Singrando a Lagoa

Transcrição

Singrando a Lagoa
Singrando a Lagoa*
O ano: 1973. O barco: o brand-new Charlie Bravo (the first one), um Arpege de 30’
estalando de novo, o primeiro de uma linhagem cujo mais novo membro ostenta o nome de
Charlie Bravo V.
Éramos quatro na tripulação: Paulo - o comandante, Rudi Schultz – já com larga experiência
em navegadas mil, o Adinho Kessler – cujos dotes culinários até hoje lembramos com
saudade - e eu, o mais velho dos quatro em idade, mas completamente neófito em
navegadas como aquela a que nos propúnhamos a fazer de ida e volta de Porto Alegre a Rio
Grande, naqueles ensolarados dias do Verão de 1973. Era Fevereiro, uma semana antes do
Carnaval e nossas famílias estavam nas Praias.
Cheguei no Veleiros do Sul no fim da manhã e Comandante Paulo e os demais tripulantes já
estavam na faina aprontando barco. O porta-malas do meu Opala estava abarrotado de
provisões, gelo, cerveja (muitas latas), vinho (poucas garrafas) e várias garrafas de Scotch
legítimo (Ballantine’s 12 Years), além da comida para ser preparada a bordo: filet-mignon
pra cima, além do Patê de Foie-gras, dos queijos Camembert, Brie, do Procciuto de Parma
(ou teria sido Jamon Pata Negra?), do Pumpelniken, das torradinhas (é só aquecer), dos
biscoitos amanteigados (Dinamarqueses?) e outro que-tais... Nada de passar vários dias
embarcados comendo massa pura, sem gosto, e sopa de pacote! Nê, nê, nê! Poderia ser
uma velejada curta pros padrões daqueles experientes marinheiros, mas que passaríamos
bem a bordo, ah isso sim! Encarregado que fora de providenciar o rancho, de início eu
escandalizei a todos com a quantidade e com o custo dele (algo em torno de 300 mil, não
me lembro qual era a moeda da época...), mas depois todo mundo lambeu os beiços.
Partimos ao entardecer. O início da noite nos alcançou no través do farol de Itapuã e
entramos na Lagoa dos Patos. Para mim foi o começo de uma inédita experiência, pois,
além de ter somente duas vezes dormido a bordo do próprio Charlie Bravo, na praia do Sítio,
eu nunca tinha navegado na Lagoa. A temperatura caíra um pouco, obrigando-nos a usar
agasalhos, mas a noite estava belíssima, com uma linda lua e um forte vento, Sul eu creio.
Navegávamos em orça folgada e um pouco mais adiante o vento aumentou de intensidade.
Paulo com Schultz foi regular a vela da proa e me passou o timão. Eu, com pouquíssima
experiência em conduzir um barco orçando contra o vento à noite, ora de olho na bússola,
ora no que eles faziam na proa, fiz inadvertidamente uma manobra mal feita e por pouco
não os jogo prá fora do barco! Pra que: recebi a primeira mijada do Comandante que me
chamou de incompetente pra fora... Todos nós levaríamos outras broncas no decorrer da
navegada. Lembro-me de uma delas dirigida a nós todos e que o Schultz, com a sua verve
incomparável, rebateu sorrindo: “ Bom, eu já tava indo mesmo...” e se escafedeu para o
interior da cabine.
A seguir iniciamos os trabalhos para o jantar daquela primeira noite a bordo, mas antes eu
me encarreguei de criar um variado serviço de appetizers para os drinques que o
antecederam. O Adinho, então, foi para a cozinha preparar o jantar. Saiu-se
maravilhosamente bem, servindo-nos um delicioso, incomparável e gostosíssimo “Filet a LaCharlie-Bravo”, o plat-de-resistence mais famoso daquela velejada, repetido várias vezes,
tanto nos almoços como nos jantares dos dias seguintes.
E de appetizers em appetizers, de almoços e jantares opulentos, navegamos em belos dias
ensolarados e em noites também maravilhosas com muita lua. A camaradagem a bordo, os
papos inteligentes, com muitas histórias diferentes e piadas contadas por cada um dos
tripulantes, os lugares novos - para mim - é claro, tornaram aquele início de viagem (aquela
perna) até Rio Grande extremamente agradável prenunciando o que seria, e realmente
assim o foi, toda a nossa navegada: uma beleza.
