A ARTE PSICODÉLICA-VISIONÁRIA: POSSÍVEIS INCURSÕES NO

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A ARTE PSICODÉLICA-VISIONÁRIA: POSSÍVEIS INCURSÕES NO
A ARTE PSICODÉLICA-VISIONÁRIA: POSSÍVEIS INCURSÕES NO KITSCH? 1
José Eliézer Mikosz - Artista transmídia, pesquisador em arte visionária e cultura psicodélica,
professor Adjunto da UNESPAR Campus de Curitiba 1 - EMBAP. Editor da Revista Internacional
Interdisciplinar Art&Sensorium. Doutor pelo PPGICH-UFSC. Membro do CIEBA-FBAUL
(Centro de Investigações em Belas Artes da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa).
Membro do Conselho Consultivo do Research Centre for the Study of Psycointegrator Plants,
Visionary Art and Consciousness (WASIWASKA). É associado ao Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). Membro do Conselho Jurisdicional da URCIAMORC.
A Arte não serve pra nada (Oscar Wilde): a arte não é utilitária, se for,
talvez nem seja arte. A arte não tem um papel prático em nossas vidas, mas
isso não significa que não seja vital ou necessária. Nossa identidade pessoal
ou coletiva não tem uma função clara, mas ela é fundamental para nossa
habilidade de funcionar como uma sociedade (WHITE, 2004, p. 45). 2
Introdução
Este capítulo procura fazer uma breve reflexão sobre o kitsch e a produção artística de
natureza psicodélica-visionária. 3 Se fizermos um recorte simplificado da história da pintura
ocidental desde a Idade Média, observaremos que o foco das pinturas foram sendo
substituídos com o tempo. Durante o Gótico (século 12), o Renascimento (século 14), o
Barroco (século 16) e o Romantismo (fim do século 18), eram comuns temas religiosos e
mitológicos. Com o Realismo (final do século 19), os temas estavam relacionados a questões
sociais, ao mundo do dia-a-dia e “não se pintavam mais anjos”. A arte teria se livrado de uma
de suas mais antigas associações desde a Arte Rupestre: representar temas inspirados em
reinos espirituais. Com o evento do abstracionismo a pintura deixa também de copiar o
mundo exterior e busca ser autossuficiente, ela em si é a obra, não uma cópia. Colocado dessa
forma, poderia parecer que uma pintura figurativa conceitualmente seria então “inferior” a
uma pintura abstrata. Chegando a meados do século 20, o Expressionismo Abstrato, bem
representado por Jackson Pollack, defendido pelo crítico e teórico de arte Clement Greenberg,
poderia indicar o fim da pintura, pois não haveria nada mais além que pudesse ser criado
originalmente nessa linguagem. Vieram, porém, a Arte Pop, o Hiper-realismo, e a pintura
“voltou” a copiar intensamente o mundo, talvez apenas não da mesma forma e com as
mesmas intenções do passado. Podemos incluir aqui que a associação do objeto artístico com
o Belo foi outro questionamento na evolução dos conceitos e teorias da arte. Obviamente não
há espaço aqui para toda essa discussão. A intenção é mostrar meandros conceituais e
discursos que cercam o tema quando as representações visuais buscam elementos que
ultrapassam o plano material.
Alguns Conceitos
A arte contemporânea não deve possuir caráter utilitário, ser alguma forma de
entretenimento, servir como objeto de decoração, buscar explicitamente comover, ser uma
janela para o mundo exterior ou interior. Essas características, entre outras, podem ser
consideradas kitsch, partimos disso para investigar onde a poética psicodélica-visionária se
encaixa ou não dentro dessa estética particular em algumas de suas obras.
