigor o planeamento dos recursos e das actividades a desenvolver. Através dum melhor conhecimento do que o sistema produz e da capacidade instalada nos diferentes serviços, o Governo poderá com rigor decidir sobre a eventual racionalização do sistema, contribuindo dessa forma para uma melhor utilização dos recursos, para uma resposta mais equitativa aos cidadãos e para um eventual abrandamento do crescimento exponencial das despesas em saúde. É preciso reforçar a capacidade negocial do Estado e aprender a contar com a capacidade estratégica dos actores do sistema Os actores são uma peça fundamental em qualquer sistema. São eles que condicionam ou impedem as reformas. Mas é com eles que elas têm de ser feitas. Em Portugal, o Estado apresenta uma fraca capacidade negocial e no sector da saúde assiste-se a uma capturação do sistema pelos principais actores (profissionais, prestadores e fornecedores). Por vezes desvaloriza-se a capacidade estratégica desses actores e o Estado, talvez devido aos curtos períodos de governação (quatro anos, matizados de períodos eleitorais 262 Tese Capítulo IX: Conclusões e pistas para futuros projectos e políticas eleitoralistas), ou à ausência de pactos de estabilidade para as áreas estruturantes do sistema político, não leva muito a sério esse aprisionamento em que se move, o que o impede de desenvolver estratégias sólidas de negociação. É preciso reforçar essa capacidade negocial do Estado, que de forma directa ou indirecta contratualize com os diferentes actores as respostas adequadas para os cidadãos que representa. 3. LINHAS DE INVESTIGAÇÃO FUTURAS A contratualização na saúde é um processo dinâmico e complexo que necessita estar em constante análise, carecendo de grande estudo e aprofundamento, dado o carácter ainda embrionário de implementação em que se encontra e a fraca adesão a modelos rigorosos de avaliação e responsabilização. Assim, urge investigar e reformular conceitos, modelos e ideias pensadas e desenvolvidas até ao momento. Com o objectivo de enriquecer a análise efectuada, seria desejável que, em desenvolvimentos futuros, se alargasse o estudo a uma amostra mais abrangente, que envolvesse também os profissionais directos, para se verificar até que ponto os resultados obtidos confirmariam as opiniões expressas pelos peritos. Uma parte do estudo efectuado não foi totalmente conclusiva por não terem sido levadas em frente as medidas que consolidariam o processo de contratualização, embora tenha sido entretanto retomado parcialmente o processo, mas não sendo ainda claro o modelo que é pretendido. Seria interessante proceder a uma avaliação dos resultados das alterações entretanto introduzidas, de forma a colher a maior informação das experiências efectuadas. Acresce que a análise efectuada não pôde abranger todas as variáveis, pelo que deverá constituir objecto de estudos posteriores, nomeadamente o desenvolvimento de um modelo que permita avaliar as necessidades da população, conjugadas com objectivos de equidade, eficiência, efectividade, acessibilidade e qualidade e possibilite uma mais correcta afectação dos recursos. O desenvolvimento de reformas adaptadas à realidade do nosso país é, sem dúvida, um desafio interessante para os estudiosos desta área continuarem a investigar, até se encontrarem soluções que satisfaçam melhor os objectivos acima referidos, permitindo, a custos suportáveis, a oferta de cuidados de saúde de qualidade aos portugueses. Finalmente, é da maior relevância o aprofundamento do estudo e da operacionalização das alternativas propostas, como linha de investigação futura, porquanto não cabe no âmbito deste trabalho desenvolver e aprofundar as implicações que a adopção de uma ou de outra política teriam a nível dos resultados em saúde e das consequentes reformas a introduzir. Tese 263 Glossário GLOSSÁRIO - Agência (ver enquadramento em: Reformas da administração pública da saúde, Contratualização, Mercado da Saúde): em Portugal, pela Resolução do Conselho de Ministros, n.º 110/96, de 3 de Julho, foi criada a Função Agência, que deu origem à Agência de Acompanhamento (Despacho Normativo n.º 46/97, de 11 de Julho de 1997) mais tarde denominada Agência de Contratualização (Despacho Normativo n.