SUMÁRIO - Uniesp
Transcrição
SUMÁRIO - Uniesp
SUMÁRIO Neste ensaio, Rubens Carmo Elias Filho discute sobre a responsabilidade civil do provedor provedor,, presidente, administrador e diretor clínico de entidades assistenciais hospitalares, no Brasil, onde o princípio que norteia o ordenamento jurídico está assentado na supremacia da dignidade humana. T rês assuntos de alta Três complexidade: a responsabilidade civil, o desenvolvimento do terceiro setor e a desconsideração da personalidade jurídica nas entidades assistenciais hospitalares são cuidadosamente analisados. 34 Este ensaio aborda a responsabilidade civil do dentista, tipos de erros odontológicos, transmissão de moléstias contagiosas na clínica, bem como problemas relacionados com os aparatos utilizados e responsabilidades de fabricantes. A responsabilidade dos fabricantes dos aparelhos é objetiva. A dos dentistas depende da odavia, pela teoria prova de sua culpa. T Todavia, da inversão do ônus da prova, ao cirurgiãodentista cabe a prova liberatória de sua culpa. Por Jerônimo Romanello Neto. A situação das pequenas e médias empresas no Brasil é analisada, aqui, por Sueli Soares de Lima, que discute legislação, situação financeira e prognósticos sobre este importante segmento da economia brasileira, e constata que que,, não obstante serem essas empresas gerado gerado-ras de emprego, têm sido ignoradas ou desestimuladas pelos governos do país país.. 1 8 50 TEMA SUMÁRIO A perspectiva prioritária da ação política inovadora, em Maquiavel, em oposição à concepção medieval, que via a salvação como primordial, e o princípio básico de Mandeville, sintetizado na expressão vícios privados, benefícios públicos, são aqui tratados por Orlando Villas Bôas Filho. 82 Romeu Giora Júnior discute o modelo inovador de investimento e parceria do setor público com o privado, no Brasil, contido na Lei da PPP - Parceria Público-Privada. Este artigo aborda os vários significados d a p a l a v r a D i r e i t o , incluindo mitos que cercam sua acepção jurídica, na Grécia e em Roma. T rata ainda da gênese do direito, Trata considerando as leis da natureza e as leis civis, norteadas pelos princípios gerais estabelecidos pelo direito natural. 98 70 90 Ana Cláudia P ompeu T orezan Andreucci Pompeu Torezan realiza uma leitura crítica do filme norteamericano “Doze homens e uma sentença” sentença”,, a partir do estudo da retórica, desde sua origem até os dias atuais, e de sua ampla aplicabilidade na instituição do T ribunal do Tribunal Júri nos Estados Unidos e no Brasil. UNIESP 2 SUMÁRIO O que é cargo de confiança e quais as suas características? Este tema é posto em discussão por Evilásio Ferreira Filho, tendo como base a CL T. CLT 134 O regime da propriedade intelectual e o sistema de patentes: as licenças compulsórias. Estes temas são discutidos por Maria Lúcia de Barros Rodrigues, que se fundamenta em importantes posições doutrinárias acerca da propriedade intelectual, as quais apontam para a necessidade de uma reforma na regulamentação existente no ordenamento brasileiro brasileiro.. Lúcia P P.. S. Villas Bôas apresenta, aqui, apontamentos para o estudo da relação entre conhecimento e pesquisa, tendo como base alguns aspectos da teoria sistêmica elaborada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. 3 128 180 TEMA UNIESP 4 TEMA ISSN 0103-8338 Revista das Faculdades Integradas Teresa Martin, instituição vinculada à UNIESP. nº 49, janeiro/junho, 2007 Publicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International Periodicals Directory e no Latindex. Circulação regular desde 1986. Edição de janeiro/junho: Direito Editor Responsável: Zenaide Bassi Ribeiro Soares – MTb 8607. Conselho Editorial: Prof. Dr. Aclives Bulgarelli (Mackenzie), Prof. Dr. Alcides Ribeiro Soares (UNESP - Franca), Prof. Dr. Alysson Mascaro (USP), Prof. Dr. Amadeu Paes de Almeida (Mackenzie), Profa. Dra. Ana Cláudia Pompeu T. Andreucci (FATEMA), Prof. Dr. Djalma de Campos (Mackenzie), Prof. Dr. Edivaldo Brito (Universidade Federal da Bahia), Prof. Omar Toledo Damião (FATEMA), Prof. Dr. Orlando Villas Bôas Filho (FATEMA e Mackenzie), Profa. Dra. Regina Toledo Damião (FATEMA), Roberta Nechar Gorni (Universidade de Coimbra), Profa. Dra. Rosa Maria Valente Fernandes (FATEMA), Profa. Dra. Zenaide Bassi Ribeiro Soares (FATEMA e Universidade Guarulhos). Capa: Joanes Lessa. Revisão: Profa. Dra. Rosa Maria Valente Fernandes. Revisão de Inglês: Magali Fialho Linge e Mauro Carneiro Gomes. Editoração Eletrônica: Joaquim Carlos Gonçalves, Kleber Paulo de