No livro 101 Things to Learn in Art School, Kit White traz a frase de Oscar Wilde: “A
arte não serve pra nada”. Pessoas não ligadas a esses estudos poderiam se surpreender com
desconfiança diante de tal declaração, porém, o fato é que, atualmente: “Qualquer coisa pode
ser arte: a arte não é definida pelas técnicas ou os meios de sua produção, mas por um
sentimento coletivo que pertence a uma categoria de experiência que chegamos a conhecer a
arte” (WHITE, 2004, p.13). Os critérios artísticos são datados historicamente, alteram com o
tempo e estão sujeitos a modalidades criativas em constante renovação. Tarefa hercúlea para
filósofos e teóricos da arte darem conta de uma conceituação que atenda toda a produção
ocidental e oriental e em todas as épocas do passado até o presente e ainda projetar esse
mesmo conceito para o que possa vir a arte ser no futuro... Com exemplos simples mais
recentes podemos testemunhar essa dificuldade. Talvez pouco mais de uma década atrás
pensar em graffiti como forma de expressão artística com “A” maiúsculo e que estaria exibida
na Tate Modern em Londres seria inimaginável. 4 Vídeo Games populares com status de arte?
O MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova Iorque) em 2012 adquiriu 14 jogos que foram
elevados a essa categoria como o famoso PacMan. 5 O mesmo MoMA que começou em 1930
a colecionar fotografia moderna. 6 Mais recentemente este museu abriu uma exposição de
pinturas “lowbrown”, isto é, surrealismo pop, 7 evidenciando a abertura que essa instituição
possui em relação ao que é a produção de arte contemporânea. Enfim, voltando ao início do
século 20, Duchamp trouxe os ready-mades, objetos industriais que retirados de sua condição
utilitária, ganharam a possibilidade de serem pensados esteticamente (ninguém pensaria hoje
“que mau gosto esse urinol virado em cima da mesa”).8 São buscas geniais da criatividade e
inovação que, nem sempre, são compreendidas imediatamente. Segundo Danto:
O que separa os trabalhos artísticos dos não artísticos é o contexto sociológico.
Tudo que for apresentado dentro de uma estrutura institucional como arte, seja
museu, galeria ou, menos tangível, a comunidade de autodenominados artistas,
críticos e historiadores de arte – será tratado como arte. (2006, p. 43)
Essa instituição, arte, se valerá de critérios diversos, nem sempre fáceis de discernir,
nem sempre universais, para avaliar o que é ou não arte, o que é um trabalho bom ou mau, a
despeito da intenção e motivação de quem a produziu. Por exemplo: os trabalhos de Bispo do
Rosário (1909?-1989) estavam representando o Brasil na Bienal de Veneza de 1995, será que
ele, quando recluso em uma cela de manicômio em vida, se preocupava com essa instituição
chamada arte?
A guisa de exemplo, podemos examinar alguns autores que buscam conceituar e dar
características do que seja a arte. Calabrese faz uma conceituação que parece suficientemente
abrangente:
Qualidade intrínseca de certas obras produzidas pela inteligência humana, isto é,
constituídas em geral só por materiais visuais, que manifeste um efeito estético,
conduza a um juízo de valor sobre as obras em si ou sobre os seus conjuntos ou
sobre os seus autores, e que dependa de técnicas específicas ou de modalidades de
produção das próprias obras. (1986, p.8)
Denis Dantton apresenta sete características universais da arte:
Perícia ou virtuosismo. Habilidades artísticas técnicas são cultivadas, reconhecidas
e admiradas.
Prazer não utilitário. As pessoas apreciam a arte pela arte e não requerem que elas
as mantenham aquecidas ou que lhes ponha comida na mesa.
Estilo. Objetos e representações satisfazem regras de composição que as situam em
um estilo reconhecível.
Crítica. As pessoas fazem questão de julgar, avaliar e interpretar obras de arte.
Imitação. Com algumas importantes exceções como música e pintura abstrata, as
obras de arte simulam experiências do mundo.
Enfoque especial. A arte é distinguida da vida comum e dá um enfoque dramático à
experiência.
Imaginação. Artistas e seus públicos imaginam mundos hipotéticos no teatro da
imaginação.
