Permanências e mudanças no quadro de requalificação

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Permanências e mudanças no quadro de requalificação
PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS NO QUADRO DE
REQUALIFICAÇÃO ESPACIAL DE CIDADES
BRASILEIRAS: O CASO DAS TERRlTORIALIDADES
DO SEXO NA ÁREA CENTRAL DO RECIFE
Heleniza Ávila Campos"
Urban renewal prograrns and their impact on the territorialitíes
of prostitution in central Recife
In the last decade, Recife's city
center has been the preferential target of
a series of urban renewal programs.
These programs have redefined uses,
functions and meanings of severa! parts
of lhe eity center. An important activity
in pre-urban renewal times, prostitution
has been seriously affected by such
spatial changes and has now become
almost a residual practiee.
Introdução
Este trabalho expõe algumas reflexões apresentadas na tese defendida
em dezembro de 1999, no Programa de Pós-graduação em Geografia da UFRJ,
que teve como ênfase a abordagem das permanências e mudanças nas áreas
centrais das metrópoles do Brasil, tendo como foco empírico a cidade do
Recife (PE). Partindo da investigação das diferentes formas de apropriação
por práticas tradicionalmente associadas a espaços de áreas centrais, buscouse analisar os efeitos das intervenções públicas e privadas, planejadas ou não,
sobre a organização sócio-espacial.
As recentes intervenções em áreas centrais têm como pano de fundo os
contrastes intra e interurbanos mais acentuados e complexos em sua composição e articulação, inclusive em moldes internacionais. A reestruturação de
economias nacionais e urbanas no nível internacional tem se apoioado em
diferentes modalidades de serviços, com destaque para o lazer, e entretenimento. Observam-se, nesse contexto, tentativas de construção de novos paradigmas
relacionados à idéia de desenvolvimento sócio-espacial. A articulação de asArquiteta, doutora em Geografia Humana pela UFRJ. sob orientação do Prof. Dr. Marcelo
L. de Souza e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISC (RS). EmaiJ:
[email protected].
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pectos relacionados à cultura local com interesses globais - via inovações
tecnológicas atinentes à valorização e ao reconhecimento de particularidades constitui-se em fatores viabilizadores de um campo de investimentos e de
interesse da sociedade contemporânea: a dimensão cultural das grandes metrópoles. Essas propostas com ênfase no consumo têm privilegiando os espaços
intraurbanos mais tradicionais, seletivamente escolhidos para corresponderem a
uma imagem de cidade, ao mesmo tempo global e particular. Ressurge, assim,
o interesse em investir em antigos setores comerciais das áreas centrais - a
partir de planos de revitalização.
As características predominantes dos bairros de áreas centrais em geral
definem territorialidades específicas relativas à dinâmica sócio-espacial, predominantemente comercial, que podem subverter, neutralizar e/ ou potencializar
projetos e intervenções "revitalizadores". Com vistas a investigar tais aspectos
de bairros centrais, privilegiou-se o estudo de territorialidades no Bairro do
Recife, Santo Antônio e São José. O estudo das transformações e permanências desses espaços em áreas centrais, levou em conta alguns aspectos, tais
como:
As intervenções previstas para o Bairro do Recife tinham como objetivo
principal a transformação da área em um centro moderno de serviços e atividades comerciais, contemplando espaços de lazer e diversão para a população
da cidade e para turistas e sinalizando para a conservação do patrimônio
histórico, através de uma nova "vitalidade econômica" I, numa área que, desde
o final dos anos 1970, apresentava-se em avançado processo de degradação
física, social e econômica. Numa tentativa de parceria com investidores privados, foram implementadas diversas ações no bairro, além de novos empreendimentos com a intenção de atrair consumidores e novos freqüentadores para
uma área que, até então, havia sido freqüentada por antigas prostitutas e
trabalhadores do porto. Pretendia-se assim, apresentar à sociedade e a potenciais novos investidores uma boa "imagem" da área central, dentro de princípios internacionalmente reconhecidos. A nova face do bairro portuário do Recife
agora é composta por outros aspectos, tais como projetos com ênfase no
turismo. A construção de um Terminal Marítimo de Passageiros - já em
execução - é um exemplo de tentativa de ampliação do consumo na área
dirigido a um outro grupo social composto de turistas, inserindo Pernambuco na
rota dos cruzeiros marítimos internacionais".
1
2
PREFEITURA DA CIDADE DO RECIFE. Recife 2000: propostas para a cidade, Recife,
fev., 1997.
Ver "Governo tem estratégia para estimular comércio", in: Jornal CC News, ano I, n" 11,julho
de 1999, p. L.
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e Mudanças
no Quadro de Requalificação
Espacial ...
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No caso das imediações da avenida Dantas Barreto (bairros de Santo
Antônio e, sobretudo, São José), há diferenças consideráveis quanto aos objetivos de revitalização: visava-se fortalecer e "resgatar" a área enquanto pólo
de atração e integração social para a cidade - a despeito do conjunto de
diferenças que peculiarizam esta área, tais como, usos e práticas comerciais
tradicionalmente consagrados, conferindo-lhe uma vitalidade própria e já tradicional, de amplitude regional e de forte resistência às mudanças impostas por
fatores externos. Agentes e situações de utilização do espaço urbano típicos do
bairro mais popular, considerados indesejáveis e/ou incompatíveis com a idéia
de desenvolvimento tradicionalmente prevalecente, que suscitam algumas ações
do planejamento relati vas ao controle social e à imposição de ordens préestabelecidas.
Tais planos, embora diferentes em seus objetivos e estratégias, trazem
em comum a intensidade e amplitude dos projetos desenvolvidos, em função
das particularidades espaciais, dos objetivos pré-determinados nas propostas de
planejamento ou, ainda, da viabilidade dos projetos. Ao analisar tais práticas e
suas repercussões no espaço, pretende-se evocar a necessidade da apreensão
da realidade urbana sob diversos ângulos de sua complexidade - incluindo a
dimensão cotidiana, enquanto fontes significativas no estudo das cidades contemporâneas.
