- Pós Clássicas

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- Pós Clássicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
2016
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Clássicas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em
Letras Clássicas.
Orientador: Prof. Dr Anderson de Araújo Martins
Esteves
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2016
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Clássicas.
Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 2016
_____________________________________________________________________
Orientador, Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves - UFRJ
_____________________________________________________________________
Prof. Dr. Amós Coelho da Silva – UERJ
_____________________________________________________________________
Profª. Drª Arlete José Mota – UFRJ
_____________________________________________________________________
Profª. Drª. Fernanda Messeder de Moura – UFRJ, Suplente
_____________________________________________________________________
Profª. Drª Regina Maria da Cunha Bustamante - UFRJ, Suplente
Agradeço
A Deus;
Aos meus pais Maria e Oscar, minha irmã
Barbara, minha tia Maria do Socorro e demais
familiares pelo constante apoio;
Aos amigos que fiz na faculdade, que são
também familiares;
A todos os professores que me ajudaram a
chegar até aqui, desde a infância;
A Anderson Martins, que me orientou na
Academia e na vida;
À UFRJ por tudo o que me proporcionou;
Aos professores da banca, pela paciência;
Àqueles que minha memória
reconhecer, mas não meu coração.
falha
em
Pereira, Braulio Costa
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita
Caesarum, de Suetônio / Braulio Costa Pereira. - Rio de
Janeiro: UFRJ, 2016.
vii, 114 f. ; 30 cm.
Orientador: Anderson de Araújo Martins Esteves.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas, 2016
Referências bibliográficas: f. 122-124.
1. Suetônio. De Vita Caesarum Liber IIII – Tradução para
o Português. I. Esteves, Anderson de Araújo Martins. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras.
III. Título.
RESUMO
Tradução comentada da Vida de Calígula do De Vita Caesarum, de Suetônio
Braulio Costa Pereira
Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Clássicas.
O presente trabalho apresenta uma proposta de tradução e comentários da Vida de
Calígula, biografia que faz parte do conjunto de doze biografias escritas por Suetônio
no século II d.C., conhecidas como De Vita Caesarum. Além da tradução e dos
comentários, são apresentadas reflexões a respeito do contexto histórico e literário de
produção da biografia e a respeito da biografia enquanto gênero literário na Roma
Antiga.
Palavras Chave: De Vita Caesarum, Suetônio, Calígula, Biografia, Tradução
ABSTRACT
A commented translation of the Life of Caligula from Suetonius’ De Vita Caesarum
Braulio Costa Pereira
Prof. Dr. Anderson de Araújo Martins Esteves
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Letras Clássicas, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras
Clássicas.
ABSTRACT
This work presents a translation and comments proposition of the Life of Caligula, part
of the twelve biographies written by Suetonius on the II century A.D., known as De
Vita Caesarum. Other than the translation and the comments, reflections on the
historical and literary context of this biography and on the biography as a genre in
Ancient Rome are presented.
Keywords: De Vita Caesarum, Suetonius, Caligula, Biography, Translation
8
SUMÁRIO
1 Introdução...................................................................................................................................9
2 O contexto histórico da obra de Suetônio..................................................................................12
2.1 O Império Romano e o sistema do Principado........................................................................13
2.2 Suetônio..................................................................................................................................20
3 A biografia enquanto gênero literário.......................................................................................25
3.1 Gêneros textuais na Antiguidade Clássica.............................................................................25
3.2 Historiografia e biografia em Suetônio: fronteiras entre gêneros..........................................32
4 Texto e tradução........................................................................................................................45
5 Conclusão................................................................................................................................118
6 Referências Bibliográficas.......................................................................................................122
9
1 Introdução
No presente trabalho, nos propusemos a fazer uma tradução com comentários da
biografia de Calígula, parte integrante do conjunto de doze biografias de líderes romanos
escritas por Suetônio no século II d.C., e conhecidas em português como “Vidas dos Doze
Césares” – De Vita Caesarum, no original.
A relevância desse trabalho reside nas questões que são levantadas através das
reflexões feitas sobre o estilo do texto, pouco dado a malabarismos literários. Assim, ao
longo da tradução da vida de Calígula, procurou-se sempre manter o estilo mais próximo
daquilo que Suetônio tentou utilizar em latim – uma linguagem simples, seca, sem
rebuscamentos, mas nem por isso chã ou desprovida de ornamento. A tradução tentou
simular a maneira como Suetônio parece tentar apagar as marcas de sua própria escrita,
deixando que os fatos se apresentem, sumarizando o ocorrido quase sem fazer uso das
estruturas típicas de um texto narrativo. As rubricas de que o autor faz uso, ao colocar um
substantivo relevante logo no início das seções de anedotas que tratam de determinado
assunto, também foram respeitadas, mas é preciso ter em mente que a liberdade de
posicionamento das palavras em língua portuguesa não é tão grande quanto a que existe
em língua latina, o que muitas vezes exigiu algumas adaptações. Em nosso trabalho
também foram consultadas outras traduções, não somente em língua portuguesa, como
também em francês e inglês. Lembramos que a última tradução brasileira do De Vita
Caesarum foi a de Sady-Garibaldi, datada de 1937, que apresentou várias reedições.
Os comentários acrescentados à tradução possuem diversas motivações. Em
primeiro lugar, procurou-se fornecer explicações ligadas ao uso de vocábulos incomuns
na língua portuguesa, geralmente relacionados a realidades sociais e históricas que já não
fazem parte do cotidiano das pessoas no século XXI, e que podem acabar trazendo ao
texto um caráter enigmático que Suetônio não pretendia lhe conferir. Assim, forneceramse explicações sobre estruturas governamentais, eventos sociais, objetos ligados ao dia a
dia dos romanos do período imperial, termos ligados a práticas religiosas que já não são
facilmente reconhecidos pelos leigos, e principalmente sobre o vocabulário técnico de
que Suetônio parece muitas vezes abusar ao longo do texto.
10
Além disso, a própria natureza erudita do autor fez com que ele buscasse não se
tornar repetitivo. Assim, como a vida de Calígula é o quarto texto de uma série de doze,
algumas referências que foram devidamente explicadas em biografias anteriores como a
de Tibério acabaram sendo suprimidas pelo autor na biografia de Calígula. Uma vez que
esse trabalho não se propõe a apresentar a tradução das doze biografias, alguns
esclarecimentos se fazem necessários.
Por fim, Suetônio também aparenta ter em mente o tipo de leitor que vai se
interessar por sua obra: sendo ele um membro da ordem equestre, um dos integrantes do
círculo literário de Plínio, que incluiu os principais autores de renome da época como o
historiador Tácito, e, à época da publicação do De Vita Caesarum, já um autor
devidamente estabelecido e experimentado, ele sabia que seu público leitor seria
constituído por membros da ordem senatorial e da ordem equestre – a aristocracia romana.
Esses leitores já teriam tido acesso a um nível de educação e envolvimento nas esferas
políticas e sociais de Roma que dispensaria a explicação, muitas vezes até mesmo a
menção a fatos históricos de importância. Mas o que antes era lugar-comum na Roma
Antiga, acaba por se tornar obscuro no século XXI. Esses comentários também tem a
função de preencher as lacunas deixadas por Suetônio de que o leitor não teria como saber
mesmo tendo lido as doze biografias. Suetônio é talvez um dos autores cuja tradução
exige ser comentada, sob a pena de o texto traduzido e desprovido de aparato crítico
fornecer ao leitor a falsa impressão de que a matéria tratada é um assunto para iniciados,
quando na verdade o autor tentou fazer com que seu texto fosse o mais simples possível
a falar daqueles mesmos assuntos, sobretudo se comparado a escritores de outros gêneros
como a historiografia.
A partir da tradução, foi impossível não se questionar a singular natureza das
biografias de Suetônio dentro do contexto histórico e literário em que se inserem. Por
exemplo, o fato de, não muito tempo antes da publicação dos primeiros livros do De Vita
Caesarum, Tácito ter publicado também textos pertencentes ao gênero historiográfico que
tratavam quase exatamente do mesmo período, leva-nos a questionar a relação de
contraste que pode ter sido formada entre os dois textos, e mesmo entre os dois autores,
pela necessidade que Suetônio teve de tornar seu trabalho diferente daquilo que Tácito já
11
havia logrado escrever. Basicamente, a relação que se formou entre o trabalho do
historiógrafo e o trabalho do biógrafo.
Com isso, foi necessário buscar outros exemplos de biografia ao longo do
processo de constituição desse gênero na literatura latina para entender que tipo de
expectativas foram confirmadas ou subvertidas na escrita do De Vita Caesarum e como
essas expectativas dialogam com o cânone literário da antiguidade – uma análise que se
torna ainda mais complexa e interessante pelo fato de o gênero biográfico não ser
reconhecido formalmente como tal por nenhum dos autores da antiguidade clássica, tanto
grega quanto latina, cujos textos se dedicaram a tratar de gêneros literários.
Também o contexto histórico apresenta uma óbvia relevância para a obra de
Suetônio. Tendo ocupado cargos públicos de importância ao longo dos governos de
Trajano e Adriano, e fazendo parte do círculo literário de Plínio, que apresentava fortes
opiniões sobre a maneira adequada de governar o Império, ele não teria como ficar isento
de uma certa carga ideológica que pode transparecer em muitas de suas biografias,
principalmente aquelas que assumem um tom crítico mais acentuado. Muito embora
Suetônio não se subscreva à tradição de escrita biográfica filosófica (baseada nas ideias
dos filósofos peripatéticos), cujas principais aspirações incluíam fazer uma crítica moral
dos biografados, parece-nos que o uso de estruturas anedóticas para a melhor exposição
do caráter dos imperadores derivaria das práticas empregadas por essa mesma tradição.
Assim, o tom superficialmente imparcial de Suetônio não impede que se veja nas
entrelinhas uma opinião geral que o autor apresenta sobre os assuntos tratados. Esperamos
que a biografia de Calígula consiga demonstrar essa hipótese de maneira satisfatória.
O presente trabalho foi resultado de uma pesquisa que na verdade se iniciou antes
mesmo de meu curso de mestrado, uma vez que comecei a me interessar pela biografia
de Calígula ainda durante a graduação. Os primeiros resultados da pesquisa foram
essenciais para o desenvolvimento do que agora se segue. A tradução foi feita com base
no texto latino estabelecido por Henri Ailloud na edição Les Belles Lettres de 1931.
12
2 O Contexto histórico da obra de Suetônio
Qualquer análise que se pretenda séria sobre uma obra literária tem de lidar com
o problema do contexto. Independentemente da posição teórica da qual se parte, nenhum
estudioso pode ficar alheio ao fato de que a obra literária não existe no vácuo, e que,
embora análises que se limitam apenas ao texto sejam perfeitamente possíveis, e em
alguns casos até mesmo recomendadas, algumas obras parecem exigir que se leve em
consideração o contexto de produção, o contexto de recepção e as implicações que esses
contextos podem trazer à leitura.
No caso de um texto da literatura latina, marcado antes de qualquer coisa pela sua
distância no eixo temporal em relação a nós, parece temerário debruçar-se sobre as obras
sem uma tentativa prévia de compreender o contexto que as ajudou a produzir. É leviano
achar que as mentes do século XXI são capazes de compreender os conflitos sociais da
República Romana, ou o drama do esfacelamento do Império, ou as relações familiares
entre senhores e escravos sem que haja um estudo razoavelmente aprofundado daquilo
que norteia as aflições das pessoas que viveram essas épocas. Apesar de sermos, enquanto
membros da civilização ocidental, os descendentes desses indivíduos, e ainda
carregarmos em nossas mentes muitas das questões que não foram respondidas por seus
pensadores originais (ou que foram respondidas diversas vezes, de maneiras diferentes),
a distância temporal nos impede de alcançar com propriedade aquilo que buscamos: o
outro. Toda tentativa de nos identificarmos com esse outro está fadada ao fracasso – o
que não nos escusa de tentar.
Pensando nessas questões, não seria possível iniciar uma análise da obra de
Suetônio sem antes tentar caracterizar, minimamente, o ambiente em que sua obra se
desenvolveu. Essa análise, é claro, não pode ser exaustiva, pois, do contrário, pode correr
o risco de perder o seu foco. Assim, tendo em conta que Suetônio foi um autor do século
II d. C., um cavaleiro romano, e que sua obra procura compreender e definir o
comportamento de diversos líderes políticos que foram chamados de ‘Césares’, é
necessário entender o que um homem do século II d. C., com acesso a uma educação que
poucos tiveram em seu tempo, entendia quando falava de um ‘César’. Seria o César um
13
imperador? Mas o que é um imperador, afinal? No que ele difere de um ditador ou de um
rei do oriente? Como funciona a estrutura do seu governo? Até onde se estende sua
autoridade (política e geograficamente)? Mais do que isso, o imperador sempre foi o
mesmo? Será que Calígula, cuja biografia vamos traduzir, tinha os mesmos direitos e
deveres, tinha de lidar com as mesmas expectativas que os governantes da época de
Suetônio, como Trajano e Adriano?
E quais seriam os interesses de Suetônio em trazer à tona as biografias desses
líderes? Seria um simples exercício de erudição? Poderíamos falar aqui numa obra de
propaganda? Talvez numa obra que procura ser didática, apresentando exemplos do que
se deve ou não fazer quando se chega ao poder como imperador? Aliás, será que os futuros
imperadores leriam sua obra?
Todas essas questões serão abordadas nas linhas que seguem. Espera-se, com isso,
recriar o contexto de produção da obra de Suetônio, de modo a deixar mais claro aquilo
de que falaremos durante a tradução da Vida de Calígula.
2.1 O Império Romano e o Sistema do Principado
Levando em conta que a obra de Suetônio não só foi produzida no contexto
histórico do Império, mas também se dedica a trabalhar com a própria noção de César,
cabe aqui tentar compreender o que foi esse sistema de governo e como defini-lo. A
definição ideal para a análise da obra de Suetônio seria aquela que o próprio Suetônio nos
fornecesse. Mas, infelizmente, não fazia sentido para ele buscar uma definição de Império
ou uma definição de César. Tais categorias estavam relativamente claras no pensamento
do homem romano, sobretudo na época em que Suetônio viveu, quando o governo dos
Césares já era reconhecido como o poder oficial havia quase dois séculos. Falar dos
Césares era algo comum, tido como natural. Não havia necessidade de buscar uma
definição teórica para o assunto.
Isso faz com que nós, estudiosos do século XXI, tenhamos de nos valer de
trabalhos teóricos sobre o assunto que procurem esclarecer o que o senso comum dos
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homens daquela época entendia por Império, e como um César poderia ser reconhecido
legitimamente como tal.
Não é surpresa para ninguém o fato de que uma tentativa de definição sobre uma
categoria tão abstrata quanto o “Império” cause perplexidade: para começar, o termo
apresentava definições diversas para os próprios romanos1. Consultando o Dictionnaire
Etymologique de La Langue Latine, de Ernout & Meillet, é possível compreender de
maneira mais clara a evolução dos diferentes significados do termo:
Imperium designa o poder soberano (por exemplo, o do pai de família sobre
seus filhos, do senhor sobre seus escravos), imperare quer dizer “comandar
como senhor”. Daí, na linguagem política, o sentido de imperium “comando,
poder soberano de tomar todas as medidas de utilidade pública, mesmo fora
das leis2 (ERNOUT&MEILLET, 1951: 74)
Com essa definição, já é possível deixar de lado os usos mais corriqueiros de
imperium enquanto “ordem”, “comando”, que não nos servem para trabalhar com o termo
do ponto de vista político. A noção de comando militar é menos facilmente deixada de
lado, mas também é menos importante no momento. Cabe aqui entender o imperium como
o poder soberano exercido na esfera política, um poder tão absoluto que poderia até
mesmo ignorar as leis. Mas, para nossa frustração, essa definição ainda é muito vaga, e
não nos explica como esse sistema de governo funcionaria em suas estruturas mais
profundas, nem como o povo se permitia convencer da legitimidade de um governante
que recebesse um poder tão grande.
Além da confusão derivada da própria polissemia do termo imperium em latim,
não se pode esquecer que esse termo deu origem a palavras análogas nas mais diversas
línguas. Com a diferença de que palavras como “Império” ou “Empire” designam
1
Mesmo os dicionários mais concisos oferecem um número relativamente elevado de definições para o
termo imperium. Por exemplo, o Dicionário de Latim-Português/Português-Latim da Porto Editora, que
contém cerca de 26000 entradas em latim, oferece as traduções: poder; autoridade; ordem; mando; poder
supremo; hegemonia; soberania; comando militar; magistratura; Estado; Império. (PORTO EDITORA,
2012: 230)
2
“Imperium désigne le pouvouir souverain (par ex. du père de famille sur ses enfants, du mâitre sur ses
esclaves), imperare veut dire “commander en mâitre”. De lá, dans la l. politique, le sens de imperium
“commandement, pouvouir souverain de pendre toutes mesures d’utilité publique, même en dehors des
lois”.
15
realidades que, embora análogas, reúnem diferenças fundamentais em relação ao tipo de
Império de que se fala quando estamos tratando da Roma Antiga. E as semelhanças entre
os sistemas de governo do Império Romano e o governo do Império Brasileiro, por
exemplo, em lugar de auxiliar o pesquisador, podem levá-lo ao engano.
Essa é uma preocupação expressa por diversos teóricos, como se pode observar
nesta afirmação feita por Patrick Le Roux, que observa os riscos de se tomar uma postura
anacrônica ao tratar do fenômeno político que foi o Império Romano como algo
essencialmente idêntico aos outros sistemas de governo que foram chamados de impérios
ao longo da História:
A expressão “o Império Romano” admite diversas definições parciais, e
teremos de combinar elementos de cada uma delas, caso queiramos nos
aproximar de um conceito mais completo. Todos acreditam saber do que estão
falando, mas captar esse conceito em sua totalidade é um verdadeiro desafio.
Antes de mais nada, para estabelecermos uma conceituação precisa, será
necessário libertá-la de todas as semelhanças enganosas que vem sendo
encontradas com o Império Britânico ou o Império Francês. Hoje em dia, se
pretendermos estabelecer qualquer comparação com o Império Americano,
seremos novamente levados a cair na armadilha de um anacronismo. (LE
ROUX, 2010: 7-8)
Alguns dos pontos de divergência entre esses diversos sistemas de governo saltam
aos olhos quando se faz uma observação mais detida. Há, por exemplo, a questão da
escolha do novo líder após a morte do atual. Enquanto em regimes mais modernos se
pode afirmar que essa escolha era baseada única e exclusivamente em critérios familiares,
sendo o governante legitimado por ser um descendente direto de seu sucessor, no Império
Romano isso não ocorria exatamente da mesma forma.
Se admitimos que o primeiro princeps foi Otávio Augusto, cujo governo durou de
27 a.C. a 14 d.C., fica claro que, embora o critério de parentesco seja relevante tanto para
a escolha do próprio Augusto como para a escolha de seu sucessor, ele não é determinante
ao ponto de que apenas aqueles reconhecidos como descendentes diretos sejam elegíveis
para o comando. Augusto recebeu o poder de Júlio César – que, apesar de seu comando
absoluto sobre Roma, nunca chegou a ser um imperador, governando sob as alcunhas de
cônsul e, mais tarde, ditador – que não era seu pai biológico. Ainda que pertencessem a
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um mesmo clã, a gens Iulia, seu grau de parentesco era originalmente mais afastado – o
então chamado Caio Otávio era sobrinho-neto de César. No entanto, ele foi adotado em
testamento por César, passando a ser seu filho de fato e assumindo o nome de seu pai
adotivo, e, por fim, após a derrota de Marco Antônio, o título de Augusto.
Quanto ao sucessor de Augusto, Tibério, não se pode afirmar sequer que pertencia
originalmente ao mesmo clã do pai adotivo. Pelo contrário, sua família vinha fugindo de
Otaviano quando ele próprio era ainda uma criança, já que sua mãe, Lívia Drusila tivera
como marido um aliado de Marco Antônio, Tibério Cláudio Nero, seu pai biológico.
Augusto, no entanto, acabou se apaixonando por Drusila e Tibério, quando da morte de
seu pai adotivo, terminou por assumir o governo.
Com apenas esses dois exemplos, é possível notar que, primeiramente, o
parentesco existente entre o imperador e seu sucessor não era necessariamente sanguíneo:
a adoção era vista como uma maneira legítima de se manter o comando do Império dentro
do mesmo clã. Em segundo lugar, não havia a necessidade de manter uma mesma família
no controle, bastando que o sucessor pertencesse de alguma forma ao mesmo clã, ou
melhor, à mesma gens de seu antecessor.
A verdade é que a legitimidade do imperador não era determinada,
ideologicamente, pelo seu parentesco. Ou, pelo menos, não somente por ele. Na teoria, o
imperador era apenas mais um cidadão como qualquer outro, ao qual eram fornecidos
poderes para administrar o Império. Tornar-se imperador era assumir uma
responsabilidade, quase como tomar um fardo muito pesado de garantir o bom
funcionamento de Roma e de suas províncias. Cabia a ele cuidar bem da república – sim,
porque a noção de república não se perdia no governo dos Césares. 3 O que o fazia ser
reconhecido como tal era um consenso entre os membros da sociedade de que aquele
indivíduo seria capaz de cumprir sua árdua tarefa. A questão do parentesco, da
Como afirma Veyne: “No Império, a palavra república não deixará de ser pronunciada em momento algum
– e não se trata de uma ficção hipócrita. Sob o Antigo Regime, o indivíduo estava a serviço do rei; um
imperador, ao contrário, servia à República. Ele não reinava para a própria glória, como um rei, mas para a
glória dos romanos; suas conquistas e vitórias, celebradas nas moedas que cunhava, visavam única e
exclusivamente ao benefício da gloria Romanorum ou da gloria rei publicae. (...) O regime imperial não
mantinha sua fachada republicana por meio de uma ficção, mas à custa de um compromisso; o príncipe não
podia nem desejava abolir a república, pois esta lhe era imprescindível – sem a ordem senatorial, sem os
cônsules, os magistrados e promagistrados, o Império, destituído de sua coluna vertebral, ruiria. (VEYNE,
2009a: 8-9)
3
17
hereditariedade do Império, era simplesmente uma maneira de tornar a sociedade mais
receptiva ao novo governante – não podemos esquecer que, para o romano, as virtudes de
um homem eram muitas vezes hereditárias, sendo mais fácil acreditar que um indivíduo
será um governante eficiente se ele for membro de uma gens na qual outros indivíduos já
se haviam provado capazes de fazer o mesmo4.
Esse consenso existente entre as diversas camadas da população não pode ser visto
como uma votação popular. Na verdade, como nos lembra Veyne, ele era muito mais uma
ferramenta ideológica, na qual diferentes setores da sociedade eram “representados” por
alguns indivíduos em particular que atuavam como a voz de camadas populares muito
mais numerosas.5 Basicamente, cabia ao senado e ao exército determinar quem era ou não
elegível para exercer a soberania, e com o reconhecimento destas duas forças, o imperador
era considerado legítimo.
Mas ainda assim, talvez ainda por influência da aristocracia existente já desde os
tempos da República, embora o imperador pudesse teoricamente ser qualquer um, havia
uma clara preferência por aqueles que faziam parte do mesmo clã. Assim foi que se
constituiu, com a passagem do governo de Augusto para Tibério, a primeira dinastia de
imperadores que Roma conheceu – a dinastia júlio-claudiana. Os primeiros imperadores
eram todos descendentes de Otávio Augusto, fossem eles de fato membros da família ou
simplesmente adotados pela gens Iulia. Assim ocorreu com Tibério (14-37 d. C.), que,
como já dissemos, não era seu filho legítimo, mas sim de um casamento anterior de
Drusila. Há um consenso entre os historiadores de nossa época e da própria antiguidade
de que Augusto não tinha grandes expectativas para Tibério6, mas, encurralado,
4
O mesmo também vale para os vícios, no entanto. Suetônio afirma que a filha de Calígula, ainda bebê, já
demonstrava traços da ferocidade do pai, chegando até mesmo a atacar as crianças que brincavam perto
dela. (Cal, XXV, 8).
5
“Como alguém se tornava imperador? Aqui, para compreendermos a questão, é preciso abrir mão de
buscar um direito público, regras, fundamentação legal; só havia um jogo de forças. O êxito, as
demonstrações de força e a submissão eram encobertos, após a vitória, pela ficção de um consenso de todos
os cidadãos.” (VEYNE, 2009a: 5).
6
Como afirma Grimal, Augusto pretendia deixar o governo para um de seus netos, Lúcio ou Caio, filhos
de Júlia e Vipsânio Agripa, mas: “Infelizmente esses dois jovens, que foram, desde a infância, cumulados
de honras e que todos consideravam sucessores do príncipe, morreram aos 20 anos. Lúcio pereceu primeiro,
em 2 d.C.; e Caio logo o seguiu. Augusto precisou resignar-se a buscar um sucessor entre os filhos de Lívia.
Dos dois irmãos, nesse momento, só o mais velho sobrevivera, Tibério (...) Augusto não sentia nenhuma
simpatia por ele. Só o escolheu porque não havia nenhum outro membro de sua casa capaz de assegurar,
melhor ou pior, a sobrevivência de sua obra.” (GRIMAL, 2011: 132).
18
precisando de um herdeiro que pudesse cuidar de seu legado sem esfacelá-lo, foi
necessário que ele concedesse o poder a seu filho adotivo, mesmo a contragosto.
Entre Tibério e Calígula (37-41 d.C.), as relações não eram menos animosas. Basta
lembrar que, como se verá na tradução da vida de Calígula, o jovem que viria a ser o
terceiro imperador mais de uma vez se vangloriou de ter chegado perto de cometer
parricídio, matando seu familiar e então imperador, Tibério. Mais do que isso, a crença
geral era a de que Calígula havia chegado a perpetrar o ato, o que era escandaloso, mas
não necessariamente inesperado. Calígula mataria ou enviaria para o exílio ainda outros
membros mais próximos de sua família, e não seria o único imperador a fazê-lo. Essa
acabava se tornando praticamente uma exigência para os governantes desse regime
recém-instaurado, pois cada familiar que se destacava, ou que conseguia ser mais popular
que o próprio imperador, era um candidato a substituí-lo, e tão legitimamente elegível
quanto seu parente. O próprio Tibério percebeu isso, aparentemente, quando mandou
envenenar – de acordo com Suetônio – o pai de Calígula, Germânico, um excelente
general e homem extremamente carismático. Dessa forma, acabou abrindo caminho para
Calígula. E o processo de sucessão foi visto com legitimidade também pelo fato de
Calígula ser membro do clã: era sobrinho-neto de Tibério.
O sucessor de Calígula foi seu tio, Cláudio (41-54 d. C.), o penúltimo membro da
dinastia júlio-claudiana. É conhecida a narrativa de como os guardas pretorianos
responsáveis pela morte de Calígula foram até Cláudio, sempre retratado como um
homem de personalidade fraca, e praticamente exigiram que ele assumisse o poder. Prova
da importância do pertencimento ao clã para a legitimidade do governante: mesmo um
indivíduo reconhecido por todos como um idiota era um candidato qualificado por ser um
dos poucos membros restantes da gens. Depois dele, Nero (54-68 d. C.), outro sobrinho
de Cláulio, assumiu o poder. Em princípio uma figura de pouco destaque, Nero era
aconselhado por seu mestre, Sêneca. Não tardou, porém, para que seus delírios de
grandeza e sua paranoia o fizessem se voltar contra seu tutor, que acabou sendo morto
por sua ordem. O assassinato de Nero marcaria o fim da dinastia e o início de uma guerra
civil, já que não havia um consenso sobre quem deveria assumir o poder, uma vez que
Nero não deixara herdeiros. Começava o ano dos quatro imperadores, um período de
anarquia em que a ausência de herdeiros legítimos fez com que diversas figuras políticas
19
tentassem sua sorte para alcançar a soberania. Galba, Oto e Vitélio tiveram sucesso, mas
por períodos de tempo extremamente curtos.
Depois disso uma nova dinastia, a dos Flavianos, foi instaurada por Vespasiano
(69-79 d. C.), continuada por Tito (79-81 d. C.), e encerrada com a morte de Domiciano
(81-96 d. C.). A narrativa da Vida dos Doze Césares, de Suetônio, se encerra com a vida
de Domiciano, e esse dado é importante para compreendermos o que pode ter motivado
esse recorte. Depois de encerrada a dinastia dos Flavianos, para evitar uma nova guerra
civil e mais um período de anarquia militar, o senador Nerva (96-98 d. C.) foi escolhido
como governante. Um homem já de idade avançada, considerado muito sábio pelos seus
pares, Nerva comprovou sua fama ao fazer uma escolha cuidadosa para seu sucessor:
Trajano (98-117 d. C.), um jovem soldado cujas virtudes ele havia reconhecido. Estava
fundada uma nova dinastia, a dos Antoninos, que seria caracterizada pelo fato de seus
membros escolherem os sucessores com base em suas virtudes pessoais, fazendo com que
o critério de escolha com base no pertencimento ao clã se tornasse menos importante.
Todos os imperadores dessa dinastia foram escolhidos pelos seus antecessores como
homens de grande valor pessoal e por eles adotados, para então assumirem o comando.
Os Antoninos, que por esse motivo ficaram conhecidos como os imperadores adotivos,
também não faziam parte das aristocracias romanas locais – alguns deles, como o próprio
Trajano, que era espanhol, vinham de províncias romanas relativamente distantes.
Sob o governo dos Antoninos, o Império prosperou de maneira nunca antes vista,
e também atingiu sua máxima expansão territorial. Sob o governo de Trajano, os romanos
conquistaram territórios na Ásia, frutos de conflitos bem-sucedidos com o Império Parta.
Em 116 d.C., Roma compreendia praticamente toda a Europa Ocidental (com exceção
dos territórios dos germanos, deixados em paz desde os tempos de Augusto), parte
considerável do norte da África e havia conseguido chegar ainda mais longe em direção
ao Oriente, numa tentativa de imitar as conquistas de Alexandre. O sucessor de Trajano,
Adriano (117-138 d. C.) pôs um fim ao impulso expansionista romano, por reconhecer
que o Império, conquistando ainda mais territórios do que aqueles que já administrava,
corria o risco de se esfacelar. Pacífico, intelectual e fascinado pela cultura grega, Adriano
seria lembrado como um grande líder pela maioria dos romanos. Mas, para Suetônio, ele
20
acabaria sendo um fardo. Ao cometer uma falta contra Adriano que ainda hoje não fica
muito clara, Suetônio perdeu os cargos políticos que exercia.
É esse o período do Império Romano relevante para entender a obra de Suetônio.
Os primeiros césares até Domiciano foram biografados por ele, enquanto que sua carreira
política e a publicação de sua obra ocorreram durante os governos dos antoninos,
especificamente de Trajano e Adriano.
2.2 Suetônio
E como isso se aplica ao próprio Suetônio? O De Vita Caesarum se estende apenas
até o governo de Domiciano, muito embora Suetônio tenha vivido durante os governos
posteriores de Nerva, Trajano e Adriano. O recorte feito pelo autor foi provavelmente
motivado pela necessidade de não trazer à tona anedotas inconvenientes aos governantes.
Em alguns momentos das vidas mais recentes do De Vita Caesarum, Suetônio demonstra
já ter algum material polêmico a respeito dos imperadores que não biografou. Por
exemplo, na vida de Domiciano, ele conta que esse imperador poderia ter entretido
comércio sexual com Nerva, que governaria depois dele (Dom. I, 1). Ainda na mesma
biografia, num dos raros momentos em que parece assumir um tom elogioso em relação
ao biografado, Suetônio fala de como os magistrados posteriores a Domiciano não eram
tão justos e moderados quanto foram durante o governo rigoroso do mesmo:
Magistratibus quoque urbicis prouinciarumque praesidibus coercendis tantum
curae adhibuit, ut neque modestiores umquam neque iustiores extiterint; e
quibus plerosque post illum reos omnium criminum uidimus. (Dom. VIII, 2)7
Narrativas como essa podem ser feitas com alguma segurança a respeito dos
imperadores que morreram há mais de um século, mas certamente não daqueles cuja
influência ainda pode ser sentida.
7
E teve tanto cuidado para conter os magistrados das cidades e os governadores das províncias que eles
nunca mais foram tão honestos e justos; eles que, depois de seu governo, vimos em grande número como
réus de todo tipo de crime.
21
No entanto, o fato do governo de Domiciano ser recente não impede Suetônio de
vituperá-lo. Na verdade, Suetônio dá a ele o mesmo tratamento dispensado a Calígula no
que diz respeito às expectativas criadas com seus primeiros feitos no governo: Domiciano
inicia seu mandato como um homem virtuoso, para então ceder, por medo, à avareza e
sobretudo à crueldade. Em Calígula, essa percepção é ainda mais acentuada, ficando mais
evidente no trecho em que o autor, tendo já narrado os prima acta do jovem imperador,
diz que “Até aqui se falou de um príncipe – deve-se agora falar de um monstro” (Cal.
XXII, 1). Seja como for, a crueldade dos dois príncipes é análoga.
O que permite a Suetônio maldizer tão veementemente um imperador cujo
governo ele até mesmo presenciou, ainda pequeno? O fato de ele não ser o único a fazêlo. Há toda uma tradição hostil às figuras de determinados imperadores, sobretudo de
Calígula, Nero e Domiciano. Autores oriundos da ordem senatorial, como Sêneca (4 a.C.
– 68 d.C.) e Tácito (56 – 117 d.C.) tinham uma opinião muito forte e não muito elogiosa
dos imperadores que tentaram diminuir o poder da aristocracia. Embora Sêneca
obviamente não tenha tido a oportunidade de tecer uma opinião sobre o governo de
Domiciano, não é difícil imaginar que o autor não o aprovaria. Já Tácito demonstrou por
via indireta na biografia de seu sogro Agricola que apenas os homens mais virtuosos
conseguiriam ser bem-sucedidos no governo de Domiciano sem se deixar corromper.