Ellen Dissanayake descreve doze:
A manifestação de alguma habilidade especial;
A criação artificial de algo pelo homem;
O desencadeamento de algum tipo de resposta no ser humano, como o senso de
prazer ou beleza;
A apresentação de algum tipo de ordem, padrão ou harmonia;
A transmissão de um senso de novidade e ineditismo;
A expressão da realidade interior do criador;
A comunicação de algo sob a forma de uma linguagem especial;
A noção de valor e importância;
A excitação da imaginação e a fantasia;
A indução ou comunicação de uma experiência-pico;
Coisas que possuam reconhecidamente um sentido;
Coisas que deem uma resposta a um dado problema.
As duas últimas citações acima foram escolhidas por terem sido usadas pelo psicólogo
evolucionista Steve Pinker que, de forma crítica, rebate:
As raízes psicológicas dessas atividades [arte] recentemente tornaram-se tema de
pesquisas e debates. Alguns pesquisadores, como a acadêmica Ellen Dissanayake,
acreditam que a arte é uma adaptação evolutiva, como a emoção do medo e a
capacidade de ver em profundidade. Outros, como eu, acreditam que a arte (exceto
a narrativa) é um subproduto de outras três adaptações: a ânsia por status, o prazer
estético de vivenciar objetos e ambientes adaptativos e a habilidade de elaborar
artefatos para atingir os fins desejados. Desta perspectiva, a arte é uma tecnologia
de prazer, como as drogas, o erotismo e a culinária refinada - um modo de purificar
e concentrar estímulos prazerosos e enviá-los aos nossos sentidos. (2004, p.547)
Não deixa de ser uma interessante provocação do psicólogo evolucionista de Harvard.
As duas citações podem mostrar algumas características presentes na arte, mas não fecham a
questão, a arte se reinventa o tempo todo. Você pode pensá-la inclusive como uma forma
terapêutica, 9 segundo Henry Matisse (1869-1954):
Sonho com uma arte de equilíbrio, de pureza e serenidade, destituída de temas
perturbadores ou deprimentes, uma arte que possa ser para todo trabalhador mental,
seja ele um homem de negócios ou um escritor, como que uma influência
apaziguadora, um sedativo mental, algo como uma boa poltrona onde repousar da
fadiga física (READ, 1980, p.44).
Desde o passado vários movimentos artísticos surgiram em contraposição aos
movimentos estabelecidos, oferecendo outras formas de interpretação, ideias, visões e direção
inovadora. Os nomes de muitos desses movimentos foram dados de forma pejorativa: o
Maneirismo, artistas que faziam “a maneira” dos Renascentistas, no sentido de “não serem tão
bons quanto”; o Barroco, sinônimo de grosseiro; o termo Impressionismo surgiu pelo
comentário irônico do pintor e escritor Louis Leroy em cima do quadro Impressão Sol
Nascente de Monet; o Fovismo, “as feras”, como exclamou o crítico Louis Vauxcelles, pela
violenta expressão cromática das pinturas. Esses batismos explicitavam preconceitos e pouca
credibilidade no futuro das obras envolvidas, mas ficaram.
"Impressão, Sol Nascente" – óleo sobre tela – Monet, 1837.
Um caso interessante é descrito por Tomaz Kulka. Se acreditarmos que para avaliar
uma obra de arte podemos usar alguns requisitos básicos como: Unidade, Complexidade e
Intensidade, Kulka nos traz um exemplo histórico da relatividade de tais critérios. Um
trabalho inovador recebe uma pesada crítica devido a não ser capaz de cumprir os três
requisitos básicos descritos acima, John Goldind comenta:
Esta é de muitas maneiras uma pintura insatisfatória. Para começar ela tem um
estilo inconsistente. Mesmo um olhar rápido é suficiente para perceber que
“fulano” 10 mudou de ideia várias vezes enquanto estava trabalhando; até ele
mesmo considerou inacabado. (KULKA, 2002, p.48)
Matisse criticou o trabalho e o autor dizendo que o mesmo tentava, com essa obra,
ridicularizar o movimento moderno. O artista em questão ficou bastante deprimido e a obra
foi enrolada e escondida por anos. 11 O quadro descrito é o Les Demoiseles D’Avignon de
Pablo Picasso. São apenas alguns exemplos da fragilidade dos conceitos e das buscas por
inovações que não param na arte ocidental.