O presente texto é composto de dois itens: o primeiro, diz respeito à
fundamentação teórica relativa à importância das práticas cotidianas dos
freqüentadores
da cidade como fatores pertinentes
à elaboração
das
territorialidades, a partir da diferenciação sócio-espacial particular de cada
grupo social. No segundo item, discute-se alguns exemplos das teritorialidades
do sexo na área central do Recife.
1. Práticas e diferenciação sócio-espacial:
territorialidades
em áreas centrais.
As territorialidades, ou seja, o conjunto de atividades e práticas através
das quais são estabelecidos os territórios, criam "campos de força" representativos das relações dos diversos grupos sociais com um determinado espaço
- os quais passam a constituir-se em territórios. Estas relações podem ser
observadas no seu interior - na definição da identidade entre membros de
grupos sociais - ou com o seu exterior em relação a outros territórios relações entre grupos - ou seja, na troca, diferenciação e dominação face à
existência de outros grupos (SOUZA, 1995). Tais comunicações e formas de
controle expressam a dinâmica sócio-espacial - desigual e heterogênea - do
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espaço urbano, sobretudo quando são observadas áreas tão complexas, social
e culturalmente, como as áreas centrais. A expressão desses campos de força
pode ser feita através de diversas formas de representação e práticas sócioespaciais.
As territorialidades - mais especificamente as humanas - possuem três
elementos básicos fundamentais: as formas de expressão de poder; a identificação simbólica do território para seus componentes; e as formas de comunicação de cada territorialidade com o exterior seguem fins específicos, tais
como sobrevivência material, melhores condições de vida, associados ideologicamente, de forma mais ou menos consciente, a contextos sócio-econômicos,
políticos e culturais mais amplos (CHISHOLM & SMITH, 1990). As relações
sociais dos seres humanos sempre representaram expressões de força e poder
para além dos atributos físicos e ambientais nos quais se estabelecem. SOUZA
(1995) assinala que a territorialidade é a expressão geográfica primária de
poder social, através da dei imitação e afirmação do poder de determinado
grupo sobre o território.
As territorialidades trazem implícito um forte significado de pertinência
do grupo a uma porção de espaço, que muitas vezes se expressa através de
modos específicos de comportamento. Trata-se de uma construção social com
um significado específico (subsistência, ideologia política, poder econômico,
entre outros) para os membros de cada grupo enquanto uma identidade particular. Ao mesmo tempo, essas relações indivíduo-território servem como forma
de comunicação de limites e códigos comportarnentais aos indivíduos que não
compartilham dos mesmos interesses e expectativas. Ao longo deste trabalho
serão discutidas as micro-territorialidades do sexo, freqüentes e tradicionais em
áreas centrais.
A identificação simbólica refere-se aos diferentes significados e valores
que o espaço assume para os diversos grupos sociais na busca de identificação; esta relação simbólica está muito diretamente associada às representações sociais. Essas representações são formadoras de uma trama complexa de
diferentes significações que vão influenciar, motivar e mesmo justificar atitudes
de resistência, defesa, animosidade dos grupos sociais em relação ao meio
onde se encontram; do mesmo modo, as representações, construídas social e
espacialmente, podem promover condições de atratibilidade.
As motivações para a definição de territorialidades estão relacionadas
com as diferentes formas de relação dos grupos com o território (forma de uso;
organização; significado que ele pode assumir em diferentes momentos), traduzindo ao mesmo tempo expectativas particulares interiores aos grupos - prazer,
necessidade, contingência, obrigação, ideologia - como também exteriores a eles
- funcionais, simbólicas, sociais, físico-ambientais, sócio-econômicas.
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e Mudanças
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Quanto às formas de comunicação com o exterior, estas podem ocorrer
não apenas no nível do comportamento, mas também através de ações correspondentes à materialização no espaço dessas relações abstratas e subjetivas,
constituindo assim em práticas sócio-espaciais. Estas assumem, ao mesmo
tempo, um papel de interação, na medida em que une os indivíduos em grupos
que possuem motivações comuns; e diferenciação, estabelecendo limites e
expressando desigualdades através de comportamentos, formas de usar / transformar o espaço. SMITH (1990) lembra que esses grupos são, em sua própria
estrutura, heterogêneos".
Os modos como as territorialidades podem ser percebidas não se apresentam apenas fisicamente com a definição de limites concretos. O exercício
de reivindicação dos grupos, seja através de manifestos expressos, seja através
de práticas comportamentais, constitui-se num instrumento básico e coexiste
com a ocupação espacial. A própria denominação dos territórios já estabelece
uma relação de poder sobre determinado espaço. O poder diz respeito às
diversas formas de dominação - abstratas e multiformes - inerentes às relações sociais, sobretudo na sociedade capitalista, não se referindo apenas a
expressão de autoridade através de repressão e do impedimento agressivo, mas
produzindo efeitos profundos e complexos no nível do desejo e também do
conhecimento. Para FOUCAULT (in: GORDON, 1980), essas formas de
dominação são possíveis através de procedimentos disciplinares impessoais e
rotinizados, os quais organizam o espaço social através de operações de vigilância e controle.
As manifestações de poder estão associadas a tipos de relações (produção, família, sexualidade entre outras) de tal forma que cada indivíduo dispõe
de certo poder, podendo se tomar um veículo de transmissão de poderes mais
amplos. Dessa forma, redes hierárquicas de poder se entrecruzam no dia-a-dia,
assumindo formas complexas na sociedade. Suas interconexões delineiam
condições gerais de dominação, a qual é organizada dentro de uma forma mais
ou menos coerente com as ideologias de grupos dominantes. Tais procedimentos disciplinares são mais facilmente perceptíveis em instituições (prisões,
quartéis, hospitais, escolas), interferindo na conduta pessoal do indivíduo, sendo
também assimilados em outros âmbitos da vida social". O símbolo e a
materialização desta forma de poder foi o panáptico, modelo de construção
cuja ordem espacial preestabelecida permitia controle e domínio das atividades
l
4
SMITH, D. M. "lntroduction: the sharing and dividing of geographical space", in: CHISHOLM
& SMlTH, 1990.