Pode-se pensar, então, numa espécie de ideologia que cercava as opiniões dos autores
sobre o comportamento e o governo de determinados imperadores particularmente
problemáticos. Mas, visto que Suetônio não pertencia à ordem senatorial, ainda é preciso
empreender uma análise de sua vida para termos a certeza de que ele se subscreve a esse
mesmo conjunto de ideias que pareceu nortear a opinião de autores daquela ordem.
Suetônio nasceu provavelmente no ano de 69 d.C., ou talvez 70. As principais
fontes que fornecem dados sobre sua vida são, tradicionalmente, o próprio Suetônio (que
acaba fazendo pequenos comentários em seus textos biográficos que revelam detalhes de
sua própria vida), a Suda bizantina e as correspondências trocadas entre Suetônio e Plínio,
bem como outras cartas de Plínio destinadas a terceiros mas que mencionam o autor.
Através dessas fontes, pôde-se reconhecer a filiação de Suetônio ao círculo literário de
Plínio (o que também se confirma pelo fato de o autor ter dedicado o De Vita Caesarum
a Septicius Clarus, outro membro desse grupo de intelectuais), a data aproximada de seu
22
nascimento, o fato de ter vivido em Roma na maior parte de sua vida, e ter ocupado uma
série de cargos públicos (como os de responsável a studiis, a bibliothecis e ab epistulis,
que lhe deram acesso a muitos documentos históricos importantes).
Outra fonte ainda oriunda da Roma Antiga foi a Historia Augusta, que menciona
o fato de Suetônio e Septicius Clarus terem caído em desgraça durante o governo de
Adriano, talvez por um ato de indiscrição relacionado à imperatriz Sabina. Mais
recentemente, no século XX, uma inscrição encontrada na cidade de Hippo Regius no
norte da África lançava mais luz sobre a vida do autor: primeiramente por fazer menção
a outros cargos públicos ocupados por ele dos quais ainda não se tinha notícia; mas
principalmente por levantar a hipótese de que aquele mesmo lugar seria o local de
nascimento de Suetônio, e não Roma, como antes se pensava (muito embora a inscrição
não fale especificamente de um local de nascimento, não podendo ser considerada uma
prova irrefutável contra a hipótese original).
No que diz respeito aos familiares de Suetônio, pouco se sabe. As cartas de Plínio
informam que ele teria recebido o Ius Trium Liberorum, reservado, como o nome sugere,
aos cidadãos que tenham três filhos, mas que teria sido dado a ele de maneira excepcional
– posto que ele não tivera filhos. A vida de seus antepassados também é contemplada por
alguns comentários. Na vida de Calígula, que traduzimos, é interessante a passagem em
que Suetônio apresenta uma explicação para a construção da ponte entre Puteoli
(Puzzuoli) e Baiae (Baías), obra que marca o início das excentricidades de Calígula:
Sed auum meum narrantem puer audiebam, causam operis ab interioribus
aulicis proditam, quod Thrasyllus mathematicus anxio de successore Tiberio
et in uerum nepotem proniori affirmasset non magis Gaium imperaturum quam
per Baianum sinum equis discursurum. (Cal. XIX, 3)8
Algumas coisas podem ser ditas a respeito desse trecho. Primeiramente, ele ilustra
a riqueza de fontes a que Suetônio recorre para relatar os fatos que selecionou. Essa
8
Mas ouvi de meu avô, quando eu era menino, que a razão de tal obra, contada pelos seus cortesãos, era o
fato de o astrólogo Trasilo ter dito a Tibério – quando este se encontrava preocupado com seu sucessor e
se mostrava propenso a escolher o neto – que “Caio tinha tantas chances de ser Imperador quantas de
atravessar a cavalo o Golfo de Baías”.
23
passagem é ilustrada não só pela opinião de seu avô, mas também por outras opiniões
correntes à época (e cujas fontes Suetônio não identifica) de que o ato seria uma tentativa
de emular Xerxes ou de aterrorizar a Bretanha e a Germânia. Mas, além disso, também
se identifica aqui uma certa relutância de Suetônio ao tratar de seu avô. Ao dizer que o
avô soube desse motivo através dos cortesãos de Calígula, pode-se inferir que Suetônio
acaba dando testemunho de uma origem mais humilde desse antepassado. Como explica
Esteves, que se refere ao avô de Suetônio como Maior:
Poderíamos esperar que se Suetônio Maior fosse um aulicus, este detalhe não
escaparia ao relato do neto biógrafo. Entretanto, a questão não é tão simples,
já que a função de aulicus está carregada pelo estigma do estatuto civil da
escravidão – os cortesãos eram, sobretudo na dinastia júlio-claudiana, ou
escravos, ou libertos da casa do princeps. (ESTEVES, 2015: 3)
Essa preocupação demonstra que Suetônio, embora tenha sido ele mesmo, assim
como o pai, um membro da ordem equestre, tinha antepassados menos louváveis, e que a
menção às condições sociais desses antepassados era um assunto delicado. Nessa pequena
hesitação seria possível enxergar uma insegurança que viesse a exigir de Suetônio que ele
próprio se reafirmasse enquanto cavaleiro em outras situações sociais.
Já se falou do contato que Suetônio tivera com Plínio. Pode-se dizer que Suetônio
foi seu protegido tanto na esfera política como na literária, e o próprio Plínio era também
um cavaleiro. A influência dele sobre a obra de Suetônio pode ser percebida em algumas
de suas cartas, quando pede ao autor que não se demore a publicar uma das obras que já
havia concluído (Ep. 5,10). Pode-se supor que sua influência política não tenha sido
menor, e que as ideias políticas de Plínio tenham sido assumidas também por Suetônio,
não só pela amizade existente entre os dois, mas também pela necessidade que Suetônio
tinha de se firmar na figura política mais consolidada que era Plínio. Se podemos falar
numa tal influência, então fica suficientemente explicada a facilidade com que Suetônio
fala mal de Domiciano, uma vez que seu padrinho também havia demonstrado pouca
simpatia por ele ao fazer o elogio de Trajano, onde a comparação entre os dois
imperadores era clara, e tendia a colocar em contraste as virtudes de Trajano e os vícios
de Domiciano.
24
Assim, os detalhes da vida de Suetônio se tornam importantes para o entendimento
do tipo de tom que pode assumir a sua biografia, ainda que indiretamente, quando trata
de imperadores cujo posicionamento político obscurecia o papel do senado ou que se
comportaram de uma maneira análoga àquela como Domiciano se comportou. Podemos
esperar que seu relato da vida de Calígula, portanto, apresente um tom moralizante.
25
3 A biografia enquanto gênero literário
3.1 Gêneros textuais na Antiguidade Clássica
Ao analisarmos os escritos deixados por Suetônio, uma problematização bastante
comum é aquela que diz respeito ao estatuto de gênero literário das biografias. Essa
questão surge de uma preocupação em evitar anacronismos durante o trabalho de análise,
o que pode ocorrer quando se classifica o texto através de critérios que pertencem às
sociedades modernas, mas não aos romanos ou gregos. Nossas definições de gênero
literário e de gênero textual são hoje mais amplas e complexas do que as definições da
Antiguidade Clássica (ou ao menos é o que nos levam a crer os esquemas de separação
dos gêneros presentes em autores como Aristóteles e Quintiliano), justamente porque elas
abarcam não só as noções já trazidas da Antiguidade Clássica pela tradição ocidental, mas
também uma série de gêneros que ainda não existiam na literatura ocidental anteriormente
ao medievo, ou que foram incluídos em nosso arcabouço literário através do contato com
culturas cuja literatura jamais alcançou os pensadores antigos. Além disso, o retorno
constante à literatura grega e latina, com renovado pensamento e inspiração intelectual,
nos fez enxergar categorias que, embora tornem mais acessível e inteligível o trabalho de
análise dos textos, não encontram (ou, ao menos, não aparentam encontrar)
correspondência imediata nas categorias reconhecidas pelos próprios autores desses
textos. Em resumo: os textos da Antiguidade que falavam sobre gêneros literários não
parecem reconhecer a biografia como um gênero em si. Utilizar a noção de biografia
como gênero literário para abordar os textos de Suetônio não seria, portanto, atribuir às
categorias de gênero literário da Antiguidade uma complexidade que não lhes pertence?
Não que essas categorias não apresentassem suas próprias complexidades, é claro.
Na verdade, é possível argumentar que muito das complexidades ali presentes não nos é
acessível, por não terem chegado até nossos dias textos que tratassem do gênero literário
de maneira mais aprofundada. Para melhor ilustrar esse ponto, observemos algumas das
classificações de gêneros literários que a Antiguidade Clássica nos oferece.
Em língua grega, A República, de Platão e a Poética de Aristóteles são as obras
nas quais a tradição ocidental se baseia para reconhecer uma primeira divisão entre os
gêneros literários. Ao justificar o seu conhecido ato de expulsar os poetas da república
26
ideal, Platão, na voz de Sócrates, acaba por fazer uma reflexão a respeito dos diferentes
assuntos e dos diferentes modos de se representar encontrados na prática dos diferentes
poetas. Assim, o poeta é excluído porque, em seus trabalhos, aborda temáticas que não
condizem com os valores morais que se deve buscar na educação dos cidadãos. Quando
os valores que se pretende fazer prevalecer entre os cidadãos incluem a coragem diante
da morte, o apreço pela liberdade e o asco em relação à escravidão, ter no seio da
República poetas que cantam os horrores presentes no Hades e os sofrimentos que
aguardam as almas dos que morrem pode ser muito prejudicial. Logo:
Palavras como estas e todas as outras da mesma espécie, pediremos vênia a
Homero e aos outros poetas para que não se agastem se as apagarmos, não que
não sejam poéticas e doces de escutar para a maioria; mas, quanto mais
poéticas, menos devem ser ouvidas por crianças e por homens que devem ser
livres, e temer a escravatura mais do que a morte. (Plat. Rep, III, 387b)9
Quanto à maneira pela qual os poetas reproduzem o que foi dito ao longo de suas
narrativas, também aí o filósofo encontra motivos para censurá-los. Reconhecendo que
só o que fazem os poetas é narrar acontecimentos passados, presentes ou futuros, ele
delimita três modos de representação: a narrativa pura (ἁπλή διήγησις), na qual apenas se
narram os acontecimentos; a imitação (μίμησις), em que se reproduz a fala dos
personagens, em lugar de apenas contar o que foi dito; e ainda um terceiro modo, o misto,
em que o autor se utiliza ora de um recurso, ora de outro. Quando o poeta faz a imitação,
seja em sua forma pura ou em sua forma mista, corre o risco de se tornar prejudicial à
cidade, pois acaba por imitar não só os homens superiores, mas também os inferiores, que
jamais deveriam servir de exemplo a quem quer que fosse. Mas o que mais interessa aqui
é que a essa distinção entre modos de representação se aplica uma divisão entre gêneros,
já que Sócrates e Adimanto reconhecem em seu diálogo que:
(...) em poesia e em prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes
que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta – é nos
ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por
9
Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
27
ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos outros gêneros, se
estás a compreender-me. (Plat. Rep, III, 394c)
A partir daqui, portanto, a tradição reconheceu uma divisão entre gêneros que
incluiria a tragédia – utilizando a representação puramente mimética – a epopeia –
utilizando a representação mista – e o ditirambo – utilizando a representação narrativa
pura.
Tal distinção influenciaria fortemente Aristóteles. Sobretudo no que diz respeito
ao modo de representação através da imitação, que viria a se tornar, para Aristóteles, um
traço distintivo comum à toda poesia, modificando sensivelmente a conceituação de
mímesis feita por seu antecessor. Assim, logo no início da Poética, o filósofo afirma que:
A poesia épica e a trágica, bem como a cômica, a ditirâmbica e a maioria da
interpretação com flauta e instrumentos de cordas dedilhados são todas,
encaradas como um todo, tipos de imitação. (Arist. Poet, 1447a)10
Repare-se que os “gêneros” que Platão havia separado de acordo com os modos
de representação estão todos agrupados agora sob a rubrica da imitação – mesmo o
ditirambo, do qual quase nada nos restou, mas que Platão havia considerado como o
representante principal, na verdade o único por ele citado, da narrativa pura.
Para distinguir esses gêneros, portanto, ele precisa se utilizar de outros critérios.
Investigando, pois, as diferentes manifestações da imitação artística, Aristóteles parece
reconhecer, num primeiro momento, três maneiras de diferenciá-las: primeiramente,
através dos meios de imitação, em que se podem reconhecer os diferentes suportes através
dos quais se faz a imitação (sendo que esta é uma maneira de diferenciar as imitações que
Aristóteles negligencia ao longo de sua obra, dando ênfase às duas seguintes); a segunda
maneira seria através dos objetos de imitação, criando-se aqui uma divisão entre a
imitação de homens superiores à média, de homens inferiores à média e de homens que
são “tal como somos” (Arist. Poet, 1448a). Desta última categoria de objetos também não
10
Tradução de Edson Bini.
28
se voltará a falar profundamente, mas as duas primeiras são usadas por Aristóteles para
distinguir, através dos objetos de imitação, a Comédia e a Tragédia, sendo a primeira
dedicada à imitação dos homens inferiores e a segunda à dos homens superiores; por fim,
ainda é possível fazer uma distinção entre os diferentes modos de imitação, em que cabe
diferenciar as obras que se utilizam da narração ou da performance direta dos papéis –
Aristóteles não se esquece de salientar que Homero apresenta uma postura mista neste
ponto, ora fazendo uso da narração direta, ora assumindo as falas de um personagem. A
cada um desse modos (sendo deixado de lado o modo misto de Homero) pode-se chamar
de narrativo o que se utiliza da narração direta e de dramático o que se utiliza da
performance direta.
Somente se pode falar em gêneros na Poética de Aristóteles, no entanto, a partir
do momento em que se juntam esses diferentes critérios. Com isso, exclui-se,
primeiramente, a diferenciação entre os meios de imitação, restando apenas a separação
por duas instâncias superiores, os modos de imitação (em que o modo misto ficaria
excluído, restando apenas o narrativo e o dramático) e os objetos de imitação (em que
não se tratará da imitação dos homens médios, apenas dos homens superiores e dos
homens inferiores). Assim, quando se une o modo de imitação dramático e o objeto de
imitação homens superiores, tem-se a tragédia; dentro do mesmo modo de imitação, mas
tendo como objeto os homens inferiores, encontra-se a comédia; o modo de imitação
narrativo, quando aplicado aos homens superiores, dá origem à epopeia; por último, se
esse modo de imitação é aplicado aos homens inferiores, tem-se aí a origem das paródias
(um gênero bem menos determinado que os anteriores, sobretudo porque as obras que
Aristóteles cita como exemplos do mesmo não chegaram até nós).
Isso foi uma leitura resumida e superficial de alguns dos pontos principais das
duas obras. Por ser superficial, ela também ignora alguns problemas presentes nos textos
originais e, sobretudo, nas interpretações que esses textos receberam de teóricos ao longo
dos séculos. Por exemplo, percebe-se que as distinções entre gêneros apresentadas por
Platão e Aristóteles não servem para a análise da obra biográfica de Suetônio, tarefa a que
se propõe este trabalho, simplesmente porque em momento algum os dois filósofos se
referem à biografia enquanto gênero literário. No entanto, o mesmo poderia ser dito a
respeito da poesia lírica: o texto de Platão se limita a uma poesia representativa, o que
29
não inclui o lírico. Também Aristóteles parece desprezá-lo (a não ser que se tenha
aprofundado nele ao longo da parte perdida de seu texto). A verdade é que, apesar daquilo
que durante muitos séculos a tradição ocidental afirmou, a famosa tripartição dos gêneros
em épico, lírico e dramático não parece ser uma criação da Antiguidade Clássica, já que,
como se viu, o lírico não é abordado por Platão nem por Aristóteles.
Um autor que trabalhou com esse tipo de questionamento sobre as fontes clássicas
da divisão entre gêneros literários reconhecida pelos teóricos do ocidente é Gérard
Genette que, abordando o mesmo assunto em sua obra Introdução ao Arquitexto,
desconstrói a tripartição dos gêneros, atribuindo-a a uma projeção da tradição romântica
sobre os textos clássicos, sobretudo a Poética de Aristóteles, da qual diz que:
(...) não se renuncia de moto fácil a projetar no texto fundador da poética
clássica uma articulação fundamental da poética moderna – de fato, como é
costume e como veremos, sobretudo romântica; e não talvez sem
consequências teóricas importunas, pois, ao usurpar essa longínqua filiação, a
teoria relativamente recente dos três gêneros fundamentais não somente se
atribui uma antiguidade, logo uma aparência ou presunção de eternidade, e
portanto de evidência: desvia, em proveito das suas três instâncias genéricas,
um fundamento natural que Aristóteles, e Platão antes dele, tinham, e talvez
mais legitimamente, estabelecido para alguma coisa de completamente
diversa. (GENETTE, 1986: 20-21)
Com isso, pretende-se apenas afirmar que, apesar de não serem mais do que uma
projeção, as análises literárias que se basearam nessa tripartição como se fossem de fato
um conceito clássico original não são por isso menos interessantes, nem menos
pertinentes. O próprio Genette, em seu livro, cita diversos autores que de alguma forma
se basearam nesse persistente engano, e entre eles encontram-se nomes muito
importantes, por exemplo, Northrop Frye. Isso poderia servir como uma desculpa para
afirmar que a biografia é reconhecida como um gênero literário sem buscar verificar se
ela figura ou não nas obras clássicas de poética. Mas tal argumento seria muito raso. Seria
mais conveniente tentar demonstrar que, na verdade, as obras poéticas dos autores
clássicos apresentam classificações que são, via de regra, feitas ad hoc, e que tomá-las
como uma classificação de caráter mais geral é um erro. Isso, esperamos, já foi
30
suficientemente demonstrado para as obras de Platão e Aristóteles com o que foi afirmado
até aqui.
Vamos agora voltar-nos às obras da literatura latina com o mesmo espírito. Dentre
os autores que influenciaram nossa maneira de enxergar os gêneros literários, destacamse Horácio e Quintiliano.
Em sua Arte Poética, Horácio estabeleceu alguns dos princípios que norteariam
muitos dos movimentos classicistas surgidos posteriormente. Principalmente no que diz
respeito à adequação da forma do poema àquilo de que ele trata. Segundo esse princípio,
não caberia falar de coisas trágicas usando uma métrica típica de textos cômicos, ou viceversa. Singula quaeque locum teneant sortita decentem 11, diz o poeta ao falar dos versos.
Não é verdadeiro poeta aquele que não respeita essa adequação. Esse respeito, porém,
acaba por ignorar a existência de uma poesia de natureza mais híbrida.
O texto horaciano parece bastante consciente de que está construindo um tratado
de estética. Mas essa primeira impressão pode não ser inteiramente verdadeira. Para
começar, Ars Poetica é apenas um dos títulos pelos quais ficou conhecido. Já era assim
chamado por Quintiliano, mas, na verdade, tratava-se de uma das cartas escritas pelo
autor, sob o nome de Epistulae ad Pisones. Não seria tão absurdo imaginar que esse texto
não tivesse pretensões tão ambiciosas, mas ocorre que a posteridade, e mesmo uma
posteridade não muito tardia, encarou essa como uma obra que seguia os mesmos
caminhos das obras fundadoras dos gregos.
Mas é Quintiliano aquele dentre os autores romanos que mais nos interessa, por
uma série de fatores. Sobretudo, por sua carreira: tendo sido um Rethor, um professor de
retórica, ele tinha interesse em escrever de maneira didática, buscando uma clara
descrição dos gêneros que pretendia abordar. Os gêneros reconhecidos por ele ao longo
do livro X de sua Institutio Oratoria são os seguintes: a epopeia, a poesia elegíaca, a
poesia iâmbica, a poesia lírica, a poesia dramática, a história, a eloquência, a filosofia e a
sátira. Eis uma classificação que parece ser mais exaustiva e abrangente do que aquelas
feitas pelos filósofos gregos.
“Que tenham cada um o lugar que lhes convém” (Ars. 92). A tradução é minha, tanto aqui como em
outros trechos citados em latim, salvo nota em contrário.
11
31
No entanto, seria um erro aplicar essa classificação à toda a literatura latina. Basta
para isso que se olhe com mais cuidado para o título da obra de Quintiliano: Institutio
Oratoria poderia ser traduzido como “A educação oratória”, ou “A educação do orador”.
Como já foi dito, Quintiliano foi um professor de retórica, preocupado com a formação
dos oradores de seu tempo, que havia, aparentemente, decaído bastante se comparada à
formação dos oradores na época de Cícero. Como afirma Zélia de Almeida Cardoso:
A oratória superficial e ornamentada que dominou o período júlio-claudiano,
e da qual temos suficientes exemplos nas Suasórias e Controvérsias de Sêneca,
o Rétor, vai encontrar um forte opositor em Quintiliano (...) Como Rétor e
mestre de alunos ilustres (...) Quintiliano se notabilizou tanto por ter procurado
reconduzir a oratória às suas dimensões legítimas, colocando-a a serviço da
pátria e do direito, como por ter-se preocupado sobremodo com questões de
ordem moral. (CARDOSO, 2011: 165 e 166)
Essa preocupação com a formação do orador romano é, talvez, o ponto principal
da Institutio Oratoria, e por isso mesmo permeia todos os pontos do texto, inclusive sua
classificação dos gêneros literários. De tal forma que, em diversos pontos, é possível
perceber que os gêneros por ele delimitados não são, na verdade, uma sistematização de
toda a literatura latina e grega, mas simplesmente uma sistematização dos gêneros que
um orador deveria ler e conhecer, em nome de sua melhor formação. Veja-se por
exemplo, esta passagem:
Nobis autem copia cum iudicio paranda est uim orandi non circulatoriam
uolubilitatem spectantibus. Id autem consequemur optima legendo atque
audiendo. (Quint. Inst. X, 1,8)12
Na qual Quintiliano censura aqueles que decoram listas de sinônimos no intuito
de terem um vocabulário amplo, sem considerar com cuidado o tipo de palavras que estão
memorizando. Para ele, é somente através da leitura dos bons autores (sobretudo de outros
“Devemos preparar um arcabouço (de palavras) com discernimento, pois buscamos a força do orador,
não a torrente de palavras do charlatão. Isto conseguimos lendo e escutando as melhores obras.”
12
32
oradores) que se pode adquirir um bom vocabulário. Ainda com o mesmo raciocínio, ele
afirmará mais adiante, pouco antes de começar a tratar de cada um dos gêneros:
Sed nunc genera ipsa lectionum, quae praecipue conuenire intendentibus ut
oratores fiant, existimem, persequar. (Inst. X, 1, 45)13
Note-se que Quintiliano deixa muito claro que vai tratar dos gêneros que julga ser
mais convenientes (quae praecipue conuenire... ...existimem), dando a entender, portanto,
que haveria outros menos recomendáveis. E recomendáveis para quem? Para os que
querem se tornar oradores, especificamente. Poderia haver outros gêneros que, apesar de
suas qualidades inerentes, não seriam recomendáveis para um estudante de oratória. Nem
por isso seu estatuto de gêneros textuais estaria ameaçado.
Assim, fica claro que uma tentativa de buscar nas obras da Antiguidade Clássica
uma definição ou uma separação clara entre gêneros literários, embora seja muito
pertinente para este trabalho, de maneira alguma encerra a questão sobre a biografia.
Embora as obras mais conhecidas a tratarem do tema não a incluam no rol dos gêneros, a
própria natureza fragmentária dessas obras ou seu escopo menos generalista do que se
imagina não permitem tirar quaisquer conclusões sobre o estatuto de gênero do texto
biográfico.
3.2 Historiografia e biografia em Suetônio: fronteiras entre gêneros
Visto que não há como determinar se a biografia é ou não um gênero literário da
Antiguidade apenas com o que se viu a esse respeito nos textos clássicos, faz-se necessária
uma mudança de abordagem. Já não se pode apenas recorrer aos textos teóricos da
Antiguidade, é preciso procurar por textos que falem sobre a biografia ainda que en
“Mas agora vou expor os gêneros de textos que eu penso serem mais convenientes àqueles que pretendem
se tornar oradores.”
13
33
passant. Talvez os autores que escreveram biografias na Antiguidade possam nos oferecer
o material necessário para debater as fronteiras entre gêneros.
Por onde começar, então? Seria interessante fazer um histórico, não da biografia
em si, mas sim dos textos que podem, de alguma maneira, assumir um caráter biográfico.
O que já leva a um outro problema: uma infinidade de textos se encaixaria nesse grupo.
Se entendermos caráter biográfico como uma narrativa que tem como base a vida de um
determinado personagem, então seremos forçados a admitir que textos tão antigos quanto
a Odisseia – que, afinal, narra a vida de Odisseu – fazem parte do conjunto de textos
biográficos da Antiguidade. Diversos textos narrativos se debruçam sobre aquilo que se
poderia chamar de “material biográfico”, posto que seu assunto está intimamente ligado
à vida de determinados personagens. E mesmo que se procure limitar esse conjunto
apenas aos textos que falam de personagens cuja realidade histórica é comprovada, seria
muito difícil separar a narrativa biográfica daquilo que se encontra em textos pertencentes
ao gênero historiográfico – as narrativas sobre a vida de Nero nos Annales, de Tácito,
sem dúvida poderiam ser consideradas material biográfico, mas trata-se de um gênero
textual diferente.
É preciso, portanto, começar definindo o que é texto biográfico, em oposição a
material biográfico. Essa definição tende a ser bastante intuitiva, como se pode ver na
breve explanação de Momigliano:
Um relato da vida de um homem do nascimento até a morte é o que eu chamo
de biografia. (MOMIGLIANO, 1993: 11)14
Tal critério já eliminaria a Odisseia, mas ainda é muito abrangente. Talvez a melhor opção
neste momento seria fazer uso da oposição construída por Stadter, na introdução de seu
capítulo sobre biografia e história:
Primeiramente, no entanto, é necessário distinguir biografia de interesse ou
material biográfico. (…) Biografia eu hesitantemente defino como um relato
14
“An account of the life of a man from birth to death is what I call biography.”
34
autossuficiente do tipo de vida vivido por um personagem histórico que
também avalia o caráter, objetivos e as conquistas do sujeito. (STADTER,
2011: 529)15
A partir daí, tem-se que as verdadeiras biografias são em número bem mais
reduzido. Utilizando esse critério, alguns dos primeiros textos biográficos da Antiguidade
seriam os de Xenofonte (430-364 a.C.). Junto com os Diálogos, de Platão, que também
buscam retratar a vida de Sócrates, textos desse autor podem ser considerados a primeira
produção legitimamente biográfica da Antiguidade: Anabasis, tem um tom
autobiográfico, além de contar com as biografias de alguns combatentes, entre eles Ciro,
o Jovem, homônimo de Ciro, o Grande; deste último, Xenofonte escreveu também uma
biografia (Cyropaedia), de cunho mais filosófico, em que a vida do governante persa foi
relatada de maneira a apresentar as virtudes necessárias a outros homens que se pretendem
bons governantes. Foi o primeiro texto biográfico a conter uma clara finalidade
moralizante, e também o primeiro a retratar a vida de uma figura política de destaque.
Outro texto de natureza semelhante desse mesmo autor foi o encômio dedicado ao rei
espartano Agesilau.
Tais obras acabam por se tornar uma espécie de modelo para a biografia da
Antiguidade. Como afirma Stadter:
Em Xenofonte especialmente se vê os antecedentes da biografia como gênero:
tratamento (quando possível) da vida inteira do nascimento até a morte,
avaliação prática e moral do caráter e das conquistas e sua inter-relação,
atribuição do louvor e da culpa, uso da anedota ilustrativa, e uma tentativa de
constituir o retrato com detalhes verossímeis. (STADTER, 2011: 529)16
Após Xenofonte, houve um outro momento da produção biográfica grega que
influenciou fortemente os biógrafos da posteridade: a escola dos peripatéticos, discípulos
“First, however, it is necessary to distinguish biography from biographical interest or material.(…)
Biography I tentatively define as a self-sufficient account of the kind of life led by a historical person that
also evaluates the subject’s character, goals and achievements.”
16
“In Xenophon especially one sees the antecedents of biography as a genre: treatment (when possible) of
the whole life from birth to death, practical and moral evaluation of character and achievements and their
interrelation, assignment of praise and blame, use of illustrative anecdote, and a willingness to flesh out the
portrait with verisimilar detail.”
15
35
de Aristóteles, no século IV a.C., cunharam uma maneira particular de fazer biografias,
partindo do princípio de que o caráter das pessoas (ethos), imutável desde o nascimento,
revelava-se aos poucos através de suas ações (práxeis) ao longo da vida. Esse caráter
poderia ser revelado pelo biógrafo através de uma seleção de anedotas referentes à vida
do biografado. Embora não nos tenha restado qualquer das biografias desse grupo, podese entrever o espírito de sua proposta na obra de Teofrasto, o sucessor de Aristóteles no
Liceu, que escreveu uma obra chamada Characteres, descrevendo uma série de
personalidades da sociedade e os traços típicos que revelavam seu caráter.
Houve também uma outra “escola” de biografia formada entre os eruditos de
Alexandria. Eles buscavam fazer biografias resumidas dos poetas cuja obra queriam
reeditar, à guisa de introdução aos seus textos. O caráter resumido e erudito desses textos
demonstra que não tinham pretensões literárias, ao contrário das biografias que se estuda
aqui. Talvez por isso mesmo, muito pouco desses textos chegou a ser conservado –
embora tenham provavelmente inspirado outras biografias de poetas com pretensões
literárias mais ambiciosas.
Além disso, um terceiro tipo de biografia que precede tanto alexandrinos quanto
peripatéticos é o costume, partilhado por gregos e romanos, de produzir textos
encomiásticos em honra de seus parentes falecidos. Nesse tipo de produção, retomam-se
os principais momentos da vida do indivíduo, chegando obviamente até o momento de
sua morte, mas com a distinta intenção laudatória que compromete sua imparcialidade. É
também nesse grupo que se encaixaria o trabalho de Xenofonte.
Esses seriam os três principais tipos de produção biográfica da Antiguidade
Clássica até a época da República romana, seguindo a divisão feita por Ronald Mellor no
capítulo dedicado à biografia romana em The Roman Historians. Ainda segundo o autor,
em se tratando de textos biográficos, o período da República romana não oferece
propriamente qualquer biografia à posteridade, muito embora alguns textos de oradores
como Cícero possam ser considerados algumas das primeiras formas biográficas em
Roma que chegaram até nós:
36
Já que não sobrevive nenhuma biografia propriamente dita da República
romana, as longas passagens nos discursos de Cícero que descrevem os
antecedentes de seu cliente podem ser encaradas como os escritos biográficos
romanos mais antigos a sobreviver. (MELLOR, 1999: 136)17
Esses textos servem de modelo às biografias posteriores. Para não demorar mais
do que o necessário explicando que tipos seriam esses, vai-se usar aqui a útil divisão feita
por Stadter, feita com base no objeto e no propósito dos textos biográficos. Assim, temse os seguintes tipos de biografia: a biografia filosófica (philosophical biography), que
se dedica a biografar filósofos, muitas vezes mantendo o foco do texto nos ensinamentos
deles; a biografia literária (literary biography), que, da mesma forma, se prestava a
biografar poetas e oradores; as biografias escolares e de referência (school and
reference biographies), de caráter enciclopédico; encômios (encomia); vidas dos recémfalecidos (lives of those recently departed); autobiografias, comentários e memórias
(autobiographies,
commentaries
and
memoirs);
e,
finalmente,
a
biografia
histórica/política (historical/political biography).
É o último tipo de biografia que mais interessa a este capítulo, justamente pela
facilidade com que ele se confunde com o gênero historiográfico. Também encontramos
nesse grupo os principais autores de biografia da Roma Antiga. É nele que vamos nos
concentrar para analisar as fronteiras entre esses gêneros, fazendo um recorte que inclua
os principais autores de biografia da literatura latina.
Retomando o ponto em que Mellor afirma não ter restado nenhuma biografia
romana do período republicano, basta seguirmos um pouco adiante na história de Roma
para encontrarmos um contemporâneo de Cícero que se dedicou a escrita biográfica:
Cornélio Nepos (100-24 a.C.). Conhecido pela dedicatória que Catulo faz a ele em seu
poema I, Cornélio foi um autor que se dedicou a escrever historiografia e também
biografou diversas personalidades romanas, gregas, persas e até mesmo cartagineses.
Tinha uma preocupação particular de “apresentar” o mundo civilizado, principalmente o
grego, ao povo romano que não falava nada além do latim. Por isso, ele acabou
escrevendo centenas de pequenas biografias que serviam como uma referência rápida a
“Since no proper biographies survive from the Roman Republic, the long passages in Cicero’s speeches
that describe his client’s background may be regarded as the earliest extant Roman biographical writing.”
17
37
personagens importantes da História. O conjunto dessas biografias (mais de trezentas ao
todo, embora muito poucas tenham sido conservadas) foi chamada De viris illustribus.
Ao longo das biografias de Nepos que chegaram até nós, observa-se claramente a
preocupação do autor em educar o povo romano a respeito dos vultos históricos de maior
importância. Numa delas em particular, há também a preocupação de que seu trabalho
não se confunda com o do historiador:
Pelopidas Thebanus, magis historicis quam uulgo notus. Cuius de uirtutibus
dubito quem ad modum exponam, quod uereor, si res explicare incipiam, ne
non uitam eius enarrare, sed historiam uidear scribere, sin tantummodo
summas attigero, ne rudibus Graecarum litterarum minus dilucide appareat,
quantus fuerit ille uir. (Nep. Pel, 1, 1)18
Pode-se perceber que Nepos reconhece que uma biografia deveria conter os fatos
mais relevantes da vida do personagem (muito embora, no caso da biografia de Pelópidas,
isso pudesse resultar na dificuldade por parte dos leitores que não conhecem a cultura
grega em enxergar a grandeza daquele personagem). O que, na verdade, não vai muito
além daquilo que já havia sido visto até então. O valor da reflexão de Nepos para este
estudo reside principalmente no fato de encontrar-se no trecho citado uma menção clara
do termo latino utilizado para descrever a biografia, Vita, além da preocupação de manter
essa mesma “vida” num campo de produção textual diferente daquele ao qual pertencem
os textos dos historiadores (textos aos quais ele se refere usando o termo historia). É
importante lembrar que Nepos foi também um historiador, além de ter feito a biografia
de outros historiadores, o que faz com que ele tenha tido a necessidade de mostrar aos
seus leitores as diferenças entre essas duas maneiras de produzir textos.