Les Demoseiles D’Avignon – Óleo sobre tela – Picasso, 1918.
O que Busca a Arte?
Podemos observar que desde as pinturas rupestres o ser humano buscou representar
sua experiência do mundo material e também do imaginário, seus mitos, visões e fantasias. A
imitação do mundo, a mimese, foi forte na Grécia Antiga e depois no Renascimento. Estava
ligada à beleza e os artistas eram valorizados por sua habilidade e virtuosismo especiais.
Como vimos, com o evento do abstracionismo a arte perdeu sua função de cópia ou
interpretação do mundo tornando-se uma imagem autossuficiente.
Criar representações espirituais não é necessariamente uma função da arte que, ao
contrário disto, pode centrar-se em si mesma. Refiro-me aqui que criar explicitamente
representações espirituais como a imagem, por exemplo, de um anjo ou de um Buda, alguém
em postura meditativa, não necessariamente faz do trabalho algo espiritual. Kandinski,
Malevich, Mondrian, eram pintores que tinham fortes ligações com o esoterismo e a
espiritualidade de místicos e pensadores como Helena Blavatski, Ouspenski e Gurdieff, mas o
faziam através de formas abstratas que, na visão deles, eram mais adequadas do que cópias do
mundo material.
Nascimento de Vênus – Óleo sobre tela – Alexandre Cabanel (1823-1889), 1863.
É justamente nesse ponto que a reflexão deste capítulo aparece: o kitsch. Fechar uma
conceituação “definitiva” do kitsch é tão complexa como definir a arte. Possivelmente o
termo surgiu na Alemanha entre 1860 e 1870, um jargão usado por pintores e vendedores de
arte em Munique e empregado para designar objetos artísticos baratos (CALINESCU, 1987,
p.234). Porém há várias teorias e estudos etimológicos que não caberiam discutir no espaço
disponível deste capítulo. Pensar no kitsch como sinônimo de mau gosto ou de “cafona” ou
“brega” estaria muito aquém da verdade e, enfim, como definir “mau gosto”? Ao longo do
tempo quantas vezes isso se alterou? Tampouco se refere a algum tipo de má arte, quem sabe,
talvez, mais para um tipo de pseudo ou falsa arte. As fronteiras não são tão nítidas:
Mesmo que aceitemos o ponto de vista de Clement Greenberg que o avant-gard é
radicalmente oposto ao kitsch, 12 temos que nos dar conta de que esses dois
extremos se atraem fortemente e o que os separa é muito menos impressionante
daquilo que os une. (CALINESCU, 1987, p.254)
De modo básico, quando se fala em kitsch, vem à lembrança aquela imagem de um
pinguim de porcelana em cima de uma geladeira. Por que ele representa algo kitsch? É essa
associação, simulação, esse deslocamento representado pelo frio gerado pela geladeira com a
reprodução miniatura de um animal que vive em regiões geladas. Tão kitsch como a
associação de uma jarra de plástico para suco no formato de abacaxi. Não cumprem o papel
de símbolos, estão em uma literalidade forçada e vulgar, apesar de que, se não tomados tão a
sério, que mal representam? O mesmo conceito pode se aplicar a reproduções como
impressões emolduradas de obras famosas como a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, ou casas
com reproduções de colunas gregas em miniatura ao lado da porta de entrada e todas as
simulações e deslocamentos do gênero que infestam a sociedade de consumo, tentativas
equivocadas de imitação de status quo. 13
Representações da espiritualidade em uma pintura como, por exemplo, um anjo da
guarda protegendo crianças que atravessam uma ponte, pode ser vista da mesma maneira. Não
nos debruçamos aqui sobre o que seria ou não a fé e a religiosidade, estamos pensando na
estética das imagens resultantes.
Anjo da Guarda.