º 61/99, de 12 de Novembro), que constituíu uma instância de intervenção no sistema, na qual estão representados o cidadão e a administração e onde se congrega a informação necessária visando garantir a satisfação das necessidades e das preferências dos utentes. A sua missão é explicitar as necessidades de saúde e defender os interesses dos cidadãos e da sociedade com vista a assegurar a melhor utilização dos recursos públicos para a saúde e a máxima eficiência e equidade nos cuidados de saúde a prestar. São funções da Agência, nomeadamente: proceder à contratualização dos cuidados em saúde (após análise e proposta de distribuição de recursos), monitorizar e avaliar o desempenho das instituições (no que se refere aos cuidados contratualizados) e avaliar os ganhos em saúde das populações. - Agência de Acompanhamento ou de Contratualização: ver Agência. - Agente principal: o Estado (principal) contrata um terceiro (agente) para realizar uma tarefa de relevância pública em seu nome (distribuição de recursos). Esta teoria foi defendida sobretudo pelos responsáveis pela reforma administrativa do Estado, que partem da orientação de que a gestão pública deve responsabilizar-se mais directamente pela função de principal (que financia e controla) e menos pela função de agente (que faz). A teoria do agente principal realça o significado do controlo sobre o desempenho e a centralidade da informação nas relações contratuais. - Análise SWOT: as incertezas que envolvem o processo de formulação da estratégia torna esta, por vezes, uma tarefa simultaneamente incómoda e desafiante para os decisores. Há, no entanto, uma abordagem sistémica, de entre outras possíveis, que pode ajudar-nos a lidar com a ambiguidade e as incertezas do problema da saúde em Portugal, tendo por base uma perspectiva estritamente organizacional. Esta abordagem é o modelo de análise, designado por Análise SWOT, criado em 1951 por Kenneth Andrews e Roland Christensen, professores da Harvard Business School. O objectivo desta análise visa analisar as capacidades internas da organização e capacitar os decisores a formular as metas e os objectivos com fins apropriados às exigências do meio envolvente em que a organização existe. A análise SWOT examina a organização segundo quatro variáveis: (1) strengths (forças) e (2) weakness (fraquezas), referentes à organização (análise interna); (3) opportunities (oportunidades) e (4) threats (ameaças) para a organização (existentes no meio envolvente). - Benchmarking: é, segundo Watson (1994), um método estruturado de aprendizagem de outras organizações e a aplicação desse conhecimento na melhoria dos processos de trabalho. Segundo Spendolini (2001), é um processo sistemático e contínuo para a avaliação de produtos, serviços e processos de trabalho de organizações, as quais são Tese 265 Glossário reconhecidas como as melhores práticas implementadas, com o objectivo de melhoria de todo o sistema organizacional. Pode também ser visto como um processo de pesquisa que permite às organizações realizar comparações de processos e práticas, organização-a-organização, para identificar o melhor do melhor e alcançar um nível de superioridade ou de vantagem competitiva. Ao contrário de outras ferramentas de gestão, o Benchmarking estimula as organizações a procurar, além das suas próprias operações ou actividades, factores chave que influenciam a produtividade e os resultados. Esta filosofia pode ser aplicada a qualquer função (vendas, distribuição, investigação e desenvolvimento, engenharia, recursos humanos), embora produza geralmente melhores resultados quando aplicada à organização como um todo. - Contratualização: é um dos mecanismos de mercados que tem sido introduzido no âmbito das reformas dos sistemas de saúde na Europa, através do recurso a formas de contratualização entre os vários actores, nomeadamente os prestadores e os pagadores. Permite a delegação de responsabilidades e dá aos gestores colocados a nível dos serviços o poder para disporem dos recursos de forma a melhor servirem a população. O contrato incorpora a definição do volume de cuidados a fornecer mas também indicadores de qualidade e desempenho. A maior limitação à aplicação deste sistema de avaliação reside na falta de dados disponíveis. Segundo WHO (2003) “a contratualização não é um fim em si mesma, mas um