O narrador de Angústia para alguns críticos
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O narrador de Angústia para alguns críticos
O narrador de Angústia para alguns críticos Felipe Oliveira de Paula UFMG Resumo: O narrador de Angústia (1936), de Graciliano Ramos, não foi, até então, alvo de um estudo sistemático e profundo, no entanto, muitos críticos tocaram nesse ponto quando analisaram a obra literária privilegiando o tempo da narrativa, o indivíduo social Luís da Silva e a linguagem bipartida de Luís da Silva. Meu objetivo é expor, de maneira organizada, como alguns desses estudiosos interpretaram o narrador-personagem neste romance mesmo sem ter sido esta a força motriz de seus trabalhos. Palavras-chave: Angústia; Narrador; Revisão Crítica. Abstract: The narrator of the Angústia (1936), by Graciliano Ramos, was not until then subject of a systematic and thorough study, however, many critics have touched on this point when they analyzed the literary work while privileging the time of the narrative, the social individual Luís da Silva and bipartite language Luís da Silva. My aim is to expose, in an organized way, as some of the studious have interpreted the narrator-character in this novel even without this have been the driving force of their works. Keywords: Angústia, Narrator; Critical Review. Um estudo cuidadoso sobre qualquer livro de Graciliano Ramos exige, para começar, uma revisão de sua fortuna crítica. Caso contrário, é bem possível que se diga algo que já foi dito e redito. Com essa certeza, procurei entender como os principais críticos interpretam o narrador neste romance. Para minha surpresa, não encontrei um texto sistemático e acessível que tratasse de maneira direta sobre esse ponto. O que existem são excelentes estudos sobre o romance que, em algum momento, apropriadamente, tratam do narrador. A falta de um texto que organize essas várias visões sobre o narrador-personagem me incitou a fazer um artigo com o propósito de expor pontos tocados que podem ser proveitosos para um estudo aprofundado sobre Angústia (1936). Tendo em vista a quantidade de estudos, uma revisão de toda a fortuna crítica seria cansativa e improdutiva, ainda mais considerando as divergentes análises acerca do romance. Diante disso, privilegiarei os estudos mais renomados no que diz respeito ao terceiro livro de Graciliano Ramos. Será estabelecido um critério cronológico na ordenação dos estudos, para facilitar a exposição; evitando, assim, a citação de crítico por crítico – o que poderia acontecer, por exemplo, na parte referente a Carlos Nelson Coutinho (1978) e Lúcia Helena Carvalho (1983), caso Antonio Candido (2006) não fosse antes analisado. Vale frisar, ainda, que a leitura privilegiará discussões que de alguma ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 75 maneira incitam a refletir sobre o método composicional de Angústia, especificamente no que tange ao narrador. Por outro lado, de forma consciente, desviarei, quando possível, da relação que grande parte da crítica estabelece entre a ficção e a realidade empírica do escritor, como fizeram Helmut Feldman (1967), Rui Mourão (2003), John Gledson (2003) e outros. Ainda que essa interpretação seja cabível na obra de Graciliano Ramos, acredito que a discussão demandaria outro estudo, que, neste momento, poderia me afastar do objetivo principal. Um dos mais expressivos estudos sobre a obra de Graciliano Ramos é Ficção e confissão (2006), de Antonio Candido. Nesta coletânea contém ensaios escritos em diferentes momentos para servirem de prefácios a certos romances do escritor, como foi o desejo do próprio Graciliano. No primeiro ensaio, homônimo, tornado público em 1940 na introdução de Caetés (1933), o crítico interpreta as partes “gordurosas e corruptíveis” de Angústia como um defeito e considera-o um livro menor e transitório dentro da obra do escritor alagoano. No entanto, alguns anos depois, no ensaio “Bichos do subterrâneo”, de 1961, Antonio Candido reconsiderou algumas das posições expressas no ensaio “Ficção e confissão”, sobretudo as restrições referentes ao terceiro romance: os excessos e repetições da narrativa passam a ser vistos como artifícios para melhor compreensão do homem em foco, permitindo, assim, classificá-la como a mais complexa de Graciliano Ramos, do ponto de vista técnico. É importante ressaltar que, embora a coletânea Ficção e confissão viesse a ser publicada após muitos anos (a primeira edição é de 1992), as análises ali presentes já tinham sido feitas e impressas bem antes, de forma que esses dois trabalhos de Candido são os estudos sistemáticos mais antigos sobre Angústia, dentre os críticos selecionadosi. Assim, devido a seu caráter reexaminador, será privilegiado “Bichos do subterrâneo”. O pressuposto que fora desdobrado tanto no primeiro ensaio quanto no segundo é de que Graciliano Ramos iniciou sua obra com ficção – Caetés – e fechou com autobiografia – Memórias do Cárcere (1953) –, sempre tendo em mente a empreitada de “testemunhar” sobre o homem. Nessa trajetória, Angústia está na virada técnica do romancista por incorporar premissas autobiográficas, mas apenas como ponto de partida, pois na criação literária elas receberam outra realidade e ganharam novo destino: o personagem. Caetés e São Bernardo (1934) são narrativas em primeira pessoa, mas, para Antonio Candido, só em Angústia pode-se encontrar efetivamente o monólogo interior. Nesta obra, ao contrário das anteriores, as palavras surgem por causa de uma necessidade própria, não importando se há um interlocutor para a construção de um diálogo. Assim, nos dois primeiros romances, é possível