Outro autor que também se dedicou tanto à historiografia quanto à biografia foi
Tácito (55-120 d.C.). Ele fez a biografia do próprio sogro, Agricola, na qual são narrados
muitos dos feitos militares do biografado. A diferença é que Tácito foi muito mais
“Pelópidas, o Tebano, é mais conhecido pelos historiadores que pelo vulgo. Hesito quanto ao modo como
devo apresentar suas virtudes, pois temo que se eu começar a contar os fatos, não estaria narrando sua vida,
mas sim pareceria antes estar escrevendo história; se pelo contrário eu tocar somente os fatos mais
importantes, temo que seja menos claro aos que não conhecem as letras gregas o quão grande foi aquele
homem.”.
18
38
historiador do que biógrafo: ele narra fatos que muitas vezes se encaixariam melhor numa
obra historiográfica, por exemplo, ao fazer a descrição da Bretanha do ponto de vista
geográfico, além de descrever os combates entre as tropas de Agrícola e Calgacus (líder
militar da Bretanha) com tal riqueza de detalhes que chega até mesmo a reproduzir os
discursos de ambos aos seus homens. Assim, essa que foi uma das primeiras obras de um
futuro historiador, já dá sinais de como suas obras historiográficas serão estruturadas.
Por fim, o próprio Suetônio precisa ser devidamente analisado sob a luz da
comparação entre os dois gêneros. Não que ele tenha sido um historiador, apesar de sua
obra ter abarcado os mais diversos assuntos da antiguidade.19 Mas acontece que ele foi
contemporâneo de Tácito, e os dois autores publicaram suas obras em períodos de tempo
muito próximos. Quando da publicação dos primeiros livros do De Vita Caesarum (as
doze uitae foram publicadas em oito volumes, com os seis primeiros contendo apenas
uma uita cada, e os dois últimos contendo três uitae), Tácito já havia publicado suas
Historiae, que tratavam do período entre os governos de Nero e Domiciano e já se
preparava para publicar uma obra que trataria do período imediatamente anterior, o dos
júlio-claudianos. Assim, muito embora as duas primeiras biografias de Suetônio, a de
César e a de Augusto, não encontrassem correspondência imediata na obra de Tácito que viria a iniciar seus Annales pelo governo de Tibério - Suetônio sabia que suas uitae
corriam um grande risco de se tornarem redundantes se comparadas aos relatos de Tácito.
Sendo ele um erudito e não um historiador, e “competindo” com as obras de um
colega que foi sem dúvida o maior historiador do período, o estilo e a estrutura da obra
de Suetônio tiveram de se adaptar a essa realidade. Para começar, Suetônio fugiu do tipo
peripatético de escrita biográfica, que buscava se utilizar da vida do personagem
biografado para daí derivar lições de moral filosóficas, dando preferência ao estilo mais
enxuto e erudito das biografias alexandrinas (caminho inverso ao feito pelo Agricola, de
Tácito, que tinha inclusive um claro tom encomiástico). Nem por isso, no entanto, o seu
Segundo Mellor: “Suetônio escreveu uma grande variedade de livros sobre assuntos linguísticos, de
antiquário e biográficos, embora em sua maioria apenas os títulos tenham sobrevivido. Ele foi obviamente
um erudito de grande alcance, uma vez que escreveu livros sobre tópicos tão diversos quanto o ano romano,
o calendário, os nomes dos mares e as vidas de prostitutas famosas.” (Suetonius wrote a wide range of
books on linguistic, antiquarian, and biographical subjects, though for most only the titles survive. He was
obviously a scholar of great range, since he wrote books on such diverse topics as the Roman year, the
calendar, the names of seas, and the lives of famous prostitutes.) (MELLOR, 1999: 147)
19
39
trabalho deixou de ter pretensões literárias: ele soube se utilizar do esquema de escrita
biográfica dos peripatéticos ao trabalhar com uma série de narrativas anedóticas sobre
seus biografados, a partir das quais se poderia chegar a uma conclusão sobre o caráter do
mesmo. A diferença entre essa prática e aquela presente nos trabalhos dos peripatéticos é
que Suetônio não tinha – ou aparentava não ter – a intenção de apresentar suas próprias
conclusões sobre a conduta dos imperadores. Como um verdadeiro erudito, ele
apresentava os fatos e deixava que o leitor tirasse suas próprias conclusões.
O que não o impede, é claro, de oferecer ao leitor narrativas anedóticas que o
deixem mais propenso a julgar cada imperador de um modo particular. Quem quer que
tenha conhecido Calígula exclusivamente através de Suetônio não terá dúvidas de que se
tratava de um homem cruel, egoísta, covarde, pervertido e provavelmente insano. A
realidade, no entanto, pode ser diferente, e muito embora Suetônio possa ser desculpado
por seus relatos difamatórios por conta do período de tempo que separa sua escrita do
governo de Calígula, algumas afirmações que o autor faz não deveriam ser levadas em
consideração por alguém que se considera um erudito e tenta escrever de maneira
imparcial. Por exemplo, a respeito das práticas sexuais incestuosas de Calígula,
Winterling afirma que:
A afirmação de que o imperador cometeu incesto com suas três irmãs é uma
informação imprecisa que vem à tona pela primeira vez em Suetônio. Sua
falsidade é facilmente comprovada: os dois contemporâneos do imperador,
Sêneca e Fílon, que eram familiares aos círculos aristocráticos em Roma e bem
informados, acumulam injúrias contra o imperador e dificilmente falhariam em
mencionar tal acusação se ela estivesse em circulação naquele tempo. Mas
claramente eles não sabiam nada a respeito. (WINTERLING, 2011: 3)20
Assim, Suetônio assume uma postura particular em sua escrita que o coloca ao
mesmo tempo distante das produções biográficas vistas até então em Roma e em contraste
com aquilo que Tácito vinha escrevendo sobre os mesmos períodos históricos em que ele
“The claim that the emperor committed incest with his three sisters is misinformation that surfaces for
the first time in Suetonius. Its hollowness is easily proved: The emperor’s two contemporaries Seneca and
Philo, who were both familiar with aristocratic circles in Rome and well informed, heap invective on the
emperor and would hardly have failed to mention such a charge had it been in circulation then. But clearly
they know nothing about it.”
20
40
se concentrou. Para melhor ilustrar como isso se deu, observemos a separação feita por
Hadrill entre as Vitae de Suetônio e a historiografia.
Hadrill separa o De Vita Caesarum das obras historiográficas com base em três
critérios: estrutura, objeto de estudo e estilo. No que diz respeito à estrutura, ele afirma
primeiramente que a historiografia em Roma tinha uma estrutura cronológica e narrativa.
Cronológica, por influência dos Anais Pontificais, em que os sacerdotes registravam as
atividades diárias da cidade nas mais diversas esferas do governo e da religião. Sobre esse
costume de registro dos fatos se acrescentou a característica narrativa, derivada dos
grandes clássicos da literatura grega – as epopeias homéricas. Quanto às biografias, de
maneira geral, elas mantêm esses dois aspectos da estrutura historiográfica, com a
diferença de que sua cronologia não é derivada da mera passagem dos anos, mas sim
demarcada pelas fases da vida do biografado: sua família, local de nascimento, a narrativa
de sua morte, etc. Essa cronologia também é refinada pela vida social do biografado, e
grande ênfase é dada aos cargos políticos ocupados por ele.
Nas uitae de Suetônio, a diferença se faz ainda maior: ele busca renunciar à
narrativa. Obviamente seria impossível renunciar a ela por completo sem transformar seu
trabalho numa estranha versão dos Anais Pontificais, mas o processo de tessitura do texto
das uitae de Suetônio se dá, segundo Hadrill, por uma análise de um determinado fato
relevante, do qual são retirados todos os detalhes não essenciais (narrativos, em sua
maioria), e que depois é reconstituído a partir dos detalhes mais relevantes. É assim que,
na biografia de Júlio César, ao tratar das conquistas militares do imperador, ele não vai
fazer uma narrativa das batalhas pelas quais César teve de passar durante o período em
que esteve na Gália, mas vai simplesmente resumir todos os seus sucessos e revezes
durante as guerras gaulesas num único parágrafo. O objetivo de Suetônio é evitar fazer
uso de uma narrativa que se encontraria presente também numa obra historiográfica. Em
lugar de narrar as batalhas, portanto, ele se debruça sobre a personalidade de César
enquanto general e líder. As conquistas de César, além disso, são de conhecimento
comum, tendo restado inclusive a narrativa do próprio general que expõe esse assunto.
Seria desnecessário se demorar na narrativa de um material tão fartamente documentado.
No entanto, através desse processo de análise e eliminação dos detalhes ele
também acaba por eliminar alguns pontos do contexto que poderiam levar o leitor a uma
41
interpretação diferente. Por exemplo, a famosa passagem em que Calígula teria dito que
pretendia tornar cônsul seu cavalo favorito, Incitato, poderia ganhar uma interpretação
bem diferente daquela que Suetônio oferece de maneira pretensamente imparcial, caso
outros detalhes do contexto político de seu governo tivessem sido incluídos junto à
anedota. Por exemplo, o fato de Calígula estar assumindo um forte posicionamento de
oposição aos aristocratas de sua corte. Segundo Winterling:
Não há como saber se todos em Roma entenderam essa piada. Nem podemos
dizer se Suetônio a entendeu posteriormente ou – o que parece mais provável
– falhou em entendê-la de propósito, já que faz uso dela para apresentar o
imperador como insano. (...) Chegar ao consulado permanecia o objetivo mais
importante da carreira de um aristocrata. Equipar o cavalo do imperador com
uma propriedade suntuosa e destiná-lo ao consulado satirizava o objetivo
principal das vidas dos aristocratas e o deixava exposto ao ridículo. Calígula
colocou seu cavalo no mesmo nível dos membros de mais alto escalão da
sociedade – e por implicação igualou-os a um cavalo. (WINTERLING, 2011:
103)21
Fora de seu contexto, o fato apresentado ganha uma interpretação bastante diversa.
No entanto, não há como dizer que Suetônio faltou com a verdade ao narrar essa anedota.
Ele apenas omitiu detalhes importantes, situando a anedota do cavalo em meio a outras
tantas que procuravam pintar uma imagem de Calígula como um imperador
completamente louco: o episódio do cavalo fecha o capítulo LV, em que Suetônio fala de
como Calígula “Quorum uero studio teneretur, omnibus ad insaniam fauit.” (Cal, LV,
1)22. Logo, o leitor será induzido a acreditar que Calígula fez o que fez por ser louco, e
não como provocação a seus adversários políticos.
Quanto ao objeto de estudo, Hadrill reconhece que a historiografia clássica tem
como objeto a pólis, os conflitos internos e externos que lhe dizem respeito (no campo
“There is no way to know whether everyone in Rome got this joke. Nor can we tell whether Suetonius
understood it later or – as seems more likely – failed to understand it on purpose, since he makes use of it
to present the emperor as insane. (…) Achieving the consulship remained the most important goal of an
aristocrat’s career. To equip the emperor’s horse with a sumptuous household and to destine it for the
consulship satirized the main aim of aristocrat’s lives and laid it open to ridicule. Caligula placed his horse
on the same level as the highest-ranking members of society – and by implication equated them with a
horse.”
21
22
“Cuidava daqueles que tinha em grande estima até o ponto da loucura.”
42
militar) e a vida política de seus cidadãos. Já a biografia teria como objeto a vida de um
único homem, sua personalidade e suas conquistas.
Já as uitae de Suetônio fazem um distanciamento mais radical do objeto de estudo
da historiografia. Segundo Hadrill, Suetônio consegue atingir esse distanciamento de
maneira negativa e de maneira positiva: negativamente ao reduzir ao mínimo tudo o que
diz respeito à guerra e à política. Novamente, seria impossível abrir mão por completo
desses elementos, mas Suetônio tenta apresentar apenas aquilo que é mais essencial a
essas passagens e, como já se viu, eliminando sempre que possível a narrativa
historiográfica – mesmo quando se vê forçado a narrar uma ação militar específica, ele
não narra as batalhas em si, mas somente aquilo que é essencial, via de regra uma anedota,
para melhor traçar a personalidade do biografado; positivamente, ele procura se
concentrar naquilo que não é histórico – a vida privada do imperador é seu foco principal,
e mesmo quando abordar a vida pessoal é impossível sem falar também em política, ele
se mantém no campo das relações pessoais. Assim, as relações presentes na família do
imperador, que obviamente influenciam não só o governo presente, mas também definem
o que será feito do governo futuro, são tratadas como meras relações interpessoais. As
grandes maquinações políticas que tinham como objetivo destronar o imperador não
passam de desentendimentos entre familiares. Quanto ao trabalho do imperador em si,
por evitar mostrar os trabalhos mais “históricos” dos imperadores, como grandes
conquistas militares e políticas, ele prefere oferecer ao leitor uma visão do imperador em
seu dia-a-dia, o que é um ponto-de-vista muito interessante para os historiadores atuais,
mas que seria desprezado pelos historiadores clássicos como algo indigno da
historiografia.
É por isso que na vida de Calígula se encontram passagens bastante demoradas
que tratam da maneira como o imperador exerceu sua prodigalidade, oferecendo presentes
em dinheiro ao povo, grandes banquetes aos senadores, organizando diversos jogos, etc.
Suetônio chega até mesmo a falar das obras públicas que Calígula planejou, mas não
conseguiu realizar, como sua intenção de cortar o istmo da província da Acaia (Grécia),
que unia a Grécia continental à Península do Peloponeso, obra que facilitaria a passagem
de navios mercantes na região.
43
Por fim, quanto ao estilo, Hadrill aponta para a necessidade existente na
historiografia de adequar seu estilo de escrita à natureza de seu objeto de estudo. Uma
vez que se trata de assuntos muito elevados, os mais importantes fatos políticos e militares
de um determinado período, o estilo precisa ser elevado ao mesmo patamar. Tem-se,
portanto, uma escrita muito trabalhada, que muitas vezes abusa de recursos literários para
embelezar o texto.
As uitae de Suetônio definitivamente não fazem uso desses recursos. Seu estilo é
seco, sem adornos, típico de um erudito. Embora não se possa dizer que ele tenha escrito
sem pretensões literárias, há muito pouco de literário no seu estilo de escrita. Do uso de
anedotas, deriva em Suetônio uma clara separação por tópicos ao longo do texto (o que
Hadrill chama de rubricas), que mais se assemelha a um catálogo do que à narrativa das
ações de um personagem.
Há três práticas da escrita de Suetônio que tornam clara sua postura como autor
erudito, afastando-o do rebuscamento literário dos historiógrafos: primeiramente, o uso
de vocabulário técnico. É o que aparece, por exemplo, em muitas das vezes em que se faz
menção a um gladiador. Ao longo da vida de Calígula, Suetônio cita diversos tipos de
gladiadores, mas nem sempre se referindo a eles pelo vocábulo gladiator, e sim utilizando
o vocábulo que melhor os descreve de acordo com sua função. Assim, no capítulo XXXII
ele fala no Murmulio, que usava um elmo adornado com a figura de um peixe; no capítulo
XXXV aparecem menções ao Thraex, o gladiador trácio, conhecido por usar as armas
típicas daquele povo; ao Hoplomachus, um gladiador que, ao contrário do que era
costume, usava uma armadura completa; e ao Essedarius, que lutava sobre um carro.
Outra prática bastante comum no estilo de Suetônio é o uso de citações em grego.
Para além de palavras isoladas, ele reproduz muitas vezes a fala de um personagem em
momentos cruciais. A famosa fala de César, “Até tu, Brutus, meu filho?”, dirigida a seu
antigo aliado pouco antes de sua morte, teria sido proferida pelo moribundo em grego
("καὶ σύ, τέκνον”, no capítulo LXXXII). Calígula também parece ter uma tendência a
44
citar em grego textos clássicos, como quando faz uso do texto homérico para pôr fim a
uma discussão entre reis do oriente: “Εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς.”23.
Por fim, Suetônio também faz citações completas de documentos, fato que deriva
de sua posição particular na administração imperial durante os governos de Trajano e de
Adriano, e que lhe conferiu acesso a uma série de documentos que poucos privilegiados
poderiam consultar. Essa prática o torna uma fonte muito importante de documentação
histórica dos governos dos imperadores, em particular das correspondências de seus
biografados.
Tendo em vista o que foi apresentado até aqui, é possível observar que não há um
texto teórico oriundo da Antiguidade Clássica que reconheça a biografia como um gênero
literário. No entanto, não se deve considerar esse fato como uma afirmação de que a
biografia não é um gênero, já que os textos teóricos da Antiguidade, via de regra,
apresentavam classificações que não se destinavam a abarcar a totalidade das produções
literárias.
Ao observarmos as afirmações feitas por autores da literatura latina a respeito da
biografia e da historiografia, sua preocupação em se manter dentro de um esquema textual
específico que caracterizaria a biografia, fica claro que, se a biografia não foi reconhecida
formalmente como gênero literário, é ao menos uma categoria textual reconhecida pelos
escritores da época, que a opõem ao gênero historiográfico. Assumindo que esses
escritores não produziriam um texto sem antes refletir sobre o gênero a que ele pertence,
não seria absurdo considerar que a biografia foi, de fato, um gênero literário na
Antiguidade Clássica.
Por fim, mesmo que se possa questionar a última afirmação, fica óbvio que
Suetônio, ao escrever o De Vita Caesarum, estava consciente da necessidade de opor sua
obra aos textos historiográficos, e se dedicou a criar um contraste entre eles e suas
biografias de líderes romanos.
“Um só tenha o posto supremo; Um seja o rei.” (Cal. XXII). Calígula cita a Ilíada. A tradução é de
Carlos Alberto Nunes.
23
45
4 Texto e tradução
LIBER IIII
LIVRO IIII
C. CALIGVLA
C. CALÍGULA
I. 1Germanicus, C. Caesaris pater, Drusi et I – 1Germânico, pai de Calígula, filho de
minoris Antoniae filius, a Tiberio patruo Druso e de Antônia, a jovem, adotado pelo
adoptatus, quaesturam quinquennio ante tio paterno Tibério, assumiu o cargo de
quam per leges liceret et post eam questor cinco anos antes do que era
consulatum statim gessit, missusque ad permitido por lei e imediatamente depois
exercitum in Germaniam, excesso Augusti o consuladoI. Foi enviado ao exército da
nuntiato, legiones uniuersas imperatorem Germânia e, anunciada a morte de
Tiberium pertinacissime recusantis et sibi Augusto, conteve todas as legiões que se
summam rei p. deferentis incertum pietate voltavam
pertinazmente
contra
o
an constantia maiore compescuit atque imperador Tibério e ofereciam a ele
hoste mox deuicto triumphauit. 2Consul mesmo o poder supremo, não se sabe se
deinde iterum creatus ac prius quam por maior piedade ou firmeza de caráterII;
honorem iniret ad componendum Orientis pouco depois de derrotar o inimigo,
statum expulsus, cum Armeniae regem recebeu o triunfo. 2Foi feito cônsul depois,
deuicisset, Cappadociam in prouinciae pela segunda vez, e antes de receber o
formam redegisset, annum agens aetatis cargo foi enviado de Roma com a missão
quartum et tricensimum diuturno morbo de pacificar o Oriente. Depois de derrotar
Antiochiae
obiit
non
sine
ueneni completamente
o
rei
da
Armênia,
suspicione. 3Nam praeter liuores, qui toto submeteu a Capadócia como província e,
corpo erant, et spumas, quae per os contando trinta e quatro anos de idade,
fluebant, cremati quoque cor inter ossa morreu na Antioquia de uma doença de
incorruptum repertum est: cuius ea natura longa duração, não sem suspeita de
envenenamento. 3Pois, além das manchas,
que cobriam todo o corpo, e da espuma
I
O trecho inicial (os primeiros sete capítulos) da vida de Calígula funciona, na verdade, como uma pequena
biografia de seu pai, Germânico (15 a.C. – 19 d.C.).
II
Os termos usados nessa passagem para descrever as virtudes de Germânico são pietas e constantia. Podese traçar aqui um paralelo entre a piedade de Germânico em relação a seu pai adotivo Tibério e o futuro
comportamento de Calígula em relação à mesma figura (Calígula admite ter pensado em matar Tibério).
46
existimatur, ut tinctum, ueneno igne que lhe saía da boca, também foi
confici nequeat.
encontrado intacto entre os seus ossos o
coração do cremado: órgão que se
considera de natureza tal que, se repleto de
veneno, não pode ser destruído pelo fogo.
II. Obiit autem, ut opinio fuit, fraude II – Morreu, porém, como se acreditou,
Tiberi, ministerio et opera CN. Pisonis, por crime de Tibério, por trabalho e obra
qui sub idem tempus Syriae praepositus, de Cneu Pisão, que naquele mesmo tempo
nec dissimulans offendendum sibi aut comandava a Síria, e não escondendo que
patrem aut filium, quasi plane ita necesse ele tinha quase a necessidade de ofender
esset,
etiam
grauissimis
aegrum
Germanicum ou o pai ou o filho, indispôs o doente
uerborum
ac
rerum Germânico com gravíssimas ofensas de
acerbitatibus nullo adhibito modo adfecit; palavras e de gestos, sem qualquer
propter quae, ut Romam rediit, paene mesuraIII; razão pela qual, retornando a
discerptus a populo, a senatu capitis Roma, tendo sido quase despedaçado pelo
damnatus est.
povo, foi condenado à morte pelo Senado.
III. 1Omnes Germanico corporis animique III – 1Consta que Germânico tinha todas as
uirtutes, et quantas nemini cuiquam, virtudes do corpo e do espírito, e ninguém
contigisse
satis
fortitudinem
formam
et as tinha em tão grande nívelIV: aparência e
ingenium
in força notáveis, talento extraordinário em
constat:
egregiam,
utroque eloquentiae doctrinaeque genere ambos
os
tipos
de
eloquência
e
praecellens, beniuolentiam singularem aprendizado, singular benevolência, e um
conciliandaeque hominum gratoae ac admirável e poderoso esforço de granjear
promerendi amoris mirum et efficax as boas graças dos homens e obter sua
studium.
III
2
Formae
minus
congruebat afeiçãoV.
2
As pernas magras não se
Tácito acrescenta a isso ainda o uso de imprecações místicas contra Germânico (Tac. Ann. II.69.5).
Como se pode notar, essa pequena biografia possui um acentuado caráter encomiástico.
V
Essas são as principais virtudes de germânico: forma (sua beleza física), fortitudo (sua robustez, uma
força que pode ser entendida no sentido físico e no moral), eloquentia (a eloquência, facilidade de
IV
47
gracilitas crurum, sed ea quoque paulatim harmonizavam com a aparência, mas ele
repleta assidua equi uectatione post conseguiu
cibum.
3
Hostem
4
percussit.
Orauit
comminus
causas
gradualmente
saepe montando a cavalo com frequência após as
etiam refeições. 3Ele frequentemente matava o
triumphalis; atque inter cetera studiorum inimigo
monimenta reliquit et comoedias Graecas.
5
repará-las
4
em
combate
corpo-a-corpo.
Defendia causas mesmo depois de ter
Domi forisque ciuilis, libera ac foederata recebido o triunfo. E, entre outras
oppida sine lictoribus adibat. Sicubi lembranças de seus estudos, deixou
clarorum uirorum sepulcra cognoscerent, também
comédias
gregas.
5
Modesto
inferias manibus dabat. 6Caesorum clade dentro e fora de casa, visitava as cidades
Variana ueteres ac dispersas reliquas uno livres e as aliadas sem ser precedido por
tumulo humaturus, colligere sua manu et litores. Se, em algum lugar, reconhecesse
comportare
7
primus
adgressus
est. os túmulos de homens ilustres, fazia
Obtrectatoribus etiam, qualescumque et sacrifícios aos Manes. 6Quando estava
quantacumque de causa nanctus esset, para enterrar em um único túmulo as
lenis adeo et innoxius, ut Pisoni decreta relíquias antigas e dispersas dos que
sua rescindenti, clientelas diuexanti non caíram durante a destruição de Varo, foi o
prius suscensere in animum induxerit, primeiro a tentar recolhê-los e reuni-los
quam ueneficiis quoque et deuotionibus com suas próprias mãos. 7Até mesmo com
impugnari se comperisset; ac ne tunc seus inimigos, quem quer que fossem e
quidem
ultra
progressus,
quam
ut por grande que fosse o motivo de serem
amicitiam ei more maiorum renuntiaret seus desafetos, a tal ponto era brando e
mandaretque domesticis ultionem, si quid inofensivo, que, enquanto Pisão anulava
sibi accideret.
seus decretos e maltratava sua clientela,
não conseguiu se convencer a se indispor
com ele antes que se descobrisse atacado
com venenos e maldições. E mesmo então
não foi além de renunciar a sua amizade
de
acordo
com
os
costumes
dos
antepassados e de recomendar a vingança
expressar-se) e o que se costuma entender por civilitas (sua sociabilidade, cortesia e modéstia). Tudo isso
faz contraste com os defeitos de Calígula, com a possível exceção da eloquência.
48
aos de sua casa, na eventualidade de algo
lhe acontecer.
IV. Quarum uirtutum fructum uberrimum IV – Dessas virtudes ele colheu o fruto
tulit, sic probatus et dilectus a suis, ut mais fértil, pois era tão amado e estimado
Augustus (omito enim necessitudines pelos seus, que Augusto – omito, pois, os
reliquas)
diu
successorem
cunctatus
destinaret,
and
sibi demais parentes -, tendo hesitado por
adoptandum longo tempo em fazê-lo seu sucessor, fez
Tiberio dederit; sic uulgo fauorabilis, ut com que fosse adotado por TibérioVI. Era
plurimi tradant, quotiens aliquo adueniret tão querido pelo povo que, como muitos
uel
sicunde
discederet,
occurentium
prae
turba registram, todas as vezes que chegava a
prosequentiumue algum lugar ou saía de lá, frequentemente
nonnumquam eum discrimen uitae adisse, corria perigo de vida por conta da
e Germania uero post
compressam multidão dos que iam ao encontro dele ou
seditionem
praetorianas dos que o seguiam. Enquanto voltava da
cohortes
reuertenti
uniuersas
prodisse
obuiam, Germânia depois de ter contido a revolta,
quamuis pronuntiatum esset, ut duae todas
as
coortes
pretorianas
foram
tantum modo exirent, populi autem encontrá-lo no caminho, ainda que se
Romani sexum, aetatem, ordinem omnem tivesse
decidido
que
apenas
duas
usque ad uicesimum lapidem effudisse se. poderiam ir, e os cidadãos romanos de
todas idades, classes e sexos foram até a
vigésima pedra miliar para recebê-lo.
V. 1Tamen longe maiora et firmiora de eo V – 1E, no entanto, demonstraram-se ainda
iudicia in morte ac post mortem extiterunt. maiores e mais seguros testemunhos de
2
Quo defunctus est die, lapidata sunt estima por ele em sua morte e depois de
templa, subuersae deum arae, Lares a sua morte.VII 2No dia em que morreu, os
VI
Os historiadores afirmam que Augusto não nutria grande estima por Tibério (GRIMAL, 2011, p.132).
Novamente, cria-se um contraste entre a atitude do povo quando da morte de Germânico e sua aparente
indiferença quando da morte de Calígula (segundo Suetônio, o povo achou que Calígula estava simulando
a própria morte).
VII
49
quibusdam familiares in publicum abiecti, templos foram apedrejados, os altares dos
partus coniugum expositi.
barbaros
ferunt,
quibus
3
Quin et deuses foram derrubados, alguns lançaram
intestinum para fora de suas casas os deuses lares, e
quibusque aduersus nos bellum esset, expuseram
os
recém-nascidos.VIII
3
E
uelut in domestico comunique maerore dizem que até mesmo os povos bárbaros,
consensisse ad indutias; regulos quosdam estando em guerra fosse conosco, fosse
barbam possuísse et uxorum capita rasisse entre si, como se estivessem sofrendo uma
ad indicium maximi luctus; regum etiam tristeza doméstica e comum, fizeram uma
regem et exercitatione uenandi et conuictu trégua. Alguns jovens reis tiraram a barba
megistanum
abstinuisse,
quod
Parthos iustiti instar est.
apud e fizeram raspar as cabeças de suas
esposas em sinal de máximo luto. E até
mesmo o Rei dos ReisIX se absteve das
caças e dos banquetes, o que entre os
Partos é o equivalente ao luto público.
VI.
1
Romae quidem, cum ad primam VI – 1Em Roma, pois, quando a cidade
famam ualitudinis attonita et maesta triste e consternada pelos primeiros boatos
ciuitas sequentis nuntios opperiretur, et de sua saúde aguardava as notícias
repente iam uesperi incertis auctoribus seguintes, e de repente, à tarde, se
conualuisse tandem percrebruisset, passim espalhou o boato, de fonte duvidosa, de
cum luminibus et uictimis in Capitolium que ele havia enfim se recuperado, o povo,
concursum est ac paene reuolsae templi vindo de todas as direções, correu ao
fores, ne quid gestientis uota reddere Capitólio com vítimas e tochas, e quase
moraretur,
Tiberius
expergefactus
gratulantium
undique concinentium:
e
uocibus
somno destruíram as portas do templo para que
atque nada
impedisse
os
impacientes
de
pagarem suas promessas. Tibério foi
despertado de seu sono pelas vozes dos
VIII
Essa curiosa forma de protesto não era de todo incomum. Segundo VEYNE, 2009b: 23, quando da
morte de Agripina por Nero, um cidadão teria abandonado seu filho, pondo sobre ele um cartaz que dizia
“não te crio com medo de que mates tua mãe”.
IX
Título dado ao rei dos Partos, povo que habitava regiões do Oriente Médio que se estendiam pelos
territórios dos atuais Irã e Síria.
50
Salua Roma, salua patria, saluus est que agradeciam e que cantavam por toda
Germanicus.
2
parte:
Et ut demum fato functum palam factum ‘Está salva Roma, está salva a pátria, pois
est, non solaciis ullis, non edictis inhiberi Germânico está salvo!’
luctus publicus potuit durauitque etiam
3
per festos Decembris mensis dies. Auxit
gloriam
desideriumque
defuncti
et
atrocitas insequentium temporum, cunctis
nec temere opinantibus reuerentia eius ac
metu repressam Tiberi saeuitiam, quae
mox eruperit.
2
Mas, quando enfim se soube que ele
havia morrido, nenhum consolo, nenhum
édito pôde conter o luto público, que se
estendeu até mesmo pelos dias festivos de
dezembroX.
3
A atrocidade dos tempos
seguintes aumentou a fama e a saudade do
falecido, pois todos acreditavam que a
crueldade de Tibério, que logo se mostrou,
estava sendo contida por medo e respeito
à sua figura.
VII. Habuit in matrimonio Agrippinam, VII – Casou-se com Agripina, filha de M.
M. Agrippae it Iuliae filiam; ex ea nouem Agripa e Júlia, que lhe deu nove filhos;
liberos tulit: quorum duo infants adhuc dos quais dois morreram ainda crianças, e
rapti,
unus
festiuitate,
iam
puerascens
insigni um, conhecido por sua alegria, quando
cuius
effigiem
habitu estava se tornando rapaz, e cuja estátua
Cupidinis in aede Capitolinae Veneris com trajes de cupido foi posta por Lívia no
Liuia dedicauit, Augustus in cubiculo suo templo de Vênus Capitolina, e Augusto
positam,
quotiensque
introieret, tinha outra em seu quarto, e sempre a
exosculabatur; ceteri supérstites patri beijava ao entrar. Os demais viveram mais
fuerunt, tres sexus feminini, Agrippina que o pai, AgripinaXI, Drusila e Livila,
Drusilla Liuilla, continuo Trienio natae; nascidas sucessivamente em três anos, e o
totidem mares, Nero et Drusus et C. mesmo número de meninos, Nero, Druso
X
XI
As Saturnalia, festas em honra de Saturno, que se realizavam entre 17 e 23 de dezembro.
A futura mãe do imperador Nero.
51
Caesar. Neronem et Drusum senatus e C. César. O Senado julgou inimigos a
Nero e Druso, sob acusação de TibérioXII.
Tiberio criminante hostes iudicauit.
VIII. 1C. Caesar natus est pridie Kal. Sept. VIIIXIII – 1Caio César nasceu na véspera
patre suo et C. Fonteio Capitone coss. 2Vbi das calendas de setembroXIV, sob o
natus sit, incertum diuersitas tradentium consulado de seu pai e de C. Fonteio
facit. 3CN. Lentulus Gaetulicus Tiburi Capito. 2O lugar onde nasceu é incerto,
genitum scribit, Plinius Secundus in devido ao desacordo entre os que o
Treueris
uico
supra narram. 3Cn. Lêntulo GetúlicoXV escreve
Ambitaruio
Confluentes; addit etiam pro argumento que ele nasceu em TiburXVI; Plínio, o
aras
ibi
ostendi
Agrippinae
inscriptas
puerperium>>.
<<
4
ob Jovem, diz que ele nasceu em TréverisXVII,
Versiculi no vilarejo de Ambitárvio, ao norte de
imperante mox eo diuulgati apud hibernas Coblença; e acrescenta como prova um
altar lá erigido com a inscrição “ao parto
legiones procreatum indicant:
In castris natus, patriis nutritus in armis,
de Agripina”.
