SUZANA MARIA CORRÊA MARTINS
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SUZANA MARIA CORRÊA MARTINS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE DIREITO SUZANA MARIA CORRÊA MARTINS ALIMENTOS GRAVÍDICOS: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO EM RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO Belo Horizonte 2015 SUZANA MARIA CORRÊA MARTINS ALIMENTOS GRAVÍDICOS: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO EM RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. Edgard Audomar Marx Neto Belo Horizonte 2015 Suzana Maria Corrêa Martins ALIMENTOS GRAVÍDICOS: A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO EM RELACIONAMENTO HOMOAFETIVO Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito. ____________________________________________ Professor ____________________________________________ Professor ______________________________________________ Professor Belo Horizonte, novembro de 2015 À minha mãe, pelo amor incondicional e por sempre acreditar em mim. AGRADECIMENTO A todos que, de alguma forma, contribuíram para a construção deste trabalho. RESUMO As estruturas familiares estão ganhando novos contornos, não se podendo falar ou ter em mente apenas aquela família formada entre homem e mulher. Há, então, uma pluralidade de arranjos que estão postos na sociedade e que carecem de tutela estatal e consequentemente de amparo legal. No entanto, o que se tem presenciado é a falta de atuação do legislador, fazendo com que o judiciário atue tentando conferir resposta às demandas latentes destas “novas famílias”. É neste cenário de falta de legislação que abranja as relações homoafetivas que se insere o objeto deste trabalho, que pretende analisar se há possibilidade de conceder alimentos gravídicos à gestante que manteve relacionamento com outra mulher. Palavras – chave: Direito de família. Novas famílias. Relações homoafetivas; Alimentos gravídicos. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................7 2 A UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA NO MUNDO JURÍDICO.............................................10 2.1 Do reconhecimento da união estável como entidade familiar à sua extensão aos relacionamentos homoafetivos......................................................................................................10 2.2 Conversão da união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento.............................13 2.3 Decisão do STF.......................................................................................................................15 3 REPRODUÇÃO ASSISTIDA........................................................................................................16 4 FILIAÇÃO.....................................................................................................................................19 4.1 Filiação biológica....................................................................................................................22 4.2 Filiação não biológica.............................................................................................................22 5 O RECONHECIMENTO DA DUPLA MATERNIDADE.............................................................23 6 ALIMENTOS.................................................................................................................................27 6.1 Conceito..................................................................................................................................27 6.2 Espécies..................................................................................................................................28 6.3 Pressupostos de fixação : binômio necessidade - possibilidade.............................................31 6.4 Principais características.........................................................................................................32 6.5 dever de sustento.....................................................................................................................38 7 A LEI 11. 804 DE 2008..................................................................................................................42 7.1 O Projeto de Lei 7376 de 2006...............................................................................................42 8 MENSAGEM DE VETO N º853 E COMENTÁRIOS À LEI 11.804 DE 2008............................44 9 A POSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE ALIMENTOS GRAVÍDICOS ENTRE MULHERES. .50 10 CONCLUSÃO..............................................................................................................................59 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................................62 7 1 INTRODUÇÃO A Constituição de 1988 no art. 226, no capítulo que dispõe sobre a Família, trouxe importantes alterações que romperam e afrontaram posicionamentos e entendimentos até então vigentes. A visão patriarcal, no que se refere à sociedade conjugal, foi substituída pela igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, os filhos havidos fora do casamento passaram a ser reconhecidos como legítimos, reconheceu-se a família monoparental bem como a união estável. Muito embora os avanços tenham sido significativos e relevantes, não foram e não são suficientes para assegurar a especial proteção que o legislador preceituou no art. 226 da Constituição Federal, tampouco para tutelar todas as formas de convívio entre as pessoas, bem como seus efeitos. O primeiro impasse a ser sanado era quanto a aplicabilidade da união estável a relacionamentos homoafetivos, uma vez que a Constituição, conforme §3º do art. mencionado, apenas reconhecia a “união estável entre o homem e mulher como entidade familiar”. Mas, com a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADIn 4277 e na ADPF 132, os casais homossexuais tiveram tal direito reconhecido. Com a equiparação, para que se pudesse dar maior efetividade a decisão do Superior Tribunal Federal, começou a ser suscitado se a união estável homoafetiva poderia se converter em casamento, instituto até então exclusivamente aplicado aos relacionamentos heterossexuais. A conversão somente passou a ser possível em virtude de proposta do ex Ministro Joaquim Barbosa aprovada em 2013 pelo Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual os cartórios são obrigados a realizar o procedimento. 1 Certo que existe um mundo para além da possibilidade de união estável e casamento entre pessoas do mesmo sexo, e diante da complexidade da sociedade, 1 Resolução 175. Conselho Nacional de Justiça. 2013 8 há muito que avançarmos. Muitas são as situações que não encontram respaldo legal, mas que requerem proteção do ordenamento jurídico, sob pena de se negligenciar a observância de princípios, como a dignidade da pessoa humana, igualdade, interesse do menor, dentre outros. Uma vez reconhecida a união estável e casamento homoafetivo, podem ser suscitados outros questionamentos que envolvem a seara do direito de família. Pensemos, por exemplo, na hipótese de um casal formado por mulheres, tendo uma delas se submetido à reprodução assistida, e durante a gestação terem rompido o vinculo afetivo-jurídico que as unia. Diante desta situação, indo além do debate se a mãe seria somente aquela que se submeteu ao processo procriativo, ou se tal parentesco também se estenderia à companheira que participou do processo psicologicamente, podemos levantar a seguinte pergunta: poderia ser concedido alimentos á parceira gestante? A prestação alimentícia durante a gravidez pretende conferir à futura mãe condições mínimas durante este período, assim como ao nascituro, que de acordo com o art. 2º do Código Civil Brasileiro é um sujeito de direito. Entretanto, a Lei 11804/08 que regulamenta os alimentos gravídicos traz expressões como “futuro pai” e “indícios de paternidade”, como se observa no parágrafo único do art. 1º e no art. 6º. Sendo assim, diante de aparente conflito entre a necessidade de se proteger a gestante e o nascituro e o conteúdo do mencionado dispositivo legal, o presente trabalho terá por finalidade buscar compreender se é possível a concessão de alimentos gravídicos em relacionamento entre mulheres. Para isso, no segundo capitulo será apresentado um panorama da união estável no mundo jurídico, destacando seu caminho de instituto não reconhecido à entidade familiar, e posterior possibilidade de sua conversão em casamento. No terceiro e quarto capítulos, a ideia desenvolvida abarcará a reprodução assistida, método utilizado pelos casais homoafetivos para que possam realizar o 9 projeto da maternidade/paternidade, passando pelo tema da filiação. No quinto capítulo será apresentado o tema da dupla maternidade, mostrando como que os tribunais vem reconhecendo a possibilidade de uma criança ter duas mães. No sexto capítulo, análise acerca da prestação alimentícia, com sua definição, características e pressupostos, destacando o dever de sustento dos pais em face dos filhos. No sétimo e oitavo capítulos, a Lei 11.804/08 será comentada em sua totalidade, para posteriormente compreendermos qual a sua “ratio legis”. No nono capítulo, será discutido o cerne do questionamento levantado, qual seja, se é possível haver a fixação de alimentos gravídicos entre pessoas do mesmo sexo. 10 2 A UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA NO MUNDO JURÍDICO 2.1 DO RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL COMO ENTIDADE FAMILIAR À SUA EXTENSÃO AOS RELACIONAMENTOS HOMOAFETIVOS Francisco Amaral ao definir a palavra “direito” afirma ter esta vários significados, sendo o mais comum e frequentemente usado, a concepção de um conjunto de prescrições disciplinadoras e organizadoras da vida em sociedade, dotadas de juridicidade, elemento que as diferem das demais regras de comportamento social e as conferem eficácia garantida pelo Estado. Acrescenta que o direito, principalmente o direito civil, deve ser analisado como um processo histórico, na medida que vai se formando com o passar dos anos, sendo inerente à vida e à cultura dos povos. 2 A Constituição de 1988 abriu horizontes ao instituto jurídico da família, atentando para a entidade familiar, planejamento familiar e assistência direta à família.3 Importantes posicionamentos e entendimentos enraizados na sociedade foram afrontados. A visão patriarcal, no que se refere à sociedade conjugal, foi substituída pela igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, os filhos havidos fora do casamento passaram a ser reconhecidos como legítimos, reconheceu-se a família monoparental bem como a união estável. Da análise conjunta do art. 226 da Constituição Federal de 1988 e art. 1723 do Código Civil de 2002, conclui-se que a união estável entre homens e mulheres é reconhecida como uma entidade familiar, desde que configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família. 2 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6º ed. Rio de Janeiro. Renovar, 2006. p. 2 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 19º ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. p. 41 11 Art. 226,§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 4 Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 5 Os requisitos presentes no art. 1723 do CC/02 devem ser preenchidos sob pena de não se ter o relacionamento reconhecido como união estável e, consequentemente não produzir os efeitos daí recorrentes, como se pode perceber na decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. AÇÃO MOVIDA PELA SUPOSTA COMPANHEIRA. SITUAÇÃO RETRATADA QUE NÃO SE CARACTERIZA COMO UNIÃO ESTÁVEL, RECONHECIDA COMO ENTIDADE FAMILIAR, NOS TERMOS DO QUE DISPÕE A LEI Nº 9.278/96 (ART. 1º), REPRODUZIDO NO ART. 1.723 DO CCB/02. AUSÊNCIA DE PROVA A DETERMINAR UM JUÍZO DE CONVENCIMENTO DE QUE EFETIVAMENTE HOUVE UMA UNIÃO ESTÁVEL ENTRE OS CONVIVENTES, COM OS REQUISITOS DO AFFECTIO MARITALIS. AÇÃO IMPROCEDENTE, SENTENÇA CONFIRMADA. APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA. (Apelação Cível Nº 70038877866 RS, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ari Azambuja Ramos, Data de Julgamento: 02/12/2010, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 10/12/2010)6 Assim, para a configuração da união estável, as provas ganham relevante importância, devendo a parte requerente demonstrar de forma indubitável, por meio de testemunhas, fotos, documentos, por exemplo, que foram preenchidos os requisitos do art. 1723 CC/02. Por outro lado, cabe ao juiz analisar todos os fatos e provas apresentadas, não podendo fundamentar sua decisão em mera aparência sob pena de desrespeito ao princípio da motivação da decisão, conforme art. 93, IX da Constituição Federal. 4 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 5 Código Civil de 2002 6 Rio Grande do Sul. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº 70038877866. 12 Art. 93, IX. