Permanências e mudanças no quadro de requalificação
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Permanências e mudanças no quadro de requalificação
PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS NO QUADRO DE REQUALIFICAÇÃO ESPACIAL DE CIDADES BRASILEIRAS: O CASO DAS TERRlTORIALIDADES DO SEXO NA ÁREA CENTRAL DO RECIFE Heleniza Ávila Campos" Urban renewal prograrns and their impact on the territorialitíes of prostitution in central Recife In the last decade, Recife's city center has been the preferential target of a series of urban renewal programs. These programs have redefined uses, functions and meanings of severa! parts of lhe eity center. An important activity in pre-urban renewal times, prostitution has been seriously affected by such spatial changes and has now become almost a residual practiee. Introdução Este trabalho expõe algumas reflexões apresentadas na tese defendida em dezembro de 1999, no Programa de Pós-graduação em Geografia da UFRJ, que teve como ênfase a abordagem das permanências e mudanças nas áreas centrais das metrópoles do Brasil, tendo como foco empírico a cidade do Recife (PE). Partindo da investigação das diferentes formas de apropriação por práticas tradicionalmente associadas a espaços de áreas centrais, buscouse analisar os efeitos das intervenções públicas e privadas, planejadas ou não, sobre a organização sócio-espacial. As recentes intervenções em áreas centrais têm como pano de fundo os contrastes intra e interurbanos mais acentuados e complexos em sua composição e articulação, inclusive em moldes internacionais. A reestruturação de economias nacionais e urbanas no nível internacional tem se apoioado em diferentes modalidades de serviços, com destaque para o lazer, e entretenimento. Observam-se, nesse contexto, tentativas de construção de novos paradigmas relacionados à idéia de desenvolvimento sócio-espacial. A articulação de asArquiteta, doutora em Geografia Humana pela UFRJ. sob orientação do Prof. Dr. Marcelo L. de Souza e professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISC (RS). EmaiJ: [email protected]. 26 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 25-43, juJ./dez., 2000 pectos relacionados à cultura local com interesses globais - via inovações tecnológicas atinentes à valorização e ao reconhecimento de particularidades constitui-se em fatores viabilizadores de um campo de investimentos e de interesse da sociedade contemporânea: a dimensão cultural das grandes metrópoles. Essas propostas com ênfase no consumo têm privilegiando os espaços intraurbanos mais tradicionais, seletivamente escolhidos para corresponderem a uma imagem de cidade, ao mesmo tempo global e particular. Ressurge, assim, o interesse em investir em antigos setores comerciais das áreas centrais - a partir de planos de revitalização. As características predominantes dos bairros de áreas centrais em geral definem territorialidades específicas relativas à dinâmica sócio-espacial, predominantemente comercial, que podem subverter, neutralizar e/ ou potencializar projetos e intervenções "revitalizadores". Com vistas a investigar tais aspectos de bairros centrais, privilegiou-se o estudo de territorialidades no Bairro do Recife, Santo Antônio e São José. O estudo das transformações e permanências desses espaços em áreas centrais, levou em conta alguns aspectos, tais como: As intervenções previstas para o Bairro do Recife tinham como objetivo principal a transformação da área em um centro moderno de serviços e atividades comerciais, contemplando espaços de lazer e diversão para a população da cidade e para turistas e sinalizando para a conservação do patrimônio histórico, através de uma nova "vitalidade econômica" I, numa área que, desde o final dos anos 1970, apresentava-se em avançado processo de degradação física, social e econômica. Numa tentativa de parceria com investidores privados, foram implementadas diversas ações no bairro, além de novos empreendimentos com a intenção de atrair consumidores e novos freqüentadores para uma área que, até então, havia sido freqüentada por antigas prostitutas e trabalhadores do porto. Pretendia-se assim, apresentar à sociedade e a potenciais novos investidores uma boa "imagem" da área central, dentro de princípios internacionalmente reconhecidos. A nova face do bairro portuário do Recife agora é composta por outros aspectos, tais como projetos com ênfase no turismo. A construção de um Terminal Marítimo de Passageiros - já em execução - é um exemplo de tentativa de ampliação do consumo na área dirigido a um outro grupo social composto de turistas, inserindo Pernambuco na rota dos cruzeiros marítimos internacionais". 1 2 PREFEITURA DA CIDADE DO RECIFE. Recife 2000: propostas para a cidade, Recife, fev., 1997. Ver "Governo tem estratégia para estimular comércio", in: Jornal CC News, ano I, n" 11,julho de 1999, p. L. Permanências e Mudanças no Quadro de Requalificação Espacial ... 27 No caso das imediações da avenida Dantas Barreto (bairros de Santo Antônio e, sobretudo, São José), há diferenças consideráveis quanto aos objetivos de revitalização: visava-se fortalecer e "resgatar" a área enquanto pólo de atração e integração social para a cidade - a despeito do conjunto de diferenças que peculiarizam esta área, tais como, usos e práticas comerciais tradicionalmente consagrados, conferindo-lhe uma vitalidade própria e já tradicional, de amplitude regional e de forte resistência às mudanças impostas por fatores externos. Agentes e situações de utilização do espaço urbano típicos do bairro mais popular, considerados indesejáveis e/ou incompatíveis com a idéia de desenvolvimento tradicionalmente prevalecente, que suscitam algumas ações do planejamento relati vas ao controle social e à imposição de ordens préestabelecidas. Tais planos, embora diferentes em seus objetivos e estratégias, trazem em comum a intensidade e amplitude dos projetos desenvolvidos, em função das particularidades espaciais, dos objetivos pré-determinados nas propostas de planejamento ou, ainda, da viabilidade dos projetos. Ao analisar tais práticas e suas repercussões no espaço, pretende-se evocar a necessidade da apreensão da realidade urbana sob diversos ângulos de sua complexidade - incluindo a dimensão cotidiana, enquanto fontes significativas no estudo das cidades contemporâneas. O presente texto é composto de dois itens: o primeiro, diz respeito à fundamentação teórica relativa à importância das práticas cotidianas dos freqüentadores da cidade como fatores pertinentes à elaboração das territorialidades, a partir da diferenciação sócio-espacial particular de cada grupo social. No segundo item, discute-se alguns exemplos das teritorialidades do sexo na área central do Recife. 