distinguir a “realidade narrada e a do narrador”, ou seja, pode-se assinalar na trama a separação entre o mundo exterior em que vivem João Valério e Paulo Honório – respectivamente nos romances que protagonizam – e o que se passa na consciência de cada um deles. Diferentemente, no terceiro romance de Graciliano Ramos, não se pode, pelo menos inicialmente, separar na enunciação de Luís da Silva o ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 76 que é fato do que é pensamento ou imaginação, pois o narrador incorpora à sua narrativa um modo peculiar de se situar no mundo. Com efeito, a trama se constrói numa espécie de zigue-zague entre realidade presente, constante evocação do passado e um tom expressionista. Disso resulta um tempo tríplice: Cada fato apresenta ao menos três faces: a sua realidade objetiva, a sua referência à experiência passada, a sua deformação por uma crispada visão subjetiva. Se, por exemplo, está andando de bonde, o narrador registra em atropelo a percepção do exterior, quase delira com as agruras por que vem passando, foge na imaginação para certo período da mocidade, recua por um mecanismo associativo até à infância, volta à obsessão presente e à visão deformada da rua (CANDIDO, 2006, p.113). Desse modo, o movimento oscilatório entre três tempos torna Angústia uma narrativa fragmentada e, ao mesmo tempo, coesa com a visão do homem que Graciliano intenciona examinar. Ao trocar o recurso da descrição e do diálogo, muito comum nos dois primeiros romances, pela implementação do tempo tríplice, o escritor consegue demonstrar no indivíduo a colisão constante entre o modo de vida social, que lhe exige adaptação, e uma incapacidade de viver normalmente, associada a uma profunda autoanálise crítica, o que o deixa revoltado. Assim, a consciência do narrador quando diante de todo e qualquer fato objetivo é levada ao passado e, ao retornar ao momento da enunciação, configura, devido a suas memórias, um novo olhar sobre a realidade. É importante salientar que a leitura feita por Antonio Candido do tempo em três partes integradas dialeticamente é seguida quase unanimemente pelas análises de críticos posteriores. Um dos pesquisadores que interpreta de modo diferente o tempo em Angústia é Leônidas Câmara (1978), sugerindo que, ao privilegiar as solicitações do subjetivismo de Luís da Silva, o escritor diminui a atuação dos demais personagens e implanta “uma situação de dois planos”, que são o do imaginário e o da vida autônoma dos personagens. Isto é, para Câmara, existe um tempo instaurado pelas sensações do narrador, de onde parecem surgir tudo e todos, e um tempo que pode ser reconstruído pelos diálogos, permitindo, assim, ver os personagens com vidas próprias. No desenvolvimento de sua hipótese há um direcionamento para a colisão entre os dois planos, pois as personagens “são constantemente, fatigantemente observadas, medidas e colocadas em termos de realidade, eu diria, numa situação de choque contra o espírito ou a mente doentia do personagem-narrador” (CÂMARA, 1978, p.306). Nota-se que nessa leitura o conflito se mantém em suspenso, não produzindo outro tempo ou outro plano. Dessa forma, o que diferencia os estudos de Leônidas Câmara e de Antonio Candido é que aquele vê uma duplicidade temporal que se colide constantemente, enquanto este interpreta o tempo duplo como gerador de um tempo tríplice, o da “crispada visão subjetiva” do narrador. Caso fosse necessário utilizar uma imagem para facilitar e tornar mais didática as duas análises, Antonio Candido percebe o tempo como forças dialéticas em Luís da Silva, ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 77 consequentemente, na sua narrativa, enquanto Leônidas Câmara percebe as formas numa imagem paradoxal. Ainda conforme Antonio Candido (2006, p. 115), o recurso técnico permite na análise do Eu enxergar “a materialização do homem dilacerado”. A inquietude e a revolta de Luís da Silva surgem desse dilaceramento, visto que existem simultaneamente uma vontade de viver e um desejo de aniquilação. Nesse pensamento, Julião Tavares é considerado o duplo de Luís da Silva, pois encarna a metade triunfante que lhe falta para viver. Há um sentimento paradoxal de inveja e ódio em relação ao filho de comerciante: ele representa ao mesmo tempo tudo o que o narrador ambiciona – posição social, ousadia, “tranquila inconsciência” – e tudo o que rejeita – prolixidade, futilidade, intempestividade. Dessa forma, Graciliano passa de um realismo crítico alimentado pelos fatores do mundo exterior para um “realismo trágico” que deforma a integridade do mundo em razão dos problemas do eu; a realidade objetal é transformada e projetada pelo olhar crítico de Luís Silva. Só poderia conseguir esse “tom expressionista” com perfeição quem já tivesse experimentado as técnicas destinadas a exprimir o mundo exterior, para depois ser capaz de “desaçaimar o ‘homem do subterrâneo’ de Angústia” (CANDIDO, 2006, p. 74). O ensaio de Carlos Nelson Coutinho (1978) procura entender a homologia estrutural entre o romance e a sociedade brasileira capitalista do início do século XX. Angústia traz ao primeiro plano as contradições do homem urbano de classe média através de artifícios inovadores para literatura brasileira. O interessante é ressaltar a habilidade do escritor em utilizar os recursos em moda não como um fim em si mesmo, mas como meio para trabalhar a realidade brasileira. Portanto, o que importa nos romances do velho Graça é “a narração de homens concretos, socialmente determinados, vivendo em uma realidade concreta” (COUTINHO, 1978, p.74). O crítico ressalta que, devido à transição problemática de uma