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação 7 Há que se ressaltar que quando o legislador constitucional afirmou ser possível a união estável entre homens e mulheres e que esta seria reconhecida como entidade familiar, omitiu-se quanto aos relacionamentos homoafetivos, o que segundo Maria Berenice Dias não impediu que as pessoas do mesmo sexo continuassem a se relacionar, pelo contrário, passaram a almejar tutela judicial. Nem a ausência de leis nem a omissão do Judiciário podem ensejar a consagração de injustiças. Preconceitos de ordem moral ou ética não podem levar à omissão do Estado. Reconhecer como juridicamente impossíveis pretensões de caráter patrimonial é chancelar o enriquecimento sem causa de parentes, em prejuízo de quem muitas vezes dedicou uma vida a outrem, participando na formação do acervo de bens. Descabe julgar as opções de vida das partes. Há que se cingir o juiz em apreciar as questões que lhe são postas, devendo centrar-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um resultado justo. 8 Mas, apesar da omissão legislativa, o Poder Judiciário em 2011, em posicionamento histórico, como afirmou o Min. Luiz Fux, em suas palavras transcritas abaixo, estendeu direitos e deveres emanados da união estável entre heterossexuais às relações homoafetivas, no julgamento da ADIN 4277. Canetas de magistrados não são capazes de extinguir o preconceito, mas, num Estado Democrático de Direito, detêm o poder de determinar ao aparato estatal a atuação positiva na garantia da igualdade material entre os indivíduos e no combate ostensivo às discriminações odiosas. Esta Corte pode, aqui e agora, firmar posição histórica e tornar público e cogente que o Estado não será indiferente à discriminação em virtude da orientação sexual de cada um; ao revés, será o primeiro e maior opositor do preconceito aos 7 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 8 DIAS, Maria Berenice. Novos Contornos do Direito de Família. Disponível em http://mariaberenice.com.br/uploads/1_-_novos_contornos_do_direito_de_fam%EDlia.pdf 13 homossexuais em qualquer de suas formas. 9 Diante do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, os aplicadores do direito passaram a admitir a meação dos bens adquiridos pelo esforço comum, bem como direitos relativos a previdência, dentre outros. UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA - Ação de reconhecimento e dissolução de união estável. Possibilidade de reconhecimento da união estável homoafetiva incontroversa nos autos - Provas que permitem a conclusão pela existência de vida comum - Requisitos bem delineados pela doutrina Existência da posse de estado de casado, consistente em relacionamento público, notório, duradouro, que configure um núcleo familiar - Artigo 1.723 do novo Código Civil Conjunto probatório contundente neste sentidoManutenção integral da r. sentença de procedência- Recurso desprovido. (TJ-SP - APL: 00601626720098260576 SP 0060162-67.2009.8.26.0576, Relator: Moreira Viegas, Data de Julgamento: 20/02/2013, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/02/2013)10 A decisão acima é um exemplo de que os magistrados vem reconhecendo a união estável entre casais do mesmo sexo e os reflexos daí resultantes. 2.2 CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO EM CASAMENTO Superada a discussão acerca da possibilidade do instituto da união estável ser aplicado à relação homoafetiva, próxima indagação dirige-se a sua conversão em casamento, a qual começou a ser solucionada com a Resolução do Conselho Nacional de Justiça, aprovada em 2013, não podendo mais os cartórios se recusarem a viabilizar este procedimento. APELAÇÃO CÍVEL. CONVERSÃO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA EM CASAMENTO. CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. DESCONSTITUIÇÃO DA SENTENÇA PARA REGULAR PROCESSAMENTO DO FEITO. 1. Tendo em 9 Tribunal Superior de Justiça. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade. 2011. 10 São Paulo Tribunal de Justiça. Apelação Civil nº 00601626720098260576. 14 vista o julgamento da ADI nº 4.277 e da ADPF nº 132, resta superada a compreensão de que se revela juridicamente impossível o reconhecimento de união estável, em se tratando de duas pessoas do mesmo sexo. 2. Considerando a ampliação do conceito de entidade familiar, não há como a omissão legislativa servir de fundamento a obstar a conversão da união estável.(TJ-RS - AC: 70048452643 RS , Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Data de Julgamento: 27/09/2012, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/10/2012)11 APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. CONVERSÃO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA EM CASAMENTO. INDEFERIMENTO DO PEDIDO. INCONFORMISMO DOS REQUERENTES. CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ADI nº 4.277 e da ADPF nº 132. AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE ENTIDADE FAMILIAR. OMISSÃO LEGISLATIVA QUE NÃO PODE SERVIR DE FUNDAMENTO A OBSTAR A CONVERSÃO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA EM CASAMENTO, NA MEDIDA EM QUE O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL CONFERE À FAMÍLIA A ESPECIAL PROTEÇÃO DO ESTADO, ASSEGURANDO, ASSIM, QUE A CONVERSÃO EM CASAMENTO DEVERÁ SER FACILITADA (ART. 226, § 3º, CF/88). PROVIMENTO DO RECURSO.(TJ-RJ - APL: 00598497820128190000 RJ 0059849-78.2012.8.19.0000, Relator: DES. CLAUDIO BRANDAO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 03/07/2013, QUARTA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 04/09/2013 17:13)12 Não se tendo um ordenamento jurídico compatível com a complexidade da sociedade, ao que parece, o Poder Judiciário está fazendo as vezes do legislador. Muito embora sabido do descompasso existente entre as alterações sociais e as respectivas alterações normativas, não se pode empregar o discurso da ausência de norma regulamentadora para se perpetuar o comportamento omisso diante da pluralidade e complexidade dos aspectos que envolvem os relacionamentos homoafetivos, carecedores de tutela do Estado. Maria Berenice Dias (2010) afirma que “a omissão acaba por consagrar violação aos direitos humanos, pois afronta a liberdade sexual, direito fundamental do ser humano que não admite restrições de qualquer ordem” 13 11 Rio Frande do Sul. Tribunal de Justiça. Apelação Civil nº 70048452643. 12 Rio de Janeiro. Tribunal de Justiça. Apelação Civil nº 00598497820128190000. 13 DIAS, Maria Berenice. Uniões Homoafetivas. In: Pereira, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e Responsabilidade: Teoria e prática do direito de família. 1ª. ed. Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2010. p. 29- 37 15 2.3 DECISÃO DO STF Em 17 de março de 2015 o Superior Tribunal Federal manteve a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Paraná, a qual autorizava a adoção conjunta por casal gay, em resposta ao recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público do mesmo estado. O Parquet alegou que o casal não formava uma entidade familiar e por isso não estaria apto a adotar filhos conjuntamente. O STF negou seguimento ao recurso conferindo ao casal Toni Reis e David Harrad direito à adoção conjunta, além de se tornar válida a todos os casais homoafetivos do país que buscam adotar. De acordo com a ministra relatora Carmem Lúcia, a família formada por pessoas do mesmo sexo é entidade familiar amparada pela Constituição e digna de reconhecimento e proteção do Estado. a Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva. Por isso que, sem nenhuma ginástica mental ou alquimia interpretativa, dá para compreender que a nossa Magna Carta não emprestou ao substantivo “família” nenhum significado ortodoxo ou da própria técnica jurídica. Recolheu-o com o sentido coloquial praticamente aberto que sempre portou como realidade do mundo do ser. Assim como dá para inferir que, quanto maior o número dos espaços doméstica e autonomamente estruturados, maior a possibilidade de efetiva colaboração entre esses núcleos familiares, o Estado e a sociedade, na perspectiva do cumprimento de conjugados deveres que são funções essenciais à plenificação da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Isso numa projeção exógena ou extramuros domésticos, porque, endogenamente ou interna corporis, os beneficiários imediatos dessa multiplicação de unidades familiares são os seus originários formadores, parentes e agregados. Incluído nestas duas últimas categorias dos parentes e agregados o contingente das crianças, dos adolescentes e dos idosos. Também eles, crianças, adolescentes e idosos, tanto mais protegidos quanto partícipes dessa vida em comunhão que é, por natureza, a família. Sabido que lugar de crianças e adolescentes não é propriamente o orfanato, menos ainda a rua, a sarjeta, ou os guetos da prostituição infantil e do consumo de entorpecentes e drogas afins. Tanto 16 quanto o espaço de vida ideal para os idosos não são os albergues ou asilos públicos, muito menos o relento ou os bancos de jardim em que levas e levas de seres humanos abandonados despejam suas últimas sobras de gente. Mas o comunitário ambiente da própria família. Tudo conforme os expressos dizeres dos artigos 227 e 229 da Constituição, este último alusivo às pessoas idosas, e, aquele, pertinente às crianças e aos adolescentes. Assim interpretando por forma não-reducionista o conceito de família, penso que este STF fará o que lhe compete: manter a Constituição na posse do seu fundamental atributo da coerência, pois o conceito contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso ou homofóbico. Quando o certo − data vênia de opinião divergente - é extrair do sistema de comandos da Constituição os encadeados juízos que precedentemente verbalizamos, agora arrematados com a proposição de que a isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Entendida esta, no âmbito das duas tipologias de sujeitos jurídicos, como um núcleo doméstico independente de qualquer outro e constituído, em regra, com as mesmas notas factuais da visibilidade, continuidade e durabilidade”. 14 A decisão é um marco histórico na seara dos relacionamentos homoafetivos. 3 REPRODUÇÃO ASSISTIDA Reprodução assistida pode ser definida como o conjunto de técnicas que tem por finalidade tentar substituir a concepção natural quando há dificuldade ou impossibilidade de um casal ou de um dos seus membros em conceber um filho. As técnicas apresentam variantes, sendo chamadas de inseminação artificial quando a fecundação ocorre dentro do corpo da mulher ou fertilização in vitro, quando ocorre fora. São chamadas de homólogas, as inseminações que utilizam os gametas do próprio casal e heterólogas caso os gametas sejam obtidos a partir de doadores anônimos. A utilização das técnicas de reprodução assistida ainda não foram objeto de apreciação do Congresso Nacional, razão pela qual não há lei em sentido estrito acerca do tema. 14 Em acórdão inédito, STF reconhece direito de adoção e denomina casais homoafetivos como família. (2015, 19 de março). Revista Lado A. Recuperado a partir de http://m.revistaladoa.com.br/2015/03/noticias/em-acordao-inedito-stf-reconhece-direito-adocaodenomina-casais-homoafetivos-como : 17 Diante da ausência de atuação do legislador, e para melhor nortear os aspectos desta questão, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução nº1358/9215, que estabelece normas éticas para a utilização de práticas de reprodução assistida, levando-se em consideração a importância da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas. Dispõe tal Resolução que as práticas tem a finalidade de auxiliar na solução dos problemas de infertilidade humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes, ressalvando que é proibida a fecundação de oócitos humanos, com finalidade diversa desta. Para o objetivo do estudo ora desenvolvido, o que melhor nos interessa está disposto no tópico II, que trata dos usuários das técnicas. 1- Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado. 2- Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado. (grifo nosso) Da leitura do excerto acima, depreendemos que a Resolução não faz restrição quanto ao estado civil ou orientação sexual da mulher, tornando perfeitamente possível uma mulher casada ou que mantenha união estável com outra mulher fazer uso destas técnicas, desde que cumpra com alguns requisitos. O primeiro deles refere-se a capacidade civil, exigindo que para se submeter as técnicas a mulher seja plenamente capaz, ou seja, tenha completado 18 anos e goze de boa saúde mental, de modo a ter pleno discernimento. O segundo, que a utilização das práticas de reprodução assistida não podem ir de encontro ao estabelecido na Resolução. Por fim, que haja consentimento do parceiro ou companheiro quando recorrer a esta técnica. Insta salientar que o consentimento é elemento de extrema importância, 15 Conselho Federal de Medicina. Resolução 1358/92 18 conforme preceitua Ana Amélia Ribeiro Sales (2014), 16 pois determinante para a filiação. Este posicionamento é reforçado pelo Código Civil de 2002 quando no seu artigo 1597, inciso V, diz que os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido, presumir-se-á concebidos na constância do casamento. Assim, uma vez que consentiu, o companheiro/cônjuge não poderá posteriormente contestar a paternidade do nascido por meio da reprodução assistida. A mencionada autora, entretanto, destaca que a resolução feria o princípio da igualdade na medida em que buscava efetivar o direito fundamental de reprodução apenas às mulheres, não garantindo o mesmo direito aos homens, criando desta forma, uma diferenciação no interior das uniões homossexuais. Este é um dos motivos que podem ser apontados como responsáveis pela revogação de Resolução 1358/92 e a edição de uma nova Resolução pelo CFM, a de 1957/10. A Resolução nº1.957 de 2010 17 alterou o tópico II que dispunha sobre os usuários das técnicas de reprodução assistida, passando a estabelecer que todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente. (grifo nosso) Com a alteração, não somete mulheres, mas pares homossexuais masculinos podem se submeter a este método de procriação. Entretanto, mesmo com a substituição do termo “toda mulher” por “todas as 16 SALES, Ana Amélia Ribeiro. União Homoafetiva feminina e dupla maternidade : a possibilidade jurídica de duas mães e um filho ante as técnicas de reprodução humana assistida. 