Oliveira e Roberto de Camargo Damiano. Bibliotecária: Janaína Mendonça Rodini - CRB/8-229. Instituto Educacional Teresa Martin Presidente: Prof. Doutor José Fernando Pinto da Costa Faculdades Integradas Teresa Martin Diretora Geral: Profa. Helyett Melantonio Rua Antonieta Leitão, 129 - Freguesia do Ó - São Paulo - SP Cep: 02925-160 - Tel/Fax: (11) 3931-5777 / 3931-2755 Rua Cardeal Arcoverde, 1097 - Pinheiros - São Paulo - SP Tel/Fax: (11) 3813-6570 site: www.fatema.br 5 TEMA Revista TEMA Publicação indexada no IBICT, no ULRICH’S International Periodicals Directory e no Latindex. Circulação regular desde 1986. R.TEMA S.Paulo nº 49 UNIESP P.192 janeiro/junho, 2007 6 Apresentação N este ano o Instituto Teresa Martin comemora 60 anos de atividades educacionais, a Revista TEMA completa vinte e um anos de circulação regular e a UNIESP festeja a integração dessa instituição ao corpo de Faculdades que administra. Presidida pelo professor José Fernando Pinto da Costa, a UNIESP estimula as Faculdades Integradas Teresa Martin a retomarem com mais força sua trajetória na educação brasileira; valoriza o curso de Direito que, neste ano, forma sua primeira turma; orienta a Revista TEMA para o campo jurídico, revelando a densidade acadêmica e profissional de seu corpo docente e discente, que oferece respostas à sociedade brasileira sobre questões relevantes, de grande atualidade. Coordenado pela professora doutora Regina Damião, o curso de Direito abre nova frente nos espaços tradicionais da educação do país, revelando seu caráter inovador, que exige outro tipo de atitude diante do conhecimento, ultrapassando o formato fechado dos cursos, buscando soluções mais ágeis e flexíveis, com a ampliação das salas de aula para além de suas paredes, projetando-se na comunidade de forma integrada e responsável. Desse modo, o Instituto Educacional Teresa Martin se reorganiza, para enfrentar, com segurança, novos e grandes desafios. Zenaide Bassi Ribeiro Soares Editora da Revista TEMA 7 TEMA Autor e Texto Author - Text Rubens Carmo Elias Filho* RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR, PRESIDENTE, ADMINISTRADOR E DIRETOR CLÍNICO DAS ENTIDADES AS SISTENCIAIS HOSPIT ALARES ASSISTENCIAIS HOSPITALARES CIVIL RESPONSABILITY OF THE PROVIDER, PRESIDENT, ADMINISTRATOR AND CLINICAL DIRECTOR OF HOSPITAL ASSISTANCE ENTITIES RESUMO O presente artigo tem por objetivo discutir três assuntos de alta complexidade e muito em voga no meio jurídico nacional: a responsabilidade civil, o desenvolvimento do terceiro setor e a desconsideração da personalidade jurídica nas entidades assistenciais hospitalares. ABSTRACT The objective of the present article is to discuss about three complex topics which have been focused in the national juridical medium: civil liability, development of the third sector and the disregard of the juridical liability in the hospital assistance entities. PALAVRAS-CHAVE Responsabilidade civil. Terceiro setor. Desconsideração da personalidade jurídica. KEY WORDS Civil liability. Third sector. Disregard of juridical liability. * Advogado, integra o escritório de advocacia Elias e Laskowski Advogados Associados. Bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, onde posgraduou-se em Direito Empresarial. Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. É professor de Direito Civil, Direito Processual Civil e Direito Imobiliário na FATEMA/UNIESP. Professor Assistente no Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Contratual na PUC-SP – COGEAE. Diretor Jurídico da Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de São Paulo. Membro efetivo do Instituto dos Advogados de São Paulo. Autor do Livro “As despesas do Condomínio Edilício”, publicado pela Editora Revista dos Tribunais. Autor do artigo “O Sistema de Financiamento Imobiliário e o Patrimônio de Afetação para a Retomada do Mercado Imobiliário”, publicado na obra Contratos Bancários, da Editora Quartier Latin. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 08-33 8 Rubens Carmo Elias Filho RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROVEDOR, PRESIDENTE, ADMINISTRADOR E DIRETOR CLÍNICO DAS ENTIDADES AS SISTENCIAIS HOSPIT ALARES ASSISTENCIAIS HOSPITALARES CIVIL RESPONSABILITY OF THE PROVIDER, PRESIDENT, ADMINISTRATOR AND CLINICAL DIRECTOR OF HOSPITAL ASSISTANCE ENTITIES N ão há como deixar de anotar que o conceito de hospital evoluiu consideravelmente nos últimos sessenta anos, passando das instituições assistenciais difundidas pelas ordens religiosas para modernos hospitais, que contam com a melhor medicina e ciência, visando, acima de tudo, o restabelecimento do enfermo, pautando pelo asseio, higiene, profissionalismo e especialização. Diferente do que se via até aproximadamente 1940, quando as instituições, ainda que pautadas pelo melhor espírito de assistência e bondade, buscavam, muitas vezes, com improviso, acalentar os enfermos e esperar um final menos sofrido, sem grandes esperanças de progresso e também sem grandes responsabilidades, “porque a assistência se prestava a título de esmola, por comiseração e caridade, e, nesse sentido, aquilo que se fizesse, pouco importando a maneira como se fizesse, era sempre benefício, fruto da boa intenção e sentimento cristão.”, como apontou Odair P. Pedroso1, até porque poucos eram os recursos existentes. Nos dias atuais, ao contrário, impera a supremacia da dignidade humana, princípio norteador do ordenamento 1 ODAIR P. PEDROSO, Evolução Conceitual da Assistência Médico Hospitalar, p. 20. 9 TEMA jurídico pátrio (art. 1º, III, da CF), repelido o descaso para com a vida dos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, de modo que o recolhimento do doente, rico ou pobre, a um hospital constitui para a entidade que o mantém, obrigação de tratamento digno e adequado, e, conseqüentemente, compatível com as possibilidades criadas pela ciência e tecnologia. Desta forma, o que se verifica é que os hospitais, sejam públicos, privados e mesmo os assistenciais, devem zelar, sempre, pela melhor saúde do paciente, devendo contar com as condições compatíveis ao serviço que pretendem prestar, visto que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (art. 196, CF). Ao mesmo tempo em que o conceito de hospital progrediu na busca pela saúde do cidadão, o ordenamento jurídico igualmente evoluiu em prol de maior proteção à pessoa humana. Neste diapasão, quanto ao tema que nos foi confiado, a responsabilidade civil, esta é definida como o dever de indenizar o dano, que se impõe no meio social regrado, traduzindo a própria noção de Justiça, vista a responsabilidade como o “dever moral de não prejudicar a outro, ou seja, o neminem laedere.” 2, visando garantir o direito do lesado de ser plenamente ressarcido dos prejuízos causados para, dentro do possível, restabelecer o statu quo ante. A Lei do Talião, por exemplo, também seria, no passado, uma forma indenizatória, baseada na correspondência entre o dano causado e a conseqüência de sua ocorrência, baseavase, porém, na justiça por iniciativa própria. O Código de Hamurabi (2400 a.c) já estabelecia que: “O médico que mata alguém livre no tratamento ou que cega um cidadão livre terá suas mãos cortadas; se morre, o escravo paga seu preço, se ficar cego, a metade do preço.” 2 RUI STOCCO, Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, p. 59. UNIESP 10 Apoiando-se nas lições de Marton, preleciona Maria Helena Diniz3, quanto à responsabilidade civil: “Vem a ser uma reação provocada pela infração a um dever preexistente. É, desse modo, a conseqüência que o agente, em virtude de violação de dever, sofre pela prática de seus atos. Tem uma função essencialmente indenizatória, ressarcitória ou reparadora. Portanto, dupla é a função da responsabilidade: a) garantir o direito do lesado à segurança; b) ser vir como sanção civil, de natureza compensatória, mediante a reparação do dano causado à vítima.” Estes atos que caracterizam situação desabonadora em afronta ao regime jurídico, causadores de danos a outrem são chamados de atos ilícitos, geradores da responsabilidade civil do agente causador do dano. No Código Civil de 2002, os artigos 186 e 187 apresentam o ato ilícito: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. São pressupostos da responsabilidade civil a ação ou omissão, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade e o dano experimentado pela vítima. Por outro lado, existem outros fatos causadores de responsabilidade, alguns mesmo sem a existência da culpa, com 3 MARIA HELENA DINIZ, Curso de Direito Civil Brasileiro – Responsabilidade Civil, 7º vol, p. 8. 