O narrador de Angústia para alguns críticos

Transcrição

O narrador de Angústia para alguns críticos
O narrador de Angústia
para alguns críticos
Felipe Oliveira de Paula
UFMG
Resumo: O narrador de Angústia (1936), de Graciliano Ramos, não foi, até
então, alvo de um estudo sistemático e profundo, no entanto, muitos críticos
tocaram nesse ponto quando analisaram a obra literária privilegiando o tempo
da narrativa, o indivíduo social Luís da Silva e a linguagem bipartida de Luís da
Silva. Meu objetivo é expor, de maneira organizada, como alguns desses
estudiosos interpretaram o narrador-personagem neste romance mesmo sem
ter sido esta a força motriz de seus trabalhos.
Palavras-chave: Angústia; Narrador; Revisão Crítica.
Abstract: The narrator of the Angústia (1936), by Graciliano Ramos, was not until then
subject of a systematic and thorough study, however, many critics have touched on this point
when they analyzed the literary work while privileging the time of the narrative, the social
individual Luís da Silva and bipartite language Luís da Silva. My aim is to expose, in an
organized way, as some of the studious have interpreted the narrator-character in this novel
even without this have been the driving force of their works.
Keywords: Angústia, Narrator; Critical Review.
Um estudo cuidadoso sobre qualquer livro de Graciliano Ramos exige, para começar, uma
revisão de sua fortuna crítica. Caso contrário, é bem possível que se diga algo que já foi dito e redito.
Com essa certeza, procurei entender como os principais críticos interpretam o narrador neste romance.
Para minha surpresa, não encontrei um texto sistemático e acessível que tratasse de maneira direta
sobre esse ponto. O que existem são excelentes estudos sobre o romance que, em algum momento,
apropriadamente, tratam do narrador. A falta de um texto que organize essas várias visões sobre o
narrador-personagem me incitou a fazer um artigo com o propósito de expor pontos tocados que
podem ser proveitosos para um estudo aprofundado sobre Angústia (1936).
Tendo em vista a quantidade de estudos, uma revisão de toda a fortuna crítica seria
cansativa e improdutiva, ainda mais considerando as divergentes análises acerca do romance. Diante
disso, privilegiarei os estudos mais renomados no que diz respeito ao terceiro livro de Graciliano
Ramos. Será estabelecido um critério cronológico na ordenação dos estudos, para facilitar a exposição;
evitando, assim, a citação de crítico por crítico – o que poderia acontecer, por exemplo, na parte
referente a Carlos Nelson Coutinho (1978) e Lúcia Helena Carvalho (1983), caso Antonio Candido
(2006) não fosse antes analisado. Vale frisar, ainda, que a leitura privilegiará discussões que de alguma
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
75
maneira incitam a refletir sobre o método composicional de Angústia, especificamente no que tange ao
narrador. Por outro lado, de forma consciente, desviarei, quando possível, da relação que grande parte
da crítica estabelece entre a ficção e a realidade empírica do escritor, como fizeram Helmut Feldman
(1967), Rui Mourão (2003), John Gledson (2003) e outros. Ainda que essa interpretação seja cabível na
obra de Graciliano Ramos, acredito que a discussão demandaria outro estudo, que, neste momento,
poderia me afastar do objetivo principal.
Um dos mais expressivos estudos sobre a obra de Graciliano Ramos é Ficção e confissão
(2006), de Antonio Candido. Nesta coletânea contém ensaios escritos em diferentes momentos para
servirem de prefácios a certos romances do escritor, como foi o desejo do próprio Graciliano. No
primeiro ensaio, homônimo, tornado público em 1940 na introdução de Caetés (1933), o crítico
interpreta as partes “gordurosas e corruptíveis” de Angústia como um defeito e considera-o um livro
menor e transitório dentro da obra do escritor alagoano. No entanto, alguns anos depois, no ensaio
“Bichos do subterrâneo”, de 1961, Antonio Candido reconsiderou algumas das posições expressas no
ensaio “Ficção e confissão”, sobretudo as restrições referentes ao terceiro romance: os excessos e
repetições da narrativa passam a ser vistos como artifícios para melhor compreensão do homem em
foco, permitindo, assim, classificá-la como a mais complexa de Graciliano Ramos, do ponto de vista
técnico. É importante ressaltar que, embora a coletânea Ficção e confissão viesse a ser publicada após
muitos anos (a primeira edição é de 1992), as análises ali presentes já tinham sido feitas e impressas bem
antes, de forma que esses dois trabalhos de Candido são os estudos sistemáticos mais antigos sobre
Angústia, dentre os críticos selecionadosi. Assim, devido a seu caráter reexaminador, será privilegiado
“Bichos do subterrâneo”.