1. Práticas e diferenciação sócio-espacial: territorialidades em áreas centrais. As territorialidades, ou seja, o conjunto de atividades e práticas através das quais são estabelecidos os territórios, criam "campos de força" representativos das relações dos diversos grupos sociais com um determinado espaço - os quais passam a constituir-se em territórios. Estas relações podem ser observadas no seu interior - na definição da identidade entre membros de grupos sociais - ou com o seu exterior em relação a outros territórios relações entre grupos - ou seja, na troca, diferenciação e dominação face à existência de outros grupos (SOUZA, 1995). Tais comunicações e formas de controle expressam a dinâmica sócio-espacial - desigual e heterogênea - do 28 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 25-43, julJdez., 2000 espaço urbano, sobretudo quando são observadas áreas tão complexas, social e culturalmente, como as áreas centrais. A expressão desses campos de força pode ser feita através de diversas formas de representação e práticas sócioespaciais. As territorialidades - mais especificamente as humanas - possuem três elementos básicos fundamentais: as formas de expressão de poder; a identificação simbólica do território para seus componentes; e as formas de comunicação de cada territorialidade com o exterior seguem fins específicos, tais como sobrevivência material, melhores condições de vida, associados ideologicamente, de forma mais ou menos consciente, a contextos sócio-econômicos, políticos e culturais mais amplos (CHISHOLM & SMITH, 1990). As relações sociais dos seres humanos sempre representaram expressões de força e poder para além dos atributos físicos e ambientais nos quais se estabelecem. SOUZA (1995) assinala que a territorialidade é a expressão geográfica primária de poder social, através da dei imitação e afirmação do poder de determinado grupo sobre o território. As territorialidades trazem implícito um forte significado de pertinência do grupo a uma porção de espaço, que muitas vezes se expressa através de modos específicos de comportamento. Trata-se de uma construção social com um significado específico (subsistência, ideologia política, poder econômico, entre outros) para os membros de cada grupo enquanto uma identidade particular. Ao mesmo tempo, essas relações indivíduo-território servem como forma de comunicação de limites e códigos comportarnentais aos indivíduos que não compartilham dos mesmos interesses e expectativas. Ao longo deste trabalho serão discutidas as micro-territorialidades do sexo, freqüentes e tradicionais em áreas centrais. A identificação simbólica refere-se aos diferentes significados e valores que o espaço assume para os diversos grupos sociais na busca de identificação; esta relação simbólica está muito diretamente associada às representações sociais. Essas representações são formadoras de uma trama complexa de diferentes significações que vão influenciar, motivar e mesmo justificar atitudes de resistência, defesa, animosidade dos grupos sociais em relação ao meio onde se encontram; do mesmo modo, as representações, construídas social e espacialmente, podem promover condições de atratibilidade. As motivações para a definição de territorialidades estão relacionadas com as diferentes formas de relação dos grupos com o território (forma de uso; organização; significado que ele pode assumir em diferentes momentos), traduzindo ao mesmo tempo expectativas particulares interiores aos grupos - prazer, necessidade, contingência, obrigação, ideologia - como também exteriores a eles - funcionais, simbólicas, sociais, físico-ambientais, sócio-econômicas. Permanências e Mudanças no Quadro de Requalificação Espacial ... 29 Quanto às formas de comunicação com o exterior, estas podem ocorrer não apenas no nível do comportamento, mas também através de ações correspondentes à materialização no espaço dessas relações abstratas e subjetivas, constituindo assim em práticas sócio-espaciais. Estas assumem, ao mesmo tempo, um papel de interação, na medida em que une os indivíduos em grupos que possuem motivações comuns; e diferenciação, estabelecendo limites e expressando desigualdades através de comportamentos, formas de usar / transformar o espaço. SMITH (1990) lembra que esses grupos são, em sua própria estrutura, heterogêneos". Os modos como as territorialidades podem ser percebidas não se apresentam apenas fisicamente com a definição de limites concretos. O exercício de reivindicação dos grupos, seja através de manifestos expressos, seja através de práticas comportamentais, constitui-se num instrumento básico e coexiste com a ocupação espacial. A própria denominação dos territórios já estabelece uma relação de poder sobre determinado espaço. O poder diz respeito às diversas formas de dominação - abstratas e multiformes - inerentes às relações sociais, sobretudo na sociedade capitalista, não se referindo apenas a expressão de autoridade através de repressão e do impedimento agressivo, mas produzindo efeitos profundos e complexos no nível do desejo e também do conhecimento. Para FOUCAULT (in: GORDON, 1980), essas formas de dominação são possíveis através de procedimentos disciplinares impessoais e rotinizados, os quais organizam o espaço social através de operações de vigilância e