4
Os versos divulgados
pouco depois de ele se tornar Imperador
Iam designate principis omen erat.
indicam que ele teria nascido nos
5
Ego in actis Anti editum inuenio.
acampamentos de inverno das legiões:
6
Gaetulicum
refellit
Plinius
quasi
mentitum per adulationem, ut ad laudes
iuuenis gloriosique principis aliquid etiam
ex urbe Herculi sacra sumeret, abusumque
audentius mendacio, quod ante annum
‘Nascido nos acampamentos, nutrido
pelas armas do pai,
Já era o presságio de ser destinado ao
Império.’
fere natus Germanico filius Tiburi fuerat,
appelatus et ipse C. Caesar, de cuius
amabili pueritia immaturoque obitu supra
XII
O próprio Suetônio narra o fato com maiores detalhes na vida de Tibério (Suet. Tib. LIV).
Tem início a narrativa do nascimento e dos primeiros anos de vida de Calígula. É o começo de sua
biografia propriamente dita.
XIV
Em 31 de agosto do ano 12 d.C.
XV
Contemporâneo de Calígula, que foi executado por ordem do mesmo em 39 d.C.
XVI
Atual Tívoli, comuna italiana da região do Lácio.
XVII
Atual Trier, na Alemanha
XIII
52
diximus, 7Plinium arguit ratio temporum.
Nam
qui
res
5
Eu mesmo encontrei nos Atos oficiais
memoriae que ele nasceu em ÂncioXVIII. 6Plínio
Augusti
mandarunt, Germanicum exacto consulatu refuta Getúlico, como se ele houvesse
in Galliam missum consentiunt iam nato mentido com o intuito de bajular, para
Gaio. 8Nec Plini opinionem inscriptio arae acrescentar ao elogio de um príncipe
quicquam adiuuerit, cum Agrippina bis in jovem e sedento de glória o fato de ter
ea regione filias enixa sit, et qualiscumque nascido
partus
sine
ullo
sexus
numa cidade
consagrada a
discrimine Hércules, e mais audacioso foi no uso da
puerperium uocetur, quod antiqui etiam mentira porque quase um ano antes um
puellas pueras, sicut et pueros puellos filho de Germânico havia nascido em
dictitarent. 9Extat et Augusti epistula, ante Tibur, também chamado Caio César de
paucos
quam
obiret
menses
ad cuja doce infância e morte prematura
Agrippinam neptem ita scripta de Gaio falamos anteriormente.
7
Contra Plínio
hoc (neque enim quisquam iam alius pesa o argumento do tempo. Pois aqueles
infans nomine pari tunc supererat): que ficaram encarregados das memórias
<<Puerum Gaium XV Kal. Iun., si dii de Augusto consentem que Germânico foi
uolent, ut ducerent Talarius et Asillius, enviado à Gália depois de seu consulado,
heri cum iis constitui. Mitto praeterea cum quando Caio já havia nascido.
8
E a
eo ex seruis meis medicum, quem scripsi inscrição do altar em nada ajuda o
Germanico si uellet ut retineret. Valebis, argumento de Plínio, pois Agripina teve
mea Agrippina, et dabis operam ut ualens duas filhas naquela região, e o termo
peruenias
10
ad
Germanicum
tuum.>> “puerperium” designava qualquer tipo de
Abunde parere arbitror non potuisse ibi parto, sem distinção de sexo, já que os
nasci Gaium, quo prope bimulus demum antigos chamavam também às meninas de
perductus ab urbe sit.
11
Versiculorum “pueras”, assim como aos meninos de
quoque fidem eadem haec eleuant et eo “puellos”.
9
Há também uma carta de
facilius, quod ii sine auctore sunt. Augusto, escrita à sua neta Agripina
12
Sequenda est igitur, quae sola [autor] poucos meses antes da morte daquele,
restat et publici instrumenti auctoritas, sobre este Caio (pois naquele tempo não
praesertim cum Gaius Antium omnibus lhe restava nenhuma outra criança com
XVIII
Essa interessante passagem demonstra o espírito erudito de Suetônio. Ao longo deste capítulo, o maior
da biografia, ele irá apresentar uma série de provas documentais que contestam as afirmações de Tácito e
de Plínio.
53
semper locis atque secessibus praelatum este nome): “Combinei ontem com
non aliter quam natale solum dilexerit Talário e Asílio que eles levarão o menino
tradaturque etiam sedem ac domicilium Caio, se os deuses permitirem, no décimo
imperii
taedio
destinasse.
urbis
transfere
eo quinto dia antes das calendas de junho.
Envio com ele, além disso, um de meus
médicos, sobre o qual escrevi a Germânico
que pode ficar com ele, se quiser. Fica
bem, minha Agripina, e esforça-te por
chegar saudável ao teu Germânico”.
10
Julgo ser bastante evidente que Caio não
poderia ter nascido lá, já que somente
quando tinha quase dois anos, foi levado
para lá de Roma.
argumentos
retiram
11
Estes mesmos
também
a
legitimidade dos versos com a mesma
facilidade, visto que os mesmos são
anônimos.
12
Deve-se seguir, portanto, o
único testemunho que resta e a autoridade
do arquivo público, sobretudo porque
Caio sempre preferiu Âncio a todos os
lugares e refúgios, da mesma maneira
como se prefere o solo natal e diz-se que,
cansado de Roma, quis transferir para lá a
sede e a morada do Império.
54
IX. 1Caligulae cognomen castrense ioco IX. 1O sobrenome “Calígula” se deve a
traxit, quia manipulario habitu inter uma brincadeira dos soldados, pois ele foi
milites educabatur. 2Apud quos quantum criado entre os militares vestindo um
praeterea
per
hanc
nutrimentorum uniforme de soldado rasoXIX. 2Essa criação
consuetudinem amore et gratia ualueri, valeu-lhe em grande medida, entre outras
máxime cognitum est, cum post excessum coisas, a dedicação e o amor junto às
Augusti tumultuandis et in furorem usque tropas. Isso se viu sobretudo quando,
praecipites solus haud dubie ex conspectu depois da morte de Augusto, por si só –
suo flexit. 3Non enim prius destiterunt, inegavelmente – abrandou os que haviam
quam
ablegari
eum
ob
seditionis sido levados à revolta somente com sua
periculum et in proximam ciuitatem aparição. 3Não deixaram a revolta, pois,
demandari
animadiuertissent;
tunc antes de perceberem que ele seria
demum ad paenitentiam uersi reprenso ac afastado, por medo da sedição, e mandado
retento uehiculo inuidiam quae sibi fieret a uma cidade próxima; então, tomados de
deprecati sunt.
remorso, tendo parado e detido seu carro,
imploraram que fossem poupados de tal
ofensa.
X.
1
Comitatus est patrem et Syriaca X.
1
Acompanhou também o pai na
expeditione. 2Vnde reuersus primum in expedição à Síria. Tendo voltado de lá,
matris, deinde ea relegata in Liuiae permaneceu primeiro junto à mãe e,
Augustae
proauiae
suae
contubernio depois que esta foi exilada, junto à bisavó,
mansit; quam defunctam praetextatus Lívia Augusta. 2Da qual, depois de morta,
etiam tunc pro rostris laudauit. 3Transitque fez o elogio junto aos rostros,XX ainda
ad Antoniam auiam et undeuicensimo vestindo a toga pretextaXXI.
3
Depois,
aetatis anno accitus Capreas a Tiberio uno passou a morar com a avó Antônia e,
atque
eodem
die
togam
sumpsit contando dezenove anos de idade, foi
barbamque posuit, sine ullo honore qualis trazido a CapriXXII por Tibério e no mesmo
XIX
Caligula é o diminutivo de caliga, espécie de bota utilizada pelos soldados romanos.
Tribuna utilizada pelos oradores romanos, ornada com os rostros dos navios dos povos conquistados.
XXI
Toga com uma faixa púrpura usada pelos patrícios até os 17 anos de idade, quando era substituída pela
toga viril.
XXII
Ilha do Golfo de Nápoles, no mar Tirreno.
XX
55
contigerat tirocinio fratrum eius.
4
Hic dia vestiu a toga e raspou a barba, sem
omnibus insidiis temptatus elicientium qualquer das honras que acompanharam o
cogentiumque se ad querelas nullam noviciado de seus irmãosXXIII. 4Lá, mesmo
umquam
occasionem
dedit,
perinde tentado pelas armadilhas dos que o
obliterato suorum casu ac si nihil cuiquam aliciavam, não reclamou em nenhuma
accidisset, quae uero ipse pateretur ocasião, completamente obliteradas as
incredibili dissimulatione transmittens lembranças das desgraças dos seus, como
tantique in auum et qui iuxta erant se nada tivesse acontecido a ninguém.
obsequii, ut non immerito sit dictum Aquilo que em verdade sofria, o escondia
<<nec seruum meliorem ullum nec com incrível dissimulação, e tamanha era
deteriorem dominum fuisse.>>
a submissão ao avô e aos que o
acompanhavam, que não sem mérito se
disse “não haver melhor escravo nem pior
senhor”.
XI.
1
Naturam
tamen
saeuam
atque XI. 1Nem então conseguia esconder a
probrosam ne tunc quidem inhibere natureza cruel e ultrajanteXXIV. Pelo
poterat,
poenisque
quin
ad
et
animaduersionibus contrário, assistia com grande interesse
supplicium
datorum aos castigos e penas dos condenados, à
cupidissime interesset et ganeas atque noite, frequentava as orgias e aos
adulteria capillamento celatus et ueste adultérios, disfarçado com uma peruca e
longa noctibus obiret ac scaenicas saltandi uma veste longa, e dedicava-se com
canendique artes studiosissime appeteret; grande esforço às artes do teatro, da dança
facile id sane Tiberio patiente, si per has e do canto. Tibério tolerava essas coisas
mansuefieri posset ferum eius ingenium. com facilidade, na esperança de que,
2
Quod sagacissimus senex ita prorsus através delas, pudesse abrandar seu gênio
perspexerat, ut aliquotiens praedicaret feroz. 2O sagaz ancião tão profundamente
XXIII
Honras que levaram Tibério a acusá-los e o Senado a julgá-los como inimigos públicos, resultando em
suas mortes.
XXIV
Nessa passagem é possível notar claramente a postura de Suetônio com relação à questão da fixidez
do caráter. Seguindo a mesma crença dos biógrafos peripatéticos, ele demostra que Calígula foi cruel desde
sempre, muito embora seu grande talento para a dissimulação o tenha permitido assumir a aparência de um
governante justo e generoso no início de seu governo.
56
exitio suo omniumque Gaium uiuere et se o compreendera, que disse algumas vezes
natricem
[serpentis
id
P.R., que “Caio vivia para sua ruína e de todos”
genus]
Phaethontem orbi terrarum educare.
e que ele criava “uma hidra para o povo
romano e um Faetonte para o mundoXXV”.
XII.
1
Non
ita
multo
post
Iuniam XII.1Assim, não muito tempo depois
Claudillam M. Silani nobilissimi uiri F. desposou Júnia Claudila, filha de M.
duxit uxorem. 2Deinde augur in locum Silano,
homem
nobilíssimo.
2
Então,
fratris sui Drusi destinatus, prius quam designado como áugure em lugar de seu
inauguraretur ad pontificatum traductus irmão Druso, antes de ocupar o cargo, foi
est insigni testimonio pietatis atque elevado por Tibério ao pontificado –
indolis, cum deserta desolataque reliquis testemunho insigne de seu caráter e
subsidiis aula, Seianoque tunc suspecto piedade – que, como visse a corte deserta
mox et opresso, ad spem successionis e desprovida de seus apoios, e suspeitasse
paulatim admoueretur. 3Quam quo magis de SejanoXXVI, que em breve seria
confirmaret, amiss Iunia ex partu, Enniam esmagado, aos poucos o guiava, na
Naeuiam, Macronis uxorem, qui tum esperança de que o sucedesse. 3Calígula,
praetorianis
cohortibus
praeerat, para garantir isso, quando perdeu Júnia,
sollicitauit ad stuprum polliticus et morta no parto, seduziuXXVII Ênia Névia,
matrimonium suum, si potitus imperio esposa
de
fuisset; deque ea re et iure iurando et comandava
MacrãoXXVIII,
a
guarda
que
então
pretoriana
e
chirographo cauit. 4Per hanc insinuatus prometeu casar-se com ela, se alcançasse
Macroni ueneno Tiberium adgressus est, o Império, o que proveu com juramento e
ut quidam opinantur, spirantique adhuc com um documento escrito de seu próprio
XXV
A Hidra de Lerna era uma serpente aquática muito perigosa que tinha a capacidade de se regenerar:
quando sua cabeça era cortada, duas outras cresciam. Já Faetonte, o filho de Apolo, convenceu o pai a lhe
deixar dirigir o carro que levava o sol através dos céus, mas perdeu o controle e teria incendiado a terra se
Zeus não o tivesse matado com um raio. É interessante que Calígula seja comparado a dois desastres ligados
a elementos opostos, o fogo e a água.
XXVI
Líder da guarda pretoriana e antigo aliado de Tibério, que permaneceu em Roma depois que o
imperador se mudou para Capri e viria a ser visto como um inimigo e executado, conforme Suetônio relata
aqui.
XXVII
No original, “sollicitauit ad stuprum”. É preciso lembrar que a palavra “stuprum” tinha um sentido
bastante lato, podendo ser usada para designar qualquer relação sexual ilícita, mesmo quando houvesse o
consentimento das partes envolvidas.
XXVIII
Sucessor de Sejano na guarda pretoriana.
57
detrahi anulum et, quoniam suspicionem punho.
4
Através dela se insinuou a
retinentis dabat, puluinum iussit inici Macrão, envenenou Tibério, segundo
atque etiam fauces manu sua oppressit, pensam
alguns,
retirou-lhe
o
anel
liberto, qui ob atrocitatem facinoris enquanto este ainda respirava e, como
exclamauerat, confestim in crucem acto. suspeitava de que Tibério o retinha,
5
Nec abhorret a ueritate, cum sint quidam mandou que lhe fosse jogada uma
autores ipsum postea etsi non de perfecto, almofada e com sua própria mão o
at certe de cogitato quondam parricidio sufocou. Um liberto que havia protestado
professum; gloriatum enim assidue in contra
commemoranda
sua
pietate,
a
atrocidade
do
crime,
foi
ad imediatamente mandado à cruz. 5E isto
ulciscendam necem Tiberii dormientis et não está longe da verdade, uma vez que há
misericordia correptum abiecto ferro autores que afirmam que ele comentou, se
recessisse; nec illum, quanquam sensisset, não ter cometido, ao menos ter pensado
aut inquirere quicquam aut exequi ausum. em cometer tal parricídio; vangloriava-se
frequentemente de que sua piedade
deveria ser lembrada, que tinha entrado no
quarto de Tibério, com um punhal,
enquanto este dormia, para vingar a morte
da mãe e dos irmãos, e que, tomado de
misericórdia, jogou a arma fora e saiu de
lá; e que nem Tibério, mesmo notando sua
presença, não ousou acusá-lo nem o
castigar.XXIX
XIII. 1Sic imperium adeptus, P.R., uel XIII. 1Tendo assim chegado ao poder,
dicam hominum genus, uoti compotem alcançou o desejo do povo romano, ou
fecit, exoptatissimus princeps maximae antes de toda a humanidade, sendo ele o
parti prouincialium ac militum, quod príncipe desejado não só pela maior parte
XXIX
Perceba-se o contraste entre a piedade de Calígula e a de Germânico. Mesmo a narrativa do próprio
Calígula é dúbia: vingar os parentes mortos seria um ato de piedade, mas para isso era preciso matar Tibério.
O dilema lembra o de Orestes. Seja como for, segundo Suetônio, Calígula só usava esse fato para contar
vantagem.
58
infantem plerique cognouerant, sed et dos habitantes das províncias e dos
uniuersae plebi urbanae ob memoriam militares, dos quais muitos o tinham
Germanici patris miserationemque prope conhecido ainda criança, mas também de
afflictae domus. 2Itaque ut a Miseno mouit toda a plebe de Roma, por conta da
quamuis lugentis habitu et funus Tiberi memória de seu pai, Germânico, e das
prosequens, tamen inter altaria et uictimas desgraças
ardentisque
taedas
de
sua
casa,
quase
et despedaçadaXXX. 2Por isso, quando partiu
densissimo
laetissimo obuiorum agmine incessit, de Miseno, embora estivesse vestido de
super
fausta
<<pullum>>
nomina
et
<<sidus>>
<<pupum>>
et luto e seguindo o funeral de Tibério, ainda
et assim, entre altares, vítimas e tochas
<<alumnum>> appelantium.
ardentes, atravessou uma multidão densa e
felicíssima dos que vinham ao seu
encontro, e que o chamavam com nomes
auspiciosos, como ‘astro’, ‘menino’,
‘rapazinho’ e ‘pupilo’.
XIV.
1
Ingressoque
urbem,
statim XIV. 1Tendo chegado a Roma, o Senado,
consenso senatus et irrumpentis in curiam em acordo com a turba que irrompia pela
turbae,
inrita
testamento
Tiberi
alterum
uoluntate,
nepotem
qui cúria, e malgrado a vontade de Tibério –
suum que em seu testamento deixara como
praetextatum adhuc coheredem ei dederat, coerdeiro outro neto seu, já vestido da
ius arbitriumque omnium rerum illi pretextaXXXI – deu a ele direito e governo
permissum est tanta publica laetitia, ut de todas as coisas. Tamanha foi a alegria
tribos proximis mensibus ac ne totis do povo, que nos três meses seguintes, e
quidem supra centum sexaginta milia um pouco mais, segundo consta, foram
uictimarum caesa tradantur. 2Cum deinde sacrificadas mais de cento e sessenta mil
paucos post dies in proximas Campaniae vítimas. 2Como, então, depois de poucos
insulas traiecisset, uota pro redita suscepta dias, ele tivesse ido para as ilhas próximas
XXX
Fica claro que o apreço do povo por Calígula se deve antes à sua família, seja pelo prestígio de
Germânico, seja pela tragédia famíliar, do que aos seus próprios méritos.
XXXI
Tiberius Gemellus (o “gemeozinho”) , filho de Druso, primo de Calígula que seria adotado por ele e
depois morto, sob acusações de planejar uma traição.
59
sunt, ne minimam quidem ocasionem à Campânia, fizeram-se votos pelo seu
quoquam
omittente
in
testificanda retorno, sem que ninguém se omitisse,
sollicitudine et cura de incolumitate eius. nem pelo mais breve momento, de fazer
3
Vt uero in aduersam ualitudinem incidit, testemunhar sua solicitude e cuidado na
pernoctantibus cunctis circa Palarium, non conservação de Calígula. 3E, na verdade,
defuerunt qui depugnaturos se armis pro quando ele adoeceu, todos passaram a
salute aegri quique capirta sua titulo noite ao redor do Palatino, e não faltaram
proposito
uouerent.
4
Accessit
ad os que prometeram pegar em armas ou que
immensum ciuium amorem notabilis ofereceram suas cabeças pela saúde do
etiam
externorum
fauor.
5
Namque doenteXXXII. 4Acresce ao imenso amor dos
Artabanus Parthorum rex, odium semper cidadãos também o notável favor dos
contemptumque Tiberi prae se ferens, estrangeiros.
5
Pois Artabano, rei dos
amicitiam huius ultro petiit uenitque ad Partos, que sempre declarou seu ódio e
colloquium
legati
consulares
et desprezo por Tibério, solicitou a amizade
transgressus Euphraten aquilas et signa de Calígula, uma entrevista com o legado
Romana Caesarumque imagines adorauit.
consular e, tendo atravessado o Eufrates,
prestou culto às águias e estátuas romanas
e às imagens dos Césares.
XV. 1Incendebat et ipse studia hominum XV. 1Ele próprio inflamava a devoção dos
omni genere popularitatis. Tiberio cum homens com todo tipo de medidas
plurimis lacrimis pro contione laudato popularesXXXIII. Tendo feito as últimas
funeratoque
amplissime
confestim homenagens a Tibério e o elogiado
Pandateriam et Pontias ad transferendos grandemente com muitíssimas lágrimas
matris
fratrisque
cineres
festinauit, diante do povo reunido, logo em seguida,
tempestate turbida, quo magis pietas para ressaltar sua piedade, apressou-se a ir
emineret, adiitque uenerabundus ac per a Pandatária e a PônciaXXXIV para trazer,
semet in urnas condidit;
XXXII
2
nec minore em meio a uma tempestade, as cinzas da
Um exagero retórico que viria a se mostrar arriscado: Calígula aparentemente fazia honrar a palavra
daqueles que prometiam morrer em troca de sua saúde.
XXXIII
Neste ponto se inicia o relato dos primeiros atos de Calígula como imperador. A partir daqui, nota-se
que ele também era capaz de se fazer querido pelo povo sem depender em demasia da memória de seu pai.
XXXIV
Como afirma Lindsay (2002, p. 79) estas ilhas eram o destino costumeiro dos exilados.
60
scaena Ostiam praefixo in biremis puppe mãe e do irmão, chegando até elas
uexillo et inde Romam Tiberi subuecto per respeitosamente e depositando-as em
splendidissimum
equestris urnas ele mesmo. 2E não sem menor
quemque
ordinis médio ac frequenti die duobus pompa as transportou para Óstia, numa
ferculis Mausoleo intulit inferiasque is birreme com um estandarte à popa e de lá
annua religione publice instituit, et eo para Roma, através do Tibre, e as fez levar
amplius matri circenses carpentumque ao MausoléuXXXV, em duas liteiras, em
3
quo in pompa traduceretur.
At in pleno dia e diante de muitos, determinou
memoriam patris Septembrem mensem que fossem feitos sacrifícios públicos a
Germanicum
appelauit.
4
Post
haec eles todos os anos e além disso jogos em
Antoniae auiae, quidquid umquam Liuia homenagem à mãe, aos quais sua imagem
Augusta honorum cepisset, uno senatus seria levada num carro, com toda a pompa.
consulto congessit; patruum Claudium,
3
E em memória do pai, deu ao mês de
equitem R. ad id tempus, collegam sibi in Setembro o nome de Germânico. 4Depois
consulatu assumpsit; fratrem Tiberium die disso, concedeu a sua avó Antônia, através
uirilis
togae
adoptauit
appelauitque de um decreto do Senado, todas as honras
principem iuuentutis. 5De sororibus auctor que haviam sido concedidas a Lívia
fuit,
ut
omnibus
sacramentis Augusta. Ao tio paterno Cláudio, naquele
adiceretur:<<Neque me liberosque meos tempo um cavaleiro romano, fez com que
cariores habebo quam Gaium et [h] ab eo assumisse o consulado como seu colega.
sorores
eius>>;
item
relationibus Ao irmão Tibério chamou “Príncipe da
consulum:<<Quod bonum felixque sit. C. Juventude”, quando este assumiu a toga
Caesari
sororibusque
popularitate
damnatos
eius.>>
6
Pari viril e o adotouXXXVI. 5Quanto às suas
relegatosque irmãs, foi responsável por fazer com que a
restituit; criminum, si quae residua ex todos os juramentos se acrescentasse esta
priore
tempore
manebant,
omnium fórmula: “Não colocarei a mim mesmo e
gratiam fecit; commentarios ad matris nem aos meus acima de Caio e de suas
fratrumque suorum causas pertinentes ne irmãs”.
E,
da
mesma
forma,
nas
cui postmodum delatori aut testii maneret deliberações dos cônsules: “Bem e
XXXV
Trata-se do Mausoléu construído por Augusto, de que Suetônio fala em Aug. C
Por irmão, frater, deve-se entender aqui “primo” (Suetônio omite parte da expressão frater patruelis,
significando primo pelo lado paterno). Trata-se do mesmo Tiberius Gemellus, que se mostrava desde já um
forte candidato ao governo, e que Calígula provavelmente quis manter por perto desde o início.
XXXVI
61
ullus metus, conuectos in fórum, et ante prosperidade a Caio César e suas
clare obstestatus deos neque legisse neque irmãs”XXXVII.
6
Com igual intenção de
attigisse quicquam, concremauit; libellum agradar ao povo, restituiu condenados e
de salute sua oblatum non recepit, exilados. Perdoou todos os crimes que
contendens << nihil sibi admissum cur datavam do governo anterior. Queimou os
cuiquam inuisus esset>>, negauitque se comentários pertinentes aos processos de
delatoribus aures habere.
sua mãe e de seus irmãosXXXVIII, que
haviam sido levados ao fórum e, para que
nenhum delator ou testemunha o temesse,
jurou diante dos deuses que não havia lido
nem tocado nenhum deles. Recusou-se a
receber uma lista que tratava de sua
segurança, dizendo “não ter feito nada
para ser odiado por ninguém”XXXIX, e
negou dar atenção aos delatoresXL.
1
XLI
XVI. 1Spintrias monstrosarum libidinum XVI. Expulsou da cidade os espíntrias ,
aegre ne profundo mergeret exoratus, urbe de monstruosas perversões, a muito custo
2
submouit. 2Titi Labieni, Cordi Cremuti, convencido de não os afogar. Permitiu
XLII
Cassi Seueri scripta senatus consultis que os escritos de Tito Labieno , Cordo
XXXVII
Esta seção descreve o amor e apreço de Calígula pela própria família (o que se subverterá mais à
frente na narrativa), mostrando a reparação feita à honra de seus familiares mortos e o cuidado com os que
ainda viviam.
XXXVIII
Como se verá mais à frente, Calígula na verdade fez cópias desses documentos antes de queimá-los.
XXXIX
Ou seja, uma lista com os nomes de supostos conspiradores, que Calígula não imaginava serem reais,
já que ele não teria feito mal a ninguém para ser merecedor de ódio.
XL
Os delatores eram um problema muito grave na Roma Imperial, principalmente quando abusavam das
denúncias de crime contra a maiestas (por exemplo, falar mal do imperador). Nos Annales de Tácito consta
o episódio ocorrido no governo de Tibério em que quatro delatores da ordem senatorial, buscando ascender
socialmente por prestar serviços a Sejano, o guarda pretoriano, teriam convidado um homem de mesmo
status para o jantar e, tendo iniciado uma conversa difamatória a respeito de Sejano, aguardaram que esse
homem se juntasse aos comentários pouco elogiosos. Quando ele o fez, os outros o denunciaram, já que
três deles tinham ficado escondidos no teto para servir de testemunhas do “crime” (Tac. Ann. 4.69).
XLI
Homens que se prostituíam, e que teriam sido protegidos de Tibério em Capri.
XLII
Orador que viveu na época de Augusto, conhecido por atacar diversas figuras públicas em seus
discursos. Cometeu suicídio depois que o Senado ordenou que seus livros fossem queimados.
62
abolita requiri et esse in manibus CremúcioXLIII e Cássio Severo XLIV –
lectitarique permisit, quando maxime sua abolidos por um decreto do Senado –
interesset ut facta quaeque posteris fossem pesquisados, distribuídos e lidos
tradantur. 3Rationes imperii ab Augusto “uma vez que tinha grande interesse em
proponi solitas sed a Tiberio intermissas informar a posteridade acerca de tudo”.
publicauit. 4Magistratibus liberam iuris
dictionem
et
sine
sui
3
Fez a publicação das contas do governo,
appellatione que era comum no governo de Augusto,
concessit. 5Equites R. seuere curioseque mas que Tibério interrompera. 4Concedeu
nec sine moderatione recognouit, palam aos magistrados total jurisdição, sem que
adempto equo quibus aut probri aliquid fosse necessário apelar a ele mesmo.
aut ignominiae inesset, eorum qui minore
5
Examinou os cavaleiros romanos com
culpa tenerentur nominibus modo in severidade e escrutínio, mas não sem
recitatione praeteritis.
6
Vt leuior labor moderação, e privou publicamente do
iudicantibus foret, ad quattuor prioris cavalo aqueles contra os quais havia algo
quintam decuriam addidit. 7Temptauit et de infâmia ou ignomínia, e daqueles que
comitiorum
more
reuocato
suffragia eram
culpados
de
crimes
menores,
populo reddere. 8Legata ex testamento simplesmente absteve-se de citar o nome
Tiberi quamquam abolito, sed et Iuliae durante a chamada. 6Para tornar mais leve
Augustae, quod Tiberius suppresserat, o trabalho dos juízes, acrescentou às
cum fide ac sine calumnia repraesentata quatro decúrias anteriores uma quintaXLV.
persoluit.
9
Ducentesimam
auctionum
7
Tentou até mesmo devolver ao povo o
Italiae remisit; multis incendiorum damna direito de voto, trazendo de volta o
suppleuit; ac si quibus regna restituit, costume das assembleias de romanos para
adiecit et fructum omnem uectigaliorum et a eleição de magistradosXLVI.
8
Pagou
reditum medii temporis, ut Antiocho fielmente aos herdeiros designados de
Commageno
sestertium
milies Tibério,
e
confiscatum. 10Quoque magis nullius non testamento
XLIII
sem
de
fraude,
Tibério
embora
tivesse
o
sido
Historiador que foi acusado por Sejano de crime contra a maiestas e obrigado a tirar a própria vida.
Professor de Retórica e amigo de Labieno, foi condenado ao exílio (onde viria a morrer depois de vinte
e cinco anos) pelas mesmas acusações que o colega.
XLV
Havia três decúrias de juízes no período republicano. Augusto acrescentou uma quarta durante seu
governo.
XLVI
Tais assembleias eram conhecidas como comitia, os “comícios”, e segundo o próprio Suetônio,
Augusto já havia pensado em retomar esse costume (Aug, XL).
XLIV
63
boni exempli fautor uideretur, mulieri anulado, e também aos de Júlia Augusta,
libertinae
octingenta
excruciata
grauissimis
donauit,
scelere patroni reticuisset.
tormentis
11
quod embora Tibério os tivesse suprimido.
de
9
Restituiu à Itália o imposto de meio por
Quas ob res cento nas vendas em hasta pública;
inter reliquos honores decretus est ei reparou muitos danos causados por
clipeus aureus, quem quotannis certo die incêndios; e, se restituía a alguém o
collegia sacerdotum in Capitolium ferrent, reinado, acrescentava todo produto dos
senatu prosequente nobilibusque pueris ac impostos
e
rendimentos
públicos
puellis carmine modulato laudes uirtutum coletados neste ínterim, como fez a
eius canentibus. Decretum autem ut dies, Antíoco, rei de Comagena, a quem
quo cepisset imperium, Parilia uocaretur, devolveu cem milhões de sestércios
uelut argumentum rursus conditae urbis.
confiscados. 10E para que parecesse ainda
mais o promotor de bons exemplos, deu
oitenta mil sestércios a uma liberta que,
tendo sofrido gravíssima tortura, não
denunciou nenhum dos crimes de seu
patrono.
11
Razões pelas quais, entre as
demais honras, foi-lhe concedido o escudo
douradoXLVII, que todo ano o colegiado
dos sacerdotes levava ao Capitólio,
seguidos pelo senado e por meninos e
meninas da nobreza que entoavam o
elogio de suas virtudes com um canto
cadenciado. Também se decretou que o
dia em que ele ascendera ao poder seria
chamado de PariliaXLVIII, sob o argumento
XLVII
Semelhante ao clipeus aureus concedido a Augusto, que comemorava suas quatro virtudes, clementia,
iustitia, pietas e uirtus. Não há como saber se foram essas mesmas as virtudes comemoradas no escudo de
Calígula, no entanto.
XLVIII
Festas em homenagem ao deus Pales, ligado à vida pastoril (às vezes representado como uma
divindade feminina). Acreditava-se que Roma havia sido fundada durante o festival dedicado a esse deus,
em 21 de abril.
64
de que neste dia a cidade fora fundada uma
segunda vez.
XVII.
1
Consulatus
quattuor
gessit, XVII.
1
Exerceu quatro consulados, o
primum ex Kal. Iul. per duos menses, primeiro iniciado nas calendas de julho,
secundum ex Kal. Ian. per XXX dies, por dois meses, o segundo iniciado nas
tertium usque in Idus Ian., quartum usque calendas de janeiro por trinta dias, o
septimum Idus easdem. 2Ex omnibus duos terceiro até os idos de janeiro, o quarto até
3
nouissimos coniunxit.
Tertium autem o sétimo dia antes dos idos daquele mesmo
Luguduni iniit solus, non ut quidam mês.XLIX 2Dentre todos esses, os dois
opinantur superbia neglegentiaue, sed últimos foram consecutivos. 3O terceiro,
quod defunctum sub Kalendarum diem porém, inaugurou sozinho, em LugdunoL,
collegam rescisse absens non potuerat. não por sua soberba ou negligência, como
4
Congiarium populo bis dedit trecenos muitos pensam, mas porque, estando
sestertios,
totiens
abundantissimum ausente, não tinha como saber que seu
epulum senatui equestrique ordini, etiam colega havia falecido durante as calendas
coniugibus
ac
liberis
utrorumque; daquele mês. 4Duas vezes deu de presente
posteriore epulo forensia insuper uiris, ao povo a quantia de trezentos sestércios
feminis ac pueris fascias purpurae ac para cada um, mesmo número de vezes em
conchylii distribuit.
5
Et ut laetitiam que deu farto banquete à ordem dos
publicam in perpetuum quoque augeret, senadores e dos cavaleiros, bem como às
adiecit diem Saturnalibus appellauitque esposas e aos filhos de seus membros. No
Iuuenalem.
último destes, distribuiu também trajes
públicos aos homens e faixas de púrpura
às mulheres e às crianças.