O pressuposto que fora desdobrado tanto no primeiro ensaio quanto no segundo é de que
Graciliano Ramos iniciou sua obra com ficção – Caetés – e fechou com autobiografia – Memórias do
Cárcere (1953) –, sempre tendo em mente a empreitada de “testemunhar” sobre o homem. Nessa
trajetória, Angústia está na virada técnica do romancista por incorporar premissas autobiográficas, mas
apenas como ponto de partida, pois na criação literária elas receberam outra realidade e ganharam novo
destino: o personagem. Caetés e São Bernardo (1934) são narrativas em primeira pessoa, mas, para
Antonio Candido, só em Angústia pode-se encontrar efetivamente o monólogo interior. Nesta obra, ao
contrário das anteriores, as palavras surgem por causa de uma necessidade própria, não importando se
há um interlocutor para a construção de um diálogo. Assim, nos dois primeiros romances, é possível
distinguir a “realidade narrada e a do narrador”, ou seja, pode-se assinalar na trama a separação entre o
mundo exterior em que vivem João Valério e Paulo Honório – respectivamente nos romances que
protagonizam – e o que se passa na consciência de cada um deles. Diferentemente, no terceiro romance
de Graciliano Ramos, não se pode, pelo menos inicialmente, separar na enunciação de Luís da Silva o
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
76
que é fato do que é pensamento ou imaginação, pois o narrador incorpora à sua narrativa um modo
peculiar de se situar no mundo. Com efeito, a trama se constrói numa espécie de zigue-zague entre
realidade presente, constante evocação do passado e um tom expressionista. Disso resulta um tempo
tríplice:
Cada fato apresenta ao menos três faces: a sua realidade objetiva, a sua referência à
experiência passada, a sua deformação por uma crispada visão subjetiva. Se, por
exemplo, está andando de bonde, o narrador registra em atropelo a percepção do
exterior, quase delira com as agruras por que vem passando, foge na imaginação para
certo período da mocidade, recua por um mecanismo associativo até à infância, volta à
obsessão presente e à visão deformada da rua (CANDIDO, 2006, p.113).
Desse modo, o movimento oscilatório entre três tempos torna Angústia uma narrativa
fragmentada e, ao mesmo tempo, coesa com a visão do homem que Graciliano intenciona examinar.
Ao trocar o recurso da descrição e do diálogo, muito comum nos dois primeiros romances, pela
implementação do tempo tríplice, o escritor consegue demonstrar no indivíduo a colisão constante
entre o modo de vida social, que lhe exige adaptação, e uma incapacidade de viver normalmente,
associada a uma profunda autoanálise crítica, o que o deixa revoltado. Assim, a consciência do narrador
quando diante de todo e qualquer fato objetivo é levada ao passado e, ao retornar ao momento da
enunciação, configura, devido a suas memórias, um novo olhar sobre a realidade.
É importante salientar que a leitura feita por Antonio Candido do tempo em três partes
integradas dialeticamente é seguida quase unanimemente pelas análises de críticos posteriores. Um dos
pesquisadores que interpreta de modo diferente o tempo em Angústia é Leônidas Câmara (1978),
sugerindo que, ao privilegiar as solicitações do subjetivismo de Luís da Silva, o escritor diminui a
atuação dos demais personagens e implanta “uma situação de dois planos”, que são o do imaginário e o
da vida autônoma dos personagens. Isto é, para Câmara, existe um tempo instaurado pelas sensações
do narrador, de onde parecem surgir tudo e todos, e um tempo que pode ser reconstruído pelos
diálogos, permitindo, assim, ver os personagens com vidas próprias. No desenvolvimento de sua
hipótese há um direcionamento para a colisão entre os dois planos, pois as personagens “são
constantemente, fatigantemente observadas, medidas e colocadas em termos de realidade, eu diria,
numa situação de choque contra o espírito ou a mente doentia do personagem-narrador” (CÂMARA,
1978, p.306). Nota-se que nessa leitura o conflito se mantém em suspenso, não produzindo outro
tempo ou outro plano. Dessa forma, o que diferencia os estudos de Leônidas Câmara e de Antonio
Candido é que aquele vê uma duplicidade temporal que se colide constantemente, enquanto este
interpreta o tempo duplo como gerador de um tempo tríplice, o da “crispada visão subjetiva” do
narrador. Caso fosse necessário utilizar uma imagem para facilitar e tornar mais didática as duas
análises, Antonio Candido percebe o tempo como forças dialéticas em Luís da Silva,
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
77
consequentemente, na sua narrativa, enquanto Leônidas Câmara percebe as formas numa imagem
paradoxal.
Ainda conforme Antonio Candido (2006, p. 115), o recurso técnico permite na análise do
Eu enxergar “a materialização do homem dilacerado”. A inquietude e a revolta de Luís da Silva surgem
desse dilaceramento, visto que existem simultaneamente uma vontade de viver e um desejo de
aniquilação. Nesse pensamento, Julião Tavares é considerado o duplo de Luís da Silva, pois encarna a
metade triunfante que lhe falta para viver. Há um sentimento paradoxal de inveja e ódio em relação ao
filho de comerciante: ele representa ao mesmo tempo tudo o que o narrador ambiciona – posição
social, ousadia, “tranquila inconsciência” – e tudo o que rejeita – prolixidade, futilidade,
intempestividade. Dessa forma, Graciliano passa de um realismo crítico alimentado pelos fatores do
mundo exterior para um “realismo trágico” que deforma a integridade do mundo em razão dos
problemas do eu; a realidade objetal é transformada e projetada pelo olhar crítico de Luís Silva. Só
poderia conseguir esse “tom expressionista” com perfeição quem já tivesse experimentado as técnicas
destinadas a exprimir o mundo exterior, para depois ser capaz de “desaçaimar o ‘homem do
subterrâneo’ de Angústia” (CANDIDO, 2006, p. 74).
O ensaio de Carlos Nelson Coutinho (1978) procura entender a homologia estrutural entre
o romance e a sociedade brasileira capitalista do início do século XX. Angústia traz ao primeiro plano as
contradições do homem urbano de classe média através de artifícios inovadores para literatura
brasileira. O interessante é ressaltar a habilidade do escritor em utilizar os recursos em moda não como
um fim em si mesmo, mas como meio para trabalhar a realidade brasileira. Portanto, o que importa nos
romances do velho Graça é “a narração de homens concretos, socialmente determinados, vivendo em
uma realidade concreta” (COUTINHO, 1978, p.74).