sociedade colonial para uma sociedade burguesa, não houve no Brasil uma economia integrada que possibilitasse o desenvolvimento de uma burguesia orgânica. Ao contrário, criou-se uma específica fragmentação social de uma economia pré-capitalista, o que provocou, por sua vez, uma falha na formação de uma vida pública democrática, já que nessa sociedade o indivíduo tende ao isolamento. Tal falha dificulta a constituição do cytoen, que agrega em si interesses da vida pública e da privada e procura manter o equilíbrio entre essas duas instâncias, priorizando o bem comum. Como no Brasil o cytoen não existiu, a nova classe média, preocupada com interesses próprios, se fortalece mantendo relações cordiais com as antigas classes dominantes, resultando na diminuição do pequeno-burguês a simples mecanismo da produção capitalista, isto é, os que estavam à margem desse sistema eram progressivamente impossibilitados de reação e participação efetiva nos benefícios possíveis que o capitalismo proporcionou. Em suma, o sistema capitalista no Brasil contribui muito para acentuar o isolamento e a solidão do indivíduo, pois, ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 78 em vez de promover uma transformação social, fez com que o homem continuasse se restringindo ao pequeno mundo de uma vida indigna e sem condições básicas de sobrevivência. Nelson Coutinho, cuja análise revela perspectivas marxistas, vê nesse contexto o ponto de partida para a criação da obra romanesca de Graciliano Ramos e defende sua capacidade de pintar “tipos autênticos” da sociedade brasileira, na medida em que expressam e representam em suas atitudes o máximo de possibilidades contidas na classe social à qual pertencem. Ressalto que não há a intenção de reduzir o personagem a determinada classe, mas sim a de pensar suas ações situadas num momento sócio-histórico, ao relacionar a estrutura da obra à da burguesia brasileira em desenvolvimento. Embora seja um dos melhores trabalhos sobre Graciliano, aqui vale uma observação importante: mesmo que não seja o objetivo do crítico, identifica-se, em alguns momentos de seu texto, uma disposição em demonstrar o contexto socioeconômico como fator determinista na formação do narrador-personagem de Angústia, como na seguinte passagem: “Historicamente solitário, ele está socialmente condenado à impotência e a uma liberdade puramente abstrata” (COUTINHO, 1978, p.100). Ainda seguindo a linha de raciocínio de Carlos Nelson Coutinho, percebe-se que Angústia localiza os conflitos sociais num nível mais avançado do desenvolvimento capitalista, o que não implica um avanço no tempo histórico, já que as tramas dos três primeiros romances do escritor se passam no início do século XX. Isto é, enquanto Caetés tem como pano de fundo o interior agreste e, de certa forma, passa a perspectiva de mudança na realização e na expansão do homem na metrópole; e, em São Bernardo, Madalena faz crer que há uma remota esperança na cidade grande, de onde ela veio; Angústia é contextualizado num espaço geográfico diferente dos demais e mostra a impossibilidade de ascensão econômica de um indivíduo que não pode desfrutar das vantagens restritas à classe social detentora do poder econômico, ao contrário do que ocorreu com Paulo Honório na zona rural. O novo conteúdo em Angústia focaliza o individualismo, a solidão e a impotência do homem urbano diante dos fatos, e por isso exige uma nova forma de expressão. Assim, a elaboração formal é imposta por essa necessidade de figurar um conteúdo inovador, de formalizar, por meio da criação literária, um novo ângulo da realidade. Nesse sentido, o grande mérito de Graciliano Ramos é utilizar, em Angústia, técnicas de vanguarda sem perder o chão da realidade objetal. Explico com outras palavras. Vivendo em um período de profundas transformações sócio-históricas, Luís da Silva se sente deslocado diante das relações constituídas, inclinando-se para a solidão e encontrando sentido na vida apenas em suas memórias. Contudo, ao contrário do romance de vanguarda, a tendência progressiva ao isolamento e à solidão não é transformada apenas em “metafísica condição humana”. No romance de vanguarda, a alienação do homem com relação ao mundo histórico transforma a “subjetividade individual fetichizada na única matéria de suas análises, desaparece também – ao lado do mundo e da realidade – o tempo histórico no qual se inserem as ações humanas, tempo do ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 79 qual o tempo subjetivo é apenas um momento subordinado” (COUTINHO, 1978, p.101); James Joyce e Clarice Lispector são citados pelo crítico como exemplos desse tipo de romance. Diferentemente, em Angústia a composição estrutural permite visualizar a representação da restrição do homem à sua subjetividade, ao mesmo tempo possibilita situá-lo num momento concreto de nossa história. Dessa forma, o monólogo interior é construído em Angústia de maneira a não limitar sua utilização no objeto em si, pois, através dessa técnica, enxergamos em Luís da Silva, com todos os seus recalques e complexos, um indivíduo isolado e psicologicamente frustrado devido a sua derrota “socialmente condicionada”. Do mesmo modo, a conciliação de métodos vanguardistas com aspectos da narrativa épica tradicional torna possível a representação dialética de sujeito e objeto, da consciência e da realidade. Isto é, ao mesmo tempo que há uma volta para a pesquisa interior do homem, deve-se pensá-la em consonância com o momento sócio-histórico. Assim, Graciliano Ramos consegue com seu romance mais introspectivo uma interpretação artística das consequências do capitalismo nas relações humanas