FOUCAULT, M. Discipline and Punishment - the birth of the prison, London: Penguin
Books, 1975.
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e comportamentos de grupos observados, utilizado em prisões, hospitais, escolas, mas assimilados por outros níveis institucionais mais complexos, como
Estado e empresas.
A disciplina na sociedade moderna tomou-se uma poderosa fórmula de
dominação, através de uma manipulação calculada de seus elementos, gestos,
comportamentos humanos, produzindo indivíduos "práticos" e "dóceis", ampliando o desempenho físico em termos econômicos, ao mesmo tempo em que
diminui a força e articulação política dos indivíduos envolvidos. Assim, as
relações de poder podem servir a interesses econômicos, não necessariamente
porque estejam a seu serviço particular, mas porque elas são capazes de serem
utilizadas em estratégias mais amplas e globais. O estímulo ao consumo nas
cidades contemporâneas tem incentivado a estetização do espaço como forma
de expressão de poder, na medida em que o consumidor passa a ser instrumento de ação e desenvolvimento de poderes hegernônicos mais amplos como as
corporações; empresas multinacionais; e mesmo governamentais.
Para FOUCAULT (in: GORDON, 1980), a disciplina acaba assumindo
um caráter muito mais complexo - do ponto de vista cultural e social - de
subjugação do indivíduo, do que o mero ato violento, mediante uma série de
meticulosas táticas, integradas em estratégias anônimas, de forma que acabam
por homogeneizar a ordem social. A crítica ao poder desenvolvida por Foucault
aponta para formas de discipJinamento vinculadas ao aparato estatal ou às
regulamentações legais - tem representado o poder do ponto de vista negativo
de proibição, seja no nível do discurso, ou no nível da autoridade agressiva e
violenta. Segundo FOUCAULT (1992), já no século XVIII o poder - representado pelo Estado - tinha como principal desafio o exercício de funções
específicas de disciplinamento do espaço urbano, tais como: 1) ordem, 2) o
crescimento canalizado das riquezas; e 3) condições de manutenção da saúde
em geral, acrescentadas às funções judiciária e de estabelecimento da paz e
guerra do final da Idade Média. Tais funções - ainda fortemente presentes nos
debates recentes sobre planejamento urbano - naquele contexto, colocavam à
frente a atuação da medicina como instância de controle social, sobre o espaço
urbano em geral, considerado o mais perigoso.
As condições de higiene para os estrangeiros que chegavam no Recife
no século XVIII eram precárias, promovendo uma má imagem da cidade.
MIRANDA (1998, p. 14) lembra o desencanto de alguns viajantes em relação
às condições da cidade do Recife, tal como George Garder, que considerou "a
cidade de Pernambuco (...) é pouco recomendável a quem não tem negócios a tratar. Os prédios são mais altos do que os do Rio e as ruas, na
maior parte, ainda mais estreitas e, por certo, igualmente sujas". Tal
situação implicou nas medidas propostas pelo Conselho de Salubridade Pública
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e Mudanças
no Quadro
de Requalilicação
Espacial
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(criado em 1845) para ordenar a cidade do Recife foram, entre outras:
aterramento de áreas pantanosas e de águas estagnadas;
· vigilância na limpeza de praias, praças e ruas;
· fiscalização do porto, a fim de evitar a entrada de pessoas de outros
países contaminadas com doenças epidêmicas;
· retirada de mendigos e prostitutas das ruas da cidade, considerados
como responsáveis pela disseminação de várias doenças entre a população e
de introduzirem bebidas alcoólicas e armas nas cadeias públicas;
· retirada de fundições e oficinas de ferreiros, caldeiros, latoeiros, etc.,
da área central.
Tais procedimentos como aponta MIRANDA (1998) assemelham-se às
indicações da polícia médica (Alemanha, primeira metade do século XVIII) e
da medicina urbana (França, 2a metade do século XVIII) citadas por
FOULCAULT (1992). Embora FOUCAULT considere que não há relações
de poder sem resistência, esta aparece como comportamento esperado dentro
de expectativas inerentes ao próprio dominador, não representando mudanças
no quadro de dominação estabelecido. A resistência acompanha os procedimentos localizados de poder que ainda podem ser adaptados e transformados
por estratégias globais. No entanto, CERTEAU (1994) acredita que há formas
de alteridade, no nível das táticas, que representam resistência às estratégias,
com muito maior poder de resistência do que considera FOUCAULT. A crítica
de CERTEAU (1994) em relação à concepção foucaultiana tem como princípio
o poder inerente às práticas cotidianas, cuja lógica foi analisada e discutida
inicialmente por BOURDIEU (1977), que propõe uma abordagem epistemológica
específica - a praxiologia - para focalizar as práticas sociais enquanto mediação entre agente social e sociedade. Mas BOURDIEU (1977) não pretende
rejeitar o conhecimento objetivista, e sim ultrapassá-lo: nesse sentido, ele se
afasta da perspectiva fenomenológica humanista. No nível das pesquisas sociais
da mediação entre teorias e práticas, o foco é a lógica das práticas relacionadas do dia-a-dia. As pessoas não obedecem a regras simplesmente, nos seus
cotidianos: elas adquirem pontos de vista específicos através de um processo
complexo de experiência e ajustes, ao qual BOURDIEU (1977) denomina de
"habitus": um sistema constituído socialmente de estruturas cognitivas e motivações das próprias pessoas usuárias. As práticas e atitudes habituais, para
ele, são conjuntos de idéias personificadas, sedimentadas nos estilos das pessoas nas suas vidas diárias (SHIELDS, 1992).