O crítico ressalta que, devido à transição problemática de uma sociedade colonial para uma
sociedade burguesa, não houve no Brasil uma economia integrada que possibilitasse o desenvolvimento
de uma burguesia orgânica. Ao contrário, criou-se uma específica fragmentação social de uma
economia pré-capitalista, o que provocou, por sua vez, uma falha na formação de uma vida pública
democrática, já que nessa sociedade o indivíduo tende ao isolamento. Tal falha dificulta a constituição
do cytoen, que agrega em si interesses da vida pública e da privada e procura manter o equilíbrio entre
essas duas instâncias, priorizando o bem comum. Como no Brasil o cytoen não existiu, a nova classe
média, preocupada com interesses próprios, se fortalece mantendo relações cordiais com as antigas
classes dominantes, resultando na diminuição do pequeno-burguês a simples mecanismo da produção
capitalista, isto é, os que estavam à margem desse sistema eram progressivamente impossibilitados de
reação e participação efetiva nos benefícios possíveis que o capitalismo proporcionou. Em suma, o
sistema capitalista no Brasil contribui muito para acentuar o isolamento e a solidão do indivíduo, pois,
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
78
em vez de promover uma transformação social, fez com que o homem continuasse se restringindo ao
pequeno mundo de uma vida indigna e sem condições básicas de sobrevivência.
Nelson Coutinho, cuja análise revela perspectivas marxistas, vê nesse contexto o ponto de
partida para a criação da obra romanesca de Graciliano Ramos e defende sua capacidade de pintar
“tipos autênticos” da sociedade brasileira, na medida em que expressam e representam em suas atitudes
o máximo de possibilidades contidas na classe social à qual pertencem. Ressalto que não há a intenção
de reduzir o personagem a determinada classe, mas sim a de pensar suas ações situadas num momento
sócio-histórico, ao relacionar a estrutura da obra à da burguesia brasileira em desenvolvimento. Embora
seja um dos melhores trabalhos sobre Graciliano, aqui vale uma observação importante: mesmo que
não seja o objetivo do crítico, identifica-se, em alguns momentos de seu texto, uma disposição em
demonstrar o contexto socioeconômico como fator determinista na formação do narrador-personagem
de Angústia, como na seguinte passagem: “Historicamente solitário, ele está socialmente condenado à
impotência e a uma liberdade puramente abstrata” (COUTINHO, 1978, p.100).
Ainda seguindo a linha de raciocínio de Carlos Nelson Coutinho, percebe-se que Angústia
localiza os conflitos sociais num nível mais avançado do desenvolvimento capitalista, o que não implica
um avanço no tempo histórico, já que as tramas dos três primeiros romances do escritor se passam no
início do século XX. Isto é, enquanto Caetés tem como pano de fundo o interior agreste e, de certa
forma, passa a perspectiva de mudança na realização e na expansão do homem na metrópole; e, em São
Bernardo, Madalena faz crer que há uma remota esperança na cidade grande, de onde ela veio; Angústia é
contextualizado num espaço geográfico diferente dos demais e mostra a impossibilidade de ascensão
econômica de um indivíduo que não pode desfrutar das vantagens restritas à classe social detentora do
poder econômico, ao contrário do que ocorreu com Paulo Honório na zona rural. O novo conteúdo
em Angústia focaliza o individualismo, a solidão e a impotência do homem urbano diante dos fatos, e
por isso exige uma nova forma de expressão.
Assim, a elaboração formal é imposta por essa necessidade de figurar um conteúdo
inovador, de formalizar, por meio da criação literária, um novo ângulo da realidade. Nesse sentido, o
grande mérito de Graciliano Ramos é utilizar, em Angústia, técnicas de vanguarda sem perder o chão da
realidade objetal. Explico com outras palavras. Vivendo em um período de profundas transformações
sócio-históricas, Luís da Silva se sente deslocado diante das relações constituídas, inclinando-se para a
solidão e encontrando sentido na vida apenas em suas memórias. Contudo, ao contrário do romance de
vanguarda, a tendência progressiva ao isolamento e à solidão não é transformada apenas em “metafísica
condição humana”. No romance de vanguarda, a alienação do homem com relação ao mundo histórico
transforma a “subjetividade individual fetichizada na única matéria de suas análises, desaparece também
– ao lado do mundo e da realidade – o tempo histórico no qual se inserem as ações humanas, tempo do
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
79
qual o tempo subjetivo é apenas um momento subordinado” (COUTINHO, 1978, p.101); James Joyce
e Clarice Lispector são citados pelo crítico como exemplos desse tipo de romance. Diferentemente, em
Angústia a composição estrutural permite visualizar a representação da restrição do homem à sua
subjetividade, ao mesmo tempo possibilita situá-lo num momento concreto de nossa história.
Dessa forma, o monólogo interior é construído em Angústia de maneira a não limitar sua
utilização no objeto em si, pois, através dessa técnica, enxergamos em Luís da Silva, com todos os seus
recalques e complexos, um indivíduo isolado e psicologicamente frustrado devido a sua derrota
“socialmente condicionada”. Do mesmo modo, a conciliação de métodos vanguardistas com aspectos
da narrativa épica tradicional torna possível a representação dialética de sujeito e objeto, da consciência
e da realidade. Isto é, ao mesmo tempo que há uma volta para a pesquisa interior do homem, deve-se
pensá-la em consonância com o momento sócio-histórico. Assim, Graciliano Ramos consegue com seu
romance mais introspectivo uma interpretação artística das consequências do capitalismo nas relações
humanas e demonstra a situação de desespero e solidão de um típico pequeno-burguês brasileiro.