e demonstra a situação de desespero e solidão de um típico pequeno-burguês brasileiro. Carlos Nelson Coutinho concorda com a análise de Antonio Candido sobre o tempo romanesco ao considerar a relação dialética entre os três tempos consolidados na narrativa. Para ele, o tempo tríplice – “o da narração do presente, o da recordação da infância e do passado e o dos devaneios subjetivos, o tempo subjetivo interior” (COUTINHO, 1978, p.101). – é responsável pelo efeito de fragmentação da intriga e deve ser visto como um artifício de construção literária do realismo crítico. Isto é, a relação entre o tempo objetivo, o tempo rememorado e o tempo da enunciação instaura uma visão reflexiva sobre a sociedade do início do século XX. Já Rui Mourão (2003) tem como suporte teórico a fenomenologia de Edmund Husserl e sua aplicação na crítica literária. Ele aposta numa leitura intuitiva e tenta aprofundar em especificações por meio do close reading, numa análise minuciosa feita capítulo por capítulo, quase que frase a frase. A proposta do crítico é fazer uma interpretação de Angústia sem qualquer plano antecipado de trabalho, pois, desse modo, acredita-se que a intuição crítica terá espaço e será desenvolvida no contato com o texto literário. Para o crítico intuitivo, o terceiro romance de Graciliano Ramos, tal como os dois primeiros, tem uma narrativa subjetiva, contudo não há uma repetição de técnica entre eles. O “recurso da sonegação de esclarecimento”, percebido também em São Bernardo, é levado às últimas consequências em Angústia, o que deixa o leitor totalmente perdido no início da narrativa, sem saber ao menos o “sexo do locutor”. Uma característica da reflexão intuitiva de Mourão é se colocar no lugar do leitor iniciante, ou seja, sua análise tem sempre em mente a imagem que o leitor criaria perante a narrativa. ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 80 Logo no início de sua análise, ele mostra que o tempo é exclusivamente interior do personagem, acarretando na falta de apoio exterior. Graciliano Ramos consegue esse efeito através do excessivo uso do tempo verbal no presente e, em muitos episódios, utiliza-se o presente habitual, cujo objetivo é deixar o tempo indeterminado, impossibilitando a marcação temporal exata da ação. Um exemplo disso é “Dão me um ofício, um relatório”. Não há nesta oração a finalidade de dizer que no momento da enunciação tenha alguém fornecendo um ofício ou um relatório para o narrador. Só é possível afirmar que houve um fato no passado que pode continuar acontecendo no presente; não necessariamente no instante da enunciação. Não obstante, o principal motivo da abundância do tempo verbal no presente é a descrição feita pelo personagemii de sua consciência desde o primeiro momento. A utilização quase absoluta do verbo no presente encontra respaldo na ideia de que a consciência de Luís da Silva só existe aqui e agora e converte tudo o que aconteceu no passado para esse tempo, para um único instante, “o instante da sua consciência”. Nas recordações do personagem não existem uma ordem linear, mas sim o atropelo provocado por associações de ideias, que gera um amontoamento de imagens sem deixar claro, inicialmente, do que se trata. Esse amontoamento, chamado por Silviano Santiago (2005, p. 293) de “sobreimpressão”, é acentuado, conforme Mourão, pelo estilo construído por Graciliano, a saber, as construções paratáxicas, sindéticas ou assindéticas. Uma vez que o tempo da narrativa é psicológico, o “personagem”, quando está recordando ou vivenciando um acontecimento, tem total liberdade de não permanecer nele, podendo fugir para outro ponto no passado (próximo ou longínquo), e, a partir desse ponto, ir para um terceiro. Esse processo de livre associação de ideias é metaforizado como uma caixa que sai de dentro de outra caixa; o “personagem” faz sair de uma recordação, uma visão, uma recordação de outra emoção, outra visão, outra recordação, e por aí até o infinito da sua experiência, quer dizer, até o esgotar de todos os compartimentos e subcompartimentos da sua lucidez, que ficam reunidos no bojo de um só instante – a caixa maior que encerra todas as demais [...] Saímos de uma caixa para outra caixa, deixamos um círculo da consciência para cair noutro, mais amplo ou não, porque o caos está presente inclusive aí (MOURÃO, p.91-92). À medida que a leitura do romance progride, fica mais evidente que o que está em jogo é a representação de uma consciência em funcionamento, por isso a livre associação de ideias; é através do seu engendramento que o acesso a múltiplos acontecimentos se estabelece, permitindo entender quem é e como vive o narrador-personagem, Luís da Silva. Em seu estudo, Lúcia Helena Carvalho (1983) propõe uma leitura que visualiza o sentido do texto em detalhes que permitem interpretar o “conteúdo manifesto e [o] conteúdo latente”, ou seja, o explícito e o disseminado e muitas vezes oculto. Preocupada em apreender e explanar as pequenas repetições bem arquitetadas, sem deixar de considerar a estrutura maior, a estudiosa utiliza os recursos ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 81 propostos pela “construção em abismo”, estudados por Jean Ricardou em Le Nouveau Roman, de 1973. A construção em abismo possibilita um procedimento interpretativo que põe em evidencia os interessantes “jogos de reflexos” dentro da narrativa. Nesse sentido, procura-se entender como as “micronarrativas” contidas no romance, que partem do “discurso-tutor” ou da ação central, contribuem para tecer uma crítica à narrativa maior. A pesquisadora mostra como a construção em abismo depreende do interior do romance aspectos