contato social - Faculdade Guarapuava
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contato social - Faculdade Guarapuava
1 CONTATO SOCIAL REVISTA ELETRÔNICA DO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Nº 1 – ANO 1 - 2011 PESQUISA ACADÊMICA E INTERVENÇÃO SOCIAL 2 UNIÃO DE ENSINO E CULTURA DE GUARAPUAVA - UNIGUA Cleri Becher de Mattos Leão Diretora Presidente Leonardo Becher de Mattos Leão Diretor Administrativo FACULDADE GUARAPUAVA - FG Carlos Alberto Ferreira Gomes Diretor Geral CONTATO SOCIAL REVISTA ELETRÔNICA DO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS ANO I – Nº 1 - 2011 PESQUISA ACADÊMICA E INTERVENÇÃO SOCIAL Artigos Científicos e Resumos Expandidos CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Carlos Alberto Ferreira Gomes Profª Ms. Cerize Nascimento Gomes Prof.Ms. Ernando Brito Gonçalves Júnior Profª Ms. Patrícia Terezinha da Silva Profª.Ms. Rosimeri Schaia Pedroso COMISSÃO DE APOIO Carlos de Jesus Lima (Filosofia) Dafne Ribeiro Breda (Pedagogia) Eliane Lupepsa Costenaro (História) Gilce Primak Niquetti (Pedagogia) Leticia Larsson (Pedagogia) Luciano (História) Luciana Sékula (Psicologia) Silvana da Silva Carneiro (Serviço Social) Obs: A Comissão de Apoio é constituída por acadêmicos do Curso de Ciências Sociais que já possuem graduação em áreas afins e/ou cursos de especialização Lato Sensu. 3 GONÇALVES JR. Ernando Brito e GOMES, Cerize Nascimento (Orgs). Contato Social: Pesquisa acadêmica e 2011. intervenção social. 161 páginas. Guarapuava (PR): Faculdade Guarapuava. Revista Contato Social, NºÍNDICE 1, Ano 1, 2011. Palavras Chave: Sociedade. Ensino. Pesquisa. Intervenção. Políticas Públicas. ÍNDICE 1 - A educação integral no contexto republicano: corpo, mente e civísmo Ernando Brito Gonçalves Júnior p. 06 2 - As condições materiais da vida na relação família – escola : A experiência do bairro caçula no Município de Cantagalo(PR) - Márcia Regina Weber p. 21 3 - Crenças e práticas ciganas : um olhar da antropologia sobre a obra Magia cigana de Charles Leland - Gilce Francisca Primak Niquetti, Deorlene Pacheco Fonseca e Claudinor Tomasi p. 37 4 - Jogos de linguagem: Treinamento, maquinaria e formas de vida Carlos de Jesus Lima p. 50 5 - A teoria da dominação : impressões de Paulo Freire sobre educação e relações de poder na América Latina - Cerize Nascimento Gomes p. 73 6 - Estudos sobre a organização política e a representatividade social da Comunidade Quilombola Invernada Paiol De Telha Fundão – Município de Pinhão (Pr) – Valmir Jocoski p. 98 7 - O ensino de cultura afro-brasileira e as manifestações de religiosidade dos afro-descendentes - Neiva da Cruz Antunes Camargo, Lucélia Terezinha Araujo Pietras e Nicéia Rodrigues p.101 8 - As transformações ocorridas no cotidiano, no comportamento e na constituição da família na sociedade contemporânea - Joelma Eleutério Chimilovsk p. 104 9 - Considerações sobre assessoria e consultoria em serviço social Sonia Roth Bruger p. 107 10 - Considerações sobre o mundo das relações do trabalho - Megi Monique Maria Dias p. 112 11 - A origem contratual do estado: considerações sobre o modelo hobbessiano - Nayara Cristina Bueno p. 116 12 - Imagens e linguagens urbanas: fotografia das contradições sociais Ciro Nascimento Gomes e Affonso Markovicz p. 121 13 - Biotecnologias cooperativismo e desenvolvimento sustentável: o exemplo da coopaflora no Município de Turvo – PR - Débora Machado e Deniam José Viana p. 125 4 14 - Educação indígena: abordagens temáticas e sociodiversidade dos povos indígenas na região de Guarapuava – Luciane Pietras, Thais dos Santos e Thiago da Luz Brito p. 128 15 - Educação ambiental: quem vai ensinar o que para quem? Larize de Lima Belo e João Luiz de Campos p.131 16 - Considerações sobre a aprovação da união estável entre casais homoafetivos pelo Supremo Tribunal Federal e o impacto social dessa nova forma de família - Lais Martins Oliveira p. 134 17 - O campo como cenário de políticas públicas na área de educação: A experiência do Projovem no município de Candói (PR) - Ilda Aparecida da Silva Ressai e João Rodrigues p. 141 18 - Um olhar da psicologia social sobre a pessoa com necessidades especiais: olhar para a diferença e ser olhado como diferente – Luciana Sékula p. 145 19 - A psicologia do clown no comportamento social: Relato de experiência com o projeto cultural Dantemus do Município de Reserva do Iguaçu - PR - Sergius Ramos p. 149 20 - “Eu” e “não-eu”: Ponderações sobre as relações ocidente/oriente a partir de observações sobre a morte de Osama Bin Laden - Rodolfo Grande Neto p. 155 21 - Bloch e Weber: ensaio sobre os diálogos entre a escrita da história e da sociologia durante os séculos XIX e XX - Gisele Cristina Fogaça p. 161 5 A EDUCAÇÃO INTEGRAL NO CONTEXTO REPUBLICANO: CORPO, MENTE E CIVÍSMO Ernando Brito Gonçalves Júnior Docente do curso de Ciências sociais Faculdades Guarapuava RESUMO: A pesquisa em tela tem como objetivo discutir a proposta de “educação integral” apresentada por Dario Vellozo - importante intelectual, escritor e professor que viveu no Paraná entre os anos 1885 e 1937. Segundo Vellozo, seria por meio das educações física, intelectual, moral, estética e cívica que o cidadão estaria apto a ingressar e atuar na sociedade. Nossa análise tomou como fonte seu manual didático intitulado Compêndio de Pedagogia, publicado em 1907, buscando compreender como o autor articula suas ideias de formação do aluno. Assim, na presente pesquisa, buscamos fazer uma análise pautada pela História Intelectual, levando em consideração os elementos textuais e contextuais. Por fim, concluímos que Vellozo defendia que a formação do cidadão deveria ser fomentada pela ideia de formação do corpo e da mente, com base na ciência e em alguns ideais republicanos. PALAVRAS-CHAVE: Dario Vellozo; Educação; História Intelectual. O final do século XIX e o início do século XX foram marcados por transformações em diversos âmbitos no Brasil. Essas mudanças interferiram de maneira substancial na sociedade brasileira, pois, além de transformações no cenário político do país, questões culturais e sociais sofreram impactos devido às novas formas de pensamento e de projetos sociais. Nesse sentido, seguindo o exemplo dos grandes centros brasileiros, como São Paulo e Rio de Janeiro, o estado do Paraná também respirou esses ares de transformação. De acordo com Etelvina de Castro Trindade e Maria Luiza Andreazza (2001, p. 66), “[...] qualquer pessoa que chegasse às cidades paranaenses no período da Primeira República encontraria, em maior ou menor grau, alguns signos da então moderna tecnologia: telégrafo, telefone ou luz elétrica; depois automóveis e bondes”. Nesse sentido, Amélia Siegel Corrêa aponta, em sua dissertação acerca da imprensa e política no Paraná, que as ideias de modernização: 6 [...] refletiam-se no desenvolvimento material da cidade, cada vez mais urbanizada, com alterações arquitetônicas, difusão da luz elétrica, bondes, calçadas, telégrafo. Obras como a Estrada da Graciosa, concluída em 1873, e a ferrovia, entregue em 1885, trouxeram, para a capital, vários engenheiros (CORRÊA, 2006, p. 31). O projeto de expansão da capital paranaense foi desenvolvido pelo governo do estado pautado em um discurso de modernidade e civilização. A higienização do centro da cidade, a expansão das redes de esgoto, o alargamento das praças, a arborização e os calçamentos das ruas foram algumas das prioridades do governo paranaense (TRINDADE E ANDREAZZA, 2001). Em virtude de todo esse processo de transformação vivenciado em Curitiba, várias correntes de pensamento ganharam adeptos e começaram a se destacar no cenário intelectual curitibano. Entre elas, o Anarquismo 1, movimento de defesa de ideias anticlericais2, liderado por Dario Vellozo, o qual travou uma intensa batalha contra os clérigos paranaenses; os Católicos 3, que lutavam para manter o ensino religioso; e o Simbolismo4, movimento literário que também teve a participação de Dario Vellozo. Entre os vários nomes de personagens que se destacaram na época como intelectuais, no sentido exposto acima, utilizaram como foco de nossa pesquisa o carioca Dario Vellozo, que viveu no Paraná entre os anos de 1885 até 1937, e teve toda sua produção intelectual gestada nesse estado. 1 Sobre o anarquismo, em Curitiba nos remetemos a VALENTE, Silza Maria Pazello. A presença rebelde na Cidade Sorriso: contribuição ao estudo anarquista em Curitiba (1890-1920). 1992. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, 1992. 2 Essa questão é bem discutida no livro de MARCHETTE, Tatiana Dantas. Corvo no galho das acácias: o movimento anticlerical em Curitiba (1896-1912). Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999. 3 Para maiores informações sobre os projetos educacionais católicos, ver: CAMPOS, Nevio de. Laicato Católico: o papel dos intelectuais no processo de organização do projeto formativo da Igreja Católica no Paraná (1926-1938). 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, 2002. 4 Movimento pode ser entendido, segundo D’Onofrio (2002, p. 405): “[...] como movimento estético. Surgiu na França e vigorou nas duas últimas décadas do século passado, na fase da belle époque, época da boemia de Montmartre, chamados de ‘poetas decadentes’, tomados pela sensação do fin du siècle. Acusa a crise dos ideais do complexo cultural positivista e apresenta uma nova proposta estética, fundamentada em valores espirituais. [...] Voltando, de um certo modo, à estética romântica, o Simbolismo aperfeiçoa o gosto pelo mistério das coisas, na tentativa de captar a realidade secreta do universo, nesse, encontrando uma Alma e descobrindo a correspondência entre os diversos elementos da natureza, expressa artisticamente através da metáfora sinestésica: ideias aromáticas, flor canora, luz falante, cheiro das cores, etc.”. 7 A escolha de Dario Vellozo se deve pela sua importância no cenário intelectual paranaense. Vellozo foi profícuo poeta, tipógrafo e professor de História, fundou e teve participação na criação de várias revistas e jornais, foi um dos participantes da fundação do IHGPR (Instituto Histórico e Geográfico Paranaense) e criou o INP (Instituto Neo-Pitagórico). Além disso, Vellozo via a educação como o principal caminho para transformar a sociedade, empenhando-se ao máximo pela instrução da população, fosse através de suas aulas nas escolas ou no Instituto Neo-Pitagórico, ou de seus textos para conduzir a uma nova forma de sociedade. Dario Persiano de Castro Vellozo nasceu no Rio de Janeiro, em 26 de novembro de 1869, e mudou-se para Curitiba no ano de 1885, com 16 anos, na companhia de seu pai e irmão; fez do estado do Paraná seu “lar” e defendeu, perante os novos traços da República, o lugar do estado no cenário nacional. Sua vida desde cedo esteve relacionada ao mundo da imprensa e da literatura. Em seu primeiro emprego, ainda no Rio de Janeiro, trabalhou como aprendiz de encadernador e posteriormente tipógrafo. Pouco depois de sua chegada à cidade de Curitiba, trabalhou como tipógrafo do jornal mais antigo do Paraná, o Dezenove de Dezembro. Vellozo logo entrou em contato com diversos intelectuais e passou a integrar esse rico cenário que se configurava na cidade de Curitiba. Juntamente com outros pensadores do período - como Ermelino de Leão, Emiliano Pernetta, Júlio Pernetta, Silveira Neto, Romário Martins, entre outros , fundou várias revistas e escreveu diversos livros revelando-se um dos mais fecundos e importantes escritores do Paraná. Dario Vellozo era também adepto da maçonaria, assim como muitos dos intelectuais curitibanos desse período, e defensor de ideias “neopitagóricas”. Foi um dos membros fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Paranaense, em 1900, e fundou, em 1909, o Instituto Neo-Pitagórico5. Nesse instituto, além de reuniões para discussões de obras, eram promovidas festas ao estilo dos cultos helênicos (ANDRADE, 2002). 5 O INP funciona até hoje. Nesse instituto são organizadas reuniões, palestras, cursos e oficinas abertas ao público sobre diversos temas como filosofia, história das religiões e ocultismo, entre outros. Além disso, a instituição possui uma biblioteca com vários livros publicados por sua editora no período que aqui nos interessa. O INP possui um site com mais informações: http://www.pitagorico.org.br/. Acesso em: 16 de julho de 2009. 8 No que diz respeito ao ensino, Vellozo também possuía, para o quadro em pauta, um olhar diferenciado. Foi professor no Ginásio Paranaense a partir de 1899, além de colaborador, redator ou editor de revistas voltadas ao ensino, como A Escola (órgão do grêmio dos professores; 1906-1910), Pátria e Lar (1912-1913) e Brazil Cívico (1918-1919). Sua atuação editorial teve visibilidade maior principalmente devido à sua fama e respeito, adquiridos em seu trabalho como professor. No papel de educador, ele pôde demonstrar sua vasta erudição: [...] formando em seus alunos verdadeiros discípulos que se constituiriam, com o grupo dos “novos”, em continuadores das preocupações literárias do grupo do Cenáculo. Foi no periódico fundado por esses seus alunos, o Fanal, que essa admiração ficou expressa, tanto na deferência com que se referiam a Dario, como nas afirmações de que ele os inspirava (DENIPOTI, 2001, p. 80). Sendo assim, suas preocupações pedagógicas, “[...] aliadas às suas preocupações com a formação teórica e prática do cidadão, além de seu perfil intelectual” (DENIPOTI, 2001, p. 80), culminaram na fundação da Escola Brazil Civico, na cidade de Rio Negro, ao sul de Curitiba, em 1913. A escola trazia, além das disciplinas teóricas curriculares, cursos profissionalizantes de agricultura, comércio, artes e indústria (DENIPOTI, 2001). Devido aos conflitos entre o Exército e os revoltosos do movimento do Contestado, a escola foi obrigada a se transferir para Curitiba. Porém, não durou muito tempo e antes de completar um ano foi fechada. No que se refere à concepção de escola de Dario Vellozo, segundo Maria Lucia de Andrade (2007, p. 192), para ele a “escola moderna [...] deveria ser antes de tudo laica, pública, profissionalizante e obrigatória”. Dario Vellozo ainda escreveu dois livros didáticos que foram muito utilizados pelas escolas curitibanas: Licções de História (1902) e Compêndio de Pedagogia (1907). Devido ao seu grande reconhecimento como professor, as obras de Dario Vellozo supracitadas tiveram repercussão após suas publicações. Compêndio de Pedagogia teve grande receptividade no cenário educacional paranaense: “os livros didáticos de Dario Vellozo contavam com um público cativo entre os professores de todo o país. 9 Mesmo antes de sua publicação, já se criava uma grande expectativa em torno do Compêndio de Pedagogia6 (DENIPOTI, 2001, p. 82). Vellozo se aposenta do cargo de professor em 1930, porém, continua escrevendo textos e livros até seus últimos dias. Em 1933, escreve Atlântida, seu ultimo livro, continua escrevendo outros textos menores e liderando as reuniões no INP. Em 1937, escreve o que seria seu último texto, Jesus Pitagórico, já com a saúde debilitada, e falece em 28 de setembro daquele ano. Para a melhor compreensão da obra, Compêndio de Pedagogia, faremos uma análise da relação entre a obra e o contexto no qual ela foi concebida. Para tanto, utilizaremos, como proposta de abordagem, a História Intelectual, mais especificamente a proposta francesa de investigação histórica das ideias e de seus produtores, os intelectuais. Comecemos por destacar a existência de, pelo menos, duas abordagens ou duas formas de fazer História Intelectual: a intellectual history e a histoire intellectuelle. A primeira diz respeito a uma abordagem feita principalmente pelos estadunidenses, voltada mais para as preocupações linguísticas e literárias de uma obra (CHARTIER, 2001). A segunda, com a qual dialogamos, surgiu na historiografia francesa e tem como seu principal foco “[...] o posicionamento das ideias, situando-as em seu contexto (intelectual e histórico) de produção” (SILVA, 2002, p. 12). Nesse sentido, essa abordagem busca fazer uma análise visando uma articulação entre os elementos internos e os externos da obra. Assim, “[...] a história intelectual deve privilegiar a leitura de um texto em relação ao seu contexto. Isso significa considerar a obra em relação à formação social e cultural de seu autor, ao espaço ou “campo” de produção e à conjuntura histórica dessa última” (SILVA, 2002, p. 12). Acreditamos que a proposta de pesquisa delineada pela História Intelectual francesa deve ser fomentada em analisar as obras levando em consideração seu texto e o seu contexto de produção, como bem apontou Carlos Eduardo Vieira: 6 Segundo Cristiane Vitório de Souza, em dissertação sobre as leituras pedagógicas de Silvio Romero, Romero possuía uma biblioteca específica de livros sobre educação e, entre eles, existe um exemplar da primeira edição do livro Compêndio de Pedagogia, de Vellozo. Para mais informações, ver: SOUZA, Cristiane Vitório de. As leituras pedagógicas de Silvio Romero. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação) – UFSE (Universidade Federal de Sergipe), São Cristóvão, 2006. 10 De forma similar a história intelectual investe na análise dos processos de produção, circulação e recepção das ideias e dos discursos científicos, políticos, pedagógicos ou artísticos, desenclausurando-os da lógica e do método internalista da tradicional história das ideias (VIEIRA, 2008, p.80). No que diz respeito ao intelectual, vários autores se propuseram a discutir o papel desses agentes na sociedade e alguns traços que possam qualificar um indivíduo como tal. Carlos Eduardo Vieira nos apresenta quatro aspectos que, segundo ele, são fundamentais para concebermos os intelectuais como agentes sociais que possuem certa visibilidade na esfera cultural e atuam no campo político (VIEIRA, 2010). Os aspectos são apresentados da seguinte forma: 1) sentimento de pertencimento ao estrato social que, ao longo do século dezenove e vinte, produziu a identidade social do intelectual; 2) engajamento político propiciado pelo sentimento de missão ou de dever social; 3) elaboração e veiculação do discurso que estabelece a relação entre educação e modernidade; 4) assunção da centralidade do Estado como agente político para a efetivação do projeto moderno 7 de reforma social. (VIEIRA, 2010, não publicado) . Partindo desse pressuposto traçado pelo autor, identificamos que Dario Vellozo, objeto de nossa pesquisa, pode ser relacionado com as dimensões descritas acima. Longe de pensarmos em uma definição forçada e engessada, essas ideias de atuações e vinculações dos intelectuais propostas por Vieira nos possibilita enxergamos as diversas possibilidades de atuações desses agentes sociais. Passamos agora a discutir um pouco a questão do manual produzido com finalidade didática. Esse artefato da cultura escolar, apesar de ser de fácil identificação e de, em geral, as distinções entre esse tipo de publicação e outros livros serem dadas ou apresentadas sem grandes reflexões, à obra de cunho didático se constitui em um objeto de difícil definição (BITTENCOURT, 2008). Segundo Bittencourt: “é um objeto de múltiplas facetas, e para a sua elaboração e uso existem muitas interferências” (BITTENCOURT, 2008, p. 301). Objeto material de grande importância no processo de construção de uma cultura escolar e de uma tecnologia de gestão da sala de aula e do 7 VIEIRA, Carlos Eduardo. Erasmo Pilotto: identidade, engajamento político e crenças dos intelectuais vinculados ao campo educacional no Brasil. Curitiba, 2010. Não publicado. 11 coletivo de alunos, em que as noções de ordem e de método assumem uma enorme centralidade, os manuais didáticos foram, simultaneamente, instrumentos de inovação e de controle, pois atribuíam legitimidade a um conjunto de ideias e de práticas (e retirarem a outros), ao mesmo tempo em que apelavam à socialização e afirmação profissional dos futuros professores com base num conjunto em que se articulavam o saber, o saber-fazer e o saber-ser. (CARVALHO, 2007) Entendemos que os livros didáticos “[...] não são apenas instrumentos pedagógicos: são também produtos de grupos sociais que procuram, por intermédio deles, perpetuar suas identidades, seus valores, suas tradições, suas culturas” (CHOPPIN apud BITTENCOURT, 2004, p. 69). Assim, Começamos por destacar que a primeira edição da obra Compêndio de Pedagogia, em 1907, foi subsidiada pelo governo do Paraná e se tornou de uso obrigatório nas Escolas Normais do estado. Isso nos mostra que Vellozo comungava, pelo menos em algumas questões educacionais, com as preocupações e ideias as quais o governo estadual estava interessado em propagar nesse período e que, em contrapartida, o governo enxergava no autor e em suas obras instrumentos de divulgação e formação de ideias e de motivação de ações. No que tange a elementos textuais da obra, o livro é dividido em três partes que correspondem aos três anos dos cursos normais. O primeiro ano é composto por dez lições e começa com uma definição de Pedagogia; em seguida, apresenta-se uma trajetória histórica da educação, começando pela educação na Antiguidade, passando pelos povos chineses, egípcios, pelo período medieval e terminando no que Dario Vellozo chama de tempos modernos. Nessa primeira parte, Vellozo mostra, portanto, sua definição de Pedagogia. Segundo ele, a “Pedagogia é a arte e a ciência da educação. Ensina a ensinar: indica os meios, regras e preceitos de que deve servir-se o professor a fim de instruir e educar os alunos” (VELLOZO, 1975, p. 395). A segunda parte do livro (o segundo ano), para a qual dedicaremos um olhar mais cuidadoso, também é formada por dez lições, tendo início com uma descrição dos métodos de ensino indutivo e dedutivo, passando por princípios didáticos, modos, formas e processos de ensino. As últimas lições dessa parte serão tomadas como os principais objetos de análise e reflexão, pois são as 12 que melhor representam a tentativa de formar alunos/professores condizentes com os ideais republicanos. Essas lições estão divididas em Educação Física, Intelectual, Moral, Estética e, por fim, a Educação Cívica, cada uma com algumas ramificações que serão discutidas e apresentadas mais adiante. A última divisão da obra (o terceiro ano) abarca 11 lições, que se iniciam com uma abordagem sobre a iniciação à leitura e à escrita, passando por estudos da língua portuguesa, bem como estudos de geografia, de história, de ciências, de desenho, de música, de canto, além de instruções morais e cívicas que o professor deveria ensinar para o aluno. Indicaremos, a priori, um itinerário para que se possa compreender por que esses pontos são essenciais para entendermos como Vellozo concebia a educação. Para ele, a educação era um “[...] conjunto de ponderados esforços no sentido de desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais do indivíduo, facultando-lhe meios de aperfeiçoamento, para felicidade própria e alheia” (VELLOZO, 1975, p. 397). Assim, entendia que a educação deveria ocorrer em vários âmbitos, pois o cidadão pleno deveria ser bem instruído, possuir aptidões físicas e zelar pelo convívio, buscando uma sociedade harmônica. Nesse sentido, lançaremos um olhar mais apurado à lição VIII do compêndio de Dario Vellozo, intitulada “da educação em geral”. Nesse item, Vellozo discute a educação e suas ramificações, explicando a importância de cada uma para formar um indivíduo apto para os desafios da vida e para bem servir à família, à pátria e à humanidade (VELLOZO, 1975). Acreditamos que nessa parte do compêndio se concentra o cerne principal da concepção de educação formulada por Vellozo. Vellozo entendia que a educação dividia-se em física, intelectual, moral e estética. Vellozo também cita a educação cívica que perpassaria as outras formas de educação e teria como objetivo ensinar os direitos e deveres do cidadão. Assim, a educação física, intelectual, moral e estética propiciariam ao cidadão cumprir suas atuações cívicas. Nesse sentido, Vellozo entendia que a educação era um: “[...] conjunto de ponderados esforços no sentido de desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais do indivíduo, facultando-lhe meios de aperfeiçoamento, para felicidade própria e alheia” (VELLOZO, 1975, p. 397). Assim, entendia que 13 a educação deveria ocorrer em diversos âmbitos, pois o cidadão pleno deveria ser bem instruído, possuir aptidões físicas e zelar pelo convívio, buscando uma sociedade harmônica. Vale lembrar que a ideia de formação do indivíduo apto para atuar na sociedade era a premissa central da educação para Vellozo. A ideia de educação integral apresentada por Vellozo fazia parte de um esforço de reorganização da educação brasileira que ocorreu no final do século XIX e início do século XX. Essa reorganização buscou renovar o método de ensino, bem como ampliar o programa escolar. A base dessa ampliação seria calcada no princípio da educação integral, que englobaria a educação física, intelectual e moral (SOUZA, 2000). Percebemos que Vellozo estava em sintonia com as mudanças educacionais que estavam ocorrendo em cenário nacional, na medida em que, em seu livro, o autor defende algumas das ideias de renovação do ensino, como o método intuitivo e a perspectiva de educação integral, que estavam sendo propostas por alguns pensadores da educação, como, por exemplo, Rui Barbosa. A prerrogativa de educação integral, formada pela tríade educação física, intelectual e moral, foi formulada e difundida a partir da obra de Herbert Spencer, intitulada: “Educação Intelectual, Moral e Física”, e publicada em 1861. Essa obra buscava unir uma concepção de educação com as aspirações e necessidades da sociedade moderna. O apelo de Spencer à correspondência entre a lei da evolução biológica e o progresso social possibilitou a naturalização da evolução da sociedade e a compreensão da ciência como o conhecimento mais relevante, o conhecimento útil com aplicação no trabalho, na arte e na vida diária. Nessa concepção, corpo e espírito são indissociáveis. O princípio da educação integral expressava essa compreensão unificada pela qual a educação seguia as leis da natureza e a ciência revelava-se como o melhor meio para a disciplina intelectual e a disciplina moral (SPENCER, 1901). Da mesma forma, Vellozo acreditava que apenas a ciência poderia mostrar um real conhecimento, assim defendeu em diversos momentos a importância da ciência na educação como a melhor maneira de se alcançar o conhecimento. Além dessas proximidades, Vellozo cita o livro de Spencer como uma das referências suas utilizadas para escrever o compêndio e recomenda-o para ser lido pelos professores. 14 A inserção do pensamento de Spencer na educação brasileira não se faz apenas por essa discussão de Vellozo, haja vista que Rui Barbosa, em seu parecer acerca da “Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública”, publicado em 1883, compartilhava das ideias de Spencer e as recomendava à educação pública brasileira (SOUZA, 2000). Nesse sentido, o primeiro ponto abordado por Vellozo é a Educação Física. Segundo o autor do “compêndio”, ela é importante na medida em que auxilia o aluno a se tornar um indivíduo “robusto” e “sadio”. Vellozo ainda argumenta que, para que o aluno possua uma boa compreensão do que lhe está sendo ensinado, necessita de um físico forte, pois: “sem robustez, sem saúde o corpo é débil, fraca a memória, a compreensão mais difícil” (VELLOZO, 1975, p. 438). A Educação Física, segundo Vellozo, possui dois elementos principais: a ginástica e a higiene. Para o pensador, a ginástica tem por finalidade fortalecer os músculos e aumentar a força do aluno. Já a higiene possui por finalidade eliminar “maus hábitos” e melhorar a saúde do aluno e a qualidade do ambiente escolar. Assim, a educação física possibilitaria a constituição de corpos saudáveis, fortes e vigorosos, auxiliaria a disciplinar os hábitos e costumes responsáveis pelo cultivo dos valores cívicos e patrióticos. De acordo com Soares (1994), a educação física das crianças no Brasil emerge atuando na preparação do corpo feminino para a reprodução dos filhos da pátria e na preparação do corpo do soldado tornando-o útil à pátria e ao capital, além de vincular algumas questões de moral, saúde e produtividade do trabalho a essa educação. Para Vellozo, o futuro cidadão deveria possuir uma saúde e vigor físicos apurados para bem servir à pátria e à família, que foram duas preocupações de Vellozo. O segundo ponto destacado por Vellozo é a Educação Intelectual. De acordo com ele: “a educação intelectual é o sistema que trata de desenvolver, elucidar, enriquecer e orientar a mente” (VELLOZO, 1975, p. 440). Destaca-se a explicação que Vellozo elabora para justificar a Educação Intelectual: “a educação intelectual proporciona o saber, o conhecimento exato das coisas, a consciência e a verdade, pela ciência” (VELLOZO, 1975, p. 441). Vellozo estava encantado com a ciência, encanto esse que atingiu vários pensadores 15 do século XIX, período que foi marcado por uma grande adesão as ideias científicas. Novamente evocamos a figura de Spencer para elucidar a fonte com a qual Vellozo dialoga. Spencer teceu questões importantes para entendermos a concepção moderna do papel social da ciência na sociedade e na educação ao apontá-la como o conhecimento de maior valor: Assim, para a pergunta que formulamos – quais são os conhecimentos de maior valor? – há uma resposta uniforme – a Ciência. É o veredicto para todas as interrogações. Para a direta conservação própria, para a conservação da vida e da saúde, o conhecimento mais importante é a Ciência. Para a indireta conservação própria, o que se chama ganhar a vida, o conhecimento de maior valor é a Ciência. Para o justo desempenho das funções da família, o guia mais próprio só se encontra na Ciência. Para a interpretação da vida nacional, no passado e no presente, sem o qual o cidadão não pode justamente regularizar o seu procedimento, a chave indispensável é a Ciência. Para a produção mais perfeita e para os gozos da arte em todas as suas formas, a preparação imprescindível é ainda a Ciência, e para os fins da disciplina intelectual, moral e religiosa – o estudo mais eficaz é, ainda, uma vez, a Ciência. (SPENCER, 1901, p. 73) Para esse autor, a ciência era o conhecimento que melhor revelava o sentido do progresso e da sociedade dita civilizada do século XIX. Para tanto, a ciência sobressaía como um conhecimento essencial para a vida moderna, o conhecimento útil e válido cujas verdades podiam ser aplicadas aos mais variados negócios da vida prática: na indústria, no trabalho, na conservação da saúde, no exercício dos deveres políticos e sociais, na condução da vida moral. Vellozo foi um adepto dessa fé na ciência, e em seu livro podemos perceber a importância que ele atribui à ciência empírica, defendendo que apenas essa ciência pode levar ao conhecimento verdadeiro da sociedade. A próxima questão abordada por Vellozo é a Educação Moral. Ele acreditava que as faculdades morais formariam o caráter do aluno. Assim, a Educação Moral tinha por objetivo “[...] desenvolver e formar a vontade, estabelecendo normas de conduta, ensinando os deveres e as virtudes, para o Bem” (VELLOZO, 1975, p. 441). Vellozo ainda defendia que o caráter da criança deveria ser desenvolvido por uma prática de ensino pautada na verdade científica, pois, para ele, o “saber leva à verdade; a educação intelectual contribui para a educação moral, dando ao indivíduo o máximo grau possível de consciência pelo conhecimento exato das coisas” (VELLOZO, 1975, p. 443). Dessa forma, 16 notamos em Vellozo a crença no princípio segundo o qual quanto maior for o conhecimento fomentado pela verdade científica, melhor será o caráter do indivíduo. A concepção de educação moral de alguns republicanos mais radicais no período da primeira República brasileira - caso de Dario Vellozo - colocou em evidência a secularização da moral de natureza cívica em detrimento à moral religiosa. Nesse sentido, convinha, pois, desenvolver sentimentos e hábitos, cultivar valores morais desejáveis, tais como: respeito à ordem, disciplina, tolerância, amor ao dever, apreço ao trabalho, o bom emprego do tempo, a sinceridade, a lealdade e o amor à pátria. A separação entre o Estado e a Igreja foi a motivação dessa mudança de moral, que passou a ser voltada ao culto da nação. Vale lembrar que a transformação não se deu de maneira abrupta e nem por completa, haja vista que muitas práticas religiosas ainda continuaram a ser realizadas após essa separação. Nesse sentido, Vellozo acreditava que a moral deveria fazer com que o aluno soubesse respeitar o próximo para que houvesse uma melhor convivência e, assim, o país conseguiria uma união melhor para alcançar o progresso. Portanto, a ideia de respeito e união não estava atrelada a uma visão religiosa, e sim pautada em uma perspectiva e união para o desenvolvimento econômico e social do país. Concomitantemente com a educação moral está a educação estética para Dario Vellozo. Segundo o autor, “a educação estética desenvolve os sentimentos superiores, não só é fonte de emoções supremas, como fator da educação moral” (VELLOZO, 1975, p. 443). Essa educação era dividida, para ele, em belas letras - que englobava a literatura - e belas artes compostas por esculturas, pinturas, arquitetura, música e canto. Vellozo ainda atentava para o ensino do senso crítico da arte. A questão da educação estética se fazia presente em discussões de alguns teóricos educacionais - como Spencer, Froebel e Pestalozzi - como uma importante faceta da educação. Vale lembrar ainda que Schiller, em suas cartas, foi categórico ao defender que não é possível elevar moralmente e racionalmente o ser humano sem cultivar a sua emoção e sensibilidade, sendo possível apenas o desenvolvimento completo do homem a partir de um equilíbrio entre a razão e a emoção (SCHILLER, 1995). 17 Aproximando essa discussão para o cenário republicano brasileiro, a educação estética ganhou um componente a mais: o caráter de cívico, ou seja, foi utilizada, algumas vezes, como forma de auxiliar o ensino cívico. Assim, “[...] o despertar para a civilidade não se faria apenas com a abertura de escolas, mas com uma educação estética que envolvesse habilidades manuais, educação das mulheres para o lar, o contato com a literatura brasileira, os cantos, a dança [...]” (VEIGA, 2003, p. 406). Além dessas questões que estavam em voga no período, Vellozo ainda possuía um apego a mais à educação estética: sua própria veia artística. Vellozo ganhou notoriedade no cenário curitibano como poeta e produziu literatura até a sua morte. Tinha familiaridade com a música, pois tocava instrumentos de sopro, além de ter pintado algumas telas. Seu interesse pelas artes faz com que ele acrescente importância a essa dimensão, pois, segundo Vellozo: “os mais delicados prazeres da vida são propiciados pela arte” (VELLOZO, 1975, p. 443). Isso além de entender que “pedagogicamente a arte e a moral são inseparáveis” (VELLOZO, 1975, p. 444). Assim, uma boa educação estética pode ajudar a ter uma boa educação moral. Por fim, Vellozo discute a educação cívica. O pensador defendia que todas as outras “educações” deveriam trabalhar juntas para que fosse formada esta. De acordo com ele: “a função principal da escola é formar futuros cidadãos, aptos e conscientes” (VELLOZO, 1975, p. 444). Nesse sentido, a educação cívica teria por finalidade ensinar os deveres e os direitos do cidadão, estabelecidos em relação à sociedade e à pátria. Para Dario Vellozo, a educação cívica seria o fim a ser alcançado pela educação, pois, segundo ele, “educados física, intelectual, moral e esteticamente, o homem e a mulher ficam em condições de bem servir à família, à pátria e à humanidade – que tal é o fim da educação cívica” (VELLOZO, 1975, p. 444). Assim, percebemos que a educação possuía uma missão específica no pensamento de Vellozo: a formação de pessoas para servir à pátria e família para que o país pudesse alcançar o seu progresso pleno, tanto na área econômica, quanto na social. Após a leitura e análise da obra “Compêndio de Pedagogia”, podemos perceber que o sentido de servir à pátria se apresenta em consonância com o discurso republicano em voga no Brasil do final do século XIX e início do século 18 XX, tanto em âmbito nacional, como em âmbito estadual. Nota-se assim, novamente, que Vellozo era adepto do discurso republicano. Dessa forma, apresentados os elementos fundamentais da educação humana, o indivíduo seria também um homem político atuante. Nesse mesmo sentido, percebemos que a educação integral era entendida por Vellozo como um dos fatores essenciais na formação humana, pois, para alcançar um progresso, a evolução social que Vellozo acreditava, o homem deveria estar educado em seus diversos sentidos. Percebemos novamente relações entre Vellozo e Spencer, no sentido da crença em uma evolução humana, tendo como base a ciência. À guisa de conclusão, nossa análise procurou discutir alguns aspectos do pensamento pedagógico de Dario Vellozo manifestados em sua obra Compêndio de Pedagogia. Seu manual didático, além de indicar aspectos muito significativos de seu pensamento pedagógico, mostra-nos uma possível tendência que pairava sobre o cenário da educação paranaense no período em apreço. A educação, para Vellozo, deveria construir um homem capaz de pensar politicamente de forma livre (leia-se: republicana) e apto a desenvolver a sociedade rumo à ordem e ao progresso. REFERÊNCIAS ANDRADE, Maria Lucia. Educação, cultura e modernidade: o projeto formativo de Dario Vellozo. 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, 2002. BITTENCOURT, Circe (org.). O Saber Histórico na Sala de Aula. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2004. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Uma biblioteca pedagógica francesa para a Escola Normal de São Paulo (1882): livros de formação profissional e circulação de modelos culturais. In: BENCOSTTA, Marcus Levy (org). Culturas escolares, saberes e práticas educativas: itinerários históricos. São Paulo, Cortez, 2007. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. 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Não publicado. 