Para BOURDIEU (1977), práticas são produtos gerados por princípios
coletivos duráveis (habitus) historicamente construídos, que não seguem regras artificiais nem condutas produzidas externamente, mas códigos simbólicos
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muito particulares, viabilizadores da compreensão e exploração de possibilidades de combinações de uso do espaço. Assim, aspectos subjetivos da realidade
social adquirem uma forma objetiva, através de ações reproduzidas no cotidiano. O habitus é um sistema subjetivo de esquemas comuns de percepção,
concepção e ação, o qual é pré-condição para a materialização das práticas
cotidianas, que são caracterizadas pela regularidade, sistematicidade e unidade
na coordenação de ações de membros pertencentes a mesmos grupos sociais.
Através de seleções de grupos sociais, feitas em relaçãova espaços, eventos
e pessoas, o habitus tende a se proteger das crises e desafios críticos das
transformações impostas pelas determinações gerais da sociedade. Os espaços
passam a assumir um papel de apoio e, assim, garantindo a permanência e
continuidade desses grupos. O habitus é a presença ativa de um conjunto de
fatos e condições do passado do qual é produto, sendo responsável pela autonomia relativa dos grupos em relação a determinações externas do presente
imediato. As práticas, portanto, têm urna lógica muito particular, organizadas
segundo pensamentos, percepções e ações através de princípios interrelacionados, os quais se apóiam, entre outros componentes, nas experiências vividas,
individuais e coletivas, acumuladas ao longo do tempo.
Neste sentido, o cotidiano, antes de imprimir uma disciplina limitadora,
pode ser também a base da construção da identidade dos grupos sociais. Nesta
perspectiva, a improvisação, em resposta às contingências, surge como uma
adaptação dos territórios às mudanças impostas por determinações gerais. Isso
também não implica que novos elementos não venham a ser incorporados aos
grupos, mas ao contrário, o habitus por se tratar de um princípio dinâmico,
transforma as práticas e a sua espacialização. Neste sentido, os espaços públicos das cidades aparecem como espaços privilegiados das práticas sociais,
na medida em que assumem papéis diferentes e socialmente diversificados. As
práticas espaciais operam, portanto, verdadeiros processos de "produção de
territórios" dentro do espaço urbano que lhes serve de suporte (no sentido de
constante transformação e criação de composições heterogêneas dentro do
mesmo), dando-lhe um caráter diverso e dinâmico no espaço e no tempo
contemporâneos. A análise destas práticas pode vir a constituir possibilidades
mais ricas de interpretação da cidade.
2. Territorialidades
do sexo ou mapas
do desejo na área central do Recife
o estudo das espacial idades referentes às práticas sexuais envolve não
apenas as suas manifestações no dia-a-dia das cidades, tal como a prostituição
Permanências
e Mudanças
em zonas portuárias
no Quadro de Requaliflcação
ou os flertes em espaços
cerra todo um conjunto
reorganização
complexo
espacial
públicos
de práticas,
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Espacial ...
revitalizados,
apropriações
na qual todos aqueles
mas en-
sócio-espaciais
que vivem em sociedade,
e
qual-
quer que seja a opção sexual ou gênero, encontram-se,
de uma forma ou de
outra, envolvidos.
Diversão, lazer, desejo, clandestinidade,
anonimato são alguns dos muitos componentes
do perfi I de quem define e opta por esses
terri tórios.
KNOPP
plexidade
a eles
(1995) assinala
envolvendo
que embora
os códigos
é possível
associados,
cidades contemporâneas.
aspectos:
1) Os códigos
haja uma enorme
sexuais das cidades,
traçar
alguns
espaços
aspectos
variação
e com-
e grupos
sociais
comuns
no caso
das
De forma sintética, aponta-se aqui para três desses
sexuais expressos nas relações dos grupos e indiví-
duos com a cidade estão relacionados
a relações de poder, de desafio às
ordens estabelecidas,
de questionamento
de valores; 2) Muitos conflitos e
contradições
das sociedades contemporâneas
encontram
expressão nos códigos sexuais, os quais enfatizam
erótico, mas também Funcional.
tanto à contestação
adesão
a sexualidade
não apenas do ponto de vista
Tais códigos estão deliberadamente
expostos
de alguns - muitas
de outros - comprometidos,
3) Áreas e populações
dade são interpretadas
vezes radical
simpatizantes
e excludente
ou curiosos
- como
à
das diferenças;
que representam
"falhas" ou "desafios"
para a sociecomo excitantes ou mesmo eróticas, tanto nas culturas
dominantes como naquelas mais alternativas. Trata-se de setores da cidade que
assumem um papel liberado em relação ao todo, com um perfil diferenciado
daquele esperado ou previsto pelo senso comum, como áreas gentrificadas,
áreas de cortiços entre outras.
Assim, a sexualidade nas cidades
de muitas
sofrendo
experiências
influências
exibicionismo,
aspectos,
da vida urbana
da organização
anonimato,
desafios
que só são possíveis
é compreendida
moderna
espacial
como a "erotização"
ao mesmo
tempo
em que se manifesta:
à autoridade
influindo
e
voyeurismo,
e ao poder, perigo, entre outros
dentro de um complexo
e denso
grupo
hetero-
gêneo de seres humanos sócio-espacialmente
localizados. Além disso, apresentam um nível complexo de relações sócio-espaciais,
sendo também instrumentais na produção,
reprodução
e transformação
dessas relações e do próprio
espaço
onde
se estabelecem.
Há algumas
menos
primeiro
dendo
político
social.
ponderações
que envolvem
qualquer
lugar, as propensões
de contextos
e econômicos
Assim,
necessárias,
prática
culturais
e condições
justificar
humana,
inclusive
são mutáveis
- sócio-culturais,
- interagentes
é possível
para situar
com opções
a aceitação
historicamente
fenô-
a sexualidade:
em
ao longo da história depengeográficos,
de ordem
de determinadas
até mesmo
pessoal
e / ou
práticas
em
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alguns
momentos
segundo
históricos
e o repúdio
lugar, essas condições
ração socialmente
em outros
e contextos
estabelecida
ano V, n" 9, pp. 25-43, jul./dez.,
(ROSSIAUD,
culturais
entre a valorização
2000
1991). Em
vão depender
da ponde-
de sentimentos
tais como
desejo, grau de culpa vinculado ao ato e às manifestações
sexuais mais diversas, entre outros. A esses condicionantes
subjetivos,
combinam-se
também
aspectos relativos à condição social relativa dos agentes praticantes,
o que
revela o complexo quadro de análise.