que permitem também a reflexão crítica sobre o próprio fazer literário. Numa leitura crítica mais voltada para a psicanálise, a estudiosa entende que em Angústia tem-se um sujeito-narrador, com uma consciência esfacelada, que nos conta o percurso de uma ideia obsedante – o assassinato de seu duplo, Julião Tavares –, de modo que toda a narrativa circula em torno desse ponto. Essa perspectiva permite entender que a agressividade reprimida de Luís da Silva não é fruto do momento atual e, simultaneamente, possibilita ao sujeito conhecer a si próprio devido às constantes voltas ao passado. Consequentemente, cria-se um discurso fragmentado e descontínuo, e o tempo novelístico se apresenta em três planos: a realidade objetiva, a experiência passada e a passagem ao imaginário. Como a própria estudiosa deixa evidente, sua leitura sobre o tempo tríplice é retirada do ensaio de Antonio Candido (2006), citado anteriormente. A autora de A ponta do novelo sugere pensar a narrativa como um novelo confuso e o crime como o fio condutor que dá acesso a múltiplos episódios e projeta diferentes personagens, sem estarem necessariamente situados no mesmo espaço temporal. Estabelece-se, assim, um sistema especular, que chega a atingir à quinta dimensão: o romance Angústia, de Graciliano Ramos (primeira), contém em si o livro que Luís da Silva está escrevendo (segunda), que, por sua vez, relata a história do seu crime e sua própria história (terceira), relato este perpassado de reminiscências e visões alucinatórias (quarta), algumas das quais chegam a conter em si o relato menor, que continua a espelhar a ação nuclear (quinta) (CARVALHO, 1983, p.25). Dizendo de outra maneira: na primeira dimensão estaria o escritor, a pessoa empírica Graciliano Ramos. Na segunda, o autor do livro, Luís da Silva. O relato de Luís da Silva como narrador seria a terceira dimensão. Desse relato poderíamos conhecer outras histórias, como no segmento em que o narrador começa a falar dos filhos de D. Rosália que estão descalços e, imediatamente, se lembra da fazenda de seu avô: quarta dimensão. A partir da quarta surge a quinta dimensão. Seguindo o exemplo, ao se lembrar da fazenda do avô (quarta dimensão), logo se recorda do episódio de uma cobra que se enrolou no pescoço do velho Trajano (quinta dimensão). Vale ressaltar que todas as dimensões se ligam pela ação central ou “nodular”: o crime. Pode-se perceber uma aproximação entre a interpretação da construção em abismo de Lúcia Helena Carvalho e a de Rui Mourão, que enxerga em Angústia uma estrutura semelhante à de uma ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 82 “caixa que sai de dentro de outra caixa”, como demonstrado. Os dois críticos veem uma reprodução constante de imagens a partir de um ponto central: para ela, o crime; para ele, a figura de Marina. Entretanto, o crítico intuitivo foca seu estudo numa leitura imanente muito próxima ao texto e procura privilegiar o estilo de Graciliano Ramos, enquanto Lúcia Helena Carvalho se volta para o surgimento das micronarrativas e para o modo como elas refletem na construção maior, ou, pensando inversamente, como da história do assassinato de Julião Tavares geminam várias micronarrativas. Para tanto, ela considera dois paradigmas basilares no discurso de Luís da Silva: morte e erotismo, os quais são reiterados e articulados no intuito de constituir um esgarçamento da experiência primária do ser humano. A crítica nota que esses paradigmas são responsáveis pelas duplicações das micronarrativas, e a sua análise interpretativa procura expor as “coincidências bem construídas” advindas desses significantes que resultam na estrutura maior – por exemplo, como as múltiplas aparições do símbolo “corda” remetem ao estrangulamento de Julião Tavares. Pensando na relação da literatura com a realidade histórica do Brasil, Lúcia Helena entende que a modificação sócio-histórica pode ser percebida na forma fragmentada e espelhada da narrativa, e por meio das micronarrativas visualiza-se o espaço de tempo que separa o avô do neto, o que permite representar “a história da transformação de uma sociedade, cujo eixo de poder se desloca do antigo mundo senhorial e agrícola para o mundo novo das cidades, onde está engendrando sistema paralelo de vida e de mando” (CARVALHO, 1983, p.70). Ao levar em conta que Angústia é o livro de Luís da Silva, ela conclui que há uma consciência por parte do narrador de que seu lugar de direito de herança fora roubado, o que agravaria a revolta e o ódio contra Julião Tavares, representante genuíno do cidadão urbano e da burguesia em ascensão. De tal modo, a estudiosa procura compreender Luís da Silva pela sua maneira de expor sua história, visto que tudo o que aparece na narrativa proporciona maior entendimento da construção do sujeito. Marcelo Magalhães Bulhões, em Literatura em campo minado (1999), assim como Rui Mourão e Lúcia Helena Carvalho, também recorre a uma imagem metafórica para auxiliar na interpretação de Angústia, a saber, o livro que sai de dentro do livro. Seu objetivo é entender como, em cada romance, Graciliano Ramos elabora uma crítica à linguagem literária no Brasil, partindo do pressuposto de que as narrativas incorporam em seu interior a reflexão sobre o próprio sistema. Do mesmo modo, Bulhões propõe pensar a metalinguagem não apenas na tensão existente no próprio processo de escrita do autor, mas também em relação ao “texto do outro” – em Angústia, simbolizado por Julião Tavares. Seguindo o raciocínio de Bulhões, Luís da Silva, assim como Paulo Honório, enxerga no livro uma possibilidade de enfrentamento de um grande problema: a inadaptação ao mundo em