instrumento”. Com a contratualização pretende-se dar início a uma mudança de paradigma – deixar de distribuir os recursos em função das necessidades apresentadas pelos serviços para passar a distribuí-los na base de contratos rigorosos que traduzam o pagamento adequado dos serviços prestados em função das necessidades em saúde de uma comunidade tipo, reintroduzindo ao mesmo tempo o cidadão no sistema e fazendo-o participar na decisão e avaliação. No contexto português, com este mecanismo criamse as condições para se discutirem os factores críticos que têm dificultado, ou até mesmo impedido, a introdução das reformas estruturantes do sistema (ver também Agência, Mercado da saúde e Reformas da administração pública da saúde). - Empoderamento (empowerment): obtenção de resultados pessoais ou de grupo, isto é, o desenvolvimento de um conjunto de comportamentos e atitudes que decorrem do exercício de algum tipo de poder (formal ou informal, a um ou mais níveis). Para participar é necessário que o cidadão perceba que detém algum tipo de poder, pois só dessa maneira sente que poderá retirar alguma mais-valia do seu investimento. De uma forma geral, o cidadão individual pode exercer o seu poder recorrendo a processos de tomada de decisão, como a escolha de uma instituição específica ou de um profissional de saúde. Se, simultaneamente, o sistema criar formas de afectar recursos de acordo com as suas preferências, aqueles começam a fazer parte do processo de decisão central, passando a estar dentro do sistema como sujeito activo e não como objecto de prestação de serviços, uma vez que a distribuição de recursos financeiros passará pela análise do comportamento dos clientes do sistema e não só pelos planos dos seus profissionais. Colectivamente, os cidadãos podem desenvolver o mesmo tipo de comportamentos, mas de forma organizada, optando pelo fornecedor de serviços e contratualizando de acordo com os seus interesses específicos. Além disso, podem exercer pressão sobre o sistema, no sentido de satisfazer necessidades especificas, interferindo directamente na sua gestão política. A criação de instituições mediadoras capazes de cumprir uma missão de equilíbrio de poderes surge com pertinência óbvia numa fase inicial, enquanto o poder de decisão final se mantém do lado da administração. Um dos mecanismos a considerar nas formulações políticas 266 Tese Glossário refere-se aos argumentos clássicos sobre a importância de criar “instituições intermédias”, capazes de proteger os indivíduos da exposição directa ao enorme poder do Estado. Exemplo destas organizações, em Portugal, são as actuais Agências de Contratualização de Serviços de Saúde. - Função Agência: ver Agência. - Fundholding: organização em cooperativas dos clínicos gerais do RU para a gestão de um orçamento que tinha como objectivo a aquisição progressiva de serviços hospitalares, medicamentos e incentivos aos profissionais. Os recursos crescentemente transferidos foram sendo deduzidos aos recursos controlados pelas autoridades sanitárias distritais. - Gatekeepers: posição fortalecida dos clínicos gerais como porta de entrada no sistema, responsável pela referenciação para o nível secundário ou especializado quando não for o caso de emergência. - General Practitioners (GP): clínicos gerais no NHS, que asseguram os cuidados de saúde primários, a quem são garantidos recursos para a aquisição de cuidados secundários ou terciários para os utentes, medida que esteve na origem do mercado interno (internal market) no seio do sector da saúde - INSALUD (Instituto Nacional de la Salud): ramo de saúde do sistema de segurança social de Espanha, integrando o dispositivo público para os cuidados primários e uma rede de hospitais públicos; associava, de uma forma bastante complexa, o financiamento público com o financiamento privado e prestações, igualmente pelo sector público e privado. - Incentivos competitivos: um dos mecanismos introduzidos nas reformas dos sistemas de saúde europeus, desencadeadas no início da década de noventa, em que a maior pressão foi no sentido de dar um maior relevo ao papel do sector privado e à lógica de mercado no financiamento e prestação de cuidados de saúde. Em teoria económica a palavra “incentivo” significa um estímulo para actuar de uma determinada