O kitsch também está associado a formas de manipulação emocional, certo pieguismo,
“emoção barata”, como descrito por Kundera (1985, p.253):
E preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser
compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Portanto, o kitsch não se
interessa pelo insólito, ele fala de imagens-chave, profundamente enraizadas na
memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo na
grama, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.
O kitsch faz nascer, uma após outra, duas lágrimas de emoção. A primeira lágrima
diz: como é bonito crianças correndo no gramado! A segunda lágrima diz: como é
bonito ficar emocionado, junto com toda a humanidade, diante de crianças
correndo no gramado! Somente essa segunda lágrima faz com que o kitsch seja o
kitsch.
Essas manipulações emocionais estão presentes em imagens, filmes, novelas, nas
reportagens, nas propagandas, na televisão, na vida do dia-a-dia. A expressão “novela
mexicana” aqui faz todo o sentido. Muitas imagens religiosas buscam provocar emoções
similares no observador assim como as famosas imagens de palhacinhos ou crianças com
lágrimas nos olhos. Porém, a reflexão buscada aqui parece caminhar mais em direção ao que
o pintor norueguês Odd Nerdrum (1944-) aborda. Defensor da estética kitsch, ele relata como
se posicionou em relação a esse conceito:
Eu estava numa festa. Nós estávamos sentados em volta de uma grande mesa
bebendo. Ao meu lado estava sentada uma curadora Afro-Americana da ala de
modernismo do Metropolitan Museum (Nova Iorque). Nós conversávamos sobre
arte e estética, estava muito legal. Eu perguntei para ela: “O que está faltando na
Arte Moderna? Isto é, o que foi deixado de lado?” “Bem,” ela falou, “talvez
alguma coisa, mas eu gosto da Arte Moderna. O que você acha que está faltando?”
Seu olhar parecia ansioso, ela mal podia esperar pela minha resposta. “Bem,” eu
falei, “O que dizer de um por do Sol infinito?” Ela balançou a cabeça. “Isto está
longe de ser Arte.” “Quente, maravilhosa pele e um rosto sensível com olhos te
cativando.” “Oh! Sentimental demais,” ela falou. “Acabamento perfeito? Mais
ainda, um acabamento poético?” “O quê?,” ela perguntou surpresa. “Um casal
apaixonado sentado em um banco?” “Inconcebível,” ela exclamou. “Uma mulher
nua e bela. Seus olhos dizendo: vem meu amor.” Ela gargalhou... “Mas isto é
Kitsch!”
A partir disso eu entendi o que realmente eu era. (NERDRUM, 2011, p.7)
E continuamos a Pescar – Têmpera – Nicholas Roerich Museum, New York, USA – Nicholas Roerich, 1922.
Se a pintura de um por do sol pode ser imediatamente kitsch, já uma foto não, esta é
vista como o objeto em si, diferente no caso da pintura: “a natureza em si mesma não pode ser
considerada kitsch, somente suas representações podem” (KULKA, 2002, p.90). 14 Da mesma
maneira, as outras imagens descritas acima por Nerdrum e tantas similares, podem cair na
estética kitsch, porém, fazem parte naturalmente da vida, mas que “não devem fazer
representações pictóricas”.
Em relação à produção de pinturas, Nerdrum (2014, p.7) descreve algumas
características mais dentro da estética kitsch defendida por ele:15
O pintor kitsch não deve ser julgado por motivos nacionais, raciais ou religiosos
em sua representação da vida – mas com base em qualidades intemporais.
O pintor kitsch não está protegido pela época na qual vive. Ele se esforça em
representar as qualidades mais sublimes da história e deve ser julgado de acordo
com elas.
Uma obra kitsch é boa ou má, um bom kitsch não deve ser qualificado como arte.
Isto seria um erro de julgamento. Kitsch não é arte. Kitsch se refere ao sensual e o
atemporal.
O pintor kitsch está comprometido com o eterno: Amor, morte e o nascer do sol.
Inovação não é importante, nem originalidade. Ir profundamente é o objetivo, pois
na representação da natureza em si encontra-se a expressão individual. 16
Maenads - Óleo sobre tela, 190,5 x 269 cm - Odd Nerdrum, 2014.