Depois de alguns dias, atracamos no Rio Grande Yacht Club fomos a terra esticar as pernas,
comer camarões ao jantar num dos restaurantes da cidade. Claro que compramos camarões
para a perna da volta para Porto Alegre. Mas, oh céus! Das caríssimas provisões que eu
tinha comprado para toda a viagem pouco restava e fomos obrigados no dia seguinte a
fazer nova e grande compra de mantimentos - e gelo pro Scotch - no Supermercado Real de
Rio Grande.
No dia seguinte, fomos recepcionados no Yacht Club pelo Sr. Altmayer, irmão do saudoso
amigo Gastão Altmayer, com o qual trocamos experiências e de quem ouvimos boas
histórias daquela corner of the world. Muito interessante foi a visita que fizemos ao barco
dele, um antigo veleiro de cerca de 30 pés creio que ainda de madeira, em cujo interior da
cabine chamaram-me a atenção dois ou quatro lampiões - à querosene - de latão com
mangas de vidro, presos às paredes e oscilantes, tipo João Bobo, para acompanhar a
inclinação do barco quando em navegação. Gostei deles, pois certamente teriam histórias de
muitas navegadas e de muitas regatas disputadas para contar.
Na manhã do outro dia resolvemos sair ao mar. E pela Barra. A famosa Barra de Rio Grande,
com os seus grandes e compridos molhes, cuja construção se iniciou na primeira década do
Século XX e que até hoje ainda está se desenvolvendo - acredito que os estão
encompridando. Não foi tão fácil assim, não. O forte vento contra de rajadas, que
enfrentamos logo ao sair dos molhes, nos intimidou e depois de quase um dia inteiro
brincando no Atlântico, retornamos ao Yacht Club para no dia seguinte dar início a nossa
viagem de volta.
A volta, como toda volta costuma ser, deveria ser mais rápida. Ledo engano: o Nordestão
soprava forte e navegamos vários dias e noites com aquele forte vento pela proa. Resultou
que demoramos mais do que o previsto e – oh, horror! – acabou o gelo a bordo. O que
fazer? A solução foi fundear nas rasas águas da Lagoa ao largo de São Lourenço, inflar o
dinghy e ir procurar um lugar em terra para comprar gelo. E lá fomos nós: Schultz e eu (os
voluntários...) remando a favor do vento Nordeste, à procura de quem nos vendesse gelo
naquele final de dia. Conseguimos comprá-lo numa peixaria local e surpendentemente ele
era de boa qualidade, sem cheiro e sem gosto de peixe. Mas quem disse que
conseguiríamos voltar ao nosso barco, a remo, com aquele Nordestão na cara? Mas não
mesmo. Remamos até cansar e o diabo daquele dinghy não saía do lugar. Salvou-nos a
guarnição local dos valorosos soldados do Corpo de Bombeiros, dois dos quais nos
rebocaram de volta ao Charlie Bravo com a lancha do Destacamento. Em lá chegando, os
bravos Soldados do Fogo tiveram curiosidade em conhecer o nosso barco por dentro e o
visitaram, encantados, de proa a popa. Convidados a tomar um drinque conosco,
agradeceram e só aceitaram refrigerantes, pois estavam em Serviço. Gente fina, na verdade,
a quem muito agradecemos a carona.
Outros pequenos e curiosos incidentes aconteceram naquela viagem, todos eles de pequena
monta, mas que para nós, os embarcados, foram muito importantes no momento em que se
sucediam. Teve o caso do enorme Rebocador da Marinha do Brasil que quase passa por
cima de nós no Canal da Feitoria, um pouco antes de chegarmos a Rio Grande. Seguíamos
tranqüilos, na calma e ensolarada tarde, no meio do canal, quando ao olhar pra trás vimos
aquela coisa gigantesca, um verdadeiro Nabão, se aproximando e vindo às ganhas pra cima
de nós. Seguramente era maior do que um prédio de dez andares! "Não há problema –
dissemos um para o outro – barcos à vela têm preferência...” Mas que nada: os tripulantes
do enorme rebocador não deram nem pelota pra essa Regra do Mar e se não desviássemos
passariam por cima da gente.
Outra coisa que me chamou a atenção foi a reduzida profundidade da Lagoa dos Patos. Na
altura do farol Cristóvão Pereira, por um vasto trecho, ela é de uns 30 cm mais ou menos.