5
E para
aumentar a alegria do povo em caráter
permanente, acrescentou um dia às
XLIX
Lindsay (2002, p. 88) afirma que Calígula recebeu do Senado uma oferta de consulado perpétuo, logo
que assumiu o poder. Sua dispensa dessa oferta pode ser vista como parte da chamada recusatio, em que o
imperador ritualmente recusava o poder que lhe era investido, como respeito à república. Depois dessa
recusa inicial, no entanto, Calígula atuou como cônsul em todos os anos de seu governo.
L
Atualmente Lyon, na França.
65
Satunálias, ao qual chamou “Dia da
Juventude”.
1
XVIII.
Munera gladiatoria partim in XVIII. 1Ofereceu jogos de gladiadores LI,
amphitheatro Tauri partim in Saeptis fosse no Anfiteatro de Tauro, fosse na
aliquot edidit, quibus inseruit cateruas cerca das eleiçõesLII, aos quais introduziu
Afrorum Campanorumque pugilum ex grupos de lutadores da África e da
utraque regione electissimorum. 2Neque Campânia, os melhores de ambas as
spectaculis semper ipse praesedit, sed regiões.
2
E nem sempre presidiu ele
interdum aut magistratibus aut amicis mesmo aos espetáculos, mas, às vezes,
praesidendi munus iniunxit. 3Scaenicos confiava este papel aos magistrados ou a
ludos et assidue et uarii generis ac amigos. 3Promoveu muitas peças de teatro
multifariam fecit, quondam et nocturnos de variado gêneroLIII, certa vez durante a
accensis tota urbe luminibus. 4Sparsit et noite,
missilia uariarum rerum et panaria cum
4
iluminando
toda
a
cidade.
Distribuiu também presentes de vários
obsonio uiritim diuisit; qua epulatione tipos, que ele lançava ao povo, e deu a
equiti R. contra se hilarius auidiusque cada pessoa cestos com víveres. Durante o
uescenti partes suas misit, sed et senatori banquete, deu sua parte a um cavaleiro
ob eandem causam codicillos, quibus romano que estava à frente dele e que
praetorem eum extra ordinem designabat. comia com alegria e avidez. Pelo mesmo
5
Edidit et circenses plurimos a mane ad motivo, deu a um senador um documento,
uesperam interiecta modo Africanarum através do qual o designava como pretor
uenatione modo Troiae decursione, et extraordinário. 5Também instituiu jogos
quosdam praecipuos, minio et chrysocolla circenses, que duravam da manhã até a
constrato circo nec ullis nisi ex senatorio tarde, em cujo intervalo eram realizadas
ordine aurigantibus. 6Commisit et subitos, caçadas africanas ou corridas troianas. Em
cum
e
Gelotiana
apparatum
circi alguns jogos especiais, teve o circo
LI
Pode-se notar aqui uma nova rubrica: Suetônio falará do tratamento dado por Calígula aos jogos.
Saepta, que pode ser entendido como uma área cercada. Neste contexto, trata-se provavelmente de uma
grande área fechada localizada no Campo de Marte, onde o povo se reunia para votar, e onde se
encontravam várias lojas.
LII
LIII
É preciso lembrar que por jogos (ludi) os romanos entendiam não só o combate entre gladiadores, mas
também os jogos do circo (ludi circenses) e as peças de teatro (ludi scaeneci).
66
prospicientem
pauci
proximis coberto por vermelhão e malaquitaLIV e
ex
Maenianis postulassent.
não permitiu que subisse às bigas quem
não fosse da ordem senatorial. 6Instituiu
até mesmo jogos improvisados, visto que,
enquanto observava do Palácio Gelociano
as estruturas do circo, algumas pessoas
dos balcões das casas vizinhas o pediram
que fizesse.
XIX. 1Nouum praeterea atque inauditum XIX. 1Criou, além disso, um novo tipo de
genus
spectaculi
Baiarum
medium
Puteolanas
moles,
excogitauit.
Nam espetáculo. Pois construiu, no espaço
interuallum
trium
[ad] entre Baías e o quebra-mar de Puzzuoli -
milium
et uma distância de quase três mil e
sescentorum fere passuum spatium, ponte seiscentos passosLV – uma ponte, que foi
coniunxit contractis undique onerariis feita com navios de carga trazidos de toda
nauibus et ordine duplici ad ancoras parte e postos, ancorados, numa fila dupla,
conlocatis
superiectoque
terreno
ac sobre a qual se colocou terra, moldando-a
derecto in Appiae uiae formam. 2Per hunc até parecer com a Via Ápia. 2De imediato,
pontem ultro citro commeauit biduo pôs-se a ir e vir, de lá para cá, durante dois
continenti, primo die phalerato equo dias.LVI No primeiro dia, num cavalo
insignisque quercea corona et caetra et coberto de insígnias militares, usando uma
gladio
aureaque
chlamyde,
postridie coroa de folhas de carvalho, um pequeno
quadrigario habitu curriculoque biiugi escudo, uma espada e uma clâmide
famosorum equorum, prae se ferens dourada, e no dia seguinte, vestido como
Dareum puerum ex Parthorum obsidibus, um piloto de quadriga, num carro puxado
comitante praetorianorum agmine et in por dois cavalos célebres, levando à sua
essedis
LIV
cohorte
amicorum.
3
Scio frente Dário, um jovem refém do Império
Esses materiais teriam dado ao circo uma decoração baseada nas cores vermelha e verde, e pode ser uma
referência às facções do circo (times de pilotos que participavam das corridas). A facção vermelha e a
facção verde eram as preferidas da plebe, e Calígula em particular torcia pelos verdes.
LV
Cerca de 2.95 km.
LVI
Essa é a primeira grande demonstração de excentricidade por parte de Calígula depois de assumir o
governo.
67
plerosque existimasse talem a Gaio Parta, acompanhado de uma tropa de
pontem excogitatum aemulatione Xerxis, guardas pretorianos e uma companhia de
qui non sine admiratione aliquanto amigos que vinham em carros de
angustiorem
Hellespontum guerraLVII. 3Sei que muitos pensaram que
contabulauerit; alios, ut Germaniam et a idealização de tal ponte por Caio era uma
Britanniam, quibus imminebat, alicuius tentativa de rivalizar Xerxes, que, não sem
inmensi operis fama territaret. 4Sed auum produzir considerável admiração, cobriu o
meum narrantem puer audiebam, causam Helesponto, mais estreito. Outros acharam
operis ab interioribus aulicis proditam, que o fizera para aterrorizar a Germânia e
quod Thrasyllus mathematicus anxio de a Bretanha, que então ameaçava de guerra,
successore Tiberio et in uerum nepotem com o boato de tão imensa obraLVIII. 4Mas
proniori affirmasset non magis Gaium ouvi de meu avô, quando eu era menino,
imperaturum quam per Baianum sinum que a razão de tal obra, contada pelos seus
equis discursurum.
cortesãos, era o fato de o astrólogo Trasilo
ter dito a Tibério – quando este se
encontrava preocupado com seu sucessor
e se mostrava propenso a escolher o neto
– que “Caio tinha tantas chances de ser
Imperador quantas de atravessar a cavalo
o Golfo de Baías”LIX.
XX. Edidit et peregre spectacula, in Sicilia XX. Também deu espetáculos fora de
Syracusis asticos ludos et in Gallia Roma: em Siracusa, na Sicília, jogos
Luguduni miscellos; sed hic certamen locaisLX; em Lugduno, na Gália, jogos
quoque Graecae Latinaeque facundiae, diversos. Mas em Lugduno ofereceu um
quo certamine ferunt uictoribus praemia concurso de eloquência grega e latina, no
uictos contulisse, eorundem et laudes qual,
LVII
dizem,
os
vencidos
deveriam
Essa representação o deixava parecido com um general triunfante.
O ato poderia ser ameaçador para a Bretanha porque deixava claro que uma fronteira aquática não era
o bastante para fazer parar o imperador.
LIX
Essa passagem ilustra a variedade de fontes a que Suetônio recorre para compor seus relatos. Desde
documentos oficiais até os comentários de seus próprios familiares.
LX
Astici Ludi, jogos celebrados em honra a Baco.
LVIII
68
componere coactos; eos autem, qui conceder os prêmios aos vencedores, e
maxime displicuissent, scripta sua spongia eram obrigados a fazer-lhes o elogio. Aos
linguaue
delere
iussos,
nisi
ferulis que tinham se saído particularmente mal,
obiurgari aut flumine proximo mergi cabia, porém, apagar seus escritos com
maluissent.
uma esponja ou com a própria língua, se
não quisessem ser açoitados com varas ou
lançados a um rio próximoLXI.
XXI. 1Opera sub Tiberio semiperfecta, XXI. 1Completou as reformas do templo
templum Augusti theatrumque Pompei, de Augusto e do teatro de Pompeu, que
absoluit. 2Incohauit autem aquae ductum não tinham sido terminadas no governo de
regione Tiburti et amphitheatrum iuxta TibérioLXII. 2Deu início, além disso, à
Saepta, quorum operum a successore eius construção do aqueduto na região de Tibur
Claudio alterum peractum, omissum e ao anfiteatro junto à cerca das eleições,
alterum est. 3Syracusis conlapsa uetustate obras que foram, umas completadas,
moenia
4
deorumque
aedes
refectae. outras abandonadas por seu sucessor,
Destinauerat et Sami Polycratis regiam Cláudio.
3
Em Siracusa, reconstruiu as
restituere, Mileti Didymeum peragere, in muralhas e os templos dos deuses,
iugo Alpium urbem condere, sed ante destruídos pelo tempoLXIII. 4Tinha também
omnia Isthmum in Achaia perfodere, planejado
reconstruir
o
palácio
de
miseratque iam ad dimetiendum opus Polícrates, em Samos, terminar o templo
primipilarem.
de Apolo Didimeu, em Mileto, construir
uma cidade no cume dos Alpes, mas, antes
de tudo, cortar o istmo em AcaiaLXIV - e já
LXI
Primeira demonstração de interesse pela retórica. Também se vê aqui um pouco da crueldade futura que
marcaria o governo de Calígula, de acordo com o relato de Suetônio.
LXII
Esse é o último trecho em que Suetônio tratará de Calígula como um bom governante. Aqui ele fala de
algumas de suas obras públicas.
LXIII
Segundo Lindsay, tais obras poderiam ter sido feitas em agradecimento à cidade por ter sido a primeira
a reconhecer a divindade de sua irmã Drusilla, depois de sua morte.
LXIV
Istmo em Corinto que une a Grécia continental à Península do Peloponeso. Calígula pensava em
construir um canal nessa pequena faixa de terra, que facilitaria a navegação no litoral do Peloponeso.
Tentada sem sucesso muitas vezes ao longo da Antiguidade, essa obra só veio a ser realizada no final do
século XIX.
69
tinha mandado um centurião para fazer as
medidas necessárias à obra.
XXII. 1Hactenus quasi de principe, reliqua XXII. 1Até aqui se falou de um príncipe ut
2
de
monstro
narranda
sunt. deve-se agora falar de um monstroLXV.
Compluribus cognominibus adsumptis –
2
Tendo assumido diversos nomes (pois era
nam et "pius" et "castrorum filius" et chamado “pio”, “filho dos acampamentos
"pater exercituum" et "optimus maximus militares”, “pai do exército” e “César
Caesar" uocabatur – cum audiret forte Ótimo Máximo”), como certa vez tivesse
reges,
qui
officii
causa
in
urbem escutado um grupo de reis, que tinham
aduenerant, concertantis apud se super vindo à Roma numa visita cerimonial,
cenam de nobilitate generis, exclamauit:
discutindo entre si sobre a nobreza de suas
Εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς.
estirpes, disse:
Nec multum afuit quin statim diadema
‘Um só tenha o posto supremo;
sumeret speciemque principatus in regni
Um, seja o rei’LXVI
formam conuerteret. 3Verum admonitus et
excessisse e por pouco não tomou a coroa naquele
fastigium, diuinam ex eo maiestatem momento, convertendo em realeza a falsa
3
asserere sibi coepit; datoque negotio, ut aparência de principado. No entanto,
simulacra numinum religione et arte como o tivessem dito que ele havia
principum
et
regum
se
praeclara, inter quae Olympii Iouis, superado o mais alto grau dos príncipes e
apportarentur e Graecia, quibus capite dos reis, começou a atribuir a si mesmo a
dempto suum imponeret, partem Palatii ad majestade divina. E, tendo dado a ordem
forum usque promouit, atque aede de que fossem trazidas da Grécia as
uestibulum estátuas de deuses mais distintas pela
transfigurata, consistens saepe inter fratres devoção e pela arte, entre elas uma de
Castoris
et
Pollucis
in
deos, medium adorandum se adeuntibus Júpiter Olímpico, às quais, retiradas as
cabeças, acrescentou sua própria imagem,
LXV
Tem-se aqui a clara separação entre os dois principais momentos do texto: Suetônio inicia o relato das
anedotas que ilustram o mau caráter de Calígula, começando por seu orgulho e crueldade.
LXVI
Calígula cita Homero: εἷς κοίρανος ἔστω, εἷς βασιλεύς (Il, II, 204). A tradução é de Carlos Alberto
Nunes.
70
exhibebat; et quidam eum Latiarem Iouem ele fez com que uma parte do palácio se
consalutarunt. 4Templum etiam numini estendesse até o Fórum e, transformando o
suo
proprium
et
sacerdotes
excogitatissimas hostias instituit.
templo
simulacrum
stabat
et templo de Castor e Pólux num vestíbulo,
5
In se punha frequentemente entre as imagens
aureum dos deuses irmãos, e se oferecia à
iconicum amiciebaturque cotidie ueste, adoração dos visitantes. E houve aqueles
quali ipse uteretur. 6Magisteria sacerdotii que o saudassem como “Júpiter do Lácio”.
ditissimus
quisque
et
ambitione
et
4
E até consagrou um templo dedicado a
licitatione maxima uicibus comparabant. seu nume, com sacerdotes e vítimas muito
7
Hostiae erant phoenicopteri, pauones, bem escolhidas. 5Nesse templo havia uma
tetraones,
numidicae,
meleagrides, estátua dourada sua, em tamanho natural,
phasianae, quae generatim per singulos que era vestida todos os dias com vestes
dies immolarentur. 8Et noctibus quidem semelhantes às que ele mesmo utilizava.
plenam fulgentemque lunam inuitabat
6
Os cidadãos mais ricos tentavam garantir
assidue in amplexus atque concubitum, os cargos de sacerdotes desse templo,
interdiu uero cum Capitolino Ioue secreto alternadamente, com grande esforço e
fabulabatur,
modo
insusurrans
ac com as ofertas mais altas. 7As vítimas
praebens in uicem aurem, modo clarius eram flamingos, pavões, tetrazes, galinhas
nec sine iurgiis. 9Nam uox comminantis da Numídia, galinhas-d’Angola, faisões,
audita est:
que eram imoladas uma espécie a cada dia.
Ἤ μ᾽ ἀνάειρ᾽ ἤ ἐγὼ σέ,
8
E de fato, à noite, convidava a lua cheia e
brilhante a abraçá-lo e a deitar-se com ele,
donec exoratus, ut referebat, et in enquanto durante o dia conversava em
contubernium ultro inuitatus super segredo com Júpiter Capitolino, às vezes
templum Diui Augusti ponte transmisso cochichando e prestando ouvidos a ele, às
Palatium
Capitoliumque
coniunxit. vezes em voz alta, e não sem discutir.
10
Mox, quo propior esset, in area 9Ouviu-se, pois, a sua voz ameaçar:
Capitolina nouae domus fundamenta iecit.
‘Ou me levanta ou a ti faça eu o
mesmo’LXVII
Novamente uma citação de Homero: ἤ μ᾽ ἀνάειρ᾽ ἢ ἐγὼ σέ (Il, XXIII, 724). A tradução é de Carlos
Alberto Nunes.
LXVII
71
Tendo-o persuadido, por fim, segundo ele,
foi convidado pelo deus a habitar com ele,
e uniu o Palatino ao Capitólio através de
uma ponte que passava sobre o templo de
Augusto.
10
Mais tarde, para que ficasse
ainda mais perto, ergueu as bases de um
novo palácio no Capitólio.LXVIII
XXIII. 1Agrippae se nepotem neque credi XXIII. 1Não permitia que se acreditasse
neque dici ob ignobilitatem eius uolebat nem que se dissesse que ele era neto de
suscensebatque, si qui uel oratione uel Agripa, por conta de sua baixa origem, e
carmine
imaginibus
insererent.
2
eum
Caesarum se irritava se alguém, numa representação
Praedicabat autem matrem em verso ou em prosa, o colocava entre os
suam ex incesto, quod Augustus cum Iulia ancestrais dos CésaresLXIX. 2Proclamava
filia admisisset, procreatam; ac non que sua mãe havia nascido de um incesto
contentus
hac
Augusti
insectatione que Augusto houvera cometido com sua
Actiacas Siculasque uictorias, ut funestas filha Júlia. Não contente com esse insulto
p. R. et calamitosas, uetuit sollemnibus a Augusto, proibiu que fossem celebradas
feriis
celebrari.
3
Liuiam
Augustam com festas solenes as vitórias nas batalhas
proauiam "Vlixem stolatum" identidem de Ácio e da Sicília, alegando que haviam
appellans, etiam ignobilitatis quadam ad sido funestas e desastrosas ao povo
senatum epistula arguere ausus est quasi romano.
3
Chamava
a
bisavó
Lívia
materno auo decurione Fundano ortam, Augusta de “Ulisses de estola”LXX, e
cum publicis monumentis certum sit, ousou declarar numa carta ao Senado sua
Aufidium Lurconem Romae honoribus baixa origem, como se tivesse por avô
functum.
4
Auiae
Antoniae
secretum materno um decurião de Fondi, quando os
petenti denegauit, nisi ut interueniret documentos
LXVIII
públicos
afirmam
O culto a Calígula é usado por Suetônio como uma maneira de fazer o contraste entre a aparente
humildade do imperador no início do governo e seu verdadeiro caráter.
LXIX
Aqui Suetônio volta a falar das relações familiares de Calígula.
LXX
A estola era uma roupa tipicamente feminina (seria o equivalente de chamá-la “Ulisses de saias”). A
figura de Ulisses sempre foi ambivalente para os romanos. Apesar de ser um herói importante, sua esperteza
era vista com desconfiança.
72
Macro praefectus, ac per istius modi seguramente que fora Aufídio Lurco,
indignitates et taedia causa exstitit mortis, homem que exercera magistraturas em
dato tamen, ut quidam putant, et ueneno; Roma.
4
Negou-se a ter um encontro
nec defunctae ullum honorem habuit particular com a avó Antônia sem ser
prospexitque e triclinio ardentem rogum. acompanhado de Macrão, comandante da
5
Fratrem Tiberium inopinantem repente guarda pretoriana, e através de afrontas e
immisso
tribuno
Silanum
item
militum
socerum
interemit, desgostos deste tipo foi que causou sua
ad
necem morte, embora há quem diga que lhe teria
secandasque nouacula fauces compulit, dado veneno. E nem lhe prestou, morta, as
causatus in utroque, quod hic ingressum se honras fúnebres, meramente observando
turbatius mare non esset secutus ac spe do triclínio sua pira funerária acesa.
occupandi urbem, si quid sibi per
5
Mandou matar o desavisado irmão
tempestates accideret, remansisset, ille Tibério por um tribuno militar. Da mesma
antidotum
oboluisset,
quasi
ad forma obrigou o sogro Silano a se matar
praecauenda uenena sua sumptum, cum et cortando a garganta com uma navalha.
Silanus impatientiam nauseae uitasset et Deu como motivo para essas mortes o fato
molestiam nauigandi, et Tiberius propter de Silano não o ter seguido quando entrou
assiduam
et
ingrauescentem
tussim no mar tempestuosoLXXI e ter permanecido
medicamento usus esset. 6Nam Claudium em terra, na esperança de governar Roma,
patruum non nisi in ludibrium reseruauit.
se algo lhe acontecesse por conta das
tempestades, e de Tibério ter tomado um
antídoto, como se estivesse se precavendo
de seu envenenamento – quando, na
verdade, Silano tinha permanecido em
terra para evitar a náusea e o enjoo da
navegação e Tibério havia tomado um
medicamento por conta de sua tosse
frequente que se agravava. 6Quanto ao seu
LXXI
Isto é, quando foi buscar os restos mortais de seus parentes, logo no início do governo.
73
tio paterno Cláudio, o manteve apenas
porque era motivo de risoLXXII.
XXIV.
1
Cum omnibus sororibus suis XXIV.
consuetudinem
stupri
fecit
1
Teve
frequentes
relações
plenoque incestuosasLXXIII com todas as suas irmãs,
conuiuio singulas infra se uicissim e em pleno banquete, as colocava abaixo
conlocabat uxore supra cubante. 2Ex iis de si, uma de cada vez, enquanto sua
Drusillam uitiasse uirginem praetextatus esposa ficava por cima.
2
Dentre elas,
adhuc creditur atque etiam in concubitu acredita-se que tenha tirado a virgindade a
eius quondam deprehensus ab Antonia Drusila, enquanto ele ainda vestia a toga
auia, apud quam simul educabantur; mox pretexta, e foi pego deitando-se com ela
Lucio
Cassio
Longino
consulari pela avó Antônia, que os havia criado;
conlocatam abduxit et in modum iustae mais tarde, a tomou do consular Lúcio
uxoris propalam habuit; heredem quoque Cássio Longino, com quem ela havia se
bonorum atque imperii aeger instituit. casado, e a tratou abertamente como sua
3
Eadem defuncta iustitium indixit, in quo esposa legítima. Quando ele ficou doente,
risisse lauisse cenasse cum parentibus aut a escolheu como herdeira de seus bens e
coniuge
liberisue
capital
fuit.
4
Ac do Império. 3Quando ela morreu, instituiu
maeroris impatiens, cum repente noctu um luto oficial, no qual quem risse, se
profugisset ab urbe transcucurrissetque banhasse, jantasse com a família ou o
Campaniam, Syracusas petit, rursusque cônjuge, era condenado à morte.
4
E,
inde propere rediit barba capilloque incapaz de suportar a dor, partiu de Roma
promisso;
nec
umquam
postea à noite, repentinamente, atravessou a
quantiscumque de rebus, ne pro contione Campânia e chegou a SiracusaLXXIV, de
quidem populi aut apud milites, nisi per onde voltou rapidamente com a barba e o
LXXII
Suetônio afirma na biografia de Cláudio que este era sempre o último dentre os homens de status
consular a falar no senado (Claud. IX.2)
LXXIII
Novamente, o uso do termo stuprum nessa passagem não indica que as relações tenham ocorrido
necessariamente sem o consentimento das partes envolvidas. Além disso, segundo Winterling (2011, p.3),
é pouco provável que tais relações incestuosas tenham ocorrido de fato, já que Fílon e Sêneca não chegam
a mencionar nada a respeito.
LXXIV
Cf. nota LXIII.
74
numen Drusillae deierauit.
5
Reliquas cabelo crescidos. E depois disso, não
sorores nec cupiditate tanta nec dignatione importando a grandeza do assunto, nem
dilexit, ut quas saepe exoletis suis mesmo diante do povo reunido ou dos
prostrauerit; quo facilius eas in causa soldados, não fez juramentos senão ao
Aemili
Lepidi
quasi nume de Drusila. 5Não amava as outras
condemnauit
adulteras et insidiarum aduersus se irmãs com tanto desejo ou respeito, já que
conscias ei.
omnium
6
Nec solum chirographa frequentemente as prostituíra com os
requisita
fraude
ac
stupro jovens devassos. E com facilidade as
diuulgauit, sed et tres gladios in necem condenou no processo contra Emílio
suam praeparatos Marti Vltori addito Lépido, como adúlteras e cúmplices das
elogio consecrauit.
tramas que haviam sido planejadas contra
ele mesmo. 6E não só publicou todas as
cartas manuscritas de suas irmãs, através
de fraude e de desonra, como consagrou a
Marte Vingador as três espadas preparadas
para matá-lo, acrescentando-lhes uma
inscrição.
XXV. 1Matrimonia contraxerit turpius an XXV. 1Quanto a seus casamentosLXXV, é
dimiserit an tenuerit, non est facile difícil dizer se foi maior afronta tê-los
discernere. 2Liuiam Orestillam C. Pisoni contraído,
nubentem, cum ad officium et ipse
2
terminado
ou
mantido.
Quando Lívia Orestila se casou com C.
uenisset, ad se deduci imperauit intraque Pisão, como ele próprio comparecesse à
paucos dies repudiatam biennio post cerimônia, ordenou que ela lhe fosse dada
relegauit, quod repetisse usum prioris como esposa e dentro de poucos dias a
mariti tempore medio uidebatur.
tradunt
adhibitum
mandasse
accumbentem:
ad
3
Alii dispensou, e dali a dois anos a exilou,
cenae
nuptiali porque parecia que tinha retornado ao
Pisonem
contra marido anterior naquele meio tempo.
"Noli
uxorem
meam
3
Outros dizem que ele, tendo sido
premere," statimque e conuiuio abduxisse convidado ao banquete do casamento,
LXXV
Suetônio trata dos casamentos de Calígula nesta rubrica.
75
secum
ac
proximo
die
edixisse: mandou como recado a Pisão, que se
“matrimonium sibi repertum exemplo sentava à sua frente: “Não te deites com
Romuli et Augusti.” 4Lolliam Paulinam, minha esposa.”, e imediatamente a levou
C. Memmio consulari exercitus regenti consigo de lá e no dia seguinte afirmou
nuptam, facta mentione auiae eius ut “ter contraído um matrimônio a exemplo
quondam
pulcherrimae,
subito
ex de
prouincia euocauit ac perductam a marito
4
Rômulo
Convocou
e
de
Augusto”LXXVI.
repentinamente
de
sua
coniunxit sibi breuique missam fecit província Lólia Paulina, casada com C.
interdicto cuiusquam in perpetuum coitu. Mêmio, consular que comandava os
5
Caesoniam neque facie insigni neque exércitos, depois de alguém ter comentado
aetate integra matremque iam ex alio uiro que sua avó havia sido uma mulher muito
trium filiarum, sed luxuriae ac lasciuiae bela, e a tirou do marido, casou-se com
perditae, et ardentius et constantius ela, e pouco tempo depois a mandou
amauit, ut saepe chlamyde peltaque et embora, tendo-a proibido para sempre de
galea ornatam ac iuxta adequitantem deitar-se com qualquer outro.
militibus ostenderit, amicis uero etiam Cesônia
nudam.
6
de
modo
ardente
5
e
Amou
com
Vxorio nomine [non prius] perseverança, embora ela não fosse nem
dignatus est quam enixam, uno atque bonita, nem jovem, e já mãe de três filhas
eodem die professus et maritum se eius et com outro homem, além de perdida de
patrem infantis ex ea natae. 7Infantem devassidão e lascívia. Frequentemente a
autem, Iuliam Drusillam appellatam, per exibia aos soldados vestida de clâmide,
omnium dearum templa circumferens peltaLXXVII e elmo, cavalgando ao seu
Mineruae gremio imposuit alendamque et lado, e até mesmo nua, aos amigos. 6Deuinstituendam commendauit.
8
Nec ullo lhe o nome de esposa quando ela teve um
firmiore indicio sui seminis esse credebat bebê, e num único e mesmo dia disse ser
quam feritatis, quae illi quoque tanta iam seu marido e pai do filho que dela nascera.
tunc erat, ut infestis digitis ora et oculos
7
simul ludentium infantium incesseret.
Júlia Drusila, ele levou aos templos de
Essa criança, porém, que foi chamada de
todas as deusas e a deixou no colo de
LXXVI
Rômulo, o lendário primeiro rei de Roma, teria ordenado o sequestro das esposas dos Sabinos para
que os primeiros romanos tivessem mulheres com as quais casar. Já Augusto era reconhecidamente dado
ao adultério, muito embora o fizesse sobretudo por razões políticas (Suet. Aug. LXIX.1).
LXXVII
Pequeno escudo trácio em formato e meia-lua.
76
Minerva, a quem recomendou que a
criasse e alimentasse. 8E nenhum indício
de que era sua filha lhe pareceu mais
convincente do que a ferocidade da
menina, que já naquele momento era tão
grande que ela tentava atacar com os
dedos violentos os olhos e a boca das
crianças que brincavam perto delaLXXVIII.
XXVI. 1Leue ac frigidum sit his addere, XXVI. 1Seria frívolo e trivial acrescentar
quo
propinquos
tractauerit,
amicosque
Ptolemaeum
pacto qualquer coisa ao modo como tratava seus
regis
Iubae amigos
e
pessoas
próximasLXXIX.
filium, consobrinum suum – erat enim et Ptolomeu, filho do rei Juba, seu primo
is M. Antoni ex Selene filia nepos – et in (era, também, neto de Marco Antônio,
primis ipsum Macronem, ipsam Enniam, pela mãe Selene) e, em particular, o
adiutores imperii; quibus omnibus pro próprio Macrão e a própria Ênia, que o
necessitudinis iure proque meritorum ajudaram a chegar ao poder: todos eles
gratia cruenta mors persoluta est. 2Nihilo receberam como recompensa por seu
reuerentior
leniorue
erga
senatum, parentesco e pelos seus méritos uma morte
quosdam summis honoribus functos ad sangrenta. 2Não foi mais respeitoso ou
essedum sibi currere togatos per aliquot gentil em relação ao SenadoLXXX, cujos
passuum milia et cenanti modo ad pluteum membros que haviam ocupado os cargos
modo ad pedes stare succinctos linteo mais importantes ele deixou correr
passus est; alios cum clam interemisset, vestidos de toga, junto a seu carro, por
citare nihilo minus ut uiuos perseuerauit, alguns milhares de passos e ficar ora junto
paucos post dies uoluntaria morte perisse de seu leito, enquanto jantava, ora junto de
mentitus. 3Consulibus oblitis de natali suo
LXXVIII
Mais um indício da opinião de Suetônio sobre a natureza cruel de Calígula, que chega até mesmo a
ser hereditária.
LXXIX
Mais um indicativo da opinião pessoal de Suetônio sobre o assunto tratado.
LXXX
Aqui Suetônio relata o tratamento dispensado por Calígula às diferentes ordens sociais.
77
edicere abrogauit magistratum fuitque per seus pés, usando vestes de linhoLXXXI;
triduum sine summa potestate res p. outros foram mortos em segredo, e ele
4
Quaestorem
suum
nominatum
in
flagellauit
coniuratione insistia em chamá-los como se ainda
ueste detracta estivessem vivos, e poucos dias depois,
subiectaque militum pedibus, quo firme mentia dizendo que haviam cometido
uerberaturi insisterent. 5Simili superbia suicídio.
3
Quando
os
cônsules
se
uiolentiaque ceteros tractauit ordines. esqueceram de fazer uma proclamação
6
Inquietatus fremitu gratuita in circo loca pública de seu aniversário, ele os afastou
de media nocte occupantium, omnis de seus cargos, e deixou o estado sem sua
fustibus abegit; elisi per eum tumultum magistratura suprema durante três dias.
uiginti
amplius
matronae,
equites
super
R., totidem
innumeram
4
Flagelou seu questor que havia sido
turbam citado numa conjuração, tirando suas
ceteram. 7Scaenicis ludis, inter plebem et vestes e colocando-as sob os pés dos
equitem causam discordiarum ferens, soldados, para que os que iam castigá-lo
decimas maturius dabat, ut equestria ab pudessem firmar melhor os pés. 5Tratou as
infimo quoque occuparentur. 8Gladiatorio outras ordens com semelhante violência e
munere reductis interdum flagrantissimo soberba. 6Incomodado com o barulho de
sole uelis emitti quemquam uetabat, algumas pessoas que vinham durante a
remotoque ordinario apparatu tabidas noite garantir seus lugares gratuitos no
feras,
uilissimos
senioque
confectos circo, os expulsou a todos com bastões; na
gladiatores, proque paegniariis patres confusão, foram pisoteados mais de vinte
familiarum notos in bonam partem sed cavaleiros romanos, o mesmo tanto de
insignis
subiciebat.
debilitate
9
aliqua
corporis matronas, e outras pessoas em grande
Ac nonnumquam horreis número. 7Nas peças de teatro, tentando
praeclusis populo famem indixit.
provocar a discórdia entre os cavaleiros e
a plebe, fez distribuir as décimas LXXXII
mais cedo que o normal, para que os
lugares dos cavaleiros fossem ocupados
pela ralé. 8Nos jogos de gladiadores, por
vezes ele mandava que se retirassem os
LXXXI
LXXXII
Vestimenta que era associada à condição de escravo.
Termo usado para se referir a um presente concedido pelos governantes ao povo.
78
toldos, num sol escaldante, e proibia a
quem quer que fosse de ir embora. Então,
retirado
o
equipamento
comum,
o
substituía por animais lânguidos, pelos
gladiadores mais baratos e acabados pela
velhice, e, como falsos gladiadores, pais
de família conhecidos [em boa medida]
mas acometidos de alguma doença. 9Às
vezes, ele anunciava a fome ao povo,
tendo fechado os celeiros.
XXVII.
1
Saeuitiam ingenii per haec XXVII. 1A crueldadeLXXXIII de seu caráter
maxime ostendit.
2
Cum ad saginam se faz mostrar particularmente pelo que
ferarum muneri praeparatarum carius segue: 2como tivesse achado muito caro
pecudes
compararentur,
laniandos
adnotauit,
et
ex
noxiis comprar gado para alimentar as feras
custodiarum preparadas para os espetáculos, designou
seriem recognoscens, nullius inspecto dentre os criminosos alguns que deveriam
elogio, stans tantum modo intra porticum ser devorados e, inspecionando as celas,
mediam, "a caluo ad caluum" duci sem
conferir nenhum
dos
registros
imperauit. 3Votum exegit ab eo, qui pro criminais, mas simplesmente parando no
salute
sua
gladiatoriam
operam meio do pórtico, mandou que fossem
promiserat, spectauitque ferro dimicantem levados “cabeça por cabeça”. 3Exigiu o
nec dimisit nisi uictorem et post multas cumprimento da promessa a um homem
preces. 4Alterum, qui se periturum ea de que havia jurado, por sua saúde, lutar
causa uouerat, cunctantem pueris tradidit, como gladiador e o assistiu lutar com
uerbenatum
infulatumque
uotum espada em punho, e nem o dispensou até
reposcentes per uicos agerent, quoad que ele conseguisse a vitória, e só depois
praecipitaretur ex aggere. 5Multos honesti de muitas súplicas. 4De um outro, que pela
ordinis deformatos prius stigmatum notis mesma causa havia jurado se matar, mas
ad metalla et munitiones uiarum aut ad que hesitara, disse a seus escravos que
LXXXIII
Nesta rubrica Suetônio trata especificamente da saeuitia, a crueldade de Calígula.