20 AS CONDIÇÕES MATERIAIS DA VIDA NA RELAÇÃO FAMÍLIA – ESCOLA: A EXPERIÊNCIA DO BAIRRO CAÇULA NO MUNICIPIO DE CANTAGALOPR Márcia Regina Weber Curso de Ciências Sociais – Faculdade Guarapuava Curso de Pedagogia - Unicentro Orientador: Profº Ms. Alessandro de Melo RESUMO: O presente artigo tem como objetivo conhecer e analisar a realidade das condições de existência material das famílias dos alunos da 2ª série A da Escola São Bernardo, bem como sua contribuição para o fracasso escolar destas crianças. O texto fundamenta-se no materialismo histórico de Marx e Engels, proposta na obra A ideologia alemã que procura explicar a sociedade e seu desenvolvimento no decorrer da história. Durante a pesquisa de campo utilizou-se um questionário com respostas objetivas, onde foi possível perceber a precariedade das condições materiais de existência destes indivíduos e a sua relação com o fracasso escolar das crianças oriundas destas famílias. O que pretendeu-se com este trabalho é a contribuição para com o desenvolvimento de práticas conscientes e críticas por parte dos professores favorecendo o avanço da sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Famílias. Materialismo Histórico e Dialético.Sociedade. Crianças. Introdução Este artigo tem como objetivo abordar a influência das questões materiais da existência humana na educação, levando em consideração que o desenvolvimento da sociedade através da história, dá-se a partir da evolução das forças produtivas pela ação dos indivíduos em sociedade, levando em consideração que segundo Marx as classes sociais não são determinadas apenas pelo capital, mas também pelo capital cultural, capital social e objetivos sociais e pessoais. Para isso realizou-se uma pesquisa envolvendo vinte e quatro famílias residentes no Bairro Caçula na cidade de Cantagalo, região centro- 21 oeste do Paraná. Durante a pesquisa aplicou-se um questionário com perguntas objetivas sobre as condições materiais destas famílias. . Como fundamento teórico utilizou-se o materialismo histórico, presente na obra A ideologia alemã de Marx e Engels. Esta obra propõe a reflexão sobre a realidade histórica e social em que vivem os homens e as determinações de sua existência, sendo estes diferentes dos animais pelo trabalho, exercício essencial à sua existência. A escolha desta teoria deveu-se ao fato de que ela possibilita explicar de maneira contundente a estrita relação entre as condições materiais familiares e a educação escolar, considerando que os indivíduos são determinados pela maneira como produzem sua vida material, por meio de relações sociais muitas vezes independentes da sua vontade. Através do caminho percorrido foi possível constatar esta relação, ao percebermos que a maior parte destas famílias, ou seja, quatorze delas vivem em degradante situação de pobreza, usufruindo uma renda mensal bastante inferior a um salário mínimo, visto que são trabalhadores do setor informal, ou seja, trabalham sem carteira assinada. A renda destas famílias não as possibilita a aquisição de todos os bens materiais e culturais necessários à sua sobrevivência. Tendo em vista que a escola muitas vezes desempenha um papel dominante, não possibilitando chances iguais a todos,determinando assim a reprodução da divisão das classes sociais. Esta situação afasta cada vez mais as crianças advindas destas famílias, contribuindo para a continuidade do modelo capitalista da sociedade. Por isso é que a escola não pode tornar-se uma ilha, pelo contrario, ela deve estar consciente da realidade social e política em que está inserida para que possa ser acessível a todos, garantindo o pleno desenvolvimento da sociedade. Descrição do município O município de Cantagalo situa-se na região centro-oeste do Paraná. Teve sua origem por volta de 1930, quando tropeiros utilizavam-se de um itinerário próximo ao que é hoje a BR 277 para conduzir gado bovino e suíno até o município de Ponta Grossa. Na jornada esses homens faziam 22 pousada em alguns pontos do caminho, dando origem a algumas localidades, entre elas Cantagalo. Os primeiros moradores que se estabeleceram nesta localidade foram alguns fazendeiros, entre eles: Jacob Fritz, Argemiro José de Mattos e Augusto Thomas. O inicio do ensino na referida localidade, deu-se a partir de 1960 com a fundação da primeira escola, inicialmente denominada Escola Isolada de Cantagalo e posteriormente vindo á chamar-se Casa Escolar Olavo Bilac. Em 1982, após uma consulta á população local, Cantagalo foi desmembrada de Guarapuava, vindo a tornar-se município em 12 de maio do mesmo ano. Atualmente o município conta com 12.810 habitantes, sendo 57% residentes na zona urbana e 43% na zona rural. Segundo dados do IPARDES (Instituto Paranaense de Desenvolvimento e Estatística), 47% da população cantagalense encontra-se em situação de pobreza ou miséria, vivendo com uma renda mensal inferior a um salário mínimo. Esta situação pode ser evidenciada por meio do questionário aplicado às vinte e quatro famílias envolvidas nesta pesquisa. Com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de 0,686, (ano 2000) Cantagalo situa-se entre os municípios mais pobres do Parná, encontrando-se no 371° lugar, entre os 399 municípios do Estado. Analisando os dados disponíveis no site do IPARDES sobre os municípios vizinhos, percebe-se que Cantagalo está a frente apenas de Goioxim, sendo ultrapassado por municípios mais jovens como Candói, Virmond e Nova Laranjeiras. No setor educacional, Cantagalo conta com IDEB (Índice de Desenvolvimento Educacional) no ano de 2007 de 3.7 figurando novamente entre os últimos do Estado, ficando à frente apenas de Espigão Alto do Iguaçu. A taxa de analfabetismo da população adulta é de 19,7% , sendo que 47,4% da população possui menos de 4 anos de estudo e 84% possui menos de 8 anos de estudos, assim a média de anos de estudo desta população é de 3,9. São vários os fatores que contribuem diretamente para a situação de pobreza em que se encontra o município, entre eles está: o 23 desemprego, o analfabetismo, o modelo mecanizado da agricultura e a falta de investimentos em geração de emprego e renda. Analisando a história do município, não é difícil encontrar respostas para a situação de miséria deste, pois no passado muitos dos pequenos proprietários rurais viram-se obrigados a vender suas poucas terras a grandes fazendeiros. Após a venda da propriedade, estas pessoas juntamente com suas famílias passaram a resistir na periferia da zona urbana, desta maneira estes trabalhadores foram levados a vender sua força de trabalho às indústrias madeireiras que haviam se estabelecido no município em troca de salários irrisórios. Os baixos salários destes trabalhadores fizeram com que muitos não conseguissem manter seus filhos na escola. A situação agravou-se ainda mais na década de 90, quando algumas destas indústrias transferiram-se para outros municípios, deixando para trás muitos pais de família desempregados. Desta forma, iremos analisar os impactos causados pelas condições materiais das famílias cantagalenses e sua contribuição para o fracasso de muitas crianças oriundas das famílias menos favorecidas do município. No caso especifico aqui analisado, estes impactos serão estudados em relação a uma amostra dos vinte e quatro alunos de uma 2ª série, da escola São Bernardo localizada no Bairro Caçula, que obteve um índice de reprovação de 42% de seus alunos no ano de 2007 e um Índice de Desenvolvimento Educacional (IDEB) de 3.2. Sendo assim, percebe-se que as condições materiais e culturais destas famílias refletem diretamente no desempenho de seus filhos na escola, pois dos vinte e quatro alunos desta 2ª série aqui estudada apenas dez nunca reprovaram, porém destes dez, cinco casos apresentam problemas de leitura, escrita, interpretação ou cálculo. Desta maneira, observa-se que apenas cinco destes vinte e quatro alunos possuem um desenvolvimento excelente no que se refere a aprendizagem. 24 Fundamentação teórica Este texto tem como fundamento teórico o materialismo histórico desenvolvido nas obras de Marx e Engels. Em especial interessa-nos analisar ainda que brevemente, a concepção materialista presente na obra A ideologia alemã. O materialismo histórico é a teoria formulada por Karl Marx e Friedrich Engels para interpretar a sociedade e seu movimento no decorrer da história. Esta teoria defende que o movimento da História dá-se devido ao desenvolvimento da relação das forças produtivas pela ação dos indivíduos na sociedade. Assim percebe - se que as mudanças sociais ocorrem pelas relações conflituosas entre as classes sociais que no capitalismo, fase atual em que vivemos, está dividida entre burguesia e proletariado. Porém, é preciso ser consciente de que “as classes sociais não são determinadas apenas pelo capital, mas também por elementos como: capital cultural, capital social, objetivos sociais e pessoas entre outros”. (MARX, ENGELS, 1991, 36) Este fundamento nos permite refletir sobre a realidade histórica social em que os homens vivem e as condições que determinam a sua vida. Para estes autores, as condições que determinam a vida em sociedade são as advindas da materialidade da vida. Assim afirmam os autores, “os homens como sujeitos sócio-históricos somente podem ser entendidos pelo modo como produzem sua vida em sociedade”. (MARX, ENGELS, 1991, p. 36). As diferentes formas assumidas pelas sociedades referem - se, portanto, às diferentes formas desta organização da vida material. Em termos históricos, os homens se constituem em uma espécie diferenciada de outros animais pelo fato de que se tornaram capazes de produzir sua própria existência, sendo assim, ao invés de adaptar-se à natureza, o homem adapta a natureza a si, tornando-se diferente dos outros animais pelo trabalho. Logo, a forma desta existência é a própria forma humana que se constitui historicamente, num processo dinâmico e dialético entre homem, sociedade e natureza. Resulta que os homens são o que e como produzem a sua vida. Para melhor elucidar os fundamentos materialistas neste texto reportamo-nos à MARX e ENGELS, (1991). 25 A estrutura social e o Estado nascem constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, como atuam e produzem materialmente e, portanto, como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentemente de sua vontade. (p.36). Sendo assim, os homens são determinados pelo modo como produzem sua vida material, por meio de relações recíprocas e seu desenvolvimento posterior na constituição social. Desta maneira, concordamos com Marx e Engels quando estes afirmaram: “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (1991 p.37). Esta afirmação é inegável visto que para a sua sobrevivência e de sua família, antes de tudo o ser humano precisa comer, beber, vestir e morar. Estas necessidades determinam à produção material do homem, em contrapartida, a produção da vida material pode alienar o homem e é condicionante de seu estado social. Sendo o trabalho um exercício essencial para que o homem possa suprir suas necessidades de sobrevivência, no capitalismo este obrigase a vender a sua força de trabalho ao capitalista em troca de um salário. Neste contexto, o salário nada mais é do que um nome especial dado ao preço da força de trabalho. No mundo do capital, os indivíduos não trabalham para o bem e o desenvolvimento coletivo, mas para o sucesso particular. As relações são de competição e concorrência entre os trabalhadores ao invés de serem de amizade e solidariedade mútua, pois cada qual está interessado no seu bem particular e não no bem comum. Assim, a condição material da existência humana, faz com que a classe trabalhadora torne-se cada vez mais oprimida pela burguesia detentora do capital e dos meios de produção, visto que o trabalhador assalariado desempenha seu trabalho sem se importar com o objetivo da atividade que esta realizando, para estes indivíduos a realização desta é o meio que ele encontra para garantir a sua sobrevivência. Para o capitalista o produto é sempre mais importante que o homem e a opressão vivida pela classe operária a torna a força matriz, sustentáculo de todo o edifício capitalista, porém o salário pago pela venda do trabalho é quase insignificante, tornando cada vez mais difícil para o trabalhador deixar a situação de pobreza em que se encontra, pois as 26 condições materiais de vida o afasta cada vez mais da escola e do saber elaborado que torna os indivíduos capazes de compreender e agir sobre a realidade vivida por eles. Para esclarecermos melhor a questão recorremos a Marx e Engels que afirmam: Os indivíduos que constituem a classe dominante dominam como pensadores, como produtores de idéias, regulam a produção e a distribuição de idéias e fazem com que as suas idéias sejam as idéias dominantes da época. (1991, p.72). Logo, para a classe burguesa não é interessante que seus trabalhadores sejam educados e instruídos, pois a tomada de consciência por parte destes homens tornaria muito difícil a dominação da burguesia, por isso os capitalistas desejam que os trabalhadores sejam educados apenas o necessário para evitar desperdícios e garantir a produtividade e o aumento do capital. Nesta sociedade as relações sociais passam a ser mediadas pela mercadoria e até mesmo o trabalho torna-se mercadoria. Uma vez que os operários recebem baixos salários, dificilmente terão acesso à escola e ao saber elaborado. Sendo assim, segundo MARX: “o que os indivíduos são resulta, portanto, das condições materiais de sua produção”. (1991, p.28) Logo, se o indivíduo não tem condições materiais de acesso à educação, se tornará incapaz não só de compreender o mundo que o cerca, mas também de agir sobre ele. Toda produção precisa assegurar a reprodução das condições materiais, sendo assim, o Estado age como instrumento de repressão, assegurando a dominação de uma classe sobre outra usando aparelhos ideológicos como a escola. Desta forma, apesar de o saber ser um produto da sociedade, na sociedade capitalista eles são apropriados apenas por uma classe social, a burguesa. Isso nos leva a crer que as diversas formas como cada indivíduo produz sua vida reflete sobremaneira e diretamente o que ele é. Logo, quem constrói o mundo é o homem através do seu trabalho e de suas ações, mas o que os homens são coincide com a sua produção, com o que produzem e também o como produzem. Em outras palavras aquilo que eles são depende, portanto das condições materiais da sua produção e existência, 27 desta forma, produzindo seus meios de vida os indivíduos produzem indiretamente a sua vida material. Entretanto, para que haja produção material, é necessário que o homem antecipe em idéias os objetivos da ação. Mas para que o homem faça a antecipação destas idéias é preciso que este tenha acesso ao saber elaborado produzido na sociedade, porém o saber produzido socialmente, na sociedade capitalista a tendência é torná-lo propriedade exclusiva da classe dominante. Por isso faz-se necessária a formação crítica de nossos professores, para que estes trabalhem de forma diferenciada, não deixando com que a escola se torne um aparelho ideológico a serviço do estado. Descrição e análise dos dados coletados Tendo em vista o método aqui adotado, ou seja, o materialismo histórico de Marx e Engels, foi construído um instrumento de pesquisa que levou em consideração elementos constitutivos da materialidade das famílias envolvidas. A pesquisa foi feita envolvendo vinte e quatro famílias, residentes no Bairro Caçula, bairro mais populoso do município. Durante a realização deste trabalho, foi aplicado um questionário com alternativas e repostas objetivas sobre alguns dados referentes aos bens materiais e culturais de cada uma das vinte e quatro famílias envolvidas. Dentre as questões destacamos: a estrutura familiar, o grau de escolaridade, emprego, renda e profissão, bens materiais e culturais, estrutura de cada residência, tempo de estudo, tempo assistindo TV e o tempo que passam com seus filhos. a seguir, será feita a descrição e análise de cada questão. A primeira é referente à estrutura familiar. Observa-se que das vinte e quatro famílias, dezessete são nucleares, ou seja, são constituídos por pai, mãe e filhos, outros cinco apenas por mãe e filho, e há ainda dois casos em que as crianças moram com os avós maternos. Nos cinco casos em que as crianças moram apenas com a mãe, quatro delas são repetentes e três mostram-se bastante rebeldes, agressivas e sem interesse pelos conteúdos na escola, não obtendo bom aproveitamento escolar. Em conversas com estas mães, elas falam sobre suas dificuldades, pois a maioria destas trabalham 28 como domésticas ou diaristas para garantir a subsistência de sua família, sendo assim, muitas vezes no período em que estão trabalhando, as crianças ficam sozinhas em casa. A segunda questão refere-se ao grau de escolaridade dos responsáveis pela família, isto é, pai, mãe ou avós, neste caso encontramos a seguinte situação: nos sete casos em que as crianças moram apenas com a mãe ou os avos, estes possuem menos de quatro anos de estudo. Com relação as dezessete famílias nucleares nota-se que: quatro pais e uma mãe declaram-se analfabetos, seis pais e sete mães possuem ensino fundamental de 1ª a 4ª séries incompleto, três pais e três mães concluíram seus estudos de ensino fundamental de 5ª a 8ª séries incompleto, enquanto que três pais e uma mãe têm estudo ate 8ª série. Entre estas dezessete famílias entrevistadas, apenas uma mãe declarou ter iniciado o ensino médio, não o concluindo posteriormente, e apenas um pai e uma mãe que conseguiram concluí-lo. É necessário destacar que no último caso descrito estes pais não pertencem à mesma família nuclear envolvidos na pesquisa há um caso em que pai e mãe pertencentes ao mesmo núcleo familiar encontram-se em estado de analfabetismo. Estas situações descritas acima dão sustentação a informações anteriores que dão conta de que 84% da população deste município possuem menos de oito anos de estudo. A terceira questão refere-se a emprego, renda e profissão, onde se agravam ainda mais os problemas destas famílias, isso porque, sem dúvida, a renda familiar é uma das mais importantes fontes de constituição material. Remetendo–nos a Marx em seu texto “salário, preço e lucro”, onde este autor determina o salário como “a expressão em dinheiro da compra da força de trabalho por um determinado período”. Em outras palavras, o salário é o valor de troca da força de trabalho. Desta maneira, percebe - se que grande parte destas famílias vive em situação precária, sendo que entre as vinte e quatro famílias, em quatorze delas apenas o pai trabalha em quatro casos o pai, juntamente com outro membro da família como mãe ou filhos mais velhos trabalham. Há também um caso em que a mãe e um filho trabalham, e nas duas famílias compostas por avós e netos em um caso o avô trabalha e no outro apenas um tio. Entretanto, destas vinte e quatro famílias nove recebem algum tipo de beneficio do governo como Bolsa-Escola ou Bolsa-Família, assim 29 foi possível constatar que três destas famílias vivem apenas deste benefício sem que nenhum membro da família trabalhe. Portanto, a renda média destas famílias é muito baixa, não possibilitando a elas uma melhor qualidade de vida. Segundo os dados coletados, quatorze famílias sobrevive com uma renda de 0 a um salário mínimo, sete recebem em torno de 1 a 2 salários mínimos e apenas três famílias conseguem sobreviver com um pouco mais de conforto e dignidade possuindo uma renda entre 2 e 3 salários mínimos. Sendo o salário o preço de troca pela força de trabalho dos indivíduos, e sendo este quase que insignificante, é possível perceber claramente que estes homens e mulheres não possuem meios para adquirir todas as mercadorias necessárias à subsistência de suas famílias. Outro aspecto que precisa ser levado em consideração é a questão educacional, pois Marx afirma em seu texto Trabalho assalariado e capital, que “quanto menor for o tempo de formação profissional exigidos por um trabalho, menores serão os custos de produção operária e menor será o preço do seu trabalho, o seu salário” (2006 p.44) Das vinte e quatro famílias, dezenove possuem menos de oito anos de estudo explica-se em parte a questão dos baixos salários e suas conseqüentes precariedades materiais de vida. Como a maioria destes pais possui pouco estudo, muitas vezes não conseguem entender as atividades escolares para ajudar seus filhos em casa. O trabalho desempenhado por estes indivíduos é em grande parte braçal, sendo nove deles ligados a agricultura ou ao setor madeireiro e outros como: à construção civil, serviços gerais, cabeleireiro, motorista, empregada doméstica, mecânico e operador de máquina, trabalhos que não exigem grande esforço mental ou maior grau de escolaridade do que apresentado por estas pessoas. Destacamos que entre estas vinte e quatro famílias, há apenas o caso de uma mãe que é professora, trabalho que exige maior grau de escolaridade. Outro agravante desta situação é o fato que entre vinte e uma famílias onde há um membro desta trabalhando, doze declararam trabalhar sem carteira assinada, ou seja, no setor informal, restando apenas nove para o setor formal. A próxima questão a ser analisada, refere - se aos bens materiais e culturais das famílias participantes desta pesquisa. Dos dados 30 coletados: quinze famílias declararam possuir livros em casa, entretanto, estes livros não são livros de leitura ou de pesquisa e sim livros didáticos ou de histórias infantis, apenas cinco informaram possuir algum tipo de revista em casa e três declararam possuir algum jornal, porém estes não são provenientes de assinaturas, mas adquiridos aleatoriamente uma vez ou outra. Percebe - se a gravidade da situação socioeconômica destas famílias em se tratando de bens materiais como, TV, rádio, DVD, vídeo - game e brinquedos, sendo que sete destas declaram não possuir aparelho de televisão, uma não possui aparelho de rádio, dezesseis não possuem aparelho de DVD, vinte e duas não possuem aparelho de vídeo - game e cinco não possuem nenhum tipo de brinquedo em casa.Estas famílias também declaram que não possuem estes bens em suas residências devido à precariedade de suas condições socioeconômicas, ou seja, devido a materialidade de sua existência. Dando continuidade à descrição dos dados aqui analisados, discorreremos sobre a estrutura física das residências destes indivíduos, onde muitos destes domicílios não apresentam todos os cômodos necessários ao conforto da família. Entre as vinte e quatro residências visitadas, em quinze delas as crianças não possuem quarto individual, muitas vezes vindo dormir no mesmo quarto e até na mesma cama que os pais, das nove crianças que possuem seu próprio quarto, duas não dormem nele por medo do escuro ou outro medo qualquer, lembrando que estas duas crianças já estão com seus oito anos completos, retratando talvez certa falta de limites que os pais deveriam impor. Apenas quatorzes destas residências possuem as salas de estar, onde a família geralmente se reúne para conversar, assistir TV ou desenvolver outras atividades. No caso de lavanderia, a parte utilizada para fazer a higiene das roupas e dos calçados utilizados pela família, apenas oito residências possuem esse cômodo, nas demais este trabalho é feito ao relento ou na própria varanda da casa, pois nove residências possuem varanda sendo seis delas não possuindo lavanderia. Há que se ressaltar que existem seis domicílios onde cozinha e quarto fazem parte praticamente de um mesmo cômodo, sendo separado algumas vezes por uma cortina ou nem isso. Ainda há dois casos mais graves em que duas residências não apresentam sequer 31 banheiro, cômodo de fundamental importância para a manutenção da higiene pessoal dos indivíduos. Segundo Marx, quanto maior o grau de instrução do operário, quanto mais o operário precisar se qualificar, mais cara se tornará sua força de trabalho e conseqüentemente mais alto será o seu salário, sendo estes indivíduos possuidores de uma baixa escolaridade, submetem-se a trabalhos que não exijam muito esforço mental, porém estes trabalhos realizados mecanicamente pelo operário, são pagos com salários bastante reduzidos, que não permitem a estes trabalhadores condições adequadas de vida para si e para os seus familiares. Por estes motivos é que se explica parte das dificuldades financeiras destas famílias. e se seus filhos não tiverem chances de adquirir conhecimentos, provavelmente esta situação perdurará por um bom espaço de tempo. Segundo dados reunidos nas entrevistas, doze das vinte e quatro crianças aqui analisadas separam menos de 1 hora diária para os estudos, cinco separam entre 1 e 2 horas e sete não separam nenhum tempo para estudar em casa. Algumas respostas indicam que o horário de estudo destas crianças é durante a noite, após o jantar, o que não é recomendável, pois neste horário elas já se encontram bastante cansadas e com sono. Sendo assim, fica claro que estas famílias não desenvolvem em seus filhos o hábito de estudo extra-escolar, tão necessário para a melhor aprendizagem e aproveitamento destes alunos. Nas entrevistas realizadas, conversando com os pais, pudemos constatar que os pais destas crianças são bastante desprovidos de estudos, apenas oito famílias informaram que o pai ou a mãe ajudam seus filhos nas atividades escolares enviadas para casa, quatro declararam não ajudar porque não sabem, cinco disseram que outras pessoas como irmãos, tios e vizinhos ajudam e sete disseram que ajudam apenas quando sabem, pois quando eram crianças estudaram apenas a primeira e segunda séries e com o passar dos anos foram esquecendo o pouco que haviam aprendido, ou seja, são pessoas praticamente analfabetas, que sabem apenas assinar o nome e ler algumas palavras, faltando-lhes a noção de interpretação de mundo e dos acontecimentos sua volta São pessoas que possivelmente serão manipuladas por outras mis instruídas. 32 Em contrapartida à falta de condições para os estudos, observa-se que das dezessete famílias que possuem TV, em apenas uma delas houve a declaração de que as crianças assistem TV por tempo inferior a 1 hora por dia, em dez delas as crianças assistem TV por tempo superior a 1 hora diária e em cinco casos os pais foram honestos em declarar que seus filhos assistem TV por mais de 3 horas diárias. Sendo a TV um dos meios de comunicação de maior influência principalmente da população de baixa renda e escolaridade reduzida, e sendo também propagadora e banalizadora de temas como violência, rebeldia, falta de limites e até mesmo sexo é comum que estas crianças interpretem como corretas certas exposições feitas em propagandas e telenovelas, pois muitas destas, mesmo sendo classificadas para pessoas com idade mínima entre 12, 14 e até mesmo 16 anos, são vistas e interpretadas a seu modo por estas crianças, e sem dúvida, muitos dos exemplos explicitados pela TV influenciam de maneira desastrosa para muitas destas crianças. Durante este trabalho, foi possível detectar as dificuldades destas famílias no que se refere às questões materiais, culturais e de escolaridade. Sem dúvida estes fatores manifestam significativa influência sobre o desempenho escolar dos estudantes. Dos vinte e quatro estudantes da 2ª série A da Escola São Bernardo descreve-se a seguinte situação: apenas oito alunos não acumularam nenhuma reprovação em seus registros escolares, estas crianças completaram ou irão completar 8 anos no decorrer deste ano. Nove destes alunos estão com 9 anos e acumularam uma reprovação, três estão com 10 anos e acumularam duas reprovações, um está com 11 anos e acumula três reprovações, um completou 12 anos e já acumula quatro reprovações e o caso mais grave é de um aluno que está com 13 anos completos e acumula 5 reprovações, sendo uma na 1º série e quatro na 2° série. E existe ainda o caso de um aluno surdo que já está com 15 anos e apresenta uma reprovação no ensino regular. Sendo assim, não há argumentos contrários a afirmação de Saviani (1991) que diz: “as crianças das camadas trabalhadoras são vítimas de uma situação social injusta e opressora” (p.39) Esta afirmação explica-se pelo fato de que as citadas crianças não possuem as mesmas oportunidades dos filhos de pessoas pertencentes à classe burguesa, pois devido aos baixos 33 salários de seus pais muitas vezes estas crianças precisam deixar a escola para dar início a sua vida de trabalhador e desta forma ajudar na renda familiar. Com o pouco estudo que estes puderam adquirir, estarão condenados aos trabalhos mais insalubres e mal remunerado dando continuidade á vida de exploração á que seus pais foram submetidos. Sendo assim, durante este trabalho pode-se perceber que a situação socioeconômica das vinte e quatro famílias estudadas é bastante desfavorável, privando-as do bem estar e conforto a que todo ser humano tem direito. A questão que mais preocupa é o fato de que são as crianças as mais prejudicadas quando não se tem as condições materiais necessárias à sobrevivência humana. Assim, destaca-se a necessidade de refletirmos de forma crítica sobre as verdadeiras faces do capitalismo, pois todos consideramos que este sistema é bastante injusto e o principal responsável pelas desigualdades sociais existentes. Considerações finais Este artigo configurou-se em um esforço analítico teórico prático da relação família-escola por meio da teoria materialista de Marx e Engels que interpreta a sociedade e seu desenvolvimento histórico. Apoiada neste subsídio pode-se concluir que há uma estreita relação entre as condições materiais dos indivíduos e seu desenvolvimento social, visto que este desenvolvimento depende do modo como estes homens produzem seus meios de vida, determinados por limites e pressupostos independentes de sua vontade. No quadro das vinte e quatro famílias estudadas percebe-se um retrato das condições materiais da cidade de Cantagalo, que na ordem das cidades paranaenses constitui-se em uma das mais pobres com 47% de sua população vivendo abaixo da linha da pobreza, ou seja, sobrevivendo com uma renda mensal igual ou até mesmo inferior a um salário mínimo. Além de constituírem um representativo universo da cidade de Cantagalo, as condições materiais das vinte e quatro famílias envolvidas nesta pesquisa retratam a realidade do Bairro Caçula, onde localiza-se a Escola São 34 Bernardo que vem sofrendo com sérios problemas de aprendizagem de seus alunos, chegando a reprovar 46% destes, e obtendo um Índice de Desenvolvimento Educacional de 3.2 no ano de 2007. Dados colhidos na pesquisa como renda familiar, emprego, constituição familiar, escolaridade dos pais, residência, propriedade de bens materiais e culturais cruzados com a vida escolar dos estudantes nos fizeram concluir que a desfavorável situação social em que vivem estas pessoas, contribui para o baixo rendimento de seus filhos na escola, pois muitas destas famílias vivem em absoluta situação de pobreza, não ofertando aos seus filhos as mínimas condições de conforto e bem estar.. O analfabetismo ou semianalfabetismo dos pais também contribui para a continuidade desta situação, porque se os pais não possuem o mínimo de conhecimento não conseguirão oferecer aos seus filhos a ajuda necessária à resolução de suas atividades extra-escolares. Porém, não é o caso de caracterizarmos esta relação das condições precárias destas famílias com o insucesso escolar como determinada a priori. Ao contrário disso, estes estudos preconizam, como base para outros estudos, a necessidade de se ir a realidade concreta, perceber as relações e os obstáculos que se opõem à atuação competente do professor, para que este, ao executar o trabalho pedagógico, tenha o compromisso de superação justamente desta determinação que é corrente em nossa sociedade, tendo em vista que a educação é um dos grandes instrumentos de promoção de igualdade das condições sociais, Mas para que isso aconteça de fato, é necessário o compromisso político que é o ponto crítico do processo educativo. Assim, pretende-se contribuir com este trabalho para novas pesquisas e práticas pedagógicas mais conscientes e críticas por parte dos professores, práticas estas que se desenvolvam para além do senso comum e se tornem atividades intencionais que tenham como ponto de partida a realidade precária de nossos alunos e escolas, mas como ponto de chegada à construção coletiva de uma nova sociedade, mais justa e igualitária para todos. 35 REFERÊNCIAS 36 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da educação, São Paulo: Moderna, 1989. DUARTE, Newton. Crítica ao fetichismo da individualidade. Campinas: Autores Associados, 2004 IPARDES (Instituto Paranaense de Desenvolvimento e Estatística). Disponível em: http/www.ipardes.gov.br. Acesso em 10 de setembro de 2008. MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec, 1991. MARX, Karl. Trabalho assalariado e capital e salário, preço e lucro. São Paulo: Expressão Popular, 2006. PREFEITURA MUNICIPAL DE CANTAGALO. Disponível http/www.cantagalo.net, acesso em 05 de setembro de 2008. em: SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórica - critica: primeiras aproximações, São Paulo Cartez, 1991. 37 CRENÇAS E PRÁTICAS CIGANAS : UM OLHAR DA ANTROPOLOGIA SOBRE A OBRA MAGIA CIGANA DE CHARLES LELAND Gilce Francisca Primak Niquetti Deorlene Pacheco Fonseca Claudinor Tomasi Ciências Sociais - Faculdade Guarapuava Orientadora: Prof.ª Ms. Cerize Nascimento Gomes RESUMO: Este trabalho pretende uma releitura da obra Magia Cigana: Encantamentos, Ervas Mágicas e Adivinhação, editado em 1891, de Charles Godofrey Leland, fundador e presidente da sociedade de Cultura Cigana. Segundo o autor, a ciganologia tem poucos registros e fontes de pesquisa, resumindo-se nas leis de repressão e expulsão dos povos ciganos. A riqueza de informações reside em lendas, canções e encantamentos preservados pela tradição oral. Este trabalho procura identificar como o povo cigano contribuiu para disseminar em suas andanças, as magias e os medicamentos entre os camponeses de várias regiões, durante sua jornada em direção do Ocidente. Em constante mobilidade, os ciganos mais assimilavam a cultura dos povos por onde passavam, do que a influenciavam. Os grupos que chegaram à Europa no século XV procediam do baixo Egito, Grécia, Chipre e regiões vizinhas. Como resultado, pode-se observar a escassa literatura bibliográfica, bem como pesquisas acadêmicas sobre a origem, costumes e crenças ciganas. Com este estudo pretende-se identificar e valorizar o interesse do autor em registrar e valorizar elementos da cultura cigana, que podem esclarecer aspectos da história desse povo místico. PALAVRAS-CHAVE: Ciganos. Cultura. Magia. Crenças. Costumes. 1. Introdução De origem incerta, cercado de mistério e preconceitos, impiedosamente perseguido ao longo dos séculos, o povo cigano faz do planeta a sua pátria. Oscar D’Ambrosio Os ciganos pertencem aos grupos que praticamente não possuem registros históricos com fontes documentais reduzidas aos registros feitos por leis de repressão e de expulsão que caracterizam os primeiros quatro séculos de sua passagem pela Europa. Margery Silver entende que o livro de Charles Godfrey Leland, Magia Cigana: Encantamentos, ervas mágicas e adivinhação, publicado em 1891, é a mais representativa obra e a única coletânea autêntica sobre a essência da cultura cigana. Sobre isso ela escreve: A tese defendida por Leland – esboçada e documentada não só em sua biblioteca incomum, mas por associações pessoais íntimas de metade de uma vida em estradas abertas ou em clareiras nos campos – é que os ciganos, em extensão muito maior do que qualquer pessoa esteja consciente, tem sido, pelo menos durante uns mil anos, os vendedores andarilhos internacionais dessa permuta de lembranças, magias e medicamentos com a maioria dos camponeses do mundo, durante sua longa trilha em direção ao Ocidente, como os exilados párias da Índia, ao longo dos platões do Afeganistão e da Pérsia, para a Síria e o Egito, e de lá, depois de uma pausa de direção desconhecida, em direção ao norte, atravessando as montanhas do Cáucaso e penetrando os Bálcans, a Grécia e eventualmente a Europa ocidental medieval, onde seu itinerário foi amplamente estendido, à força e voluntariamente, para as praias distantes do continente americano e até mesmo australiano. (SILVER, in, LELAND, 1962, p.9) Segundo a autora, o interesse pela ciganologia data da emergência do pensamento etnológico do final do século XIX, momento em que a antropologia procurava explicar aos homens as razões culturais da sua existência. Nesse período, marcado pelas crises da Revolução Industrial, houve um interesse renovado pelos conhecimentos até então marginalizados como os aspectos mágico-religiosos dos povos até então excluídos por suas crenças e seus costumes considerados pagãos. Os primeiros estudantes da cultura cigana encontraram suas origens nos mistérios e rituais da antiguidade primitiva e em práticas e preocupações contemporâneas, o que demonstra que em lugar de serem engolidas pela modernidade, as crenças ciganas pareciam ter avançado com ela: Os etnólogos começaram, no final do século XIX, a juntar o quebra-cabeça cigano a partir de evidências das características físicas, dos mitos tribais e, mais importante do que tudo, das 38 raízes e dos apêndices de sua língua. ( ) Os estudiosos concordaram que por sua condição de estrangeiros e sua facilidade de aprender idiomas novos, os ciganos conseguiam sobreviver onde quer que fossem, bem como pelo acervo de seus conhecimentos tribais de dança, canto, habilidade com os metais e o trato com os animais, ou pela prática da medicina indiana, quiromancia e roubo, quando as oportunidades e o interesse do público permitiam. (SILVER, in LELAND, 1962, p. 10 e 11) No caso de Leland, ela observa que eu interesse datava de pelo menos 50 anos antes dos primeiros trabalhos de antropologia. Com o tema em cena, o folclorista tratou de corresponder-se com outros poucos etnólogos espalhados pelo mundo, que também estavam seriamente interessados no idioma e na cultura cigana (SILVER, in LELAND, 1962 p.20). Com isso teriam formado um grupo de estudos e troca de informações que foi precursor da Sociedade de Cultura Cigana, fundada em 1888. A partir a descoberta da lingüística, a ciência que estuda as línguas, foi que estudiosos começaram a seguir as pistas deixadas pelos ciganos, na sua migração desde a Índia. A principal língua identificada foi o romani. Até hoje, os ciganos falam o romani, uma língua própria, inclusive com alguns dialetos específicos. Mesmo esses dialetos, apesar de influenciados pelas línguas e culturas dos países por onde os ciganos passaram, conservam ainda forte ligação com o romani. Por meio dos estudos lingüísticos, juntos esses pesquisadores começaram a investigar a vida cultural dos ciganos, suas tradições e suas práticas que até então eram desconhecidas: Secretas como um embrião e escorregadias como a água as crença dos ciganos constituem uma mistura curiosa de elementos pagãos e cristãos, primitiva e sagaz, bucólica e bestial.( ) Esse esforço etnológico conseguiu iluminar verdadeiramente o túnel estreito e profundo dos costumes humanos, escuro até esse momento, que percorrera a cultura ocidental durantes séculos. ((SILVER, in, LELAND, 1962, p.7) Desde os primeiros estudos os membros da Sociedade concordavam que o povo cigano por sua constante mobilidade, havia colaborado para disseminar em suas andanças, as crenças, as magias e os medicamentos gestados pelo contato com várias culturas, para os camponeses com os quais conviviam durante sua jornada em direção do Ocidente. O movimento das caravanas fazia com que os grupos 39 assimilassem porções da cultura dos povos por onde passavam, as quais influenciavam e pelas quais eram influenciados, num intercâmbio desconhecido em outros povos estudados pelos etnólogos e folcloristas. Os grupos que chegaram à Europa no século XV vinham do baixo Egito, que, na Grécia, Chipre e regiões vizinhas e traziam com eles conhecimentos secretos e curiosos. Assim sendo, por meio da obra Magia cigana, de Leland, que reúne uma coleção de encantamentos, simpatias, conjurações, adivinhações e superstições, pretende-se examinar as práticas e as crenças ciganas, com o objetivo de identificar as contribuições dos povos ciganos para a cultura ocidental. 