Embora
sociológicos
sões,
faça-se
mas apenas
geográfica
referências
a importância
ao longo deste trabalho,
considerar
das territorialidades
de aspectos
não se pretende
sua influência,
urbanas
entre
outras,
das áreas centrais.
prazer, sobretudo
o sexual,
à espacialidade
ção das cidades.
Não é à toa que ao tentar
psicológicos
aprofundar
é freqüente
na configuração
A associação
no processo
identificar
ou
tais discus-
de forma
do
de evolurápida
e
superficial
os diversos grupos que procuram se diferenciar
sexualmente
na
cidade percebe-se uma forte relação destes com bares, restaurantes
específicos, ou mesmo mas, praças, esquinas. Assim, um primeiro mapeamento
dessas
territorialidades
pode ser obtido a partir das localizações
de grupos segundo
seus pontos de encontro em áreas de lazer no centro. Tais são mutáveis ao
longo do dia e assumem
ciona
características
variáveis
ao longo da semana.
ARRAIS (1998), citando as crônicas do jornal "O Carapuceiro",
menque mesmo em festas religiosas na virada do século, eram comuns
manifestações
raras ocasiões
As janelas
também
de sensual idade e cortejo entre homens e mui heres, devido às
em que as mulheres se expunham e partilhavam da vida social.
dos sobrados
permitiam
de beira-rio,
o contato
com cumplicidade
entre o privado
do Capibaribe,
- lugar tradicionalmente
de pre-
domínio da família, do recato, dos bons costumes - com o público. Sobre o
referido jornal, o Padre Lopes Gama apresentava
na década de 30 do século
XIX uma figura pitoresca,
o "garnenho".
versão brasileira
e nordestina
da flanagem
parisiense:
Chama-se gamenho todo aquele individuo que não tem outro ofício,
outro emprego, outro cuidado, senão embonecar-se para namorar.
(...) quando vós virdes um sujeitinho, quase Melquisedeque,
sem
parente nem aderente e (o que ainda é mais) sem ofício dos conhecidos na república, sem indústria lícita, sem benefício, e entretanto muito asseado e faustoso, (...) passeador incessante e quase
inquilino das esquinas e botequins, levando manhãs e tardes já
numa botica, já numa loja, porque defronte moram umas meninas
jeitosas e caroáveis de namoro, aí tendes um gamenho às direitas
(GAMA,
Lopes.
"O que é ser gamenho",
in: MELLO,
pp. 55, 56).
Permanências
e Mudanças
A existência
no Quadro
de Requalificação
de residências
próximas
Espacial
a atividades
o passeio, fundamentado
no prazer, nos flertes,
tanto para homens - "gamenhos"
e o "pelintra"
"coquetes",
ou seja, mulheres
da sociedade
dadas a namoricos (DANTAS,
famílias,
espaços
sobretudo
1992).
as mulheres,
comerciais
estimulava
nas descobertas
das paixões,
5 - como para mulheres
- as
adeptas
das modas
Com efeito,
começam
3S
...
no início
a circular
européias
e
do século,
as
mais livremente
pelos
"A pretexto de ir a compras, visitar dentista ou fotógrafo,
percorriam as ruas, às vezes tomavam o bonde sozinhas"
públicos:
senhoritas
(ARRAIS, 1998, p. 67). Tratava-se principalmente
desde as "coquetes"
até as
senhoras de classe média. A área central, portanto, estimulava
prazeres para
além do consumo
imediato,
e de consentimento
silencioso
exemplo.
Na virada
locais
comercial:
do século,
aos "sedutores"
haviam os locais de práticas
do flerte e admiração,
eram comuns
e "bandidos
menções
da honra
como
a Rua Nova,
nos jornais
e da virtude"
"proibidas"
por
e nos livros
que assediavam
sobretudo as jovens senhoras, incitando a uma vigilância
moral redobrada.
Numa região em que a masculinidade
é valorizada de forma tão acentuada,
qualquer
dúvida
relacionada
Tais práticas
à honra deveria
associadas
aos passeios
ser aplainada.
públicos
e às relações
entre espa-
ços - e relacionamentos
- públicos e privados acontecem hoje. Há uma clara
agregação de pessoas com certas características
e linguagens comuns - desde
a forma de vestir e se comportar até estilos de música preferidos, valorizando
entre outros aspectos o ver e ser visto. Tais grupos comunicam-se
através de
trocas de olhares
e passeios
rua de prostituição,
em pequenos
é um bom exemplo
em família.
No que se refere
grupos;
a Rua do Bom Jesus, antiga
de tais práticas,
à homossexualidade,
agora compartilhadas
não são raras as narrativas
na
literatura associadas às práticas homossexuais
na cidade. Segundo TREVISAN
(1986), Pierre Moreau, viajante francês que esteve no Brasil no século XVII,
já descrevia
a "vida escandalosa"
dos diversos colonos estrangeiros.
Fato
semelhante
FREYRE
foi também
(1936),
mencionado
que aponta
mais tarde em Sobrados
para as estreitas
entre negros
e brancos,
proximidade
entre os sobrados - dos senhores,
- dos escravos
j
escravos
e senhores,
relações
e Mocambos,
funcionais
espacialmente
mais abastados
por
e sexuais
representada
pela
- e os mocambos
e pobres.