que vive. De fato, observa-se nas duas narrativas um caráter de confissão, o qual é simultaneamente necessário e inútil: necessário por servir como válvula de escape e entendimento dos acontecimentos ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 83 passados, inútil porque os narradores não conseguem solução ao discorrer sobre suas vidas. Nesse caso, Paulo Honório pode ser considerado o autor de São Bernardo, mas Luís da Silva seria autor de Memórias do Cárcere, e não do romance de que é narrador: “Curiosamente, o ‘livro na prisão’ imaginado por Luís da Silva em Angústia não deixa de ser, coincidentemente, Memórias do cárcere, livro projetado no ambiente precário da prisão para a qual Graciliano fora levado em 1936, isto é, depois de ter escrito Angústia” (BULHÕES, 1999, p.32-33). Vale notar que, em vários momentos, o crítico interpreta Luís da Silva a partir da vida objetiva do escritor Graciliano Ramos, como fica claro na seguinte passagem: “não seria demasiado ver em João Valério uma alter ego de Graciliano, como o são Paulo Honório e Luís da Silva” (BULHÕES, 1999, p.29). Nessa perspectiva, Graciliano Ramos utiliza Julião Tavares como estratégia para demonstrar tudo o que ele abomina na literatura, e a própria eliminação do rival de Luís da Silva remete a isso. O filho de comerciante tem uma linguagem fofa, ornamental, excessiva e falaciosa, enquanto o escritor alagoano é seco, direto e, acima de tudo, coeso com o objeto. Julião Tavares simboliza o estilo retórico de literários combatidos pelo velho Graça. A reflexão sobre a linguagem assinalada a partir do estilo pomposo do antagonista, o qual abusa na utilização de termos pretensiosamente eruditos, clichês e adjetivações desgastadas, incita uma reflexão sobre uma das concepções literárias vigentes: Não basta a recusa do estilo derramado, dos clichês e dos recursos “embelezadores” do texto – tão em voga na produção literária de seus contemporâneos –, mas o que essa negação possibilita em termos de explicitação do ideológico. Não interessa ao escritor apenas evidenciar uma opção estilística, mas explicitar, em sua oposição às formas estereotipadas, a utilização ideológica subjacente a essas formas. Desse modo, parece haver uma incorporação às avessas da linguagem estereotipada para a discussão no seio do ideológico, o que se dá, inclusive, pela paródia (BULHÕES, 1999, p.161). Nesse sentido, o “texto do outro”, a um só tempo, funciona como ferramenta para criticar as formas estereotipadas do discurso e promove uma discussão sobre o contexto cultural do país, ao privilegiar uma linguagem mais “natural” em oposição a uma mais “artificial”. A paródia, nesse caso, autoriza uma problematização sobre a linguagem “beletrista” e deve ser vista junto ao movimento ideológico que tenta substituir a realidade dos fatos vivos por “uma apoteose verbal”. Conforme o crítico, é possível identificar tal concepção estilística na belle époque brasileira do final do século XIX e do início do século XX. Herdeira dos elementos da tradição oratória que se enriquecia pelo aperfeiçoamento formal, seus representantes procuraram impressionar através do virtuosismo, como fez Coelho Neto na ficção. O Parnasianismo também se enquadraria nessa crítica, em razão da busca pela complexidade estilística, da preocupação excessiva com termos eruditos e do cultivo da língua vernácula, implicando numa distância ainda maior da linguagem “natural”. Na poesia, Bulhões cita a tríade parnasiana Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac. Embora com proposta estética ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 84 divergente, Euclides da Cunha também é mencionado, visto que não abria mão de uma linguagem rebuscada mesmo nos momentos de debate sobre problemas nacionais. A partir desse estudo, é possível entender a importância da escolha formal do narrador em primeira pessoa, pois é nele que desencadeia de modo contundente toda a polêmica sobre a linguagem, já que o discurso narrativo utilizado no romance é próprio de Luís da Silva, o que deixa ainda mais evidente a bipartição do estilo. O narrador utiliza ora uma linguagem “superficial” – dentro da repartição e nos artigos encomendados –, ora uma mais “natural” – com a qual narra sua vida, o que remete à discussão ideológica mencionada anteriormente, pois, mesmo cônscio de sua habilidade de escritor, Luís da Silva é obrigado a utilizar um tipo de escrita, praticado por Julião Tavares, que repudia e contra a qual ele luta. Portanto, “o elemento bacharelesco assume na narrativa o papel de elemento de opressão oficial sob o qual se submete o indivíduo” (BULHÕES, 1999, p.128), identificando-se, assim, a crise permanente de Luís da Silva também no plano textual. No ensaio “O funcionário público como narrador: O amanuense Belmiro e Angústia”, John Gledson (2003) aproxima os dois narradores dos romances considerando os contextos histórico e editorial compartilhados pelos escritores. Contudo, o objetivo é menos reconhecer e apontar possíveis influências de um livro sobre o outro do que situá-los na década de 1930, a fim de discutir questões genéricas da história da literatura brasileira. Ainda que sua interpretação tenha focado nos dois romances, incluindo, em alguns momentos, Brejos das almas, de Carlos Drummond de Andrade, é possível extrair do seu texto apenas o que se refere ao livro de Graciliano Ramos, sem perder o caráter vital de sua análise, uma vez que há uma preocupação em demonstrar como Cyro dos Anjos e Graciliano Ramos lidaram artisticamente com a decadência rural brasileira, cada um trabalhando com seu respectivo estado de origem. Para o crítico