forma. Um sistema de incentivos é assim um sistema de recompensas. Uma vez que muito do consumo de recursos está relacionado com as decisões que os médicos tomam e que o seu sistema de remuneração é um factor importante nos orçamentos de saúde (menos importante, no entanto, do que os gastos com medicamentos ou as tecnologias), é fundamental conhecer os incentivos, nomeadamente financeiros, que podem afectar o comportamento dos médicos e o consumo de recursos por eles gerado - Internal market: mercado interno no NHS (ver General Practitioners) - Mercado da saúde: não se comporta como os outros mercados - o “cliente” não conhece bem os produtos que quer consumir (a natureza e o tipo de cuidados de saúde que necessita), razão pela qual é levado a expressar as suas necessidades através de um intermediário - o médico – com quem estabelece uma relação de agência. A circunstância de, neste caso, o médico se comportar simultaneamente como decisor e prestador, gera um natural desequilíbrio nas leis que regulam o mercado (ver enquadramento em Reformas da administração pública da saúde e Contratualização). Tese 267 Glossário - Modelo de Bismark: de protecção social, surgido em 1883 na Alemanha, assente na afiliação profissional e financiado pelas quotizações dos salários e dos empregadores, fundou-se no seguro social, na estrutura corporativa e no acesso condicionado pela situação de emprego. Teve como concorrentes os modelos de Beveridge e misto. - Modelo de Beveridge: de protecção social, surgido em 1948 no Reino Unido, baseado num sistema de cobertura universal de serviços públicos financiado pelo Estado (base fiscal), com universalidade de acesso e gratuitidade no atendimento em todos os níveis de prestação. Estabeleceu um padrão organizacional de serviço nacional de saúde tendo como concorrentes os modelos de Bismark e o de mercado ou misto. - Modelo de mercado ou misto: de protecção social, desenvolvido nos EUA, não em termos puros, combina os seguros privados e as prestações sociais públicas para os grupos mais desfavorecidos – organizado a partir da capacidade de compra do seguro de saúde pelos indivíduos e empresas, tem o acesso dependente da capacidade de consumo do cidadão/utilizador. Teve como concorrentes os modelos de Bismark e de Beveridge. - Modelo pós-burocrático: ver Reformas da administração pública da saúde. - Modelos de protecção social: nos finais do século XIX e primeira metade do século XX, desenvolveram-se nos países ocidentais três formas concorrentes – de Bismark, de Beveridge e de mercado ou misto. No final do século XX, estes três modelos apresentam-se fortemente contaminados entre si, pelo que a Organização Mundial de Saúde (OMS), num relatório de Junho de 2000, desenvolve uma nova metodologia de análise e avaliação do desempenho dos sistemas de saúde, visando o grau de realização de três objectivos específicos: (i) promoção da saúde; (ii) respostas às expectativas dos cidadãos em cuidados e, (iii) justiça na contribuição financeira. Nesta formulação, os sistemas de saúde são analisados segundo a capacidade de resposta e de realização dos objectivos traçados por cada país e sobre o grau de eficiência e de desempenho do seu sistema, corrigido por um factor social – a educação. Esta metodologia inovadora procura avaliar o estado de saúde e bem-estar das populações, atribuível ao grau de desempenho dos sistemas de saúde - Necessidades em saúde: os diferentes tipos que devemos considerar são: (i) necessidades sentidas, que podem ser expressas e não expressas; (ii) necessidades expressas, conhecidas através da procura dos serviços; (iii) necessidades normativas, definidas por líderes e peritos e, (iv) necessidades satisfeitas, conhecidas através da utilização dos serviços. - New public management: ver Reformas da administração pública da saúde. - Outsourcing (subcontratação): é entendido como o conjunto de actividades que podem ser executadas por terceiros sem pôr em causa o objectivo e a missão da organização e que normalmente decorre do facto de ser mais custo efectivo do que a realização pela própria organização. - Participação: processo através do qual “os actores chave (stakeholders) influenciam e partilham o controlo sobre iniciativas de desenvolvimento (decisões e recursos que os afectam). Na