Figura mencionada e ridicularizada por Lopes Gama, referindo-se a um tipo masculino de
comportamento e costumes grosseiros c de mau gosto embora sempre inspirados na moda
da época, o qual igualmente ao garncnho, encontrava-se associado as atividades e movimentos
urbanos, como teatros, passeios públicos, bares, lojas, entre outros. Ver: GAMA, Lopes. "O
que é ser pelintra", in: MELLO, 1996, pp. 377-383.
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Um registro mais recente foi a experiência em 1961 do argentino Túlio
Carella, contratado como professor de Direção e Cenografia na Escola de
Teatro: "O notável nessa cidade é a mistura do metropolitano e selvagem,
do progressista
e arcaico.
Vênus deitada,
Urano nas esquinas"
(TREVrSAN, 1986). Em seu diário, relata as práticas homossexuais em diversos espaços públicos do centro da cidade, em horários diversos, misturando-se
ao movimento e dinâmica da área central. Tal fato desperta a atenção para a
convivência de atividades e de interesses manifestos na cidade: tal simbiose
permite uma maior resistência e facilidade de adaptação dos diversos tipos de
práticas sexuais, diferentemente de outras territorialidades com limites e formas mais bem definidas. Atualmente, manifestações homossexuais nos bairros
centrais também apresentam-se em bares e boates em sua maioria encontramse do outro lado da ponte, no Bairro da Boa Vista, o que não implica a
presença de homossexuais nas festas, bares e restaurantes existentes nos
setores revitalizados.
Quanto às territorialidades dos travestis na área central, há atualmente
uma ocupação nas proximidades da estação ferroviária (Bairro de Santo Antônio), onde também encontram-se prostitutas. Há, no entanto, lembranças de
antigos freqüentadores a respeito de um travesti do Bairro do Recife, Lolita,
que tornou-se para alguns um símbolo de resistência às violentas investidas da
polícia na época da ditadura militar, considerada a versão nordestina de Madame
Satã: Justo, desbocado e valente. Atarracado e bicha, enfrentava, no
braço, uma guarnição da Rádio Patrulha. Vingou, em nosso nome, o ódio
que sentíamos pela instituição policial (MADUREIRA, 1995). Esse tipo de
respeito e sentido de companheirismo típicos do Bairro do Recife no passado,
demonstra a forte pecul iaridade territorial do bairro entre os anos 1950 e 1970
entre os homens que o freqüentavam.
Neste trabalho, optou-se por apontar mais detalhadamente as principais
características territoriais da prostituição feminina, por considerar os bairros sobretudo o portuário - tradicionalmente associados a esse tipo de prática. O
ofício historicamente reconhecido da prostituição, é a expressão mais objetiva
dos "amores ilícitos" que mais se associa ao espaço urbano, apresentando
relações diretas com as transformações na organização espacial. A venalidade
do corpo é uma atividade antiga, a qual mantém-se de forma adaptada às
condições sociais, culturais e jurídicas que se impõem a cada momento histórico. Sobre a prostituição, referi ndo-se ao período medieval, ROSSIA UD (1991)
expõe algumas reflexões, pertinentes ao tema ainda hoje:
a) do ponto de vista social e histórico, a qualidade mutante das relações
íntimas fundamenta o seu valor moral, atuando conjuntamente o grau variável
Permanências
e Mudanças
no Quadro de Requalificação
Espacial ...
37
de culpa (ou de sacralização) vinculado ao ato sexual e à condição social
também muito relativa da prostituta;
b) quanto ao conceito e idéia sobre tal condição social, em geral associase à mulher "que se dá publicamente, sem escolher, por dinheiro", reduzindo
a atividade da prostituta a uma atitude coagida, a um estado de miséria ou
pobreza; a uma redução do indivíduo ao estado de objeto. Nos relatos sobre
as zonas de prostituição, percebe-se que, embora estas situações sejam freqüentes, muitas vezes prevalecem outras formas de interpretação, seja pelas
próprias prostitutas, seja pelos usuários de seus serviços.
c) quanto ainda à relação entre sociedade e prostituição, ROSSIAUD
(J 991) adverte que, nos séculos XII e XIII, "o mundo dos amores venais
nutria-se com a riqueza e diversificava-se com os bens e cultura", sendo
portanto a prostituição um produto direto da própria condição prevalecente da
sociedade naquele momento, fruto de uma valorização urbana, dentro de uma
perspectiva expansionista mercantil. Guardadas as devidas proporções históricas, antropológicas e de outras ordens, pode-se entender as diferentes posturas
sociais em relação às zonas de prostituição na cidade do Recife de acordo com
o seu desenvolvimento sócio-espacial, como será apontado a seguir.
TREVISAN (1986) lembra que Recife era considerado o maior centro
de prostituição da América no século XVII; seus bordéis eram freqüentados
por uma clientela composta de marinheiros e soldados mas também de autoridades locais, conselheiros e membros da administração colonial. Muitas de
suas prostitutas de então ficaram famosas, como, por exemplo, a holandesa.
Ao longo da história recente ela cidade, muitas foram as fases e as relações
ela prostituição com a organização ela cidade. A seguir, serão citados dois
momentos: o seu apogeu, associado à imagem elo bairro portuário do Recife e
à elite intelectual e política local; e o momento de dispersão posterior aos anos
70, quando novos perfis de prostituição aparecem no cenário urbano.
a) O apogeu da prostituição
no Bairro do Recife
A primeira metade do século XX foi o momento de maior vigor do
Bairro do Recife. A prostituição na área central iniciava-se nos bares situaelos
à Av. Guararapes e nas imediações elas pensões de baixa renda no bairro de
São José. No entanto, a chamada "zona" de prostituição propriamente dita
localizava-se nas proximidades da ponte em direção ao Bairro do Recife, nas
Avenidas Marquês de Olinda e Rio Branco, as quais eram zonas intermediárias
ou de transição entre a cidade e as ruax onde predominavam as pensões, tais
como as Ruas do Bom Jesus, Barbosa Lima e da Guia. Havia, portanto, uma
articulação espacial entre os bairros centrais, com itinerários estratégicos bem
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definidos através das pontes. Um antigo freqüentador relata:
o percurso da boemia normalmente começava no centro da cidade
do Recife, no 'Savoy', 110 'Brahma Chopp', e outros bares aqui do
centro. Então normalmente, as pessoas entravam neles, tomavam um
drinque etc. e coisa, e depois de uma cerra hora todo mundo ia à
procura dessa boemia do 'basfond', Normalmente o pessoal atravessava a ponte. Chamavam o raio leste da ponte. Ia todo mundo
para lá e ali tinham vários pontos: linha o 'Chantecler, o 'Moulin
Rouge', a 'Pensão 50', a pensão de 'Maria Magra' (MADUREIRA,
1995, p. 44).