79
bestias condemnauit aut bestiarum more “conduzissem-no pelas ruas adornado
quadripedes cauea coercuit aut medios com ínfulas e com ramos sagrados,
serra dissecuit, nec omnes grauibus ex pedindo a todos que o juramento se
causis, uerum male de munere suo cumprisse, até que se precipitasse de uma
opinatos, uel quod numquam per genium colina”LXXXIV. 5Muitas pessoas de alta
suum deierassent.
6
Parentes supplicio ordem foram primeiro desfiguradas com
filiorum interesse cogebat; quorum uni marcas de ignomínia e depois condenadas
ualitudinem excusanti lecticam misit, a trabalhar nas minas, ou na construção
alium a spectaculo poenae epulis statim das estradas ou foram jogadas às feras, ou
adhibuit
hilaritatem
7
atque
et
omni
comitate
iocos
ad colocadas
em
jaulas,
obrigadas
a
prouocauit. permanecer de quatro, como animais ou
Curatorem munerum ac uenationum per cortadas ao meio com uma serra. E tudo
continuos dies in conspectu suo catenis isso não por motivos graves, mas por
uerberatum non prius occidit quam terem falado mal de seus espetáculos ou
offensus
8
putrefacti
cerebri
odore. por nunca terem jurado pelo seu nume.
Atellanae poetam ob ambigui ioci
6
Obrigava os pais a assistirem à morte dos
uersiculum media amphitheatri harena filhos, enviando uma liteira a um deles
igni cremauit. Equitem R. obiectum feris, quando disse que não poderia comparecer
cum se innocentem proclamasset, reduxit por estar doente, e convidando um outro
abscisaque lingua rursus induxit.
para um banquete depois de assistir à
execução, tentando provocar-lhe o riso
com todo tipo de amabilidade.
7
Um
administrador de jogos e de caçadas foi
espancado com correntes diante dele por
vários dias, e não morreu antes que ele se
incomodasse com o cheiro de seu cérebro
putrefato.
8
Um
compositor
de
atelanasLXXXV foi queimado vivo no
anfiteatro, no meio da arena, por conta de
um versinho jocoso de duplo sentido. 9Um
LXXXIV
LXXXV
Cf. nota XXXII.
Peças cômicas surgidas na cidade de Atela, na Campânia.
80
cavaleiro romano que havia sido jogado às
feras, como tivesse gritado que era
inocente, foi trazido de volta, teve a língua
cortada e foi novamente jogado às feras.
XXVIII. 1Reuocatum quendam a uetere XXVIII. 1Quando perguntou a um homem
exilio sciscitatus, quidnam ibi facere retornado do exílio o que fazia enquanto
consuesset,
respondente
eo
per ainda era exilado, ele lhe respondeu, para
adulationem: "Deos semper oraui ut, quod bajulá-lo: “Pedia sempre aos deuses para
euenit, periret Tiberius et tu imperares," que acontecesse de Tibério morrer e tu te
opinans sibi quoque exules suos mortem tornares imperador.”. Achando, então, que
imprecari, misit circum insulas, qui aqueles que ele próprio havia exilado
uniuersos contrucidarent. 2Cum discerpi também pediam pela sua morte, mandou
senatorem concupisset, subornauit qui soldados às ilhas para executar todos eles.
ingredientem curiam repente hostem
publicum
appellantes
2
Como quisesse que um senador fosse
inuaderent, partido em pedaços, subornou alguns
graphisque confossum lacerandum ceteris deles para que se lançassem sobre ele de
traderent; nec ante satiatus est quam repente,
quando
entrava
na
cúria,
membra et artus et uiscera hominis tracta chamando-o de inimigo público, ferindo-o
per uicos atque ante se congesta uidisset.
com seus estilosLXXXVI, e que o levassem
aos demais para ser destroçado. E não
ficou satisfeito enquanto não viu os
membros e vísceras dele serem levados
pelas ruas e empilhados diante de si.
XXIX.
1
Immanissima
atrocitate uerborum.
2
facta
augebat XXIX. 1Os seus atos mais desumanos ele
Nihil magis in agravava com a monstruosidade de suas
natura sua laudare se ac probare dicebat palavras.
LXXXVI
2
Dizia que a coisa mais
Objeto pontiagudo, geralmente feito de metal, usado pelos romanos para escrever sobre tábuas
cobertas com cera.
81
quam, ut ipsius uerbo utar, ἀδιατρεψίαν, admirável na sua natureza era, para usar
hoc
est
3
inuerecundiam.
Monenti suas
próprias
palavras,
sua
Antoniae auiae tamquam parum esset non ἀδιατρεψίανLXXXVII, ou seja, sua falta de
oboedire: "Memento," ait, "omnia mihi et vergonha. 3À avó Antônia, que lhe dava
in omnis licere." 4Trucidaturus fratrem, então conselhos, como se já não fosse o
quem
metu
praemuniri bastante não a obedecer, disse: “Lembra-
uenenorum
medicamentis suspicabatur: "Antidotum," te que posso fazer o que eu quiser a quem
inquit, "aduersus Caesarem?" 5Relegatis eu bem entender.”. 4Quando estava para
sororibus non solum insulas habere se, sed matar o irmão, de quem suspeitava ter-se
etiam gladios minabatur.
uirum
ex
secessu
6
Praetorium munido de um antídoto, por medo de ser
Anticyrae,
quam envenenado, disse: “Existe antídoto contra
ualitudinis causa petierat, propagari sibi César?”. 5Ameaçava as irmãs exiladas
commeatum saepius desiderantem cum escrevendo-lhes que “não tinha apenas
mandasset interimi, adiecit necessariam ilhas, mas também espadas”. 6Depois de
esse sanguinis missionem, cui tam diu non ter mandado matar a um pretor que pedia
prodesset elleborum. 7Decimo quoque die frequentemente que se estendesse seu
numerum
puniendorum
ex
custodia retiro em Anticíra, aonde tinha ido para
subscribens rationem se purgare dicebat. cuidar da saúde, acrescentou “que era
Gallis Graecisque aliquot uno tempore necessária uma sangria, a quem não pode
condemnatis gloriabatur Gallograeciam se aproveitar tão longo tratamento com
subegisse.
heléboroLXXXVIII”.
7
Quando assinava, a
cada dez dias, a lista de prisioneiros que
seriam executados, dizia estar “fechando a
conta”. 8Tendo condenado de uma só vez
vários prisioneiros gauleses e gregos,
gabou-se
de
“ter
conquistado
Galogrécia”.
“Adiatrepsia”, um conceito relacionado ao estoicismo, que diz respeito à atitude de imobilidade
diante dos fatos da vida.
LXXXVIII
Planta medicinal muito utilizada na antiguidade para o tratamento de doenças mentais.
LXXXVII
a
82
XXX. 1Non temere in quemquam nisi XXX. 1Não admitia que qualquer um fosse
crebris et minutis ictibus animaduerti executado senão por meio de pequenos e
passus
est,
perpetuo
notoque
iam numerosos
golpes,
continuamente
praecepto: "Ita feri ut se mori sentiat." expressando a conhecida ordem: “Mata-o
2
Punito per errorem nominis alio quam de modo que ele se sinta morrer.”. 2Tendo
quem destinauerat, ipsum quoque paria um
homem
diferente
daquele
que
meruisse dixit. 3Tragicum illud subinde designara sido punido por uma confusão
iactabat:
entre nomes, ele disse que o próprio
Oderint, dum metuant.
merecia
3
semelhante
Frequentemente
dizia
castigo.
estes
versos
4
Saepe in cunctos pariter senatores ut trágicos:
Seiani clientis, ut matris ac fratrum
“Que me odeiem, desde que me
suorum delatores, inuectus est prolatis
libellis,
quos
defensaque
crematos
Tiberi
necessaria,
saeuitia
quasi
4
Frequentemente se voltava a todos os
criminantibus senadores, chamando-os de clientes de
credendum esset. 5Equestrem ordinem ut Sejano, de delatores de sua mãe e seus
scaenae harenaeque deuotum assidue irmãos, trazendo à tona os documentos,
proscidit.
aduersus
cum
temam.LXXXIX”
simulauerat,
6
Infensus
studium
tot
turbae
suum
fauenti que ele fingira ter queimadoXC, e defendia
exclamauit: a crueldade de Tibério como se fosse
"Vtinam P. R. unam ceruicem haberet!" necessária, em vista de quantos o
7
Cumque Tetrinius latro postularetur, et acusavam de ser cruel. 5Muitas vezes
qui postularent, Tetrinios esse ait. 8Retiari atacou a ordem equestre, dizendo serem
tunicati quinque numero gregatim devotos da arena e do palco. 6Irritado com
dimicantes sine certamine ullo totidem a turba que favorecia a um opositor, ele
secutoribus succubuerant; cum occidi disse: “Quem dera o povo romano tivesse
iuberentur, unus resumpta fuscina omnes um só pescoço!”. 7Como o bandido
uictores interemit: hanc ut crudelissimam Tetrínio tivesse sido processado, ele disse
caedem et defleuit edicto et eos, qui que “também os que o acusaram são
spectare sustinuissent, execratus est.
Tetrínios”. 8Um grupo de cinco retiários
LXXXIX
XC
Fragmento de uma peça de Ácio, autor do período republicano.
Cf. nota XXXVIII.
83
vestidos de túnicasXCI, lutando em grupo
contra
o
mesmo
número
de
perseguidoresXCII foram vencidos em
combate sem qualquer resistência; quando
se mandou que fossem mortos, um deles,
pegando novamente o tridente, matou
todos os vencedores: Calígula lamentou
este fato como uma crudelíssima matança
através de um édito e lançou imprecações
contra aqueles que haviam assistido ao
espetáculoXCIII.
XXXI. Queri etiam palam de condicione XXXI. Costumava lamentar-se também
temporum suorum solebat, quod nullis publicamente do estado das coisas de seu
calamitatibus
publicis
insignirentur; tempo, que não era marcado por quaisquer
Augusti principatum clade Variana, Tiberi grandes calamidades, que o principado de
ruina
spectaculorum
apud
Fidenas Augusto tinha sido marcado pelo desastre
memorabilem factum, suo obliuionem de VaroXCIV, o de Tibério fora feito
imminere
prosperitate
rerum;
atque memorável pelo desmoronamento do
identidem exercituum caedes, famem, anfiteatro em FidenasXCV, enquanto o seu
pestilentiam, incendia, hiatum aliquem ameaçava ser esquecido por conta da
terrae optabat.
prosperidade. E repetidamente desejava o
massacre dos exércitos, a fome, a peste,
incêndios ou algum terremoto.
Os retiarii tunicati eram aparentemente prisioneiros de caráter efeminado, destinados a servir de “alívio
cômico” durante as lutas. Numa sátira de Juvenal, Graco, um personagem da nobreza, luta como um desses
gladiadores, e é vituperado pelo autor (Juv. VIII, 200). Como os retiarii originais, usavam a rede e o tridente
como suas principais armas, além de uma manga de metal que lhes cobria o braço. Lutavam com a face à
mostra.
XCII
Os secutores eram um tipo de gladiador armado de espada, escudo, capacete e grevas.
XCIII
É difícil explicar a revolta de Calígula com o ocorrido, mas ela possivelmente deriva do papel atribuído
aos retiarii tunicati: eles não deveriam vencer os combates de que participavam.
XCIV
Referência ao episódio da perda das três legiões (XVII, XVIII e XIX) sob comando de Públio Quintílio
Varo, que foram massacradas na floresta de Teutoburgo, na Germânia.
XCV
Relatado por Suetônio em Tib. XL, esse desastre teria ceifado a vida de vinte mil pessoas.
XCI
84
1
XXXII.
quoque remittenti XXXII. 1Mesmo enquanto relaxava, e se
Animum
ludoque et epulis dedito eadem factorum dedicava aos jogos e aos banquetes, ainda
dictorumque saeuitia aderat. 2Saepe in mostrava a mesma crueldade nos atos e
conspectu prandentis uel comisantis seriae nas palavras. 2Frequentemente questões
quaestiones per tormenta habebantur, sérias eram respondidas através de tortura
miles decollandi artifex quibuscumque e diante dele, enquanto jantava ou se
custodia
capita
3
amputabat.
Puteolis entregava a orgias, e um soldado
dedicatione pontis, quem excogitatum ab especialista em decapitações cortava as
eo significauimus, cum multos e litore cabeças de todos os prisioneiros. 3Durante
inuitasset
ad
se,
praecipitauit,
repente
quosdam
omnis a inauguração da ponte em Putéoli, que
gubernacula dissemos ter sido planejada por ele, como
apprehendentes contis remisque detrusit in chamasse para si muitas pessoas que
mare. 4Romae publico epulo seruum ob estavam à margem, de repente as fez cair
detractam
lectis
argenteam
laminam ao mar, e as empurrou com varas e remos
carnifici confestim tradidit, ut manibus enquanto elas se agarravam ao leme.
abscisis atque ante pectus e collo
pendentibus,
praecedente
titulo
4
Durante um banquete público em Roma,
qui levou um escravo imediatamente ao
causam poenae indicaret, per coetus carrasco por ter roubado de dentre os leitos
epulantium
5
circumduceretur. uma bandeja de prata e fez com que ele
Murmillonem e ludo rudibus secum circulasse entre os que se banqueteavam
battuentem et sponte prostratum confodit com as mãos decepadas em frente ao
ferrea sica ac more uictorum cum palma peito, penduradas ao pescoço, precedido
discucurrit.
6
Admota altaribus uictima de um escrito que indicava a causa de sua
succinctus poparum habitu elato alte punição. 5Atravessou com um punhal de
malleo cultrarium mactauit.
7
Lautiore ferro um mirmilãoXCVI do colégio dos
conuiuio effusus subito in cachinnos gladiadores que lutava com ele usando
consulibus, qui iuxta cubabant, quidnam espadas de madeira, quando este se jogou
rideret
blande
quaerentibus:
"Quid," ao chão de propósito, e começou a correr
com a palma na mão, à maneira dos
XCVI
O murmillo era um gladiador que se utilizada de um elmo adornado com a figura de um peixe. Era
muitas vezes colocado para lutar com o retiarius, criando-se assim uma representação da atividade de pesca.
85
inquit, "nisi uno meo nutu iugulari vencedores. 6Tendo sido levada ao altar
utrumque uestrum statim posse?"
uma vítima, ele, vestido como popaXCVII,
erguendo bem alto o martelo, sacrificou o
cutileiroXCVIII. 7Durante um banquete mais
luxuoso, começou a rir de repente e sem
parar. Como os cônsules que estavam ao
seu
lado
tivessem
perguntado
educadamente por que ele ria, respondeu:
“Pelo que mais, se não pelo fato de que,
com um aceno de minha cabeça, cada um
de vocês pode ser degolado?”
XXXIII. 1Inter uarios iocos, cum assistens XXXIII.
simulacro
Iouis
Apellen
1
Dentre
seus
variados
tragoedum gracejosXCIX, certa vez, colocando-se ao
consuluisset uter illi maior uideretur, lado de uma estátua de Júpiter, perguntou
cunctantem flagellis discidit conlaudans a um ator trágico chamado Apeles qual
subinde uocem deprecantis quasi etiam in dos dois lhe parecia maior. Como ele
gemitu praedulcem. 2Quotiens uxoris uel hesitasse, mandou rasgá-lo com chicotes,
amiculae collum exoscularetur, addebat: em seguida elogiando sua voz enquanto
"tam bona ceruix simul ac iussero ele suplicava, como se fosse agradável
demetur." Quin et subinde iactabat mesmo quando ele gemiaC. 2Todas as
exquisiturum se uel fidiculis de Caesonia vezes em que beijava o pescoço da esposa
sua, cur eam tanto opere diligeret.
ou das amantes, dizia: “Tão bela cabeça
será cortada, assim que eu tiver dado a
ordem”.
3
Mais
do
que
isso,
frequentemente dizia “que procuraria
XCVII
Popa, sacerdote encarregado de matar as vítimas com um golpe na cabeça.
Cultrarius, o ajudante do popa, era responsável por cortar a garganta das vítimas com uma lâmina.
XCIX
Nesse trecho vê-se como Calígula temperava suas crueldades com uma espécie de humor pervertido.
C
Há uma piada cruel subentendida aqui: “Apeles” pode ser entendido como o “sem-pele” (a+pellis).
Calígula ordenou que sua pele fosse rasgada com os flagelos.
XCVIII
86
descobrir até mesmo com tortura de sua
amada Cesônia por que a amava tanto”.
XXXIV.
1
Nec
minore
liuore
ac XXXIV. 1E com invejaCI e malignidade
malignitate quam superbia saeuitiaque não menor que sua soberba e crueldade,
paene aduersus omnis aeui hominum lançou-se contra os homens de todos os
genus grassatus est.
2
Statuas uirorum tempos. 2De tal forma destruiu e inutilizou
inlustrium ab Augusto ex Capitolina area as estátuas de homens ilustres que haviam
propter angustias in campum Martium sido levadas da praça do Capitólio para o
conlatas ita subuertit atque disiecit ut Campo de Marte por Augusto, por falta de
restitui
saluis
titulis
non
potuerint, espaço, que elas não puderam ser
uetuitque posthac uiuentium cuiquam reconstituídas
com
suas
inscrições
usquam statuam aut imaginem nisi inteiras. E proibiu que dali em diante se
consulto et auctore se poni. 3Cogitauit fizesse qualquer estátua ou imagem de
etiam de Homeri carminibus abolendis, qualquer pessoa ainda viva, sem consulta
cur enim sibi non licere dicens, quod e ordem dele. 3Pensou até mesmo de abolir
Platoni licuisset, qui eum e ciuitate quam os poemas de Homero, dizendo “Por que
constituebat eiecerit? 4Sed et Vergili ac não me será permitido fazer o que foi
Titi Liui scripta et imagines paulum afuit permitido a Platão, que o expulsou da
quin ex omnibus bibliothecis amoueret, cidade que ele havia idealizado?”. 4E por
quorum
alterum
minimaeque
ut
nullius
doctrinae,
ingenii pouco não removeu os escritos e imagens
alterum
ut de Virgílio e Tito Lívio de todas as
uerbosum in historia neglegentemque bibliotecas, os quais repreendia dizendo
carpebat. 5De iuris quoque consultis, quasi que o primeiro não tinha qualquer gênio
scientiae eorum omnem usum aboliturus, ou instrução, e que o segundo era prolixo
saepe iactauit se mehercule effecturum ne e negligente com a história. 5Quanto aos
quid respondere possint praeter eum.
jurisconsultos, quase como se estivesse
para abolir todo o uso do conhecimento
deles, frequentemente dizia “por Hércules,
CI
Aqui serão relatados os atos ligados à inveja que Calígula sentia da glória alheia, mesmo daqueles que já
haviam morrido.
87
farei com que não possam dar consultas
que sejam contrárias a mim”.
1
XXXV.
Vetera
familiarum
insignia XXXV. 1Ele retirou as velhas insígnias de
nobilissimo cuique ademit, Torquato família dos homens mais nobres: o colar a
torquem, Cincinnato crinem, Cn. Pompeio TorquatoCII, a cabeleira a CincinatoCIII, e o
stirpis
2
antiquae
cognomen. sobrenome Magno a Cneu PompeuCIV,
Magni
Ptolemaeum, de quo rettuli, et arcessitum que pertencia a essa antiga linhagem.
e regno et exceptum honorifice, non alia
2
Matou de repente a Ptolomeu, de quem já
de causa repente percussit, quam quod falei, que ele havia mandado trazer de seu
edente se munus ingressum spectacula reino e recebido com honras, por nenhuma
conuertisse hominum
oculos fulgore outra causa que não o fato de que, quando
purpureae abollae animaduertit. 3Pulchros entrou num anfiteatro em que oferecia
et comatos, quotiens sibi occurrerent, jogos públicos, percebeu que os olhos das
occipitio raso deturpabat. 4Erat Aesius pessoas se voltaram a ele por causa do
Proculus patre primipilari, ob egregiam fulgor de seu manto púrpura. 3Sempre que
corporis
amplitudinem
Colosseros
dictus;
hunc
et
speciem encontrava homens belos e com belas
spectaculis cabeleiras, tornava-os feios raspando-lhes
detractum repente et in harenam deductum a parte de trás da cabeçaCV. 4Havia um
Thraeci et mox hoplomacho comparauit homem, filho de centurião, chamado Ésio
bisque uictorem constringi sine mora Próculo,
iussit
et
pannis
obsitum
conhecido
como
uicatim “Colosseros”CVI, por sua aparência e pelo
circumduci ac mulieribus ostendi, deinde tamanho de seu corpo; a este, arrastado de
iugulari. 5Nullus denique tam abiectae seu lugar na plateia, e levado à arena,
condicionis tamque extremae sortis fuit,
CII
Tito Mânlio Torquato venceu um gaulês em combate singular e retirou-lhe o colar de ouro como prêmio,
assumindo o sobrenome Torquatus, “aquele que carrega um colar”, que foi passado aos seus descendentes.
CIII
Lúcio Quinto Cincinato, ditador romano do V século a.C., ficou conhecido por sua falta de ambição
pessoal e virtude cívica, por ter renunciado à ditadura quando esta já não era mais necessária, efetivamente
renunciando ao governo absoluto de Roma. Cincinnatus significa “de cabelos anelados”.
CIV
Cneu Pompeu Magno foi aliado de Júlio César e mais tarde, durante as guerras civis, seu rival. Suas
conquistas militares lhe renderam o sobrenome Magnus, “grande”.
CV
A tradição diz que Calígula sofreu de calvície.
CVI
“Colosso” e “Eros” ao mesmo tempo. Tratava-se de um homem grande e belo.
88
cuius
6
non
commodis
obtrectaret. Calígula fez confrontar um trácioCVII e em
Nemorensi regi, quod multos iam annos seguida um hoplómacoCVIII, e mandou,
poteretur
sacerdotio,
ualidiorem quando ele venceu os dois combates, que
aduersarium subornauit. 7Cum quodam fosse amarrado imediatamente, coberto de
die
muneris
prosperam
essedario
pugnam
Porio
seruum
post trapos, conduzido por todas as ruas e
suum mostrado às mulheres, e depois degolado.
manumittenti studiosius plausum esset, ita
5
Não houve ninguém de condição tão
proripuit se spectaculis, ut calcata lacinia abjeta ou de tão má sorte, que ele não
togae
praeceps
per
gradus
iret, tenha
atacado
indignabundus et clamitans dominum privilégios.
6
por
inveja
de
seus
Contratou um adversário
gentium populum ex re leuissima plus mais forte para matar o rei do BosqueCIX,
honoris
gladiatori
tribuentem
quam uma vez que este já ocupava o cargo havia
consecratis principibus aut praesenti sibi.
muitos anos. 7Quando certo dia, durante os
jogos, o essedárioCX Pório, que libertara
seu escravo depois de uma luta favorável,
tinha
sido
aplaudido
com
muito
entusiasmo, ele se arrancou da plateia tão
repentinamente que, pisando na aba da
toga, caiu pelos degraus de cabeça para
baixo, gritando e cheio de indignação
“contra o povo, senhor das gentes, que
pela coisa mais leve concedia mais honras
a um gladiador do que aos príncipes
divinizados e a ele próprio ali presente”.
CVII
O Thraex era um tipo de gladiador que se utilizada de escudo e punhal semelhantes àqueles utilizados
pelo povo trácio.
CVIII
O Hoplomachus era um gladiador que usava armadura completa (normalmente os gladiadores só
usavam algumas partes de armadura, cobrindo a cabeça e ora os braços, ora as pernas).
CIX
O rex nemorensis era o sumo-sacerdote de Diana de Arícia, deusa que era cultuada no bosque sagrado
(nemus) de Arícia. Segundo o costume, qualquer um poderia ocupar este cargo, desde que fosse um escravo
fugitivo e matasse seu antecessor.
CX
O essedarius era um gladiador que combatia sobre um carro de guerra.
89
XXXVI. 1Pudicitiae neque suae neque XXXVI. 1Não respeitou nem seu pudor,
alienae
pepercit.
Mnesterem
2
M.
Lepidum, nem o de outrosCXI.
2
Diz-se que M.
quosdam Lépido, o pantomimo MnesterCXII, e
pantomimum,
obsides dilexisse fertur commercio mutui alguns reféns foram seus amantes em
3
stupri.
Valerius
Catullus,
consulari mútua
relação
familia iuuenis, stupratum a se ac latera CatuloCXIII,
desonrosa.
jovem
de
3
uma
Valério
família
sibi contubernio eius defessa etiam consular, vociferou que tinha mantido
uociferatus est. 4Super sororum incesta et relações com Calígula e que seus flancos
notissimum prostitutae Pyrallidis amorem estavam cansados de tanto se deitar com
non
temere
ulla
inlustriore
femina ele. 4Além das relações incestuosas com as
abstinuit. 5Quas plerumque cum maritis ad irmãs e sobretudo com a prostituta
cenam uocatas praeterque pedes suos Pirálide, não se absteve de modo algum de
transeuntis diligenter ac lente mercantium quaisquer das mulheres mais ilustres. 5As
more considerabat, etiam faciem manu quais,
várias
vezes,
quando
eram
adleuans, si quae pudore submitterent; chamadas para jantar junto com seus
quotiens
deinde
triclinio,
cum
libuisset
egressus maridos, avaliava diligentemente como
maxime
placitam um mercador enquanto passavam junto ao
seuocasset, paulo post recentibus adhuc seu leito, até mesmo erguendo suas faces
lasciuiae notis reuersus uel laudabat palam com a mão, se alguma delas a abaixava por
uel uituperabat, singula enumerans bona pudor; e sempre que queria, ele deixava o
malaue
6
atque
concubitus. triclínioCXIV, chamando aquela que mais
absentium
maritorum havia lhe agradado e, voltando pouco
corporis
Quibusdam
nomine repudium ipse misit iussitque in depois com sinais de recente lascívia,
acta ita referri.
abertamente
elogiava
ou
criticava,
enumerando cada um dos pontos fortes e
fracos do corpo e do desempenho da
mulher. 6Para algumas mandou ele próprio
CXI
Trata-se aqui da impudicícia de Calígula.
A pantomima não era uma arte bem vista pelos romanos, tanto por ser de origem grega como por seu
caráter efeminado.
CXIII
Possível descendente do poeta Catulo, e, segundo o próprio Suetônio, ele mesmo um autor, só que de
mimos.
CXIV
Salão de banquetes onde eram realizados os convivia. Era mobiliado com três leitos, sobre os quais se
deitavam os convivas, em número máximo de nove.
CXII
90
uma carta de repúdio em nome dos
maridos ausentes, e mandou que constasse
nas atas públicas.
XXXVII. 1Nepotatus sumptibus omnium XXXVII.
1
Sua extravagânciaCXV em
prodigorum ingenia superauit, commentus relação às despesas superou os talentos
nouum balnearum usum, portentosissima dos
homens
mais
pródigos,
tendo
genera ciborum atque cenarum, ut calidis inventado um novo uso para os banhos, e
frigidisque
unguentis
lauaretur, tipos extravagantes de jantares e refeições,
pretiosissima margarita aceto liquefacta banhando-se em óleos perfumados frios e
sorberet, conuiuis ex auro panes et quentes, bebendo pérolas preciosíssimas
obsonia apponeret, aut frugi hominem dissolvidas em vinagreCXVI, colocando
esse oportere dictitans aut Caesarem. diante de seus convidados pães e outros
2
Quin et nummos non mediocris summae alimentos feitos de ouro, dizendo que ‘um
e fastigio basilicae Iuliae per aliquot dies homem ou deve ser sóbrio ou ser César’.
sparsit in plebem. 3Fabricauit et deceris
Liburnicas
gemmatis
2
E durante alguns dias até jogou para a
puppibus, plebe, do alto da basílica Júlia, uma
uersicoloribus uelis, magna thermarum et considerável soma de moedas. 3Também
porticuum
et
tricliniorum
laxitate fabricou navios libúrnicosCXVII de dez
magnaque etiam uitium et pomiferarum fileiras de remos, com popas recobertas de
arborum uarietate; quibus discumbens de pedras preciosas, velas de cores variadas,
die inter choros ac symphonias litora com grandes espaços para banhos, galerias
Campaniae peragraret. 4In exstructionibus e triclínios, e ainda com grande variedade
praetoriorum atque uillarum omni ratione de vinhas e árvores frutíferas, navios nos
posthabita
nihil
tam
efficere quais ele, entre concertos e danças,
concupiscebat quam quod posse effici reclinava-se durante o dia enquanto
negaretur. 5Et iactae itaque moles infesto percorria as praias da Campânia. 4Nas
CXV
É preciso entender as diferenças que Suetônio traz à tona entre liberalitas e nepotatus. A primeira é
uma virtude dos imperadores, que devem ser pródigos, dispostos a gastar dinheiro com seu povo. A segunda
é a extravagância, um vício, o gasto excessivo com aquilo que só diz respeito a si mesmo.
CXVI
A tradição atribui essa prática primeiramente à Cleópatra, que teria feito uma aposta com Marco
Antônio sobre quanto dinheiro ela poderia gastar num único banquete.
CXVII
Originários da Libúrnia, na Ilíria.
91
ac profundo mari et excisae rupes edificações de palácios e de casas de
durissimi silicis et campi montibus aggere campo, desprezando toda contabilidade,
aequati et complanata fossuris montium nada mais desejava fazer do que aquilo
iuga, incredibili quidem celeritate, cum que se dizia ser impossível. 5E assim
6
Ac ne foram colocados diques no mar profundo
immensas
opes e hostil, destruídas as rochas mais duras,
morae culpa capite lueretur.
singula
enumerem,
totumque illud Ti. Caesaris uicies ac igualados em altura os campos aos
septies milies sestertium non toto uertente montes, com aterro, e terraplanados os
anno absumpsit.
cumes dos montes, com escavações, numa
velocidade verdadeiramente incrível, já
que o atraso era punido com a morte. 6E,
para não falar de cada gasto, esgotou em
menos de um ano imensas riquezas, e
todos os dois bilhões e setecentos milhões
de sestércios de Tibério.
XXXVIII. 1Exhaustus igitur atque egens XXXVIII.
ad rapinas conuertit animum uario et necessitado,
1
Estando, pois, exaurido e
voltou
sua
atenção
à
exquisitissimo calumniarum et auctionum pilhagemCXVIII, com variado e requintado
et uectigalium genere.
2
Negabat iure gênero de calúnias, leilões e impostos.
ciuitatem Romanam usurpare eos, quorum
maiores
sibi
posterisque
2
Não permitia gozar o direito da cidadania
eam romana àqueles cujos antepassados o
impetrassent, nisi si filii essent, neque haviam conquistado para si e para sua
enim intellegi debere "posteros" ultra hunc posteridade, a não ser que fossem os filhos
gradum; prolataque Diuorum Iuli et destes, e dizia que não se devia entender
Augusti diplomata ut uetera et obsoleta ‘posteridade’ como nada para além desse
deflabat. 3Arguebat et perperam editos grau; e quando alguém lhe apresentava
census, quibus postea quacumque de documentos do Divino Júlio e do Divino
causa quicquam incrementi accessisset. Augusto, desprezava-os como antigos e
4
Testamenta primipilarium, qui ab initio obsoletos. 3E também acusava de terem
CXVIII
Nessa rubrica, Suetônio fala das rapinae de Calígula.
92
Tiberi principatus neque illum neque se declarado falsamente sua riqueza aqueles
heredem reliquissent, ut ingrata rescidit; que, depois de o terem declarado, tivessem
item
ceterorum
ut
irrita
et
uana, acrescentado o que quer que fosse de
quoscumque quis diceret herede Caesare aumento sob qualquer justificativaCXIX.
mori destinasse. 5Quo metu iniecto cum
4
Os testamentos dos centuriões, que nada
iam et ab ignotis inter familiares et a deixaram a ele ou a Tibério desde o início
parentibus inter liberos palam heres do principado deste, anulou sob pretexto
nuncuparetur, derisores uocabat, quod de ingratidão; e da mesma forma anulou o
post nuncupationem uiuere perseuerarent, testamento das demais pessoas, sob
et
6
multis
uenenatas
matteas
misit. pretexto de serem vazios e sem efeito, se
Cognoscebat autem de talibus causis, houvesse alguém que dissesse que elas
taxato prius modo summae ad quem haviam designado César como
conficiendum
confecto herdeiro. 5Razão pela qual, provocado o
consideret,
demum excitabatur.
7
seu
Ac ne paululum medo, já era nomeado abertamente como
quidem morae patiens super quadraginta herdeiro pelos estranhos entre seus amigos
reos quondam ex diuersis criminibus una íntimos e pelos pais entre seus filhos, os
sententia condemnauit gloriatusque est quais ele chamava de aduladores, porque
expergefacta e somno Caesonia quantum insistiam em continuar vivos depois de
egisset, dum ea meridiaret.
proposita
8
Auctione nomeá-lo, e a muitos enviou guloseimas
omnium envenenadas. 6Ele instruía o processo de
reliquias
spectaculorum subiecit ac uenditauit, tais
causas,
tendo
já
estabelecido
exquirens per se pretia et usque eo previamente a soma que considerasse que
extendens, ut quidam immenso coacti se deveria atingir, e somente depois de
quaedam emere ac bonis exuti uenas sibi atingida tal soma ele se retirava. 7E para
inciderent.