2. Sobre o autor Charles Godfrey Leland (1824-1903), é descendente de uma família inglesa que no século XVII imigrou para os Estados Unidos da América, fugindo das perseguições aos protestantes e dos intermináveis conflitos religiosos europeus. Filho de pais prósperos, ainda em sua infância interessou-se pela magia cigana a partir de contos relatados por empregados da casa. A maior parte da sua infância foi dedicada ao estudo compenetrado de lendas medievais, contos de fada, casos de fantasmas e receitas de poções e de encantamentos. Jornalista, escritor e folclorista norte-americano, em 1870 mudou-se para a Inglaterra onde pretendia dar continuidade aos estudos sobre os povos ciganos. Aprendeu a língua romanesa (romani, vem de rom que significa cigano) e pela convivência harmoniosa com vários grupos e linhagens de povos ciganos passou a ser considerado um membro da comunidade. Por seus vários tratados sobre a ciganologia inglesa e a bruxaria italiana, tornouse um dos maiores folcloristas do século XIX. Em 1888, fundou a Sociedade de Cultura Cigana, da qual se tornou o primeiro presidente. O primeiro livro de Leland sobre o tema foi Os ciganos e sua língua, publicado três anos depois de seu primeiro contato com os mesmos. 40 Publicou também Poesia e mistério dos sonhos e posteriormente, em 1891, Magia Cigana. Incentivado pelos ciganos interessou-se pela feitiçaria etrusca e florentina. Embarcou para a Itália onde após anos de estudos, publicou em 1899, um dos seus livros mais conhecidos Arádia: O evangelho das bruxas, no qual apresentou uma coletânea de conjurações, superstições, costumes, cerimônias, fetiches, rituais e filtros de amor. Quanto ao livro sobre o qual está relacionado o presente trabalho, Magia cigana, sua biógrafa escreveu: O motivo mais urgente que levou Leland a compilar tal volume foi salvar os fragmentos vivos da passagem longa e não registrada dos ciganos pelos caminhos secretos da civilização, antes que fossem completamente extintos. E é em suas obra ciganas que esse interessante autor americano nos dá o seu verdadeiro auto-retrato: o de um cavalheiro vitoriano vigoroso e letrado, de mente inquisidora e coração encantador, vestido com seus trajes ingleses, as longas barbas brancas eriçadas pelo vento que levanta a poeira em torno das tendas de um acampamento de andarilhos romani, com um caderno de anotações em uma das mãos e um amuleto no bolso. ( ) Entre as caravanas, violinos e fogueiras Leland foi iluminado por essas essências selvagens destiladas ao longo dos séculos pela pura imaginação dos homens simples. (SILVER, in. LELAND, 1962, p.26 e 27) 3. Magia cigana – um clássico do século XIX A obra Magia cigana: Encantamentos, ervas mágicas e adivinhação foi publicado em 1891, com mais de 300 páginas e 16 capítulos. O primeiro trata sobre as origens das crenças ciganas e suas relações com a feitiçaria e o xamanismo; o segundo aborda encantamentos e conjurações para curar distúrbios dos adultos; o terceiro descreve conjurações, exorcismos e cura de crianças, bem como as virtudes do alho; o quarto capitulo aborda a doutrina de magia cigana de vários grupos, os espíritos da terra e do ar e o costume dos encantamentos com cascas de ovos; o quinto dedica-se aos encantamentos ou conjurações para curar e proteger animais; o sexto trata das práticas de encantamento para mulheres grávidas e sortilégios para prevenir hemorragias menstruais. No sétimo capítulo de sua obra, Leland versa sobre a recuperação de propriedades roubadas, confecção de amuletos de amor, poções e filtros amorosos; no oitavo escreve sobre bruxarias e superstições da Romênia e 41 da Transilvânia que são ligadas aos ciganos; no nono capítulo descreve os encontros e reuniões de mulheres feiticeiras e aborda lendas ciganas; no décimo enfoca assombrações e hábitos das feiticeiras, espectros e mistificações ciganas; no décimo primeiro item apresenta o resultado de estudos sobre o poder mágico inato em todos os homens e mulheres e relata como pode ser cultivado e desenvolvido esse poder, dissertando também sobre os princípios da adivinhação. O décimo segundo capítulo é dedicado à quiromancia (leitura das mãos), sortilégios românticos e situações autenticas de predição cigana; o décimo terceiro reproduz uma coletânea de provérbios referentes às feiticeiras, ciganas e fadas; o décimo quarto capítulo é bastante denso e traz referências sobre sortilégios mágicos, rimas e encantações infantis com casos e lendas relatados pelos ciganos; o décimo quarto aborda a confecção de amuletos ciganos e finalmente, o décimo sexto capitulo do livro trata sobre a relação da magia cigana com os sapos e encantamentos relacionados aos sapos. Sobre a totalidade da obra, a biógrafa Margery Silver, entende que sua diversidade e singularidade devem-se a erudição do autor, a variedade do seu material e a profundidade de sua coordenação dos fatos. Acrescenta ainda crédito a vastidão das suas especulações sociológicas e psicológicas, ao bom humor do autor e a sua convivência impar com os ciganos. Sobre o resultado final da obra ela avalia: Esse foi o último trabalho de Leland sobre os ciganos, publicado pela primeira vez em 1891, quando o autor já estava com quase 70 anos, e representa uma coleta de 20 anos de conjurações, superstições, costumes, cerimônias, fetiches, rituais, exorcismos, encantações e filtros de amor – baixos e vulgares, divertidos e confusos – colhidos de fontes vivas de toda a Europa, o Oriente e a América, e de publicações de escritores antigos, tanto conhecidos como desconhecidos. É um delicioso apanhado de ensinamentos estranhos, cheios de demônios, diabos, danças, canções, sexo, castidade, rapto de criancinhas, gravidez, prognósticos, bruxarias com sapos, com ovos e outras coisas inacreditáveis. Essa obra é diferente de todos os livros já escritos sobre temas ciganos.(SILVER, in LELAND, p.23) 42 4. Crenças e práticas ciganas As crenças ciganas têm como principais características: o estrito monoteísmo, sem o mínimo indício de algum passado politeísta ou panteísta; um caráter muito pessoal de Deus, que é acessível e com quem é possível dialogar e inclusive discutir e que não necessita de mediação; a existência de um mundo espiritual que consiste em espíritos puros e impuros , que representam o bem e o mal e que combatem entre si. Quanto à morte, ela é vista e como uma passagem definitiva ao mundo espiritual, não há menção de crença em reencarnação. O destino último do cigano depois da morte é o Paraíso, mesmo os maus podem ser redimidos e ascender ao Paraíso. Acredita-se que a adivinhação, a leitura das mãos ou das cartas, bem como poções, filtros , danças de sedução e outros sortilégios, tenham sido ensinadas aos ciganos por antigos magos e alquimistas persas. Os poderes mágicos herdados de ancestrais longínquos e uma vida de intensa mobilidade acrescentam mistério e romance às lendas desses povos aventureiros. 4.1. Sortilégios com cabelos, unhas e dentes Com a finalidade de fornecer idéia sobre alguns costumes ciganos foram selecionadas algumas passagens da obra. Imediatamente ao receber seu primeiro banho e unção, o recém-nascido deve ter a testa e o pescoço marcados com um semicírculo – que talvez represente a lua. Se for menino deve ser feita uma pasta de feijões que deve ser passada sobre a sua genitália para assegurar-lhe grande força viril ou sexual. Se for menina deve ser feita uma pasta com semente de abóbora ou de girassol para que esta seja fértil (LELAND, p.29). Os ciganos depositavam grande confiança em sortilégios feitos com os fios de cabelo e acreditavam que se uma feiticeira ou um bruxo conseguissem uma mecha do cabelo de uma pessoa poderiam fazer-lhe grande mal. Existiam várias magias que poderiam ser feitas com os cabelos. 43 Por exemplo, se alguém quisesse enfeitiçar um inimigo, deveria recolher alguns fios do seu cabelo, molhá-los em sua urina e jogá-los sobre suas roupas para que este não tivesse repouso nem de dia e nem de noite. Para uma esposa fazer com que seu marido a amasse eternamente deveria amarrar os fios do seu próprio cabelo aos dele durante três noites de lua cheia. Para facilitar o parto, deviam-se costurar fios de cabelos vermelhos em um saquinho e trazê-lo junto ao ventre durante toda a gravidez. O cabelo vermelho indica boa sorte e são chamados de cabelos solares. Se uma criança sofre de insônia os cabelos de sua mãe deverão ser costurados nas roupas da criança e ela dormirá tranqüila (LELAND, 1962, p.31). Assim como os cabelos, as unhas tinham poder. Unhas cortadas na sexta-feira deviam ser queimadas e suas cinzas misturadas com a forragem do gado para que o rebanho não fosse atacado por animais selvagens ou roubado. Para uma criança crescer colocava-se um pouco das cinzas de unhas queimadas em sua comida. Para gerar crianças fortes e saudáveis as mulheres grávidas usavam um colar com unhas e dentes de urso ao redor do pescoço. Dentes de javali também eram usados (LELAND, 1962, p.33) 4.2. Encantamentos com cascas de ovos Lendas baseadas com ovos são inesgotáveis. Na Europa Oriental e Ocidental costumam destruir as cascas de ovos depois de comer para que elas não sejam usadas pelas feiticeiras. No Oriente o ovo é considerado um amuleto de sorte e costumam ser usados ovos de avestruz que tem semelhanças aos ovos de galinha para realização de simpatias. Na Índia há várias tradições referentes a práticas com ovos. Por exemplo, quando um parto era difícil, as parteiras quebravam ovos e diziam: “O ovo, o ovo é redondo. E o ventre é redondo. Que venha esta criança com boa saúde. Deus a chama!” (LELAND, 1962, p.62). Se uma mulher morresse de parto, dois ovos eram colocados embaixo de seus braços e o seguinte dístico era pronunciado: “Quando este ovo for quebrado, aqui não haverá mais leite”. Acreditava-se que assim o espírito da cigana descansaria no Paraíso. (LELAND, 1962, p.63). 44 Além das práticas, o autor relata várias histórias e lendas sobre feiticeiras e fadas que usam cacas de ovos para navegar ou voar. Algumas são boas, outras más. Tudo depende da sorte de quem quebrou os ovos. Para evitar surpresas as meninas eram ensinadas a quebrar as cascas em pedaços minúsculos. 4.3. Magia com uso de animais Os casos sobre uso de sapos, rãs, morcegos, mariposas e outros bichos pelos ciganos para fazer encantamentos, bem como as orações para curar ou reaver animais eram famosos. Diante dessas lendas, em algumas regiões, como as da Romênia os camponeses chamavam os ciganos para conjurar em qualquer ocasião. Nessa época a maioria das pessoas acreditava estar rodeadas por legiões de demônios, fantasmas, assombrações e duendes que não podiam ser vistos pelos homens, mas sim pelos animais: Os ciganos acreditam que os cavalos pretos podem ver seres que são invisíveis para os olhos humanos. A maneira misteriosa com a qual os cachorros e os cavalos demonstram sentir medo, quando aparentemente não existe nada visível que possa ser temido – o cachorro latindo à noite, e o cavalo correndo selvagemente, sem a menor dúvida suscitou essa crença. (LELAND, 1962, p.107). Leland relata que na Húngria , os ciganos usavam sementes de estramônio ( planta considerada venenosa) e um tambor parecido com o de um feiticeiro xamã para realizar o ritual de expulsão dos maus espíritos juntamente com estanhas conjurações. Para acalmar, evitar que os animais fugissem ou fossem roubados o autor menciona as mais variadas orações. Para encantar cavalos, animais dos quais precisavam para se locomover, desenhavam com carvão um anel, na pata esquerda, e na direita, uma cruz e rezavam: ” Gire, Gire e gire! Seja, seja muito presente. O demônio não virá até você. Pois Deus, Deus estará com você. Bom Deus, afaste do corpo deste cavalo o pai do mal. Que este cavalo seja lindo, brincalhão e bom. Sete espíritos da terra, ouçam! Eu tenho sete cadeias, proteja este animal sempre, sempre”.( LELAND, 1962, p. 106) 45 O sapo representa um papel de destaque na feitiçaria cigana, o que é previsível pois na maioria dos dialetos romani, existem a mesma palavra para designar o sapo, a rã, e o demônio. Os ciganos e os sapos eram “ aliados próximos “ uns dos outros, e muitas vezes as crianças ciganas costumavam tê-los como animais domésticos.O autor relata que as conexões entre ciganos e persas torna-se cada vez mais legítima, porque na antiguidade esse povo fez do sapo um símbolo e, ao mesmo tempo uma animal de estimação. Isso porque ele era inimigo da luz e mais do que qualquer outra espécie conhecia os seres das trevas. Acreditando nisso os ciganos desenvolveram relações com os mesmos para proteger-se de demônios. Entre as tribos primitivas os sapos eram dominados pela magia e serviam como mensageiros do bem e do mau. Na Europa medieval o sapo representava a gula e a avareza. Na Alemanha crê-se que os sapos perseguem aqueles que fizeram votos de peregrinação e não os cumpriram. Entre os ciganos sapos e rãs eram também usados para adivinhações e poções de amor, conforme segue. 4.4. Poções, simpatias e filtros de amor Para os ciganos todas as mulheres, em determinadas épocas tem poderes mágicos. Por isso, todas são feiticeiras. As ciganas, húngaras, eslavas, indianas e italianas, apesar de terem práticas diversas das européias, concordavam em promover reuniões rituais em conjunto em certas épocas, estações ou fases lunares. Relata-se que se uma dessas mulheres quisesse conquistar um homem, bastaria que subisse solitária numa noite de lua nova até uma montanha distante, tirasse toda a roupa e nua dançasse a luz do luar pensando no homem desejado. Essa dança ritual que teve sua origem na Pérsia, disseminou-se pela Índia e também pela Espanha, tinha o poder de seduzir e encantar a pessoa amada sem qualquer uso de filtro amoroso. Isso porque o poder da magia dessas mulheres poderia ser colocado em ação a partir dos movimentos ritmados das danças libertinas e devassas. Ao som de violinos, flautas e tamborins, o autor diz que as danças ciganas são as mais selvagens já encontradas em qualquer cultura. (LELAND, 1962, p.200). 46 Mesmo assim, não eram todas as mulheres que tinham o poder de sedução pela dança, para esses casos, outras ciganas eram sábias manipuladoras de poções de amor: A beberagem mais simples ou menos perigosa, que serve para garantir o amor, é feita da seguinte maneira: em qualquer uma das noites de lua cheia, colhe-se nas campinas, a planta chamada de açafrão, cujas raízes amarelas são posta para secar. Depois, trituram-nas, misturando o resultado com a menstruação, colando-se tudo isso na comida da pessoa cujo amor se deseja conseguir. (LELAND, 1962, p.153) Do mesmo tipo, existe outra poção, preparada da seguinte maneira: Na noite de São João, pega-se uma rã verde, colocando-a num receptáculo de barro fechado, cheio de pequenos buracos. Em seguida esse receptáculo deverá ser colocado num formigueiro. As formigas comerão a rã deixando o esqueleto, que será transformado em pó e misturado com o sangue de um morcego e asas de mariposas secas. Essa mistura deve ser colocada secretamente na comida da pessoa a ser encantada. (LELAND, 1962, p.154) O autor explica que esses encantamentos “abomináveis” são do conhecimento de muitas feiticeiras que não são ciganas. Eles podem ser encontrados também entre mulheres européias e práticas africanas, bem como em toda a parte do mundo. Além dessas poções, o autor relata que existiam filtros para colocar em bebidas cujas qualidades mágicas estavam ligadas ao uso de plantas como limeiras, tílias e videiras, cujas folhas deveriam ser fervidas e depois deixadas no sereno para que fossem misturadas com gotas de orvalho (LELAND, 1962, p.177) Para adivinhar o futuro de uma relação amorosa, existia uma maneira simples e eficaz. Bastava cortar uma maçã em duas partes com uma faca afiada. Se nenhuma semente fosse partida o romance teria sucesso. Porém se as sementes fossem cortadas alguém teria o coração partido (LELAND, 1962, p.179). 47 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 48 Segundo o autor da obra Magia Cigana a feitiçaria sempre esteve associada aos ciganos e aos poderes mágicos que esses povos receberam dos seus ancestrais mais longínquos. Desde a antiguidade os povos ciganos existiram como possuidores do poderes desconhecidos, conhecimentos secretos e fórmulas mágicas. Aliando-se esses requisitos ao comércio indiscriminado de encantamentos, adivinhações, quiromancia e poções de amor, eles tornaram-se pessoas perigosas para aqueles que com eles convivessem. O desconhecimento sobre suas práticas e o receio de serem vítimas das caravanas de ciganos fez com que esses povos fossem marginalizados e perseguidos em vários lugares, durante os mais diversos períodos da história. Apenas a partir dos estudos promovidos pela antropologia e pela etnologia, a partir do século XIX, foram primeiras pesquisas sobre registradas e publicadas as as origens, as crenças, os costumes e as práticas desses povos, até então temidos como ladrões de cavalos, raptores de crianças, bruxos, feiticeiros, “encantadores de olhos brilhantes e frios como a lua” (LELAND, 1962, p.33). O presente artigo construído a partir de leitura da obra de Leland, deixa claro que ainda são necessárias nova investidas para que se compreenda a ciganologia. Este trabalho é apenas um indicativo de quantos caminhos existem para o surgimento de pesquisas sobre esse tema tão abrangente. É mister que se diga que o comércio da magia cigana tinha várias características, porém como os povos ciganos eram nômades e viviam em acampamentos, sem propriedade particular, sua ciência mágicoreligiosa era mais do que qualquer coisa, um meio de sobrevivência. No que diz respeito ao modo como Leland registrou em seu livro as práticas desse povo, com conjurações e orações, filtro e poções, sortilégios e adivinhações, evidencia-se que a obra feita despretensiosamente em 1891, contem um farto material que serve como fonte de pesquisas para todos os interessados em conhecer os costumes e a flexibilidade do cotidiano dos ciganos. O conhecimento sobre os povos ciganos é de grande valor para a cultura popular e compreender o significado de suas práticas é fundamental para a preservação de sua memória. Baçan, entende sua importância baseado na premissa que em todos os lugares do mundo , nas mais diversas épocas eles foram ou têm sido os adivinhos, andarilhos e aventureiros que preservam essa forma de magia religiosa popular que permanece envolta em estranhamento e marginalização acadêmica e social. O desafio apena começou. Ainda estamos longe de compreender a importância dos povos ciganos e suas contribuições para a história cultural da humanidade. REFERÊNCIAS LELAND,Charles Godfrey. Magia Cigana: Encantamentos, Ervas Mágicas e Adivinhação. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil ,1962. SILVER, Margery. Introdução. In. Magia Cigana: Encantamentos, Ervas Mágicas e Adivinhação. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil ,1962. BAÇAN, L. P. Ciganos, Os filhos do vento. São Paulo: Ed. A casa do Mago das Letras, 1999. 49 JOGOS DE LINGUAGEM: TREINAMENTO, MAQUINARIA E FORMAS DE VIDA Carlos de Jesus Lima Acadêmico do 1º período do curso de Ciências Sociais –– Faculdade Guarapuava RESUMO: Os signos nestas paginas aqui organizados, tem como objetivo apresentar a noção de Jogos de Linguagem do filosofo Wittgenstein como formas de vida, parte dos mundos da linguagem – buscando entender como a linguagem funciona – sua maquinaria. Para tal recorreu-se principalmente a primeira parte da obra Investigações Filosóficas que pertencem ao segundo período filosófico do autor, tendo ele já superado a concepção de “formas lógicas” pertencente ao primeiro período no Tractatus Lógicus Philosóphicus. Considerando um fenômeno qualquer, não devemos tentar descrevê-lo de maneira pré-conceituosa partindo de uma possível fôrma, pronta, acabada, como se tudo já houvesse sido explicado e tabelado de modo que ao consultar uma dada tabela teríamos todas as respostas. Alem disso um princípio explicativo, um fundamento, sendo universal e o único valido para toda e qualquer situação só poderia estar fora do mundo e isto se deve pela necessidade (solipsista) de comandar tudo, existir no todo, durar tudo, ser o todo, funcionar tudo – saber tudo – tornando impossível haver neste mundo um só espanto na consciência, pois no todo ocorreriam os fenômenos exatamente na medida em que todas as gentes antecipadamente os saberiam. Na verdade só haveria ELE. PALAVRAS-CHAVE: Jogo. Linguagem. Função. Filosofia.Educação. Introdução Como ocorre a transmissão do saber? É possível haver uma paridade intersubjetiva e compreensiva num mesmo discurso – não seria o caso de seguido e seguidor? Como se representa à consciência o fenômeno da linguagem enquanto forma de vida? – foi esta a problemática que serviu de guia ate então à pesquisa que se deu em referencia à noção de jogos de linguagem do filósofo Wittgenstein. No inicio buscou-se (pelas leituras) entender o processo de se transmitir uma palavra sem o uso da vocalização – linguagem de sinais, por exemplo – coisa que se tornou supérflua pela complexidade da problemática tratada e abrangências das considerações do autor pesquisado. Porem não tenho duvidas que algumas das questões postas de lado devido a maneira de tratamento textual pelo qual se dera tal pesquisa, não deixaram de ser esclarecidas, a saber, referente ao aprendizado de uma palavra avançamos 50 muito mesmo que tenha sido numa perspectiva do funcionamento da linguagem de modo geral. A pesquisa se desenvolveu via analise bibliográfica e partiu da leitura da primeira parte de Investigações Filosóficas na medida em que trata da noção de jogos de linguagem e seguiu-se daí como base de todas as demais leituras. Num primeiro momento se trata nesta pesquisa e de maneira introdutória, os temas que nortearam a pesquisa no todo. Os temas tratados – palavra, língua e linguagem – seguem buscando apresentar-se no que houve de mais claro e simples possível, afim de que, a partir de então se possa considerar o conteúdo principal reconhecendo inclusive os limites de tratamento dos mesmos. Num segundo momento que então serão apresentados os limites reconhecidos pelo filósofo no livro Tractatus Lógicus-Philosóphicus – formas lógicas – seguindo os passo dos escritos dele para que se possa compreender em referencia a isto o que se tornara possível de concluir sobre os jogos de linguagem frente a problemática em questão – principalmente a saber, como ocorre a compreensão?. Nos terceiro e quarto momentos busca-se introduzir o tema em sua especificidade relativa aos textos de Wittgenstein que serviram de base à pesquisa. Enfim, será apresentada a noção de jogos de linguagem a confrontar de maneira conclusiva (e dentro do possível), ao exposto anteriormente, seja no objetivo de compreender a evolução de outras noções por vez apresentadas, seja na conclusão e clareza dos temas e possível solução/resposta à temática. 1. Sobre Wittgenstein Ludwig Wittgenstein (26 de Abril de 1889 – 29 de Abril de 1951), filósofo austríaco considerado um dos maiores filósofos do séc. XX, senão o maior. Foi aluno de Bertrand Russel, que certa vez admitiu ter em sua classe um aluno tão estranho que não se podia dizer se era gênio ou apenas mais um excêntrico. Um estranho aluno, que certa vez interpelou seu professor de uma dada maneira que não se encontrou saída – a questão era: “o senhor poderia 51 me fazer a fineza de responder se sou ou não demasiado idiota?”... Sendo idiota direcionaria seus esforços à aeronáutica e se não, tornar-se-ia filósofo. Russel então pediu que o estranho aluno escrevesse sobre qualquer coisa da filosofia. E quando Wittgenstein entregou a Russel seu escrito, não se teve mais duvida – ali estava um gênio e futuro filósofo. Wittgenstein é sem duvida um ícone na filosofia da linguagem. Entre seus trabalhos temos o: Tractatus Lógicus-Philosóphicus, sua primeira grande obra apresentada inclusive como tese de doutorado. O Tractatus é o livro em que se apresenta a primeira fase do pensamento do filosofo em cuja pretensão se tinha dar por finalizados quaisquer problemas da filosofia (problemas da linguagem) – e se filosofar é pensar sobre aquilo que pode ser dito, considerando que os problemas são sempre problemas de linguagem, então, resolvendo os da linguagem, acabar-se iam todos aqueles da filosofia. Foi um grandioso e impar trabalho em conteúdo e forma de expressão – talvez o livro mais bem escrito (em termos lógicos) ate hoje. Aspirou-se a perfeição do discurso filosófico ao tocar os limites daquela linguagem (lógica). Foi em seu primeiro grande trabalho que Wittgenstein apresentou suas idéias associadas a noção de forma lógica e tendo resolvido os problemas pretendidos, logo depois teria o filosofo inclusive abandonado a carreira universitária – pois não havia mais por que filosofar8. Ate que um amigo fez um gesto com a mão e como se deixasse um vazio como o que deixei aqui e lhe perguntasse “qual é a forma lógica disto?” – a partir daí dá-se a segunda fase de seu pensamento, exposto principalmente na obra Investigações Filosóficas que ele mesmo chegou a organizar para edição – mas que só veio a ser lançado postumamente. Alias, o único livro entregue à edição enquanto ele ainda estava vivo foi o Tractatus. É nas Investigações Filosóficas que observaremos como o próprio autor ressaltaria, as reflexões que o acompanharam pelos últimos dezesseis anos de sua vida – é onde encontramos a definição de Jogos de Linguagem na medida em que se tem uma superação das formas lógicas expostas no seu Tractatus. 8 Não se deve aqui considerar que uma obra como o Tractatus tenha substituído o valor da atividade que é filosofar – não é este o sentido a que se propõe o livro, ainda que se tenha lá a resposta para tudo que se pretendia o trabalho. 52 Uma vez que abandonara a perspectiva logicista do Tracatactus o livro Investigações Filosóficas é escrito de uma forma bem diferente. Neste ultimo o filosofo não tem aquela postura de estrutura prefixada logicamente, isto é, na medida em que o lemos temos a impressão de as idéias virem surgindo a partir daquilo que ele mesmo via e lembrava ao escrever e observar o já escrito e conjuntamente ao novo mesmo pensado a partir do velho – num ziguezaguear que construía o próprio discurso ao crescer a partir de si, alimentando-se e transmudando-se em cada cifra acrescentada. E quando por vezes retoma um assunto, este já é novo, mais rico e ligado a um conteúdo ainda maior, já olha de outro ponto e o vê diferente – uma sucessão de presentes que no instante/agora podem nos dar uma nova lembrança daquilo que passou e quando o relatamos também construímos, organizamos, etc. 2. Palavra, língua e linguagem Tendo em mente que o problema – compreender um dado saber transmitido pelo treinamento... – refere-se à compreensão do que se dá no confronto entre o transmitir e o receber de uma idéia. Segue-se com relação ao seguinte pensamento: Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao fazê-lo, se voltassem para ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora designado pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indicá-lo. (AGOSTINHO, apud Wittgenstein, 1999, § 1, p.27). Indubitavelmente é deste modo que as pessoas em geral compreendem o processo de transmissão de um dado saber. Pensemos no caso de nos perguntarem: como sabemos que caneta (isto é, a palavra caneta, que faz referencia a um dado objeto presente em uma de nossas mãos), é caneta? Com isto tem-se, e é estabelecida uma idéia sobre os objetos, que seria transmitida através de um sistema sonoro da linguagem, no qual os numerais, as letras, não passariam de representações formais sobre os mais diversos assuntos a serem (como referencia à ordem sonora de apreender os seres) documentados. 53 54 Mas deduzi isto dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e da linguagem que, por meio de mímica e dos jogos com os olhos, por meio dos movimentos dos membros e do som da voz, indica as sensações da alma, quando esta deseja algo, ou se detem, ou recusa ou foge. Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus lugares determinados em frases. E quando habituara minha boca a esses signos, dava expressão aos meus desejos (Idem). Temos aqui, talvez a mais simples e objetiva idéia da linguagem como um todo9. Posto deste modo evidencia-se a relação que há entre objeto pensado/conhecido e o ser pensante, uma vez que este ultimo se detém frente a um outro sujeito para ensiná-lo ou aprender com ele. Está posto o apreender de uma idéia não apenas através da palavra falada, mas também se compreende que há vários modos de se apresentar uma mesma palavra: com raiva; com calma; etc. A tonalidade da voz pode mudar mudando também o seu significado apreendido, sentido, lembrado. E quanto à voz, acrescentamos também um gesto de adeus, por exemplo, um riso, uma cara de tristeza ou qualquer outro gesto, seja de mãos ou com os pés talvez – quando tapamos a boca logo após ter dito algo, dizemos algo que não se ouviu. Deste modo transportamos a palavra e a própria linguagem a um nível imagético, isto é, enquanto aprendizagem fazemos pôr um objeto em movimento, uma imagem em ação, chamamos pela imaginação. Segundo Agostinho “As imagens são originadas por coisas corpóreas e por meio das sensações: estas, uma vez recebidas, podem ser facilmente lembradas, distinguidas, multiplicadas, reduzidas, ampliadas, organizadas, invertidas, recompostas do modo que mais agrade ao pensamento” (apud, ABBAGNANO, p. 538). E com isto uma vez que compreendemos o conceito de imagem como “Representação mental que retrata um objeto externo percebido pelos sentidos” (JAPIASSÚ, p.143), pois bem, chegando a este ponto, faz-se necessário distinguir ainda que brevemente os termos: palavra, língua e linguagem. 9 Alusão feita afinal, em concordância com a postura de Wittgenstein, p. 27. Palavra: segundo Silveira Bueno (p. 458), é tida como som articulado, com significação; fala; faculdade de expressão pela voz, etc. Em ABBAGNANO (P. 740- 741) aparecem dois modos de compreendê-la: um em que o falante utiliza o código da língua para exprimir uma idéia, e outro cujo mecanismo psicológico é que lhe permite exteriorizar a idéia – que em ambos os modos é expressa através de combinações. Ao que parece, a partir destes aspectos da palavra, consideramo-la um ato individual. Mas em certo sentido, encontramos (in ABBAGNANO, Idem), uma ambigüidade, em que a palavra aparece sempre como evento novo ou como ocorrência sempre da mesma. Temos em um livro o caso de milhares de palavras ao passo que há também a ocorrência de uma mesma palavra entre tantas em diversos pontos do mesmo livro – o que talvez devêssemos considerar: signo e símbolo10. Língua: segundo S. BUENO, é o “Órgão muscular situado na cavidade bucal, cuja parede inferior esta presa pela base, e que serve para degustação, para deglutição e para a fala; idioma; nome de vários objetos que tem semelhança com o órgão bucal” (BUENO, p. 378), entre outros. Tomemos para esta discussão o sentido referente à fala, isto é, o idioma. Para isto, língua é “conjunto dos costumes lingüísticos que permite a um sujeito compreender e fazer-se compreender” (SAUSSURRE apud ABBAGNANO, p. 615). Temos aqui tanto a idéia de um sistema/estrutura, quanto de uma “massa falante”, uma realidade social11. Linguagem: para BUENO, linguagem é “Utilização dos elementos de uma língua como meio de comunicação (...) de acordo com cada um, sem preocupação estética; qualquer meio de exprimir o que se sente ou pensa; estilo” (p. 378). Tomemos para tanto e em sentido genérico, “o uso de signos intersubjetivos, que são os que possibilitam a comunicação” (ABBAGNANO, p. 615). 10 Signo – objeto que é um outro por significado, isto é, a qualidade referencial de um objeto (ex: sagitário, mapa-múndi, “palavra”). Símbolo – do grego é aquele que une. É um objeto que qualitativamente representa outro sem deixar de ser ele mesmo (ex: bandeira, mapa, letra). 11 A partir de ABBAGNANO (p. 615), por vezes parafraseando. 55 56 Tendo discriminado cada um dos termos, a saber: palavra, língua e linguagem –, eis que nos assalta a questão proposta desde o inicio deste trabalho: como se dá o processo de aprendizagem de uma palavra – como ocorre a transmissão do saber? É possível haver uma paridade compreensiva e intersubjetiva num mesmo discurso – não seria o caso de seguido e seguidor? Como se representa à consciência o fenômeno da linguagem enquanto modo de vida? Para tal, recorro ao termo jogo de linguagem proposto pelo filosofo Wittgenstein, buscando encontrar um fundamento12, isto é, como se da o funcionamento indubitável do fenômeno Jogo enquanto modo de vida – sendo o modo de vida todo aquele fenômeno em que é possível a relação de sujeitos e objetos como parte de um mundo organizado – como linguagem. 3. Formas lógicas No Tractatus Lógicus-Philosóphicus Wittgenstein nos brinda com o §4.1212 em que se diz: “O que pode ser mostrado não pode ser dito”. Ora, o filósofo expôs concomitante ao supracitado, a noção de forma lógica que num segundo período veio a abandonar, ou melhor, superar. É por isso que para compreendermos os jogos de linguagem nas Investigações, faz-se necessário considerá-los em relação ao exposto no Tractatus – a superação da forma lógica talvez se de pelo esclarecimento de seus próprios limites desta ate o ponto de o desenvolvimento fazer surgir os jogos. Wittgenstein escreve o seu Tratado Lógico-filosófico envolto numa espécie de atmosfera poético-mística. Considera a Filosofia como aquela “terapia” responsável por esclarecer os limites da linguagem. Assim, a Filosofia teria o caráter de terapia que ao ser feita como se ao subir de uma escada – sobre os desafios da linguagem –, superar-se-iam os problemas filosóficos e só nos restaria ao final, abandoná-la. Talvez tenha sido esta a postura do filosofo, a de abandonar seu Tractatus, a sua terapia. 12 Não há em Wittgenstein um fundamento em sentido metafísico da linguagem – limita-se, portanto, a compreender como a linguagem funciona. Como é afirmado naquele tratado, se tudo aquilo que pode ser mostrado não pode ser dito, significa que o mundo descrito é uma representação da realidade, mas não pode ser ela. No entanto, para representar algo é sabido pelo Tractatus, que se necessita possuir a forma lógica daquilo que se representa forma esta que não pode ser dita, mas apenas mostrada, isto é, quando digo “este cão!”, faço ver o cão que não pode ser dito quando o represento. Disto se conclui que a forma lógica é uma necessidade para que o mundo possa ser representado – comum ao mundo e também à representação do mundo – ao passo que o representado possa ser algo de sentido. Enunciemos o Tractatus Lógicus-Philosóphicus no seu ponto inicial com o intento de explanar os sentidos do discurso do autor para com o conteúdo de tudo aquilo que foi dito a partir de então (1968 p.55)13: 1 O mundo é tudo o que ocorre. 1.1 O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas. 1.11 O mundo é determinado pelos fatos e por isto consistir em todos os fatos. 1.12 A totalidade dos fatos determina, pois, o que ocorre e também tudo que não ocorre. 1.13 Os fatos, no espaço lógico, são o mundo. 1.2 O mundo se resolve em fatos. 1.21 Algo pode ocorrer ou não ocorrer e todo o resto permanecer na mesma. Deveríamos tomar a linguagem como uma casa de vidro através dos quais acessamos a realidade. Assim o nosso mundo é o mundo real representado e desse modo conhecido. O mundo é, portanto aquele mesmo da realidade e não pode ser outro. Sendo deste modo, devemos considerar que a realidade consiste em tudo aquilo que representamos e mais, é também aquilo que ignoramos. E nós ignoramos muitos fatos, pois o mundo não depende de um sujeito – ele é dependente sim de uma corrente de fatos – onde um determinado fato é um anelo. 13 Segue-se a versão do texto “publicado em 1921 na revista de Oatwald Annalen der Naturphilesephie” 57 Quando se diz ser o fato um composto de objetos reunidos, poderíamos afirmar que o mundo é a totalidade dos objetos que existem. Neste caso porem, não se pode afirmar nada de um objeto em particular, pois sem o fato nada há - um cão só pode ser no mundo na medida em que é composto, mas aquilo que subsiste (componente essencial) no cão não pode ser representado. Observando um cão, não o podemos conhecer sem um dado lugar – anelo do mundo – ao qual o cão pertence. Este cão não é uma coisa, mas um fato que esta no mundo e isto faz denotar sua existência para nós/outros. Consideramos então que uma representação é factual, ou seja, representa aquilo que ocorre, é o mundo. Devemos compreender que é o mundo, pois seguindo os passos de Wittgenstein compreendemos que, uma rede é uma rede mesmo que mostremos apenas um pedaço dela. Assim é o mundo, sua totalidade. Compreender o que é o mundo seria um dado totalmente estranho se nos representássemos outros fatos que não o próprio mundo na medida certa de sua existência. Para tanto se compreende a necessidade lógica como espelhamento concomitante tanto ao mundo quanto à linguagem – o que é na linguagem é também no mundo. A certa medida da ocorrência de algo assim pertence também à ordem pela qual dizemos aquilo que ocorre. A isto chamemos de: forma lógica dos fatos (no mundo e na linguagem)14. Segundo Wittgenstein a lógica não pode ser representada, pois se tentássemos teríamos de sair dela levando-a conosco. Levaríamos “tal!” para que pudéssemos observar “tal!” de fora e por “tal!” logicamente se compreenderia como pode ser representado aquilo que nesta frase aparece como logicamente. Tal empreitada revelou-se logicamente impossível porque nem sequer será possível representar a lógica que faz representar algum fato com um signo como este “1+1+1=3 logicamente”, isto só é possível de ser representado pela existência factual de uma forma lógica. Assim, um fato é sempre lógico, isto é, tem uma forma lógica e, portanto aquilo que digo do fato é logicamente referente ao mesmo fato – no §4.12: “A proposição pode representar a realidade inteira, não pode, porém, representar o que ela deve ter 14 Faz-se notar por vezes “aquele” perigo – mundo/linguagem; linguagem/mundo – em distinguir aquilo que tomamos como mundo do que consideramos enquanto linguagem. 