controle. As manifestações de poder estão associadas a tipos de relações (produção, família, sexualidade entre outras) de tal forma que cada indivíduo dispõe de certo poder, podendo se tomar um veículo de transmissão de poderes mais amplos. Dessa forma, redes hierárquicas de poder se entrecruzam no dia-a-dia, assumindo formas complexas na sociedade. Suas interconexões delineiam condições gerais de dominação, a qual é organizada dentro de uma forma mais ou menos coerente com as ideologias de grupos dominantes. Tais procedimentos disciplinares são mais facilmente perceptíveis em instituições (prisões, quartéis, hospitais, escolas), interferindo na conduta pessoal do indivíduo, sendo também assimilados em outros âmbitos da vida social". O símbolo e a materialização desta forma de poder foi o panáptico, modelo de construção cuja ordem espacial preestabelecida permitia controle e domínio das atividades l 4 SMITH, D. M. "lntroduction: the sharing and dividing of geographical space", in: CHISHOLM & SMlTH, 1990. FOUCAULT, M. Discipline and Punishment - the birth of the prison, London: Penguin Books, 1975. 30 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n'' 9, pp, 25-43, juJ./dez., 2000 e comportamentos de grupos observados, utilizado em prisões, hospitais, escolas, mas assimilados por outros níveis institucionais mais complexos, como Estado e empresas. A disciplina na sociedade moderna tomou-se uma poderosa fórmula de dominação, através de uma manipulação calculada de seus elementos, gestos, comportamentos humanos, produzindo indivíduos "práticos" e "dóceis", ampliando o desempenho físico em termos econômicos, ao mesmo tempo em que diminui a força e articulação política dos indivíduos envolvidos. Assim, as relações de poder podem servir a interesses econômicos, não necessariamente porque estejam a seu serviço particular, mas porque elas são capazes de serem utilizadas em estratégias mais amplas e globais. O estímulo ao consumo nas cidades contemporâneas tem incentivado a estetização do espaço como forma de expressão de poder, na medida em que o consumidor passa a ser instrumento de ação e desenvolvimento de poderes hegernônicos mais amplos como as corporações; empresas multinacionais; e mesmo governamentais. Para FOUCAULT (in: GORDON, 1980), a disciplina acaba assumindo um caráter muito mais complexo - do ponto de vista cultural e social - de subjugação do indivíduo, do que o mero ato violento, mediante uma série de meticulosas táticas, integradas em estratégias anônimas, de forma que acabam por homogeneizar a ordem social. A crítica ao poder desenvolvida por Foucault aponta para formas de discipJinamento vinculadas ao aparato estatal ou às regulamentações legais - tem representado o poder do ponto de vista negativo de proibição, seja no nível do discurso, ou no nível da autoridade agressiva e violenta. Segundo FOUCAULT (1992), já no século XVIII o poder - representado pelo Estado - tinha como principal desafio o exercício de funções específicas de disciplinamento do espaço urbano, tais como: 1) ordem, 2) o crescimento canalizado das riquezas; e 3) condições de manutenção da saúde em geral, acrescentadas às funções judiciária e de estabelecimento da paz e guerra do final da Idade Média. Tais funções - ainda fortemente presentes nos debates recentes sobre planejamento urbano - naquele contexto, colocavam à frente a atuação da medicina como instância de controle social, sobre o espaço urbano em geral, considerado o mais perigoso. As condições de higiene para os estrangeiros que chegavam no Recife no século XVIII eram precárias, promovendo uma má imagem da cidade. MIRANDA (1998, p. 14) lembra o desencanto de alguns viajantes em relação às condições da cidade do Recife, tal como George Garder, que considerou "a cidade de Pernambuco (...) é pouco recomendável a quem não tem negócios a tratar. Os prédios são mais altos do que os do Rio e as ruas, na maior parte, ainda mais estreitas e, por certo, igualmente sujas". Tal situação implicou nas medidas propostas pelo Conselho de Salubridade Pública Permanências e Mudanças no Quadro de Requalilicação Espacial ... 31 (criado em 1845) para ordenar a cidade do Recife foram, entre outras: aterramento de áreas pantanosas e de águas estagnadas; · vigilância na limpeza de praias, praças e ruas; · fiscalização do porto, a fim de evitar a entrada de pessoas de outros países contaminadas com doenças epidêmicas; · retirada de mendigos e prostitutas das ruas da cidade, considerados como responsáveis pela disseminação de várias doenças entre a população e de introduzirem bebidas alcoólicas e armas nas cadeias públicas; · retirada de fundições e oficinas de ferreiros, caldeiros, latoeiros, etc., da área central. Tais procedimentos como aponta MIRANDA (1998) assemelham-se às indicações da polícia médica (Alemanha, primeira metade do século XVIII) e da medicina urbana (França, 2a metade do século XVIII) citadas por FOULCAULT (1992). Embora FOUCAULT considere que não há relações de poder sem resistência, esta aparece como comportamento esperado dentro de expectativas inerentes ao próprio dominador, não representando mudanças no quadro de dominação estabelecido. A resistência acompanha os procedimentos localizados de poder que ainda podem ser adaptados e transformados por estratégias globais. No entanto, CERTEAU (1994) acredita que há formas de alteridade, no nível das táticas, que representam resistência às estratégias, com muito maior poder de resistência do que considera FOUCAULT. A crítica de CERTEAU (1994) em relação à concepção foucaultiana tem como princípio o poder inerente às práticas cotidianas, cuja lógica foi analisada e discutida inicialmente por BOURDIEU (1977), que propõe uma abordagem epistemológica específica - a praxiologia - para focalizar as práticas sociais enquanto mediação entre agente social e sociedade. Mas BOURDIEU (1977) não pretende rejeitar o conhecimento objetivista, e sim ultrapassá-lo: nesse sentido, ele se afasta da perspectiva fenomenológica humanista. No