americano, Luís da Silva é o autor de Angústia, e toda a narrativa serve como instrumento para o narrador se expressar e transpor o sentimento de amargura perante o contexto social. Consequentemente, o neto de um oligárquico de Alagoas enxerga na literatura “uma esperança de libertação” (GLEDSON, 2003, p. 207). Ao mesmo tempo, frustradamente, a literatura nada soluciona e faz com que o narrador volte ainda mais para seu próprio interior. Nota-se que essa análise do caráter ambíguo da literatura, a partir da relação de Luís Silva com a escrita, também foi analisada, com objetivo distinto, por Marcelo Magalhães Bulhões. Seguindo o pensamento de Gledson, a situação do narrador e do escritoriii é provocada pela natureza da literatura, ou, pelo menos, pela sua condição na sociedade moderna. Vigora um sentimento de descrença total em relação ao que a literatura pode afirmar, implicando numa visão conflituosa e autodestrutiva, na medida em que em Luís da Silva tem consciência de sua condição como escritor e da sua impotência perante o sistema vigente no Brasil no início do século XX. Praticamente em todo o romance adota-se uma perspectiva dupla: o narrador de dentro – “como produto de uma dada situação ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 85 social, psicológica e familiar” – e o narrador de fora – “indivíduo que se expressa e assim é, pelo menos até este ponto, uma agente livre” (GLEDSON, 2003, p. 209). Isto é, na narrativa, pode-se perceber Luís da Silva como produto e sujeito de suas ações. Para conseguir esse efeito, na mente do personagem, “o passado e o presente são simplesmente justapostos e não posicionados numa sequência causal ou explicatória” (GLEDSON, 2003, p. 212). A representação da mente confusa do narrador não se restringe a sua visão, pois acima de tudo existe Graciliano Ramos manuseando os pensamentos obsessivos de Luís da Silva com a intenção de “levar o leitor a enxergar certas ligações entre passado e presente, entre fazenda e cidade, de modo que as ações do herói – especialmente, é claro, o assassinato de Julião Tavares – sejam explicadas por elas” (GLEDSON, 2003, p. 213). Expondo de outra maneira, nas palavras e ações do narrador não há uma tentativa consciente de mostrar as transformações sociais ocorridas do período que vai da sua infância à sua maturidade. Na verdade, no plano ficcional, o narrador é um escritor frustrado que não consegue se realizar no meio em que vive e que escreve um livro na pretensão de se libertar e se satisfazer. Nessa narração há uma confusão entre passado e presente, assim como em sua mente. Pensando nesse plano, que é do narrador ou autor da narrativa, a justaposição temporal não pode ser vista como uma função causal, ou seja, o narrador não tem ciência do que está sendo instaurado; ele apenas utiliza a literatura para se desprender do presente. Quem tem conhecimento e domínio da narrativa é o escritor empírico Graciliano Ramos, único responsável por configurar o tempo romanesco no nível causal. Para John Gledson, o método de composição do escritor em Angústia, no que diz respeito aos tempos justapostos, deve ser compreendido pelas “cadeias de causação”, isto é, eles estão ali para explicar a origem e a causa das ações do personagem. Ao mesmo tempo, servem como ferramenta que autoriza o escritor alagoano a lidar com um dos problemas de sua época: a transição da cidade interiorana para a cidade grande, da vida tradicional para a vida moderna. Para tanto, o estudioso propõe pensar em duas cadeias causais: a social e a psicológica. A primeira está ligada à ideia de violência como hábito do sertanejo e pode ser percebida em Luís da Silva por meio das lembranças de cenas de torturas praticadas por cangaceiros e bandidos que fizeram parte, de alguma maneira, da sua infância, tal como o que aconteceu no vilarejo após a abolição da escravatura, em 1888. Luís da Silva relembra dos casos contados a ele, segundo os quais muitos salteadores aterrorizaram o Nordeste, botando fogo em propriedades, estuprando filhas de senhores e enforcando proprietários de fazendas nos ramos das árvores. Nota-se, contudo, que Graciliano Ramos dá um contexto específico para a violência. A conexão causal do passado com o presente ocorre por meio de uma corda que Seu Ivo, um negro que vaga pelo Nordeste pedindo esmolas, dá de presente a Luís da Silva. Ela será também a ligação entres as cadeias, já que carrega igualmente uma mensagem social e psicológica. ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 86 Com efeito, na segunda proposta de cadeia causal, a psicológica, Gledson afirma existir uma intercambialidade de objetos que servem como símbolos e possibilitam uma ligação entre o ódio irrefletido de Luís da Silva por seu pai e sua necessidade de autoafirmação – na verdade, necessidade de afirmar sua virilidade através do enforcamento de Julião Tavares. Assim, o homicídio de seu rival é algo executado, em grande parte, pelos impulsos provocados por esses fatores causais. Não há, nesse estudo, uma leitura que dê ênfase ao processo de criação ou aos métodos composicionais, mas o destaque da relação direta entre sociedade e literatura. Vale finalizar esta revisão de parte da crítica de Angústia ressaltando o aproveitamento de críticos consagrados de diferentes vertentes, o que não elimina, evidentemente, a existência de várias outras pesquisas sobre Angústia que não se enquadrariam em nenhuma das linhas citadas acima. Não há, aqui, a ambição de criar tipos independentes e estanques da crítica, até porque percebe-se um diálogo permanente entre as várias abordagens que o romance comporta, por exemplo, a interpretação dos