Carlos Nelson Coutinho concorda com a análise de Antonio Candido sobre o tempo
romanesco ao considerar a relação dialética entre os três tempos consolidados na narrativa. Para ele, o
tempo tríplice – “o da narração do presente, o da recordação da infância e do passado e o dos
devaneios subjetivos, o tempo subjetivo interior” (COUTINHO, 1978, p.101). – é responsável pelo
efeito de fragmentação da intriga e deve ser visto como um artifício de construção literária do realismo
crítico. Isto é, a relação entre o tempo objetivo, o tempo rememorado e o tempo da enunciação
instaura uma visão reflexiva sobre a sociedade do início do século XX.
Já Rui Mourão (2003) tem como suporte teórico a fenomenologia de Edmund Husserl e
sua aplicação na crítica literária. Ele aposta numa leitura intuitiva e tenta aprofundar em especificações
por meio do close reading, numa análise minuciosa feita capítulo por capítulo, quase que frase a frase. A
proposta do crítico é fazer uma interpretação de Angústia sem qualquer plano antecipado de trabalho,
pois, desse modo, acredita-se que a intuição crítica terá espaço e será desenvolvida no contato com o
texto literário.
Para o crítico intuitivo, o terceiro romance de Graciliano Ramos, tal como os dois
primeiros, tem uma narrativa subjetiva, contudo não há uma repetição de técnica entre eles. O “recurso
da sonegação de esclarecimento”, percebido também em São Bernardo, é levado às últimas
consequências em Angústia, o que deixa o leitor totalmente perdido no início da narrativa, sem saber ao
menos o “sexo do locutor”. Uma característica da reflexão intuitiva de Mourão é se colocar no lugar do
leitor iniciante, ou seja, sua análise tem sempre em mente a imagem que o leitor criaria perante a
narrativa.
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
80
Logo no início de sua análise, ele mostra que o tempo é exclusivamente interior do
personagem, acarretando na falta de apoio exterior. Graciliano Ramos consegue esse efeito através do
excessivo uso do tempo verbal no presente e, em muitos episódios, utiliza-se o presente habitual, cujo
objetivo é deixar o tempo indeterminado, impossibilitando a marcação temporal exata da ação. Um
exemplo disso é “Dão me um ofício, um relatório”. Não há nesta oração a finalidade de dizer que no
momento da enunciação tenha alguém fornecendo um ofício ou um relatório para o narrador. Só é
possível afirmar que houve um fato no passado que pode continuar acontecendo no presente; não
necessariamente no instante da enunciação. Não obstante, o principal motivo da abundância do tempo
verbal no presente é a descrição feita pelo personagemii de sua consciência desde o primeiro momento.
A utilização quase absoluta do verbo no presente encontra respaldo na ideia de que a consciência de
Luís da Silva só existe aqui e agora e converte tudo o que aconteceu no passado para esse tempo, para
um único instante, “o instante da sua consciência”.
Nas recordações do personagem não existem uma ordem linear, mas sim o atropelo
provocado por associações de ideias, que gera um amontoamento de imagens sem deixar claro,
inicialmente, do que se trata. Esse amontoamento, chamado por Silviano Santiago (2005, p. 293) de
“sobreimpressão”, é acentuado, conforme Mourão, pelo estilo construído por Graciliano, a saber, as
construções paratáxicas, sindéticas ou assindéticas. Uma vez que o tempo da narrativa é psicológico, o
“personagem”, quando está recordando ou vivenciando um acontecimento, tem total liberdade de não
permanecer nele, podendo fugir para outro ponto no passado (próximo ou longínquo), e, a partir desse
ponto, ir para um terceiro. Esse processo de livre associação de ideias é metaforizado como uma caixa
que sai de dentro de outra caixa; o “personagem” faz sair de
uma recordação, uma visão, uma recordação de outra emoção, outra visão, outra
recordação, e por aí até o infinito da sua experiência, quer dizer, até o esgotar de todos
os compartimentos e subcompartimentos da sua lucidez, que ficam reunidos no bojo de
um só instante – a caixa maior que encerra todas as demais [...] Saímos de uma caixa
para outra caixa, deixamos um círculo da consciência para cair noutro, mais amplo ou
não, porque o caos está presente inclusive aí (MOURÃO, p.91-92).
À medida que a leitura do romance progride, fica mais evidente que o que está em jogo é a
representação de uma consciência em funcionamento, por isso a livre associação de ideias; é através do
seu engendramento que o acesso a múltiplos acontecimentos se estabelece, permitindo entender quem
é e como vive o narrador-personagem, Luís da Silva.
Em seu estudo, Lúcia Helena Carvalho (1983) propõe uma leitura que visualiza o sentido
do texto em detalhes que permitem interpretar o “conteúdo manifesto e [o] conteúdo latente”, ou seja,
o explícito e o disseminado e muitas vezes oculto. Preocupada em apreender e explanar as pequenas
repetições bem arquitetadas, sem deixar de considerar a estrutura maior, a estudiosa utiliza os recursos
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
81
propostos pela “construção em abismo”, estudados por Jean Ricardou em Le Nouveau Roman, de 1973.
A construção em abismo possibilita um procedimento interpretativo que põe em evidencia os
interessantes “jogos de reflexos” dentro da narrativa. Nesse sentido, procura-se entender como as
“micronarrativas” contidas no romance, que partem do “discurso-tutor” ou da ação central, contribuem
para tecer uma crítica à narrativa maior. A pesquisadora mostra como a construção em abismo
depreende do interior do romance aspectos que permitem também a reflexão crítica sobre o próprio
fazer literário.