nível das pesquisas sociais da mediação entre teorias e práticas, o foco é a lógica das práticas relacionadas do dia-a-dia. As pessoas não obedecem a regras simplesmente, nos seus cotidianos: elas adquirem pontos de vista específicos através de um processo complexo de experiência e ajustes, ao qual BOURDIEU (1977) denomina de "habitus": um sistema constituído socialmente de estruturas cognitivas e motivações das próprias pessoas usuárias. As práticas e atitudes habituais, para ele, são conjuntos de idéias personificadas, sedimentadas nos estilos das pessoas nas suas vidas diárias (SHIELDS, 1992). Para BOURDIEU (1977), práticas são produtos gerados por princípios coletivos duráveis (habitus) historicamente construídos, que não seguem regras artificiais nem condutas produzidas externamente, mas códigos simbólicos 32 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 25-43, juJ./dez., 2000 muito particulares, viabilizadores da compreensão e exploração de possibilidades de combinações de uso do espaço. Assim, aspectos subjetivos da realidade social adquirem uma forma objetiva, através de ações reproduzidas no cotidiano. O habitus é um sistema subjetivo de esquemas comuns de percepção, concepção e ação, o qual é pré-condição para a materialização das práticas cotidianas, que são caracterizadas pela regularidade, sistematicidade e unidade na coordenação de ações de membros pertencentes a mesmos grupos sociais. Através de seleções de grupos sociais, feitas em relaçãova espaços, eventos e pessoas, o habitus tende a se proteger das crises e desafios críticos das transformações impostas pelas determinações gerais da sociedade. Os espaços passam a assumir um papel de apoio e, assim, garantindo a permanência e continuidade desses grupos. O habitus é a presença ativa de um conjunto de fatos e condições do passado do qual é produto, sendo responsável pela autonomia relativa dos grupos em relação a determinações externas do presente imediato. As práticas, portanto, têm urna lógica muito particular, organizadas segundo pensamentos, percepções e ações através de princípios interrelacionados, os quais se apóiam, entre outros componentes, nas experiências vividas, individuais e coletivas, acumuladas ao longo do tempo. Neste sentido, o cotidiano, antes de imprimir uma disciplina limitadora, pode ser também a base da construção da identidade dos grupos sociais. Nesta perspectiva, a improvisação, em resposta às contingências, surge como uma adaptação dos territórios às mudanças impostas por determinações gerais. Isso também não implica que novos elementos não venham a ser incorporados aos grupos, mas ao contrário, o habitus por se tratar de um princípio dinâmico, transforma as práticas e a sua espacialização. Neste sentido, os espaços públicos das cidades aparecem como espaços privilegiados das práticas sociais, na medida em que assumem papéis diferentes e socialmente diversificados. As práticas espaciais operam, portanto, verdadeiros processos de "produção de territórios" dentro do espaço urbano que lhes serve de suporte (no sentido de constante transformação e criação de composições heterogêneas dentro do mesmo), dando-lhe um caráter diverso e dinâmico no espaço e no tempo contemporâneos. A análise destas práticas pode vir a constituir possibilidades mais ricas de interpretação da cidade. 2. Territorialidades do sexo ou mapas do desejo na área central do Recife o estudo das espacial idades referentes às práticas sexuais envolve não apenas as suas manifestações no dia-a-dia das cidades, tal como a prostituição Permanências e Mudanças em zonas portuárias no Quadro de Requaliflcação ou os flertes em espaços cerra todo um conjunto reorganização complexo espacial públicos de práticas, 33 Espacial ... revitalizados, apropriações na qual todos aqueles mas en- sócio-espaciais que vivem em sociedade, e qual- quer que seja a opção sexual ou gênero, encontram-se, de uma forma ou de outra, envolvidos. Diversão, lazer, desejo, clandestinidade, anonimato são alguns dos muitos componentes do perfi I de quem define e opta por esses terri tórios. KNOPP plexidade a eles (1995) assinala envolvendo que embora os códigos é possível associados, cidades contemporâneas. aspectos: 1) Os códigos haja uma enorme sexuais das cidades, traçar alguns espaços aspectos variação e com- e grupos sociais comuns no caso das De forma sintética, aponta-se aqui para três desses sexuais expressos nas relações dos grupos e indiví- duos com a cidade estão relacionados a relações de poder, de desafio às ordens estabelecidas, de questionamento de valores; 2) Muitos conflitos e contradições das sociedades contemporâneas encontram expressão nos códigos sexuais, os quais enfatizam erótico, mas também Funcional. tanto à contestação adesão a sexualidade não apenas do ponto de vista Tais códigos estão deliberadamente expostos de alguns - muitas de outros - comprometidos, 3) Áreas e populações dade são interpretadas vezes radical simpatizantes e excludente ou curiosos - como à das diferenças; que representam "falhas" ou "desafios" para a sociecomo excitantes ou mesmo eróticas, tanto nas culturas dominantes como naquelas mais alternativas. Trata-se de setores da cidade que assumem um papel liberado em relação ao todo, com um perfil diferenciado daquele esperado ou previsto pelo senso comum, como áreas gentrificadas, áreas de cortiços entre outras. Assim, a sexualidade nas cidades de muitas sofrendo experiências influências exibicionismo, aspectos, da vida urbana da organização anonimato, desafios que só são possíveis é compreendida moderna espacial como a "erotização" ao mesmo tempo em que se manifesta: à autoridade influindo e voyeurismo, e ao poder, perigo, entre outros dentro de um complexo e denso grupo hetero- gêneo de seres humanos sócio-espacialmente localizados. Além disso, apresentam um nível complexo de relações sócio-espaciais, sendo também instrumentais na produção, reprodução e transformação dessas relações e do próprio espaço onde se estabelecem. Há algumas menos primeiro