Apesar de que na arte psicodélico-visionária pouco importa a realidade material, ela
está mais voltada a um universo interior muitas vezes ligado ao espiritual, busca o insólito
que, para Kundera, não é o objetivo do kitsch. O interesse do psicodélico e visionário está no
mundo inconsciente e irracional, no arquetípico, nos estados não ordinários de consciência
(ENOC). São recorrentes as visões de paisagens fantásticas, já exploradas em outro artigo de
minha autoria: Ecossistemas Entópticos: o “Inscape” na Poética Visionária e a Mimese
Espiritual. 17 Porém, as representações figurativas estão presentes com interesses similares aos
já explorados largamente pelos artistas do simbolismo e decadentismo.18 A Arte psicodélicovisionária não é fácil de rotular. Como na arte de modo geral, ela pode ser qualquer coisa,
desde que trate de visões, isto é:
A Arte Visionária pode ser entendida como um fazer artístico onde a produção está
condicionada às experiências advindas de estados não ordinários de consciência.
[...] A Arte Visionária na atualidade não defende um novo estilo específico, é
possível encontrar artistas visionários sem treinamento acadêmico, como os naïfs,
ou muito técnicos e de grande destreza e virtuosismo similar aos hiper-realistas.
Ela pode usar materiais convencionais de pintura e desenho, ou então todos os
tipos de inovações tecnológicas da fotografia, cinema e computação. Embora
predominantemente figurativa, há artistas que trabalham com formas abstratas ou
uma mescla de ambas (MIKOSZ, 2009, p.114).
Schmürz, o monstro incógnito
No prefácio do livro Art Brut de Lucienne Peiry, Michel Thévoz descreve a história de
um monstro, um ser mutante, que nasceu e cresceu em um apartamento de uma família
burguesa que, deliberadamente, o ignora e segue com sua vida como se ele não estive ali.
Thévoz se refere à arte bruta nascida no meio da cena artística estabelecida (PEIRY, 2006,
p.07). É a arte que não busca a moda, do artista que não necessariamente tem treinamento
artístico, que não procura imitar a arte de seu tempo, que busca suas próprias fontes, suas
próprias invenções, impulsos e humor, sem se preocupar com as regras correntes (PEIRY,
2006, p.11). Na cidade de Baltimore nos EUA, há o AVAM (American Visionary Art
Museum) 19 Fundado por Rebecca Hoffberger e pelo escultor cinético Hobart Brown em 1989,
museu que procura acolher trabalhos de artistas visionários e populares, muito próximo ao
conceito de Arte Bruta de Jean Dubuffet. No catálogo do museu há a seguinte citação:
"A arte visionária como definida para os propósitos do Museu Americano de Arte
Visionária 20 refere-se à arte produzida por indivíduos autodidatas, geralmente sem
treino formal, cujas obras surgem a partir de uma visão pessoal inata que se revela
mais importante no ato criativo em si memo." Em suma, a arte visionária começa
por ouvir as vozes interiores da alma e, muitas vezes, não podem sequer ser
pensado como "arte" por seu criador. O tema mais comum de artistas visionários
em todo o mundo é a recriação de algum Éden no quintal – uma utopia pessoal e
privada. (AVAM, 2011, p.9)
O museu é um dos poucos do gênero em todo o mundo, mas podemos assistir o
aumento da presença desse monstro incógnito, fazendo um paralelo ao psicodélico-visionário,
em várias partes do mundo, só para citar alguns exemplos, como na Universidade de
Greenwich na Inglaterra com o evento bienal Breaking Convention - International
Conference on Psychedelic Consciousness, 21 com discussões científicas e mostras de artes
visuais e música; em Nova Iorque o evento anual Horizons – Perspective on Psychedelics;22 a
criação em 2012 da Academia Vienense de Arte Visionária; 23 o Instituto Wasiwaska no
Brasil; 24 mais recentemente a Universidade de Amsterdam, através dos professores Woulter