Numa leitura crítica mais voltada para a psicanálise, a estudiosa entende que em Angústia
tem-se um sujeito-narrador, com uma consciência esfacelada, que nos conta o percurso de uma ideia
obsedante – o assassinato de seu duplo, Julião Tavares –, de modo que toda a narrativa circula em
torno desse ponto. Essa perspectiva permite entender que a agressividade reprimida de Luís da Silva
não é fruto do momento atual e, simultaneamente, possibilita ao sujeito conhecer a si próprio devido às
constantes voltas ao passado. Consequentemente, cria-se um discurso fragmentado e descontínuo, e o
tempo novelístico se apresenta em três planos: a realidade objetiva, a experiência passada e a passagem
ao imaginário. Como a própria estudiosa deixa evidente, sua leitura sobre o tempo tríplice é retirada do
ensaio de Antonio Candido (2006), citado anteriormente.
A autora de A ponta do novelo sugere pensar a narrativa como um novelo confuso e o crime
como o fio condutor que dá acesso a múltiplos episódios e projeta diferentes personagens, sem estarem
necessariamente situados no mesmo espaço temporal. Estabelece-se, assim, um
sistema especular, que chega a atingir à quinta dimensão: o romance Angústia, de
Graciliano Ramos (primeira), contém em si o livro que Luís da Silva está escrevendo
(segunda), que, por sua vez, relata a história do seu crime e sua própria história
(terceira), relato este perpassado de reminiscências e visões alucinatórias (quarta),
algumas das quais chegam a conter em si o relato menor, que continua a espelhar a
ação nuclear (quinta) (CARVALHO, 1983, p.25).
Dizendo de outra maneira: na primeira dimensão estaria o escritor, a pessoa empírica
Graciliano Ramos. Na segunda, o autor do livro, Luís da Silva. O relato de Luís da Silva como narrador
seria a terceira dimensão. Desse relato poderíamos conhecer outras histórias, como no segmento em
que o narrador começa a falar dos filhos de D. Rosália que estão descalços e, imediatamente, se lembra
da fazenda de seu avô: quarta dimensão. A partir da quarta surge a quinta dimensão. Seguindo o
exemplo, ao se lembrar da fazenda do avô (quarta dimensão), logo se recorda do episódio de uma cobra
que se enrolou no pescoço do velho Trajano (quinta dimensão). Vale ressaltar que todas as dimensões
se ligam pela ação central ou “nodular”: o crime.
Pode-se perceber uma aproximação entre a interpretação da construção em abismo de
Lúcia Helena Carvalho e a de Rui Mourão, que enxerga em Angústia uma estrutura semelhante à de uma
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
82
“caixa que sai de dentro de outra caixa”, como demonstrado. Os dois críticos veem uma reprodução
constante de imagens a partir de um ponto central: para ela, o crime; para ele, a figura de Marina.
Entretanto, o crítico intuitivo foca seu estudo numa leitura imanente muito próxima ao texto e procura
privilegiar o estilo de Graciliano Ramos, enquanto Lúcia Helena Carvalho se volta para o surgimento
das micronarrativas e para o modo como elas refletem na construção maior, ou, pensando
inversamente, como da história do assassinato de Julião Tavares geminam várias micronarrativas. Para
tanto, ela considera dois paradigmas basilares no discurso de Luís da Silva: morte e erotismo, os quais
são reiterados e articulados no intuito de constituir um esgarçamento da experiência primária do ser
humano. A crítica nota que esses paradigmas são responsáveis pelas duplicações das micronarrativas, e
a sua análise interpretativa procura expor as “coincidências bem construídas” advindas desses
significantes que resultam na estrutura maior – por exemplo, como as múltiplas aparições do símbolo
“corda” remetem ao estrangulamento de Julião Tavares.
Pensando na relação da literatura com a realidade histórica do Brasil, Lúcia Helena entende
que a modificação sócio-histórica pode ser percebida na forma fragmentada e espelhada da narrativa, e
por meio das micronarrativas visualiza-se o espaço de tempo que separa o avô do neto, o que permite
representar “a história da transformação de uma sociedade, cujo eixo de poder se desloca do antigo
mundo senhorial e agrícola para o mundo novo das cidades, onde está engendrando sistema paralelo de
vida e de mando” (CARVALHO, 1983, p.70). Ao levar em conta que Angústia é o livro de Luís da Silva,
ela conclui que há uma consciência por parte do narrador de que seu lugar de direito de herança fora
roubado, o que agravaria a revolta e o ódio contra Julião Tavares, representante genuíno do cidadão
urbano e da burguesia em ascensão. De tal modo, a estudiosa procura compreender Luís da Silva pela
sua maneira de expor sua história, visto que tudo o que aparece na narrativa proporciona maior
entendimento da construção do sujeito.
Marcelo Magalhães Bulhões, em Literatura em campo minado (1999), assim como Rui Mourão
e Lúcia Helena Carvalho, também recorre a uma imagem metafórica para auxiliar na interpretação de
Angústia, a saber, o livro que sai de dentro do livro. Seu objetivo é entender como, em cada romance,
Graciliano Ramos elabora uma crítica à linguagem literária no Brasil, partindo do pressuposto de que as
narrativas incorporam em seu interior a reflexão sobre o próprio sistema. Do mesmo modo, Bulhões
propõe pensar a metalinguagem não apenas na tensão existente no próprio processo de escrita do
autor, mas também em relação ao “texto do outro” – em Angústia, simbolizado por Julião Tavares.