dendo político social. ponderações que envolvem qualquer lugar, as propensões de contextos e econômicos Assim, necessárias, prática culturais e condições justificar humana, inclusive são mutáveis - sócio-culturais, - interagentes é possível para situar com opções a aceitação historicamente fenô- a sexualidade: em ao longo da história depengeográficos, de ordem de determinadas até mesmo pessoal e / ou práticas em 34 Revista Terr-itório, Rio de Janeiro, alguns momentos segundo históricos e o repúdio lugar, essas condições ração socialmente em outros e contextos estabelecida ano V, n" 9, pp. 25-43, jul./dez., (ROSSIAUD, culturais entre a valorização 2000 1991). Em vão depender da ponde- de sentimentos tais como desejo, grau de culpa vinculado ao ato e às manifestações sexuais mais diversas, entre outros. A esses condicionantes subjetivos, combinam-se também aspectos relativos à condição social relativa dos agentes praticantes, o que revela o complexo quadro de análise. Embora sociológicos sões, faça-se mas apenas geográfica referências a importância ao longo deste trabalho, considerar das territorialidades de aspectos não se pretende sua influência, urbanas entre outras, das áreas centrais. prazer, sobretudo o sexual, à espacialidade ção das cidades. Não é à toa que ao tentar psicológicos aprofundar é freqüente na configuração A associação no processo identificar ou tais discus- de forma do de evolurápida e superficial os diversos grupos que procuram se diferenciar sexualmente na cidade percebe-se uma forte relação destes com bares, restaurantes específicos, ou mesmo mas, praças, esquinas. Assim, um primeiro mapeamento dessas territorialidades pode ser obtido a partir das localizações de grupos segundo seus pontos de encontro em áreas de lazer no centro. Tais são mutáveis ao longo do dia e assumem ciona características variáveis ao longo da semana. ARRAIS (1998), citando as crônicas do jornal "O Carapuceiro", menque mesmo em festas religiosas na virada do século, eram comuns manifestações raras ocasiões As janelas também de sensual idade e cortejo entre homens e mui heres, devido às em que as mulheres se expunham e partilhavam da vida social. dos sobrados permitiam de beira-rio, o contato com cumplicidade entre o privado do Capibaribe, - lugar tradicionalmente de pre- domínio da família, do recato, dos bons costumes - com o público. Sobre o referido jornal, o Padre Lopes Gama apresentava na década de 30 do século XIX uma figura pitoresca, o "garnenho". versão brasileira e nordestina da flanagem parisiense: Chama-se gamenho todo aquele individuo que não tem outro ofício, outro emprego, outro cuidado, senão embonecar-se para namorar. (...) quando vós virdes um sujeitinho, quase Melquisedeque, sem parente nem aderente e (o que ainda é mais) sem ofício dos conhecidos na república, sem indústria lícita, sem benefício, e entretanto muito asseado e faustoso, (...) passeador incessante e quase inquilino das esquinas e botequins, levando manhãs e tardes já numa botica, já numa loja, porque defronte moram umas meninas jeitosas e caroáveis de namoro, aí tendes um gamenho às direitas (GAMA, Lopes. "O que é ser gamenho", in: MELLO, pp. 55, 56). Permanências e Mudanças A existência no Quadro de Requalificação de residências próximas Espacial a atividades o passeio, fundamentado no prazer, nos flertes, tanto para homens - "gamenhos" e o "pelintra" "coquetes", ou seja, mulheres da sociedade dadas a namoricos (DANTAS, famílias, espaços sobretudo 1992). as mulheres, comerciais estimulava nas descobertas das paixões, 5 - como para mulheres - as adeptas das modas Com efeito, começam 3S ... no início a circular européias e do século, as mais livremente pelos "A pretexto de ir a compras, visitar dentista ou fotógrafo, percorriam as ruas, às vezes tomavam o bonde sozinhas" públicos: senhoritas (ARRAIS, 1998, p. 67). Tratava-se principalmente desde as "coquetes" até as senhoras de classe média. A área central, portanto, estimulava prazeres para além do consumo imediato, e de consentimento silencioso exemplo. Na virada locais comercial: do século, aos "sedutores" haviam os locais de práticas do flerte e admiração, eram comuns e "bandidos menções da honra como a Rua Nova, nos jornais e da virtude" "proibidas" por e nos livros que assediavam sobretudo as jovens senhoras, incitando a uma vigilância moral redobrada. Numa região em que a masculinidade é valorizada de forma tão acentuada, qualquer dúvida relacionada Tais práticas à honra deveria associadas aos passeios ser aplainada. públicos e às relações entre espa- ços - e relacionamentos - públicos e privados acontecem hoje. Há uma clara agregação de pessoas com certas características e linguagens comuns - desde a forma de vestir e se comportar até estilos de música preferidos, valorizando entre outros aspectos o ver e ser visto. Tais grupos comunicam-se através de trocas de olhares e passeios rua de prostituição, em pequenos é um bom exemplo em família. No que se refere grupos; a Rua do Bom Jesus, antiga de tais práticas, à homossexualidade, agora compartilhadas não são raras as narrativas na literatura associadas às práticas homossexuais na cidade. Segundo TREVISAN (1986), Pierre Moreau, viajante francês que esteve no Brasil no século XVII, já descrevia a "vida escandalosa" dos diversos colonos estrangeiros. Fato semelhante FREYRE foi também (1936), mencionado que aponta mais tarde em Sobrados para as estreitas entre negros e brancos, proximidade entre os sobrados - dos senhores, - dos escravos j escravos e senhores, relações e Mocambos, funcionais espacialmente mais abastados por e sexuais representada pela - e os mocambos e pobres. Figura mencionada e ridicularizada por Lopes Gama, referindo-se a um tipo masculino de comportamento e costumes grosseiros c de mau gosto embora sempre inspirados na moda da época, o qual igualmente ao garncnho, encontrava-se associado as atividades e movimentos urbanos, como teatros, passeios públicos, bares, lojas, entre outros. Ver: GAMA, Lopes. "O que é ser pelintra", in: MELLO, 1996, pp. 377-383. 