Saturnino
9
Nota
res
est,
Aponio que não se demorasse nem um pouco,
inter subsellia dormitante, certa
vez
condenou
quarenta
réus
monitum a Gaio praeconem ne praetorium acusados de crimes diferentes à mesma
uirum crebro capitis motu nutantem sibi sentença, e se vangloriou dizendo a
praeteriret, nec licendi finem factum, Cesônia, despertada do sono, ‘o quanto ele
quoad tredecim gladiatores sestertium havia
nonagies ignoranti addicerentur.
CXIX
8
feito,
enquanto
ela
dormia’.
Organizando um leilão, ele expôs e
O que lhe dava o direito de confiscar as propriedades dos supostos criminosos.
93
vendeu as coisas que restavam de todos os
espetáculos, solicitando os preços ele
mesmo, e aumentando-os a tal ponto, que
alguns que foram coagidos a comprar
algumas coisas por um preço imenso e
tiveram seus bens esgotados cortaram as
próprias veias. 9É conhecida a história de
Apônio Saturnino, que cochilava nos
bancos. Caio tinha avisado ao pregoeiro
que não deixasse de lado o pretor que lhe
acenava frequentemente com a cabeça, e o
leilão não chegou ao fim até que fossem
atribuídos ao pretor desavisado treze
gladiadores vendidos por nove milhões de
sestércios.
XXXIX.
1
damnatarum
In
Gallia
sororum
quoque,
ornamenta
cum XXXIX. 1Também na Gália, depois de ter
et vendido os ornamentos, móveis, escravos
supellectilem et seruos atque etiam e até mesmo os libertos de suas irmãs
libertos immensis pretiis uendidisset, condenadas por imensas quantiasCXX,
inuitatus lucro, quidquid instrumenti incitado pelo lucro, mandou trazer da
ueteris aulae erat ab urbe repetiit, cidade tudo o que havia de material do
comprensis ad deportandum meritoriis antigo palácio, tomando veículos alugados
quoque
uehiculis
et
pistrinensibus e os jumentos dos moinhos para o
iumentis, adeo ut et panis Romae saepe transporte, de modo que, por vezes, faltou
deficeret et litigatorum plerique, quod pão a Roma, e muitos perderam a causa de
occurrere absentes ad uadimonium non seus processos, porque não podiam
possent, causa caderent. 2Cui instrumento comparecer às suas obrigações. 2E para
distrahendo nihil non fraudis ac lenocinii vender esse material não fez uso de nada
CXX
Desde o período republicano, a propriedade dos condenados era confiscada pelo ditador e mais tarde
pelo imperador. Esse processo, no entanto, era muitas vezes visto com desconfiança.
94
adhibuit,
modo
auaritiae
singulos além de fraudes e janotice, ora censurando
increpans et quod non puderet eos cada um dos compradores de não se
locupletiores
esse
quam
se,
modo envergonharem de serem mais ricos do
paenitentiam simulans quod principalium que ele, ora fingindo ter pena de tornar em
rerum
3
priuatis
Compererat
copiam
prouincialem
faceret. objetos de particulares as coisas que
locupletem pertenceram ao príncipe.
3
Tinha sido
ducenta sestertia numerasse uocatoribus, informado de que um rico provincial tinha
ut per fallaciam conuiuio interponeretur, oferecido duzentos mil sestércios aos seus
nec tulerat moleste tam magno aestimari escravos, para que fosse admitido em seu
honorem cenae suae; huic postero die banquete clandestinamente, e não achou
sedenti in auctione misit, qui nescio quid ruim que alguém tivesse em tão alta estima
friuoli ducentis milibus traderet diceretque a honra de estar presente ao seu jantar; no
cenaturum apud Caesarem uocatu ipsius.
dia seguinte, fez com que este mesmo
homem, que estava num leilão, pagasse
duzentos mil sestércios por qualquer coisa
de frívolo e lhe disse que jantaria com
César, a convite do próprio.
XL.
1
Vectigalia noua atque inaudita XL. 1Cobrou impostos novos e jamais
primum per publicanos, deinde, quia vistosCXXI, primeiro pelos publicanos, e
lucrum
exuberabat,
per
centuriones daí, como o lucro era abundante, pelos
tribunosque praetorianos exercuit, nullo centuriões e tribunos pretorianos, sem
rerum aut hominum genere omisso, cui deixar de lado nenhum gênero de coisa ou
non
tributi
aliquid
imponeret.
2
Pro pessoa a quem não tivesse imposto um
edulibus, quae tota urbe uenirent, certum tributo. 2Aos comestíveis, que vinham de
statumque exigebatur; pro litibus ac toda a cidade, exigia-se uma cobrança fixa
iudiciis
ubicumque
conceptis e estabelecida; nos litígios e processos
quadragesima summae, de qua litigaretur, judiciais,
onde
quer
que
fossem
nec sine poena, si quis composuisse uel realizados, exigia-se a quadragésima parte
donasse
CXXI
negotium
conuinceretur;
ex da soma em disputa, e não sem punições
Esta nova rubrica, ainda ligada às rapinae, trata dos impostos injustos de Calígula.
95
gerulorum diurnis quaestibus pars octaua; para aqueles que ficasse comprovado
ex
capturis
quaeque
prostitutarum
quantum terem entregado ou deixado de lado a
concubitu
mereret; causa; exigia-se a oitava parte dos ganhos
uno
additumque ad caput legis, ut tenerentur diários dos carregadores; dos proveitos
publico
et
lenocinium
quae
meretricium
fecissent,
nec
quiue das prostitutas, o quanto cada uma delas
non
matrimonia obnoxia essent.
et conseguia a cada encontro; havia um
acréscimo
à
enquadrados
lei,
para
nesse
que
fossem
imposto
público
aqueles que já tivessem trabalhado como
prostitutas ou proxenetas, e também os
casamentos ficavam submetidos a ele.
XLI.
1
Eius modi uectigalibus indictis XLI.
2
Anunciados
desse
modo
os
neque propositis, cum per ignorantiam impostos, mas não afixados, como muitas
scripturae multa commissa fierent, tandem infrações tivessem sido cometidas por
flagitante populo proposuit quidem legem, ignorância do texto, afixou a cobrança a
sed et minutissimis litteris et angustissimo pedido do povo, mas em letras minúsculas
loco, uti ne cui describere liceret. 2Ac ne e num lugar escondido, para que ninguém
quod non manubiarum genus experiretur, as pudesse copiar.
2
E para que não
lupanar in Palatio constituit, districtisque deixasse de experimentar todo tipo de
et instructis pro loci dignitate compluribus pilhagem, construiu um prostíbulo no
cellis, in quibus matronae ingenuique palácio, com diversos cômodos separados
starent, misit circum fora et basilicas e mobiliados de acordo com a dignidade
nomenculatores
ad
inuitandos
ad do lugar, nos quais se encontravam
libidinem iuuenes senesque; praebita matronas e rapazes jovens, e enviou seus
aduenientibus
appositique
pecunia
qui
nomina
faenebris escravosCXXII pelos fóruns e basílicas para
palam convidar os jovens e os velhos à
subnotarent, quasi adiuuantium Caesaris libertinagem.
Oferecia
dinheiro
reditus. 3Ac ne ex lusu quidem aleae emprestado aos que vinham e mandava
CXXII
Esses escravos são chamados por Suetônio de nomenculatores, um tipo de escravo de companhia cujo
dever era lembrar aos seus senhores o nome das pessoas.
96
compendium spernens plus mendacio que
atque
etiam
periurio
lucrabatur.
seus
Et abertamente,
nomes
fossem
como
se
anotados
fossem
quondam proximo conlusori demandata contribuintes da renda de CésarCXXIII. 3E
uice sua progressus in atrium domus, cum não desprezando mesmo o lucro dos jogos
praetereuntis duos equites R. locupletis de dados, ainda por cima ganhava por
sine mora corripi confiscarique iussisset, meio da mentira e até mesmo do perjúrio.
exultans rediit gloriansque numquam se E certa vez, dando a vez a um jogador que
prosperiore alea usum.
estava perto dele, saiu ao átrio da casa e
viu dois cavaleiros romanos ricos, os quais
sem demora mandou que fossem presos e
tivessem seus bens confiscados, e voltou
ao jogo exultante, e gabando-se de que
‘nunca tinha tido tamanha sorte nos
dados’.
XLII. 1Filia uero nata paupertatem nec iam XLII. 1Nascida sua filhaCXXIV, queixandoimperatoria modo sed et patria conquerens se de sua pobreza e não apenas das
onera conlationes in alimonium ac dotem despesas de governante, mas também das
puellae recepit. 2Edixit et strenas ineunte de pai, aceitou contribuições para o
anno se recepturum stetitque in uestibulo sustento e para constituir o dote da
aedium Kal. Ian. ad captandas stipes, quas menina. 2Também divulgou que receberia
plenis ante eum manibus ac sinu omnis presentes de ano novo, e ficou de pé na
generis
turba
fundebat.
3
Nouissime entrada das casas no primeiro dia de
contrectandae pecuniae cupidine incensus, janeiro para receber o pagamento, que a
saepe super immensos aureorum aceruos turba de todo tipo de gente diante dele lhe
patentissimo diffusos loco et nudis jogava com as mãos cheias ou tirando da
pedibus
spatiatus
et
aliquamdiu uolutatus est.
CXXIII
toto
corpore toga. 3Por fim, aceso pelo desejo de tocar
o dinheiro, muitas vezes caminhou de pés
Dião Cássio faz um relato diferente: segundo ele, esses membros da aristocracia não foram
prostituídos, mas apenas forçados a viver no palácio pagando uma quantia exorbitante em troca, embora,
segundo o próprio autor, alguns o tenham feito espontaneamente (Dio. LIX. 21)
CXXIV
Júlia Drusila, a filha de Cesônia.
97
descalços sobre montes de moedas de ouro
espalhadas num vasto espaço ou rolou
sobre elas com todo o corpoCXXV.
XLIII. 1Militiam resque bellicas semel XLIII.
1
Teve apenas uma experiência
attigit neque ex destinato, sed cum ad militarCXXVI,
e
não
de
propósito
uisendum nemus flumenque Clitumni deliberado, mas quando tinha ido à
Meuaniam processisset, admonitus de MevâniaCXXVII para ver o bosque e o rio de
supplendo numero Batauorum, quos circa Clitumno, advertido de que deveria
se habebat, expeditionis Germanicae completar
impetum cepit;
2
o
número
de
soldados
neque distulit, sed batavosCXXVIII, que trazia ao seu redor,
legionibus et auxiliis undique excitis, tomou o impulso de fazer uma expedição
dilectibus
ubique
acerbissime
actis, à Germânia; 2e sem fazer diferença, reuniu
contracto et omnis generis commeatu legiões e tropas auxiliares vindas de toda
quanto numquam antea, iter ingressus est parte, recrutados em todo lugar e
confecitque modo tam festinanter et conduzidos com grande rigor, e arrecadou
rapide, ut praetorianae cohortes contra mantimentos de todo tipo em quantidade
morem signa iumentis imponere et ita jamais vista, pôs-se a caminho e saiu com
subsequi
cogerentur,
segniter
delicateque,
interdum
ut
adeo tanta pressa e rapidez que as coortes
octaphoro pretorianas puseram suas insígnias sobre
ueheretur atque a propinquarum urbium os jumentos – o que era contrário ao
plebe uerri sibi uias et conspergi propter costume – e assim foram obrigadas a
puluerem exigeret.
acompanhá-lo. Às vezes era tão lento e
vagaroso, que se fazia transportar numa
liteira carregada por oito homens e exigia
do povo das cidades próximas que
CXXV
Esse é um dos indícios da insanidade de Calígula apresentados por Suetônio.
Nessa rubrica, Suetônio trata dos militia, os feitos militares de Calígula.
CXXVII
Hoje Bevagna, na Itália.
CXXVIII
Oriundos da Batávia, hoje correspondente, em parte, ao território da Holanda.
CXXVI
98
varressem as estradas para ele e as
aspergissem para evitar a poeiraCXXIX.
1
XLIV.
Postquam castra attigit, ut se XLIV.
1
Depois
de
chegar
aos
acrem ac seuerum ducem ostenderet, acampamentos, para se mostrar um
legatos, qui auxilia serius ex diuersis locis general cruel e severo, dispensou com
adduxerant, cum ignominia dimisit; at in ignomínia os embaixadores que haviam
exercitu
recensendo
plerisque trazido as tropas auxiliares de diversas
centurionum maturis iam et nonnullis ante localidades com atraso; e ao fazer a revista
paucissimos quam consummaturi essent do exército retirou do comando da
dies, primos pilos ademit, causatus senium primeira companhia muitos dos centuriões
cuiusque et imbecillitatem; ceterorum mais velhos - e alguns já a pouquíssimos
increpita cupiditate commoda emeritae dias de cumprir seu tempo de serviço – sob
militiae ad senum milium summam o pretexto de sua velhice e fraqueza de
2
recidit.
Nihil autem amplius quam espírito; acusando a avareza dos outros,
Adminio Cynobellini Britannorum regis reduziu
filio, qui pulsus a patre cum exigua manu veteranos
o
estipêndio
à
soma
dos
de
soldados
seis
mil
transfugerat, in deditionem recepto, quasi sestérciosCXXX. 2E não conseguiu nada
uniuersa
Romam
tradita
litteras
insula,
magnificas mais do que a rendição de Admínio, filho
misit,
monitis de Cunobelino, rei da Bretanha, que tinha
speculatoribus, ut uehiculo ad forum sido expulso pelo pai e fugira com uma
usque et curiam pertenderent nec nisi in pequena tropa. E mandou cartas suntuosas
aede
Martis
ac
consulibus traderent.
frequente
senatu a Roma, como se houvesse capturado toda
a ilha, aconselhando aos batedores que
fossem num carro até o Fórum e a cúria, e
não entregassem a mensagem antes de
CXXIX
Nota-se como Suetônio evita fazer quaisquer comentários sobre as possíveis batalhas travadas nessa
campanha. Ele se limita a usá-la para melhor traçar a personalidade de Calígula.
CXXX
O texto original fala em ‘sescentorum milium’, ou seja, seiscentos mil. No entanto, trata-se
provavelmente de um erro, já que, de acordo com Dion Cássio (Dio. LV. 23), o valor na época de
Augusto seria de doze mil sestércios.
99
chegar ao Campo de Marte e diante do
senado e dos cônsules.
XLV.
1
Mox deficiente belli materia XLV. Pouco tempo depois, faltando-lhe
paucos de custodia Germanos traici motivo para a guerra, mandou que alguns
occulique trans Rhenum iussit ac sibi post poucos reféns germanos atravessassem o
prandium quam tumultuosissime adesse Reno e se escondessem, e que se
hostem nuntiari. 2Quo facto proripuit se anunciasse a ele com grande tumulto,
cum
amicis
et
parte
equitum depois do jantar, que o inimigo estava
praetorianorum in proximam siluam, perto. Razão pela qual se arrancou com
truncatisque arboribus et in modum alguns companheiros e parte da cavalaria
tropaeorum adornatis ad lumina reuersus, pretoriana para uma floresta próxima, e
eorum quidem qui secuti non essent depois de cortar algumas árvores e adornátimiditatem et ignauiam corripuit, comites las como troféus, retornou com archotes e
autem et participes uictoriae nouo genere censurou os que não o haviam seguido por
ac nomine coronarum donauit, quas sua covardia e indolência, mas aos seus
distinctas solis ac lunae siderumque specie companheiros e participantes da vitória
exploratorias appellauit. 3Rursus obsides presenteou-lhes com coroas de um novo
quosdam
abductos
e litterario ludo tipo e novo nome, as quais chamou
clamque praemissos, deserto repente ‘exploradoras’, e que eram adornadas com
conuiuio, cum equitatu insecutus ueluti a imagem do sol, da lua e dos astros. Outra
profugos
ac
reprehensos
in
catenis vez sequestrou reféns de uma escola e os
reduxit; in hoc quoque mimo praeter mandou secretamente à sua frente, depois
modum
intemperans.
Repetita
cena do que ele repentinamente abandonou um
renuntiantis coactum agmen sic ut erant banquete e os perseguiu com o auxílio de
loricatos ad discumbendum adhortatus est. uma cavalaria como se fossem foragidos e
Monuit etiam notissimo Vergili uersu os
trouxe
de
volta
acorrentados.
"durarent secundisque se rebus seruarent." Excessivamente desregrado também nesta
5
Atque inter haec absentem senatum encenação, depois que voltou ao jantar,
populumque grauissimo obiurgauit edicto, exortou os soldados que vinham informáquod
Caesare
proeliante
et
tantis lo de que o exército estava reunido a se
100
discriminibus
obiecto
tempestiua sentarem à mesa do jeito que estavam,
conuiuia, circum et theatra et amoenos vestidos com suas armaduras. E também
secessus celebrarent.
os aconselhou com o conhecido verso de
Virgílio
para
esperassem
que
dias
‘resistissem
e
melhores’CXXXI.
E,
enquanto isso, repreendeu o senado e o
povo ausentes em Roma com um édito
muito severo, pois ‘enquanto César lutava
e era objeto de tantos perigos, celebravam
banquetes suntuosos, aproveitando os
jogos circenses, teatros e retiros amenos’.
XLVI. Postremo
quasi
perpetraturus XLVI. Por fim, como se estivesse para pôr
bellum, derecta acie in litore Oceani ac um fim a uma guerra, levou o exército às
ballistis machinisque dispositis, nemine margens do Oceano e armou catapultas e
gnaro aut opinante quidnam coepturus máquinas de guerra, sem que ninguém
esset,
repente
ut
conchas
legerent soubesse ou pudesse imaginar o que ele
galeasque et sinus replerent imperauit, faria, e de repente mandou que fossem
"spolia
Oceani"
Palatioque
debita,"
uocans
"Capitolio recolhidas conchas e que os soldados
et
indicium enchessem os bolsos e os capacetes,
in
uictoriae altissimam turrem excitauit, ex chamando-as de ‘espólios do Oceano,
qua ut Pharo noctibus ad regendos nauium devidas ao Capitólio e ao Palatino’, e
cursus ignes emicarent; pronuntiatoque ergueu uma altíssima torre em sinal de
militi donatiuo centenis uiritim denariis, vitória,
quasi
omne
exemplum
da
qual,
como
em
Faros,
liberalitatis brilhariam luzes para guiar o caminho dos
supergressus: "abite," inquit, "laeti, abite navios durante a noite; e anunciando ao
locupletes."
exército uma recompensa de cem denários
para cada homem, como se tivesse
ultrapassado
CXXXI
Calígula cita uma passagem da Eneida (I, 207).
todo
exemplo
de
101
generosidade, disse-lhes: ‘Ide em alegria!
Ide enriquecidos!’CXXXII.
XLVII.
1
Conuersus
hinc
ad
curam XLVII. 1Voltando-se ao cuidado do seu
triumphi praeter captiuos ac transfugas triunfo, além dos cativos e dos fugitivos
barbaros
Galliarum
quoque bárbaros, escolheu os mais eminentes de
procerissimum quemque et, ut ipse cada uma das Gálias e, como ele mesmo
dicebat, ἀξιοθριάμβευτον, ac nonnullos ex dizia, ‘os mais dignos de triunfo’, e alguns
principibus legit ac seposuit ad pompam dentre os príncipes e os reservou à
coegitque
non
tantum
rutilare
et cerimônia, coagindo-os não somente a
summittere comam, sed et sermonem tingir de vermelho os cabelos e a deixá-los
Germanicum
addiscere
et
nomina crescer, mas também a aprender a língua
barbarica ferre. 2Praecepit etiam triremis, dos germanos e adotar nomes bárbaros.
quibus introierat Oceanum, magna ex
2
Instruiu também que se trouxessem para
parte itinere terrestri Romam deuehi. Roma as trirremesCXXXIII nas quais ele
3
Scripsit et procuratoribus, triumphum havia adentrado o Oceano, e isso foi feito
appararent quam minima summa, sed na maior parte pelo caminho terrestre. 3E
quantus numquam alius fuisset, quando in também escreveu aos procuradores ‘que
omnium hominum bona ius haberent.
preparassem um triunfo com o menor
gasto, mas maior do que jamais houvera,
pois tinha autoridade sobre os bens de
todos os homens’CXXXIV.
XLVIII. 1Prius quam prouincia decederet, XLVIII. 1Antes de deixar a província,
consilium
CXXXII
iniit
nefandae
atrocitatis planejou a nefanda atrocidade de destruir
Essa passagem pode ter sido, segundo Winterling (2011: 118), o resultado de um motim por parte
das tropas que acompanhavam Calígula, que teriam se recusado a atravessar o mar até a Bretanha. O gesto
de Calígula de fazer com que recolhessem conchas como espólios e dar a eles uma recompensa minúscula
poderia ser uma tentativa de ridicularizá-los por sua covardia.
CXXXIII
Embarcação de guerra que dispunha de três ordens de remos.
CXXXIV
Possível tentativa de fazer pouco do triunfo, que era uma instituição regulada pelo Senado, com
quem Calígula parecia indisposto.
102
legiones, quae post excessum Augusti as legiões que outrora haviam promovido
seditionem olim mouerant, contrucidandi, uma sedição depois da morte de Augusto,
quod et patrem suum Germanicum ducem porque assediaram tanto a seu pai e
et se infantem tunc obsedissent, uixque a comandante deles, Germânico, quanto a
tam praecipiti
cogitatione reuocatus, ele mesmo, ainda meninoCXXXV. E com
inhiberi nullo modo potuit quin decimare dificuldade
uelle perseueraret.
2
foi
dissuadido
de
tão
Vocatas itaque ad precipitado pensamento, mas não se pôde
contionem inermes, atque etiam gladiis convencê-lo de modo algum a desistir de
depositis, equitatu armato circumdedit. dizimá-los. 2Depois que, desarmadas, elas
3
Sed cum uideret suspecta re plerosque foram chamadas à reunião, e até mesmo já
dilabi ad resumenda si qua uis fieret arma, com as espadas depostas, cercou-as com
profugit contionem confestimque urbem uma cavalaria armada. 3Mas, vendo que
petit, deflexa omni acerbitate in senatum, muitos, suspeitando, escapavam-se para
cui ad auertendos tantorum dedecorum recuperar
as
rumores palam minabatur, querens inter contenda,
fugiu
cetera fraudatum se iusto triumpho, cum imediatamente
ipse paulo ante, ne quid de honoribus suis despejando
ageretur,
etiam
sub
mortis
armas
caso
da
voltou
todo
o
houvesse
reunião
para
ódio
e
Roma,
sobre
o
poena senadoCXXXVI, que ameaçava abertamente
denuntiasset.
para distrair dos rumores de tantas
vergonhas, alegando entre outras coisas
que fora privado de seu justo triunfo,
quando ele próprio, pouco antes, havia
proibido sob pena de morte que se fizesse
algo a respeito de suas honras.
XLIX. 1Aditus ergo in itinere a legatis XLIX.
1
Tendo
sido
encontrado
no
amplissimi ordinis ut maturaret orantibus, caminho por um membro daquela distinta
quam maxima uoce: "ueniam," inquit,
CXXXV
Como afirma Winterling (2011, 119) é muito pouco provável que os soldados daquele tempo ainda
fizessem parte das legiões depois de quase trinta anos. O mais plausível seria imaginar que Calígula
pretendia castigar os responsáveis por um novo motim.
CXXXVI
Sêneca afirma que Calígula planejava destruir todo o senado. (Sen. De Ira III.19.2).
103
"ueniam, et hic mecum," capulum gladii ordemCXXXVII,
que
lhe
pedia
que
crebro uerberans, quo cinctus erat. 2Edixit apressasse seu retorno, respondeu-lhe em
et reuerti se, sed iis tantum qui optarent, alto e bom som: ‘Voltarei, sim, e isto aqui
equestri ordini et populo; nam se neque estará comigo’ e batia na ponta do cabo da
ciuem neque principem senatui amplius espada, que lhe pendia da cintura. 2E
fore. 3Vetuit etiam quemquam senatorum mandou
dizer
que
‘retornava,
mas
sibi occurrere. 4Atque omisso uel dilato somente para aqueles que desejavam seu
triumpho
ouans
urbem
natali
suo retorno, o povo e a ordem equestre, pois
ingressus est; intraque quartum mensem ele não mais seria concidadão nem
periit, ingentia facinora ausus et aliquanto príncipe do senado’. 3Até mesmo proibiu
maiora moliens, siquidem proposuerat que qualquer membro do senado fosse até
Antium, deinde Alexandream commigrare ele. 4E, tendo atrasado ou desistido do
interempto
prius
utriusque
ordinis triunfo, entrou na cidade no dia de seu
electissimo quoque. 5Quod ne cui dubium aniversário em meio a uma ovação; e
uideatur, in secretis eius reperti sunt duo dentro de quatro meses morreu, tendo
libelli diuerso titulo, alteri "gladius," alteri ousado
cometer
crimes
enormes,
e
"pugio" index erat; ambo nomina et notas planejando cometer outros ainda maiores,
continebant morti destinatorum. 6Inuenta visto que pretendia se mudar para
et arca ingens uariorum uenenorum plena, ÂncioCXXXVIII,
e
depois
para
quibus mox a Claudio demersis infecta AlexandriaCXXXIX, depois de matar os
maria traduntur non sine piscium exitio, mais importantes membros de cada
quos enectos aestus in proxima litora ordem. 5E para que quanto a isto não
eiecit.
pareça haver dúvida a quem quer que seja,
em seus documentos particulares foram
encontrados dois livrinhos com títulos
diferentes: um chamado ‘espada’, e o
CXXXVII
Ou seja, da ordem senatorial. Esse trecho dá ainda mais indícios da relação conturbada entre
Calígula e a aristocracia romana.
CXXXVIII
Outro indício de que esta seria a localidade natal de Calígula.
CXXXIX
Desde os tempos de Augusto, que criticava a aproximação entre Marco Antônio e Cleópatra, tornouse um lugar-comum que os governantes que não recebiam aprovação da aristocracia fossem acusados
posteriormente de tentar “orientalizar” o Império. Pode-se supor que isso também se encaixa com as
alegações de relações incestuosas entre Calígula e suas irmãs (que seriam mais naturais no Egito) e o
estabelecimento de um culto ao seu próprio nume.
104
outro ‘punhal’CXL; ambos continham
nomes e marcas distintivas dos que
estavam destinados à morte. 6Também foi
encontrada uma imensa arca cheia de
vários
venenos,
os
quais,
dizem,
contaminaram os mares, não sem matança
de peixes, que as ondas lançaram, mortos,
nas praias próximas depois que Cláudio
jogou seu conteúdo na água.
L. 1Statura fuit eminenti, colore expallido, L. 1Era de alta estatura, cor pálida, corpo
corpore
enormi,
gracilitate
maxima enorme, mas com pescoço e pernas
ceruicis et crurum, oculis et temporibus extremamente magros, têmporas e olhos
concauis, fronte lata et torua, capillo raro côncavos, testa larga e ameaçadora, cabelo
at circa uerticem nullo, hirsutus cetera. ralo e calvo no topo da cabeça, mas com
2
Quare transeunte eo prospicere ex um corpo peludo. 2Razão pela qual era
superiore parte aut omnino quacumque de considerado crime e motivo de pena
causa capram nominare, criminosum et capital falar em bodes, sob qualquer
exitiale habebatur. 3Vultum uero natura pretexto, ou olhá-lo de cima quando ele
horridum ac taetrum etiam ex industria passava. 3Seu rosto já naturalmente feio e
efferabat componens ad speculum in horrendo ele tornava ainda mais bestial,
omnem
4
terrorem
ac
formidinem. treinando diante do espelho todo tipo de
Valitudo ei neque corporis neque animi terror e espantoCXLI. 4Não era saudável
constitit. Puer comitiali morbo uexatus, in nem de corpo, nem de espírito. Quando
adulescentia ita patiens laborum erat, ut menino, fora acometido por epilepsia, e
tamen nonnumquam subita defectione durante a juventude suportava sofrimento
ingredi, stare, colligere semet ac sufferre tal que, muitas vezes, tomado por súbito
uix posset. 5Mentis ualitudinem et ipse desfalecimento, mal conseguia caminhar,
CXL
Que seriam carregados por um liberto seu, Protógenes.
Este retrato de Calígula entra em contraste com o de Germânico. De acordo com as tradições de
fisiognomia da Antiguidade, o fato de ter um corpo grande e membros magros era sinal de sua feiura. A
palidez era vista como sinal de covardia. Os olhos de Calígula davam a impressão de estupidez. (LINDSAY,
2002, p. 153).
CXLI
105
senserat ac subinde de secessu deque ou ficar de pé, se recompor ou se sustentar.
purgando cerebro cogitauit.
6
Creditur
5
Ele próprio tinha tomado consciência de
potionatus a Caesonia uxore amatorio sua
quidem
medicamento,
furorem uerterit.
7
sed
quod
saúde
mental,
e
pensou
in frequentemente de se retirar e limpar seu
Incitabatur insomnio cérebro.
6
Acredita-se que tenha sido
maxime; neque enim plus quam tribus envenenado pela esposa Cesônia com
nocturnis horis quiescebat ac ne iis algum filtro de amor, mas que se
quidem placida quiete, sed pauida miris transformara
em
loucuraCXLII.
7
Era
rerum imaginibus, ut qui inter ceteras atormentado sobretudo pela insônia; pois
pelagi quondam speciem conloquentem não descansava mais do que três horas
secum uidere uisus sit. 8Ideoque magna durante a noite, e não eram essas horas de
parte noctis uigiliae cubandique taedio um repouso plácido, mas sim aterrado por
nunc toro residens, nunc per longissimas imagens terríveis, de modo que, entre
porticus uagus inuocare identidem atque outras coisas, pareceu-lhe, certa vez, ver a
expectare lucem consuerat.
si mesmo conversando com o espírito do
mar. 8E, por isso, durante a maior parte da
noite, cansado de permanecer deitado sem
dormir, tinha o costume de ora sentar-se
no leito, ora, vagando através de muitos
pórticos,
invocar
e
esperar
incessantemente pela luz do dia.
LI.
1
Non inmerito mentis ualitudini LI. 1Eu posso atribuir não injustamente à
attribuerim diuersissima in eodem uitia, sua saúde mental os dois muito diferentes
summam confidentiam et contra nimium vícios nele presentes, uma petulância
metum.
2
Nam qui deos tanto opere exacerbada e, por outro lado, uma
contemneret, ad minima tonitrua et covardia demasiada.
2
Pois aquele que
fulgura coniuere, caput obuoluere, at uero tanto desprezava os deuses costumava, ao
maiore proripere se e strato sub lectumque perceber o menor trovão ou raio, fechar os
CXLII
Embora a tradição tenha sempre considerado Calígula um governante louco, a maioria dos
especialistas de hoje discorda dessa hipótese. (WINTERLING, 2011: 6).
106
condere solebat. 3Peregrinatione quidem olhos, cobrir a cabeça, e quando estes
Siciliensi
miraculis
profugit
irrisis
multum
repente a
Aetnaei
locorum eram estrondosos, arrancar-se do estrado e
Messana noctu esconder-se sob o leito.
uerticis
fumo
3
Durante sua
ac peregrinação pela SicíliaCXLIII, riu-se dos
murmure pauefactus. 4Aduersus barbaros milagres em muitos lugares, mas fugiu de
quoque minacissimus, cum trans Rhenum repente de Messana, durante a noite,
inter angustias densumque agmen iter aterrorizado com a fumaça e com o ruído
essedo faceret, dicente quodam non no topo do Etna. 4Embora ameaçador
mediocrem fore consternationem sicunde contra os bárbaros, quando fez o caminho
hostis appareat, equum ilico conscendit ac de carro para atravessar o Reno e ficou
propere reuersus ad pontes, ut eos entre os desfiladeiros com seu exército
calonibus
et
impedimentis
stipatos cerrado, e alguém disse que não seria
repperit, impatiens morae per manus ac pequeno
o
tumulto
se
o
inimigo
super capita hominum translatus est. 5Mox aparecesse, imediatamente subiu num
etiam audita rebellione Germaniae fugam cavalo e correu de volta para as pontes, e
et subsidia fugae classes apparabat, uno como as encontrasse bloqueadas por
solacio adquiescens transmarinas certe criados e bagagens, impaciente com a
sibi superfuturas prouincias, si uictores demora, fez-se ser levado sobre as cabeças
Alpium iuga, ut Cimbri, uel etiam urbem, dos homens, sustentado pelas suas mãos.
ut Senones quondam, occuparent; unde
5
E pouco depois, tendo ouvido falar da
credo percussoribus eius postea consilium rebelião na GermâniaCXLIV, preparou a
natum
apud
tumultuantes
milites fuga e uma esquadra com mantimentos
ementiendi, ipsum sibi manus intulisse para fugir, tendo como único consolo o
nuntio malae pugnae perterritum.
fato de que lhe restariam as províncias de
além-mar, se os vencedores tomassem o
topo dos alpes, como os CimbrosCXLV
haviam feito, ou até mesmo a própria
Roma, como os SenonosCXLVI certa vez.
Razão pela qual, creio, seus assassinos
CXLIII
Logo após a morte da irmã Drusila.
Segundo Lindsay, não há registro desse episódio. Talvez seja uma referência à conspiração de
Getúlico. (LINDSAY, 2002: 157).
CXLV
Povo da Germânia.
CXLVI
Povo da Gália Cisalpina.
CXLIV
107
posteriormente tiveram a ideia de inventar
para os seus soldados revoltados que ele
próprio tinha tirado a vida, com medo da
notícia de uma derrota.