Seguindo o raciocínio de Bulhões, Luís da Silva, assim como Paulo Honório, enxerga no
livro uma possibilidade de enfrentamento de um grande problema: a inadaptação ao mundo em que
vive. De fato, observa-se nas duas narrativas um caráter de confissão, o qual é simultaneamente
necessário e inútil: necessário por servir como válvula de escape e entendimento dos acontecimentos
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
83
passados, inútil porque os narradores não conseguem solução ao discorrer sobre suas vidas. Nesse caso,
Paulo Honório pode ser considerado o autor de São Bernardo, mas Luís da Silva seria autor de Memórias
do Cárcere, e não do romance de que é narrador: “Curiosamente, o ‘livro na prisão’ imaginado por Luís
da Silva em Angústia não deixa de ser, coincidentemente, Memórias do cárcere, livro projetado no ambiente
precário da prisão para a qual Graciliano fora levado em 1936, isto é, depois de ter escrito Angústia”
(BULHÕES, 1999, p.32-33). Vale notar que, em vários momentos, o crítico interpreta Luís da Silva a
partir da vida objetiva do escritor Graciliano Ramos, como fica claro na seguinte passagem: “não seria
demasiado ver em João Valério uma alter ego de Graciliano, como o são Paulo Honório e Luís da
Silva” (BULHÕES, 1999, p.29). Nessa perspectiva, Graciliano Ramos utiliza Julião Tavares como
estratégia para demonstrar tudo o que ele abomina na literatura, e a própria eliminação do rival de Luís
da Silva remete a isso. O filho de comerciante tem uma linguagem fofa, ornamental, excessiva e
falaciosa, enquanto o escritor alagoano é seco, direto e, acima de tudo, coeso com o objeto. Julião
Tavares simboliza o estilo retórico de literários combatidos pelo velho Graça. A reflexão sobre a
linguagem assinalada a partir do estilo pomposo do antagonista, o qual abusa na utilização de termos
pretensiosamente eruditos, clichês e adjetivações desgastadas, incita uma reflexão sobre uma das
concepções literárias vigentes:
Não basta a recusa do estilo derramado, dos clichês e dos recursos “embelezadores”
do texto – tão em voga na produção literária de seus contemporâneos –, mas o que
essa negação possibilita em termos de explicitação do ideológico. Não interessa ao
escritor apenas evidenciar uma opção estilística, mas explicitar, em sua oposição às
formas estereotipadas, a utilização ideológica subjacente a essas formas. Desse modo,
parece haver uma incorporação às avessas da linguagem estereotipada para a discussão
no seio do ideológico, o que se dá, inclusive, pela paródia (BULHÕES, 1999, p.161).
Nesse sentido, o “texto do outro”, a um só tempo, funciona como ferramenta para criticar
as formas estereotipadas do discurso e promove uma discussão sobre o contexto cultural do país, ao
privilegiar uma linguagem mais “natural” em oposição a uma mais “artificial”. A paródia, nesse caso,
autoriza uma problematização sobre a linguagem “beletrista” e deve ser vista junto ao movimento
ideológico que tenta substituir a realidade dos fatos vivos por “uma apoteose verbal”. Conforme o
crítico, é possível identificar tal concepção estilística na belle époque brasileira do final do século XIX e do
início do século XX. Herdeira dos elementos da tradição oratória que se enriquecia pelo
aperfeiçoamento formal, seus representantes procuraram impressionar através do virtuosismo, como
fez Coelho Neto na ficção. O Parnasianismo também se enquadraria nessa crítica, em razão da busca
pela complexidade estilística, da preocupação excessiva com termos eruditos e do cultivo da língua
vernácula, implicando numa distância ainda maior da linguagem “natural”. Na poesia, Bulhões cita a
tríade parnasiana Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac. Embora com proposta estética
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
84
divergente, Euclides da Cunha também é mencionado, visto que não abria mão de uma linguagem
rebuscada mesmo nos momentos de debate sobre problemas nacionais.
A partir desse estudo, é possível entender a importância da escolha formal do narrador em
primeira pessoa, pois é nele que desencadeia de modo contundente toda a polêmica sobre a linguagem,
já que o discurso narrativo utilizado no romance é próprio de Luís da Silva, o que deixa ainda mais
evidente a bipartição do estilo. O narrador utiliza ora uma linguagem “superficial” – dentro da
repartição e nos artigos encomendados –, ora uma mais “natural” – com a qual narra sua vida, o que
remete à discussão ideológica mencionada anteriormente, pois, mesmo cônscio de sua habilidade de
escritor, Luís da Silva é obrigado a utilizar um tipo de escrita, praticado por Julião Tavares, que repudia
e contra a qual ele luta. Portanto, “o elemento bacharelesco assume na narrativa o papel de elemento de
opressão oficial sob o qual se submete o indivíduo” (BULHÕES, 1999, p.128), identificando-se, assim,
a crise permanente de Luís da Silva também no plano textual.
No ensaio “O funcionário público como narrador: O amanuense Belmiro e Angústia”, John
Gledson (2003) aproxima os dois narradores dos romances considerando os contextos histórico e
editorial compartilhados pelos escritores. Contudo, o objetivo é menos reconhecer e apontar possíveis
influências de um livro sobre o outro do que situá-los na década de 1930, a fim de discutir questões
genéricas da história da literatura brasileira. Ainda que sua interpretação tenha focado nos dois
romances, incluindo, em alguns momentos, Brejos das almas, de Carlos Drummond de Andrade, é
possível extrair do seu texto apenas o que se refere ao livro de Graciliano Ramos, sem perder o caráter
vital de sua análise, uma vez que há uma preocupação em demonstrar como Cyro dos Anjos e
Graciliano Ramos lidaram artisticamente com a decadência rural brasileira, cada um trabalhando com
seu respectivo estado de origem. Para o crítico americano, Luís da Silva é o autor de Angústia, e toda a
narrativa serve como instrumento para o narrador se expressar e transpor o sentimento de amargura
perante o contexto social. Consequentemente, o neto de um oligárquico de Alagoas enxerga na
literatura “uma esperança de libertação” (GLEDSON, 2003, p. 207). Ao mesmo tempo,
frustradamente, a literatura nada soluciona e faz com que o narrador volte ainda mais para seu próprio
interior. Nota-se que essa análise do caráter ambíguo da literatura, a partir da relação de Luís Silva com
a escrita, também foi analisada, com objetivo distinto, por Marcelo Magalhães Bulhões.