Hanegraaff e Peter Forshaw, abre linha de pesquisa em Esoterismo Ocidental e Estados Não
Ordinários de Consciência, além de receber no mesmo ano de 2016 o Interdisciplinary
Conference on Psychedelics Research. Como exemplo em mostras oficiais de arte, na Bienal
Internacional de Curitiba em 2015, no MuMA (Museu Municipal de Arte de Curitiba que fica
no Portão Cultural), havia mais de 30 artistas ligados, de um modo ou de outro, a produzir ou
registrar manifestações espirituais e religiosas como nas fotografias de Orlando Azevedo,
Lina Faria e Mauro Restiffe, os desenhos de Tunga, a “Experiência MerzBauSubtropical” de
Cleverson de Oliveira, trabalhos do Mestre Didi, Carybé e Rubem Valentim com influência
de religiões afro-brasileiras, a presença de trabalhos de Bispo do Rosário, o imaginário
simbólico de Stephan Doitschinoff, e a mostra do filme Ayahuasca dos artistas Sara Bonfim e
Rafael Bertelli. Mais recentemente Marina Abramovich, uma das mais importantes
performers de nosso tempo, esteve no Brasil buscando cura e inspiração para seus trabalhos
artísticos, passando por diversas religiões inclusive as que comungam com o chá psicoativo
ayahuasca, segundo ela, uma das experiências mais difíceis de sua vida. Suas buscas
resultaram no filme Espaço Além – Marina Abramivic e o Brasil, direção de Marco Del
Fiol. 25
Isso tudo aponta uma direção nova? Ou apenas uma das características iniciadas com
o pensamento pós-moderno de acolher várias tendências, evidenciando que a expressão
artística possui vertentes diversas, nichos variados não hegemônicos, não há um totalitarismo
estético de uma suposta elite artística e sim, possibilidades de pensamentos e reflexões por
diferentes vieses, fugindo de uma esterilidade criativa nesse início de milênio?
Considerações Finais
Do exposto fica claro que a estética kitsch, já seja por sua herança do romantismo,
pois, segundo Calinescu (1987, p.237): “mesmo que nós encontremos algumas relações
formais entre o kitsch e o maneirismo e o barroco, o kitsch parece ser, historicamente,
resultado do romantismo” 26 pode estar presente em trabalhos psicodélicos e visionários
contemporâneos, porém, com três implicações: 1. Nem todos os trabalhos terão elementos
kitsch: muitos são composições geométricas, incursões no abstracionismo, trabalhos
mandálicos, obras inovadoras, etc., 27 fugindo do kitsch mais óbvio; 2. Alguns artistas
trabalharão com o kitsch de modo inconsciente: produzirão de forma espontânea, muito
próximo da influência do meio, da sociedade e da cultura, com temas clichês como a morte,
sensualidade, amor, manipulações emocionais e de tentativas de reproduzir o belo como um
“magnífico por do sol”, etc.; 3. Seu uso pode ter o mesmo viés buscado e defendido por Odd
Nerdrum e outros artistas e pesquisadores, onde temas com a pecha dos clichês kitsch podem
ser considerados como uma vantagem e liberdade, usados conscientemente como algo que é
mais do que arte, nos arriscamos a dizer aqui que continua sim sendo arte, apenas outro viés
dela, não a arte pela arte ou também da arte das ideias (arte conceitual) 28 como
desenvolvida durante o século 20, mas a arte além da arte que é atemporal. Sua origem se
perde na história da humanidade no mesmo momento em que esta desenvolveu
misteriosamente sua consciência e iniciou a produzir imagens.
Notas
1
Este capítulo é uma revisão/ampliação de um artigo publicado na Revista Crítica.cl do Chile. A publicação aqui
teve como propósito levantar essa reflexão a cerca de possíveis preconceitos que a aproximação da arte com
temas místicos e visionários muitas vezes ocorrem e como isso, em vez de ser um defeito, pode se transformar
numa característica não menos significativa ou importante. Para quem possa se interessar em ir mais fundo nos
conceitos e teorias sobre o kitsch, poderá consultar as Referências no final do capítulo.