LII. 1Vestitu calciatuque et cetero habitu LII. 1Nunca usou roupas e calçados e
neque patrio neque ciuili, ac ne uirili outras vestimentas à moda nacional, nem
quidem ac denique humano semper usus dos cidadãos, nem dos chefes de família,
est. 2Saepe depictas gemmatasque indutus e, por fim, nem dos seres humanos.
paenulas, manuleatus et armillatus in
2
Frequentemente vestia-se com capas
publicum processit; aliquando sericatus et coloridas e adornadas com pedras, saía em
cycladatus; ac modo in crepidis uel público com túnicas de manga e com
coturnis, modo in speculatoria caliga, braceletes, às vezes usando sedas e
nonnumquam socco muliebri; plerumque cícladeCXLVII, às vezes sandálias ou
uero aurea barba, fulmen tenens aut coturnos, às vezes botas de batedor, ou
fuscinam aut caduceum deorum insignia, ainda borzeguins femininosCXLVIII; foi
atque etiam Veneris cultu conspectus est. visto várias vezes usando uma barba
3
Triumphalem quidem ornatum etiam ante dourada, segurando um raio, um tridente
expeditionem assidue gestauit, interdum ou um caduceu, insígnias dos deuses, e até
et Magni Alexandri thoracem repetitum e mesmo vestido de VênusCXLIX.
conditorio eius.
3
Em
muitas ocasiões vestiu os ornamentos
triunfais mesmo antes de sua campanha
militar, às vezes usando a couraça de
Alexandre MagnoCL, tirada de seu túmulo.
CXLVII
Peça do vestuário feminino.
Essa descrição é uma tentativa de reforçar a natureza efeminada de Calígula.
CXLIX
Aqui, acrescenta-se ao seu caráter efeminado sua húbris ao se comparar com os deuses.
CL
Outro sinal da fraqueza de Calígula pelas tradições orientais.
CXLVIII
108
LIII. 1Ex disciplinis liberalibus minimum LIII. 1Dentre as disciplinas liberaisCLI,
eruditioni, eloquentiae plurimum attendit, dedicou-se pouco à erudição, e mais à
quantumuis facundus et promptus, utique eloquência, sendo facundo e disposto ao
si perorandum in aliquem esset. 2Irato et falar com alguém.
uerba
et
sententiae
2
Quando irado, as
suppetebant, palavras e as frases ficavam à sua
pronuntiatio quoque et uox, ut neque disposição, assim como a voz e a
eodem loci prae ardore consisteret et pronúncia, de tal modo que não parava no
exaudiretur
3
a
procul
stantibus. mesmo lugar de tão empolgado, e era
Peroraturus stricturum se lucubrationis ouvido mesmo pelos que estavam longe.
suae telum minabatur, lenius comptiusque
3
Quando estava para discursar, ameaçava
scribendi genus adeo contemnens, ut que
Senecam
tum
‘sacaria
um
dardo
de
suas
placentem lucubrações’, de tal forma desprezando o
maxime
"commissiones meras" componere et estilo de escrita mais ameno e burilado,
"harenam
4
Solebat
esse
sine
etiam
calce"
prosperis
diceret. que dizia que Sêneca, então muitíssimo
oratorum apreciado, havia composto ‘meras obras
actionibus rescribere et magnorum in de ocasião’, e que era ‘areia sem cal’ CLII.
senatu
reorum
accusationes
4
Também costumava compor respostas
defensionesque meditari ac, prout stilus aos discursos dos oradores de sucesso, e
cesserat,
uel
onerare
sententia
sua elaborar acusações e defesas dos grandes
quemque uel subleuare, equestri quoque réus no senadoCLIII, e, conforme concedia
ordine ad audiendum inuitato per edicta.
seu estilo, tornar-lhes a sentença mais
pesada ou mais leve, convidando até
mesmo a ordem equestre, por meio de
éditos, para que o ouvissem.
CLI
A saber: retórica, filosofia, música, poesia e jurisprudência. O interesse de Calígula pela retórica já havia
sido demonstrado nos jogos que ele havia realizado em Siracusa (Cf. nota LXI).
CLII
Visão que possivelmente não diferia muito da de Suetônio, que afirma que Sêneca teria privado o jovem
Nero do contato com oradores mais recentes (e melhores) para fortalecer a admiração que o futuro
imperador tinha por ele. (Ner. LII.1).
CLIII
O que não difere muito dos exercícios de controuersiae e de suasoriae praticados pelos alunos de
retórica.
109
LIV.
1
Sed et aliorum generum artes LIV.
1
Mas
também
exerceu
studiosissime et diuersissimas exercuit. diligentemente artes bem diferentes, e de
2
Thraex et auriga, idem cantor atque outros gêneros. 2Como trácioCLIV ou piloto
saltator, battuebat pugnatoriis
armis, de biga, ou mesmo como cantor ou
aurigabat exstructo plurifariam circo; dançarino, batia-se com armas de lutador,
canendi
ac
efferebatur,
saltandi
ut
ne
uoluptate
publicis
ita e conduzia a biga nos diversos lugares em
quidem que se havia construído um circo; era tão
spectaculis temperaret quo minus et afetado pelo desejo de cantar e de dançar,
tragoedo
pronuntianti
concineret
et que nem mesmo durante os espetáculos
gestum histrionis quasi laudans uel públicos
conseguia
impedir-se
de
corrigens palam effingeret. 3Nec alia de declamar junto com o ator de tragédia ou
causa
uidetur
eo
die,
quo
periit, de imitar os gestos do histrião, como se o
peruigilium indixisse quam ut initium in elogiasse ou corrigisseCLV. 3E não parece
scaenam prodeundi licentia temporis ter sido por outro motivo que, no dia em
auspicaretur.
4
Saltabat
autem que morreu, tinha determinado um culto
nonnumquam etiam noctu; et quondam noturno com vigília, para que inaugurasse
tres consulares secunda uigilia in Palatium o início de seu aparecimento no palco,
accitos multaque et extrema metuentis usando
super pulpitum conlocauit, deinde repente
4
a
ocasião
como
desculpa.
Dançava muitas vezes até durante a noite;
magno tibiarum et scabellorum crepitu e certa vez, durante a segunda vigíliaCLVI,
cum palla tunicaque talari prosiluit ac colocou sobre os bancos três consulares –
desaltato cantico abiit. 5Atque hic tam que temiam coisas extremas e diversas docilis ad cetera natare nesciit.
que ele havia mandado trazer ao palácio, e
então, de repente, com o grande estrondo
das flautas e escabelosCLVII, saltou diante
deles com uma túnica que ia até os
tornozelos e vestes de ator trágico e, tendo
feito seu canto e sua dança, foi embora. 4E
CLIV
Cf. nota CVII.
Todas essas práticas iam de encontro aos valores da aristocracia romana, e foram atribuídas a Calígula
e a Nero de maneira análoga.
CLVI
Os romanos dividiam as horas sem sol em quatro vigílias de três horas cada. O período da segunda
vigília seria entre nove horas e meia-noite.
CLVII
Scabellum, um pequeno tamborete que se tocava com o pé.
CLV
110
este homem, tão versado em outras
matérias, não sabia nadar.
LV.
1
Quorum uero studio teneretur, LV.
1
Cuidava daqueles que tinha em
omnibus ad insaniam fauit. 2Mnesterem grande estima até o ponto da loucura.
pantomimum
etiam
inter
spectacula
2
Mesmo durante os espetáculos beijava o
osculabatur, ac si qui saltante eo uel leuiter pantomimo MnesterCLVIII, e se alguém
obstreperet, detrahi iussum manu sua fazia um leve ruído enquanto ele dançava,
flagellabat.
3
Equiti R. tumultuanti per mandava que se retirasse e o flagelava
centurionem denuntiauit, abiret sine mora com suas próprias mãos. 3Mandou a um
Ostiam
perferretque
ad
Ptolemaeum cavaleiro romano que fazia barulho,
regem in Mauretaniam codicillos suos; através de um centurião, que ele fosse sem
quorum exemplum erat: "ei quem istoc demora para Óstia e levasse até o rei
misi, neque boni quicquam neque mali Ptolomeu na Mauritânia seu bilhete, que
feceris."
corporis
4
Thraeces quosdam Germanis tinha como minuta: ‘Não farás nada de
custodibus
praeposuit. bom ou de mal àquele que enviei para
recidit. aí’CLIX. 4Pôs alguns gladiadores tráciosCLX
5
Murmillonum
6
Columbo uictori, leuiter tamen saucio, à frente de sua guarda germânicaCLXI.
armaturas
uenenum in plagam addidit, quod ex eo
5
Diminuiu a armadura dos mirmilõesCLXII.
Columbinum appellauit; sic certe inter alia
6
Depois que ColomboCLXIII foi vencedor,
uenena scriptum ab eo repertum est. embora tivesse sido ferido de leve, ele
7
Prasinae factioni ita addictus et deditus, colocou veneno em sua ferida, veneno que
ut cenaret in stabulo assidue et maneret, chamou de columbino por conta dele; com
agitatori Eutycho comisatione quadam in esse nome ele foi encontrado na lista de
CLVIII
Novamente há uma crítica ao caráter efeminado de Calígula, não sem menção ao seu comportamento
favorável às tradições gregas.
CLIX
Um plano demasiadamente complexo para simplesmente exilar o cavaleiro. Outra amostra do estranho
senso de humor de Calígula.
CLX
Cf. nota CVII.
CLXI
O que demonstra seu apreço pelos gladiadores enquanto grupo, o que obviamente não era visto com
bons olhos pelos seus críticos.
CLXII
Cf. nota XCVI. O fato de Calígula ter diminuído a armadura desse tipo de gladiador pode ser sinal de
sua preferência pelos seus rivais, sobretudo os trácios, que ele havia acrescentado à sua guarda particular.
CLXIII
Um gladiador contemporâneo de Calígula. Esse ato novamente atesta o interesse desmesurado do
imperador pelos jogos de gladiadores.
111
apophoretis uicies sestertium contulit. venenos escrita por Calígula. 7Era tão
8
Incitato
equo,
circenses,
ne
cuius
causa
inquietaretur,
pridie favorável
e
dedicado
à
facção
uiciniae prásinaCLXIV, que muitas vezes ceava nos
silentium per milites indicere solebat, seus estábulos ou lá permanecia, e deu ao
praeter equile marmoreum et praesaepe condutor Eutico, durante uma orgia, dois
eburneum praeterque purpurea tegumenta milhões de sestércios como presente.
ac monilia e gemmis domum etiam et
8
Costumava usar soldados para forçar o
familiam et supellectilem dedit, quo silêncio nas vizinhanças quando da
lautius nomine eius inuitati acciperentur; véspera dos jogos circenses, para que seu
consulatum quoque traditur destinasse.
cavalo Incitato não fosse incomodado,
além ter-lhe mandado construir um
estábulo de mármore e uma manjedoura
de
marfim.
púrpura,
Também
deu-lhe
cobriu-lhe
colares
de
de
pedras
preciosas, uma casa, escravos e mobília,
para que pudesse receber com maior
suntuosidade
os
convidados;
diz-se
também que planejava fazê-lo cônsulCLXV.
LVI. 1Ita bacchantem atque grassantem LVI. 1Por tamanha devassidão e tantos
non defuit plerisque animus adoriri. 2Sed assaltos,
não
una atque altera conspiratione detecta, derrubá-loCLXVI.
faltou
2
quem
quisesse
Mas quando uma ou
aliis per inopiam occasionis cunctantibus, outra conspiração havia sido descoberta e
duo
consilium
communicauerunt outros esperavam pela ocasião necessária,
perfeceruntque, non sine conscientia dois homens dividiram o mesmo plano e o
potentissimorum
praefectorumque
CLXIV
libertorum executaram, não sem o conhecimento dos
praetori;
quod
ipsi seus libertos mais poderosos e dos
Cf. nota LIV. Na época de Calígula, os pilotos dividiam-se em quatro facções representadas por cores
diferentes, os verdes, os azuis, os brancos e os vermelhos.
CLXV
Conforme afirma Winterling (2011: 103), essa paixão pelo próprio cavalo, e principalmente a intenção
de torná-lo cônsul, provavelmente foi uma maneira de criticar e humilhar a aristocracia, equiparando seus
membros a cavalos.
CLXVI
Nessa rubrica, Suetônio começa a tratar da morte de Calígula.
112
quoque etsi falso in quadam coniuratione membros da guarda pretoriana, porque
quasi
participes
nominati,
suspectos eles
próprios
também
quase
foram
tamen se et inuisos sentiebant. 3Nam et falsamente acusados de participar de uma
statim seductis magnam fecit inuidiam conspiração, e percebiam que Calígula
destricto gladio affirmans sponte se suspeitava deles e os odiava. 3Pois ele
periturum, si et illis morte dignus criou imediatamente grande hostilidade
uideretur, nec cessauit ex eo criminari para alguns deles, a quem havia chamado
alterum alteri atque inter se omnis de lado e, puxando da espada, dito que ‘ele
committere.
ludis
4
Cum placuisset Palatinis mesmo se mataria, se a eles parecesse que
spectaculo
egressum
meridie ele merecia a morte’, e não cessou de fazer
adgredi, primas sibi partes Cassius com que um acusasse o outro de desejar
Chaerea
tribunus
cohortis
praetoriae matá-lo, nem de colocar todos contra
depoposcit, quem Gaius seniorem iam et todos. 4Como tinham decidido atacá-lo ao
mollem et effeminatum denotare omni meio-dia
quando
ele
voltaria
dos
probro consuerat et modo signum petenti espetáculos nos jogos do Palatino, Cássio
"Priapum" aut "Venerem" dare, modo ex Quérea, tribuno da coorte pretoriana,
aliqua causa agenti gratias osculandam exigiu ser o primeiro a atacar, pois Caio
manum offerre formatam commotamque costumava difamá-lo – ele que já era um
in obscaenum modum.
homem de idade – com todo tipo de
ultraje, como fraco e efeminado. Também
dava a ele como senha, quando ele pedia,
palavras como “PriapoCLXVII” e “Vênus”,
e quando por algum motivo precisava
agradecê-lo, Caio lhe oferecia a mão para
beijar, movendo-a e fazendo com ela
gestos obscenos.
LVII.
1
Futurae caedis multa prodigia LVII.
1
Houve muitos prodígios que
exstiterunt. 2Olympiae simulacrum Iouis, prediziam sua morteCLXVIII. 2A estátua de
CLXVII
Priapus, divindade originalmente ligada à fertilidade, era um deus cuja característica mais notável
era ter um pênis de tamanho descomunal.
CLXVIII
Esses prodígios são reveladores dos crimes e do caráter de Calígula.
113
quod
dissolui
transferrique
Romam Júpiter em Olímpia, que ele havia
placuerat, tantum cachinnum repente ordenado que se desmontasse e trouxesse
edidit, ut machinis labefactis opifices para Roma, de repente, começou a rir tanto
diffugerint; superuenitque ilico quidam que os andaimes caíram e os operários se
Cassius nomine, iussum se somnio puseram a fugirCLXIX; e então chegou lá
affirmans
3
immolare
taurum
Ioui. um homem chamado Cássio, afirmando
Capitolium Capuae Id. Mart. de caelo que recebera em sonho ordens para
tactum est, item Romae cella Palatini sacrificar
um
touro
em
honra
de
atriensis. 4Nec defuerunt qui coniectarent JúpiterCLXX. 3O Capitólio em Cápua tinha
altero ostento periculum a custodibus sido atingido por um raio no quinze de
domino portendi, altero caedem rursus março, assim como o quarto do guarda do
insignem, qualis eodem die facta quondam átrio do palácio, em RomaCLXXI. 4E não
fuisset. 5Consulenti quoque de genitura faltou quem concluísse por um desses
sua
Sulla
necem
6
mathematicus
appropinquare
certissimam presságios que um perigo era anunciado
affirmauit. ao senhor através de seus guardas, e que o
Monuerunt et Fortunae Antiatinae, ut a outro se referia à morte de um outro
Cassio caueret; qua causa ille Cassium homem insigneCLXXII, que se dera certa
Longinum
occidendum
Asiae
tum
proconsulem vez naquele mesmo dia. 5E também o
delegauerat,
Chaeream Cassium nominari.
inmemor matemático Sula, com quem Calígula
7
Pridie consultou seu horóscopo, afirmou-lhe que
quam periret, somniauit consistere se in sua morte certíssima se aproximava. 6Os
caelo iuxta solium Iouis impulsumque ab oráculos de ÂncioCLXXIII também o
eo dextri pedis pollice et in terras advertiram de que devia tomar cuidado
praecipitatum. 8Prodigiorum loco habita com um homem chamado Cássio, razão
sunt etiam, quae forte illo ipso die paulo pela qual ele mandou que matassem
prius acciderant. 9Sacrificans respersus est Cássio Longino, então procônsul da Ásia,
phoenicopteri sanguine; et pantomimus esquecendo de que Quérea se chamava
CLXIX
O primeiro prodígio se refere ao crime de húbris cometido por Calígula. Pode-se pensar aqui em
Júpiter se regozijando com sua vingança que estava prestes a se dar.
CLXX
Um homem que tinha o mesmo nome de Quérea. Calígula aparece como a vítima a ser sacrificada em
honra (e vingança) de Júpiter.
CLXXI
A simbologia é clara: o raio de Júpiter atinge lugares ligados à figura do imperador.
CLXXII
Trata-se de Júlio César, morto em quinze de março de 44 a.C.
CLXXIII
Região de importância, já que era o local de nascimento de Calígula.
114
Mnester tragoediam saltauit, quam olim Cássio. 7No dia anterior à sua morte,
Neoptolemus tragoedus ludis, quibus rex sonhou que estava no céu, junto ao trono
Macedonum Philippus occisus est, egerat; de Júpiter e que era lançado à terra pelo
et cum in Laureolo mimo, in quo a[u]ctor dedão do pé direito do deus.CLXXIV
proripiens se ruina sanguinem uomit,
plures
secundarum
8
Também foram tidas como prodígios
certatim algumas coisas que aconteceram por acaso
experimentum artis darent, cruore scaena um pouco mais cedo naquele mesmo dia.
abundauit.
10
Parabatur et in noctem
9
Enquanto sacrificava um flamingo, o
spectaculum, quo argumenta inferorum sangue lhe respingou; e o pantomimo
per Aegyptios et Aethiopas explicarentur.
Mnester dançou uma tragédia que outrora
Neoptolemo havia encenado durante os
jogos teatrais nos quais Filipe, rei da
Macedônia, havia sido morto. Na farsa
chamada ‘Lauréolo’, na qual o ator, que se
precipitava para a própria ruína, vomitava
sangue, uma vez que muitos dos atores em
papéis
secundários
queriam
dar
testemunho de sua arte, o palco se inundou
de sangue.CLXXV
10
Também se encenou à
noite um espetáculo, cujo argumento
relacionado aos infernos seria apresentado
por egípcios e etíopes.
LVIII. 1VIIII. Kal. Febr. hora fere septima LVIII. 1Nove dias antes das calendas de
cunctatus
an
ad
prandium
surgeret fevereiro, por volta da sétima horaCLXXVI,
marcente adhuc stomacho pridiani cibi ele hesitou entre levantar-se para ir ao
onere,
tandem
suadentibus
amicis almoço, porque tinha o estômago ainda
egressus est. 2Cum in crypta, per quam pesado da refeição do dia anterior, mas,
CLXXIV
O que confirma ainda mais a noção de que sua morte foi uma punição divina.
Esse sinal, bem como o fato de o sangue do flamingo ter respingado em Calígula, indicava uma morte
sangrenta iminente.
CLXXVI
Ou seja, no dia 24 de janeiro, por volta das 13h.
CLXXV
115
transeundum erat, pueri nobiles ex Asia ad com o convencimento dos amigos, retirouedendas
in
praepararentur,
scaena
operas
ut
eos
euocati se. 2Na passagem coberta, pela qual teria
inspiceret de passar, meninos de nobre nascimento
hortareturque restitit, ac nisi princeps chamados da Ásia eram preparados para
gregis algere se diceret, redire ac apresentar obras no palco. Ele parou para
repraesentare spectaculum uoluit. 3Duplex inspecioná-los e animá-los, e pretendia
dehinc fama est: alii tradunt adloquenti voltar para representar o espetáculo, se o
pueros a tergo Chaeream ceruicem gladio líder da tropa não tivesse dito que sentia
caesim grauiter percussisse praemissa frio. 3A partir daqui há duas versões para
uoce: "hoc age!" Dehinc Cornelium o que aconteceuCLXXVII: alguns dizem que
Sabinum, alterum e coniuratis, tribunum Quérea o atacou por trás enquanto ele
ex aduerso traiecisse pectus; alii Sabinum falava com os meninos, acertando-o na
summota per conscios centuriones turba parte de trás do pescoço com a espada, a
signum more militiae petisse et Gaio pesados golpes de talho, ao sinal de ‘Faz
"Iouem" dante Chaeream exclamasse: isto!’, e daí Cornélio Sabino, outro dos
"accipe ratum!" Respicientique maxillam conjurados, que estava à sua frente,
ictu discidisse. 4Iacentem contractisque perfurou-lhe o peito. Outros dizem que
membris clamitantem se uiuere ceteri Sabino, fazendo a turba se dispersar com
uulneribus triginta confecerunt; nam ajuda de centuriões que sabiam do plano,
signum erat omnium: "repete!" 5Quidam pediu-lhe a senha, como fazem os
etiam per obscaena ferrum adegerunt. 6Ad militares, e quando Caio disse ‘Júpiter’,
primum tumultum lecticari cum asseribus Quérea exclamou: ‘Aceita o que te é
in auxilium accucurrerunt, mox Germani devido!’ e partiu-lhe o maxilar com um
corporis
custodes,
ac
nonnullos
ex golpe quando ele se viravaCLXXVIII. 4Os
percussoribus, quosdam etiam senatores demais lhe atingiram trinta vezes enquanto
innoxios interemerunt.
ele jazia ao solo, com os membros
contraídos, gritando ‘estou vivo’; pois a
senha de todos eles era ‘ataca outra vez’.
5
Alguns até mesmo enterraram a espada
em suas partes íntimas. 6No início do
CLXXVII
CLXXVIII
As duas versões, de acordo com Lindsay (2002: 169), seriam a de Sêneca e a de Flávio Josefo.
Essa versão coroa a vingança de Júpiter sobre Calígula.
116
tumulto,
os
carregadores
de
liteira
correram ao seu auxílio com seus bastões,
e depois os seus guardas germanos, e eles
mataram muitos dos assassinos, e também
alguns senadores inofensivos.
LIX. 1Vixit annis uiginti nouem, imperauit LIX. 1Viveu vinte e nove anos, governou
triennio et decem mensibus diebusque por três anos, dez meses e oito dias. 2O
octo.
2
Cadauer eius clam in hortos cadáver dele foi levado secretamente aos
Lamianos asportatum et tumultuario rogo jardins da família Lâmia, e depois de
semiambustum leui caespite obrutum est, parcialmente queimado numa fogueira
postea per sorores ab exilio reuersas improvisada, foi enterrado num pedaço de
erutum et crematum sepultumque. 3Satis terra levemente coberto de relva. Depois
constat, prius quam id fieret, hortorum foi desenterrado, queimado e devidamente
custodes umbris inquietatos; in ea quoque sepultado pelas irmãs que retornaram do
domo, in qua occubuerit, nullam noctem exílio. 3Antes de elas terem feito isso,
sine aliquo terrore transactam, donec ipsa consta que os guardas dos jardins eram
domus incendio consumpta sit. 4Perit una incomodados por assombraçõesCLXXIX; e
et uxor Caesonia gladio a centurione na mesma casa em que ele havia falecido,
confossa et filia parieti inlisa.
não se passou uma noite sem que algo de
terrível acontecesse, até que a própria casa
foi consumida num incêndio. 4Pereceu ao
mesmo tempo sua esposa, Cesônia,
atravessada pela espada de um centurião e
sua filha, esmagada por uma paredeCLXXX.
CLXXIX
Os costumes da Antiguidade em relação aos mortos ditavam que as almas dos mortos indevidamente
sepultados estavam condenadas a vagar como fantasmas.
CLXXX
O assassinato da linhagem de Calígula possivelmente teria motivações políticas (muito embora o
próprio relato de Suetônio apontasse para o fato de sua filha ter herdado seu caráter vicioso).
117
1
LX.
Condicionem temporum illorum LX. 1Alguém poderia ter uma ideia da
etiam per haec aestimare quiuis possit. condição daqueles tempos através disto:
2
Nam
neque
caede
uulgata
statim
2
pois nem quando a notícia do assassinato
creditum est, fuitque suspicio ab ipso Gaio se espalhou acreditou-se que havia
famam caedis simulatam et emissam, ut eo acontecido, e suspeitou-se que o próprio
pacto
hominum
erga
se
mentes Calígula havia forjado e espalhado o
deprehenderet; neque coniurati cuiquam boato, para com isso saber o que as
imperium destinauerunt; et senatus in pessoas
asserenda libertate adeo consensit, ut conjurados
pensavam
não
deleCLXXXI.
tinham
Os
designado
consules primo non in curiam, quia Iulia ninguém para substituí-lo. E o senado
uocabatur, sed in Capitolium conuocarent, estava tão decidido a reclamar a liberdade,
quidam uero sententiae loco abolendam que fez a primeira convocação dos
Caesarum memoriam ac diruenda templa cônsules não na Cúria, porque tinha o
censuerint.
3
Obseruatum
autem nome de Júlia, mas no Capitólio, e alguns
notatumque est in primis Caesares omnes, propunham, como parecer, que se abolisse
quibus Gai praenomen fuerit, ferro a memória dos Césares e se destruíssem os
perisse, iam inde ab eo, qui Cinnanis seus templos. 3Também se observou e
temporibus sit occisus.
notou que todos os primeiros Césares cujo
primeiro nome era Caio haviam morrido
pela espada, desde aquele que tinha sido
morto nos tempos de CinaCLXXXII.
CLXXXI
CLXXXII
Cf. nota VII
Caio Júlio César Estrabão, morto durante as guerras civis em 87 a.C.
118
5 Conclusão
O trabalho apresentado foi uma proposta de tradução da biografia de Calígula,
extraída do De Vita Caesarum, de Suetônio. Sua principal motivação foi a de empreender
um trabalho de tradução e comentários, que juntos forneceriam ao leitor a capacidade de
ler a vida de Calígula do ponto de vista aproximado de um leitor da época de Suetônio –
conhecendo os detalhes que o autor havia deixado de lado por serem lugares-comuns em
seu tempo, ou simplesmente porque já os havia mencionado em outras de suas biografias.
No entanto, essa proposta acabou por se transformar em algo mais complexo. Ao finalizar
a tradução, surgiu uma série de questionamentos que não poderiam ser ignorados e que
exigiam uma pesquisa mais minuciosa a respeito de aspectos ligados ao contexto de
produção da biografia de Suetônio, tanto do ponto de vista histórico como do ponto de
vista literário, bem como do gênero biográfico como um todo.
Devido a esses questionamentos, procurou-se investigar em primeiro lugar a
maneira como o contexto histórico afetou a obra de Suetônio. Viu-se que isso se deu de
duas maneiras: primeiramente, no nível da obra em si, as biografias oferecem um relato
do período histórico vivido pelos biografados. Muito embora Suetônio não seja um
historiógrafo, suas atitudes enquanto autor de biografias o colocam, ironicamente, mais
próximo daquilo que se esperaria de um historiador moderno do que estariam autores
como Tácito ou Tito Lívio. Diferentemente do que fazem os historiógrafos da
Antiguidade, Suetônio procura reproduzir os fatos sem adorná-los, faz uso de
documentação histórica relevante (como documentos escritos de próprio punho pelos
imperadores que biografou), contesta os relatos de outros colegas eruditos, etc. Um bom
exemplo disso, que se pode ver na biografia de Calígula, é como Suetônio chega à
conclusão do local de nascimento do imperador (Cal VIII). Ele começa por reconhecer
que existe um desacordo entre os autores sobre onde exatamente ele teria nascido: Cneu
Lêntulo Getúlico diz que ele nasceu em Tibur, enquanto Plínio afirma que ele teria
nascido em Tréveris. Estabelecidas as duas versões, ele entra em detalhes sobre a
documentação apresentada por Plínio para sustentar seu argumento. Depois, uma terceira
versão, do próprio Suetônio, é apresentada: os Atos oficiais diriam que ele nasceu em
Âncio. A partir daí ele pesa as diferentes versões e aquilo que as sustenta, atestando que
119
Plínio já havia descartado a hipótese de Getúlico, considerando-a uma tentativa de bajular
o imperador ao sugerir que ele havia nascido numa cidade consagrada a Hércules. Mas o
argumento de Plínio também não se sustenta, já que a inscrição citada por ele não contém
o nome de Calígula, e poderia se referir tanto a um menino quanto a uma menina.
Finalmente, Suetônio defende sua própria posição, citando não só os documentos oficiais,
mas também uma carta de Augusto que corrobora a hipótese do nascimento em Âncio.
Além disso, outras passagens de caráter histórico relevante são perdidas pela falta
de detalhamento típica de Suetônio. Por exemplo, embora a biografia de Calígula
mencione o guarda pretoriano Sejano (20 a.C. – 31 d.C.) em mais de uma ocasião, não se
fala da relevância que essa figura teve durante o governo de Tibério, enquanto o
imperador se submeteu a uma espécie de exílio na ilha de Capri. Assim, para compreender
melhor todas as referências trazidas pelo texto, é necessário entender o funcionamento do
governo romano durante a época do Principado, sobretudo, mas não exclusivamente, o de
Calígula.
A segunda maneira pela qual o contexto histórico afeta a obra de Suetônio é aquela
comum a todos os autores de qualquer período: todo texto é um produto de seu tempo. E
o tempo em que Suetônio viveu e compôs o De Vita Caesarum afeta sensivelmente o
resultado final do seu processo de composição. Assim, ao observar a relevância que o
círculo literário de Plínio, o Jovem (o mesmo cujas observações sobre o nascimento de
Calígula foram contestadas por Suetônio) teve para a vida pessoal do autor, somos
levados a concluir que muito daquilo que se apresenta sobre os imperadores biografados
deveria estar de acordo com as ideias gerais partilhadas por figuras como Plínio e Tácito
a respeito do que faz um imperador ser um bom ou mau governante. Não admira, portanto,
que a sua biografia de Calígula acabe fazendo parte do conjunto de textos que constituem
uma tradição bastante hostil ao período de seu governo, postura motivada pelos
constantes conflitos em que Calígula se envolveu com a própria aristocracia. Sendo
Suetônio um cavaleiro, um seguidor de Plínio e um amigo de Tácito, seu ponto de vista é
fortemente influenciado pela opinião da ordem senatorial. E é assim que relatos que antes
poderiam ser vistos como provocações à aristocracia (como o favoritismo que Calígula
demonstrava por seu cavalo, Incitato) são encarados ao pé da letra, e usados como base
para a construção da ideia de que Calígula fora um homem louco.
120
Ainda pensando no contexto de produção da obra, viu-se a necessidade de
entender melhor o contexto literário em que as biografias de Suetônio se inseriam. Sua
produção literária é um dos grandes momentos da biografia na Antiguidade, e para melhor
compreender as estruturas de suas biografias, é preciso colocá-las em contraste com
outras obras. Foi observando o contraste entre as biografias de Suetônio e as obras
historiográficas de Tácito que pudemos perceber a influência que esse autor teve sobre o
resultado final do texto de Suetônio, posto que Suetônio procurou de diversas maneiras
se distanciar daquilo que Tácito tinha a dizer sobre os mesmos assuntos. Assim, vimos
que Suetônio procurou começar sua obra com a biografia de dois líderes que não foram
abordados por Tácito: Júlio César e Augusto. Essa escolha já lhe garantia alguma
originalidade em relação à Tácito. Mas, mesmo na biografia dos imperadores de que
Tácito falou em suas obras, Suetônio se mostrou diferente. Seu estilo de escrita erudito e
simples se distancia muito da prosa rebuscada de Tácito. A ênfase que Tácito deu aos
assuntos típicos da historiografia clássica, como as grandes batalhas, foi evitada por
Suetônio, que se limita apenas a utilizar as batalhas relevantes dos imperadores para traçar
sua personalidade enquanto líderes militares e chegar a uma conclusão sobre seu caráter
através de suas escolhas e seu comportamento no campo de batalha.
Mas o distanciamento maior entre as duas obras se fez na escolha do gênero
literário dos textos de Suetônio. Ele escreveu uitae, e não historia. O que levou nossa
investigação a se questionar sobre a existência da biografia enquanto gênero literário.
Investigação que demonstrou que os principais “teóricos da literatura” da Antiguidade,
como Platão, Aristóteles, Horácio e Quintiliano não reconheciam a biografia como um
gênero literário à parte. Mas a mesma investigação também concluiu que os textos desses
teóricos raramente tratavam dos gêneros literários de maneira exaustiva: geralmente suas
classificações tinham um caráter mais restritivo, e eram feitas ad hoc. Além disso,
também concluiu que os textos biográficos da Antiguidade muitas vezes apresentavam
reflexões que deixavam clara a intenção de escrever algo que não era história, mas sim
biografia, e que, portanto, apesar de não haver textos teóricos da Antiguidade que
corroborem esse posicionamento, a afirmação de que a biografia foi considerada um
gênero literário pelos autores da época de Suetônio, incluindo o próprio, não é uma
afirmação leviana.
121
Dessa forma, esperamos que o trabalho tenha conseguido, através das
investigações teóricas, da tradução e dos comentários, apresentar satisfatoriamente o
contexto histórico da época retratada por Suetônio na biografia de Calígula; o contexto
histórico em que o próprio autor viveu e escreveu; o contexto literário em que a obra de
Suetônio se situa, influenciada pelos autores de seu tempo; e a possibilidade de encarar
os textos de caráter biográfico produzidos na Roma Antiga como pertencentes a um
gênero literário próprio, separados daqueles textos que são agrupados sob a rubrica da
historiografia.
122
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