Seguindo o pensamento de Gledson, a situação do narrador e do escritoriii é provocada pela
natureza da literatura, ou, pelo menos, pela sua condição na sociedade moderna. Vigora um sentimento
de descrença total em relação ao que a literatura pode afirmar, implicando numa visão conflituosa e
autodestrutiva, na medida em que em Luís da Silva tem consciência de sua condição como escritor e da
sua impotência perante o sistema vigente no Brasil no início do século XX. Praticamente em todo o
romance adota-se uma perspectiva dupla: o narrador de dentro – “como produto de uma dada situação
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
85
social, psicológica e familiar” – e o narrador de fora – “indivíduo que se expressa e assim é, pelo menos
até este ponto, uma agente livre” (GLEDSON, 2003, p. 209). Isto é, na narrativa, pode-se perceber
Luís da Silva como produto e sujeito de suas ações. Para conseguir esse efeito, na mente do
personagem, “o passado e o presente são simplesmente justapostos e não posicionados numa sequência
causal ou explicatória” (GLEDSON, 2003, p. 212).
A representação da mente confusa do narrador não se restringe a sua visão, pois acima de
tudo existe Graciliano Ramos manuseando os pensamentos obsessivos de Luís da Silva com a intenção
de “levar o leitor a enxergar certas ligações entre passado e presente, entre fazenda e cidade, de modo
que as ações do herói – especialmente, é claro, o assassinato de Julião Tavares – sejam explicadas por
elas” (GLEDSON, 2003, p. 213). Expondo de outra maneira, nas palavras e ações do narrador não há
uma tentativa consciente de mostrar as transformações sociais ocorridas do período que vai da sua
infância à sua maturidade. Na verdade, no plano ficcional, o narrador é um escritor frustrado que não
consegue se realizar no meio em que vive e que escreve um livro na pretensão de se libertar e se
satisfazer. Nessa narração há uma confusão entre passado e presente, assim como em sua mente.
Pensando nesse plano, que é do narrador ou autor da narrativa, a justaposição temporal não pode ser
vista como uma função causal, ou seja, o narrador não tem ciência do que está sendo instaurado; ele
apenas utiliza a literatura para se desprender do presente. Quem tem conhecimento e domínio da
narrativa é o escritor empírico Graciliano Ramos, único responsável por configurar o tempo romanesco
no nível causal. Para John Gledson, o método de composição do escritor em Angústia, no que diz
respeito aos tempos justapostos, deve ser compreendido pelas “cadeias de causação”, isto é, eles estão
ali para explicar a origem e a causa das ações do personagem. Ao mesmo tempo, servem como
ferramenta que autoriza o escritor alagoano a lidar com um dos problemas de sua época: a transição da
cidade interiorana para a cidade grande, da vida tradicional para a vida moderna.
Para tanto, o estudioso propõe pensar em duas cadeias causais: a social e a psicológica. A
primeira está ligada à ideia de violência como hábito do sertanejo e pode ser percebida em Luís da Silva
por meio das lembranças de cenas de torturas praticadas por cangaceiros e bandidos que fizeram parte,
de alguma maneira, da sua infância, tal como o que aconteceu no vilarejo após a abolição da
escravatura, em 1888. Luís da Silva relembra dos casos contados a ele, segundo os quais muitos
salteadores aterrorizaram o Nordeste, botando fogo em propriedades, estuprando filhas de senhores e
enforcando proprietários de fazendas nos ramos das árvores. Nota-se, contudo, que Graciliano Ramos
dá um contexto específico para a violência. A conexão causal do passado com o presente ocorre por
meio de uma corda que Seu Ivo, um negro que vaga pelo Nordeste pedindo esmolas, dá de presente a
Luís da Silva. Ela será também a ligação entres as cadeias, já que carrega igualmente uma mensagem
social e psicológica.
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
86
Com efeito, na segunda proposta de cadeia causal, a psicológica, Gledson afirma existir
uma intercambialidade de objetos que servem como símbolos e possibilitam uma ligação entre o ódio
irrefletido de Luís da Silva por seu pai e sua necessidade de autoafirmação – na verdade, necessidade de
afirmar sua virilidade através do enforcamento de Julião Tavares. Assim, o homicídio de seu rival é algo
executado, em grande parte, pelos impulsos provocados por esses fatores causais. Não há, nesse estudo,
uma leitura que dê ênfase ao processo de criação ou aos métodos composicionais, mas o destaque da
relação direta entre sociedade e literatura.
Vale finalizar esta revisão de parte da crítica de Angústia ressaltando o aproveitamento de
críticos consagrados de diferentes vertentes, o que não elimina, evidentemente, a existência de várias
outras pesquisas sobre Angústia que não se enquadrariam em nenhuma das linhas citadas acima. Não há,
aqui, a ambição de criar tipos independentes e estanques da crítica, até porque percebe-se um diálogo
permanente entre as várias abordagens que o romance comporta, por exemplo, a interpretação dos
símbolos animalescos que aparecem na narrativa é encontrada tanto em Antonio Candido (2006)
quanto em Lúcia Helena Carvalho (1983).