Entendi então a importância dos Práticos da Lagoa e o trabalho que realizam para trazer
aqueles enormes navios de carga para o porto de Porto Alegre. E esse farol Cristóvão
Pereira é realmente uma antiga jóia arquitetônica. Construído certamente por escravos em
meados do Século XIX deve ter cerca de 30 metros de altura, é todo de alvenaria no
formato quadrado e pintado de branco. Uma curiosidade que ele apresenta é o fato de sua
luz ser branca ao invés de vermelha como devem ser as luzes dos faróis à bombordo de
quem sai do porto e se dirige ao mar. Não sei se ainda é assim, mas naquela época era.
A Lagoa me encantou sobremaneira com a diversidade do que nela se pode encontrar. Eu
imaginava aqueles grandes navios que por ela passaram indo ou vindo de Rio Grande, bem
como as escaramuças da qual ela foi palco durante a Revolução Farroupilha, com Garibaldi e
outros heróis que por aqui se destacaram. Encantaram-me, também, as aves que
encontrávamos diariamente. E a hoje conhecida Costa Doce, com suas belíssimas figueiras
centenárias e seus locais escondidos, pequenas baías, inúmeras foz de arroios e outros
mais, à espera de investimentos turísticos até agora ainda não levados adiante. Registre-se
como exceções a Praia do Laranjal em Pelotas e a Praia das Figueiras em São Lourenço.
Nessa cidade também acontece a famosa navegada Porto Alegre – São Lourenço, realizada
anualmente por ocasião do feriadão de Carnaval.
Fundeamos algumas vezes na Lagoa para tomar banho nas suas águas e fazer refeições
mais calmas, nas quais sempre foram muito apreciados os magníficos dotes culinários do
Adinho que como disse o Schultz “barbarizava na comida”.
Ao cabo de dez dias (ou cerca de -) chegávamos no Veleiros do Sul, terminando aquela
magnífica aventura - para mim realmente fantástica pois nunca tinha feito nada igual. Foram
dias maravilhosos, não só no que se refere às condições climáticas de sol e luar o tempo
todo - nada de chuva, nunca - e também não só pelas excelentes refeições, appetizers e
drinques a bordo, mas principalmente pelo clima de camaradagem e bom relacionamento
que reforçou os laços de amizade entre nós quatro – os privilegiados participantes daquela
inesquecível Singradura da Lagoa:
- Paulo: nosso competente Comandante que, com seus roteiros náuticos muito bem
elaborados, nos conduziu com eficiência em toda a nossa viagem;
- Rudi Schultz: experiente marinheiro, de marcante simpatia pessoal, sempre contagiando a
todos com a sua alegria e savoir faire;
- Adinho Kessler: a quem eu já conhecia desde os Bailes de 15 Anos que junto freqüentamos
e que surpreendeu agradavelmente a nós todos com a invejável competência de seus dotes
culinários, além das curiosas histórias e causos lá de fora que nos contava.
Ao chegar aos Veleiros, atracamos o barco em seu apropriado local no trapiche. Depois de
arrumar todas as coisas, Paulo e eu nos despedimos do Schultz e do Adinho, já saudosos
daqueles belos dias passados juntos. Pegamos o meu carro e enfrentamos uma viagem até
Torres para encontrar nossos familiares. Chegamos exaustos pra caramba, mas alegres e
felizes por termos realizado aquele magnífico programa, que permanece indelével em
minhas melhores lembranças.
Sempre que me lembro da Singradura da Lagoa, reforça-me a convicção de que:
A vida é bela e deve ser bem vivida!
* Despretensiosa Crônica escrita por Gastão Mostardeiro Filho
em comemoração dos 70 anos de Paulo Augusto Hennig.
Porto Alegre, Janeiro de 2010.
Charlie Bravo 1973 - Schultz & Paulo
Charlie Bravo 1973 - 2 Schultz, Paulo e Gastão
Charlie Bravo 1973 - 3 Schultz e Gastão no través do farol de Itapoã
Charlie Bravo 1973 - 4 Gastão timoneando
Charlie Bravo 1973 - 5 Gastão na proa no través do farol de Itapuã
Charlie Bravo 1973 - 6 Adinho Kessler na entrada da Lagoa

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