1º edição. Curitiba: Juruá. 2014. p. 50 17 Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 1957/10. 19 pessoas capazes”, segundo o Conselho Federal de Medicina 18 os casais formados por pessoas de mesmo sexo esbarravam em diferentes interpretações, uma vez que qualquer pessoa poderia se submeter ao procedimento de RA desde que “nos limites da resolução”. Considerando, dentre outros fatores, que o avanço do conhecimento científico permite solucionar vários casos de problemas de reprodução humana e que o pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu e qualificou como entidade familiar a união homoafetiva, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução nº 2013/13 19 de modo a deixar esse direito mais explicito afirmando que “é permitido o uso das técnicas de RA para relacionamentos homoafetivos e pessoas solteiras, respeitado o direito da objeção de consciência do médico”. De acordo com o presidente do CFM, Roberto d'Avila 20 a nova medida é uma demanda da sociedade moderna, devendo a medicina respeitar todos de maneira igual. 4 FILIAÇÃO Há não muito tempo, o Código Civil de 1916, Lei 3.071/16, dispensava tratamento diferenciado aos filhos, classificando-os de acordo com a origem, ou seja, se havidos do casamento ou não, de modo a serem divididos em “legítimos” ou “ilegítimos”, fazendo reproduzir uma hierarquia entre eles. No capítulo intitulado “da filiação legítima”, dispunha o artigo 337 que são legítimos os filhos concebidos na constância do casamento, ainda que anulado, ou mesmo nulo, se contraído de boa fé. Preceituava ainda - no art. 338 - quais os filhos 18 Novas regras de reprodução assistida destacam saúde da mulher e direitos reprodutivos para todos. (2013, 8 de maio). Conselho Federal de Medicina. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=23788%3Aresolucao-dereproducao-assistida-&catid=3%3Aportal&Itemid=1. 19 Conselho Federal de Medicina. Resolução nº2013/13 20 Novas regras de reprodução assistida destacam saúde da mulher e direitos reprodutivos para todos. (2013, 8 de maio). Conselho Federal de Medicina. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/index.php? 20 considerados como havidos da constância do casamento. Art. 338. Presumem-se concebidos na constância do casamento: I. Os filhos nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal (art. 339). II. Os nascidos dentro nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação. Art. 339. A legitimidade do filho nascido antes de decorridos os cento e oitenta dias que trata o n. I do artigo antecedente, não pode, entretanto, ser contestada: I. Se o marido, antes de casar, tinha ciência da gravidez da mulher. II. Se assistiu, pessoalmente, ou por procurador, a lavrar-se o termo de nascimento do filho, sem contestar a paternidade.21 Os filhos ilegítimos por sua vez, advindos de relacionamento extramatrimonial, eram divididos em naturais e espúrios, e estes, em adulterinos e incestuosos. Queiroga 22, quanto ao tema, ensina que legítimos eram os que nasciam da relação de casamento civil; ilegítimos eram os nascidos de relação extramatrimonial. Os ilegítimos dividiam-se em naturais ou espúrios. Filhos ilegítimos naturais eram nascidos de pais que não estavam impedidos de se casar. Os ilegítimos espúrios eram nascidos de pais que não podiam se casar, em virtude de impedimento. Os espúrios classificavam-se em adulterinos e incestuosos. Dava-se o primeiro caso, quando o impedimento decorria de casamento dos pais. (...) Se o impedimento para o matrimônio procedia de parentesco entre os pais, o filho nascido dessa relação era chamado incestuoso No capítulo “do reconhecimento dos filhos ilegítimos” dispunha o legislador que os filhos incestuosos e os adulterinos não poderiam ser reconhecidos, ao contrário dos filhos ilegítimos naturais, que uma vez legitimados por um dos cônjuges eram comparados aos legítimos, sem, entretanto, poderem residir no lar conjugal sem o consentimento do outro. Art. 352. Os filhos legitimados são, em tudo, equiparados aos legítimos 21 Código Civil de 1916 22 QUEIROGA, Antônio Elias. Curso de Direito Civil – Direito de família. Rio de Janeiro: Renovar, 2004 .p. 212 21 Art. 355. O filho ilegítimo pode ser reconhecido pelos pais, conjunta ou separadamente. Art. 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos Art. 359. O filho ilegítimo, reconhecido por um dos conjugues, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro. Em 1942 passou a não mais se proibir o reconhecimento dos filhos adulterinos pelo pai desquitado e em 1949 tornou-se possível que aqueles impetrassem ação de reconhecimento, desde que seu genitor não fosse mais casado. Entretanto, até 1977 não tinham os mesmos direitos sucessórios que os filhos legítimos. A Lei 7.841 de 17 de outubro de 1989 revogou o art. 358 do Código de 1916 e com o advento do Código Civil de 2002 afastou-se a ideia segundo a qual a família formada pelo casamento era a única a merecer tutela estatal, bem como vetou qualquer tratamento discriminatório com relação aos filhos, não mais se falando em filhos “legítimos” e “ilegítimos”. Assim, admitiu-se que o homem – mesmo casado – pudesse reconhecer o filho adulterino ou ser demandado em ação de paternidade. Hoje, independentemente se havidos fora do casamento ou em sua constância, todos os descendentes são apenas filhos, com diretos e qualificações iguais, como bem expressa o art. 1.596 do Código Civil. Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Fábio Ulhoa espécies, 23 afirma que atualmente se classifica a filiação em quatros classificação esta que é apenas ilustrativa, uma vez que independentemente do tipo, os filhos gozam dos mesmos direitos e deveres, sendo absolutamente idênticos. Segundo o autor, a filiação pode ser dividida em havidas do casamento ou fora dele e em biológica e não biológica, sendo esta última ramificada em filiação por 23 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, família e sucessões. 5ª edição. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 364. 22 substituição, socioafeitva e adotiva. Apesar da propagada ideia de igualdade entre os filhos, Maria Berenice Dias (2015)24 afirma que embora proibido o tratamento distinto entre os filhos, “o Código Civil trata em capítulos diferentes os filhos havidos da relação de casamento e os havidos fora do casamento”, estes no capítulo “do reconhecimento dos filhos”, aqueles no capítulo “da filiação”. 4.1 FILIAÇÃO BIOLÓGICA Na filiação biológica o descendente carrega o material genético das pessoas identificadas como seus genitores no seu registro civil. Ou seja, os pais, civilmente falando, são aqueles que forneceram seus gametas para a concepção do indivíduo, seja de modo natural ou não. Quando decorrer de concepção não natural, estaremos diante de fertilização in vitro, aplicando-se técnicas de fecundação assistida homóloga. Nesta técnica, usa-se gametas do homem e da mulher que desejam ter um filho, mas por algum motivo não conseguem ou tem dificuldade. 4.2 FILIAÇÃO NÃO BIOLÓGICA Na filiação não biológica o filho não carrega a herança genética dos seus dois pais, podendo ser subdividida em filiação adotiva, socioafetiva e por substituição. A filiação adotiva, como o próprio nome indica, tem como base a adoção, que é um processo judicial do qual decorre a substituição da filiação de uma pessoa. Quando se estiver diante de situação que necessite de interferência estatal, a adoção deve ser medida excepcional e irrevogável, a qual se deve recorrer apenas 24 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10º edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2015. p. 386 23 quando já houverem esgotados os recursos para a manutenção da criança na família natural ou extensa. De acordo com o disposto no Estatuto da Criança e Adolescente (Lei 8.069/90)25, o adotante deverá ter no máximo 18 anos, salvo se já estiver na guarda ou tutela dos adotantes. Estes por sua vez, devem ter no minimo 18 anos e deve ser pelo o menos 16 anos mais velho que o adotado. Preceitua ainda a Lei 8.069 que a adoção rompe com os vínculos (salvo os matrimoniais) do adotado com seus pais biológicos e parentes, atribuindo condição de filho ao adotado, tendo este os mesmo direitos e deveres – inclusive sucessórios - dos filhos biológicos. A filiação por substituição acontece quando há impossibilidade de uma mulher e homem poderem conceber seu filho por esforço próprio, resultando assim, em fecundação homóloga, heteróloga ou em gestação por substituição – a chamada “barriga de aluguel”. Quanto a esta última possibilidade, o Conselho Federal de Medicina por meio da Resolução nº 2013/1326, estabeleceu que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial e as doadoras devem pertencer à família de um dos parceiros em um\zsaw3 parentesco consanguíneo até o quarto grau e devem ter até 50 anos de idade. De qualquer modo, independente da técnica utilizada, os pais serão os “contratantes” da prestação. A filiação socioafetiva a seu turno é constituída pelos aspectos das relações sociais e emocionais, não resultando de laços biológicos tampouco de presunções legais de paternidade. 5 O RECONHECIMENTO DA DUPLA MATERNIDADE Como explicitado anteriormente, levando-se em conta o atual estágio e 25 Lei 8.069. Estatuto da Criança e do Adolescente. 26 Conselho Federal de Medicinal. Resolução nº 2013/13 24 avanços na área da medicina é perfeitamente viável a possibilidade de procriação utilizando-se material genético de doador para a reprodução assistida heteróloga. Em se tratando de relacionamento entre mulheres, uma delas poderá ser a doadora do material genético unido com o material genético do doador, podendo ela mesma gestar ou tal função ficar a cargo da outra parceira. Mas, independentemente de quem seja a doadora dos óvulos e de quem desenvolverá a gestação, o cerne da questão passa pela relação de parentesco, buscando compreender se nestes casos há uma dupla maternidade ou se a mãe é somente aquela que doou material genético. O legislador brasileiro ainda não apresentou resposta a este questionamento, não podendo se falar, portanto, em um ordenamento jurídico compatível com a complexidade da sociedade, tendo o Poder Judiciário feito suas vezes. Entretanto, apesar do descompasso entre as alterações sociais e as respectivas alterações normativas, não há que se empregar o discurso da ausência de norma reguladora para se perpetuar o comportamento omisso diante da pluralidade e complexidade dos aspectos que envolvem os relacionamentos homoafetivos, carecedores de tutela do Estado. Maria Berenice Dias 27 ressalta, então, que a responsabilidade do Poder Judiciário aumenta, devendo este assegurar tratamento isonômico e proteção igualitária a todos quando o legislador se omite. Omissão que dificulta o reconhecimento dos direitos atinentes às minorias, principalmente quando diante de situações que se afastam dos padrões convencionais. Segundo Ana Carla Harmatiuk Matos a resposta a este questionamento não está consolidada, ainda se encontrando em fase de construção, que possui como referencial legislativo o Texto Constitucional de 1988, o Estatuto da Criança e Adolescente e o Código Civil de 2002, bem como a nova lei da adoção, os quais 27 DIAS, Maria Berenice. Uniões Homoafetivas. In: Pereira, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e Responsabilidade: Teoria e prática do direito de família. 1ª. ed. Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2010. p. 29- 37 pag. 30 25 “apresentam-se como um sistema aberto, de modo a dialogar com as transformações sociais”. 