36 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 25-43, jul./dez., 2000 Um registro mais recente foi a experiência em 1961 do argentino Túlio Carella, contratado como professor de Direção e Cenografia na Escola de Teatro: "O notável nessa cidade é a mistura do metropolitano e selvagem, do progressista e arcaico. Vênus deitada, Urano nas esquinas" (TREVrSAN, 1986). Em seu diário, relata as práticas homossexuais em diversos espaços públicos do centro da cidade, em horários diversos, misturando-se ao movimento e dinâmica da área central. Tal fato desperta a atenção para a convivência de atividades e de interesses manifestos na cidade: tal simbiose permite uma maior resistência e facilidade de adaptação dos diversos tipos de práticas sexuais, diferentemente de outras territorialidades com limites e formas mais bem definidas. Atualmente, manifestações homossexuais nos bairros centrais também apresentam-se em bares e boates em sua maioria encontramse do outro lado da ponte, no Bairro da Boa Vista, o que não implica a presença de homossexuais nas festas, bares e restaurantes existentes nos setores revitalizados. Quanto às territorialidades dos travestis na área central, há atualmente uma ocupação nas proximidades da estação ferroviária (Bairro de Santo Antônio), onde também encontram-se prostitutas. Há, no entanto, lembranças de antigos freqüentadores a respeito de um travesti do Bairro do Recife, Lolita, que tornou-se para alguns um símbolo de resistência às violentas investidas da polícia na época da ditadura militar, considerada a versão nordestina de Madame Satã: Justo, desbocado e valente. Atarracado e bicha, enfrentava, no braço, uma guarnição da Rádio Patrulha. Vingou, em nosso nome, o ódio que sentíamos pela instituição policial (MADUREIRA, 1995). Esse tipo de respeito e sentido de companheirismo típicos do Bairro do Recife no passado, demonstra a forte pecul iaridade territorial do bairro entre os anos 1950 e 1970 entre os homens que o freqüentavam. Neste trabalho, optou-se por apontar mais detalhadamente as principais características territoriais da prostituição feminina, por considerar os bairros sobretudo o portuário - tradicionalmente associados a esse tipo de prática. O ofício historicamente reconhecido da prostituição, é a expressão mais objetiva dos "amores ilícitos" que mais se associa ao espaço urbano, apresentando relações diretas com as transformações na organização espacial. A venalidade do corpo é uma atividade antiga, a qual mantém-se de forma adaptada às condições sociais, culturais e jurídicas que se impõem a cada momento histórico. Sobre a prostituição, referi ndo-se ao período medieval, ROSSIA UD (1991) expõe algumas reflexões, pertinentes ao tema ainda hoje: a) do ponto de vista social e histórico, a qualidade mutante das relações íntimas fundamenta o seu valor moral, atuando conjuntamente o grau variável Permanências e Mudanças no Quadro de Requalificação Espacial ... 37 de culpa (ou de sacralização) vinculado ao ato sexual e à condição social também muito relativa da prostituta; b) quanto ao conceito e idéia sobre tal condição social, em geral associase à mulher "que se dá publicamente, sem escolher, por dinheiro", reduzindo a atividade da prostituta a uma atitude coagida, a um estado de miséria ou pobreza; a uma redução do indivíduo ao estado de objeto. Nos relatos sobre as zonas de prostituição, percebe-se que, embora estas situações sejam freqüentes, muitas vezes prevalecem outras formas de interpretação, seja pelas próprias prostitutas, seja pelos usuários de seus serviços. c) quanto ainda à relação entre sociedade e prostituição, ROSSIAUD (J 991) adverte que, nos séculos XII e XIII, "o mundo dos amores venais nutria-se com a riqueza e diversificava-se com os bens e cultura", sendo portanto a prostituição um produto direto da própria condição prevalecente da sociedade naquele momento, fruto de uma valorização urbana, dentro de uma perspectiva expansionista mercantil. Guardadas as devidas proporções históricas, antropológicas e de outras ordens, pode-se entender as diferentes posturas sociais em relação às zonas de prostituição na cidade do Recife de acordo com o seu desenvolvimento sócio-espacial, como será apontado a seguir. TREVISAN (1986) lembra que Recife era considerado o maior centro de prostituição da América no século XVII; seus bordéis eram freqüentados por uma clientela composta de marinheiros e soldados mas também de autoridades locais, conselheiros e membros da administração colonial. Muitas de suas prostitutas de então ficaram famosas, como, por exemplo, a holandesa. Ao longo da história recente ela cidade, muitas foram as fases e as relações ela prostituição com a organização ela cidade. A seguir, serão citados dois momentos: o seu apogeu, associado à imagem elo bairro portuário do Recife e à elite intelectual e política local; e o momento de dispersão posterior aos anos 70, quando novos perfis de prostituição aparecem no cenário urbano. a) O apogeu da prostituição no Bairro do Recife A primeira metade do século XX foi o momento de maior vigor do Bairro do Recife. A prostituição na área central iniciava-se nos bares situaelos à Av. Guararapes e nas imediações elas pensões de baixa renda no bairro de São José. No entanto, a chamada "zona" de prostituição propriamente dita localizava-se nas proximidades da ponte em direção ao Bairro do Recife, nas Avenidas Marquês de Olinda e Rio Branco, as quais eram zonas intermediárias ou de transição entre a cidade e as ruax onde predominavam as pensões, tais como as Ruas do Bom Jesus, Barbosa Lima e da Guia. Havia, portanto, uma articulação espacial entre os bairros centrais, com itinerários estratégicos bem 38 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp, 25-43, juI./dez., 2000 definidos através das pontes. Um antigo freqüentador relata: o percurso da boemia normalmente começava no centro da cidade do Recife, no 'Savoy', 110 'Brahma Chopp', e outros bares aqui do centro. Então