Na rua do Bom Jesus, onde também encontravam-se outros tipos de
atividades, como o comércio de importados da famosa Botica Francesa, a
Associação Comercial e Sindicato de Práticos (estes dois últimos ainda existentes) que funcionavam durante o dia, havia as chamadas casas de "má
fama" que abriam à noite. Tal como em outras áreas portuárias e comerciais,
ali acontecia a iniciação social, intelectual e sexual de jovens rapazes locais;
algumas inovações da época, como a radiola de ficha e as primeiras uisquerias
faziam do Bairro do Recife, em particular, um território boêmio requintado e de
alto nível. As mulheres que freqüentavam o bairro em geral eram prostitutas
ou mulheres não aceitas socialmente, devido ao seu passado, status social ou
condição financeira. D. Maria Magra, ex-cafetina e dona de pensão na década
de 1940, conta:
A prostituição era muito diferente (...). As mulheres andavam muito
bem vestidas, usavam roupo nova, vestidos longos, meias, jóias.
Tinha algumas do interior mas a maioria era tudo daqui do Recite.
Mas não só tinha as mulheres perdidas não. Tinha muita funcionária da fazenda que também ia para minha casa.
(o
Na década de 1950, debates culturais e políticos eram realizados nos
bares e em restaurantes internacionais do Bairro do Recife, onde havia grande
movimento durante as noites com perfil bastante diversificado de freqüentadores.
A central idade funcional e espacial do bairro do Recife, associada ao seu
relativo "isolamento" da cidade - bem definido pela presença do mar e dos rios
- favorecia o movimento de outros diversos tipos masculinos urbanos além da
ó.
Entrevista de Maria Wanderley Simões (Maria Magra): "Tudo o que lenho e sou, devo à
Zona", Jornal do Commércio, Caderno Cidades, 09.05.1999, p. 6.
Permanências
e Mudanças
elite intelectual
no Quadro
de Requalificação
e política mencionada:
porto do Recife; estudantes
marinheiros
de escolas
discussões
e funcionários
do
além dos universitários
da Faculdade
de
de relevância
Ali nas
escolas
Homem
tismo com a
colegas
do bairro
"protetores".
de idéias,
tinham
igualmente
Maria Magra menciona
Essa casa eu
Ele foi criado
encontrou na
um cantinho
ajudo ".
"zona",
muitas
a presença
e manutenção
entre outras
produ-
diferenciados,
vezes
antigos
de políticos
da sua primeira
comparticonhecidos
e a sua importânpensão:
montei com a ajuda do ex-governador Nilo Coelho.
por minha mãe, em Petrolina. Num certo dia, ele me
rua e me reconheceu. (...). Ele disse: 'Se você achar
aqui, bote para eu levar meus amigos, que eu lhe
Há hoje, nas lembranças
circulação,
poesias,
perfis muito
com seus companheiros,
cia para o funcionamento
antiga
teorias,
local:
mesas de bar; muitas vezes surguun manifestos literários,
literárias eram criadas ali, como meu próprio irmão Ytterbio
Siqueira, que era poeta, que criou uma escola - o Absolucriado numa mesa de bar por ele, Audálio Alves e (...) até
presença de Carlos Pena Filho e outros mais, que eram
de faculdade',
As prostitutas
lhando
escritores; funcionários públicos em
definia contamos
de um território -
com os limites do Bairro do Recife - relativamente
neutro
em relação à cidade, propiciando
um cenário favorável
a
e desenvolvimento
ções culturais
39
000
visitantes
Direito (Bairro da Boa Vista); jornalistas;
geral. O intenso movimento de pessoas
quase coincidente
e particularizado
Espacial
um lirismo
de cafetinas,
nostálgico
quase um sentimento
prostitutas
com relação
de pertencimento
e freqüentadores
aos cabarés
a uma grande
da
e às ruas de
família,
com
códigos éticos e sociais muito bem definidos: havia encontros marcados entre
parceiros, muitas vezes já estabelecidos
como fixos, como aponta uma antiga
garçonete:
"A postura dos boêmios
gente já tinha aquele par certo "",
Esse tipo de relação
ção dos espaços,
Entrevista
Entrevista
~ Entrevista
7
K
havendo
inlerpessoal
era uma postura
acabava
de namorado...
por gerar efeitos
pois elos de identificação
do jornalista Silleno Siqueira. Ver: MADUREIRA,
de Maria Magra, op. cit., 1999, p. 6.
de Maria Magra op. cii, 1999, p. 6.
e vinculação
1995.
na apropriaentre pessoas,
a
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ambientes e atividades, promovendo espécie de campo de atração no bairro
onde os sentimentos humanos mais comuns são explorados, tal como o medo
e o desejo, compartilhamento.
b) Prostituição
Revitalização
residual
nas áreas
centrais:
os efeitos
da
A prostituição espacialmente localizada nas ruas do bairro do Recife dos
anos 50, contrastam com as atuais formas e territorializações do sexo na área
central: de um lado, a permanência de grupos localizados em antigos pontos de
encontro e de passagem, como na Praça da Independência durante o dia
(próxima à sede do Diário de Pernambuco) e em áreas comerciais ociosas à
noite como, a rua da Concórdia (Bairro de Santo Antônio); de outro lado, as
novas práticas pulverizadas pela cidade, em pontos turísticos, reencontrando no
Bairro do Recife o ambiente propício para sua fixação. Assim, o termo "prostituição residual" será aqui utilizado para referir-se às diferenças comparativas
entre as práticas de prostituição anteriores aos planos de revitaJização e aquelas que ainda resistem e se renovam com o passar do tempo nos bairros
centrais.