58 em comum com a realidade para poder representá-la — a forma lógica” (1968, p.77). Retomando aquilo que chamamos noutra instancia de casa de vidro e através da qual percebemos o mundo, consideremos que para tanto, podemos imaginar vidros sujos ou limpos pelos quais são enxergados os mesmos fatos ditos “reais”. Ora, não vemos num fato aquilo que não existe – vemos o fato como real a partir da realidade – e disto se compreende que ao dizermos o falso estamos por representar o real, isto é, aquele “vidro” carregado de sujeira é o que me faz dizê-lo. Eis que se apresenta frente aos problemas de verdade, o caráter da Filosofia. Esta tem o objetivo de esclarecer os problemas que não a constituem, a saber, os problemas da linguagem, isto é, a sujeira do vidro pelo qual vemos o mundo tal qual ocorre. Como terapia a Filosofia vem pelo esclarecimento dar à linguagem a superação de seus problemas – conquistado seu objetivo, a filosofia deixa de atuar. Talvez como uma balsa depois que a usamos para atravessar um rio que abandonamo-la, não a carregamos por terra firme e menos ainda como peso em nossas costas. Consideremos para isto, que a Filosofia é “a” nobre atividade terapêutica – ressaltemos a atividade, pois é isto o que se pode ser dito da Filosofia: filosofar é pensar sobre aquilo que pode ser dito – filosofar é revelar e compreender os limites da linguagem. “A finalidade da filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos” (1968, p. 76). Alem do mais, “A filosofia não é teoria mas atividade” (idem). Ludwig Wittgenstein (in 1968,) começa seu livro com a frase “O mundo é tudo o que ocorre”(p.55) e conclui dizendo que, “O que não se pode falar, devese calar” (p.129). Quanto às suas primeiras idéias brevemente apresentadas neste trabalho através de uma leitura do Tractatus em que o filosofo resolve os problemas a que se propôs o trabalho, a saber, que os problemas filosóficos não existem, são problemas de linguagem. Tendo delimitado o campo da linguagem não será mais necessário usar uma escada que outrora nos fez compreender e superar as dificuldades da linguagem – em §4.1212 se evidencia “O que pode ser mostrado não pode ser dito” (1968, p. 78). Se em relação à noção de forma lógica nos resta dizer o que pode ser dito e mostrar o que pode ser mostrado – tem-se aqui delimitado a nossa ação posterior ao 59 filosofar – cabe, no entanto considerar a totalidade do que ocorre como o mundo. E, como no §7 “o que não pode ser dito, deve-se calar”. 4. Do treinamento Na primeira parte de Investigações Filosóficas, o filósofo anuncia que o ponto de vista de Agostinho citado anteriormente no inicio deste trabalho, parece revelar uma imagem da essência da linguagem humana, a saber: (...) as palavras da linguagem denominam objetos – frases são ligações de tais denominações. – nesta imagem encontramos as raízes da idéia: cada palavra tem uma significação. Esta significação é agregada à palavra. É o objeto que a palavra substitui. (1999, §1 p.27) Segundo Wittgenstein, se Agostinho estiver certo, a linguagem na qual falar o nome de um objeto indicado em certas condições – para um sujeito que por isso aprende a idéia (p.28) –, é treinamento. E deste modo “quem ensina mostra os objetos” (§6, p.29), caso em que um professor não explica, apenas conduz. Ele fala o nome e o aluno repete. Assim se ensina e assim se aprende. Mas este treinamento ou aquilo que representamos como sendo ele, não é o suficiente para explicar como uma palavra (signo) passa a ser (significar) este ou aquele objeto, ainda que consintamos à ação de nomear em analogia àquela de pôr etiquetas num objeto para dizer alguma coisa – como se colada numa caixa de laranjas uma etiqueta mostrasse letras organizadas da seguinte forma: “laranja”, sem as aspas talvez. Isto levaria a quem lê tal palavra (“laranja”), a informação de que ali tem laranjas. Mas, somente se a pessoa treinou aquele trajeto, isto é, se aquele leitor esta seguindo pelas determinações de uma etiqueta que aprendeu pelo treinamento. Deve considerar os limites de treino necessários para uma pessoa poder ler (“laranja”) e saber que se ali houvesse as letras “limões”, ele saberia pela etiqueta aquilo que com isso se espera ter na caixa. Observamos que para tanto, cada objeto apreendido se daria pelo treinamento. E para de fato ler este texto ou aqueles outros tão comuns em nosso cotidiano, alem de tantos – de matemática, biologia, psicologia, 60 geografia – como é possível ler? Quanto de treinamento tem de ser feito? E como se daria a transmissão de um dado saber senão por treinamento? O treinamento por si só não consegue nos representar satisfatoriamente o processo de significação que se apreende com ele. Isto fica claro em nossas experiências na medida em que descobrimos pelo jornal, algo de novo, uma informação nova. Mas, se por acaso não existir coisa alguma a ser conhecido e sim treinado, talvez estejamos considerando erroneamente a transmissão de uma mensagem – como passagem de uma coisa a outra ou do condicionamento daquilo que já esta ali – via treinamento. Não podemos negar ao treinamento a importância que lhe cabe nem tomá-lo constituído pelo que não lhe é próprio. Se ao seguir o filósofo temos de considerar que “O ensino da linguagem não é aqui nenhuma explicação, mas sim um treinamento” (§5, p.29) – sabemos agora que no treinamento a fim de apreendermos uma linguagem, junto nos toca um algo a mais. O treinamento enfim, já é segundo Wittgenstein, uma linguagem – linguagem primitiva, em que A mostra a B um tijolo e ao mesmo tempo grita “tijolo!” até que B através de erros e acertos traga até A o objeto nomeado e seja por isso recompensado. B aprendeu, isto é, B foi treinado15. 5. Da maquinaria Se não há possibilidade de compreensão daquilo que (foi treinado), esta sendo dito ou demonstrado, isto significa que não há uma linguagem sequer, nem mesmo primitiva. Faz-se necessário lembrar em que consiste a linguagem, seja ela primitiva ou não. Pois bem, a linguagem é o uso de signos pelo qual se compreende e se faz compreender algo. Devemos entender, portanto, como se da uma compreensão – o treinamento por si só não da conta de fazer compreender. Devemos pensar em analogia ao processo de leitura. Quando exatamente podemos afirmar que alguém lê, é quando este possui uma linguagem, que domina alguns signos, palavras – a leitura limita-se à extensão 15 Treinamento = uma manifestação da linguagem que nos toca com algo a mais; treinar = ensinar; falta a compreensão; 61 de domínio de signos pelo leitor. Bem, se considerarmos que ao ler segue-se uma tabela, o treinamento nos pos a firme tal tabela, sem a qual não podemos entender o que esta diante de nossos olhos. O fato é que uma tabela tem apenas modelos ordenados (A, B, C,...) de certa maneira – se eu buscar nessa tabela o modelo deste texto, não o encontrarei – sem um modelo conseqüentemente eu nem sequer poderia tê-lo escrito. Na memória tenho elementos que compõem o texto, não o texto modelo – lembremos que Wittgenstein vai para alem dos limites daquilo que afirmara no Tractatus, isto é, da forma lógica. Seguindo adiante, pensemos agora nas formulas matemáticas. Podemos aprendê-las por treinamento. Mesmo assim há nas fórmulas algo a mais que o exposto nas tabelas – nem todos os resultados, nem todas as combinações estão na memória, isto é, naquela tabela (ex. 2+192837465=... – você não procura numa tabela – isto nos remete a idéia de calculo). Então quando assimilamos uma formula – nas Investigações – junto desta assimilamos seu funcionamento: (...) – devo dizer que efetiva a compreensão da palavra? Não compreende a ordem “lajota!” aquele que age de acordo com ela? Isto ajudou certamente a produzir o ensino ostensivo; mas na verdade apenas com uma lição determinada. Com uma outra lição, o mesmo ensino ostensivo dessas palavras teria efetivado uma compreensão completamente diferente. “Ligando a barra com a alavanca, faço funcionar o freio.” – Sim, dado todo o mecanismo restante. Apenas com este, é alavanca de freio; e, separado do seu apoio, nunca é alavanca, mas pode ser qualquer coisa ou nada. (1999, §6, p. 29) Pois se consideramos uma linguagem qualquer como uso de signos, aquilo pelo qual isto se apreendeu chamar-se-á também de linguagem. Não. Aqui Wittgenstein não pergunta qual é a essência da linguagem, mas como ela funciona. Funcionar parece demasiado aproximar-se da idéia de pôr algo em movimento, movimentar, etc. Assim, uma coisa que move sempre é movida por outra como numa roda d’água. Se observarmos uma roda qualquer, perceberemos que ela só pode ser uma roda fora do mundo. Quando olhamos para uma roda no mundo, no entanto ela é uma peça de maquina que só funciona ao fazer parte. Uma roda qualquer é totalmente inútil. Uma roda é constituinte de um mecanismo e útil na 62 medida em que a maquina funciona – é sem duvida deste modo que sabemos o que é aquele ou este objeto, isto é, sei onde se encontra, conheço seu espaço e seus limites de encontro às demais peças. Assim um pneu é aquilo que é ao servir de pneu, pois se um pneu estivesse sempre apto a correr e morder todos os gatos que miaram durante noite quando pronuncio “pega!”, o pneu seria isto e não aquilo, etc. Segundo nosso autor, portanto, sempre que uma pessoa apreende o significado de um signo qualquer é por que levamos a ele a representação de um contexto e como parte deste um objeto que indicamos. Assim, quando A gritou “tijolo!” certamente havia ali pelo menos um tijolo entre vários objetos dispostos em um dado espaço – momento este em que B aprendeu – em dadas condições ao ser recompensado negativamente pelos erros e positivamente pelos acertos – não só o que se desejava com aquele grito, mas também que os demais objetos ali dispostos não eram desejados por “tijolo!”. Lembremos agora daquela formula matemática, a saber, “2+192837465=...”. Considerando o parágrafo anterior temos em concordância com nosso autor que poderíamos ensinar alguém o numero dois se de acordo com as condições lhe apresentássemos, por exemplo, duas pedras e em seguida pronunciássemos a palavra “dois!” – bem, nosso aluno intui pelas condições ali apresentadas o significado da palavra em relação à quantidade determinada pelo exercício e treinamento ali feito. Mas como ocorreu esta intuição? O que é realmente que produz a compreensão da quantidade? 6. Formas de vida Ainda na primeira parte das Investigações Filosóficas temos a noção de Jogos de Linguagem que esta explanada do seguinte modo: Podemos imaginar também que todo o processo de uso de palavras em (216) seja um dos jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. Quero chamar esses Jogos de “jogos de linguagem”, e falar de uma linguagem primitiva às vezes como de um jogo de linguagem.E poder-se-ia chamar também de jogos de linguagem os processos de 16 parágrafo 2 63 denominação das pedras e de repetição da palavra pronunciada. Pense em certo uso que se faz das palavras em brincadeiras de roda.Chamarei de “jogo de linguagem” também a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada. (1999, §7, p. 30) O jogo de linguagem nos remete a uma noção bem mais abrangente que aquela das formas lógicas proposta no Tractatus. E assim se segue nas Investigações: (...) – há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de empregos do que denominamos “signos”, “palavras”, “frases”. E essa variedade não é algo fixo, dado de uma vez por todas; mas, podemos dizer, novos tipos de linguagem; novos jogos de linguagem surgem, outros, outros envelhecem e são esquecidos. (As mutações da matemática nos podem dar uma imagem aproximativa disso.) A expressão “jogo de linguagem” deve aqui salientar que falar uma língua é parte de uma atividade ou de uma forma de vida. (1999, §23, p.35) Com a noção de formas lógicas o filósofo demonstrou no Tractatus a maquinaria da linguagem como uma corrente composta de anelos que são os fatos do mundo ao qual se representa na linguagem. Considera que a forma lógica não pode ser representada, mas toda representação tem uma forma – o quadrado tem sua forma especifica que não é senão a forma de um quadrado. Portanto, é inútil perguntarmos pela forma da forma – esta forma lógica nos da as condições necessárias para que possamos dizer ou mostrar algo na medida em que ocorre – e aquilo que não pode ser nem dito nem mostrado esta fora do mundo como a própria lógica e que por isso, sendo transcendental não tem forma, é formal, é ideal. Assim é delimitado o campo da linguagem. Frente a isto é que Wittgenstein passa a investigar como seria possível representar uma manifestação de dor, ou seja, passa a questionar se existe ou não a forma lógica de fenômenos como a dor – se a resposta fosse afirmativa a dor poderia então ser dita ou mostrada – mas este não é o caso. Pois bem, não se pode representar a dor. Seria ela transcendental? Ideal? Uma forma que, portanto não pertence ao mundo, isto é, não ocorre no mundo, mas enquanto forma reconhecemo-la nas condições lógicas necessárias para que a expressemos? O problema que se anuncia foi uma das principais influencias nos trabalhos posteriores ao Tractatus, tanto que consideramos em referencia a tal 64 problematica a distinção entre um primeiro e um segundo Wittgenstein – o primeiro é o das formas lógicas como fundamento da linguagem; o segundo é o dos jogos de linguagem como forma de vida do mundo ou da própria linguagem, isto é, como ela funciona. A noção de jogo referente à linguagem tem para Wittgenstein o sentido de que uma expressão carrega algo a mais que sua forma, pois alem de dizer algo, uma expressão é carregada de um querer dizer. E, quando mostramos algo, no ato de mostrar há também um querer mostrar que se expressa junto a forma de expressão. Assim a forma de um fato por si só não condiciona o que me é dito ou mostrado numa expressão. Há algo que não está especificamente dado numa expressão. Para que possamos compreender o jogo de linguagem Wittgenstein se refere à noção geral de jogo, onde não se tem nunca todos os limites – a palavra pode ser esta ou aquela “palavra!” dependendo de um jogo seja ele qual for, no qual ela poderá surgir dando ou recebendo um sentido. Pensemos na seguinte frase: “esta mancha pode ser e não é uma mancha senão as letras ‘m’, ‘a’, ‘n’, ‘c’, ‘h’, ‘a’; organizadas do seguinte modo: ‘m+a+n+c+h+a = mancha’ numa forma legível, isto é, um nome que substitui algo que você talvez conheça”. Ela esta subordinada a regras que devem ser seguidas, mas as regras não podem prever tudo que ocorre num jogo –, como por exemplo, não está previsto ate quantos metros se permite que a bola suba verticalmente em relação ao solo, pelas regras de uma partida de futebol. Sabemos também que não se prevê um limite de força para os chutes a gol. No §24 de Investigações Filosóficas o filosofo considera: Quem não tem perante os olhos a multiplicidade das espécies dos jogos de linguagem será talvez inclinado a colocar questões como esta: “Que é uma pergunta?” – é a constatação de que não sei tal e tal coisa, ou a constatação de meu estado de anímico e incerteza? E o grito “socorro!” é uma tal descrição? Pense em quantas coisas diferentes são chamadas de “descrição”: descrição da posição de um corpo pelas suas coordenadas; descrição de uma expressão fisionômica; descrição de uma expressão tátil; de um estado de humor. (1999, p.36) 65 Observando que existe uma grande multiplicidade de jogos de linguagem reconhecemos também que estes por vezes se entrecruzam perdendo e ganhando sentidos. E Wittgenstein por vezes toma o exemplo de uma partida em que o jogo é o xadrez. E neste ponto temos de considerar que ali alem de um jogo há em certo sentido vários jogos – o jogo que se pode fazer com o cavalo é diferente daquele que se permite com a torre. E, se pensarmos naqueles pontos nos quais e em dadas condições ocorre que uma peça passa a substituir outra, como um peão que se torna dama, coisa bem comum nesse tipo de jogo; ainda que uma peça torne-se outra, porem, de certo modo ligam-se ambos entre si – jogos que compõem outros jogos e deixam de ser aqueles ao tornar-se parte deste por fim transformam-se em outros. O fato de as linguagens (2) e (8) consistirem apenas de comandos não deve perturbá-lo. Se você quer dizer que elas por isso não são completas, então pergunte-se se nossa linguagem é completa; - se o foi antes que lhe fossem incorporados o simbolismo químico e a notação infinitesimal, pois estes são, por assim dizer, os subúrbios de nossa linguagem. (E com quantas casas ou ruas, uma cidade começa a ser cidade?) Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares e com casas uniformes. (1999, §18 p. 32) Se nos remetermos ao que foi tomado como exemplo de fatos expressos nas formas lógicas do mundo como uma corrente, nos jogos de linguagem não poderíamos tomá-los apenas como anelos, pois estes de repente se tornariam correntes extrapolando seus limites e trocando de forma – coisa logicamente inconcebível. Uma forma de vida, no entanto tem o caráter de expressar algo que está privado, como a dor que por vezes desejamos expressar ao mundo ao mesmo tempo em que se sabe permanecem sem manifestar-se alem de um “ai!” – que não é a dor e nem podemos saber ao certo se é realmente uma manifestação de dor, pois pode ser uma mentira, fingimento de que se sente dor. Se analogicamente com a dor se compreende o jogo como forma de vida, sabemos que uma expressão de sentimento não é o sentimento nem tem a forma do que se sente. O jogo por vezes é uma peça de outro jogo que se liga por parentesco. 66 67 Pode-se representar facilmente uma linguagem que consiste apenas de comandos e informações durante uma batalha. – Ou uma linguagem que consiste apenas de perguntas e de uma expressão de afirmação e de negação. E muitas outras. – E representar uma linguagem significa representar uma forma de vida. (1999, §19 p.32) Pensemos por parentesco naquelas semelhanças entre familiares: o olho do filho parecido com o da tia e o cabelo desta com o da neta daquele. As combinações não são rígidas, podem sempre vir a servir em outras situações de jogo. Quando observamos as figuras (117), (2), (3) e (418), notamos na (4) o duplo sentido daquele desenho e a menos que nos seja mostrado em um contexto especifico, não decidimos se o desenho é de um pato ou de um coelho – se é os dois ou nenhum, a dificuldade é insolúvel sem o contexto. A primeira figura, no entanto diz respeito ao modo que se pensa no Tractatus, ou seja, dada uma forma lógica o sentido é explicito, seja ele dito ou mostrado. Tendo em consideração os jogos de linguagem, há necessidade de um jogo pelo qual possamos fazer em um momento considerá-lo pato e em outro nos servir de coelho. Alem do mais o que se mostra talvez possa ser tomado apenas como um desenho ou uma folha de papel. Assim também são as palavras que podem surgir numa frase como “sujeito!” e ser ao mesmo tempo o objeto e vice versa – ex: “o prego se transformou em um macaco!” ou “o prego foi transformado pelo macaco!”. Se lembrarmos do mundo figurado como uma rede, podemos imaginar também como seria se considerássemos o sentimento dos peixes que nela se debatessem. O fato é que podemos compreender um jogo porque de certo modo também jogamos. Assim poderíamos criar uma estória ou contar uma historia daquele pato que, imaginemos, enganava as pessoas fingindo ser coelho. No entanto, saber que aquele coelho poderia expressar algo que só ele sente não se pode considerar como representação de um sujeito que sente. Isto é, podemos representar um sujeito que sente dor ao ponto de sentir o que 17 Todas as figuras aqui usadas foram produzidas por este que vos fala em relação às obras aqui citadas de Wittgenstein e de HEATON, J., 2002; ele sente? E isso se percebe por que não representamos coisas como a dor. Com tais considerações podemos dizer que a dor daquelas pessoas que encontramos diariamente não nos foi dada ao conhecimento e que jamais a conheceremos. Assim, quando nos é sabido que alguma parte de nosso ser dói, jamais poderemos dar a terceiros tal saber, apenas o expressamos – com gestos, sapateio, grito, lagrima e ranger de dentes que não são as dores que se sente – são, no entanto as formas de vida que se expressam como partes de um mundo em jogo. E, deste modo, compreendemos a dor porque vivemola e quando alguém nos diz “sinto dor!” ou “dói aqui!” é pelo parentesco de nossa própria dor e juntamente pelo jogo com o qual poderíamos enfim expressa-la também – reconhecemo-nos pelos jogos e seus devidos significados por parentescos. Leia-se: Como já foi dito, em certos casos, especialmente ao apontar ‘para a forma’ ou ‘para o numero’, há vivencias e maneiras de apontar características – ‘características’ porque se remetem frequentemente (não sempre), onde forma ou numero são ‘tidos em mente’. Mas você conhece também uma vivencia característica para apontar a figura de jogo, enquanto figura de jogo? E no entanto pode-se dizer: “creio que essa figura de jogo chama-se ‘rei’, não esse pedaço de madeira determinado para o qual eu aponto”. (Reconhecer, desejar, recordar-se etc.) (1999, §35, p. 40) Pois bem, compreendemos então que se nos da alguma coisa à compreensão, pode ser pelo parentesco que a pode tornar peça de um jogo – parentesco pelo qual apreendemos seu uso na forma de vida, isto é, no jogo. Não como uma peça da maquinaria em especifico, mas como um jogo em dado contexto. A compreensão pode inclusive ser tomada no sentido de seguir uma regra (ligar, encaixar, relacionar ao contexto aquilo que surge, aparece, é posto ou nomeado), como no treinamento que já observamos – se eu disser “pule a cerca!” certamente fará sentido em relação à vivencias de ouvintes e falantes e não por si só – considere-se o sentido da figura (4) que denota grande aqui uma grande influencia em nossa compreensão através da obra em relação ao segundo período filosófico de Wittgenstein. 68 7. A título de conclusão A temática afinal apresentada revela-se pouco mais que um esboço, tamanha a tarefa em questão. O filosofo aqui apresentado tem tradicionalmente através de suas reflexões sobre a linguagem, mobilizado vários outros seguimentos e autores a lançarem-se na pesquisa. Bem, a Filosofia para Wittgenstein tem o caráter de atividade, isto é, fazse necessário que contestemos o tempo todo, a postura daqueles intelectualóides que presos aos liames da linguagem acabam por enganar-se ante a visão da verdade – afinal não se conclui nada contra um sistema já consolidado de dizer uma certa verdade e mesmo de filosofar – uma vez que permanecem presos a uma reflexão dogmática de se pensar a própria filosofia. Na visão do filosofo a Filosofia se mantém como uma terapia cujo papel deveras, é nos libertar dos feitiços da linguagem. Considerar a vivencia como jogo de linguagem e não apenas os signos como peças determinadas de um jogo vêm tornar dinâmica aquela maneira de como vemos toda a linguagem – observemos o uso dos signos num jogo como parte de algo que o torna significado e ao compreender do jogo se dá o significado dos seres. Pensemos na morte, por exemplo, e no que ela significa sendo que ainda não morremos para que pudéssemos de fato conhecê-la – o que é a morte? – Talvez... 19 A noção de jogos de linguagem e não a forma de um dizer lógico formatado nos traz o incomodo de sentir que ao escrever estas páginas, alguém viveu e ao viver de certo modo aproximou-se da própria morte – porem talvez a tendo na consciência sem nunca tê-la experimentado, sem conhecê-la de fato. Mas foi por ter vivido que se deu tal expressão e enquanto se jogava por nada ou por alguma coisa não se pode negar que ali esteve jogando uma forma de vida. ANEXOS20 19 Talvez seja necessário investigar mais a fundo a noção de morte nas investigações - não é o objetivo porem, deste trabalho; 69 Figura (1): Figura (2): 20 Figuras (1), (2) e (3) em relação à noção de forma lógica a fim de representar o encadeamento daquilo que compõe um fato; 70 Figura (3): Figura (4)21: 21 Figura que nos serve de referencia à noção de jogo de linguagem; 71 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas, Tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1989. – (Os pensadores) WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logicus-Philosophicus, Tradução José Arthur Giannotti. São Paulo: COMPANHIA EDITORA NACIONAL 2. ed, 1968. – (Biblioteca Universitária) HEATON, John. Wittgenstein Para Principiante, Tradução Daniela Rodrigues Gesualdi Bueno Aires: Era Naciente/SRL. 2002. – (Documentales Ilustrados) ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 4.ed. São Paulo: Martins fontes, 2003. 1014p. BUENO, Francisco da Silveira et al. Dicionário escolar da língua portuguesa. 9. ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1975. 1488p. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo; Dicionário Básico de Filosofia. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. 2006. 72 73 A TEORIA DA DOMINAÇÃO : IMPRESSÕES DE PAULO FREIRE SOBRE EDUCAÇÃO E RELAÇÕES DE PODER NA AMÉRICA LATINA GOMES, Cerize Nascimento Coordenadora do Curso de Ciências Sociais Faculdade Guarapuava RESUMO: Este artigo trata sobre a atualidade do pensamento de Paulo Freire e propõe uma releitura da obra Pedagogia do Oprimido, publicada durante seu exílio no Chile em 1968, no contexto da Ditadura Militar. A produção aprofunda a teoria de que a educação como território de dominação social – analisada a partir do materialismo histórico e dialético de Karl Marx - apresenta-se também como espaço para a libertação de todo e qualquer tipo de opressão. A conexão entre as idéias de Freire e Marx provoca a reflexão dialética sobre uma contradição específica: a educação é afinal um instrumento de opressão ou de libertação social? Ao propor um processo dialético de tal natureza, a Pedagogia do Oprimido, promove um contexto no qual o professor surge como principal sujeito/agente de transformação das sociedades latino-americanas, por meio da reformulação dos métodos de ensino e da apresentação de práticas pedagógicas alternativas. PALAVRAS-CHAVE: Educação. Opressão. Sociedade. Ensino-aprendizagem. Liberdade. 1. Um intelectual com poder de intervenção social “A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não tem humildade ou a perdem, não podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus companheiros de pronúncia do mundo. Se alguém não é capaz de sentir-se ou de saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar, para chegar ao lugar do encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais.” Paulo Freire – Pedagogia do oprimido “A educação, como prática de dominação, pretende, em seu marco ideológico, manter a ingenuidade dos indivíduos e acomodá-los ao mundo da opressão”, escreveu Paulo Freire, em Pedagogia do oprimido, livro publicado em 1967 durante os primeiros anos da Ditadura Militar no Brasil, no qual considera que se a educação serve como instrumento de alienação, deve ser ela também a principal mediadora da libertação. Segundo o autor, por meio do aprendizado da leitura e da escrita, inaugura-se o dialogo e os oprimidos aprendem a pronunciar a sua realidade social: A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras com que os homens transformam o mundo. Existir humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação e na reflexão. (...) Não há dialogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que a infunda. (...) O ato de amor consiste em comprometer-se com a causa dos oprimidos. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico. Se não amo o mundo, se não amo a vida , se não amo os homens, é impossível o diálogo. (FREIRE, 1987, p. 44 - 45) Ao denunciar o uso da educação como instrumento de dominação, o autor não esperava que as elites dominadoras renunciassem à sua prática. Seu objetivo era o de chamar a atenção dos verdadeiros humanistas para a necessidade de transformar a educação em instrumento de libertação e não de segregação social. O significado dessa ação libertadora seria conseqüentemente a politização das massas, resultado pouco interessante para as elites nacionais: Por especial que pudesse ser em teoria o projeto de dar educação às classes trabalhadoras pobres, seria prejudicial para sua moral e sua felicidade. A educação ensinaria os trabalhadores a desprezar sua missão na vida, em lugar de fazer deles bons servos para a agricultura e outros empregos, em lugar de ensinar-lhes subordinação os faria rebeldes e refratários, como se pôs em evidência nos condados manufatureiros. Habilitá-los-ia ler folhetos sediciosos, livros perversos e publicações contra a cristandade. Torná-los-ia insolentes com seus superiores e, em poucos anos, se faria necessário à legislatura dirigir contra eles o braço forte do poder. (GIDDY, in FREIRE, Paulo, 1987, p.74) Especificamente no caso da América Latina, no qual nove dos onze países conviveram com regimes militares a partir da segunda metade do século XX, é preciso chamar a atenção para a imposição dos princípios positivistas relativos à manutenção da ordem por meio de ostensivo controle social, cujos métodos envolviam a negação da educação para as classes trabalhadoras e a 74 manipulação dos conteúdos programáticos das disciplinas que poderiam contribuir para o espírito crítico das massas. A eficácia dessa política estava na adoção de formas próprias dos regimes autoritários, tais como regime de partido único, toque de recolher, censura a quaisquer tipos de liberdade de expressão; além de prisão, tortura e morte de militantes da esquerda, ações essas que, entre outras, tiveram como resultado a consolidação das políticas pretendidas pelas elites aristocráticas e burguesas. Sobre esse contexto, observou o historiador Michel Vovelle: Tenho visitado alguns países da América Latina. Constato – e não julgo, mas apenas observo e aprecio como historiador das mentalidades – uma espécie de consolidação da direita, e penso que isso define bem um universo: o do medo. (VOVELLE, 1989, p.87) O medo como arma para manter o povo distante de qualquer luta por qualquer direito, define também o universo político e social do Brasil, durante o regime militar que vigorou de 1964 até 1985. Nos primeiros anos as ações foram desenvolvidas para deter os movimentos populares, identificar suas lideranças e impedir manifestações de protesto. Invadiram-se jornais, sindicatos, escolas, igrejas, associações e principalmente universidades. Sindicalistas, camponeses, professores e estudantes foram presos, torturados ou mortos. Livros de autores considerados “perigosos” para os militares foram queimados em praça pública e tiveram sua leitura proibida e sua publicação vetada no país. Entre os autores que tiveram suas obras banidas pela Ditadura constam Karl Marx, Friedrich Engels, Vladimir Ilich Lenin, Rosa de Luxemburgo, Leon Trotski, Antonio Gramsci e Berthold Brecht. Estima-se que Paulo Freire tenha sido o autor nacional com o maior numero de obras censuradas, apreendidas e queimadas durante o Regime Militar. No caso da Pedagogia do Oprimido - escrito no Brasil – o livro só foi publicado durante seu exílio no Chile em 1968. Proibido pelo governo militar até 1974, todas as publicações encontradas anteriormente foram apreendidas e destruídas. Freire denunciou a reformulação dos currículos de ensino fundamental, médio e superior durante a vigência da Ditadura. Nesse momento, as disciplinas de Sociologia e Filosofia deixaram de ser ministradas no Ensino 75 Médio e nos cursos universitários o poder de criticidade das disciplinas de Ciências Humanas e de Ciências Sociais foi reduzido por meio de severa vigilância sobre os cursos dessas áreas nas instituições de ensino superior. O positivismo – um modelo de educação liberal concedida para as massas sob severo controle do Estado - tomou conta da história, da filosofia, da literatura e das artes. Os cursos de Licenciatura passaram a graduar professores e bacharéis sem referências políticas e sociais com o passado. Conteúdos como a Revolução Francesa de 1789, a formação da classe operária no século XIX, os movimentos sociais da Primavera dos Povos de 1848, a Comuna de Paris de 1871, Revolução Russa de 1917 ou Revolução Cubana de 1959, quando ministrados eram colocados fora do seu contexto social e do seu processo histórico. Diante dessa rigidez dos programas escolares e da ausência da discussão política nas temáticas estudadas, criouse espaço no Brasil, para que os revolucionários que aderissem à luta armada contra os militares fossem considerados traidores e não defensores da pátria. Nesse sentido, a educação foi um instrumento de manutenção dos privilégios econômicos das elites agrárias e urbanas, e também de garantia da ordem dos militares. Por meio dos currículos escolares divulgava-se a idéia de que o governo militar era o mais benéfico para o país e que todos os que se opusessem a ele eram inimigos e traidores da Pátria. Carlos Marighella, por exemplo, fundador da Aliança Libertadora Nacional – ALN (1967), apoiou a luta armada contra os militares, foi considerado o “inimigo público número 1 da nação brasileira”, arrebanhou contra si as forças militares do exército, da marinha e da aeronáutica, no que é considerado pelos historiadores a maior caçadas política da história do Brasil. Marighella foi assassinado em 4 de novembro 1969 pelos agentes do Departamento de Ordem e Política Social - DOPS, em São Paulo. Sua morte foi comemorada com festa pelas lideranças políticas do país. Outro exemplo é o de Carlos Lamarca, um oficial brasileiro de origem operária, que influenciado pela Revolução Cubana e pelas idéias de Che Guevara, abandonou os quadros do exército para fundar a Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, um movimento de luta contra o Regime Militar. Matéria publicada pelo Jornal Folha 76 de São Paulo em 19 de setembro de 1971, descreve o desfecho da perseguição ao “Capitão Lamarca” como era conhecido pelos guerrilheiros : Carlos Lamarca, considerado o mais perigoso líder terrorista no País, foi morto em tiroteio com as forças de segurança, na pequena localidade de Pintada, interior da Bahia. O encontro decisivo ocorreu há dois dias, mas somente ontem foi feita a identificação oficial do cadáver, mediante confronto com as fichas datiloscópicas. (Banco de Dados Folha de São Paulo, domingo, 19 de setembro de 1971 – Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_19set1971.html) A inércia da população brasileira diante desses fatos e do desaparecimento de centenas de pessoas deve-se em grande parte, ao fato de que a liberdade de expressão e o espírito crítico foram varridos das salas de aula, e, a partir disso, banidos de praticamente todos os espaços públicos. Durante duas décadas, a educação tinha como finalidade a perpetuação do militarismo e seu objetivo era impedir qualquer debate ou avanço dos princípios socialistas, comunistas ou anarquistas. Os grupos de esquerda foram desarticulados e suas lideranças reprimidas, exiladas ou assassinadas. As universidades foram transformadas em meras fábricas de diploma. 2. Detidos por “porte” de livro Em 1968, o professor Paulo Freire, com o qual iniciamos esta abordagem, teve sua obra Pedagogia do oprimido, publicada no Chile, na relação de leituras proibidas. Comercializado inicialmente de forma clandestina no Brasil, o livro certamente figura entre os exemplares mais apreendidos e queimados pelos militares. Muitas pessoas foram detidas e tiveram que prestar esclarecimentos sobre o “porte” do livro, como se estivessem realmente portando uma metralhadora ou um fuzil. Em Guarapuava, cidade do Estado do Paraná, tornou-se lenda o episódio em que a professora Neonila Denczuk Gomes, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFIG), mesmo sem qualquer militância política, foi detida por agentes do DOPS para prestar depoimento, simplesmente porque havia comprado e estava “portando” o livro Pedagogia do Oprimido. Durante conversa com a professora, ela relatou que permaneceu aproximadamente 77 quatro horas prestando depoimentos e que só foi liberada após averiguações sobre suas atividades profissionais e políticas. Esse é apenas um dos muitos casos que ocorreram no País. Certamente algumas pessoas não tiveram a mesma sorte da professora de Guarapuava e foram após o porte do livro detidas, torturadas ou desaparecidas. O Arquivo Público do Estado do Paraná (APESP) possui um acervo de documentos originalmente organizado pelas polícias do DOPS que atuaram no Estado. . Alessandro Meiguins ao escrever sobre o período de 1964 até 1969 diz que a repressão foi maior contra o Movimento Estudantil. Segundo ele, já no início, em 1964, declarou-se a ilegalidade da União Nacional dos Estudantes (UNE) e as universidades e faculdades foram palco de invasões rotineiras. Ele explica que isso ocorreu porque politizado no sentido da esquerda, o movimento tornou-se um dos principais alvos das ações militares. O autor escreve sobre a reorganização clandestina da UNE em 1966 e sobre a influência que os movimentos internacionais da juventude exerceu sobre os estudantes brasileiros: A UNE foi reorganizada em 1966 em um congresso clandestino em Belo Horizonte. A Ação Popular (AP), cheia de estudantes, lançou o Movimento contra a Ditadura. Em 1967, as manifestações já eram freqüentes. E com uma lista de motivos enorme: o alto número de “excedentes” – estudantes aprovados nos vestibulares, mas sem vaga para matrícula; um acordo educacional com os Estados Unidos; as prisões e cassações de políticos, sindicalistas e oposicionistas em geral; a censura e outras formas de autoritarismo; e o espírito libertário que contaminara jovens de outros países, que na época tomaram Paris e se reuniram aos milhares em Washington para pedir o fim da Guerra do Vietnã (MEIGUINS, 2011, ed. 091, grifo nosso). A falta de vagas nas universidades e um acordo com os Estados Unidos envolvendo assuntos relacionados à educação (grifo) serviram como adrenalina para intensificar a indignação dos jovens brasileiros. A publicação da Pedagogia do oprimido nos primeiros anos da Ditadura Militar aumentou a polêmica relativa à educação e à cassação das liberdades políticas e de expressão. Entende-se assim, que a preocupação do governo ao impedir a 78 circulação da obra estava relacionada ao seu conteúdo considerado subversivo pelos militares. Em essência Freire desenvolve um estudo sobre a teoria da dominação e procura explicar os métodos adotados pela burguesia e pelos poderes constituídos para assegurar a opressão das massas, impedindo-lhes o pleno acesso ao conhecimento, a liberdade de expressão e até mesmo de pensamento. O autor sustenta que a educação oferecida ao povo permite que as elites alienem e dividam as massas para assim subjugá-las. O livro, que rendeu ao seu autor a prisão e o exílio, além de expor a condição dos dominados educados para o silêncio e a imobilidade, tratava a educação como prática política, que deveria ter por finalidade a libertação de povos oprimidos na luta incessante pela recuperação de sua liberdade. Defendia, para tanto, os princípios do materialismo histórico e dialético de Karl Marx, fundador do socialismo científico e da ideologia comunista. Freire via o processo de libertação das massas oprimidas como um parto doloroso capaz de trazer à vida um novo homem, livre da opressão imposta pela sociedade capitalista, na qual a educação agia sobre os homens para conformá-los e adaptá-los a uma realidade que deveria permanecer intocável. No mesmo instante em que anunciava o oficio da pedagogia como única prática política capaz de libertar os oprimidos, Freire indicava a importância dos professores nesse processo libertário. Antes censurado, neste início de século XXI, o livro é uma referencia mundial para os educadores. No Brasil está próximo da 50ª edição e já foi traduzido em mais de 20 idiomas, tendo circulado em mais de 100 países. Conforme o autor, a realidade social é produto da ação humana e a principal tarefa histórica e social da humanidade é a superação da opressão (FREIRE, 1987, p.20), ofício para o qual os professores deveriam estar preparados ao fazer uso do espaço da sala de aula. Freire entende que se as pessoas podem ser educadas para a opressão, elas também podem ser educadas para a liberdade. Por meio da leitura e do diálogo crítico, do livre pensar e pronunciar o mundo, elas poderiam substituir os instrumentos de domesticação ou adestramento por elementos que promovessem sua libertação econômica, cultural, política e social. Sobre a função da pedagogia no processo revolucionário, ele escreveu: 79 Se os líderes revolucionários de todos os tempos afirmam a necessidade do convencimento das massas oprimidas para que aceitem a luta pela libertação – o que de resto é óbvio – reconhecem implicitamente o sentido pedagógico dessa luta. Muitos, porém, talvez por preconceitos naturais e explicáveis, terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na educação que serve ao opressor. A propaganda, o dirigismo, a manipulação, como armas de dominação não podem ser instrumentos de libertação. Não há outro caminho senão o da prática da pedagogia humanizadora, em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-os como quase coisas, com eles estabelece uma relação dialógica permanente. (FREIRE,1987, p.31) Essa práxis dialógica passou a representar na prática o sentido da proposta de dialética marxista. O espaço da sala-de-aula tornava-se, a partir da teoria do autor, o espaço viável e próprio para o desenvolvimento do processo de libertação das massas e de desenvolvimento integrado da América Latina. Na prática Freire desenvolveu métodos adequados e simples aos ideais teoricamente do materialismo histórico e dialético. Sua ação sobre a educação de crianças, jovens e adultos, foi intensa não apenas no Brasil, mas também no Chile e em alguns países da África, durante o seu exílio. Para o pedagogo, a educação era uma construção coletiva na qual o professor não era senhor do saber, mas coadjuvante do processo de ensino-aprendizagem. 