área da saúde, a sua importância reside na necessidade estratégica de 268 Tese Glossário medir o desempenho do sistema, constituindo um dos mais importantes elementos de feedback sobre a qualidade dos serviços e o pano de fundo ideal para basear um sistema de diagnóstico de necessidades. Pretende-se assim associar ao controlo político do sistema de saúde uma mediação comunitária, obtendo-se uma aferição efectiva entre as necessidades em cuidados de saúde e a sua prestação, com consequente rentabilização da produção, tanto a um nível qualitativo como quantitativo. No contexto legislativo português, a participação dos cidadãos está prevista a vários níveis da hierarquia do SNS, assumindo, no entanto, um carácter meramente consultivo, ou seja, uma participação não vinculativa. - Quasi-mercado: mercado interno para a prestação de cuidados de saúde adoptado no período da primeira ministro Thatcher, foi responsável por uma verdadeira descentralização e por uma maior autonomia das instituições prestadoras de cuidados. A sua principal característica é a substituição do monopólio de prestação pública Trata-se de evoluir do modelo burocrático weberiano de Administração Pública, para um outro que inclua algumas características das organizações empresariais, sem as procurar reproduzir, já que estamos perante um sector onde as regras da oferta e da procura seguem uma lógica bem mais complexa do que a mera transacção de bens ou serviços pela prestação independente e competitiva em relação ao mercado tradicional. A prática da contratualização criou um novo conjunto de valores e mudou a cultura organizacional na gestão pública, introduziu a cultura da competição, da negociação contratual, do planeamento das actividades e do marketing. Em resumo, o quasi-mercado para a prestação de serviços de protecção social é diferente dos mercados convencionais em três aspectos: (i) pela existência de organizações não lucrativas em competição; (ii) pela centralização do poder de compra numa agência pública ou pela atribuição da decisão do consumo na forma de voucher em vez de dinheiro e, (iii) em muitos casos pela representação dos consumidores por agentes, evitando que os beneficiários actuem directamente no mercado. Ao longo dos últimos quinze anos, entretanto, o new public management sofreu um contínuo processo de transformação. Da inicial perspectiva conservadora, o debate referente ao modelo empresarial tem avançado por terrenos cada vez mais dominados pelas temáticas democráticas. - Reforma: processo de mudança contínuo e sistemático em diferentes áreas, nomeadamente a da saúde. - Reformas da administração pública da saúde, ou modelo pós-burocrático ou new public management: têm vindo a ser postas em prática nos países da OCDE e embora tenham por base as mesmas causas e tenham seguido genericamente o mesmo paradigma nas soluções adoptadas, realizaram-se em quadros de referência muito diferentes mas com diversos pontos comuns, nomeadamente, (i) o controlo das despesas públicas, (ii) a adopção de técnicas e processos de gestão empresarial, (iii) a mudança de estatutos dos funcionários. Embora sejam diversas as técnicas utilizadas no processo da reforma, a mais importante parece ser a clara separação das funções de prestação e de financiamento, cuja repercussão prática está presente nalgumas experiências adoptadas por diferentes países – no Reino Unido com as Executive Agencies, na França com os Centres de Responsabilité e na Holanda e Suécia com as Agencies. O pressuposto básico em que estas experiências assentam é o de que aos gestores cabe gerir com plena autonomia e responsabilização (negociação de orçamentos globais), sendo posteriormente avaliados pelos resultados obtidos. Todo Tese 269 Glossário este processo tem subjacente a necessidade de ser incorporada a visão do cidadão que utiliza os serviços como consumidor final. No caso da Alemanha, o denominado sistema de governo descentralizado permitiu, muito antes do modelo de agência e da new public management, a criação de organizações descentralizadas. Em 1993 foi implementado um programa de reforma nos governos locais – Novo Modelo de Governo (Neues Steuerungsmodell) – que visou introduzir novos conceitos, como a gestão estratégica, os serviços orientados para os clientes, a