Hoje, a prostituição não mais está vinculada às áreas centrais das grandes cidades. Outros bairros, como é o caso do Bairro de Boa Viagem (Av. Boa
Viagem, Av. Conselheiro Aguiar, entre outras), que concentram hotéis para
turistas, tanto quanto motéis, assim como apartamentos espalhados em toda a
cidade, sobretudo nos bairros mais nobres, divulgados através de anúncios de
jornal apontam para uma fragmentação destas territorialidades, no passado
restritas a espaços específicos da cidade.
Um amplo quadro de práticas sexuais tornam-se comuns nas grandes
cidades e já não se restringe às prostitutas das antigas zonas portuárias ou aos
travestis de ruas desertas: são pessoas que atendem à domicílio a partir de
divulgação em anúncio de jornais, ou ainda através de serviços telefônicos e
outros meios de comunicação. Segurança, condições sócio-econômicas precárias, mudanças nos padrões morais da sociedade e facilidade de acesso e
difusão da informações são, de forma genérica, os motivos pelas transformações das atividades de prostituição nas áreas centrais, o que abre um amplo
leque de novas opções de relações interpessoais, as quais aparentemente já
não necessitariam do espaço - material - para sua realização. No entanto, um
breve caminhar pela cidade, inclusive em áreas revitalizadas vêm comprovar
que o trottoir é ainda um dos meios mais utilizados para relações venais.
Importante considerar também J permanência simbólica da territorialidade,
mesmo que os gmpos ou atividades que a definiram já não se apropriem
daquela porção de espaço. Ruas de prostituição do passado e atualmente
Permanências
e Mudanças
no Quadro de Requalificação
Espacial
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000
revitalizadas, como é o caso da Bom Jesus, podem manter um legado histórico
para a população. Se, por um lado as áreas centrais passaram a atender
famílias de classe média, inclusive feminina e infanto-juvenil, por outro lado,
igualmente os homens de tais famílias têm lembranças de suas experiências,
passeios e convívios do passado, o que parece evocar sentimentos diversos e
contraditórios: a saudosa nostalgia de uns; a sensação de reconquista - e
curiosidade - de um espaço, outrora do "pecado".
Como foi visto, as territorialidades do sexo compõem uma complexa
trama que se confunde com outras formas de apropriação do espaço. No caso
de metrópoles como o Recife, tal complexidade se exacerba, sobretudo em
áreas como os centros das cidades. Percebe-se, no entanto, que há níveis de
aceitação e tolerância diferenciados por parte da população em geral e do
planejamento urbano, gerando resultados diversos na organização espacial. A
cada espaço, é permitida uma forma de expressão visível, embora existam
outras, inacessíveis a um olhar mais rápido. É o caso da prostituição na atual
rua do Bom Jesus, agora voltada a uma população diferenciada àquela dos
anos 1950. Em todos os casos, como em outras territorialidades, mencionadas
ou não neste trabalho, são expressões associadas a determinados espaços da
cidade, manifestando-se representações alegóricas de prazer através de tais
territórios (ver quadro abaixo).
Representações
QUADRO 1
e práticas de territorialidades
Ancoramento
Sedução
socialmente
Travestis
aceita
e
homossexuais
Prostitutas
do sexo no bairros centrais
Representações
Objeti ficação
Transitoriedade
Alegoria
Visibilidade
controlada
Ocupação de áreas da
moda, visíveis, noticiadas
pela mídia
Transitoriedade
Espaços
Visibilidade
controlada
Espaços de passagem;
Ruas com pouco
movimento (noites)
Transitoriedade
Visibilidade
controlada
Arcas portuárias;
Areas da moda
Práticas Territoriais
Santo Antônio:
Rua Nova
Bairro do Recife:
Rua do Bom Jesus;
Rua do Apolo
Marquês de Olinda
Bairro do Recife
(passado e presente)
Cinema Glória (atual
Vitória)
Guararapes
Rua da Concórdia
(S. Antônio)
Bairro do Recife;
Ruas e praças de Santo
Antônio e São José
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As atitudes comuns em relação às práticas sexuais, sobretudo àquelas
consideradas como "desvio" social (prostituição, por exemplo), podem ser classificadas em dois tipos básicos de reação: uma, de negação declarada, ativa do
ponto de vista das ações de combate e controle social, a qual pode induzir à
produção de ações transformadoras mais profundas e radicais, tal como a
higienização social da qual há registros desde o século XIX até os dias recentes. Como resultado, verificam-se transformações sócio-espaciais de curto e
médio prazo, promovidas pelo planejamento, acompanhadas de processos de
deslocamentos destas populações "indesejadas" através de ações de desapropriações e "expulsão branca", promovida pela revalorização de espaços
revitalizados, por exemplo; outra, de negação mais silenciosa e passiva, porém
excludente e segregadora, a partir de preconceitos que acabam sendo associados aos territórios produzidos; esta reação está associada à indiferença dissimulada da sociedade, possibilitando uma segregação do espaço mais lenta, a
médio ou longo prazo e desencadeando um processo contínuo de degradação
física e social dos bairros, nos quais as atividades, pessoas e espaços acabam
perdendo o seu vigor, tanto do ponto de vista físico, quanto moral em relação
à cidade. Os espaços tornam-se associados a tais grupos e suas atividades:
é o que se verifica da experiência da prostituição no Bairro do Recife na
década de 1970. De qualquer forma, importa lembrar que as práticas sexuais
fazem parte da dinâmica urbana, seja do ponto de vista comercial, seja como
integração social, com seu forte conteúdo social e econômico.
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