símbolos animalescos que aparecem na narrativa é encontrada tanto em Antonio Candido (2006) quanto em Lúcia Helena Carvalho (1983). Ao mesmo tempo, de certa forma, as leituras de outros importantes críticos tocam, num momento ou noutro, nas abordagens aqui estudadas. Por exemplo, Letícia Malard, em Ensaio de literatura brasileira (1976), demonstra o aspecto moderno da narrativa de Angústia por meio do entendimento do “psicologismo”, ou melhor, da formação do sujeito Luís da Silva, visualizado nas recordações de sua infância. A parte da tese da pesquisadora que seria interessante para nosso trabalho foi sugerida, de alguma forma, por Antonio Candido (2006), Carlos Nelson Coutinho (1978) ou Lúcia Helena Carvalho (1983), o que não quer dizer que sua interpretação possa ser anulada se colocada diante destes. Isso não ocorre até porque sua proposta é diferente do que havia sido feito até então: entender a trajetória dos quatro romances de Graciliano Ramos – Caetés, São Bernardo, Angústia e Vidas secas – através de seus protagonistas. Para Letícia Malard, cada protagonista é marcado por condições econômicas causadoras de conflitos existenciais e representa, progressivamente, uma dimensão dentro da obra. João Valério, Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano constituem partes de um todo do “herói-síntese, único, indivisível”, denominado “herói quadridimensional”. Para não estender nos exemplos, cito apenas mais um. No livro Uma história do romance de 30 (2006), Luís Bueno procurou explanar como Graciliano Ramos instaura em sua narrativa uma perspectiva inerente ao escritor moderno, a saber: a não separação entre a análise psicológica e a social, reconhecendo que não há como representar o outro. Na parte da análise direcionada ao romance Angústia, o crítico demonstra como Luís da Silva prefere se comportar como observador, devido à impossibilidade de compreensão e aproximação do outro. O tempo é analisado como um dos aspectos que permitem entender histórica e psicologicamente a distância entre o “eu” e o “outro”. A visão da ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 87 construção do sujeito e da compreensão de suas atitudes no presente através das recuperações das memórias foi sugerida, com objetivos diferentes, por outros críticos, o que justifica que sua análise não tenha sido estudada neste texto. Por fim, não faz sentido uma listagem de todos os pesquisadores de Angústia junto à linha de abordagem. O que é significativo apontar é que, entre os diferentes pontos de vista da crítica aqui analisados, não há um estudo sistemático sobre o romance que leve em conta a função do narradorpersonagem e o modo como ele configura toda a trama, principalmente a questão formal. O que há são excelentes análises com intuitos diferentes, que facilitam, não esgotam, a compreensão do terceiro romance de Graciliano Ramos. Consequentemente, ao priorizar o recurso técnico, é possível entender melhor tanto o que Nelson Coutinho (1978) sintetiza como contradições do homem na sociedade quanto o que Wilson Martins (1978) chama de o homem dentro de si mesmo. Referências BUENO, Luís. Uma história do Romance de 30. São Paulo: EdUSP; Campinas: Editora da Unicamp, 2006. BULHÕES, Marcelo Magalhães. Literatura em campo minado: a metalinguagem em Graciliano Ramos e a tradição brasileira. São Paulo: Annablume; FAPESP, 1999. CÂMARA, Leônidas. A técnica narrativa na ficção de Graciliano Ramos. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. 277-309. CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. CARVALHO, Lúcia Helena. A ponta do novelo: uma interpretação de Angústia de Graciliano Ramos. São Paulo: Ática, 1983. COUTINHO, Carlos Nelson. Graciliano Ramos. In: BRAYNER, Sônia (Org.). Graciliano Ramos. 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Angústia. 61. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005. ______. Caetés. 29. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2002. ______. Memórias do cárcere. 44. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2008. ______. São Bernardo. 82. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005. SANTIAGO, Silviano. Posfácio. In: RAMOS, Graciliano. Angústia. 61. ed. São Paulo: Record, 2005. Felipe Oliveira de Paula ____________________________________________________________________ Doutorando em Literatura Brasileira (UFMG), Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (2013), com a seguinte dissertação: “A disjunção como chave interpretativa de Angústia”, Graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (2009). Farei apontamentos também sobre “Graciliano Ramos” (1965), de Carlos Nelson Coutinho; Estruturas (1969), de Rui Mourão; A ponta do novelo (1983), de Lúcia Helena Carvalho; Literatura em campo minado (1999), de Marcelo Magalhães Bulhões; “O funcionário público como narrador: o Amanuense Belmiro e Angústia” (2003), de John Gledson. Aqui, as datas entre parênteses referem-se à primeira publicação. i Mesmo que não seja este o momento oportuno, vale pontuar uma confusão na leitura do crítico entre narrador e personagem (MOURÃO, 2003, p. 88, p. 91, p. 92). No entanto, por ora, deve-se entender os dois (narrador e personagem) como sendo o mesmo. ii John Gledson vê em Luís da Silva grande semelhança com Graciliano Ramos. Como dito no início desse artigo, será deixada a relação entre narrador e escritor de fora da exposição, salvo em trechos que possa comprometer o argumento do crítico. iii ________________________________________________________________________________________________ Letras em Revista (ISSN 2318-1788), Teresina, V. 04, n. 02, jul./-dez, 2013. 89