normalmente, as pessoas entravam neles, tomavam um drinque etc. e coisa, e depois de uma cerra hora todo mundo ia à procura dessa boemia do 'basfond', Normalmente o pessoal atravessava a ponte. Chamavam o raio leste da ponte. Ia todo mundo para lá e ali tinham vários pontos: linha o 'Chantecler, o 'Moulin Rouge', a 'Pensão 50', a pensão de 'Maria Magra' (MADUREIRA, 1995, p. 44). Na rua do Bom Jesus, onde também encontravam-se outros tipos de atividades, como o comércio de importados da famosa Botica Francesa, a Associação Comercial e Sindicato de Práticos (estes dois últimos ainda existentes) que funcionavam durante o dia, havia as chamadas casas de "má fama" que abriam à noite. Tal como em outras áreas portuárias e comerciais, ali acontecia a iniciação social, intelectual e sexual de jovens rapazes locais; algumas inovações da época, como a radiola de ficha e as primeiras uisquerias faziam do Bairro do Recife, em particular, um território boêmio requintado e de alto nível. As mulheres que freqüentavam o bairro em geral eram prostitutas ou mulheres não aceitas socialmente, devido ao seu passado, status social ou condição financeira. D. Maria Magra, ex-cafetina e dona de pensão na década de 1940, conta: A prostituição era muito diferente (...). As mulheres andavam muito bem vestidas, usavam roupo nova, vestidos longos, meias, jóias. Tinha algumas do interior mas a maioria era tudo daqui do Recite. Mas não só tinha as mulheres perdidas não. Tinha muita funcionária da fazenda que também ia para minha casa. (o Na década de 1950, debates culturais e políticos eram realizados nos bares e em restaurantes internacionais do Bairro do Recife, onde havia grande movimento durante as noites com perfil bastante diversificado de freqüentadores. A central idade funcional e espacial do bairro do Recife, associada ao seu relativo "isolamento" da cidade - bem definido pela presença do mar e dos rios - favorecia o movimento de outros diversos tipos masculinos urbanos além da ó. Entrevista de Maria Wanderley Simões (Maria Magra): "Tudo o que lenho e sou, devo à Zona", Jornal do Commércio, Caderno Cidades, 09.05.1999, p. 6. Permanências e Mudanças elite intelectual no Quadro de Requalificação e política mencionada: porto do Recife; estudantes marinheiros de escolas discussões e funcionários do além dos universitários da Faculdade de de relevância Ali nas escolas Homem tismo com a colegas do bairro "protetores". de idéias, tinham igualmente Maria Magra menciona Essa casa eu Ele foi criado encontrou na um cantinho ajudo ". "zona", muitas a presença e manutenção entre outras produ- diferenciados, vezes antigos de políticos da sua primeira comparticonhecidos e a sua importânpensão: montei com a ajuda do ex-governador Nilo Coelho. por minha mãe, em Petrolina. Num certo dia, ele me rua e me reconheceu. (...). Ele disse: 'Se você achar aqui, bote para eu levar meus amigos, que eu lhe Há hoje, nas lembranças circulação, poesias, perfis muito com seus companheiros, cia para o funcionamento antiga teorias, local: mesas de bar; muitas vezes surguun manifestos literários, literárias eram criadas ali, como meu próprio irmão Ytterbio Siqueira, que era poeta, que criou uma escola - o Absolucriado numa mesa de bar por ele, Audálio Alves e (...) até presença de Carlos Pena Filho e outros mais, que eram de faculdade', As prostitutas lhando escritores; funcionários públicos em definia contamos de um território - com os limites do Bairro do Recife - relativamente neutro em relação à cidade, propiciando um cenário favorável a e desenvolvimento ções culturais 39 000 visitantes Direito (Bairro da Boa Vista); jornalistas; geral. O intenso movimento de pessoas quase coincidente e particularizado Espacial um lirismo de cafetinas, nostálgico quase um sentimento prostitutas com relação de pertencimento e freqüentadores aos cabarés a uma grande da e às ruas de família, com códigos éticos e sociais muito bem definidos: havia encontros marcados entre parceiros, muitas vezes já estabelecidos como fixos, como aponta uma antiga garçonete: "A postura dos boêmios gente já tinha aquele par certo "", Esse tipo de relação ção dos espaços, Entrevista Entrevista ~ Entrevista 7 K havendo inlerpessoal era uma postura acabava de namorado... por gerar efeitos pois elos de identificação do jornalista Silleno Siqueira. Ver: MADUREIRA, de Maria Magra, op. cit., 1999, p. 6. de Maria Magra op. cii, 1999, p. 6. e vinculação 1995. na apropriaentre pessoas, a 40 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 25-43, jul./dez., 2000 ambientes e atividades, promovendo espécie de campo de atração no bairro onde os sentimentos humanos mais comuns são explorados, tal como o medo e o desejo, compartilhamento. b) Prostituição Revitalização residual nas áreas centrais: os efeitos da A prostituição espacialmente localizada nas ruas do bairro do Recife dos anos 50, contrastam com as atuais formas e territorializações do sexo na área central: de um lado, a permanência de grupos localizados em antigos pontos de encontro e de passagem, como na Praça da Independência durante o dia (próxima à sede do Diário de Pernambuco) e em áreas comerciais ociosas à noite como, a rua da Concórdia (Bairro de Santo Antônio); de outro lado, as novas práticas pulverizadas pela cidade, em pontos turísticos, reencontrando no Bairro do Recife o ambiente propício para sua fixação. Assim, o termo "prostituição residual" será aqui utilizado para referir-se às diferenças comparativas entre as práticas de prostituição anteriores aos planos de revitaJização e aquelas que ainda resistem e se renovam com o passar do tempo nos bairros centrais. Hoje, a prostituição não mais está vinculada às áreas centrais das grandes cidades. Outros bairros, como é o caso do Bairro de Boa Viagem (Av. Boa Viagem, Av. Conselheiro Aguiar, entre outras), que concentram hotéis para turistas, tanto quanto motéis, assim como apartamentos espalhados em toda a cidade, sobretudo nos bairros mais nobres, divulgados através de anúncios de jornal