3. A superação do modelo de educação bancária pela dialética Para explicar o modelo de educação adotado pela burguesia, ele criou a metáfora da “educação bancária”, segundo a qual a escola é a guardiã do conhecimento da mesma forma que o banco é o guardião do dinheiro. O professor é o único detentor e distribuidor de saberes e os alunos são ouvintes passivos que não podem criticar um conteúdo ou emitir opinião sobre um assunto para não atrapalhar a transmissão dos conteúdos. Dentro desse princípio, o professor é quem gerencia o conhecimento, distribuindo-o, emprestando-o, cobrando-o, exatamente como o gerente do banco faz com o dinheiro. Cabe ao aluno enquanto receptor, ficar quieto e recepcionar os saberes nele depositados pelo professor e depois devolvê-los no momento da avaliação com juros e correção monetária. Esse projeto brasileiro de educação 80 debatido por Freire é um dos sintomas que confirmam a presença nefasta do positivismo em sala de aula. Ao criticar esse modelo, Freire entende que: A educação autêntica não se faz de A para B, nem de A sobre B, mas de A com B mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e a outros, gerando visões ou pontos de vista impregnados de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicam em temas significativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da educação. A linguagem do educador ou do político tanto quanto a linguagem do povo não existem sem um pensar e ambos, linguagem e pensar, não existem sem uma realidade a que se encontrem referidos.Desta forma, para que haja comunicação eficiente entre eles, é preciso que educador e político sejam capazes de conhecer as condições estruturais em que a linguagem e o pensar do povo, dialeticamente se constituem. (FREIRE, 1987, p.48-49) Estabelecida a importância de legitimar o mundo através da apropriação da palavra, já que pensamos, lemos, escrevemos e falamos por meio de palavras, a inauguração do diálogo deve marcar a superação do exercício dominador ou de imposição de um discurso sobre os ouvintes. Para ele, tanto educadores quanto políticos deveriam aprender a ouvir as representações do mundo criadas e recriadas pelo povo. Sobre isso, argumentou: Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma exigência radical de toda a revolução autêntica. Ela é revolução por isto. Distingue-se do golpe militar por isto. Dos golpes, seria ingenuidade esperar que estabelecessem diálogo com as massas oprimidas. Deles, o que se pode esperar é o engodo para legitimar-se ou a força que reprime. A verdadeira revolução, cedo ou tarde, tem de inaugurar o diálogo corajoso com as massas. Sua legitimidade está no diálogo com elas, não no engodo ou na mentira. A revolução autêntica não pode temer as massas, a sua expressividade e a sua participação efetiva no poder. A nossa convicção é a de que, quanto mais cedo comece o diálogo, mais revolução será. (FREIRE, 1987, p.72) O que permanece evidente na argumentação de Freire é que, em seu modo de pensar, a revolução autêntica tem inicio com um processo que envolve ações simples: conversar, ouvir e falar, ler e escrever, refletir e debater a existência histórica da humanidade. Muito diferente da idéia de que a revolução se faz com armas, ele crê que a revolução se faz com palavras. Por meio da apreensão da palavra que lê, escreve, ouve e fala por meio do diálogo 81 os seres humanos estabelecem a dialética e se tornam capazes de criar e recriar o mundo. No processo de educação para a libertação todos podem expressar o próprio pensamento e ouvir a própria voz, tornando-se donos da sua palavra e, por meio dela, sujeitos da história. Destaca o autor: Não há realidade histórica que não seja humana. Não há história sem homens, como não há uma história para os homens, mas uma história de homens que, feita por eles, também os faz, como disse Marx. E é, precisamente quando às grandes maiorias - se proíbe o direito de participarem como sujeitos da história, que elas se encontram dominadas e alienadas. O intento de ultrapassagem do estado de objetos para o de sujeitos – objetivo da verdadeira revolução – não pode prescindir nem da ação das massas, incidente na realidade a ser transformada, nem de sua reflexão. (FREIRE, 1987, p.73) Ao abordar a importância da reflexão das massas, o autor retorna ao campo da dialética e diz que o pensar sobre o mundo e sobre a realidade é que leva os homens e as mulheres à compreensão da sua existência histórica. Segundo ele, a burguesia desenvolveu um sistema de educação no qual pensa pelas massas e, ao mesmo tempo, impede que elas pensem, alienando-as por meio da manipulação de programas educativos que não refletem sua realidade. Sobre esse processo de dominação Freire entende que: A transformação social exige um pensar constante, que não pode ser negado às massas populares, se o objetivo visado é a libertação. A liderança revolucionária não pode pensar sem as massas, nem para elas, mas com elas. Quem pode se dar ao luxo de pensar sem as massas são as elites dominadoras. [...] A única forma de pensar do ponto de vista da dominação é não deixar que as massas pensem. Em todas as épocas os dominadores foram sempre assim: jamais permitiram às massas que pensassem. A classe opressora não pode pensar com as massas oprimidas e não pode deixar que elas pensem. (FREIRE, 1987, p.74) Para o autor, a ideologia opressora reconhece as massas como absolutamente ignorantes e indignas de recepção do conhecimento. Ela tem no outro o seu oposto. A sua palavra é a única verdadeira e pode ser imposta aos demais. Ao agir assim, as elites estão literalmente roubando dos oprimidos a sua palavra e, ao cometer tal ilícito, tornam impossível o desenvolvimento do diálogo libertador. A manutenção do modelo da educação bancária assegura, alimenta, expande e legitima o campo de dominação e a hegemonia burguesa. 82 Nesse cenário, as minorias comandam as maiorias sem qualquer traço de culpa, ao contrário, com satisfação: Desenvolve-se no que rouba a palavra dos outros uma profunda descrença nas vítimas consideradas como incapazes. Quanto mais diz a palavra sem a palavra daqueles que estão proibidos de dizê-la, tanto mais exercita o gosto de mandar, de dirigir, de comandar. Já não pode mais viver se não tem alguém a quem dirija sua palavra de ordem. (FREIRE, 1987, p.79) Para Freire, a apropriação da educação como instrumento de alienação e de controle social foi decisiva para a consolidação do projeto de separação, divisão e submissão dos trabalhadores. Uma vez que todos os conceitos e assuntos considerados subversivos ou perigosos foram extraídos do debate e que o aparato estatal e social estava mobilizado em torno dos interesses das elites, estas estavam livres para manipular informações que lhes permitissem invadir e ocupar os oprimidos com suas próprias ideologias e desejos. Pode-se afirmar que esse procedimento gerou nas massas uma espécie inércia ou transe, como se nelas tivesse sido inoculado um tipo de vírus, que se num primeiro momento causava sofrimento, num segundo instante anestesiava-as. Na medida em que as minorias submetem as maiorias, oprimilas e mantê-las divididas é indispensável para a manutenção do seu poder. A unificação das massas populares significaria uma séria ameaça à sua hegemonia. Daí que toda a ação que possa proporcionar a organização das classes oprimidas é imediatamente freada pelos opressores através de métodos violentos. Conceitos como os de união, conscientização e luta são timbrados, sem demora, como perigosos. E realmente o são, para os opressores. O que interessa ao opressor é enfraquecer os oprimidos mais do que já estão, ilhando-os, criando cisões entre eles, através de uma variada gama de métodos e processos. Desde os métodos de repressão da burocracia estatal, à sua disposição, até as formas de ação cultural por meio das quais manejam as massas populares, dando-lhes a impressão de que as ajudam. (FREIRE, 1987, p. 80) 4. A maldição do recorte e pulverização da história Entre os métodos de repressão concebidos pelas ações culturais descritas por Freire, está o uso do método de ensinar por meio de recortes ou 83 fragmentos, meio bastante usado para “manejar as massas populares, dandolhes a impressão de que as ajudam” (FREIRE, 1987, p.80). Aprofundando-se nessa questão, o pedagogo sugere que o sucesso da teoria da dominação só é possível diante de uma visão focalista ou recortada da realidade. Isso implica em dizer que só se justifica a inércia das massas pela ausência de uma visão ampla e crítica do processo histórico. Segundo o autor, o foco ou o recorte pulverizam e distorcem a realidade e, sem a devida contextualização, impedem a percepção da totalidade histórica. Desse modo, enquanto o mundo capitalista globaliza-se cada vez mais, os temas passam a ser estudados por áreas, regiões ou blocos isolados, desarticulando-se assim a possibilidade de compreensão desse processo histórico juntamente com capacidade de organização social dos povos oprimidos. Isso significa que qualquer tema que possa ter uma abordagem global, não deve ser restrito a um período ou a uma época específicas, sob pena de perda do seu real sentido. O autoritarismo, por exemplo, pode ser visto como um conceito real na vida de todos os povos em todos os períodos históricos. Qualquer recorte deve expor essa condição de totalidade desse conceito. Ele é tão real no Egito antigo e no Império Romano, quanto na Europa medieval ou absolutista moderna. Desse modo não pode ser estudado apenas do ponto de vista dos regimes totalitários contemporâneos, típicos da II Guerra Mundial e dos regimes militares latino-americanos. É preciso que se apreenda que como processo histórico o autoritarismo existe desde que os homens subjugaram os animais, depois as mulheres ou as tribos inimigas e assim por diante. Isso significa o que? Que o autoritarismo está implícito no homem e que ele deve lutar contra sua natureza autoritária. E se deve lutar contra si mesmo, isso sugere que pode lutar contra todos os autoritarismos que encontrará pela vida afora. Porém, se ao estudar o autoritarismo o estudante o percebe como fator implícito aos regimes absolutistas ou totalitários da Europa, mesmo que em alguns momentos o recorte promova reflexões sobre os regimes militares latino-americanos, pouca diferença esse conteúdo faz para o aluno porque está relacionado a períodos passados e deles é prisioneiro. 84 Sua compreensão desse conteúdo é que como os regimes totalitários e militares da Europa e da América Latina foram extintos o autoritarismo acabou. Foi só uma “coisa” que ocorreu no século XX aqui e na Europa, e que talvez ainda exista no Oriente Médio ou na China, ou seja, muito distante da sua realidade. A fragmentação ou focalismo, como prefere Freire, produz ruídos que interferem no processo de ensino-aprendizagem, no caso do autoritarismo, o assunto perde referências, conceitos e atualidade. O resultado disso é extremamente improdutivo, uma vez que o alunado passa a perceber o autoritarismo como se fosse uma “coisa” de outro tempo ou de outro mundo. E desse modo, sem o confronto com o autoritarismo, própria da sua natureza e das relações sociais e políticas que estabelece ao longo da sua vida, a pessoa jamais terá conhecimento ou forças para lutar contra qualquer tipo de autoritarismo. É, em grande parte, o tipo de educação que recebe que faz com que o povo esteja quase sempre ausente e que se sinta, na maioria das vezes, impotente diante de momentos históricos marcados pelo avanço de regimes autoritários. Freire defende o materialismo histórico e dialético de Karl Marx no que diz respeito à totalidade ou globalidade próprias da história, cuja apreensão pode conduzir a compreensão dos processos históricos em diversas épocas e locais. Para o pedagogo, por mais bem elaborados que seja o recorte, por maior clareza que tenha seu foco, ele sempre limitará as infinitas possibilidades de debate que o olhar sobre a totalidade consegue oferecer. Desse modo, podemos interpretar como bastante curiosa a insistência de alguns intelectuais sobre o uso do recorte, principalmente quando não se aborda a necessidade de contextualização do seu foco em uma estrutura mais ampla ou global. Desse modo, Freire sugere que o recorte é apenas uma peça e que só terá valor de aprendizagem quando inserido no quebra-cabeça ao qual pertence. Sem essa colagem não há visão possível do contexto o que significa que não há aprendizado integral, pois os fragmentos promovem uma visão parcial da realidade, por vezes tão ínfima que confunde os estudiosos e impede o desenvolvimento do seu espírito crítico. Explica o autor que o uso insistente do modelo focalista cumpre sua função, que é a de manter as massas 85 oprimidas ilhadas, desorganizadas e sem qualquer visão de outras gentes e de outras áreas em relação dialética com a sua (FREIRE, 1987, p.80). Nesse sentido, os intelectuais que fazem a opção radical pelo recorte e descartam a idéia de totalidade marcham na contramão do materialismo histórico e dialético, que é o único método capaz de incluir os extratos pobres como sujeitos da história em nível global. Mesmo que estejam repletos de boas intenções, ainda assim, com seus recortes e seus focos reducionistas, tais pessoas carregam a bandeira dos opressores e trabalham contra o processo de libertação das massas. É preciso que fique bastante claro que assim como a burguesia não aceita o rótulo de classe opressora e batiza-se de produtora, mesmo sabendose mantenedora de relações sociais antagônicas entre quem compra e quem vende sua força de trabalho, alguns professores que não aceitam e nem de longe imaginam ser chamados de positivistas, alardeando-se adeptos de todas as pedagogias da libertação, traem apenas a si mesmos e aos seus pares, pois os estudantes reconhecem em curto ou médio prazo todos aqueles que aplicam em seu ofício cotidiano a teoria da dominação. Justamente por colocar tais questões em debate, Freire tornou-se uma referência em educação, bastante polêmico e atuante politicamente o brasileiro é considerado um dos grandes pedagogos do século XX, em nível mundial. Como professor denunciou permanentemente que o mau uso da educação é a principal fonte de misérias do mundo capitalista e que sua apropriação pela burguesia e pelos governos liberais foi fundamental para que fosse assegurado o silêncio dos vencidos diante da opressão dos vencedores. 5. As máscaras do positivismo contra a revolução cultural/dialética O historiador mexicano Carlos Antônio Aguirre Rojas, em Marx: para uma história crítica, é adepto da teoria de Freire e sugere que existem procedimentos mais sutis a serem analisados quando se trata de abordar o triunfo do liberalismo sobre o socialismo ou o domínio dos patrões sobre os trabalhadores. Para ele, tal poder está relacionado aos princípios positivistas desenvolvidos por Augusto Comte, fundador da Sociologia no século XIX, cujos 86 ideais permitiram estancar o “furor” da Revolução Francesa e dos movimentos sociais que povoaram o primeiro século do mundo contemporâneo. Segundo o autor, apesar das críticas que a maioria dos professores costuma estabelecer contra o método positivista, ele conquistou estatuto de permanência e ainda hoje dá o tom dos currículos escolares, desde o ensino básico até o ensino superior na maioria das escolas latino-americanas. Para Rojas, essa fórmula menos visível de controle das massas, desde a mais tenra idade, não é menos rígida que as torturas a que eram submetidos os sublevados durante qualquer regime autoritário. Ele entende que o controle dos grupos sociais por meio da educação deve ser entendido como uma estratégia prioritária das elites dominantes em sua guerra contra o menor avanço das classes populares. A violência do modelo positivista reside no fato que ele sugere sempre o controle das massas e jamais sua independência econômica ou política, o que priva as camadas populares do acesso à cidadania e até mesmo da compreensão do que seriam os tais direitos do homem e do cidadão, pelos quais seus antepassados ofereceram a própria vida. O autor explica que a perda do poder social dos trabalhadores se deve ao exercício do controle social por meio da educação, e que isso só poderia ser transformado através da substituição do positivismo de Comte pelo materialismo histórico e dialético de Marx. Nesse sentido, ele chama a atenção para a atualidade e a funcionalidade das teorias sociais que privilegiam a história da luta de classes e colocam na cena acadêmica algumas questões relacionadas ao desenvolvimento do capitalismo e seus enormes custos sociais. Custos esses que permanecem negligenciados pela sociedade e pelos governos, com graves prejuízos para a maioria da população mundial, formada por pobres, analfabetos, desempregados e excluídos : A história científica desenvolvida por Marx, e que vem mantendo sua atualidade, é o fato de conceber a história, em todas as suas dimensões, temáticas e problemas abordados, como uma história notadamente social. Isto significa que, além de estudar os indivíduos, os grandes personagens, as elites e classes dominantes, a história deve investigar também os grupos sociais, as massas populares, as classes sociais 87 numericamente majoritárias e a todo o conjunto dos protagonistas que até há pouco tempo eram anônimos, e que são as verdadeiras forças sociais, os verdadeiros agentes coletivos que fazem e constroem a maior parte da matéria que constitui a história. (ROJAS, 2003, p.54) O historiador entende que pertence ao materialismo histórico e dialético do século XIX o mérito da incorporação sistemática das classes populares como verdadeiras protagonistas da história. Enfatiza ainda que é através dele que as pessoas podem finalmente apreender que foram os escravos e as comunidades arcaicas, assim como os servos, os trabalhadores, os camponeses e os grupos sociais explorados e submetidos que em grande medida fizeram a história (ROJAS 2003, p.55). Para o autor, os trabalhadores e as classes sociais envolvidas em conflitos - com seu trabalho e suas ações de resistência - fizeram o que em termos concretos foi e é história. O exemplo mais visível da atualidade e da importância do materialismo histórico e dialético e dialético de Karl Marx concentra-se hoje na escola inglesa denominada New Letf ou Nova Esquerda, que reúne autores como Eric Hobsbawm, Edward Palmer Thompson, Peter Burke, Jim Sharpe e Christopher Hill, todos empenhados em estudos históricos, políticos, sociais e culturais, dentro de uma linha neo-marxista, que promove a inclusão de temas e de sujeitos que até então permaneceram às margens da história. Tais autores construíram a teoria de que os extratos populares, ao serem oprimidos de todas as formas pelas classes detentoras do poder, forjaram novos modelos de resistência que muitas vezes passaram despercebidos para os historiadores. Dessa forma, por meio do estudo das práticas culturais, legitimaram áreas de pesquisas - que mesmo diante do esforço de algumas escolas anteriores – até a década de 1970 ainda permaneciam marginalizadas nas universidades dos países centrais e que só conquistariam espaço nas nações latino-americanas, entre elas, o Brasil, a partir dos anos de 1990. A atuação competente desses intelectuais está gradativamente promovendo o surgimento de pesquisas livres das amarras da ortodoxia de toda e qualquer escola, inclusive daquela a que estão filiados, pois na prática advogam sua libertação do marxismo ortodoxo, extrapolam o debate teórico, revolucionam o uso das fontes e desafiam os métodos tradicionais de pesquisa e escrita da história por meio de novas abordagens políticas, sociais e culturais. 88 Para Rojas, essas investidas são necessárias para atender aos objetivos de inserção das massas como sujeitos históricos e de identificação das formas de resistência popular do passado que ainda estão presentes na sociedade capitalista (ROJAS, 2003, p.56). Sem a presença dos intelectuais na cena política, os trabalhadores estarão entregues à própria sorte. Em sua solidão, as maiorias oprimidas que já não conseguem nem mesmo pensar contra o sistema que as explora, e jamais terão forças suficientes para lutar contra ele. Apenas com professores determinados em promover a desalienação das massas, poderá haver a necessária ruptura social com o medo, o silêncio, a insegurança e a ingenuidade, que são algumas das causas de escravização das massas latinoamericanas. Para Freire, podem justificar sua ausência ao compromisso apenas aqueles intelectuais que já foram invadidos pela teoria dominante, ou os que foram amaciados com cargos, ou ainda os que receberam promoção, porque esses são pagos para desertar. É preciso recordá-los, no entanto, que sua deserção e seu apego ao status quo só faz crescer a servidão das massas. Abandonados, silenciados e solitários, os desapropriados do mundo tornam-se presas fáceis da exploração e da dominação (FREIRE, 1987, p.82). Já para Thompson, os que conhecem a história e permanecem omissos são aqueles que transformaram a universidade numa bolha recortada do contexto global em que ela está inserida, e na qual flutuam justamente para colocar-se à distância das massas com as quais estão permanentemente em débito. Para manter a ordem que vem sendo gestada e reelaborada desde o começo do século XIX, Freire observa que as elites adotaram uma política permanente de incorporação de mitos e de possíveis lideranças populares. Exemplo disso é a aderência aparente da imagem de Che Guevara aos produtos próprios do capitalismo que ele tanto combateu. No caso de líderes vivos, Freire explica que para cooptá-los, a classe dominante promove a distribuição de benesses, promoções e cargos como se realizasse leilões. Até mesmo quando os governos neoliberais desenvolvem ações sociais ostensivas e campanhas contra a pobreza, Freire é cético em relação à sua 89 honestidade e chama tais atitudes de falsa generosidade. Para o autor, todas essas atividades têm como objetivo final o lucro. Até mesmo as suas “boas ações” são feitas para a salvação da riqueza, do estilo de vida e do poder com que a burguesia esmaga os demais (FREIRE, 1987, p.88-89). Faz parte do show de tais elites a propagação de programas de combate à fome e à miséria que eles mesmos promovem. Bem como as campanhas internacionais de solidariedade quando ocorrem desastres ambientais que só existem em razão da ambição de suas corporações. Também faz parte do seu show cooptar pessoas que poderiam liderar multidões, para adestrá-las e depois castrá-las. É por esses meios que as elites vão conformando as massas aos seus objetivos, mantendo-as imaturas politicamente, incapazes de pensar sobre suas reais condições de vida e de lutar contra os seus predadores naturais. Dentro da mesma linha de ação, Freire recorda que no Brasil, em certas condições históricas especiais, a burguesia nacional possibilitou a abertura de diálogo com os trabalhadores com a finalidade de firmar contratos sociais ou pactos políticos, que cedo ou tarde resultaram no esmagamento das massas. Os contratos sociais propostos pelos governos latino-americanos em conluio com a sociedade civil, representada por políticos com interesses nefastos, para o autor não passam de farsas e crimes contra a boa fé da população. Segundo Freire, as elites políticas e econômicas só convidam as massas para o banquete quando precisam de alguém para limpar a sujeira que se esconde debaixo do seu tapete. Os intelectuais devem ter em mente que a classe dominante jamais cederá um palmo que seja para permitir o desenvolvimento de qualquer ação que possa resultar em algum tipo de reflexão que possa conduzir as massas em direção à consciência de sua historicidade (FREIRE 1987, p.102). 6. Os humanistas e sua função histórica de libertação das massas Sabendo-se que a classe dominante jamais abrirá mão de praticar a teoria da dominação e fará o que estiver ao seu alcance para que o povo não 90 pense, Freire costumava dizer que ao denunciar suas práticas, não esperava que a burguesia abrisse mão de suas ações, mas sim que os humanistas assumissem a sua função histórica de libertação das massas. Isso significa que a educação só poderá ser um instrumento de libertação quando os professores preocupados com esse processo, assumirem em definitivo um compromisso com a politização e a organização das massas populares. Nesse caso, um aspecto posto em debate na Pedagogia do Oprimido é a situação de aderência dos oprimidos aos opressores como maior obstáculo ao projeto de autonomia e de inserção dos excluídos. Isso significa que além de enfrentar os projetos já consolidados das elites, os militantes terão que combater a resistência dos oprimidos. Esse processo deve ser considerado natural, porque mantidas em cativeiro, inconscientes das decisões políticas e ingênuas quanto às suas condições históricas, as massas deixam-se invadir, ocupar e habitar pelos simulacros que as dominam. Ao ter como única projeção de êxito a imagem da burguesia, como um reflexo que em tudo cintila, o oprimido entende que não há outra realidade além da sua que não seja a do opressor. Em seu desconhecimento histórico para ser livre ele precisa ser o opressor. Assim o trabalhador mais reprimido pode vir a ser o mais terrível carrasco, porque ele quer ser o opressor. A teoria de Freire é que esse desejo cristaliza a superioridade dos dominadores. Dessa forma o opressor não está longe, ele vive dentro do oprimido. Habita seus sonhos de libertação do sofrimento e da miséria. O pedagogo procura elucidar que essa ocorrência é fruto da caótica invasão cultural promovida pela propaganda das idéias, dos produtos e dos modismos burgueses. Seduzidos pelas formas e pelas cores da publicidade enganosa, os invadidos reconhecem-se como inferiores e alienam sua cultura, suas crenças e sua possibilidade de libertação ao dominador. Nesse sentido, a face mais terrível da educação para a subserviência está impressa no rosto dos jovens pobres que desejam parecer com os ricos, andar como aqueles, vestir à sua maneira e falar ao seu modo (FREIRE, 1987, p.87). 91 Essa identificação com o mundo do opressor surge como resultado da falta de concepção histórica e crítica da realidade e persiste pela perpetuação do silêncio da classe oprimida. Essa condição imposta aos jovens é um dos sinais mais visíveis de que a opressão, quando não combatida em tempo, é capaz de invadir o espaço cultural e cristalizar as relações de dominação no corpo social. A crueldade dessa cristalização é tão desmedida que o indivíduo ao sofrer a invasão do seu único e ínfimo espaço já não quer travar batalhas para expulsar o inimigo, mas unir-se a ele contra si mesmo. Freire usa esse conhecimento para demonstrar que quando não há capacidade de resistência toda a estrutura social adota e reproduz a feição dominadora de modo uniforme: os lares, as escolas, as universidades e todas as instituições sociais funcionam como agências reguladoras da dominação econômica e cultural. Nesse momento as possibilidades de opressão se tornam mais refinadas e são potencializadas pelo uso de tecnologias de última geração, que levam à construção de abismos e ilhas que promovem o silêncio e o distanciamento até mesmo entre pessoas que vivem na mesma casa. Nesse caso, as maiores vítimas, como em todas as guerras, são as crianças e os jovens, que sem endereçar-se politicamente para a rebelião autêntica e própria da sua idade, com receio da liberdade e proibidos de pensar, abrem mão do seu direito de sonhar e olham o mundo em que vivem como se não lhes pertencesse, e as pessoas que as cercam diariamente como se com elas não tivessem nenhum laço afetivo ou nenhuma afinidade real. Esse é o aspecto mais terrível da sociedade capitalista, a destruição dos vínculos humanos e a morte prematura dos ideais e dos sonhos da juventude. Esse quadro social colabora com os princípios liberais que começaram com a defesa da propriedade privada e dos direitos individuais, e acabaram por solapar qualquer ideal de igualdade, liberdade e fraternidade, colocando em primeiro plano a individualidade do ser. Enquanto a ideologia socialista pensa o bem-estar das massas e age em defesa da cidadania, do ser e da sua humanidade, a filosofia liberal propõe a defesa do indivíduo e de seus pertences, fazendo com que as pessoas vivam voltadas para o próprio umbigo seduzidas pelo consumismo. Supondo-se que o fim do mundo fosse amanhã, o 92 homem liberal faria o possível para salvar sua família, sua casa, sua empresa, seu carro, sua televisão, seu computador, seu gato e seu cachorro. Se não pudesse salvar a todos, salvar-se-ia a si mesmo e tudo continuaria bem. Já o humanista seria aquele capaz de dar a vida por sua comunidade. A capacidade de pensar nos outros, tanto quanto em si mesmo, é o que distingue o socialista do liberal. Diante disso, nota-se que no individualismo da sociedade neoliberal reside o sentimento de estrangeirismo da juventude. A visão fragmentada de realidades dispersas no tempo e no espaço, traduz para os receptores apenas a ignorância de um sistema injusto e dominador que atua contra sua liberdade de ser, de ter e de sonhar, e contra o qual sentem que não possuem armas para lutar. A percepção que os jovens têm da sociedade capitalista é de um cenário cinematográfico no qual as aparências valem tanto quanto a realidade. Essa percepção de interação entre o real e o virtual desenvolve uma espécie de indiferença diante de todas as relações políticas e sociais, o que faz com que seus professores os considerem “completamente” alienados. Freire entende, no entanto, que tal comportamento não deve ser visto como manifestação de desinteresse ou ignorância e muito menos de alienação. Ele sugere que há algo mais profundo nesse suposto alheamento juvenil, e que até mesmo a ausência de reação e a opção pela apatia podem ser parte de novas formas de resistência e de rebelião dos jovens contra um modelo cultural que os trata como inferiores, alienados, preguiçosos, doentes, incapazes e mal-agradecidos, enquanto eles compreendem perfeitamente que sua condição social não é fruto da sua debilidade, mas da violência do seu invasor. Sobre o sentimento da juventude vitimada pela invasão da cultura neoliberal que se apossou das suas relações sociais, dos seus conteúdos de estudo e de todas as mídias que constituem o seu cotidiano, Freire considera que: Os jovens sentem a necessidade de renunciar à ação invasora, mas os padrões dominadores estão de tal forma “metidos” dentro deles, que esta renúncia é uma espécie de morrer um 93 pouco. Renunciar ao ato invasor significa, de certa maneira, superar a dualidade em que se encontram, dominados por um lado, dominadores por outro. Significa renunciar a todos os mitos de que se nutre a invasão e existenciar uma ação dialógica. Significa deixar de estar sobre ou dentro como estrangeiros, para estar com, como companheiros. [...] Desnudar-se dos mitos e renunciar a eles é uma violência contra si mesmos, praticada por eles próprios. Submetidos ao condicionamento de uma cultura do êxito e do sucesso pessoal, reconhecer sua condição alienada é desfavorável, é o mesmo que frear sua possibilidade de êxito.[...] Isto exige que se instaure uma revolução cultural e um novo poder que não seja só o freio necessário aos que pretendem continuar negando os homens, mas também um convite valente a todos os que queiram participar da reconstrução da sociedade”. (FREIRE, 1987, p. 89 – 90) Ao expor as dificuldades impostas àqueles humanistas que desejam impedir a invasão das ideologias dominantes, Freire deixa evidente a necessidade de um contra-poder que possa despertar as massas do doping que as faz reféns da teoria da dominação e de um sistema que pretende transformar crianças e jovens em zumbis . Sem perder de vista que ao transformar a educação num instrumento de opressão e controle social, as elites encontraram uma forma discreta e segura para a propagação do seu domínio, o autor avalia que o impacto histórico e social desse adestramento pode ser considerado maior que o de todas as guerras historicamente registradas. Quando Foucault, em Microfísica do poder, denuncia as práticas que mascaram a repercussão da disciplina liberal instalada nas fábricas a partir de 1848, como parte vital do programa de conformação dos trabalhadores aos anseios da burguesia, ou quando Freire denuncia a apropriação da educação como instrumento de controle social, próprio da teoria da dominação, espera-se que compreendamos que o problema não está nas instituições, mas nas relações de poder estabelecidas na sociedade. Quando um estudioso brasileiro mundialmente respeitado escreve um livro explicando o que é e como funciona a teoria da dominação, entendendo-a como a base da repressão aos movimentos populares, bem como da derrota dos trabalhadores na conquista de direitos humanos fundamentais para a sua sobrevivência e a sua dignidade, tal teoria merece atenção. E quando esse autor explica que a condição para a libertação é a intervenção dos intelectuais por meio do exercício comprometido 94 do magistério, essa consideração deve ser vista como o maior desafio já imposto aos professores. Considerações finais Os referenciais teóricos utilizados neste artigo permitem afirmar que a dominação faz parte do cotidiano das massas latino-americanas e que nesse cenário de opressão a educação é um dos centros vitais para o exercício do controle e da exclusão social. Os argumentos usados por Paulo Freire demonstram que a possibilidade de revolução está presente no cotidiano dos trabalhadores e que, inseridos nesse contexto, os professores são em virtude do seu ofício, os sujeitos históricos com maior poder de transformação social. Essas afirmações estão envoltas em evidente contradição. Ao mesmo tempo em que a educação pode ser vista como o palco de práticas opressoras, apresenta-se como cenário de libertação social. É justamente nesse sentido que a teoria marxista de pesquisar e atuar a partir das contradições sociais pode ser experimentada. Compreendendo a sutileza desse pensamento, Freire percebe que somente no local da alienação é que se pode criar o espaço necessário ao exercício da libertação. Se a educação é a base da teoria da dominação, por meio dela se dará o imprescindível processo de libertação. As leituras e sugestões feitas neste artigo, cumprem sua finalidade de expor que para a libertação da opressão que resultará na assunção do poder de intervenção das camadas populares sobre a realidade latino-americana, podem ser elencadas três condições. Primeiramente que se compreenda que o ofício do professor tem um poder capaz de provocar a transformação social. Para tanto, é mister repensar, com a devida urgência e praticidade, a importância da formação de licenciados para atuação em todos os níveis de ensino. Em segundo lugar, defendem-se metas para a superação da influência dos métodos positivistas no ofício de professor, o abandono do recorte focalista em prol da totalidade histórica, juntamente com o reconhecimento de que não há saber neutro e que o ofício do magistério é também ou essencialmente político. Finalmente, entende-se que a opção por uma sociedade mais justa 95 está intimamente relacionada ao socialismo e que para a superação do modelo neoliberal, mantenedor da educação como reduto de opressão social, os intelectuais latino-americanos precisam reconhecer e debater as propostas do materialismo histórico e dialético. Considera-se que essas tarefas são imprescindíveis, para que o professor reafirme sua presença na cena política, como sujeito histórico e agente capaz de promover a reorganização da ação política dos trabalhadores urbanos ou rurais que ainda sonham em deter o poder hegemônico que a burguesia mantém sobre as relações e as práticas sociais na América Latina, bem como nos países da África, da Ásia e da Oceania que também sofrem a intervenção política, econômica e cultural do imperialismo europeu ou norte-americano. Para tanto, as armas aconselháveis por Freire são mais simples que quaisquer artefatos bélicos de última geração. Os dois autores concordam que a revolução autêntica exige primeiramente disposição para a dialética, por meio da reflexão, do diálogo, da pronúncia, da leitura e da escrita de palavras que possam ajudar os homens e as mulheres do povo a reencontrar sua palavra. Sugerem ainda, a urgente inauguração de debates sobre as condições históricas dos trabalhadores em nível global, que lhes assegure a consciência de sua cidadania e lhes oportunize o contato com sua humanidade perdida em meio ao turbilhão de coisas colocadas como superiores ao seu desejo de ser parte deste mundo e sujeitos da sua história. Finalmente, todos os autores estudados neste artigo entendem que é preciso adesão a teoria de que a condição para a libertação das massas, é a ação pedagógica comprometida, desapegada de recortes inúteis e focos isolados, que academicamente possibilitam apenas a configuração de contextos, fatos ou conceitos fragmentados, bastante frágeis e descartáveis diante de um mundo globalizado e de um sistema capitalista cada vez mais totalizante (ou totalitário). Conclui-se enfim, que a contribuição de Paulo Freire para a educação é fundamental para uma época marcada pela intolerância não apenas política, mas também religiosa, racial, étnica e sexual, na qual se aprofundam também as diferenças geradas pelo capital econômico e cultural. Nesse contexto, a 96 educação ocupa um espaço de vanguarda e os professores emergem como agentes do projeto de reformulação das políticas públicas, autores da revolução das práticas pedagógicas, comprometidos com a reorganização dos trabalhadores, a autonomia das classes populares e a ocupação de espaços políticos com relações de poder mais equilibradas e mais justas. Isso significa reconhecer no professor, o profissional dotado dos requisitos necessários para melhorar as formas de vida de povos e grupos humanos em condições de opressão. Referências BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. HOBSBAWM, Eric.Os trabalhadores: Estudos sobre a história do operariado. São Paulo: Paz e Terra, 2000. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. MEMMI, Albert. Descolonizado: Retrato do árabe-mulçumano e de alguns outros. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2007. ROJAS Carlos Antonio Aguierre. Marx para uma história crítica. In: Revista Temas e Matrizes. Ano II, p.52. Cascavel: Editora Unioeste, 2003. THOMPSON, Edward. Os românticos: A Inglaterra na era revolucionária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. VOVELLE, Michel. Jacobinos e jacobinismo. São Paulo: Edusc, 2000. SITOGRAFIA MEIGUINS, Alessandro. Estudantes : É pau, é pedra é o fim do caminho. Disponível em: http://historia.abril.com.br/politica/estudantes-pau-pedra-fimcaminho-434189.shtml. Acessado em 10 de março de 2011. 97 ESTUDOS SOBRE A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA E A REPRESENTATIVIDADE SOCIAL DA COMUNIDADE QUILOMBOLA INVERNADA PAIOL DE TELHA FUNDÃO – MUNICÍPIO DE PINHÃO (PR) Valmir Jocoski Orientador: Profª. Ms. Ernando Brito Gonçalves Júnior Palavras-Chave: Comunidade Quilombola. Organização. Política. Sociedade. Esta pesquisa prioriza a abordagem de uma temática regional, com o propósito de conhecer, divulgar e preservar as práticas políticas da Comunidade Quilombola Paiol de Telha Fundão, da mesorregião de Guarapuava, reconhecida como uma das comunidades quilombolas com o histórico mais polêmico de luta pela posse da terra no Estado do Paraná. Desde 1998, cerca de cinqüenta famílias estão acampadas a cinqüenta quilômetros de Guarapuava, em frente à Fazenda Fundão, no Município de Pinhão, aguardando que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) efetue a localização e cessão de uma área de 850 hectares para assentamento dos manifestantes. Tal questão envolve uma área de terras que teria sido deixada de herança para os ex-escravos e que teria sido esbulhada nas décadas de 1960 e de 1970, cuja ação envolve diversas instituições, famílias e uma cooperativa da região. O processo tornou-se conhecido nacionalmente a partir de 1981, quando o Instituto de Terras e Cartografia (ITC), a partir de estudos da documentação apresentada pelos representantes dos quilombolas, manifestouse pela necessidade de aprofundamento sobre o direito de posse da área de terras em questão. Desde então uma série de procedimentos foram realizados e por meio desta pesquisa procurar-se-á identificar de que forma os descendentes dos escravos estão organizados politicamente para defender o que julgam ser seu por direito. Politicamente, sabe-se que a partir de 1995, a Comissão Pastoral da Terra – CPT, incentivou a formação de uma associação com a finalidade de 98 organizar legalmente as ações comunitárias, o que teria resultado na criação da Associação Pró-Reintegração da Invernada Paiol de Telha, comunidade para descendente de escravos, definida como - Associação Civil sem fins lucrativos sob a inscrição 01.194.255/001-03, com endereço à Rua XV de Novembro, No 3466, 4o andar, sala 404, Guarapuava-Paraná. Nos primeiros passos da pesquisa foram encontradas evidencias sobre o apoio de várias entidades estaduais, principalmente sindicais, que teriam se manifestado em prol da causa dos quilombolas de Paiol de Telha, entre elas a Associação de Professores do Paraná (APP – Sindicato), Sindicato dos Bancários de Curitiba; ACNAP (Associação Cultural Negritude e Ação Popular); Comissão Pastoral da Terra, SISMMUC (Sindicato dos Servidores Municipais de Curitiba), Instituto Afro-brasileiro, setorial de negros e negras do PT, Coletivo de Mulheres Negras. Além dessas entidades, na região de Guarapuava, a Associação de Paiol de Telha teria conseguido o apoio da Pastoral da Terra, Pastoral Operária e Pastoral da Criança, do Diretório Municipal do PT, da Associação de Famílias de Trabalhadores Rurais de Pinhão- AFATRUP, do Sindicato dos Servidores Públicos e Professores Municipais de Guarapuava e do Núcleo Sindical da APP - Sindicatos. Acredita-se que a aproximação com essa comunidade a partir da intervenção acadêmica, por meio de atividades de pesquisa e de extensão, poderá contribuir para a produção de estudos sobre as formas de organização política e social desenvolvidas pelos afro-descendentes que vivem na localidade de Paiol de Telha. Alguns documentos que poderão fornecer embasamento legal ao presente objeto de pesquisa são: a Lei nº. 13.381/ 01, que torna obrigatória, no Ensino Fundamental e Médio da Rede Pública e Estadual, o trabalho com os conteúdos de História do Paraná; Lei 10639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da temática história e cultura afrobrasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio das redes públicas e particulares do Brasil; Parecer do Conselho Nacional de Educação- CNE número 003 de 2004, sobre as Diretrizes Curriculares relacionadas as relações étnicorraciais, de história e de cultura afro-brasileira; O Estatuto da Igualdade Racial no Estado do Paraná. 99 Para a elaboração do referencial teórico serão utilizados os estudos feitos pelas historiadoras de Guarapuava Gracita Gruber Macondes e Alcioly Gruber de Abreu, pela professora Valderez Pontarollo, para o Programa PDE – PR, por Mirian Furtado Hartung,bem como resultados de Laudo antropológico realizado por professores da Universidade Federal de Santa Catarina, na Invernada Paiol de Telha; (UFSC, Laudo Antropológico). Procurar-se-á ainda, ouvir e registrar depoimentos dos moradores da Comunidade Invernada Paiol de Telha Fundão, para a elaboração e a finalização dessa pesquisa. REFERÊNCIAS ABREU, Alcioly Therezinha Gruber de. A Posse e o Uso da Terra: Modernização Agropecuária de Guarapuava. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura e do Esporte, 1986. _____. e MARCONDES, Gracita Gruber. Escravidão e Trabalho. Fundação Universidade Estadual do Centro Oeste-UNICENTRO. Guarapuava: 1991. HARTUNG, Mirian Furtado. O sangue e o espírito dos antepassados: escravidão, herança e expropriação do grupo negro Invernada Paiol de Telha. Florianópolis: NUER/UFSC, 2004. PONTAROLLO, Valderez. As práticas tradicionais religiosas da Comunidade Quilombola Invernada Paiol de Telha Fundão: Estudo de caso sobre a prática da recomenda das almas. Programa PDE/ Estado do Paraná, 2011. SCHLEUMER, Fabiana de e OLIVEIRA, Oseias de. (org) Estudos étnicoraciais. São Paulo: Canal 6 Editora, 2009. 100 O ENSINO DE CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AS MANIFESTAÇÕES DE RELIGIOSIDADE DOS AFRO-DESCENDENTES Neiva da Cruz Antunes Camargo Lucélia Terezinha Araujo Pietras Nicéia Rodrigues Curso de Ciências Sociais - Faculdade Guarapuava Palavras-Chave: Cultura. Crenças. Práticas. Ensino. Afro-brasileiros. Considerando-se que a Lei Nº: 10.639 de 09/01/ 2003 incluí no currículo Oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática relacionada à “História e Cultura Afro- Brasileira”, bem como que os povos africanos desempenharam um papel de destaque na formação do povo brasileiro, apresenta-se esta pesquisa ainda em sua fase inaugural. Pretende-se com tal estudo pensar sobre as alternativas existentes para o ensino de questões relacionadas às crenças, aos costumes e às práticas culturais dos povos afro-brasileiros. A iniciação aos estudos antropológicos no Curso de Ciências Sociais da Faculdade Guarapuava, levou-nos à percepção que os conhecimentos relativos à história e cultura afro-brasileira, ainda são pouco disseminados e pouco conhecidos, principalmente na região sul do Brasil. No decorrer de nossa busca por textos didáticos e materiais que nos levasse a compreender as crenças e a religiosidade dos afro-descendentes, fez com que percebêssemos que esse tema possui vários focos ainda inexplorados e que se apresenta como um campo amplo para pesquisas e estudos culturais. Desse modo, fomos atraídas pela diferença dos costumes e dos ritos dos povos africanos, especificamente aqueles que foram preservados e que resistiram ao preconceito e a discriminação imposta pelos imigrantes europeus, desde a colonização do Brasil. Nesse sentido, investigar essa temática tornouse um desafio que pretendemos enfrentar, com a finalidade de estabelecer concepções sólidas sobre as crenças africanas e seu poder de intervenção sobre a formação do povo brasileiro. Nosso objetivo é o de promover estudos sobre a Lei Federal nº 10639/2003 que introduziu o ensino afro-brasileiro no currículo escolar e a 101 partir disso propor alternativas para o ensino sobre a religiosidade dos afrobrasileiros, entendendo-se o estudo cultural, em seus aspectos das crenças e manifestações populares, pode dar maior visibilidade aos povos, cujos costumes, foram excluídos do processo histórico brasileiro. Os questionamentos condutores do nosso trabalho são: quais as mudanças propostas pela lei que tornou obrigatório o ensino afro-brasileiro em todas as escolas da rede pública e particular de ensino? Como devem ser contempladas a diversidade e as relações culturais dos povos africanos? Qual a importância desses povos no contexto econômico, cultural e social brasileiro? Essas são algumas questões que problematizam o presente trabalho. O embasamento teórico desta pesquisa conta com autores como Gilberto Freire, Mirian Furtado Hartung, Paulo Freire, Octavio Ianni, Caio Prado Junior, Fabiana Schleumer e Oséias de Oliveira, entre outros. Esta pesquisa está em consonância procurará com o que preconiza o decreto presidencial número 6040 de 7/02/2007, que em seu artigo terceiro, considera que: Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (Decreto presidencial 6040, art.3º, 2007, p. 22) De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), conforme alterações propostas pela publicação de 10.639/2003, os professores vem sendo estimulados a trabalhar a História e Cultura Afro-Brasileira em todos os currículos escolares, da rede pública e particular de ensino, em áreas específicas. O tema proposto diz respeito às maneiras de conhecer, divulgar e preservar as práticas tradicionais das comunidades afro-brasileiras bem como de valorizar suas manifestações culturais. Através do parecer CNE/CP 003/2004, das Diretrizes Curriculares, está incluso no currículo escolar a Educação das Relações Étnicorraciais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Recentemente as lideranças do movimento negro paranaense, fizeram aprovar a Lei PL/ 102 N°235/09 que determina feriado Estadual da Consciência Negra no dia 20 de novembro, em homenagem ao aniversário de Zumbi dos Palmares. 9917-3551 A Secretaria do Estado de Educação (Seed) institucionalizou o Fórum Permanente de Educação e Diversidade Étnicorraciais do Paraná, o qual institui as Diretrizes Curriculares para a educação das relações étnicas e raciais e para o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana em consonância com determinações do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Todas essas políticas reconhecidas e disseminadas pelo Governo Federal e Estadual servem de ponto de partida para a elaboração de propostas que possam corresponder ao que já está aprovado em lei. O embasamento teórico desta pesquisa conta com autores como Gilberto Freire, Mirian Furtado Hartung, Paulo Freire, Octavio Ianni, Caio Prado Junior, Fabiana Schleumer e Oséias de Oliveira, entre outros. REFERÊNCIAS FREIRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1988. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. HARTUNG, Mirian Furtado. O sangue e o espírito dos antepassados: escravidão, herança e expropriação do grupo negro Invernada Paiol de Telha. Florianópolis: NUER/UFSC, 2004. GOMES, Jackson Jr. et all (org). Paraná Negro: fotografia e pesquisa histórica. Curitiba: UFPR, 2008. SCHLEUMER, Fabiana de; OLIVEIRA, Oseias de. (org) Estudos étnicoraciais. São Paulo: Canal 6 Editora, 2009. DOCUMENTOS CONSULTADOS BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: apresentação dos temas transversais. Ética/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Lei 10.639/2003 e 11.645/2008; sobre as mudanças em relação aos estudos afro-brasileiros. 103 104 AS TRANSFORMAÇÕES OCORRIDAS NO COTIDIANO, NO COMPORTAMENTO E NA CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Joelma Eleutério Chimilovski – Curso de Ciências Sociais Faculdade Guarapuava Palavras-Chave: Educação. Família. Casamento. Cultura. Sociedade. O presente trabalho apresenta a intenção de pesquisa sobre a constituição da família, dentro do contexto histórico de diferentes épocas, buscando enfatizar sua formação social relacionada ao aspecto numérico,descendência, cultura, religião e papel dos pais na formação escolar e social dos filhos por meio de informações em diversas fontes históricas e na obtenção de dados qualitativos .O estudo de fenômenos acerca da família deve ser realizado levando-se em consideração modelos culturais específicos a fim de estabelecer posterior comparação com a formação da família contemporânea. Considerando-se o conceito de família relacionado à ordem biológica, faz-se necessário ressaltar seu papel enquanto uma organização da humanidade que se constituiu sócio-historicamente. A família constitui-se enquanto instituição social e não como grupo social, pois o conceito de grupo social refere-se a um processo de interação contínuo dos indivíduos considerando objetivos comuns, e a instituição se refere ao conjunto de regras e procedimentos padronizados dos diversos grupos, como exemplo: existem várias formações familiares, mas o papel relacionado ao pai, a mãe e aos filhos obedecem a uma regra e basicamente são iguais. De acordo com o materialismo-histórico, a família se origina com a necessidade de organizar seus modos de produção. Sabendo, portanto, que os modos de produção se modificaram com o passar do tempo a composição da família por sua vez também sofreu alterações que serão apontadas posteriormente. A família trás consigo diversas responsabilidades histórica, social e culturalmente estabelecidas, que se dão nas relações familiares e se desenvolvem em contextos culturais diversos. Este estudo refere-se à composição familiar enquanto uma instituição social seguindo uma variação de aspectos relacionados à diferentes famílias, abrangendo questões como número e tipo de casamentos e suas funções principais tais como: função sexual, reprodutiva, econômica e educacional. Dentro desta perspectiva, tornase importante o presente estudo. O objetivo a ser alcançado é realizar um levantamento de informações acumuladas histórico culturais, a cerca da funcionalidade e constituição familiar dentro de cada contexto histórico. A palavra família origina-se desta forma do latim "famulus" que significava literalmente escravo doméstico. A hierarquia se estabelece com os patriarcas sobre os membros, para mais tarde, com o aumento da população, estabelecer-se sobre os escravos (MARX; ENGELS, 1980). Por exemplo, no início da colonização brasileira a família assumiu a forma patriarcal, na qual o poder e os direitos são obtidos somente pelo patriarca, ou seja, o marido. A forma de organização familiar se modificou ao longo do tempo devido às mudanças econômicas, sociais e culturais como, por exemplo: a popularização dos métodos anticoncepcionais a partir da década de 60, a legalização do aborto nos países em alguns países, a aprovação da lei do divórcio no Brasil em 1977, a decadência do casamento e também a entrada da mulher no mercado de trabalho decorrente de mudanças sociais que as permitiram se dedicar a outros interesses além da função de esposa e mãe são aspectos decorrentes da transformação social. Todos esses fatores influenciaram diretamente na composição familiar da sociedade contemporânea, apresentando-se características fora dos padrões estabelecidos da família enquanto instituição, pois surgem novas concepções acerca de sua formação, falamos dos novos arranjos familiares tais como casais homossexuais, casais separados e em segunda união bem como a transferência de responsabilidades dos pais aos avôs e outros parentes consangüíneos, no que se refere à formação escolar e humana. A partir do exposto, pode-se perceber que a família vem se transformando de acordo com as transformações ocorridas na sociedade industrial e nos modos de produção. Desse modo, por meio da presente 105 pesquisa procurar-se-á identificar de que forma essas mudanças afetaram o cotidiano, o comportamento e a ação dos indivíduos na sociedade, a partir de um estudo sobre. O trabalho segue na mesma linha de pesquisa almejando a ampliação de pesquisa e em consequência melhores resultados. REFERÊNCIAS OLIVEIRA, Pérsio Santos. Introdução à Sociologia. São Paulo: Ática, 1998. MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1980. 106 CONSIDERAÇÕES SOBRE ASSESSORIA E CONSULTORIA EM SERVIÇO SOCIAL: ESPAÇO DE ATUAÇÃO PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL Sonia Roth Bruger Graduada em Serviço Social Faculdade Guairacá Orientadora: Profª Clarice Battistelli Palavras-Chave: Serviço Social. Assessoria. Consultoria. Espaço SócioOcupacional. O Serviço Social enquanto profissão de intervenção social no Brasil, desde seu início na década de 1930, vem aprimorando sua ação e formação, resultando na efetivação de grandes avanços e conquistas em torno dos espaços sócio-ocupacionais. No trato dos seus espaços sócio-ocupacionais na contemporaneidade a Assessoria/Consultoria é trazida como objeto de análise deste estudo, partindo de alguns conceitos, competências, habilidades, procedimentos e ações realizadas nesse processo de trabalho. A pesquisa de campo, de caráter principalmente qualitativo, permitiu abordar junto aos sujeitos entrevistados, o entendimento sobre o tema pesquisado, as perspectivas e os impedimentos vistos para a atuação nesse espaço ocupacional, utilizando-se como instrumental de coleta de dados, o questionário com perguntas previamente formuladas, aplicado junto a profissionais de Serviço Social, atuantes e não-atuantes em Assessoria/Consultoria. Diante disso, a pesquisa contribui com a discussão e produção científica sobre a Assessoria/Consultoria enquanto espaço de atuação sócio-ocupacional do Assistente Social na contemporaneidade. O despertar e interesse por explorar este “novo” campo de intervenção profissional originou-se no campo de estágio: Projeto de Extensão “Assessoria e Consultoria em Serviço Social”. Esta aproximação com o espaço sócioocupacional trouxe a indagação do motivo da pouca atuação dos profissionais nesta área. Esta pesquisa teve por objeto de pesquisa a Assessoria e Consultoria em Serviço Social, tendo como objetivo geral contribuir com a 107 discussão sobre este espaço, enquanto processo de trabalho do Serviço Social, levantando suas perspectivas frente ao mercado de trabalho e suas novas demandas, e trazendo como objetivos específicos: buscar conhecimento teórico histórico do que é assessoria enquanto processo de trabalho do Serviço Social, bem como entender as competências conforme regulamentação da lei profissional; conhecer o processo metodológico e operacional desenvolvido pelo campo da assessoria; identificar as demandas existentes em assessoria no Serviço Social; demonstrar/refletir sobre as dificuldades e perspectivas para a atuação profissional no campo da assessoria, na atualidade. Assim sendo, a realização da pesquisa se deu em torno de como no contexto atual, a Assessoria/Consultoria em Serviço Social se faz presente. No decorrer da trajetória histórica do Serviço Social brasileiro, houve muitas transformações e conquistas referentes à sua prática profissional e ao seu espaço sócio-ocupacional. Hoje as transformações não param de acontecer, sejam no meio econômico, político, cultural ou social, sendo originadas por um sistema que produz e reproduz os interesses do capital, gerando a cada tempo histórico, novas roupagens às expressões da Questão Social, as quais também agregam em si, e com mais força, novas formas de exclusão. Diante dessas transformações são necessárias inovações no modo de intervir do Assistente Social em busca de ações que possam trazer mudanças efetivas, onde a Assessoria e Consultoria podem se tornar um promissor espaço ocupacional para enfrentamento das demandas sociais contemporâneas. Neste caso, o profissional Assistente Social fornecerá uma prestação de serviços especializados com conhecimento na área social, diagnosticando a realidade e a necessidade de intervenção, indicando as soluções e ações corretas a serem executadas, desenvolvendo projetos específicos e viáveis às necessidades demandadas, buscando viabilizar recursos e alternativas para a efetivação de direitos. Segundo Ruiz (2006, p. 97/98), “[...] assessorar implica contribuir para a solução de determinada demanda a partir de atribuições, capacidades e conhecimentos específicos.” Buscou-se através da pesquisa biliográfica e documental, a construção dos conteúdos teóricos e legais, de forma sistematizada, para uma melhor compreensão do objeto analisado, deparando-se com a ausência de produção 108 cientifica específica em Assessoria/Consultoria em Serviço Social, o que remeteu a busca para outras areas do saber, onde conforme a afirmativa de Bravo e Matos (Org. 2006, p.19): “O pouco que existe de material publicado sobre assessoria está localizado no campo da administração [...]”. Com a pesquisa de campo procurou-se uma maior aproximação com o objeto de estudo, a partir da vivência dos sujeitos entrevistados em diferentes lugares do Brasil. Através da pesquisa foi possível identificar que todos os entrevistados veêm a Asessoria/Consultoria como competência e processo de trabalho do Assistente Social, sendo um meio de buscar a efetivação e o fortalecimento da profissão e do Projeto Ético Politico; este processo de trabalho é uma assistencia técnica sistematizada e contínua, relacionada a área de atuação/especialização do profissional; através dele se instrumentaliza grupos/movimentos em matéria especifíca de sua atuação e/ou áreas diversas; as técnicas de assessoria/consultoria são conhecidas apenas pelos que exercem esse processo, por iniciativa própria ou aproximação acadêmica. As dificuldades para a atuação neste processo de trabalho referem-se: a ausência de reconhecimento e aperfeiçoamento da categoria como um campo de atuação; entender a visão, missão, filosofia, processo de gestão, dirigentes e objetivos de trabalho de cada instituição atuante; ausência de alinhamento conceitual e publicização das técnicas e metodologia; ausência de conhecimento do profissional, incentivo e desenvolvimento dessa prática no meio acadêmico. As demandas inerentes a atuação nesse processo de trabalho são grandes em todas as áreas no mercado: família, empresas, políticas públicas, judiciário, instituições como nas demais que se manifestam as expressões da Questão Social, como perspectiva de um processo de implementação em todo o território nacional, visando o crescimento da profissão. Este é mais um espaço sócio-ocupacional em que o Assistente Social pode buscar efetivar seu Projeto Ético-Político, e traz em si múltiplas possibilidades, uma vez que não depende de vínculos institucionais e empregatícios, sendo este o único espaço ocupacional que realmente caracteriza a profissão de Assistente Social, como liberal. Considerações finais 109 A realização desta pesquisa possibilitou verificar a Assessoria/Consultoria enquanto competência e atribuição no âmbito dos processos de trabalho do Serviço Social. Também foi possível identificar que este processo de trabalho é um campo ainda incipiente na atuação profissional, devido à ausência de produção teórica e técnica-operacional e, principalmente, pela pouca apropriação dos Assistentes Sociais nesse espaço sócioocupacional. Diante das análises de entrevistas constatou-se que as demandas e perspectivas referentes a esse espaço de atuação profissional são promissoras, pois são múltiplas diante da nova roupagem das expressões da Questão Social e das exigências das Políticas Sociais Públicas atuais. Sendo assim, a Assessoria/Consultoria é um espaço sócio-ocupacional do Assistente Social, legalizado e regulamentado por lei, porém, é preciso que aconteça a apropriação desse espaço ainda incipiente, buscando a qualificação, conhecimento e técnicas que esse processo disponibiliza. Segundo Iamamoto (2007, p. 48-49), o profissional Assistente Social que deve ser “[...] um profissional criativo e inventivo, capaz de entender o ‘tempo presente, os homens presentes, a vida presente’ e nela atuar, contribuindo, também, para moldar os rumos de sua história.” Dessa forma, é preciso que sejam profissionais não só executivos, mas inovadores e audazes, porque se “[...] não o fizerem, outros farão, absorvendo progressivamente espaços ocupacionais até então a eles reservados”. Buscar as competências necessárias para esta forma de intervenção na área social, é um desafio na atualidade para o Assistente Social. REFERÊNCIAS BRASIL. Código de Ética do Assistente Social. Lei 8.662/93 de regulamentação da profissão.-3. ed. rer. E atual. – [Brasília]: Conselho Federal de Serviço Social, 1997. BRAVO, Maria S; MATOS, Maurílio C. de. (org). Assessoria, Consultoria e Serviço IAMAMOTO, Marilda V. O serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação profissional – 11. ed. – São Paulo, Cortez,2007. 110 RUIZ, Jefferson L.de S. A experiencia de Assessoria Política ao Conselho Regional de Serviço Social 7ª Região – Rio de Janeiro. In: BRAVO, Maria S; MATOS, Maurílio C. de. (org). Assessoria, Consultoria e Serviço Social. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. 111 112 CONSIDERAÇÕES SOBRE O MUNDO DAS RELAÇÕES DO TRABALHO Megi Monique Maria Dias Estudante do Programa de Pós-Graduação em Educação no Campo. UNICENTRO/Campus Santa Cruz – Guarapuava E-mail: [email protected] PALAVRAS-CHAVES: Trabalho. Desenvolvimento Econômico. Produção. Massa. Analisar as formas de produção do trabalho e de Estado do século XX impõe a necessidade de uma reflexão sobre o desenvolvimento, bem como as crises que sucedem a permanência do capitalismo como sistema estruturante da sociedade contemporânea. Alguns estudiosos definem o Estado como “conjunto de todas as formas organizadas e, portanto, institucionalizadas das classes capitalistas” (BRUNO, 2001, p. 11). O papel assumido pelo Estado em assegurar ao capital sua reprodução por diversos momentos foi caracterizado por uma atuação dupla. Por um lado mantinha os ideais de valorização do capital e, por outro, agindo como mediador político dos interesses antagônicos expostos na configuração da sociedade. (NEVES, 1999, p. 14-15) Sabe-se que o trabalho baseado nas concepções fordista vigorou por boa parte do século XX, e foi marcado pela intensificação do trabalho. Compreendidos como apêndices das máquinas, os operários fordistas estavam submetidos às rotinas de trabalho: repetitivos, massificados, intenso, atuante em prol do aumento do lucro capitalista. A precariedade imposta pelo trabalho massificado reforçou uma segunda tendência do modelo fordista de produzir, a de racionalizar a produção por vias do parcelamento de tarefas, oriundo do modo Taylorista. (GOUNET, 1999) O surgimento do fordismo/taylorismo na organização industrial automobilística levou Ford a aplicar os princípios da organização científica do trabalho, na ambição de atender um potencial consumo de massas. A primeira característica do fordismo se constituiu pela produção em massa. Isso foi decorrente ao fato de que apenas essa forma de produção poderia ser capaz de reduzir custos de produção e o preço de venda dos produtos. Essa nova forma de produção modifica de maneira radical sua organização. O desenvolvimento das forças produtivas implicou na elaboração de vários discursos de valorização ao trabalho, dentre eles o Taylorismo, que priorizava o trabalho em equipe, a qualidade do trabalho, bem como, a multifuncionalidade, a flexibilização e a qualificação do trabalhador, todos em prol do metabolismo social do capital, na busca desenfreada e incontrolável do lucro. (MESZÁROS, 1995 apud. PERES, 2010) Conhecida como época de ouro do capitalismo, o Welfare State, comumente designado como aquele que envolve responsabilidade estatal no sentido de garantir o bem-estar básico dos cidadãos, alcançou forte desenvolvimento entre meados da década de 1940 e de 1970, concomitante aos regimes de democracia de massas. As políticas desse tipo de Estado envolvem questões como o papel assumido na extensão da cidadania social, bem como, sua ação na tentativa de transformação da sociedade capitalista. Esse modelo de organização exige a compreensão das formas como se relacionam as atividades estatais com o papel exercido pelo mercado e família em termos de uma proteção social. A resposta à crise foi a configuração do Estado Neoliberal, com suas capacidades de Estado rígido e interventor, flexível e mínimo para as questões sociais. Nesse novo processo a rigidez da produção em massa passava a ser ancorada na produção flexível, onde a própria ação dos sindicatos será colocada em cheque. A necessidade de o modo capitalista superar as crises do capital implicou na adoção de um novo modo de acumulação, ou seja, acumulação flexível de capital, na tentativa de manter ou obter maiores taxas de lucros, elemento vital para a manutenção do sistema. Quando o desenvolvimento econômico do sistema capitalista entrou em crise em meados dos anos 70, o Estado não mais existia como espaço regulador da crise, mas se apresentava como um meio de transição para um novo regime de acumulação, que por sua vez, resultaria em uma modificação do modo de regulamentação do capital, do mercado e da força de trabalho. (RAMOS, s/d) A resposta econômica à crise foi a globalização neoliberal, decorrente da intensificação da exploração dos mercados existentes e dos novos mercados, com o objetivo de manter o processo de acumulação e centralização de recursos e riquezas. Conhecidas como categorias-síntese, o Neoliberalismo e o Pós- 113 Modernismo tem a capacidade de agregarem a totalidade das relações capitalistas, fundamentais na relação Capital e Trabalho. Do ponto de vista econômico o Neoliberalismo teve como marco a publicação em 1944 da obra “O caminho da servidão”, escrito pelo economista Frederich Hayek para quem o mercado é a ordem natural e espontânea das coisas na sociedade. Enquanto que o pós-modernismo caracteriza a perspectiva cultural e educacional do capitalismo contemporâneo. Se na década de 70 e início da década de 80 os nomes da política neoliberal foram os de Margareth Thatcher (Inglaterra), Ronald Reagan (E.U.A.) e, no Brasil, Fernando Collor de Mello (com a abertura do mercado brasileiro e o início das privatizações). Num momento posterior, Fernando Henrique Cardoso se configurou como o novo protagonista da radicalização de privatizações (Vale do Rio Doce, USIMINAS, CSN, Telecomunicações, entre outros), o governo de Luís Inácio Lula da Silva não ficou imune às reformas do capital e conseguiu aprovar reformas de cunho liberal (Reforma da Previdência, Tributária – não completa, Lei de Falências, Parcerias Público-Privada) A nova Reforma do Estado que institucionalizou o Neoliberalismo teve suas conquistas ancoradas na relação entre gerente e agente das relações intercapitalistas, sendo que sua intenção se apresentou muito mais viável para o equilíbrio do mercado financeiro do que para os investimentos na população. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho – Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. Ed. Boitempo, São Paulo, 1999. ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003, pp. 09-23. BOBBIO, N. Estado Moderno. In: Dicionário de política. 7.ed. Brasília: Edunb, 1995. BRUNO, L. Reorganização econômica, reforma do Estado e educação. In: HIDALGO, A.; SILVA, I.L.F. Educação e estado: as mudanças nos sistemas de ensino do Brasil e do Paraná na década de 90. Londrina: EDUEL, 2001. p.3-20. CÊA, G.S.S. Fundamentos da idéia do empreendedorismo e a formação dos trabalhadores. In. CÊA, G.S.S (Org). O estado da arte da formação do trabalhador 114 no Brasil: Cascavel: Edunioeste, 2007. p.307-325. 115 GOUNET. T Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo editorial, 1999. HARVEY, D. A condição pós-moderna. 11 ed. São Paulo: Loyola, 2002. MARX, K. O Capital, Livro I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. NEVES, L.M.W. Educação e política no Brasil de hoje. 2.ed. São Paulo: Cortez, 1999. PINTO, Geraldo Augusto. A organização do trabalho no século 20: taylorismo, fordismo e toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2007. SITOGRAFIA ALVES, G. Reestruturação produtiva, novas qualificações e empregabilidade. In: Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. Londrina: Práxis, 2007. Disponível em: <http://www.giovannialves.org>. Acesso 2010 PERES, Marcos A. de Castro. Do Taylorismo/Fordismo à acumulação flexível Toyotista: novos paradigmas e velhos dilemas. Disponível em: <http://cesarmangolin.files.wordpress.com/2010/02/taylorismo_e_fordismo_toyotismo 1.pdf>. Acesso dia 2011. RAMOS, Luiz R. Acumulação flexível, Toyotismo e Desregulamentação do Direito do Trabalho. Disponível em: <http://www.cefetsp.br/edu/eso/globalizacao/toyotismodireito.htm>. Acesso dia: 2011 A ORIGEM CONTRATUAL DO ESTADO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O MODELO HOBBESSIANO Nayara Cristina Bueno Curso de Especialização em Seguridade Social Faculdade Guairacá. E-mail: [email protected] Palavras-chave: Racionalismo.Thomas Hobbes. Contratualismo. Introdução A questão da origem do Estado é muito antiga, por isso, foram elaboradas diferentes teorias, entre elas estão: a origem pela força, divina, a partir da vontade dos indivíduos e como conseqüência da divisão da sociedade em classes. A origem pela força ou origem violenta do Estado considera que a organização política resultou ou do poder de convenção ou do poder de dominação dos mais fortes sobre os mais fracos (Jean Bodin e Gumplowicz); enquanto que a origem divina considera que Deus criou o Estado, assim, os reis eram ungidos por ele (Tomas de Aquino, Santo Agostinho); a origem a partir da vontade dos indivíduos é a primeira que procura explicar racionalmente a origem e a legitimidade do Estado e será objeto deste estudo; contrapondo a ela está a origem como conseqüência da divisão de classes (Marx e Engels), nesta concepção o Estado tornou-se uma necessidade devido ao desenvolvimento econômico que cria a divisão da sociedade em classes. Desta forma, a classe que domina a economia precisa institucionalizar sua dominação através de um Estado. A origem contratual do Estado ou a origem a partir da vontade dos indivíduos se assenta, principalmente, em três modelos: o modelo hobbessiano, o modelo lockeano e o modelo roussoniano. Estas diferentes construções teóricas explicam e justificam a necessidade do Estado a partir da dicotomia ‘estado de natureza’/estado civil. Desta forma, percebem o Estado 116 como o resultado de um pacto entre os homens, por isso eram chamados de contratualistas. As idéias contratualistas emergiram na Europa entre os séculos XVI e XVIII e compreende todas as teorias políticas que percebem a origem da sociedade e o fundamento do poder político num contrato, ou seja, num acordo entre os homens visando o inicio de um estado social e político em detrimento de um “estado de natureza”. Assim, os contratualistas eram também racionalistas uma vez que consideravam a razão humana como essência do real, ou seja, somente a razão poderia proporcionar o conhecimento adequado da realidade, iluminar o real e perceber suas conexões, relações, articulações ou interdependência. Thomas Hobbes (1588 – 1649) filósofo e político inglês viveu em um período de muitas guerras na Inglaterra, “[...] escreveu sobre política partindo do problema real e crucial de seu tempo: o problema da unidade do Estado [...]”(BOBBIO, 1991, p. 26), a qual estava ameaçada pelas discórdias religiosas, pelo contraste entre Coroa e parlamento e pela disputada em torno da divisão de poderes, por isso, o seu pensamento central é esta unidade. (BOBBIO,1991) Hobbes é considerado o primeiro construtor da teoria do Estado moderno, sendo este marcado pela ruptura com o Estado Medieval e, ao mesmo tempo, pela continuidade de uma concepção que transfere para a “ordem da natureza” os fundamentos da desigualdade social. O filósofo político escreveu dois livros principais: De cive (Do Cidadão) em 1642 e Leviathan (Leviatã) em 1651, nos quais assinala a necessidade de um Estado forte, absolutista, como a única forma do homem sair da anarquia natural (presente no “estado de natureza”) e estabelecer a paz (constituição de um Estado). Estado de natureza, contrato social e estado civil Hobbes para justificar a necessidade do Estado utiliza uma teoria hipotética. Assim, faz uso do método resolutivo-compositivo, o que significa reduzir a realidade a partes mínimas para depois recompô-la como um todo. 117 Desta forma, o seu objeto é o Estado e os elementos deste Estado são os homens. (MARTINS, 2001) Para Hobbes no “estado de natureza” os homens são iguais, por isso, são capazes de causar males uns aos outros, chegando ao maior deles: a morte. Diante disso, numa situação de escassez dos bens, a igualdade faz surgir em cada um o desejo de possuir a mesma coisa, gerando desconfiança recíproca que os leva a se preparar para a guerra e, quando necessária, fazêla. Além disso, o que impulsiona o luta do homem contra o homem é o desejo inesgotável de poder: [...] O poder é definido como o conjunto dos meios empregados para obter uma vantagem futura. Distinguem-se duas espécies de poder: o poder natural, que depende de faculdades eminentes do corpo ou do espírito; e o poder instrumental, que consiste em meios (como riqueza, reputação, amizades) capazes de acrescer o poder natural. [...] (BOBBIO, 1991, p.35). Assim, considerando a busca inesgotável de poder natural e instrumental de homens livres e iguais, Hobbes considerava o ‘estado de natureza’ um estado de guerra de todos contra todos, que só sanava com a morte. Além disso, a condição de guerra era causada porque cada homem se imaginava poderoso, perseguido e traído pelo outro. Porém, o homem “natural” de Hobbes não era um selvagem, mas o mesmo que viveria em sociedade. Segundo Ribeiro (2006), a maioria dos autores de antes do século XVIII acreditavam que os homens não mudavam, ou seja, os homens não eram transformados pela história. O “estado de natureza” seria a condição anterior a constituição da sociedade civil e condição pré-social no qual os indivíduos existiam de forma isolada, pois não existiria aquilo que se chama de sociedade. Para sair do “estado de natureza” os homens utilizam a razão, pela qual renunciam a sua liberdade ‘natural’ e a posse natural de bens e riquezas, em troca da liberdade civil. Ao realizarem um pacto social, ou seja, um contrato para constituírem um Estado como forma de impedir o avanço do egoísmo e buscar a paz, garantindo, assim, a vida, os homens transferem ao soberano o 118 poder para criar e aplicar leis, tornando-se autoridade política. Neste sentido, o Estado seria produto da vontade dos indivíduos com objetivo do bem comum: Diz-se que um Estado foi instituído quando uma multidão de homens concordaram e pactuaram, cada um com cada um dos outros, que a qualquer homem ou assembléia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os atos e decisões, a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos dos restantes homens. (HOBBES, 1997, p.145) Neste sentido, Hobbes defende um Estado dotado de espada para forçar os homens ao respeito, por isso o poder do soberano deve ser pleno, absoluto. Com o pacto cada individuo receberá o que o soberano determinar, uma vez que os contratantes autorizaram todos os atos e decisões do mesmo e transformaram o direito natural em direito civil, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada. O soberano, para Hobbes, pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática, porque o que importa é a determinação de quem possui o poder. Ele deve respeitar os direitos naturais: o direito a vida e a paz. Diante do exposto, percebemos que para Hobbes o direito de propriedade dos bens nasce na sociedade civil, que é o Estado propriamente dito, sendo, então, um efeito do contrato social e de competência do poder soberano que pode, inclusive, dividir as propriedades entre os governados como bem entender. Considerações finais Hobbes criou uma teoria que fundamenta a necessidade de um Estado soberano como forma de garantir o direito a vida e a paz. Para isso, estudou de forma hipotética o homem no seu ‘estado natural’, sem nenhuma autoridade ou Estado. Além disso, sua teoria sustenta-se na valorização do individuo, devido a legitimidade da preservação da vida e da ilegalidade do dano causado por 119 outrem. Assim, Hobbes considera o homem artífice de sua condição, rompendo com as teorias que existiam até então, as quais consideravam Deus ou a natureza donos do destino do homem. Contudo, podemos considerá-lo conservador, pois acreditava que a sociedade só poderia se sustentar pela desigualdade, principalmente entre soberano e governados. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro, editora Campus, 1991. RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. Francisco C. Weffort (org). Os Clássicos da Política. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. SITOGRAFIA MARTINS, Dayse Braga. O estado natural de Thomas Hobbes e a necessidade de uma instituição política e jurídica. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2117>. de 2010. Acessado em novembro 120 IMAGENS E LINGUAGENS URBANAS 121 FOTOGRAFIA DAS CONTRADIÇÕES SOCIAIS Ciro Nascimento Gomes Curso de Ciências Sociais – Faculdade Guarapuava Curso de Publicidade e Propaganda - Unicentro Affonso Markovicz Curso de Ciências Sociais - Faculdade Guarapuava Palavras-Chave: Linguagem. Fotografia. Imagem. Representação. Alternativas. Fotografar é escrever com luz. Milton Guran Comunicar-se. Com esse fim os humanos primitivos inauguraram os gestos, os sons, os desenhos pictóricos, as danças, as músicas cerimoniais, os jogos, os objetos, os rituais e finalmente as palavras. Na antiguidade com a codificação dos primeiros alfabetos e o surgimento da escrita, a arte continuou a expressar a multiplicidade da linguagem humana por meio da arquitetura, das pinturas, das esculturas, do teatro e da poesia. Lúcia Santaella escreveu no livro “O que é semiótica”, que existe simultaneamente uma enorme variedade de outras linguagens que constituem sistemas sociais, simbólicos e históricos de representação do mundo. Segundo essa autora, o século XX assistiu nascer e está testemunhando o crescimento de duas ciências da linguagem. Uma delas é a Lingüística, ciência da linguagem verbal. A outra é a Semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem. Sobre a descoberta dessa multiplicidade ela escreve: Cumpre notar que a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e meio de comunicação privilegiados, é muito intensamente devida a um condicionamento histórico que nos levou à crença de que as únicas formas de conhecimento, de saber e de interpretação do mundo são aquelas veiculadas pela língua, na sua manifestação como linguagem verbal oral ou escrita. O saber analítico, que essa linguagem permite, conduziu à legitimação consensual e institucional de que esse é o saber de primeira ordem, em detrimento e relegando para uma segunda ordem todos os outros saberes, mais sensíveis, que as outras linguagens, as não-verbais, possibilitam. (SANTAELLA, 2007, p.1) A produção científica da autora possui como meta fazer com que o leitor perceba que as coisas falam e que procure reconhecer a forma como elas falam e se comunicam a partir de tudo o que o rodeia: Haverá, assim, a linguagem das flores, dos ventos, dos ruídos, dos sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até mesmo, a linguagem do silêncio. Isso tudo, sem falar do sonho que, desde Freud, já sabemos que também se estrutura como linguagem. Tudo aquilo que, na natureza, fala ao homem é sentido como linguagem. (SANTAELLA, 2007, p.2) Desse modo, imagina-se uma pesquisa científica com uma temática social, por meio da qual se possa mostrar além do que poderia ser escrito, usando-se uma linguagem alternativa, no caso a fotografia. Essa opção surge a partir do referencial teórico da semiótica, segundo o qual a imagem é tão importante quanto à fala porque possui o poder de capturar o olhar e produzir interpretações, significados e sentimentos que passam por mutações estabelecidas unicamente entre quem olha e o que é olhado: Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie linguagem, mas também todos os sistemas e formas linguagem tendem a se comportar como sistemas vivos, seja, eles reproduzem, se readaptam, se transformam e regeneram como as coisas vivas. (SANTAELLA, 2007, p.2) de de ou se Peirce, o fundador da semiótica, ao expor a linguagem das coisas, explica que o investigador deve estar pronto para novas idéias, novas experiências e novas observações. Segundo ele, essas escolhas estão relacionadas ao modo de vida, lugar e tempo nos quais o pesquisador está inserido. É justamente nesse sentido que se pretende realizar um estudo das contradições sociais da cidade por meio de fotografias. Isso se torna possível porque dentro da semiótica e da sua multiplicidade “a descrição e análise das experiências estão em aberto para todo homem, cada dia e hora, em cada canto e esquina de nosso cotidiano” (PEIRCE apud SANTAELLA, p.6). 122 Acredita-se assim, que a fotografia é um instrumento capaz de captar essas evidências presentes no espaço urbano. No que diz respeito à preferência por um estudo que privilegie as imagens em detrimento das palavras e da produção textual, coloca-se também o pensamento de Saussure: A língua é uma bateria combinatória, estabelecida por convenção ou pacto coletivo, armazenada no cérebro dos indivíduos falantes de uma dada comunidade. Somente na medida em que nos submetemos a essas regras. (SAUSSURE, apud SANTAELLA, 2007, p.17) Um caso que merece citação para validar a importância da pesquisa acadêmica liberar-se das regras impostas pela linguagem escrita, é o exemplo do fotografo brasileiro Sebastião Salgado, que em 1997 publicou o álbum Terra, com lançamento simultâneo em mais de 100 países, e que se constitui em um dos mais valiosos documentos sobre a situação dos excluídos do Brasil. Sobre o poder de denúncia social que a fotografia possui, Milton Guran em “Linguagem fotográfica e informação”, pondera que as imagens fotográficas possuem um particularismo e uma linguagem própria e inconfundível: Sendo a participação do autor (fotógrafo) balizada por uma técnica completamente vinculada às especificidades de uma determinada realidade, a foto resultante pode traduzir com bastante rigor a evidência dessa realidade. (GURAN, 1992, p.15) Para Douglas Kellner, autor de “A cultura da mídia”, as imagens ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade (KELLNER, 2001, p.34). Para a conclusão desta exposição é interessante abordar que ao abrir espaço para a fotografia no universo acadêmico da pesquisa científica, cria-se uma rota alternativa às mídias que controlam as informações sobre o mundo social e que, na maioria das vezes, criam simulacros e representações da realidade. Sobre a necessidade de apresentar experiências que possam reduzir esse monopólio de informações, o sociólogo Pierre Bourdieu, pede nossa atenção no livro “Contrafogos”: 123 Através do poder quase absoluto que detém sobre os grandes grupos de comunicação, isto é, sobre o conjunto de instrumentos de produção e de difusão dos bens culturais, os novos senhores do mundo tendem a concentrar todos os poderes, econômicos, culturais e simbólicos. E assim estão em condições de impor muito amplamente uma visão de mundo de acordo com seus interesses. (BOURDIEU, 2001, p.95) Certamente, se as universidades e faculdades ampliarem o seu espaço para experiências de pesquisa com linguagens alternativas, serão elas a principal referencia para o desenvolvimento de novos padrões de informação que possibilitem notícias concretas do mundo social, compreensíveis para todos os tipos de leitores. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: Táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. GURAN, Milton. Linguagem fotográfica e informação. Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989. KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. São Paulo: EDUSC, 2001. SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica. Texto digitado, disponível em: <jusoperandi.blogspot.com/.../o-que-semiotica-lcia-santaella.html>. Acessado em março de 2011. 124 BIOTECNOLOGIAS COOPERATIVISMO E DESENVOLVIMENTO 125 SUSTENTÁVEL: O EXEMPLO DA COOPAFLORA NO MUNICÍPIO DE TURVO – PR Débora Machado Deniam José Viana Curso de Ciências Sociais – Faculdade Guarapuava Orientadora: Profª Ms. Cerize Nascimento Gomes PALAVRAS-CHAVE: Agricultura Familiar. Desenvolvimento Sustentável. Ervas Medicinais. Cooperativismo. Parcerias. Uma das questões mais debatidas neste início de século, está relacionada ao surgimento de um modelo de sociedade organizada a partir de uma base econômica, social, cultural e ambiental mais sustentável. Jalcione Almeida, em A problemática do desenvolvimento sustentável, procura elucidar a concepção dessa prática: A noção de desenvolvimento sustentável vem sendo utilizada como portadora de um novo projeto para a sociedade, capaz de garantir, no presente e no futuro, a sobrevivência dos grupos sociais e da natureza. Transforma-se, gradativamente, em uma categoria-chave amplamente divulgada, inaugurando uma via alternativa onde transitam diferentes grupos sociais.(ALMEIDA, 1997, p.20). Tais leituras contribuiram para a elaboração de um projeto de pesquisa sobre a Cooperativa de Produtos Agroecológicos, Artesanais e Florestais de Turvo – Coopaflora, que teve sua fundação em janeiro de 2006, no município de Turvo, Região Central do Paraná, macrorregião de Guarapuava , que caracteriza-se pela posse e preservação de uma das maiores reservas nativas de araucárias do Sul do Brasil. Com chuvas regulares, clima frio, altitude média de 1000m, o município é conhecido regionalmente pelo desenvolvimento de um programa de cultivo de ervas orgânicas de excelência, tais como Alcachofra, alfazema, alecrim, calendula, camomila, capim-limão, carqueja, cavalinha, chapeu de couro, endro, espinheira-santa, funcho, macela, manjericão, manjerona, melissa, menta, oregano, pata-de-vaca, poejo, sálvia, setesangrias, tanchagem e tomilho, A Coopaflora reúne agricultores e técnicos agrícolas e congrega 85 famílias de pequenos produtores rurais, inseridos em uma área de 765 hectares. Incluindo-se familiares, funcionários e prestadores de serviços, a comunidade atendida pela cooperativa envolve mais de 430 pessoas, que adotaram o sistema agroecológico de produção como opção de trabalho e filosofia de vida. Segundo dados constantes do site institucional “a Coopaflora oferece um mix de diversos produtos orgânicos desidratados, o qual é composto basicamente por plantas medicinais, condimentares, aromáticas e erva-mate. Estes produtos são comercializados a granel ou beneficiados em forma de chás e temperos. Considera-se ainda que todas as propriedades compreendidas pela entidade possuem certificação orgânica , o que assegura a qualidade dos produtos oferecidos aos consumidores. Os certificados são oferecidos Ecocert, empresa que teve sua origem na França,na década de 1990, a partir de famílias organizadas em torno dos movimentos em prol da agricultura orgânica. A Ecocert do Brasil surgiu em 2001 a partir de uma parceria entre agricultores franceses e brasileiros com a finalidade de referenciar certificação sócio-ambiental para produtos que incorporam em seu processo de produção, normas de respeito e proteção ao meio ambiente, reciclagem de materiais e respeito às condições de trabalho. Os atestados emitidos pela Ecocert tem validade para mercados nacionais e internacionais. Desse modo, acredita-se que a Coopaflora contribui de modo significativo para a conservação dos remanescentes florestais de araucária, bem como com a recuperação dos ambientes florestais já degradados, ao mesmo tempo em que busca estimular a melhoria das condições de vida das famílias de pequenos agricultores , através do desenvolvimento da agricultura familiar sustentável, baseada na agroecologia. Entre os benefícios oferecidos pela Cooperativa referendam-se , o desenvolvimento familiar sustentável; preservação e recuperação ambiental; 126 enriquecimento da cadeia produtiva de erva-mate; expansão das atividades econômicas na Região Central do Paraná; promoção do turismo rural através da valorização de sua gente e seu ecossistema. Leva-se em conta a formação de parcerias com organismos como o Sebrae, Ministério do Turismo, The Nature Conservancy – TNC e Natura Cosméticos do Brasil. Esta última, promoveu para o Dia das Mães 2011, uma campanha, na qual colocou em destaque sabonetes de pitanga, juntamente com a informação de que tais frutos são colhidos pelos agricultores familiares da Coopaflora. O lançamento dessa campanha em nível nacional, bem como sua aceitação, foi o insight necessário para a proposição de um estudo cientifico com recorte espacial regional. Justifica-se assim o interesse pelo tema e a definição do objeto de estudo deste trabalho no sentido de observar a integração sistêmica em três aspectos: a exploração dos recursos naturais, o desenvolvimento tecnológico e a mudança social. REFERÊNCIAS BARRERE, Martine (org). Terra, patrimônio comum: A ciência a serviço do meio ambiente e do desenvolvimento. São Paulo: Nobel, 1992. BECKER, Dinizar Fermiano (org). Desenvolvimento sustentável: Necessidade e/ou possibilidade? Santa Cruz do Sul (RS): EDUNISC, 1997. CAVALCANTI, C. (org.). Sociedade e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1998. GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra: Ecopedagogia e educação sustentável. São Paulo: Peirópolis, 2000. SITOGRAFIA <http://www.arvoredobrasil.com.br/>. Acessado 2011. <http://www.ecocert.com.br/certificacao.html>. Acessado 2011. 127 EDUCAÇÃO INDIGENA: ABORDAGENS TEMÁTICAS E 128 SOCIODIVERSIDADE DOS POVOS INDIGENAS NA REGIÃO DE GUARAPUAVA Luciane Pietras Thais dos Santos Thiago da Luz Brito Curso de Ciências Sociais – Faculdade Guarapuava Orientadora: Profª. Ms. Cerize Nascimento Gomes Palavras-Chave: Indígenas. Diversidade. Costumes. Educação. Identidade. O desafio que se nos coloca, é o de como pensar a diferença. Diferença entre povos, culturas, tipos físicos, classes sociais: estará fadada a ser eternamente compreendida e vivida como desigualdade? Como relações entre superiores e inferiores, evoluídos e primitivos, cultos e ignorantes, ricos e pobres, maiores e menores, corretos e incorretos, com direitos e sem direitos, com voz e sem voz? Aracy Lopes da Silva A Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação – LDB, por meio dos artigos 26, 26 A e 79 B, assegura o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania , assim como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos os brasileiros. A Lei 11.645/2008 tem a seguinte redação: O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar. (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em 2011). Desde 2008, o estudo da história dos povos indígenas no Brasil tornouse obrigatório em todas as escolas da rede oficial de ensino do país, tanto públicas como privadas. A lei que determina a obrigatoriedade do ensino do tema em sala de aula foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada no dia 11 de março de 2008, no Diário Oficial da União. A medida, válida para todas as escolas de ensino fundamental e médio, passou desde então a fazer parte de todo o currículo escolar, sem a necessidade de mudança na grade curricular. Isso porque a lei sancionada não exige a criação de novas disciplinas, mais sim uma atenção maior aos conteúdos sobre os quais possam ser feitas abordagens sobre a questão indígena. Como a temática indígena é interdisciplinar, entende-se ainda que a formação dos professores deve adequar-se às mudanças ocorridas na política educacional: Os professores devem ser qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimento; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas. Estas condições materiais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma educação de qualidade, para todos, assim como o é o reconhecimento e a valorização da história, cultura e identidade dos povos indígenas. (Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/2008/lei/l11645.htm> Acesso 2011.) Outra normatização sobre a questão está no decreto 6.861/2009, que descreve como objetivos da educação escolar indígena a valorização das culturas dos povos indígenas e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica; o fortalecimento das práticas socioculturais e das línguas indígenas; a formulação e manutenção de programas de formação de professores e de conteúdos culturais; a afirmação das identidades étnicas e consideração dos 129 projetos societários definidos de forma autônoma para os povos indígenas. (Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007- 2010/2009/Decreto/D6861.htm). Tomando-se esse referencial normativo para o estudo das comunidades indígenas, procurar-se-á por meio do desenvolvimento desta pesquisa identificar as crenças e os elementos da cultura material dos indígenas da mesorregião de Guarapuava, observando-se sua interação com o meio ambiente, a produção de objetos como ferramentas, instrumentos, utensílios e ornamentos, a escolha e utilização das matérias-primas e as atividades envolvidas na confecção desses artefatos. Além disso, prevê-se a identificação dos elementos simbólicos relacionado às crenças, costumes e ritos desses povos indígenas, bem como algumas as formas de sociabilidade tribal. Desse modo, prioriza-se a construção de conhecimentos teóricos e o desenvolvimento de projetos de intervenção social que possam contribuir para a elaboração de políticas públicas de gestão social relacionadas às reservas indígenas da região de Guarapuava, bem como com novos elementos para o tratamento da questão indígena em sala de aula. REFERÊNCIAS ALVARES, Myriam Martins. A educação indígena na escola e a domesticação indígena da escola. Boletim do MPEG: Série Antropologia, Belém : MPEG, v. 15, n. 2, p. 223-51, dez. 1999. LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SILVA, Aracy Lopes da (Org.). A temática indígena na escola. Brasília: MEC/UNESCO, 1995. SOUZA, Nabira Gerim (Org). Diretrizes para a política nacional de educação escolar indígena. Brasília: MEC/SEF, 1994. DOCUMENTOS Lei de Diretrizes e Bases da Educação/1996 atualizada em 2011. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/ldb.pdf>. Acessado 2011. Lei 6.861/2009 – Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Decreto/D6861.htm>. Acessado 2011. 130 EDUCAÇÃO AMBIENTAL 131 QUEM VAI ENSINAR O QUE PARA QUEM? Larize de Lima Belo João Luiz de Campos CURSO DE CIENCIAS SOCIAIS Faculdade Guarapuava PALAVRAS-CHAVE: Educação Ambiental. Educação. Formação docente. A questão ambiental entrou nos programas das ciências sociais a partir da década de 1970, a partir dos movimentos ecológicos gestados pela contracultura e desde então conquista importantes espaços. No final do século XX a temática já estava consolidada nos cursos de graduação e também de pós-graduação das principais universidades mundiais. No início do século XXI, diante de um quadro ambiental bastante caótico é impossível para a sociologia negar a importância dos estudos sobre o meio ambiente. Os cientistas que fazem o mapeamento de dados e coletam informações sobre as questões ambientais, atestam com preocupação o esgotamento dos recursos da Terra, a acumulação do lixo e as transformações climáticas. Essa afirmação é feita por Daniel Botkin, professor de biologia e de estudos do meio ambiente da Universidade da Califórnia, autor de vários livros sobre ecologia. Segundo o pesquisador escreve em Qual ecologia para o século XXI? a ciência e a natureza estão em permanente conflito e quanto mais acelerado é o desenvolvimento do capitalismo, maiores são os problemas relacionados à questão ambiental: O meio ambiente tornou-se uma das principais preocupações dos países desenvolvidos. O lixo, a poluição, o buraco de ozônio são assuntos comuns de discussão. Ninguem deseja instalações industriais perto de sua casa e todos temem os efeitos que podem ter sobre o clima os gases do efeito estufa. Os países em desenvolvimento, por seu lado, continuam na corrida por um maior crescimento econômico e por bem-estar, objetivo que a alguns parece cada dia mais longínquo. (BOTKIN, 1992, p.9) Como conciliar as exigências do desenvolvimento com as do meio ambiente? Essa é a grande questão colocada pelo autor. Para Botkin, a educação ambiental só ganhou espaço depois que os resultados das pesquisas sobre o tema se tornaram públicos e que as catástrofes tecnológicas e naturais multiplicaram-se causando crises e mortes em várias regiões do Planeta. Fritjof Capra, físico e filósofo, autor de várias obras sobre poluição ambiental, energia nuclear e saúde pública. No livro O ponto de mutação, publicado na década de 1980, por meio de projeções cientificas, ele alertou que as duas últimas décadas do século XX seriam marcadas por graves crises mundiais que teriam como causa principal a despreocupação dos países do Norte com o meio ambiente. Sobre isso ele escreveu: Milhares de toneladas de material tóxico foram descarregadas no meio ambiente e continuam se acumulando no ar que respiramos, nos alimentos que comemos e na água que bebemos. O ecossistema global e a futura evolução da vida na Terra estão correndo sério perigo e um desastre ecológico em larga escola não está descartado. (CAPRA, 1995, p.20) Sobre os graves riscos que esses problemas trazem para a saúde pública o autor traçou um panorama nefasto: As doenças nutricionais e infecciosas são as maiores causas de morte nos países periféricos, enquanto isso nos países industrializados as pessoas são flageladas por doenças crônicas e degenerativas. Em todo o mundo aumentam os casos de câncer, enfarte e derrame. A depressão e a esquizofrenia parecem brotar paralelamente à degradação da natureza. (CAPRA, 19954, p.22) A pesquisadora Cerize Gomes, estudiosa da obra de Fritjoj Capra explica que o autor foi um dos primeiros cientistas a preocupar-se com as implicações do meio ambiente sobre as questões sociais (GOMES, 2010, p.81). Segundo ela a análise do impacto do caos ambiental sobre o universo social é cada vez mais amplo e as estatísticas apresentadas na primeira década do século XXI confirmaram as conclusões apresentadas nos estudos de Capra nas duas últimas décadas do século XX. Diante dos dados cada vez mais alarmantes sobre mudanças climáticas e caos relacionados à falta de preservação ambiental essa temática conquista novos espaços na área das Ciências Sociais e das Ciências Humanas, o que 132 faz com que os temas relacionados ao meio ambiente sejam cada vez mais presentes nas linhas de pesquisa de Sociologia, Antropologia e Ciência Política. Daí o interesse na elaboração de pesquisa que possa resultar na apresentação de sugestões didáticas sobre a temática ambiental. REFERÊNCIAS BOTKIN, Daniel. Qual ecologia para o século XXI?In: Terra: Patrimônio Cultural. São Paulo: Nobel, 1992. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1995. GOMES, Cerize Nascimento. Sobre Sociologia: Fundamentos de Teoria Social para futuros historiadores. Guarapuava (PR): Unicentro, 2010 . GRIPPI, Sidney. Lixo: reciclagem e sua historia. Rio de Janeiro: Interciência, 2001. 133 134 CONSIDERAÇÕES SOBRE A APROVAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL ENTRE CASAIS HOMOAFETIVOS PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E O IMPACTO SOCIAL DESSA NOVA FORMA DE FAMÍLIA Lais Martins Oliveira Curso de Direito – 3º ano Faculdades Guarapuava. PALAVRAS-CHAVE: Homoafetividade. Vinculo afetivo. União Estável. O presente trabalho não tem o intuito de esgotar o tema, mas discorrer sobre os efeitos e reflexos da recente decisão proferida pelo STF, “equiparação da união homoafetivas à união Estável”, breve trajetória histórica da causa e seu efeito na sociedade, bem como se a mesma esta preparada para conviver com essas sensíveis mudanças. A liberdade sexual compreende tanto o fato de os brasileiros se relacionarem com quem quiser, a hora que quiser e como quiser quanto ao fato de sua orientação sexual. Conforme Maria Berenice Dias, “a sexualidade integra a própria condição humana do individuo, e lhe acompanha desde seu nascimento (DIAS, 2010, p. 200)”. Diante disso, o individuo não pode estar fadado à infelicidades somente para atender padrões sociais impostos pela maioria. Contudo, apesar de ser ponto pacífico a necessidade do reconhecimento dos direitos dos casais homossexuais, a grande questão é se a sociedade esta preparada para os efeitos da equiparação da união homoafetiva à união estável? A mídia mostra as crescentes manifestações de violência contra os homossexuais no Brasil, a revolta se acentua por parte dos acéticos à medida que o judiciário reconhece os direitos de tal classe. O que se pretende discorrer é justamente sobre o desencadeamento de uma onda de preconceito e violência por conta da disparidade de opiniões e valores que se constata no vasto território brasileiro. Através do método qualitativo, documental e teórico bibliográfico o presente trabalho compara documentação indireta, posições doutrinárias, dados, com a intenção de demonstrar a importância de preparar, ou ao menos tentar preparar a sociedade para receber tal mudança. O homossexualismo já esteve classificado como doença e instituído na Classificação Internacional de Doenças - CID, no capítulo “dos Sintomas Decorrentes de Circunstâncias Psicossociais”, posteriormente retirado e tendo seu termo alterado de Homossexualismo, o sufixo “ismo” remete a doença, para homossexualidade porque o sufixo “dade” significa modo de ser (DIAS, 2010, p.197). A Lei Maria da Penha (11.340/2006) promoveu novas perspectivas aos casais homossexuais quando definiu união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, ao protegê-la da violência doméstica, em seu artigo 2°: “Toda mulher, independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, [...] goza de direitos fundamentais inerentes à pessoa humana”. Em decisão recente, em maio de 2011, o STF reconheceu união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Deu-se por julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI/4277) ajuizada pela Procuradoria Geral da Republica e Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF/132), Ajuizada pelo Governador do rio de Janeiro, Sergio Cabral. Fundada em preceitos fundamentais constitucionais como igualdade e liberdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, acolhida por votação unânime no congresso, conforme abaixo transcrito: Obrigatório o reconhecimento, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis estendem-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo. Prosseguindo no julgamento, o Tribunal conheceu da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 como ação direta de inconstitucionalidade, por votação unânime. Prejudicado o primeiro pedido originariamente formulado na ADPF, por votação unânime. Rejeitadas todas as preliminares, por votação unânime. Em seguida, o Tribunal, ainda por votação unânime, julgou procedente as ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, 135 autorizados os Ministros a decidirem monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da publicação do acórdão. (www.stf.jus.br) Maria Berenice Dias, ao defender a causa, destaca o principio norteador da Carta Magna, à dignidade da pessoa humana. Quando se trata de vinculo afetivo, não há como deixar de invocar a Constituição Federal, nem os princípios norteadores do Direito (DIAS, 2010, p.199). Em contra partida a Decisão do supremo, Gonçalves diverge do posicionamento da ilustríssima corte tanto em relação a equiparação da “união homoafetiva” à união heterossexual, quanto ao “casamento homoafetivo”, assim argumenta o autor: Malgrado alguns países como Espanha, a Holanda, a Bélgica, o Canadá e o Estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, admitam o casamento de pessoas do mesmo sexo, no Brasil o casamento entre pessoas do mesmo sexo não pode ocorrer. Subliminarmente percebe-se a oposição do autor a união de casais homoafetivos e isso se evidência quando relata que “a constituição Federal ao proclamar que os direitos e deveres referentes a sociedade conjugal são exercido igualmente pelo homem e pela mulher , (art. 226, §§°3 e 5°). Só admite-se casamento entre pessoas que não tenham o mesmo sexo, esse posicionamento é tradicional e já salientado nos textos clássicos romanos”. (GONÇALVES, 2008, p.127) Já o voto do ministro Gilmar Mendes, (ADI/4722), “os homossexuais tem o mesmo direito concedido aos casais heterossexuais que vivem em união estável, exceto os direitos típicos da relação entre homem e mulher”. Ou seja, os homossexuais não poderão realizar o casamento civil, mas terão seus direitos garantidos. Acompanhando Gonçalves e totalmente contra a já referida Decisão do supremo o Advogado da Confederação Nacional Brasileira dos Bispos – CNBB, Hugo José Cisneiros, se pronunciou afirmando que o supremo Tribunal Federal ultrapassou os limites de sua competência e com tal decisão descaracterizou a identidade familiar e ameaçou a sua estabilidade. Já o voto do ministro Gilmar Mendes, (ADI/4722), “os homossexuais tem o mesmo direito concedido aos casais heterossexuais que vivem em união estável, exceto os direitos típicos da relação entre homem e mulher”. Ou seja, 136 os homossexuais não poderão realizar o casamento civil, mas terão seus direitos garantidos. Contudo, Percebe-se que as divergências não são poucas, nem tão simples, pelo contrário tocam os íntimos valores morais, da sociedade e também de seus representantes. Note-se que a disparidade de opiniões em torno da matéria, está presente em todas as faixas etárias e em todas as classes sociais. O debate sobre o tema deve se desenvolver com respeito às diferenças não só de opção sexual, mas também de pensamento. Caso isso não ocorra, teme-se que quando a proposta chegar ao Congresso Nacional, manifestações e protestos de ambos os lados possam tumultuar o debate e ter repercussões prejudiciais ao bem estar e a ordem social. Assim sendo, um dos objetivos deste estudo é antecipar as reflexões em torno da questão para que a sociedade possa ter argumentos relativos aos dois posicionamentos, tanto daqueles que defendem a união homoafetiva, quanto daqueles que são contra a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Neste sentido, são inúmeros e incontáveis os reflexos no ordenamento pátrio da decisão supra citada. A partir de leitura do artigo União Homoafetiva: o preconceito e a busca pelo reconhecimento citam-se os argumentos mais relevantes: 1. Evitar o enriquecimento ilícito dos parentes de um dos integrantes do casal em caso do falecimento do outro, ou mesmo que o patrimônio do de cujus se integre ao patrimônio da união por herança vacante; 2.direitos previdenciários; 3. quanto aos consulados em relação aos vistos; 4.seguro DPVAT e a União de Seguradoras privadas; 5. além dos demais direitos de família e direitos sucessórios que serão idênticos para o casal homossexual, 6.tais como adoção. Justamente por isso a necessidade de uma consciência uniforme de toda a sociedade. (MARCELINO, 2009, p.3) Quanto à omissão legislativa, em seu voto (ADI /4722, pg www.stf.jus.br) o ministro Ayres Brito relata que o judiciário tem feito “ás vezes do Legislativo”, fundamentado no Art. 4° da LICC (Lei de introdução ao Código Civil): “na falta de Lei o Juiz decidirá por analogia, costumes, princípios gerias do direito”. Desta forma a falta de lei sobre a matéria não é sinônimo de inexistência de um 137 direito, afirma o ministro, entendendo ele que as pessoas não podem estar prejudicadas apenas por omissão legislativa. Há autores como Berenice Dias que vão mais longe no debate político e social ao afirmar que a escusa do Legislativo se dá em virtude de medo de desagradar seu eleitorado ao aprovar Leis que protegeriam a minoria. (DIAS, 2010, p.201). Para compreender a decisão do STF, argumenta-se que o Estado tomou como compromisso o artigo 5° da Constituição Federal: “Igualdade, a Liberdade, a segurança e a propriedade”. Esse é o preceito fundamental, relacionado à recente decisão do STF, uma vez que todas as circunstâncias exigem do legislador a tutela legal desta polêmica entidade familiar formada pelos casais homoafetivos. Apesar das discordâncias em torno da matéria, percebe-se que tanto a sociedade civil, quanto os poderes constituídos caminham em direção a garantia de estabilidade que possa garantir os direitos mínimos aos casais homoafetivos. Berenice Dias insiste que a mudança social implica em mudança no mundo do direito. Segundo ela, é preciso lembrar que há 40 anos a mulher não integrava o mercado de trabalho e não tinha direito ao beneficio maternidade, também às questões homoafetivas há pouco tempo não despertava a atenção do judiciário (DIAS, 2010, p.201). Ou seja, são os movimentos e as manifestações sociais que movem o debate político, cultural e jurídico. Considerações finais Entendendo-se que a partir do divórcio surgiram famílias mantidas só pela mãe ou pelo pai; as multifamílias fruto da união de casais separados, com filhos, a mãe solteira, e agora surge a questão dos casais homoafetivos, certamente uma das mais polêmicas em torno da vida familiar. Apesar dos números apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica – IBGE, a partir do CENSO 2010, de que existem atualmente no Brasil 60 mil casais homoafetivos o tema encontra resistência em questões morais e religiosas bastante proeminentes em determinados grupos sociais. 138 A discussão dessa pauta permite que se pense em algumas questões fundamentais, por exemplo, como queremos que as crianças de hoje sejam adultos mais preparados, abertos às novas formatações de família que já estão explicitadas no universo do direito, se a resistência à matéria está presente em todas as famílias? Ao mesmo tempo como exigir que adultos procedentes de uma educação conservadora ou pessoas criadas sob o peso do Regime Militar nas décadas de 1960, 1970 aceitem o casamento homoafetivo? E no caso dos idosos que passaram a vida toda sem tecnologia, sem internet, sem qualquer aprofundamento teórico sobre o universo do direito, em um mundo em que as mulheres não podiam trabalhar nem votar, aceitem tais idéias com naturalidade? E ainda, o que dizer de uma grande massa populacional que socialmente e juridicamente aceita, mas moralmente não aceita esse tipo de união? Esses questionamentos devem ser debatidos em coletividade e em profundidade, pois mesmo entre os magistrados existem divergências. Resta acrescentar que a sociedade evolui justamente a partir dessas contradições e que a tendência do direito é acompanhar as transformações sociais e ultrapassar os resquícios do conservadorismo. Ainda assim é preciso acrescentar que mesmo com a normatização das leis, os poderes Legislativo e Judiciário não podem impor um comportamento à sociedade. Como o Brasil é um país de imensa diversidade cultural, social, religiosa e política, sua população tem condições para o enfrentamento das problemáticas que decorrem do debate sobre a união homoafetiva. Porém, a partir desse breve estudo, conclui-se que mesmo com a possível aprovação da matéria pelo Congresso Nacional, como já o foi pelo STF, ainda assim será preciso muito tempo para que alguns grupos sociais mais conservadores e resistentes aceitem esse novo formato de família. REFERÊNCIAS DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, São Paulo. 6° Edição. Revista dos Tribunais, 2010. 139 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, São Paulo. Vol. VI, 5° Edição. Editora Saraiva, 2008. SITOGRAFIA MARCELINO, Andrey de Alcantara e outros. União Homoafetiva: preconceito e a busca pelo reconhecimento. Encontro Internacional de Produção Cientifica Cesumar. VI EPCC, 2009. Disponível em: WWW.cesumar.br. Acessado em 11 de maio de 2011. www.ibge.gov.br. Acessado em 11 de maio de 2011. www.stf.gov.br . Acessado em 11 de maio de 2011. 