substituição de normas por contratos, maior flexibilidade na gestão financeira e de recursos humanos e a aproximação da administração aos cidadãos (para o caso Português ver Agência). - Reforma da saúde: iniciativas de inovação no modelo organizacional dos sistemas de saúde verificadas em quase todos os países nos últimos trinta anos. As primeiras reformas da saúde foram estimuladas pelo imperativo macroeconómico de controlo das despesas públicas com a saúde. Nos últimos anos, as inovações têm tido subjacentes aos incentivos à criação de um ambiente institucional favorável à melhoria da eficiência dos prestadores, públicos ou privados. A reforma dos anos noventa trouxe novos desafios para as Agências e organizações públicas, estimulando a prestação de serviços através de mecanismos de Contratualização e introduzindo o Quasi-mercado. A contratualização consubstancia, em bases formais, a separação funcional entre financiamento e prestação directa dos serviços. Um outro aspecto a ser considerado nas experiências das reformas da saúde é o processo de difusão das inovações. A busca de inovação e novas competência tem feito com que soluções organizacionais, experimentadas em contextos institucionais específicos, sejam adaptadas por outros sectores, preocupados com o desempenho da gestão pública ou com o desenho de novas funções para as organizações públicas. - Sistemas de saúde: enquanto parte integrante do sistema social, são o resultado e, simultaneamente, condicionantes das suas envolventes histórica, social, cultural, técnica e política. Distinguem-se entre si principalmente pela quantidade e natureza da sua produção, pela existência de liberdade de escolha, pela equidade no acesso aos cuidados, pelo grau de centralismo da sua organização, pela socialização das suas prestações, pela estrutura da despesas e pela capacidade de se reformarem. Mas o que sobretudo os diferencia é a relação entre os custos dos recursos mobilizados e os resultados de saúde obtidos. O sistema ideal parece ser o existente na Alemanha, Holanda, França ou Japão, por assegurarem à população a universalidade no acesso, além de garantirem a generosidade das prestações presentes no sistema norteamericano (que gera grandes desigualdades e é extremamente caro), sem aumentar os custos. Nos últimos anos os governos da maioria dos países industrializados têm vindo a ser confrontados com graves crises financeiras e com profundos conflitos políticos decorrentes do crescimento da despesa com as funções sociais. De forma a tentar conter o crescimento desta despesa e a tornar os utentes dos serviços públicos mais responsáveis na sua utilização, têm vindo a introduzir algumas regras próprias do sector empresarial nos modelos de distribuição de recursos em vigor nos sistemas públicos. - Single payers: os mecanismos organizacionais predominantes na primeira metade da década de oitenta do século XX geraram um padrão dominante de oferta pública unificada. A autoridade sanitária pública ou o seguro social tornaram-se os compradores únicos (single payers) de serviços hospitalares e básicos, que frequentemente eram de propriedade pública ou contratados. Predominavam relações 270 Tese Glossário assalariadas com os médicos ou o pagamento de honorários, sendo escassos os incentivos à gestão voltada para a qualidade e para o direito do cidadão. Este padrão organizacional viu a sua legitimidade enfraquecida durante as décadas de setenta e oitenta, pelo impacto negativo que gerou sobre as contas nacionais ao “medicalizar” os orçamentos públicos (crescimento excessivo da saúde no conjunto das despesas públicas), pelas mudanças na percepção de necessidades em saúde do utente/cidadão/consumidor, com a crescente procura por atendimento individualizado (atenta aos direitos e às escolhas do doente) e pelo excessivo custo do tratamento intra-hospitalar. O primeiro processo de reforma do sector saúde na Europa desenvolveu-se pela implementação de uma série de directivas macroeconómicas visando essencialmente a redução das despesas sectoriais. - Stakeholders: actores chave ou parceiros que compõem um sistema (por exemplo de saúde), que interagem entre si e o vão modificando (ver Participação). - Subcontratação: ver outsourcing. - Trusts: hospitais do NHS que se agrupam em estruturas