28 Dias acrescenta que excluir os homossexuais do direito de constituírem uma família e, consequentemente restringirem a possibilidade de crianças e adolescentes viverem em lares com pessoas do mesmo sexo é uma postura discriminatória com caráter punitivo. Ademais, “os vínculos de filiação não podem ser buscados na realidade biológica, e a definição da paternidade está condicionada à identificação da posse do estado de filho”.29 O Poder Judiciário pátrio, ao que parece, está pautando suas decisões nos referenciais acima mencionados. Em recente sentença, a Juíza Paula Murça Machado Rocha Moura da Vara de Registro Público da Comarca de Belo Horizonte determinou que no registro do menor constasse o nome das requerentes como mães. Alegou que não se poderia cometer injustiças apenas pela inexistência de normas expressas e que uma vez reconhecida a união formada por pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, não há como impedir que as partes tenham acesso às técnicas e procedimentos necessários para gerarem seus descendentes. Afirmou ainda que sua decisão não iria de encontro ao melhor interesse do menor, haja vista existência de estudos que concluem pelo não prejuízo de qualquer natureza para as crianças criadas por entidade familiar composta de pessoas do mesmo sexo. 30 Quanto aos estudos mencionados na decisão acima, recorremos ao RESP nº889.852/RS para melhor entendimento. Na decisão, o ministro Luis Felipe Salomão31 destaca que os estudos indicam que 28 MATOS, Ana Carla Harmatiuk. In: Pereira, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e Responsabilidade: Teoria e prática do direito de família. 1ª. ed. Porto Alegre: Magister/IBDFAM. 2010. p. 44 29 DIAS, Maria Berenice. In: Pereira, Rodrigo da Cunha (Org.). Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil. 1ª ed. Belo Horizonte : Del Rey. 2004. p. 394 30 Minas Gerais. Tribunal de Justiça. Sentença disponível em: http://www.direitohomoafetivo.com.br/jurisprudencia.php?a=38&s=72#t 31 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 889852/RS. 26 - ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar, quanto na circunstância de amar e servir; - nem sempre, na definição dos papéis maternos e paternos, há coincidência do sexo biológico com o sexo social; - o papel de pai nem sempre é exercido por um indivíduo do sexo masculino; - os comportamentos de crianças criadas em lares homossexuais não variam fundamentalmente daqueles da população em geral; - as crianças que crescem em uma família de lésbicas não apresentam necessariamente problemas ligados a isso na idade adulta; - não há dados que permitam afirmar que as lésbicas e os gays não são pais adequados ou mesmo que o desenvolvimento psicossocial dos filhos de gays e lésbicas seja comprometido sob qualquer aspecto em relação aos filhos de pais heterossexuais; - educar e criar os filhos de forma saudável o realizam semelhantemente os pais homossexuais e os heterossexuais; - a criança que cresce com 1 ou 2 pais gays ou lésbicas se desenvolve tão bem sob os aspectos emocional, cognitivo, social e do funcionamento sexual quanto à criança cujos pais são heterossexuais. Estes estudos, portanto, sinalizam para a ausência de prejuízos para a criança que convive e é educada por um casal homossexual. No mesmo sentido que a juíza mineira, decidiu o Desembargador Luciano Silva Barreto do Tribunal do Rio de Janeiro ao afirmar que no caso em análise o elemento social e afetivo da parentalidade se sobressai , sendo a menor fruto de reprodução assistida heteróloga, projeto pensado e desejado pelas requerentes. Ademais, ressalta que o registro deve ser realizado, sendo observado o interesse da menor, à luz do art. 100, inciso IV da Lei 8.069/90 . APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE DUPLA MATERNIDADE. PARCEIRAS DO MESMO SEXO QUE OBJETIVAM A DECLARAÇÃO DE SEREM GENITORAS DE FILHO CONCEBIDO POR MEIO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA, COM UTILIZAÇÃO DE GAMETA DE DOADOR ANÔNIMO. AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA QUE NÃO É OBSTÁCULO AO DIREITO DAS AUTORAS. DIREITO QUE DECORRE DE INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA DE DISPOSITIVOS E PRINCÍPIOS QUE INFORMAM A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NOS SEUS ARTIGOS 1º, INCISO III, 3º, INCISO IV, 5º, 226, § 7º, BEM COMO DECISÕES DO STF E STJ. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA. SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA QUE IMPÕE O REGISTRO PARA CONFERIR-LHE O STATUS DE FILHO DO CASAL. (TJRJ - APL: 00177955220128190209 RJ 0017795-52.2012.8.19.0209, Relator: 27 DES. LUCIANO SILVA BARRETO, Data de Julgamento: 07/08/2013, VIGÉSIMA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 04/04/2014 16:20) 32 Uma vez que os tribunais brasileiros apontam para a homoparentalidade, delineando o parentesco entre o casal homoafetivo e os nascidos da relação por meio de reprodução assistida, é imperioso suscitar que este reconhecimento pode vir a ser elemento essencial quanto a prestação de alimentos. 6 ALIMENTOS 6.1 CONCEITO Antes de maiores digressões acerca do tema, se faz necessário apresentar um conceito, mesmo que sucinto, de alimentos. De acordo com o artigo 1.694 do Código Civil, 33 os alimentos são prestações das quais o alimentando necessita para viver de modo compatível com a sua condição social, incluindo também as necessidades de sua educação. Yussef Said Cahali 34 nos ensina que a prestação alimentar é uma obrigação imposta em razão de uma causa jurídica prevista em lei. Acrescenta que a palavra “alimentos” significa tudo o que é necessário para satisfazer aos reclamos da vida; são prestações com as quais podem ser satisfeitas as necessidades vitais de quem não pode provê-las por si; mais amplamente, é a contribuição periódica assegurada a alguém, por um título de direito, pare exigi-la de outrem, como necessária a sua manutenção 32 RIO DE JANEIRO. Tribunal de justiça. Apelação Civil nº 00177955220128190209. 33 Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. § 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. 34 CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 15 28 Flávio Tarttuce 35 por sua vez, afirma que os alimentos devem assegurar a dignidade do credor, englobando, assim, as necessidades vitais como alimentação, saúde, moradia, dentre outras. No mesmo sentido, Pablo Stolze e Pamplona Filho 36 defendem que a obrigação alimentar se consubstancia nas prestações necessárias para a vida e dignidade do alimentando, dignidade que aliás é um dos princípios básicos do ordenamento pátrio. Carlos Roberto Gonçalves 37, na lição de Sílvio Rodrigues, esclarece que a tendência moderna é a de impor ao Estado o dever de socorro dos necessitados, tarefa que ele se desincumbe, ou deve desincumbir-se, por meio de sua atividade assistencial. Mas, no intuito de aliviar-se desse encargo, ou na inviabilidade de cumpri-lo, o Estado o transfere, por determinação legal, aos parentes, cônjuges ou companheiros do necessitado, cada vez que aqueles possam atender a tal incumbência 6.2 ESPÉCIES Os alimentos podem ser divididos em diversas espécies, sendo classificados pelos doutrinadores sob vários aspectos. De certo, cada um dos autores apresenta sua própria classificação. Entretanto, não é pertinente à finalidade do trabalho jugar ou analisar a adequação de cada uma, tão somente apresentar de modo didático a ideia de alguns autores. Sendo assim, será utilizada a divisão feita por Cahali (2012), 38 com eventuais apontamentos de outros autores. O mencionado autor divide os alimentos quanto à natureza, a causa jurídica, 35 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 4ª ed. Rio de janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 894 36 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil. 2ªed. São Paulo: Saraiva. 2014. p. 765 37 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 9ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012. 38CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 18 29 ao momento da prestação, à modalidade e de acordo com a finalidade, conforme será expresso a seguir. I) Quanto à natureza: Segundo este critério os alimentos podem ser naturais ou civis. Os primeiros são aqueles relacionados com o mínimo necessário para a manutenção do indivíduo, abrangendo a alimentação, vestuário, moradia, dentre outros. Os segundos são compreendidos para além desse limite, abarcando, por exemplo, as necessidades intelectuais e morais do alimentado. II) Quanto à causa jurídica: Segundo o autor usado com referência, os alimentos são resultado da lei ou de uma atividade do homem. No primeiro caso, o ordenamento jurídico estabelece situações das quais nasce a obrigação alimentícia, podendo decorrer da relação de sangue, parentesco ou natureza familiar e matrimônio. No segundo caso, podem os alimentos decorrerem da atividade do homem, seja por sua própria vontade, seja por ter cometido ato ilícito. Os voluntários são fruto de uma declaração de vontade, inter vivos ou causa mortis, em razão de um contrato ou disposição de última vontade, como, por exemplo, a constituição de uma renda vitalícia ou usufruto. Quanto à obrigação resultante de ato ilícito, esta apresenta-se como uma indenização, por exemplo, em caso de homicídio do provedor da família, podendo seus dependentes pleitearem alimentos. III) Quanto ao momento da prestação: Nesta categoria, será apresentada a distinção feita por Tartuce 39 , por considerá-la um pouco mais elucidativa, data máxima vênia. 39 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 4ª ed. Rio de janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 903. 30 De acordo com o autor, são denominados de pretéritos os alimentos que ficaram no passado e por via de regra não podem ser mais pleiteados, salvo se já fixados em sentença ou em acordo e desde que não alcançados pela prescrição, Os alimentos presentes são os atuais e os futuros são os alimentos ainda pendentes, que poderão ser pleiteados. V) Quanto à modalidade: Esta categoria subdivide a prestação alimentar em própria e imprópria, aquela se refere ao necessário para a manutenção do indivíduo, enquanto esta representa os meios idôneos para aquisição de bens fundamentais à subsistência. V) Quanto à finalidade: Os alimentos definitivos (regulares) são, via de regra, fixados por meio de sentença ou decisão judicial, cabendo, ao contrário do que a nomenclatura indica, revisão quando há alteração no binômio/trinômio necessidade – possibilidade – proporcionalidade. Alimentos provisórios são concedidos liminarmente antes da decretação da sentença, conforme disposição da Lei 5.478/68. Neste caso, há que falar em prova de parentesco ou de casamento. Os alimentos provisionais estão disciplinados no art. 1.706 do CC e segundo Tartuce 40 são estipulados em outras ações que não seguem o rito especial mencionado, visando manter a parte que os pleiteia no curso da lide (ad litem). São fixados por meio de antecipação de tutela ou em liminar concedida em medida cautelar de separação de corpos em ações em que não há a mencionada prova pré-constituída, caso da ação de investigação de paternidade ou da ação de reconhecimento e dissolução da união estável Por fim, os alimentos transitórios são fixados por período de tempo determinado. Nesta hipótese, leva-se em consideração, por exemplo, a possibilidade 40TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 4ª ed. Rio de janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 904. 31 e capacidade do ex-cônjuge de voltar ao mercado de trabalho, atingindo sua independência financeira, não necessitando que seja tutelado pelo alimentante. 6.3 PRESSUPOSTOS DE FIXAÇÃO : BINÔMIO NECESSIDADE POSSIBILIDADE O art. 1.69541 do Código Civil preceitua que os alimentos são devidos àqueles que não podem prover sua manutenção, pois não possuem bens suficientes para tal ou não podem prover por meio de seu trabalho. Por outro lado, aquele de quem se reclama, pode fornecê-los sem que desfalque o necessário ao seu sustento. Significa dizer, portanto, que por um lado há a necessidade de assegurar a manutenção digna do indivíduo que não consegue se prover por seu esforço, por outro, que o obrigado a prestar auxílio deve fazê-lo sem que afete seu próprio sustento. Da leitura e interpretação do excerto depreende-se, então, o que a doutrina comumente denomina de binômio necessidade – possibilidade. Entretanto, doutrina mais moderna sinaliza para a fixação dos alimentos baseada em um trinômio, de modo a não se basear tão somente nos elementos da necessidade e possibilidade, mas também na razoabilidade ou proporcionalidade. Ou seja, não se leva em conta apenas a necessidade do credor ou a capacidade financeira do devedor, mas a análise e aplicação conjunta destes dois parâmetros. A ideia do trinômio, conforme destaca Tartuce (2014) 42, é defendida por Maria Helena Diniz e Paulo Lôbo, os quais incorporam como terceiro elemento a proporcionalidade e razoabilidade, respectivamente. 41 Art. 1.695. São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecêlos, sem desfalque do necessário ao seu sustento. 42TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 4ª ed. Rio de janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 895. 32 O autor destaca ainda que a a razoabilidade ou proporcionalidade deve ser elevada à condição de requisito fundamental para se pleitear os alimentos. Sendo assim, é possível rever aquela antiga ideia de que os alimentos visam à manutenção do status quo da pessoa que os pleiteia. Concretamente, é irrazoável pensar que uma mulher jovem, que tem plena condição e formação para o trabalho, pode pleitear alimentos do ex-marido, mantendo-se exclusivamente pela condição de ex-cônjuge.43 6.4 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS I) Caráter personalíssimo Por visarem a integridade do alimentado, os alimentos são destinados em razão da pessoa daquele que necessita, não podendo ser cedidos a outrem ou pleiteados por uma pessoa em nome de outra (art. 6º CPC). 