140 141 O CAMPO COMO CENÁRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DE EDUCAÇÃO: SABERES E FAZERES DA TERRA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DO PROJOVEM NO MUNICÍPIO DE CANDÓI (PR) Ilda Aparecida da Silva Ressai João Rodrigues Curso de Ciências Sociais Faculdade Guarapuava Palavras-Chave: Educação do Campo. Políticas Públicas. Agricultura. História. Sociedade. O objeto da presente pesquisa está relacionado à educação do campo, um tema em crescimento desde a última década do século XX e que recentemente conquistou espaço entre os educadores e financiamentos públicos governamentais, com a verificação do surgimento de cursos de graduação e de pós-graduação na área. Desse modo, procurar-se-á por meio de competente investigação científica, apresentar um panorama das primeiras mudanças ocorridas no Município de Candói, na região de Guarapuava (PR), com o registro dos saberes e fazeres que estão sendo construídos pelos educadores e educadoras do campo, enfatizando sua relevância social em função de seu compromisso com o desenvolvimento social e a redução da pobreza, da miséria e da violência. Ao mesmo tempo, pretende-se estudar a importância da educação do campo para a produção de alimentos saudáveis, e conseqüentemente, para a melhoria das condições e da qualidade de vida, não apenas para os educandos, mas também para os seus familiares e sua comunidade. A história da luta dos camponeses pela terra e pela educação A história da educação do campo foi marcada por lutas e conquistas ao longo do tempo. Na década de 1920 foram criadas as primeiras ligas camponesas do Brasil, começando pelo nordeste e espalhando-se por todo o território. Mesmo que durante o governo de Getulio Vargas, tenham sido registrados os primeiros avanços dos pequenos agricultores, inclusive na questão da Reforma Agrária, cuja pauta começou a ser discutida no congresso, houve repressão às ligas camponesas o que impediu historicamente o desenvolvimento dos projetos políticos e sociais voltados para a agricultura. Nas décadas de 1940 e de 1950 houve a retomada do debate sobre o assunto e a reorganização de projetos considerados prioritários. As lideranças voltaram a debater os direitos dos pequenos agricultores. Porém, com o golpe militar de1964 os movimentos ligados à questão agrária foram novamente alvo de desmobilização social e política, vítimas de censura e perseguição, e os grupos que haviam sido formados passam para o anonimato. Somente em 1984 com o fim da ditadura militar os movimentos em defesa da reforma agrária ressurgiriam com a finalidade de recolocar na ordem do dia o debate sobre as questões relacionadas à posse e ao uso da terra. Em 1990, o Congresso Nacional retomou o debate sobre a questão agrária. Em 1997, surgiu o Programa Nacional de Reforma Agrária – PRONERA, um projeto especificamente voltado para a educação do campo, tendo em vista o atendimento às prioridades apresentadas pelos assentamentos. Em 2002, com o governo de Luís Inácio Lula da Silva, ocorreram mudanças na base política, e com o advento do governo do Partido dos Trabalhadores, o projeto relacionado a educação voltada especificamente para o campo, foi transformado em lei. Reflexões teórico-conceituais sobre educação do campo A partir desse momento, as reflexões teórico-conceituais para as políticas de educação, passam a ter o campo como cenário das políticas públicas brasileiras. Este projeto de pesquisa insere-se nessas reflexões e pretende debater a educação do campo por meio de um estado sobre o Projovem Campo Saberes da Terra, um projeto especificamente voltado para as diversidades encontradas no campo que tem como compromisso atender as necessidades específicas e múltiplas dos diversos sujeitos que compõem a população do campo. 142 Uma Educação, ou reeducação voltada para a agricultura familiar, passou a ser no início do século XXI, um conceito promotor de abertura para novas práticas, tanto no que diz respeito à produção dos alimentos e à boa alimentação, como no que tange a uma nova postura quanto ao aspecto ambiental, ou seja, estimular a sustentabilidade e a produção sem o uso de agrotóxicos e com os devidos e necessários cuidados com o solo, os rios, as nascentes, dentre outros remanescentes ambientais, fazendo com que tais ações tornem-se inerentes aos pequenos agricultores, sujeitos do campo. Soberania alimentar: saberes e fazeres da Terra Esta concepção sugere novos caminhos a serem cursados e que são contrários ou alternativos à produção agrícola dos grandes latifúndios, contrapondo-se a idéia de produzir apenas para satisfazer o sistema capitalista, tendo como propósito a construção de uma ideologia de produção que está intimamente relacionada ao que a educação do campo intitula de soberania alimentar. Os educadores e as educadoras do Projovem - Campo Saberes da Terra aparecem nos projetos políticos como investigadores e disseminadores do conhecimento, com a função de elucidar os seus educandos quanto ao valor que os mesmos têm como produtores e sujeitos do campo, e de igual modo a importância da sua intervenção cidadã e transformadora do mundo social. Portanto, ao elaborar esta intenção de pesquisa, considerou-se de suma importância a proposta da educação do campo e suas representações para as Diretrizes Educacionais, uma vez que suas concepções fogem das convenções e das tradições, tornando propícia, cada vez mais profícuo o intercambio entre saberes e fazeres do universo rural e urbano. REFERÊNCIAS BOURDIEU, P. O Camponês e seu corpo. In: Revista de Sociologia e Política. Curitiba, 26 p. 83-92. jun.2006. BRASIL. Diretrizes operacionais para a Educ. Básica: escolas do campo. Resolução CNE/CEB n° 1 de 03 de abril de 2002 (MEC – SECAD). 143 SEVCENKO, Nicolau. A Corrida para o Século XXI: no loop da montanharussa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.140p. 144 UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL SOBRE A PESSOA COM NECESSIDADES ESPECIAIS: OLHAR PARA A DIFERENÇA E SER OLHADA COMO DIFERENTE Luciana Sékula Ciências Sociais – Faculdade Guarapuava Palavras-Chave: Olhar. Linguagem. Relações Humanas. Necessidades Especiais. Exclusão. Não há ninguém que veja a verdade sem ser com os olhos, e os olhos são sempre os olhos de alguém. Gianni Vattimo A presente pesquisa procura chamar a atenção para as perspectivas sobre o olhar de quem olha e de quem é olhado enfatizando-se o papel de sujeitos e de objetos dos diversos olhares. Focaliza-se o tema na apreensão e na produção da diferença no contexto das relações humanas em geral e especificamente entre os portadores de necessidades especiais em particular. Refletir-se-á, neste texto sobre a multiplicidade de formas que podem ser assumidas na perspectiva de quem olha e de quem é olhado/estigmatizado, enfatizando-se o papel de sujeitos e de “objetos” de diversos olhares. Concebendo-se o olhar como uma maneira de posicionar-se no/frente ao mundo. Os olhos são considerados o meio mais eficaz de comunicação entre o mundo interior dos seres humanos e o mundo exterior. Popularmente, fala-se dos olhos como “janelas da alma”. Os gregos utilizavam a palavra empatia para significar a capacidade de olhar através dos olhos do outro, pela perspectiva do outro, capacidade esta considerada como a forma suprema de solidariedade. O olhar é, também, compreendido como uma linguagem que constrói e se realiza no contato com os outros, nas inter-relações. 145 Neste aspecto aponta-se para níveis de relações humanas que vão do desconhecimento, passando pela aproximação e simpatia, até a possibilidade de alcançar a empatia. O texto sugere como foco o olhar na apreensão e na produção da diferença no contexto das relações humanas em geral e especificamente entre os portadores de necessidades especiais em particular. Tomando-se como suporte teorias e experiências procura-se tratar sobre a diferença entre olhar para a diferença e ser olhado como diferente. Os seres humanos, individuais e coletivos, passam por diversas fases concomitantes, sucessivas, costuradas, estabelecendo relações consigo mesmos e com os outros. Essa demarcação de relações é permeada pelas concepções advindas de cosmo visões, de ideologias, de teorias da educaçãogeradoras e direcionadoras de olhares – e da forma como são implementadas e mantidas essas formas pelas instituições sociais. A relação do ser consigo mesmo é uma tarefa de construção e de desconstrução. O individuo sofre a intervenção de nstituições como família, escola e igreja que têm no aparato jurídico sua base social. Diante dessas intervenções percebe-se que há muito que destruir para possibilitar a construção da individualidade dos sujeitos sociais. Tem-se aqui um aspecto que caracteriza um dos maiores desafios de uma vida individual que se manifesta no coletivo, e que tem na escola uma das suas principais mediações. Esse desafio é a passagem da heteronomia (aquela situação em que se está completamente susceptível às opiniões dos outros, dependente física ou emocionalmente dos outros) para a autonomia, a liberdade do individuo para a construção de processos de criação e socialização. Na relação com os outros, há alguns estágios ou graus de proximidade/trocas: a) desconhecimento (o outro não existe); b) indiferença (existe, mas não me diz nada); c) (in) tolerância (está presente-física ou afetivamente- e me mobiliza; d) anti/sim-patia (está presente-física ou afetivamente- e me mobiliza); e) empatia (muda o foco: o decisivo é a forma como EU “olho”). Isso significa que pelo olhar estabelecem-se relações e realizam-se experiências que permitem aprendizagens e transformações. 146 Nessas trocas são datadas e situadas relações afetivas, que acabam sendo desencadeadas realizadas num lugar e numa época especificas, responsáveis pela construção de processos históricos. Esse lugar/tempo caracteriza-se por ser não inclusivo para a maioria, uma vez que a diferença é apreendida como defasagem, como defeito social. A diversidade - exatamente a condição que poderia propiciar o enriquecimento das relações humanas- diante da padronização social, estabelecida por uma minoria, denominada classe ou grupo dominante, sofre a interferência de critérios pré-concebidos. E é neste contexto que a questão do olhar-aqui aprendido no sentido lato, de órgão da visão e de conexão ideológica - deve ser compreendida, mediante algumas indagações pessoais: quando olhamos para os portadores de necessidades especiais conseguimos nos dar conta de que pelo nosso olhar eles podem estar sendo olhados do ponto de vista dos padrões estabelecidos por um grupo ou classe dominante? Damo-nos conta de que podemos estar sendo meros ventríloquos de outras vozes e olhares, interessados em garantir que os olhados permaneçam no seu lugar? Conseguimos, nos colocar empaticamente no ponto de vista dos portadores de necessidades especiais que estão sendo olhados? Responder a estas questões é fundamental uma vez que há uma diferença entre a situação de quem é autor/ ator do olhar e da condição de quem é paciente/receptor de olhares que são dirigidos. Mas uma coisa é você olhar para; é você dispor-se a; é você engajar-se; é querer olhar e se comprometer de uma forma diferente com os diferentes, este coletivo que compõe o conjunto dos portadores de necessidades especiais. Outra coisa bem diversa é você ser o olhado e não aquele que olha! É ser o que fica na condição de ser olhado e de ser excluído pelo olhar! Não é que este não olhe. Evidentemente o excluído continua olhando, mas é muito diferente ser autor do olhar que estigmatiza e ser o olhado estigmatizado. É muito, muito diferente colocar-se na condição de quem está sendo olhado, de quem, por um atributo da sua natureza, por uma diferença no seu corpo ou pela falta de um sentido, órgão ou algum membro, pela sua etnia, pela sua 147 raça, pela sua cor, pela sua religião, pelo seu sexo, ou seja, qual outra diferença for, é subjugado à condição de quem está sendo olhado! Entre o que olha e o que é olhado há um oceano de condições diferentes. O que olha, é soberano, dono do olhar e da direção do olhar. O outro, o diferente, aquele que é olhado, fica na dependência da decisão e da direção do olhar daquele que olha! Assim sendo, quem olha tem em suas mãos, parte da responsabilidade pela escrita de uma história que não pode mais ser relegada á condição de nota de rodapé. REFERÊNCIAS BIANCHETTI, Lucídio. Um olhar sobre a diferença. São Paulo: Papirus, 2000. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. São Paulo: Editora Nacional, 1976. 148 149 A PSICOLOGIA DO CLOWN NO COMPORTAMENTO SOCIAL Relato de experiência com o projeto cultural Dantemus do Município de Reserva do Iguaçu - PR Sergius Ramos Curso de Ciências Sociais - Faculdade Guarapuava Orientador: Prof. Ms. Ernando Brito Gonçalves Junior Palavras-Chave: Clown. Comportamento. Educação Social. Improviso. Arte. A pesquisa em andamento visa estabelecer um parâmetro associativo com base nos estudos do ofício cômico do clown (palhaço de mil faces). Estilo de palhaço que busca na própria alma do ator circense o encontro com suas falhas e necessidades através do improviso individual ou coletivo. O improviso é um elemento cuja investigação pode contribuir para o exame da constituição de um espetáculo teatral e através desta o participante expressa suas emoções. Através de métodos de educação social o estudo será realizado a partir das experiências conduzidas na aplicação de medidas sócio educativas e inclusão social através da arte. Aliando a orientação social com a arte, nos baseamos nas relações sociais e suas interdependências, a partir das experiências em Educação Social realizadas pelo Projeto DANTEMUS de Reserva do Iguaçu, que utiliza a psicologia social como base nas prerrogativas que tangem os participantes deste projeto. Os dados analisados têm como fonte relatórios dos profissionais envolvidos, tanto na área das artes quanto na área de atendimento psicossocial, depoimentos de alunos e pais. A proposta de investigação visa mostrar as possibilidades de transformação do comportamento de crianças e adolescentes em cumprimento de medida sócio educativa ou em risco social, para inclusão através do estudo das artes circenses, com enfoque no clown e suas perspectivas de explorar o universo do “eu emocional”. Uma simbiose da máscara da comédia e da tradição farsesca francesa e anglo-saxônica; unindo essas características o clown é a pessoa que fracassa, que bagunça sua vez, e, fazendo isso, dá à audiência o senso de superioridade. Através de seu fracasso, ele revela sua profunda natureza humana, que nos comove e nos faz rir, é um perdedor feliz. Esse é o fio condutor que aliamos a arte ao comportamento como forma de envolvimento e transformação social. Sobre a arte A arte faz parte da vida e da cultura de um grupo, de um povo. É uma linguagem, uma forma de expressar e comunicar significados por meio de símbolos. Autor e público se deixam tocar num processo “de duas mãos” que envolve pensamento, intuição, sensibilidade e imaginação. A arte é a realidade percebida de outro ponto de vista; o artista desafia as coisas como são para revelar como poderiam ser. Presente em todas as culturas, a arte exprime sentidos, educa a sensibilidade, possibilita o exercício da imaginação. A arte tem uma função social: retrata uma situação que a sociedade está vivendo e pode despertar questões sobre ela. Ao fazer um trabalho de arte, desenvolvemos muitas idéias e utilizamos diversos materiais, dando forma a experiências e valores humanos. Ampliamos o conhecimento que temos de nós mesmos, do outro e da realidade em que vivemos. Esse processo contribui para nos tornar cidadãos. No ofício de arte-educadores trabalha-se diariamente com o jogo dramático como mediador da criatividade do sujeito que se manifesta na resolução dos problemas propostos pela própria instrução do jogo. O homem como ser influenciado pelo meio em que vive é motivo de estudo constante e o seu corpo físico e psicológico devem ser observados intrinsecamente, como uma interligação simbiótica. Na vida, nenhuma manifestação desenvolve-se em uma mesma velocidade, a velocidade aumenta ou diminui. O movimento tem um começo e um fim, mas a sua metade não está no meio. Falar do movimento, do ritmo, do espaço e do tempo, é falar da vida e de seu mistério. "O espaço é a medida do tempo", disse Aristóteles. O movimento não é somente um deslocamento de linhas, ele propõe ao espaço pressões e tensões. As forças jogam assim uma contra a outra, uma com a outra, dando uma consistência viva e vibrante ao espaço. Definir seu 150 percurso é superficial. Uma escultura de Rodin, imóvel em sua própria matéria, move-se em si mesma e faz com que se mova o espaço que a rodeia: organizam-se em sua forma as contradições motoras da dinâmica. O "empurrar/puxar" é o motor direcional que se desenvolve como: empurrarse/puxar-se e ser-empurrado/ser-puxado. É nesse nível que o movimento toma sua verdadeira dimensão, organizando-se, no tempo-espaço, pelo ritmo. O teatro de alto nível de representação coloca o corpo em um espaço de tensão mais alto do que o que é usado habitualmente na vida. Chega-se assim a estabelecer uma escala de tensões do corpo em sete níveis. Cada um desses níveis acolhe um estilo diferente de teatro, cada vez mais forte, a partir de deslocamentos variados, tais como caminhar, sentar; também com o uso da palavra. A experiência de Reserva do Iguaçu Usando métodos que envolvem essas premissas, a pesquisa se pauta em experiências realizadas desde 2008 na cidade de Reserva do Iguaçu com o projeto DANTEMUS, que absorve os objetivos acima descritos, mas com o desejo de mostrar que é possível criar uma realidade mais próxima e mais humana, através da arte que tem a capacidade de transformar a realidade, viver sonhos e ilustrar mundos imaginários. Assim como proposta de estudo, o ator principal é o ser humano. Os alunos recebem informações e transformam estas em ações vivas. E uma dessas ações resulta em espetáculo de improvisação coletiva, onde o clown – que é o palhaço de mil faces – é base da criação destas cenas. Poderia ser somente mais um espetáculo para soltar o riso, mas a preocupação com o colega que está do lado também faz parte da realidade que nos cerca. É preciso observar minuciosamente cada movimento, cada ação e, a partir dessa observação estabelecer metas e métodos flexíveis no acompanhamento das crianças e adolescentes. A educação através da arte possibilita alcançar resultados satisfatórios, mas é preciso olhar além do que enxergamos, é preciso transver esse olhar. O equilíbrio e a racionalidade são as principais virtudes, não se pode deixar iludir e nem se arriscar. Tudo é planejado. Porém, às vezes, é preciso imaginar e pular etapas. "O olho vê, a 151 lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver o Mundo", como diz o poeta Manoel de Barros. Dessa forma as aulas no projeto DANTEMUS, querendo transver realidades e planejando etapas que poderiam ser facilmente mudadas conforme as necessidades. Em uma das experiências de 2008 a proposta foi usar o clown como forma primária para originar outros personagens, sejam eles sérios ou cômicos. Os alunos atuaram a partir de um roteiro improvisado sob orientação, onde não havia falas determinadas, mas ações que davam seqüência à história. Todos os alunos da rede municipal assistiram ao espetáculo durante a comemoração do Dia da Criança, possibilitando a reflexão acerca do companheirismo. A evolução na interpretação foi constante da primeira para a última sessão apresentada, deixando claro que o contato com o público faz com que os próprios alunos/atores percebam onde podem e como devem mudar no contexto que vivenciam. Buscando atingir cada vez mais os objetivos de identificar as possibilidades são preparados novos jogos de cena e convivência. Geralmente os resultados dos jogos são transferidos para um molde estético que irá se caracterizar em cenas e em futuras “mini” peças ilustrativas, entretanto as possibilidades do uso do jogo dramático não findam por aí, muito pelo contrário. Se dermos um passo atrás perceberemos que o ato de selecionar os jogos compreende em si uma busca por um objetivo. Outro ponto a observar são os resultados, nada estéticos por enquanto, que emergem de simples instruções, mas que se intensificadas podem revelar universos que o aluno mascara no dia a dia. O projeto trabalhou com a inclusão e desmistificação de conceitos, buscando valorizar o ser humano em sua identidade social e sugerindo possibilidades de crescimento. Supervisionado pela Secretaria Municipal de Assistência Social de Reserva do Iguaçu, o DANTEMUS atende crianças e adolescentes de 7 a 18 anos com o intuito de despertar além de seus talentos, a responsabilidade e a convivência social. Buscando formas alternativas de encontrar estes caminhos, a proposta está sempre em constante transformação, conforme exigem as mudanças que todos os dias trilham novas possibilidades. As áreas temáticas abordadas nas aulas são pensadas em todos os âmbitos, com o intuito de apontar formas de 152 convivência/vivência para promover responsabilidade social e valorização do ser humano, a partir das crianças e dos adolescentes. Os professores envolvidos no projeto, além de seus conhecimentos artísticos, constantemente estão em capacitação e planejamento de ações interdisciplinares e coletivas, objetivando atingir cada vez mais o seu ideal de intervenção sobre a sociedade, no sentido de propiciar a busca de crescimento individual e social. Considerações Finais Há três anos nesse projeto, a orientação social tem possibilitado ver mudanças significativas no comportamento social de crianças e adolescentes. A busca destes pelo aprendizado é visível nas apresentações de resultados constantemente realizadas em apresentações no Município e na região. Podem ser apontados diversos aspectos positivos e negativos dos resultados obtidos, como em todas as coisas que fazemos. Houve uma melhora significativa no comportamento, na fala e nas formas de analisar as situações que surgem. O fazer artístico nesse caso, é apenas um subterfúgio para expor e explorar os sentimentos dos alunos na busca de formas de auxiliá-los no desenvolvimento como seres humanos. Há a necessidade desse trabalho constante, pois a cada fase a transformação se faz necessária para acompanhar a evolução das coisas que mudam a cada instante. Alguns se encaminham para a vida profissional e com certeza talentos são despertados nesse processo, ainda que nenhum esteja latente e pronto a atuar efetivamente, a continuidade é a única forma de preparar de fato o próprio aluno para ser ‘instrutor/educador’. Importante é frisar o despertar social e profissional e o encaminhamento agora para o aprendizado, mas também a auto valorização, o despertar pelo interesse em observar mais a fundo o próprio desenvolvimento, o envolvimento com o mundo social, enfim, a capacidade de intervir sobre a realidade e transformá-la por meio da arte. REFERÊNCIAS 153 LECOQ, Jaques. The moving body. The teaching creative theatre. Translated from Le corps Poétique by David Bradby. A theatre Arts Book. Routledge.New York, 2001. RODRIGUES, Aroldo. Psicologia Social. Petropolis, Vozes, 12ª Ed., 1988. WEIL, Pierre. O corpo fala: a linguagem silenciosa da comunicação nãoverbal. Vozes, 59ª ed., 1986. ROMANS, Mercè. Profissão: educador social. trad. Ernani Rosa. Porto Alegre, Artmed, 2003. SPOLIN, Viola. Jogos teatrais: o fichário de Viola Spolin, trad. de Ingrid Dormien Koudela. São Paulo, Perspectiva, 2008. 154 155 “EU” E “NÃO-EU”: PONDERAÇÕES SOBRE AS RELAÇÕES OCIDENTE/ORIENTE A PARTIR DE OBSERVAÇÕES SOBRE A MORTE DE OSAMA BIN LADEN Rodolfo Grande Neto Curso de História –2º Ano Unicentro - Universidade Estadual do Centro-Oeste. Orientadora: Profª Ms. Cerize Nascimento Gomes PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Cultura. Eu. O outro. Fronteiras. Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto. Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho.. (Caetano Veloso) O texto em questão apresenta uma reflexão a partir da teoria da dialética e da estética hegeliana, com a finalidade de demonstrar como as sociedades, principalmente aquelas que se organizam de forma capitalista, encontram dificuldades em despir seus valores tradicionais para compreender e aceitar o outro. Hegel parte da critica aos filósofos românticos que ao analisarem o “eu” e o “não-eu” acabam desprezando este último, transformando o que não fazia parte da construção do seu eu, apenas em ponto desconhecido, a ser superado ao invés de ser apreendido. Para dar embasamento teórico ao presente estudo validam-se as concepções de Jean Hyppolite em Introdução à filosofia da historia de Hegel, Paulo Menezes em Hegel e a Fenomenologia do Espírito, Claude Levi-Strauss em Antropologia estrutural e de Aron Raymond em Etapas do pensamento sociológico. As leituras de Hyppolite e Menezes, sugerem que a filosofia de Hegel incita alguns questionamentos: E se tudo aquilo em que sempre se acreditou e se entendeu como correto fosse simplesmente uma ilusão? E se Deus na verdade se chamar Alá ou se for uma mulher? Para que lugar irá todas as certezas desde sempre cultivadas? Será que o ser humano está realmente pronto para encarar o que é novo? Estará preparado para aceitar o diferente mesmo que ele acabe ferindo suas crenças mais íntimas? Quantos desafios terão que ser vencidos para realizar o encontro com o outro? A partir da busca de respostas para tais indagações filosóficas, entendese que apesar do discurso acadêmico e midiático sobre a globalização, a aproximação dos povos, a quebra de fronteiras, a pluralização das culturas e a aceitação do que é diferente, permanecem descobertos preconceitos que aprofundam o abismo entre o “eu” e o “não-eu”. Um exemplo recente desse distanciamento cultural num mundo global, foi a morte do líder extremista Osama Bin Laden pelo governo dos Estados Unidos da América e a forma como o mundo Ocidental comemorou o ato praticado pelos soldados norte-americanos. O que essa celebração da morte de Bin Laden realmente significa?O comportamento dos governos e da população dos países centrais do Norte, no momento do abate de um adversário considerado o inimigo número um do imperialismo, tornou-se uma referencia para evidenciar a “supremacia” de um pensamento (Ocidente) sobre outro (Oriente Médio). Essa mesma dualidade cultural e ideológica está presente na sociedade mediante a idéia – bastante antiga – da eterna luta entre o bem e o mal. Nesse sentido, a filosofia ocidental desenvolveu o aparato intelectual necessário para que jamais, nada que seja contrário a sua crença política, econômica e social, seja visto com empatia. Isso significa que qualquer visão que possa ser destoante da ocidental, mesmo que não esteja necessariamente errada, será automaticamente descartada ou ignorada – ou quando considerada perigosa – eliminada. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, escreveu sobre essa estratégia, no caso sobre o comportamento de tribos australianas, porém a mesma relação pode ser feita em relação aos muçulmanos marcados pelo conflito entre o “eu” e o “não-eu”: Um indivíduo consciente de que é objeto de um malefício fica profundamente convencido pelas tradições mais solenes do seu grupo, de que está condenado, e parentes e amigos compartilham a certeza. A partir de então, a comunidade se retrai, todos se afastam do maldito e se comportam com ele como se, além de já estar morto, representasse uma fonte de perigo para todos os que o cercam. (LÉVI-STRAUSS, 2008, p.181). 156 157 Ao se tomar o caso de Bin Laden como objeto de estudo, não se pretende tornar justificáveis suas atividades ou sua ideologia política , pelo contrário, tais atos só demonstram um radicalismo idêntico ao dos países norte-americanos, especialmente os EUA que os muçulmanos tanto criticam. O objetivo é causar reflexões sobre o modo como o comportamento político de países de “primeiro mundo” pode ser comparável ao das tribos australianas Quanto ao imperialismo ocidental capitalista, entende-se que a manutenção e a defesa do “eu” imperialista - economicamente, belicamente e politicamente em vantagem sobre povos considerados primitivos ou selvagens - é semelhante a uma batalha permanente que acaba por não dar chances para qualquer defesa da outra parte. Ao partir de países considerados “civilizados” que apregoam a tese de criar um mundo conectado, um mundo sem fronteiras e sem desigualdades, esse comportamento monopolizador de riquezas culturais e econômicas, serve para demonstrar que os pressupostos teóricos que se defendem com unhas e dentes não se aplicam na prática. Assim sendo, propõe-se confrontar o discurso do individualismo neoliberal com a diversidade sociocultural, porém antes disso, é necessário entender que nem sempre – ou quase nunca – a cultura predominante (do seu ponto de vista) é a mais correta ou a mais coerente. As leituras promovidas sobre as referências bibliográficas deste trabalho, informam que o desejo permanente de estar certo, de estar correto e de ser coerente e justo é o que causa a relutância do “eu” ocidental em aceitar o “nãoeu”. Isso significa que aquilo que não reflete a si mesmo, mas que sugere a existência do outro , é condenado à ignorância justamente por ser capaz de revelar o não ser dos países capitalistas. Como diz a letra de Caetano Veloso: Quanto eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto. Chamei de mau gosto o que eu vi, de mau gosto, mau gosto. É que Narciso acha feio o que não é espelho. (VELOSO, Caetano, letra da música SAMPA). Assim sendo, diante do que não é espelho jogam-se reflexos do que nós somos sobre o ser dos outros povos e nações. Isso ocorre porque retroceder diante da diferença seria reconhecer que a soberania dos países imperialistas não é plena e que seu poder é limitado pelo direito do outro. Ao mesmo tempo surge naturalmente o reconhecimento de que os conceitos de superioridade e inferioridade são sempre discutíveis. Tal idéia de relatividade cultural gera desconforto e instabilidade, pois o encontro com o “não-eu” pode comprometer projetos, alterar conceitos e mudar aquilo que se considera natural na ordem mundial imperialista. Compreende-se com este breve estudo sobre a morte de Bin Laden que propor alternativas para debater o confronto entre o “eu” (Ocidente) e o “nãoeu” (Oriente) é dispor-se a correr riscos e expor-se em demasia. O ego da sociedade neoliberal funciona como o verdadeiro ídolo da sociedade ocidental contemporânea. Coloca-se acima de todas as diferenças e de todos os outros. Sustentado pelo individualismo e pelo consumismo, o Ocidente nega permanentemente a existência do outro, mesmo que em seu discurso pronuncie-se em favor dos direitos daqueles que diariamente exclui. O reconhecimento do “não-eu” é muito mais difícil do que podem pressupor as teorias filosóficas e sociais. A concepção do outro, a comunhão com a diferença significa automaticamente assumir alguma beleza, alguma singularidade e alguns traços de perfeição no outro, o que sugere imediatamente as imperfeições do “eu”. Diante dessa constatação, a sociedade capitalista que funciona como uma grande empresa teme tornar-se obsoleta. Raymond Aron sugere que para manter seu status quo e parecer literalmente o melhor de todos os sistemas existentes, o “eu” ocidental coloca-se acima, e para isso é preciso que todo o resto esteja abaixo. No sentido de promover uma ruptura com a idolatria da própria identidade do Norte industrializado, considera-se o objetivo de identificar aspectos teóricos que na prática permitam reduzir as distancias entre o “eu” e o “não-eu”. Entre nós e os outros. Nesse sentido, esta pesquisa pretende encaminhar-se por rotas que impliquem no lançamento de pontes que aproximem os diferentes, estabeleçam diálogos entre os divergentes e criem laços entre os distantes. Para tanto, o conflito entre a idéia de “eu” e “não-eu”, terá que ser revisitado. Essa visitação tem por meta o reconhecimento dos modos pelos 158 quais o eu individualizado passa a excluir automaticamente tudo o que ele não é. Em teoria, se para negar o que não somos precisamos compreender o significado de não sermos, a especificidade dessa intenção de pesquisa reside no fato de dispor-se a pensar sobre o que não somos. O “não-eu” torna-se nossa referência investigativa. Dessa forma, principia-se a interação entre “eu” e o outro. Diante desses pressupostos, prima-se pela dialética Hegeliana, segundo a qual, tudo o que forma os seres humanos parte de uma idéia de tese, antítese e síntese, ou seja, um confronto de idéias que se mesclam e acabam por criar uma mediação, uma simbiose que por meio de construções teóricas estruturadas, sob os mais variados pontos de vista, nos transformam no que somos e nos colocam em oposição ao que não somos. Percebe-se assim, que a criação do próprio “eu”, bem como nossa concepção do outro, é apenas uma ilusão. Uma vez que para essa gestação, utilizam-se modelos prontos e padrões definidos - na maioria das vezes arcaicos e conservadores, ortodoxos e ultrapassados - para classificar o que somos e o que não somos, pode-se afirmar que o que convencionamos chamar de próprio “eu” é apenas a somatória de um processo sobre o qual exercemos pouca ou nenhuma intervenção A filosofia hegeliana possibilita indagar se as bandeiras levantadas todos os dias, os ideais defendidos com a própria vida , bem como as crenças cegas em conceitos e dogmas em nome de um “eu” que recusa a existência do outro, é sinal de consciência e desenvolvimento ou de ignorância e estagnação. Concluí-se que não reconhecer o outro não se trata apenas de um preconceito sem cabimento, negar o diferente está relacionado a um processo de auto-afirmação que, a partir da construção de uma unidade de pensamento garante apenas estabilidade e aceitação própria e perante os iguais. Além das fronteiras do mundo ocidental existe uma porção de terras e gentes, crenças e costumes, que quando fragilizados, inexistem perante esse “eu” formatado acima de tudo e todos. Já quando o outro oferece a sombra de possíveis ameaças, torna-se motivo de guerras contra forças do mal, como foi o caso da invasão do Iraque e do Afeganistão, no início do século XXI. Essa política 159 imperialista extrai das vítimas o sentimento de pertencimento a um povo, uma religião e uma cultura dignas. Finalmente, sobre o caso da morte de Osama Bin Laden, bem como no caso de outros muçulmanos considerados terroristas, ao comemorar a derrota árabe, automaticamente – mesmo que inconscientemente, se aceita que o estilo de vida norte-americano tem superioridade sobre os demais. Como a sociedade brasileira esta constituída a partir dos padrões funcionais e adaptáveis dos países capitalistas e pouco conhece sobre as sociedades árabes, com o auxílio da mídia perpetua-se o distanciamento e alarga-se o abismo entre ocidente/oriente. As concepções em torno do que somos e do que não somos, sem reflexões consistentes, continuam a fechar as portas de um mundo sem fronteiras. Constrói-se assim um mundo economicamente globalizado, mas culturalmente tribal. A filosofia apresenta-se aqui como uma poderosa ferramenta de pesquisa para as áreas de Ciências Sociais e de Ciências Humanas. REFERÊNCIAS ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo. Martins Fontes. 1993 HYPPOLITE, Jean. Introdução à filosofia da historia de hegel. Rio de Janeiro. Elfos, 1995. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2008. MENESES, Paulo. Hegel & a fenomenologia do espírito. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2003. 160 161 BLOCH E WEBER: ENSAIO SOBRE OS DIÁLOGOS ENTRE A ESCRITA DA HISTÓRIA E DA SOCIOLOGIA DURANTE OS SÉCULOS XIX E XX Gisele Cristina Fogaça Curso de História Universidade Estadual do Centro-Oeste - Unicentro Palavras – Chave: História. Historiografia. Sociologia. Este trabalho procura apresentar uma revisão teórica de alguns autores da história e da sociologia, com a finalidade de estabelecer novos diálogos entre as ciências sociais e as ciências humanas. Apesar das diferenças quanto ao foco de analise, historiadores e sociólogos têm várias semelhanças em seus conceitos, conforme comparação quanto aos métodos e aos conceitos abordados por sociólogos e historiadores. Parte-se do pressuposto que apesar da grande influência de Émile Durkheim sobre a escrita da história de Marc Bloch, uma das principais referências da Escola dos Annales, este também apresenta um diálogo muito forte, que por vezes é ignorado, com Max Weber. Proporcionando assim a interdisciplinaridade, uma das maiores características apresentadas pelos artigos publicados pela Revista dos Annales. Compreende-se assim que o século XIX foi marcado por uma escrita unilateral e factual da história, visando unicamente à política como objeto de analise e de como a sociedade se organizava a partir do Estado, sendo assim todos os outros objetos de estudo subordinados ao teor político, como política econômica, política social, etc. Por outro lado nessa época surgiram muitos trabalhos no campo das ciências sociais, especialmente aqui analisadas as contribuições de Weber que buscavam compreender a sociedade em amplos sentidos, principalmente pela economia e religião. Já no inicio do século XX, historiadores como Marc Bloch e Lucien Febvre tentavam apresentar uma nova abordagem que contemplasse uma visão de como a sociedade agia no individuo, para isso era preciso compreender cada vez mais a fundo como a sociedade é constituída. Porém, a limitação documental que a história se submetia durante o século XIX não preenchia completamente as necessidades dos novos historiadores, era preciso ampliar as fronteiras do conceito de documento. Assim a história passa a dialogar com a sociologia na busca para conhecer os métodos de analise. Nesse período a história deixa de ser unicamente uma narrativa e começa a estudar as várias estruturas que compunham a sociedade em seus diversos períodos. Sendo o homem o foco principal de estudo da história e a sociedade o foco da sociologia, ambas acabam se encontrando em diversas análises semelhantes. A sociologia se caracterizava por ser uma ciência que delimitava o seu espaço temporal em entender o presente. Logo, história começa a se aproximar da sociologia quando os Annales passam a problematizar o presente. É necessário que para se compreender o presente antes de tudo se entenda o passado. Assim, o olhar presente-passado acaba fazendo com que história e sociologia comecem a dialogar cada vez mais, já que ambas acabam se tornando quase dependentes uma da outra. Para Weber há o homem histórico, aquele que movido pela ação social passa a agir e modificar a história, não se tornar apenas passivo dela. Nesta mesma linha de analise, quando Marc Bloch escreve que a história se trata da “ciência dos homens no tempo”, ele também dá esse caráter de modificador da realidade ao homem. Tanto para Weber como para Bloch, não há imparcialidade possível no homem, ele é justamente movido pelas suas paixões, ao excluir uma coisa ele naturalmente se aproxima de várias outras e suas ações são o que configuram o seu presente. O homem então se torna produto das suas escolhas, a causalidade proposta por Weber. Essa noção de causalidade expressada em Bloch pode vir a se originar na história como um processo, abandonando a noção de que ocorriam fatos isolados, mas que todos os acontecimentos dependiam de outros fatores. Assim a história passa a ser compreensiva e dependente de entender todas as esferas sociais. Apesar dessas considerações, Weber e Bloch, ou melhor, sociólogos e historiadores se desentendem em vários outros aspectos. O sociólogo do século XX busca eventos que se repitam constantemente na procura de leis que sejam gerais para toda a sociedade enquanto os historiadores estão mais 162 interessados em descobrir o particular, que é a principio, ignorado pelo sociólogo. Apesar do diálogo entre historiadores e sociólogos nem sempre serem tranqüilos, ambas as ciências são muito relacionadas e têm em seus conceitos, formas muito parecidas de se entender o seu objeto de analise, mesmo que muitas vezes esse objeto tenha análises diferenciadas de acordo com as áreas de conhecimento e linhas de pesquisa dos historiadores e dos sociólogos. Mesmo em se tratando de autores que nem sempre são vistos juntos, podemos analisar que ao longo dos anos, durante os séculos XIX e XX os estudos das duas ciências confirmam que estas se complementam, afinal, o objetivo de ambas é compreender a humanidade e como ela se organiza, seja através da sociedade ou através do tempo, pela análise dos períodos e dos processos históricos e sociais. REFERÊNCIAS BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Joge Zahar, 2001 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo. Pioneira, 1996. 163