públicas independentes, que asseguram a prestação de cuidados secundários e terciários e têm como objectivos principais a melhoria quer da eficiência quer do acesso. Baseado, entre outros, em: European Observatory on Health Care Systems (2003), in www.observatory.dk); OECD, 1992; WHO (1998 a) “Terminology – A glossary of technical terms on the economics and finance of health services”; WHO (2003) e, 2000 a) “Care Systems in Transition (HiT)-template”, European Observatory on Health Care Systems. WHO Regional Office for Europe, Copenhagen. Tese 271 Bibliografia e documentação BIBLIOGRAFIA E DOCUMENTAÇÃO 1. BIBLIOGRAFIA REFERENCIADA NO TEXTO ABEL-SMITH, Brian and MOSSIALOS, Elias (1994), “Cost Containment and Health Care Reform - A study of the European Union”, USA, Published in association with The London School of Economics and Political Science, Jane Lewis Editor. ACSSLVT (2000), “Contratualização com os centros de saúde na Região de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo”, Relatório final do processo de contratualização 2000 com as instituições da ARSLVT, documento de trabalho, Julho de 2000. ALMEIDA, J. F. e PINTO, J. M. (1995), “A Investigação nas Ciências Sociais” Lisboa: Editorial Presença. ALVES, D., CARDOSO, L. e CORREIA, J. M. (1996), “PERLE. Uma medida para um problema”. Gestão Hospitalar, Ano X, n. º 32, Maio. ANDREWS, K. R. (1971), “The Concept of Corporate Strategy”. Howewood, IL: Dow Jones-Irwin. ANSOFF, H. I. 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Diário da República 108/99 (10.05.99): 2421-4, Ministério da Saúde (1999 d). 286 Tese Bibliografia e documentação Decreto-Lei 157/99: Estabelece o regime de criação, organização e funcionamento dos centros de Saúde. Diário da República 108 (Série I-A): 2424-35, Ministério da Saúde (1999 c). Decreto-Lei 284/99: Estabelece o regime aplicável aos centros hospitalares e grupos de hospitais do SNS. Diário da República 172 (Série I-A): 4683-7, Ministério da Saúde (1999 a). Decreto-Lei 285/99: Fixa as condições em que podem ser atribuídos suplementos remuneratórios a funcionários ou agentes do Ministério da Saúde, no âmbito do programa para a promoção do acesso. Diário da República 172 (Série I-A): 4687, Ministério da Saúde (1999 g). Decreto-Lei n.º 374/99, de 18 de Setembro, DR nº 219/99, série I-A. Cria os centros de responsabilidade integrados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Decreto-Lei n.º 54-A/2000, de 7 de Abril, DR nº 83, série I-A, 1º suplemento, Ministério do Planeamento: Define a estrutura orgânica relativa à gestão, acompanhamento, avaliação e controlo da execução do QCA III e das intervenções estruturais comunitárias relativas a Portugal, nos termos do Regulamento (CE) n.º 1260/99, do Conselho, de 21 de Junho. Despacho nº 5804/99 (2ª serie): Programa de Promoção e Acesso, Diário da República 68/99 (22.03.1999): 4165-6, Ministério da Saúde (1999 f). Lei nº. 32-A/2002, de 30 de Dezembro: Grandes Opções do Plano para 2003, Diário da República, I Série A, n.º 301, de 30 de Dezembro Ministério das Finanças (2002),. Lei nº.48/90: Lei de Bases da Saúde, Diário da República, I Série, 195 (1990-08-24) 3 452-3 459, Ministério da Saúde (1990). Portaria 288/99: Cria o Instituto da Qualidade em Saúde. Diário da República 288/99 (27.04.1999): 2258-60, Ministério da Saúde (1999 b). 3- SITES REFERENCIADOS NO TEXTO http://cms.hhs.gov/default.asp?fromhcfadotgov=true http://www.who.int/ www.centre.public.org.uk www.ensp.pt www.dgsaude.pt www.independent.org/tii/forums/010516ipf2.html www.insalud.es www.Janelanaweb.com www.observatory.dk www.oecd.org www.saudexxi.min-saude.pt www.stw.org www.undp.org/hdr2003/ Tese 287 Bibliografia e documentação www.who.org 4. BIBLIOGRAFIA DE APOIO METODOLÓGICO CONSULTADA BARNETT, Elizabeth, ARMSTRONG, Donna L. and CASPER, Michele L. (1997), “Social Class and Premature Mortality among Men: A Method for State-Based Surveillance”, in American Journal of Public Health, September 1997, vol. 87, Nº 9, pp. 1521-1525. COSTA, A. F. (1987), “A Pesquisa de Terreno em Sociologia”, em VALA J. (1987), “Análise de Conteúdo”, in SILVA, A. S. e PINTO, J. M., “Metodologia das Ciências Sociais”, II Edição, Porto, Edições Afrontamento. DELBECK, André L. 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