44 Cabe fazer uma diferenciação entre alimento intuito persoane e intuito familiae. O primeiro, como já explicado é fixado em razão da pessoa, o segundo não leva em conta uma única pessoa, mas toda a família. Assim, quando da revisão dos alimentos instituídos intuito familiae, em virtude de um dos alimentandos não mais necessitar, o valor a ser reduzido pode não ser aritmético. Ou seja, o montante reduzido não será necessariamente proporcional ao necessário para a manutenção dos que ainda necessitam. II) Reciprocidade A princípio cabe ressaltar que este elemento não significa que duas pessoas devam alimentos entre si simultaneamente, mas que entre pais e filhos há direito de prestação de alimentos, sendo estendido a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros, conforme nos ensina 43 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 4ª ed. Rio de janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 895. 44 Art. 6o Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei. 33 o art. 1.69645 do Código Civil. Entretanto, importante lembrar que o dever de prestar alimentos cessa quando do casamento, união estável ou concubinato do credor, bem como se tiver procedimento indigno em relação ao devedor. III) Proximidade O final do art. 1.696 do CC, já mencionado acima, traz o elemento da proximidade, estabelecendo que a obrigação de prestar alimentos terá como devedor aquele que for de grau mais próximo. Isso significa que o alimentando deverá dirigir seu pedido primeiramente ao seus genitores, devendo acionar seus avós quando aqueles já estiverem falecidos ou não tiverem condições financeiras de suportar tal ônus. IV) Irrenunciabilidade O art. 1.707 do CC afirma não ser possível ao credor renunciar o direito de alimentos, haja vista que a finalidade destes é proteger a vida daquele que necessita, sendo, assim, um direito inerente à personalidade, tutelado pelo Estado com normas de ordem pública, sendo, portanto, irrenunciável. Yussef Said Cahali 46 afirma, entretanto, que a irrenunciabilidade alcança o direito e não o seu exercício. Desta forma, o credor não pode renunciar a alimentos futuros, mas aos alimentos devidos e não prestados. V) Irrepetibilidade Não há no ordenamento pátrio disposição expressa referente a este elemento, resultando, portanto, da prática nos tribunais. Tal elemento pressupõe que uma vez prestados os alimentos, estes não podem ser pleiteados de volta, caso haja pagamento a mais ou indevido. 45 Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros. 46 CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 50. 34 Entretanto, há autores como Leandro de Faria Beraldo 47 e Cahali 48 que defendem que em se tratando de má-fé, fraude ou dolo, dependendo do caso concreto, pode haver sim devolução da quantia paga. VI) Incompensabilidade Em decorrência da finalidade da prestação alimentícia, a qual pretende assegurar ao beneficiário meios indispensáveis a sua manutenção, o art. 1.707 do CC veda expressamente a compensação em seara de alimentos, ou seja, não se admite que estando o alimentado em débito com o alimentante, este se exima de sua obrigação, exigindo a compensação das obrigações. Entretanto, a doutrina defende algumas ressalvas ao princípio da incompensabilidade, de modo a não se haver configurado enriquecimento sem causa, por exemplo. VII) Impenhorabilidade é elemento de decorrência lógica da finalidade dos alimentos. Se estes são prestados ao alimentado, o qual precisa do recurso para sua manutenção, não é cabível que se admita que as prestações alimentícias sejam penhoradas. Desta forma, não pode o credor do beneficiado privá-lo de algo essencial à sua subsistência. VIII) Intransmissibilidade Característica um tanto quanto polêmica, uma vez que não há consenso quanto a extinção da obrigação alimentar, quando da morte do devedor ou credor. O entendimento encontrado em Yussef Said Cahali 49 é de que se o credor 47BERALDO, Leonardo de Faria. Alimentos no Código Civil: aspectos atuais e controvertidos com enfoque na jurisprudência. 1º ed. Belo Horizonte: Fórum. 2012. p. 21. 48 CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.. p.107. 49 BERALDO, Leonardo de Faria. Alimentos no Código Civil: aspectos atuais e controvertidos com enfoque na jurisprudência. 1º ed. Belo Horizonte: Fórum. 2012. p. 51. 35 vier a falecer, seus herdeiros não o sucederiam neste direito. Este raciocínio também se aplicaria ao devedor com a ressalva que se houvesse prestações em atraso, estas deveriam ser pagas aos sucessores deste, uma vez que a prestação não paga se constituiria sob a forma de dívida, devendo, então, incorporar o passivo do espólio. IX) Imprescritibilidade Aquele que tem direito a requerer alimentos pode fazê-lo a qualquer tempo, uma vez que seu direito não se perde com o decurso do tempo. Não há que confundir, entretanto, o direito de pleitear alimentos com a sua cobrança, ocorrendo prescrição apenas na última hipótese. De acordo com o parágrafo segundo do art. 206 do CC, prescreve em dois anos a pretensão para haver prestações alimentares, contando a partir da data que venceram. Frisa-se que em se tratando de incapaz, a prescrição para ele não corre, de modo que mesmo que este não tenha cobrado o valor que lhe é devido, o devedor não poderá se eximir de pagar sob a alegação do decurso do tempo. X) Anterioridade De acordo com este elemento, os alimentos são pagos antecipadamente, devendo ser pagos, de modo geral, no início de cada mês e sendo a este referente. Isso decorre do fato do alimentado necessitar desta verba para seu sustento e gastos corriqueiros, devendo ser assistido de forma imediata. XI) Atualidade Em razão da inflação o valor pago pelo devedor deve ser corrigido, usando como parâmetro o IPCA ou o salário mínimo, por exemplo. XII) Irretroatividade 36 Significa dizer que os alimentos “passados” não podem ser requeridos. Ou seja, entende-se que se o necessitado não pleiteou seu direito, não precisava da verba para sua sobrevivência, não podendo posteriormente reivindicar direito não exercido. XIII) Divisibilidade O art. 1.698 estabelece que “se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”. 50 Isso significa dizer que os alimentos devem ser prestados pelos obrigados primários, dentro de suas possibilidades, e, no caso de impossibilidade, buscar-se-á a satisfação do direito do necessitado nos obrigados secundários. XIV) Não cedibilidade Decorre da natureza do alimento, o qual é prestado em razão da pessoa do necessitado, possuindo caráter estritamente pessoal, de modo a não poder ser cedido a terceiro. XV) Alternatividade O artigo 1.70151 do Código Civil estabelece que os alimentos podem ser prestados de forma diversa a pecuniária. Isso significa dizer que o devedor pode tanto pagar a pensão em dinheiro como pode manter o credor em sua própria casa, 50 Código Civil de 2002. 51 Art. 1.701. A pessoa obrigada a suprir alimentos poderá pensionar o alimentando, ou dar-lhe hospedagem e sustento, sem prejuízo do dever de prestar o necessário à sua educação, quando menor. Parágrafo único. Compete ao juiz, se as circunstâncias o exigirem, fixar a forma do cumprimento da prestação. 37 ou ainda pode repassar seu vale transporte ou vale alimentação, por exemplo, como exemplifica Leonardo de Faria Beraldo. 52 XVI) Não transacionável Ao que parece, parte da doutrina entende que o direito a alimentos não pode ser passível de transação, em virtude de sua finalidade e caráter pessoal, o que justificaria determinadas limitações a autonomia da vontade. Caso tal hipótese fosse permitida, restaria configurada renúncia ao direito a alimentos. XVII) Periodicidade Caso a obrigação alimentar não seja prestada por meio da hospedagem, acolhimento e sustento, se cumprirá por meio da prestação pecuniária. Quando assim for, se fixará de quanto em quanto tempo deverá a quantia ser paga, sendo mais comum, o pagamento mensal, de certo que não óbice ao pagamento semanal ou quinzenal, por exemplo. XVIII) Preferencialidade e indeclinabilidade Uma vez que os alimentos são destinados à sobrevivência do alimentado, o crédito alimentar tem preferência sobre os demais. Entende-se que a satisfação do crédito não pode esperar, devendo ser executado tão logo seja possível, não causando danos a integridade do alimentado. Cabe ressaltar que a lei estabelece meios coativos para facilitar ou promover o adimplemento da obrigação. Ademais, há que falar que o devedor não pode declinar de sua obrigação, ou seja, não pode se esquivar de pagar o devido mesmo que esteja sofrendo condenação criminal, por exemplo. 52 BERALDO, Leonardo de Faria. Alimentos no Código Civil: aspectos atuais e controvertidos com enfoque na jurisprudência. 1º ed. Belo Horizonte: Fórum. 2012. p.32. 38 6.5 DEVER DE SUSTENTO Como mencionado anteriormente, o Estado se desincumbe de sua tarefa de assistência aos necessitados, transferindo-a, por determinação legal, aos parentes, cônjuges ou companheiros daquele que necessita. Em se tratando da relação entre pais e filhos, dispõe o art. 1566, inciso IV do Código Civil que é dever de ambos os cônjuges o sustento, guarda e educação dos filhos, de onde depreendemos ser estas obrigações. Estas obrigações por sua vez tem causa no poder familiar, instituto apresentado no capítulo V do Código Civil de 2002, que outorga certas prerrogativas aos pais para que eles possam cumprir com seus deveres. Conforme nos ensina Cahali 53 para permitir aos pais o desempenho eficaz de suas funções, a lei provê os genitores de poder familiar, com atribuições que não se justificam senão por sua finalidade. São direitos a eles atribuídos para lhes permitir o cumprimento de sua obrigações em relação à prole. Não há poder familiar senão porque deles se exigem obrigações que assim se expressam: sustento, guarda e educação dos filhos Importante ressaltar que enquanto menores os filhos, não há que falar em um direito autônomo de alimentos, haja vista que há uma obrigação de assistência paterna, decorrente do dever de sustentar e criar a prole. 54 Não se deve confundir também o dever de sustento com o dever de prestar alimentos, tendo este base na necessidade do credor e possibilidade do devedor. Quanto ao pressuposto para a concessão e características da prestação alimentar, tal temática já fora exposta em momento oportuno, cabendo no momento explicitar outras nuances. Quando da obrigação alimentar em seara de filhos menores de idade, tem-se que a necessidade é presumida, o que significa dizer que os genitores – ou um 53 CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.. p. 333 54 CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 333 39 deles- será compelido a pagar a “pensão” enquanto seu descendente não completar 18 anos, o que não quer dizer, entretanto, que o valor a ser pago não obedecerá nenhum parâmetro, devendo se observar a aplicação do binômio necessidade – possibilidade. A ideia explicitada acima encontra respaldo em decisão proferida do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, conforme se segue. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ALIMENTOS. FILHA MENOR DE IDADE. BINÔMIO NECESSIDADE-POSSIBILIDADES. NECESSIDADES PRESUMIDAS. As necessidades dos filhos menores de idade são presumidas, competindo aos genitores lhes prestar assistência na medida de suas possibilidades. Entretanto, a fixação dos alimentos exige o equilíbrio entre a necessidade e a possibilidade, razão pela qual é inviável deferir os alimentos no valor pugnado. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. (TJ-RS - AI: 70064597404 RS , Relator: Alzir Felippe Schmitz, Data de Julgamento: 25/06/2015, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 30/06/2015)55 Os filhos que completam 18 anos, por sua vez, não gozam mais da presunção absoluta de necessidade, de modo a terem que comprovar que ainda carecem de assistência. Este entendimento é defendido no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, conforme pode-se verificar a seguir. EMENTA: AÇÃO DE EXONERAÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA - FILHO MAIOR - COMPROVAÇÃO DA REAL NECESSIDADE DOS ALIMENTOS IMPOSSIBILIDADE NÃO VERIFICADA - AUSÊNCIA DE PROVA DO LABOR RECURSO DESPROVIDO. 1. A maioridade extingue a presunção da necessidade dos alimentos, devendo o beneficiário comprovar, a partir de então, além da possibilidade do alimentante de suportar a pensão alimentícia, a sua real necessidade, devendo subsistir o pensionamento se comprovado que o requerido vive em estado de penúria e que não exerce atividade laborativa. 2. Recurso desprovido. (grifo nosso) (TJMG - Apelação Cível 1.0447.13.000887-6/001, Relator(a): Des.(a) Teresa Cristina da Cunha Peixoto , 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 16/04/0015, publicação da súmula em 28/04/2015) 56 55 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 70064597404 RS 56 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Civil nº 1.0447.13.000887-6/001 40 EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. FILHA MAIOR. REGIME DE ESTUDOS COMPATÍVEL COM O TRABALHO. AUSÊNCIA DE PROVA DA NECESSIDADE DO PENSIONAMENTO. SENTENÇA MANTIDA. - Alcançada a maioridade do filho a pensão alimentícia pode subsistir em razão da relação de parentesco e não mais com base no dever de sustento. - Incumbe à filha maior o ônus de comprovar a necessidade dos alimentos, demonstrando sua incapacidade de prover sua própria mantença. - Observadas as condições sociais dos envolvidos, a freqüência a aulas não implica na necessidade de alimentos se o regime de estudos é compatível com o desempenho de atividade remunerada. - Recurso não provido. (grifo nosso) (TJMG- Apelação Cível 1.0512.12.004221-7/003, Relator(a): Des.