apontam para uma fragmentação destas territorialidades, no passado restritas a espaços específicos da cidade. Um amplo quadro de práticas sexuais tornam-se comuns nas grandes cidades e já não se restringe às prostitutas das antigas zonas portuárias ou aos travestis de ruas desertas: são pessoas que atendem à domicílio a partir de divulgação em anúncio de jornais, ou ainda através de serviços telefônicos e outros meios de comunicação. Segurança, condições sócio-econômicas precárias, mudanças nos padrões morais da sociedade e facilidade de acesso e difusão da informações são, de forma genérica, os motivos pelas transformações das atividades de prostituição nas áreas centrais, o que abre um amplo leque de novas opções de relações interpessoais, as quais aparentemente já não necessitariam do espaço - material - para sua realização. No entanto, um breve caminhar pela cidade, inclusive em áreas revitalizadas vêm comprovar que o trottoir é ainda um dos meios mais utilizados para relações venais. Importante considerar também J permanência simbólica da territorialidade, mesmo que os gmpos ou atividades que a definiram já não se apropriem daquela porção de espaço. Ruas de prostituição do passado e atualmente Permanências e Mudanças no Quadro de Requalificação Espacial 41 000 revitalizadas, como é o caso da Bom Jesus, podem manter um legado histórico para a população. Se, por um lado as áreas centrais passaram a atender famílias de classe média, inclusive feminina e infanto-juvenil, por outro lado, igualmente os homens de tais famílias têm lembranças de suas experiências, passeios e convívios do passado, o que parece evocar sentimentos diversos e contraditórios: a saudosa nostalgia de uns; a sensação de reconquista - e curiosidade - de um espaço, outrora do "pecado". Como foi visto, as territorialidades do sexo compõem uma complexa trama que se confunde com outras formas de apropriação do espaço. No caso de metrópoles como o Recife, tal complexidade se exacerba, sobretudo em áreas como os centros das cidades. Percebe-se, no entanto, que há níveis de aceitação e tolerância diferenciados por parte da população em geral e do planejamento urbano, gerando resultados diversos na organização espacial. A cada espaço, é permitida uma forma de expressão visível, embora existam outras, inacessíveis a um olhar mais rápido. É o caso da prostituição na atual rua do Bom Jesus, agora voltada a uma população diferenciada àquela dos anos 1950. Em todos os casos, como em outras territorialidades, mencionadas ou não neste trabalho, são expressões associadas a determinados espaços da cidade, manifestando-se representações alegóricas de prazer através de tais territórios (ver quadro abaixo). Representações QUADRO 1 e práticas de territorialidades Ancoramento Sedução socialmente Travestis aceita e homossexuais Prostitutas do sexo no bairros centrais Representações Objeti ficação Transitoriedade Alegoria Visibilidade controlada Ocupação de áreas da moda, visíveis, noticiadas pela mídia Transitoriedade Espaços Visibilidade controlada Espaços de passagem; Ruas com pouco movimento (noites) Transitoriedade Visibilidade controlada Arcas portuárias; Areas da moda Práticas Territoriais Santo Antônio: Rua Nova Bairro do Recife: Rua do Bom Jesus; Rua do Apolo Marquês de Olinda Bairro do Recife (passado e presente) Cinema Glória (atual Vitória) Guararapes Rua da Concórdia (S. Antônio) Bairro do Recife; Ruas e praças de Santo Antônio e São José 42 Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n" 9, pp. 25-43, jul./dez., 2000 As atitudes comuns em relação às práticas sexuais, sobretudo àquelas consideradas como "desvio" social (prostituição, por exemplo), podem ser classificadas em dois tipos básicos de reação: uma, de negação declarada, ativa do ponto de vista das ações de combate e controle social, a qual pode induzir à produção de ações transformadoras mais profundas e radicais, tal como a higienização social da qual há registros desde o século XIX até os dias recentes. Como resultado, verificam-se transformações sócio-espaciais de curto e médio prazo, promovidas pelo planejamento, acompanhadas de processos de deslocamentos destas populações "indesejadas" através de ações de desapropriações e "expulsão branca", promovida pela revalorização de espaços revitalizados, por exemplo; outra, de negação mais silenciosa e passiva, porém excludente e segregadora, a partir de preconceitos que acabam sendo associados aos territórios produzidos; esta reação está associada à indiferença dissimulada da sociedade, possibilitando uma segregação do espaço mais lenta, a médio ou longo prazo e desencadeando um processo contínuo de degradação física e social dos bairros, nos quais as atividades, pessoas e espaços acabam perdendo o seu vigor, tanto do ponto de vista físico, quanto moral em relação à cidade. Os espaços tornam-se associados a tais grupos e suas atividades: é o que se verifica da experiência da prostituição no Bairro do Recife na década de 1970. De qualquer forma, importa lembrar que as práticas sexuais fazem parte da dinâmica urbana, seja do ponto de vista comercial, seja como integração social, com seu forte conteúdo social e econômico. Bibliografia ARRAIS, Raimundo. Recife, culturas e confrontos: as camadas urbanas na Campanha Salvacionista de 1911, Natal: EDUFRN, 1998 BELL, D, & VALENTINE, G. Consuming Geographies - we are where we eat, London: Routledge, 1997 BOURDIEU, P. Outline of a Tbeory of Practice. Carnbridge: Carnbridgc University Press, 1977 The logic of practice, Stanford: Stanford University Press, 1980 CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: a arte de fazer. Petrópolis: Vozes, ___ o 1994 CHISHOLM, M. and SMITH, D. M. (ed.). Shared Space, Divided Space. Essays OI/ conflict and territorial organization. London: Unwin Hyman, 1990 DANTAS, Ney. Entre Coquetes e Chicos-machos (uma feitura da paisagem urbana do Recife na primeira metade do século X/X), Dissertação de Mestrado. 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