2
Todas as citações presentes neste artigo que estavam em inglês no original foram traduzidas livremente pelo
autor.
3
As palavras psicodélico-visionária aqui estão sendo usadas juntas representando o mesmo conceito. Não serão
tratado aqui as diferenças, etimologias e história de cada termo, apenas seus aspectos comuns nas visões,
imaginário, muitas vezes associadas a um reino espiritual particular.
4
Os Gêmeos foram convidados em 2008 a fazerem uma interferência com graffiti na fachada da Tate Modern
em Londres.
5
Para saber mais a respeito: https://moma.org/explore/inside_out/2012/11/29/video-games-14-in-the-collectionfor-starters/. Acessado em 12 de maio de 2016.
6
Informações disponíveis no site: http://www.moma.org/explore/collection/departments/photography. Acessado
em 12 de maio de 2016.
7
Para ver a matéria: http://www.moma.org/interactives/exhibitions/2007/comic_abstraction/flash.html.
Acessado 24 de maio de 2016.
8
Me refiro a obra A Fonte de Marcel Duchamp de 1917. Se trata de um urinol de porcelana branco.
9
Lygia Clark (1920-1988) foi nessa direção em sua carreira: “Entre 1970 e 1975, nas atividades coletivas
propostas por Lygia Clark na Faculté d'Arts Plastiques St. Charles, na Sorbonne, a prática artística é entendida
como criação conjunta, em transição para a terapia.” (ITAÚ CULTURAL, 2016).
10
Retirei propositalmente o nome do artista.
11
Para história completa ler Kulka 2002, p. 52-55.
12
Ver o capítulo Avant-Gard and Kitsch de Clement Greenberg no livro Art and Culture.
13
Ampla discussão nesse sentido está no livro O Kitsch – A Arte da Felicidade de Abraham Moles.
14
Talvez o hiper-realismo escape dessa sentença, uma vez que, pensada do ponto de vista da subjetividade do
observador, uma pintura hiper-realista possa ser considerada um tipo de readymade, ou, por outro lado, a coisa
em si, como o faz a fotografia.
15
Tradução livre do autor.
16
Grifo meu.
17
Disponível em: http://anpap.org.br/anais/2014/ANAIS/ANAIS.html. Acessado em 25 de maio de 2016.
18
O decadentismo foi chamado assim por seus interesses no sensual, na morte, no obscuro e misterioso,
considerado pela burguesia da época como algo decadente. Boa documentação do período está no livro
Dreamers of Decadence: Symbolist Painters of the 1890s de Philippe Jullian and Robert Baldick.
19
O site do museu: http://www.avam.org/. Acessado em 29 de maio de 2016.
20
Grifo meu, se trata dos propósitos do museu, sendo que as conceituações buscadas aqui são mais amplas e
também estão presentes neste artigo.
21
http://2015.breakingconvention.co.uk/.
22
http://horizonsnyc.org/2013b/one-page-home/.
23
http://academyofvisionaryart.com/.
24
http://www.wasiwaska.org/
25
Trailer disponível em: https://www.facebook.com/espacoalem/. Acessado em 28 de maio de 2016.
26
Dentro do maneirismo é bastante evidente como nos mostram Gustav Hocke no livro Maneirismo: O Mundo
como Labirinto e Arnold hauser no livro Maneirismo. Mas as influências são ainda mais antigas, apenas o termo
kitsch é moderno.
27
Por exemplo: as esculturas colossais e trabalhos com alto nível de interação entre arte e tecnologia
apresentados anualmente em eventos como o Burning Man no deserto de Nevada. Para saber mais:
http://burningman.org/
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E absolutamente nada de errado nessa abordagem que enriqueceu enormemente o pensamento e produção
artística como, por exemplo, a arte conceitual.
REFERÊNCIAS
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CALINESCU, Matei. Five Faces of Modernity – Modernism, Avant-Garde, Decadence,
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2002.
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Sítios online:
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<http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1694/lygia-clark>. Acesso em: 27 maio 2016.
Catálogo:
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