(a) Heloisa Combat , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 02/07/0015, publicação da súmula em 08/07/2015)57 Ambas as decisões afirmam que com a maioridade cessa o poder familiar, o que não significa que cesse o dever de prestar alimentos de forma automática. Há que falar, no entanto, na extinção da presunção da necessidade da prestação alimentar, de modo a ter o beneficiado de comprovar a sua necessidade e a possibilidade do alimentante de suportar a obrigação. O Superior Tribunal de Justiça, conforme Resp. 688.902 de relatoria do Min. Fernando Gonçalves também assinala para a necessidade de comprovação da real necessidade do filho que já completou a maioridade. DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. EXONERAÇÃO AUTOMÁTICA COM A MAIORIDADE DO ALIMENTANDO. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES. 1. Com a maioridade cessa o poder familiar, mas não se extingue, ipso facto, o dever de prestar alimentos, que passam a ser devidos por força da relação de parentesco. Precedentes. 2. Antes da extinção do encargo, mister se faz propiciar ao alimentando oportunidade para comprovar se continua necessitando dos alimentos. 3. Recurso especial não conhecido. (STJ , Relator: Ministro FERNANDO GONÇALVES, Data de Julgamento: 16/08/2007, T4 - QUARTA TURMA)58 57 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação Civil nº 1.0512.12.004221-7/003 58 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 688.902 41 Indo um pouco além, a Min. Nancy Andrighi no Resp. 1198105 também ressalta a necessidade de prova quando da requisição de alimentos pelo filho maior de idade. No entanto, este ônus provatório será afastado no caso do filho que prossiga nos estudos após a maioridade. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. EXONERAÇÃO.MAIORIDADE. NECESSIDADE. ÔNUS DA PROVA. 1. O advento da maioridade não extingue, de forma automática, o direito à percepção de alimentos, mas esses deixam de ser devidos em face do Poder Familiar e passam a ter fundamento nas relações de parentesco, em que se exige a prova da necessidade do alimentado. 2. A necessidade do alimentado, na ação de exoneração de alimentos,é fato impeditivo do direito do autor, cabendo àquele a comprovação de que permanece tendo necessidade de receber alimentos. 3. A percepção de que uma determinada regra de experiência está sujeita a numerosas exceções acaba por impedir sua aplicação para o convencimento do julgador, salvo se secundada por outros elementos de prova. 4. Recurso provido. (STJ , Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 01/09/2011, T3 - TERCEIRA TURMA)59 Apesar de desonerar o filho maior de provar a sua necessidade na hipótese de estar estudando, a Ministra ressalta no Resp. 1.218. 510 que a obrigação alimentar persistirá tão somente até findar o curso de graduação. Afirma que o estímulo à qualificação profissional dos descendentes não pode ser imposta ao pais de forma perene. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE ALIMENTOS. CURSOSUPERIOR CONCLUÍDO. NECESSIDADE. REALIZAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO.POSSIBILIDADE. 1 O advento da maioridade não extingue, de forma automática, o direito à percepção de alimentos, mas esses deixam de ser devidos em face do Poder Familiar e passam a ter fundamento nas relações de parentesco, em que se exige a prova da necessidade do alimentado. 2. É presumível, no entanto, presunção iuris tantum -, a necessidade dos filhos de continuarem a receber alimentos após a maioridade, quando frequentam curso universitário ou técnico, por força do entendimento de que a obrigação parental de cuidar dos filhos inclui a outorga de adequada formação profissional. 3. Porém, o estímulo à qualificação profissional dos filhos não pode ser imposto aos pais de forma perene, sob pena de subverter o instituto da obrigação alimentar oriunda das relações de parentesco,que tem por 59 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 1198105 42 objetivo, tão só, preservar as condições mínimas de sobrevida do alimentado. 4. Em rigor, a formação profissional se completa com a graduação,que, de regra, permite ao bacharel o exercício da profissão para a qual se graduou, independentemente de posterior especialização,podendo assim, em tese, prover o próprio sustento, circunstância que afasta, por si só, a presunção iuris tantum de necessidade do filho estudante. 5. Persistem, a partir de então, as relações de parentesco, que ainda possibilitam a percepção de alimentos, tanto de descendentes quanto de ascendentes, porém desde que haja prova de efetiva necessidade do alimentado. 6. Recurso especial provido. (grifo nosso) (STJ , Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 27/09/2011, T3 - TERCEIRA TURMA)60 7 A LEI 11. 804 DE 2008 7.1 O PROJETO DE LEI 7376 DE 2006 O projeto de lei 7376/2006 (PLS 62/04) 61 proposto pelo então senador Rodolpho Tourinho visava disciplinar o direito a alimentos gravídicos, a forma como seria exercido e demais providências, garantindo assim, alimentos para a mulher gestante. O Senador Marco Maciel, relator da Comissão de Assuntos Sociais, no parecer nº944/06 afirmou que o projeto de Lei 7376/06 era louvável pois tinha como objetivo garantir à gestante o direito de receber quantia destinada a custear as despesas que advém do seu estado, de modo a proporcionar um período mais tranquilo e saudável. Ressaltou ainda que o projeto iria alcançar aquelas mulheres grávidas que não se encontravam na segurança de um relacionamento conjugal estável, ”no qual, de modo geral, a paternidade responsável se expressa naturalmente” 62 Após parecer da Comissão de Assuntos Sociais, o projeto de lei foi analisado 60 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp nº 61 BRASIL. Projeto de Lei 7376 de 2006 62 BRASIL. Parecer nº 944 de 2006 1.218. 510 43 pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, tendo como relatora a senadora Serys Slhessarenko, que afirmou em sua análise que não havia inconstitucionalidade a se alegar, não havendo também que fazer maiores apontamentos quanto a juridicidade e regimentalidade. No tocante ao mérito, ressaltou que não se pode mais aceitar passivamente a injusta situação da mulher grávida que, e, muitos casos, assume sozinha todos os encargos financeiros necessários aos cuidados pré-natais, sem que disponha de meios coercitivos para fazer o futuro dai ajudá-la nesse sentido, de maneira que se faz necessária a criação de instrumentos legais para ampará-la em sua legítima pretensão por alimentos gravídicos 63 A Comissão de Seguridade Social e Família, por sua vez, por meio da relatoria da deputada Solange Almeida 64 entendeu que o projeto de lei visava a tornar incontestável algo que já era concedido pela via judicial, bem como sanaria uma lacuna judicial, pois muitas mulheres engravidam fora de uma relação estável, e somente contarão com ajuda financeira do genitor após o nascimento da criança, quando do pagamento da pensão alimentícia. Desta forma, em havendo prova razoável de que determinado indivíduo seria pai da criança, nada mais justo que contribuísse mesmo antes do nascimento, podendo propiciar um bom andamento da gravidez. A deputada frisou que a proposição dispõe que ocorrendo imputação injusta ou de má-fé da paternidade não comprovada por meio da perícia, poderia o lesado ajuizar ação indenizatória por danos materiais e morais. O deputado Manoel Ferreira 65, relator da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em 2008 posicionou-se de modo favorável ao projeto de lei por entender que traria inovações benéficas, haja vista que proporcionaria à mulher gestante assistência necessária e essencial para o desenvolvimento da gestação, restando, 63 BRASIL. Parecer nº 945 de 2005 64 BRASIL. Parecer da Comissão de Seguridade Social e Família 65 BRASIL. Parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania 44 pois, observados os princípios constitucionais do direito à saúde e à vida. Após a relatoria do deputado Manoel Ferreira, o também deputado Regis de Oliveira66 pediu vênia para que pudesse proferir voto em separado, mostrando posicionamento contrário ao dos demais deputados e senadores mencionados acima. O deputado, em seu voto, alegou que o projeto de lei era sem sentido e que criaria para a mulher gestante alimentos em contrariedade com a tradição jurídica brasileira, não sendo de bom senso atribuir alimentos sob simples presunção de paternidade. Afirmou que “a mulher, ainda que gestante, não tem direitos a alimentos se não manteve com o alimentante prévia relação de casamento ou união estável”. Por fim, questionou a técnica empregada no art. 6º do projeto, pois ao utilizar a palavra “gravídicos” estaria criando um neologismo desnecessário. Em novembro de 2008, ao ser analisado pelo Presidente da República, o projeto foi vetado em alguns artigos, conforme se verá a seguir. 8 MENSAGEM DE VETO N º85367 E COMENTÁRIOS À LEI 11.804 DE 2008 Art. 1º “ Art. 1o Esta Lei disciplina o direito de alimentos da mulher gestante e a forma como será exercido.” O art. 1º estabelece o objetivo da lei, bem como traz importante inovação quanto ao sujeito da obrigação, sendo os alimentos destinados a mãe e não somente a criança. Sendo assim, a mulher gestante tem legitimidade para figurar no polo ativo em eventual ação de alimentos, podendo requerer em nome próprio o direito. 66 BRASIL. Voto em separado do deputado Regis de Oliveira 67 BRASIL. Mensagem de veto nº 853 45 Art. 2º “Art. 2º Os alimentos de que trata esta Lei compreenderão os valores suficientes para cobrir as despesas adicionais do período de gravidez e que sejam dela decorrentes, da concepção ao parto, inclusive as referentes a alimentação especial, assistência médica e psicológica, exames complementares, internações, parto, medicamentos e demais prescrições preventivas e terapêuticas indispensáveis, a juízo do médico, além de outras que o juiz considere pertinentes. Parágrafo único. Os alimentos de que trata este artigo referem-se à parte das despesas que deverá ser custeada pelo futuro pai, considerando-se a contribuição que também deverá ser dada pela mulher grávida, na proporção dos recursos de ambos” O art. 2º estabelece as despesas que deverão ser custeadas pelo valor pago a título de alimentos. Mas, o rol não é taxativo, podendo o juiz considerar outras despesas pertinentes, além das previstas no mencionado artigo, conforme explicita Maria Berenice Dias (2015)68. Art. 3º (VETADO) “Art. 3º Aplica-se, para a aferição do foro competente para o processamento e julgamento das ações de que trata esta Lei, o art. 94 da Lei n o 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.” De acordo com a leitura do art. 94 do CPC tem-se que o art. 3º do projeto de lei previa que a ação de alimentos fosse ajuizada no foro de domicílio do demandado. Entretanto, o Presidente da República, na mensagem de veto, 68 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10º edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2015. p. 585. 46 entendeu que tal disposição não seria a mais acertada, haja vista que atribuía à gestante o ônus de impetrar a ação no domicílo do réu, desconsiderando assim seu estado especial. Art. 4º (VETADO) “Art. 4º Na petição inicial, necessariamente instruída com laudo médico que ateste a gravidez e sua viabilidade, a parte autora indicará as circunstâncias em que a concepção ocorreu e as provas de que dispõe para provar o alegado, apontando, ainda, o suposto pai, sua qualificação e quanto ganha aproximadamente ou os recursos de que dispõe, e exporá suas necessidades.” Neste artigo, o veto tem como base a alegação de ser desnecessário que a gestante prove a viabilidade de sua gravidez. De acordo com as razões apresentadas, independentemente da gravidez ser viável ou não, a gestante tem necessidade de cuidados especiais, que acarretam gastos financeiros, os quais já são reconhecidos no art. 2º. Art. 5º (VETADO) “Art. 5º Recebida a petição inicial, o juiz designará audiência de justificação onde ouvirá a parte autora e apreciará as provas da paternidade em cognição sumária, podendo tomar depoimento da parte ré e de testemunhas e requisitar documentos.” Quanto a este artigo, na mensagem nº 853 o Chefe do Executivo afirma que a designação de audiência não é procedimento obrigatório em nenhuma outra ação de alimentos, bem como poderia causar retardamento ao processo. 47 Art. 6º “Art. 6º Convencido da existência de indícios da paternidade, o juiz fixará alimentos gravídicos que perdurarão até o nascimento da criança, sopesando as necessidades da parte autora e as possibilidades da parte ré. Parágrafo único. Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão.” O art. 6º mostra um direcionamento para a conduta do magistrado. Este, diante do caso concreto e das provas a ele apresentadas, poderá se convencer que o demandado é o suposto genitor da criança, fixando, assim, os alimentos gravídicos, os quais subsistirão até o momento do nascimento daquela. Note-se, por meio da leitura do artigo, que não basta a mera imputação da paternidade pela parte autora, devendo o juiz reconhecer que há indícios da paternidade para que dê procedência ao pedido. Assim, a paternidade não deve ser “aferida” por meio de uma cognição superficial, fazendo com que o juiz encontre evidências robustas da alegação, o que para muitos, entretanto, não significa dizer que o pressuposto da paternidade deva ser examinado com rigor extremo. De acordo com o magistrado Ricardo Moreira Lins Pasti 69 é difícil que se verifique o alegado vínculo de parentesco no momento de propositura da ação, podendo a demora da resposta judicial não atender a finalidade da lei. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ALIMENTOS GRAVÍDICOS. POSSIBILIDADE, NO CASO. 1. Em sede de cognição sumária, o requisito exigido à concessão de alimentos gravídicos ("indícios de paternidade", nos termos do art. 6º da Lei nº 11.804/08) deve ser 69 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 70061965919 48 examinado sem muito rigorismo, tendo em vista a dificuldade na comprovação do alegado vínculo de parentesco já no momento do ajuizamento da ação, sob pena de não se atender à finalidade da lei, que é a de proporcionar ao nascituro seu sadio desenvolvimento. 2. No caso, comprovando o exame médico a gestação e havendo declarações de três pessoas acerca da relação amorosa mantida entre a autora e o suposto pai, em período concomitante à concepção, há plausibilidade na indicação de paternidade realizada pela agravante, restando autorizado o deferimento dos alimentos gravídicos, no valor de 30% do salário mínimo. AGRAVO DE INSTRUMENTO PARCIALMENTE PROVIDO. (grifo nosso) (Agravo de Instrumento Nº 70061965919, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Moreira Lins Pastl, Julgado em 20/11/2014) Ao que tange o quantum a ser pago, o legislador fez presente o binômio necessidade – possibilidade ao afirmar que deverá ser sopesado a necessidade da mãe e a possibilidade do suposto pai. Art. 7º “Art. 7º O réu será citado para apresentar resposta em 5 (cinco) dias.” O art. 7º traz o prazo de resposta do réu, o qual deverá se manifestar em 5 dias. Segundo Maria Berenice Dias (2015), “nada impede que o juiz fixe outro prazo, mas a tendência é a designação de audiência preliminar, a partir da qual começa a fluir o prazo de resposta”.70 Art. 8º (VETADO) “Art. 8º Havendo oposição à paternidade, a procedência do pedido do autor dependerá da realização de exame pericial pertinente.” 70 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10º edição. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2015. p. 585 49 O artigo foi vetado por condicionar a procedência da ação à realização de exame pericial, o que se entendeu ser destoante da sistemática processual existente, uma vez que a perícia não é condição para a procedência da demanda, mas elemento de prova necessário quando ausente outros elementos probatórios. Art. 9º (VETADO) “Art. 9o Os alimentos serão devidos desde a data da citação do réu.” Entendeu-se que utilizar a citação como marca inicial da obrigação poderia ser prejudicial para a própria finalidade da lei, haja vista que a realização deste ato processual poderia ser dificultada muitas vezes por manobras do réu. Art. 10º (VETADO) “Art. 10. Em caso de resultado negativo do exame pericial de paternidade, o autor responderá, objetivamente, pelos danos materiais e morais causados ao réu. Parágrafo único. A indenização será liquidada nos próprios autos.” O artigo foi vetado, pois o simples fato de ingressar com a ação e esta não ser procedente, poderia criar hipótese de responsabilidade objetiva, o que imporia ao autor o dever de indenizar independentemente de culpa. Assim, a norma atentaria contra o livre exercício do direito de ação, bem como seria intimidadora. Art. 11 “Art. 11. Aplicam-se supletivamente nos processos regulados por esta Lei as 50 disposições das Leis nºs5.478, de 25 de julho de 1968, e 5.869 de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil.” O artigo dispõe quais as normas serão utilizadas de modo subsidiário a lei de alimentos gravídicos. Art. 12 “Art. 12. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.” Segundo este dispositivo, a Lei entrará em vigor a partir de 5 de novembro. 9 A POSSIBILIDADE DE FIXAÇÃO DE ALIMENTOS GRAVÍDICOS ENTRE MULHERES A família tradicional, aquela formada pelo casamento entre um homem e uma mulher, vem gradativamente sofrendo mudanças. Assim, novos arranjos familiares vão surgindo. Há família monoparental, recomposta, anaparental, afetiva, paralela e homoafetiva. Nesta última percebe-se união entre duas pessoas do mesmo sexo, que por meio de afeto e carinho mútuo passam a constituir uma família, a qual poderá ser expandida por meio da adoção ou da reprodução assistida. Ou seja, mesmo que biologicamente seja impossível a procriação entre pessoas do mesmo sexo, há a possibilidade de um casal homossexual feminino se tornarem mães. Uma primeira opção é a adoção, na qual o casal poderá assumir a maternidade de uma criança ou adolescente com o qual não possui nenhum vínculo 51 biológico. A possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo é defendida por Cézar Fiuza e Luciana Costa Poli (2013) em trabalho publicado na Revista Síntese 71 ao afirmarem que a adoção não pode estar condicionada à preferência sexual ou à realidade familiar do adotante, sob pena de infringir-se o princípio do melhor interesse da criança, o princípio à dignidade humana, que se sintetiza no princípio da igualdade e na vedação de tratamento discriminatório de qualquer ordem Outra alternativa, propiciada pelos avanços da medicina, é a reprodução assistida. Nesta técnica, para verem realizado seu sonho de maternidade, as futuras mães recorrerão a um banco de esperma. Assim, uma delas cederá seu ventre para a gestação e outra – ou a mesma – cederá seu material genético, que será unido ao material de um doador anônimo para a formação do feto. È no contexto da gestação desta criança, gerada por meio de inseminação artificial, com material genético de apenas uma das integrantes da relação, que está centrada este trabalho. Mais especificamente, o cerne encontra-se no fato da ruptura deste relacionamento em momento anterior ao nascimento. Indaga-se, portanto, se seria cabível a concessão de alimentos gravídicos a gestante. A lei 11.804/08 traz em sua redação, no parágrafo único do art. 2º e no art. 6º , expressões como “futuro pai” e “indícios de paternidade”, o que aparentemente seria um entrave para a aplicação do dispositivo. Ou seja, como aplicar a mencionada lei se no cenário em análise não há a figura de um pai, tampouco pode se falar em indícios de paternidade? Podemos afastar a aplicação da lei 11.804 à uma gestante, que em virtude do seu estado requer cuidados especias, sobre o simples argumento de que não está 71 FIUZA, César e POLI, Luciana Costa. A ampla possibilidade de adoção por casais homoafetivos face às recentes decisões dos tribunais superiores. In: Revista Síntese de direito de família. Nº14. Volume.76 São Paulo: Grupo IOB. 2013. p. 28. 52 presente a figura de um pai? A partir do detalhamento feito em capítulo anterior, pode-se inferir que a Lei 11.804/08 ao estabelecer que o “futuro pai” teria obrigação de prestar alimentos, não quis dizer que poderá ser aplicada somente nas hipótese em que haja esta figura. O elemento que cria a obrigação estabelecida na lei em comento é a filiação. Isso significa dizer que o genitor e a criança estão ligados por este vínculo e é ele que gera a obrigação de sustento, conforme estabelece o art. 1566, IV da Código Civil. Mas, como estabelecer o vínculo de filiação entre uma criança e duas mulheres à luz de uma visão na qual tradicionalmente se tem uma criança, uma mulher e um homem? Para tal questão imperioso suscitar o trabalho do professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais João Baptista Villela, o qual na sua obra “Desbiologização da Paternidade” 72 apresenta a paternidade não como um fenômeno decorrente estritamente da coabitação sexual. O professor afirma que procriação e paternidade são categorias distintas, a primeira resulta de uma relação sexual que dá origem a um novo ser vivo, enquanto esta deve decorrer de um ato de vontade. Enfatiza, portanto, a importância do princípio da liberdade nas relações do direito de família, ressaltando que as prestações familiares somente proporcionam satisfação plena quando são assumidas e realizadas de modo gratuito. Desta forma, segundo Vilella, não é a consanguinidade, mas, sim o cuidado e afeto que fazem com que a criança atribua a um indivíduo a qualidade de “pai”. Neste sentido, destaca os ensinamentos de Goldstein, Anna Freud e Solnit, os quais afirmam que para a criança mesma os fatos físicos da geração e parto não conduzem diretamente a um vínculo com os pais. Suas relações de sentimento surgem 72 VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Belo Horizonte: Revista da faculdade de direito da universidade federal de minas gerais. 53 com base na satisfação de suas necessidades por alimento, cuidados, simpatia e estímulos. Somente quando sã os próprios pais biológicos que atendem a esses desejos, a relação biológica determina uma psicológica, na qual a criança passa a se sentir segura, apreciada e desejada Ainda, para melhor defender a existência do vínculo de filiação na situação posta em questionamento, recorremos a ideia da dupla maternidade. Conforme já apresentado anteriormente, não há no ordenamento jurídico lei que reconheça a dupla maternidade, tampouco regule o uso das técnicas de reprodução assistida, impedindo que um casal homossexual as utilize para que possam “ampliar” a família. Razoável pensar que se o legislador possuísse a intenção de vetar tal possibilidade, editaria lei neste sentido, o que se fizesse, estaria agindo de encontro a princípios basilares do direito pátrio. Assim, correndo paralelamente a esta falta de regulação o poder judiciário vem fazendo as vezes do legislador, reconhecendo a possibilidade de uma criança poder ter dupla filiação materna. Em algumas decisões, os magistrados autorizaram que no registro civil da criança conste o nome das duas mães. Em fevereiro de 2015 a Juíza Regina Lúcia de Souza Ferreira da 2ª Vara de Família de Vitória/ES73 reconheceu a dupla maternidade para a criança que foi gerada por meio de reprodução assistida, determinando que qualquer Oficial do Registro Civil procedesse ao registro, inserindo o nome das duas mulheres como mães. Tal decisão possibilitou que a criança fosse incluída como dependente de uma das mães no plano de saúde para que não ficasse desassistida no momento do parto, haja vista que o plano de saúde da mãe gestora não abrangia esta cobertura. Por fim, ainda para respaldar a ideia de filiação, recorremos a Resolução 2013 do Conselho Federal de Medicina e ao Código Civil, especialmente no art. 1.597, inciso V do qual pode ser depreendido a ideia de presunção de paternidade 73 Casal homoafetivo consegue dupla maternidade para bebê gerado por inseminação. (2015, 1 de fevereiro). Migalhas. Recuperado a partir de: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI214683,91041Casal+homoafetivo+consegue+dupla+mater nidade+para+bebe+gerado+por%200209 54 quando da inseminação artificial heteróloga, desde que marido da mulher que recorreu ao procedimento tenha dado seu consentimento. No caso de relacionamento homoafetivo não é diferente. Se duas mulheres recorrem a técnica de reprodução assistida, há que se esperar que houve planejamento e diálogo entre elas. Não se pode conceber que neste cenário, assim como em um relacionamento heterossexual, não houve consentimento. Da mesma forma, não se pode conceber que a criança fruto da inseminação não seja filha de ambas as mulheres. Como visto, a criança gestada neste contexto possui sim duas mães, mantendo com ambas, por conclusão, vínculo de filiação, sendo perfeitamente cabível que haja a prestação de alimentos. Superado o aspecto da filiação passemos, então, para uma abordagem principiológica, de modo a reforçar a ideia defendida. Primeiro princípio em comento é o da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República, conforme preceitua o art. 1º da Constituição Federal de 1988. Walber de Moura Agra, na obra Tratado de Direito Internacional 74 , ao discorrer acerca dos direitos humanos afirma que o princípio da dignidade humana é a base nuclear dos demais direitos, tendo estes o dever de desenvolver e assegurar aquele. Bernardo Gonçalves Fernandes 75 ao apresentar o princípio da dignidade da pessoa humana recorre a uma visão histórica do mesmo, abordando alguns autores como Dworkin e Habermas. De acordo com o professor, o autor americano não entende o princípio da dignidade humana tão somente como legitimador dos direitos fundamentais, mas, de todo o ordenamento, de modo a ir além da afirmação de que o ser humano é um ser único, usando- o como autofundação do direito moderno. 