Ao mesmo tempo, de certa forma, as leituras de outros importantes críticos tocam, num
momento ou noutro, nas abordagens aqui estudadas. Por exemplo, Letícia Malard, em Ensaio de literatura
brasileira (1976), demonstra o aspecto moderno da narrativa de Angústia por meio do entendimento do
“psicologismo”, ou melhor, da formação do sujeito Luís da Silva, visualizado nas recordações de sua
infância. A parte da tese da pesquisadora que seria interessante para nosso trabalho foi sugerida, de
alguma forma, por Antonio Candido (2006), Carlos Nelson Coutinho (1978) ou Lúcia Helena Carvalho
(1983), o que não quer dizer que sua interpretação possa ser anulada se colocada diante destes. Isso não
ocorre até porque sua proposta é diferente do que havia sido feito até então: entender a trajetória dos
quatro romances de Graciliano Ramos – Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas secas – através de seus
protagonistas. Para Letícia Malard, cada protagonista é marcado por condições econômicas causadoras de
conflitos existenciais e representa, progressivamente, uma dimensão dentro da obra. João Valério, Paulo
Honório, Luís da Silva e Fabiano constituem partes de um todo do “herói-síntese, único, indivisível”,
denominado “herói quadridimensional”.
Para não estender nos exemplos, cito apenas mais um. No livro Uma história do romance de 30
(2006), Luís Bueno procurou explanar como Graciliano Ramos instaura em sua narrativa uma
perspectiva inerente ao escritor moderno, a saber: a não separação entre a análise psicológica e a social,
reconhecendo que não há como representar o outro. Na parte da análise direcionada ao romance
Angústia, o crítico demonstra como Luís da Silva prefere se comportar como observador, devido à
impossibilidade de compreensão e aproximação do outro. O tempo é analisado como um dos aspectos
que permitem entender histórica e psicologicamente a distância entre o “eu” e o “outro”. A visão da
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
87
construção do sujeito e da compreensão de suas atitudes no presente através das recuperações das
memórias foi sugerida, com objetivos diferentes, por outros críticos, o que justifica que sua análise não
tenha sido estudada neste texto.
Por fim, não faz sentido uma listagem de todos os pesquisadores de Angústia junto à linha
de abordagem. O que é significativo apontar é que, entre os diferentes pontos de vista da crítica aqui
analisados, não há um estudo sistemático sobre o romance que leve em conta a função do narradorpersonagem e o modo como ele configura toda a trama, principalmente a questão formal. O que há são
excelentes análises com intuitos diferentes, que facilitam, não esgotam, a compreensão do terceiro
romance de Graciliano Ramos. Consequentemente, ao priorizar o recurso técnico, é possível entender
melhor tanto o que Nelson Coutinho (1978) sintetiza como contradições do homem na sociedade
quanto o que Wilson Martins (1978) chama de o homem dentro de si mesmo.
Referências
BUENO, Luís. Uma história do Romance de 30. São Paulo: EdUSP; Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
BULHÕES, Marcelo Magalhães. Literatura em campo minado: a metalinguagem em Graciliano Ramos e a
tradição brasileira. São Paulo: Annablume; FAPESP, 1999.
CÂMARA, Leônidas. A técnica narrativa na ficção de Graciliano Ramos. In: BRAYNER, Sônia (Org.).
Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 277-309.
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CARVALHO, Lúcia Helena. A ponta do novelo: uma interpretação de Angústia de Graciliano Ramos. São
Paulo: Ática, 1983.
COUTINHO, Carlos Nelson. Graciliano Ramos. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Graciliano Ramos. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 73-122.
FELDMAN, Helmut. Graciliano Ramos: reflexos de sua personalidade na obra. Fortaleza: Imprensa
Universitária do Ceará, 1967.
GLEDSON, John. O funcionário público como narrador: O amanuense Belmiro e Angústia. In: ______.
Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos. Tradução de Frederico Dentello. São Paulo:
Cia das Letras, 2003. p. 201-232.
MALARD, Letícia. Ensaio de literatura brasileira: ideologia e realidade em Graciliano Ramos. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1976.
MARTINS, Wilson. Graciliano Ramos, o Cristo e o Grande Inquisidor. In: BRAYNER, Sônia (Org.).
Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 34-45.
MOURÃO, Rui. Estruturas: ensaio sobre o romance de Graciliano. Curitiba: Editora UFPR, 2003.
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
88
RAMOS, Graciliano. Angústia. 61. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005.
______. Caetés. 29. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2002.
______. Memórias do cárcere. 44. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008.
______. São Bernardo. 82. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005.
SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: RAMOS, Graciliano. Angústia. 61. ed. São Paulo: Record, 2005.
Felipe Oliveira de Paula
____________________________________________________________________
Doutorando em Literatura Brasileira (UFMG), Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal
de Minas Gerais (2013), com a seguinte dissertação: “A disjunção como chave interpretativa de
Angústia”, Graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (2009).
Farei apontamentos também sobre “Graciliano Ramos” (1965), de Carlos Nelson Coutinho; Estruturas (1969), de Rui
Mourão; A ponta do novelo (1983), de Lúcia Helena Carvalho; Literatura em campo minado (1999), de Marcelo Magalhães
Bulhões; “O funcionário público como narrador: o Amanuense Belmiro e Angústia” (2003), de John Gledson. Aqui, as datas
entre parênteses referem-se à primeira publicação.
i
Mesmo que não seja este o momento oportuno, vale pontuar uma confusão na leitura do crítico entre narrador e
personagem (MOURÃO, 2003, p. 88, p. 91, p. 92). No entanto, por ora, deve-se entender os dois (narrador e personagem)
como sendo o mesmo.
ii
John Gledson vê em Luís da Silva grande semelhança com Graciliano Ramos. Como dito no início desse artigo, será
deixada a relação entre narrador e escritor de fora da exposição, salvo em trechos que possa comprometer o argumento do
crítico.
iii
________________________________________________________________________________________________
Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013.
89