74 AGRA, Walber de Moura. Direitos sociais. In: Mendes, Gilmar Ferreira e outros (Coord.).Tratado de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012 75 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de direito constitucional. 4ª ed. Bahia: Jus Podivm. 2012. p. 299. 55 O autor alemão, ao seu turno, parte da ideia do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do direito moderno e tenta buscar explicação para como se resulta o processo de produção de normas jurídicas legítimas, sendo cada indivíduo concomitantemente autor e destinatário da norma. Fernandes parece se identificar mais com o pensamento habermasiano ao afirmar que este seria mais adequado, uma vez que não busca apresentar a noção de dignidade humana sob um conjunto de valores que reflete apenas uma visão particular de mundo, mais exatamente a judaico- cristã. Ao se abrir a porta para uma fundamentação normativa própria do direito, participantes de outras concepções podem tomar assento nessa prática comunicativa, sentindo- se igualmente coautores das normas a que se submetem Vicente de Paulo e Marcelo Alexandrino 76 afirmam que a dignidade da pessoa humana apresenta-se como um direito de proteção individual, não somente frente ao Estado, mas, perante os demais indivíduos ao mesmo tempo que constitui um dever de tratamento igualitário. Pode-se concluir, de acordo com todo o exposto, que o princípio em destaque não deve ser usado como um “lugar-comum”, como base para toda e qualquer interpretação de normas, mas, deve ser entendido como elemento fundante do direito e consequentemente do ordenamento jurídico. No caso da hipótese discutida neste trabalho, temos que o princípio da dignidade da pessoa humana assegura que a gestante, parte de um relacionamento homoafetivo, deve ser assistida durante a gravidez, independentemente de sua orientação sexual, devendo a ela ser dispensada tratamento semelhante ao conferido a uma gestante de um casal hétero. Isso significa dizer que para a obrigação alimentar não importa se há um casal de duas mulheres ou não, o que se objetiva é garantir a gestante assistência especial em virtude do seu estado, ao mesmo tempo que se protege a saúde e vida da criança. 76 ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicentino. Direito constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2010. p. 90 56 Ato contínuo, há que falar do princípio da igualdade, presente no artigo 5º da CFR, no qual percebe-se expressa vedação de discriminação de qualquer natureza, haja vista que todos são iguais perante a lei. O Ministro Ayres Brito em seu voto na ADI 4277 77 ressalta que é tão proibido discriminar as pessoas em razão do sexo tanto quanto em razão da respectiva orientação sexual. Brito afirma que “há um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a)de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não; quer dizer, assim como não assiste ao espécime masculino o direito de não ser juridicamente equiparado ao espécime feminino − tirante suas diferenças biológicas −, também não assiste às pessoas heteroafetivas o direito de se contrapor à sua equivalência jurídica perante sujeitos homoafetivos. O que existe é precisamente o contrário: o direito da mulher a tratamento igualitário com os homens, assim como o direito dos homoafetivos a tratamento isonômico com os heteroafetivos.” (grifo nosso) Acerca do princípio da igualdade, Alexandre de Moraes 78 afirma que para que a diferenciação normativa seja considerada não discriminatória, é imperioso que haja um motivo objetivo e razoável, devendo existir uma relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade pretendida, com observância dos direitos e garantias constitucionais. No caso de casal de mulheres que decide ter um filho e se planeje para isso, mas que por alguma razão se separe antes do nascimento da criança, não há nenhuma justificativa razoável para que não seja dispensada a gestante a mesma proteção dada a uma gestante de casal hétero. Discorrendo acerca dos princípios que regem o direito de família, Maria 77 Superior Tribunal de Justiça. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4277. 78 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30º ed. São Paulo: Atlas. 2014. p. 35 57 Berenice Dias 79 destaca o princípio da liberdade, relacionando-o com o princípio da igualdade, afirmando que o papel do direito é coordenar, organizar e limitar as liberdades, justamente para garantir a liberdade individual. Parece um paradoxo. No entanto, só existe liberdade se houver, em igual proporção e concomitância, igualdade. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade 38 A Constituição, ao instaurar o regime democrático, revelou enorme preocupação em banir discriminações de qualquer ordem, deferindo à igualdade e à liberdade especial atenção no âmbito familiar. Todos têm a liberdade ele escolher o seu par, seja cio sexo que for, bem como o tipo de entidade que quiser para constituir sua família Assim, devemos entender que todo indivíduo deve gozar de autonomia tal que o possibilite se posicionar sexualmente do modo que lhe convir, e não ser discriminado por isso. Aliás, deve ter direito que as relações que decorreram de sua orientação sejam respaldadas legalmente. Ainda, no contexto dos princípios, podemos suscitar o princípio da analogia, método de interpretação utilizado quando há lacunas na lei, resultando de uma comparação entre situações distintas, com conflitos semelhantes e com a mesma solução. Assim, quando o magistrado se deparar com uma situação de omissão legislativa, poderá utilizar da analogia para chegar a uma decisão, o que quer dizer que diante da hipótese levantada neste trabalho, poderá o magistrado recorrei a tal princípio para efetivar a aplicação da lei de alimentos gravídicos. Cabe ressaltar ainda que ao analisar a Lei 11.804/08 (conforme feito no capítulo quatro) de modo mais atento e profundo, sem apego aos termos “pai” e “indício de paternidade”, deixando de lado a ideia do homem como sujeito passivo da obrigação alimentar, é notável que a real finalidade da lei é a proteção a gestante durante os 9 meses, de modo a ter condição de custear todas as despesas estabelecidas no art. 2º da Lei 11.804, sem prejuízo de outros eventuais custos entendidos como imprescindíveis pelo magistrado. 79DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10º edição. São Paulo: Revista dos Tribunais.,2015. p.46. 58 Assim, entende-se que o legislador teve a intenção de resguardar a gestante, garantindo lhe auxílio financeiro, que consequentemente se reverterá em cuidados médico- alimentares, proporcionando condições de ter uma gravidez tranquila. Ademais, nos artigos 6º e 201, II da Constituição Federal de 1988, no art. 392 da Consolidação das Leis Trabalhistas, bem como nas convenções da OIT 80 ratificadas pelo Brasil, percebe-se especial atenção a mulher gestante, conferindo a ela direitos e garantias em virtude do seu estado, sempre empregando medidas necessárias a proteção de sua saúde e de seu filho. Assim, à gestante de um relacionamento homoafetivo é assegurada proteção em virtude do seu estado, não sendo relevante para a sua observância a sua orientação sexual. 80 Convenções da Organização Internacional do Trabalho. 59 10 CONCLUSÃO A estrutura da família está sofrendo gradativas transformações, não se podendo falar que a família tradicional, constituída pela união entre um homem e mulher, seja exclusiva. Há que se perceber que a ideia de família está sendo alterada, podendo ser formada tanto por pessoas de sexo diferentes, quando do mesmo, até por apenas uma pessoa. O que importa é a existência de relação pautada por afeto, amor e carinho mútuo. Nada impede que uma família homoafetiva tenha o sonho da “maternidade”, oferecendo a seus descendentes amparo e cuidados, ao mesmo tempo transmitindo seus valores e experiências. Este projeto pode ser proporcionado por meio da inseminação artificial, regulamentada por resoluções do Conselho Federal de Medicina - e não por leis em sentido estrito - que permitem que a técnica seja usada por pessoas em relacionamento homoafetivo. Concomitante com as modificações estruturais da família não se nota que o ordenamento jurídico pátrio esteja caminhando no mesmo sentido, tampouco com a mesma velocidade. Isso significa dizer que as novas famílias ganham contornos fáticos sem que o direito lhes confira atenção, não sendo protegidas pelo Estado, o que por vezes resulta em situações nas quais o poder judiciário assume o papel do legislador. Para além de uma discussão sobre ativismo judiciário, que não é tema deste trabalho, deve-se ter em mente que a ausência de um ordenamento em harmonia com a pluralidade da sociedade e de suas formas de relacionamento não pode ser justificativa para a falta de proteção que carecem, pois estaríamos violando direitos fundamentais. È justamente nesta falta de norma e na necessidade de tutela que o judiciário vem atuando. Como dito em momento oportuno, o Código Civil de 2002 trouxe inegáveis 60 transformações na seara do direito de família, como a equiparação entre os filhos havidos do casamento e fora dele, bem como o reconhecimento da união estável como entidade familiar. Entretanto, apesar dos progressos, as alterações não foram suficientes para tutelar todas as formas de convívio entre as pessoas, o que resulta em situações fáticas vulneráveis e deixadas a própria sorte, pois desnudas de amparo legal. O tema central deste trabalho encontra-se nesta posição, ou seja, é uma realidade que está posta na sociedade, mas, não possui abrigo no ordenamento jurídico. Assim, buscamos responder como conceder alimentos gravídicos em um contexto de relacionamento homoafetivo se a Lei 11.804/08, a qual disciplina este tipo de obrigação alimentar apresenta expressões como “futuro pai” e “indícios de paternidade”. Ao nosso ver, a aplicação da Lei a hipótese levanta é perfeitamente cabível. A ausência da figura do pai não é justificativa razoável para que a gestante homossexual não goze da proteção que seu estado requer, proteção esta que recairá consequentemente na criança. O termo “pai” posto na Lei deve ser analisado como elemento a luz da filiação, pois é ela que dá suporte para se estabelecer a obrigação de alimentar, haja vista que o genitor tem o dever de sustento. Em seara de alimentos gravídicos não há que se adotar um conceito de sustento como nas demais modalidades de alimentos, deve-se entender que “sustento” significa dizer que á gestante e ao feto, por consequência, deverá ser conferido cuidados especiais em virtude de seu estado. Ademais, não parece razoável que após planejamento e consentimento mútuo para que pudessem ter um filho, a companheira não contribua para o melhor desenvolvimento da gravidez da gestante somente por não estarem mais em um relacionamento. O rompimento não afasta o dever de contribuir. No mesmo sentido, acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, 61 pode-se extrair da ADI 4277 81, que todos os “projetos pessoais e coletivos de vida, quando razoáveis, são merecedores de respeito, consideração e reconhecimento”. Desta forma, se um casal homoafetivo decide ter um filho, este projeto deve ter respeito e ser merecedor de proteção, de modo a ter a gestante assistência que necessita. Ou seja, à mulher grávida não pode ser negado amparo simplesmente pelo argumento de estar em um relacionamento homoafetivo. Se assim fosse, estaríamos afrontando outro princípio, o da igualdade. Não é razoável dispender tratamento desigual entre casais hétero e homoafetivo, de sorte que devem gozar dos mesmos direitos, respeitando suas singularidades. Deve ser ressaltado por fim que a Lei 11.804/08 não tem por objetivo estabelecer qual o sujeito passivo da obrigação alimentar, mas sim, conferir assistência e proteção a gestante. Proteção que também é prevista em dispositivos constitucionais, trabalhista e em convenções da OIT. Como dito anteriormente, a resposta para a pergunta – problema deste trabalho não está explícita em nenhum dispositivo constante no ordenamento jurídico, o que ao nosso ver não é justificativa para a não tutela da gestante de um casal homoafetivo. Sendo assim, intentou apresentar uma solução, reconhecendo a possibilidade de aplicação da Lei 11.804/08 a relacionamentos entre mulheres, após análise da lei, destacando a ideia da filiação e princípios pertinentes ao tema. 81 Superior Tribunal de Justiça. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade 4277. 62 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGRA, Walber de Moura. Direitos sociais. In: Mendes, Gilmar Ferreira e outros (Coord.).Tratado de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Saraiva. 2012. ALEXANDRINO, Marcelo e PAULO, Vicentino. Direito constitucional. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método. 2010. AMARAL, Francisco. Direito Civil:introdução. 6º ed. Rio de Janeiro. Renovar, 2006. BERALDO, Leonardo de Faria. Alimentos no Código Civil: aspectos atuais e controvertidos com enfoque na jurisprudência. 1º ed. Belo Horizonte: Fórum. 2012. BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em : http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acessado em 03 de nov de 2014. BRASIL. 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