11 TEMA base no risco objetivamente considerado (responsabilidade objetiva) e os casos de responsabilidade por atos lícitos, nos quais o dano nasce de um fato legalmente permitido que obriga o responsável a ressarcir o prejuízo causado ao lesado. O estado de necessidade regulado no Código Civil (art. 188, II) indica ato lícito passível de indenização, pois, havendo deterioração ou destruição de coisa alheia para remover perigo iminente, o dono da coisa, se não for culpado pelo perigo, tem direito de indenização contra aquele que causou o dano, o qual poderá regressivamente cobrar o causador do dano ou aquele em defesa de quem se danificou a coisa4 (art. 929 e 930, CC/02). A desapropriação por interesse público também gera o direito de indenização, assim como outras intervenções na propriedade privada por interesse público ou particular (servidão de águas, servidão de passagem etc). BREVE HISTÓRICO SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS MÉDICOS E HOSPIT AIS NO HOSPITAIS ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO O Código Civil revogado se preocupou basicamente com a responsabilidade civil denominada subjetiva ou aquiliana, cujo nome originou-se da Lex aquilia damno (Séc. III a.c.), a qual estabeleceu, no Direito Romano, as bases jurídicas da responsabilidade civil, criando a compensação pecuniária pelo dano causado. O agente seria responsável se tivesse concorrido com culpa, ou seja, se não tivesse operado com prudência, diligência ou perícia, e, em decorrência de tal fato, provocasse um dano a terceiro. Não contemplou, também, o Código Civil revogado a responsabilidade civil dos hospitais, instituição embrionária, em 1916, limitando-se a estatuir a responsabilidade de 4 MARIA HELENA DINIZ, Op.cit., 7º vol., p.6. UNIESP 12 médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas, em seu artigo 15455. Independentemente da previsão legal, com o surgimento dos hospitais, os tratamentos médicos deslocaram-se das residências para os nosocômios, surgindo a necessidade de se avaliar a existência de responsabilidade ou, ainda, coresponsabilidade dos hospitais, entre outras entidades afins, pelos atos exercidos pelos médicos ou enfermeiras, presumindo-se a culpa do hospital pelos atos culposos de empregados ou prepostos (art. 1521, III, CC/1916)6. Desta forma, caracterizado o erro médico, que causou danos a paciente internado em hospital, a responsabilidade do hospital tornou-se solidária, a menos que se prove que o paciente tinha relação profissional pessoal com o médico, que não possui nenhuma relação contratual com o hospital e que se utiliza apenas dos seus serviços. Com base na responsabilidade civil subjetiva, sustentada na culpa, a responsabilidade do hospital decorre do erro médico, respondendo solidariamente quando existente relação de subordinação entre o causador do dano e o empregador, entidade hospitalar. Cabe, em regra, ao paciente provar o dano causado, o nexo de causalidade entre o dano e suposto ato causador do dano e a culpa do agente. Ocorre que o perigo à saúde e à vida pode não decorrer apenas da atividade do médico, sendo até mesmo intuitiva a dissociação das atribuições do profissional da área de saúde das atribuições do hospital. Por esta razão, o hospital, e, na realidade, a pessoa jurídica que o mantém ou que o administra, responde por seus atos próprios, visto que, mesmo que inexista relação contratual 5 6 Art. 1545.Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento. Súmula 341 do STF: “É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto.” 13 TEMA entre o médico e o hospital, é inegável que no íntimo do paciente se estabeleça uma relação entre todas as partes, relação esta que efetivamente se estabelece, uma vez que o hospital não deixará de prestar serviços ao enfermo7. Nesse contexto, surge a responsabilidade civil objetiva dos estabelecimentos de saúde que, ao contrário do médico, responderão independentemente de prova do liame entre a atuação e o resultado lesivo, porque, sendo fornecedores de serviços, estão obrigados a procederem dentro de rigoroso controle de qualidade, pois, a qualquer tempo poderão ter de provar que determinado resultado danoso decorreu de motivos estranhos ao atendimento prestado8, assim dispondo o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 14: “O fornecedor de ser viços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.” § 1º. O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi fornecido. § 2º. O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas; § 3º. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. 7 8 CARAMURU AFONSO FRANCISO, Responsabilidade civil dos hospitais, clínicas e prontos-socorros, p. 187. FABRÍCIO ZAMPROGNA MATIELO, Responsabilidade Civil do Médico, p. 85. UNIESP 14 § 4º. A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação da culpa. Observe-se, por oportuno, que a responsabilidade objetiva, no campo das entidades assistenciais e fundações, é anterior, tendo origem na norma constitucional: Constituição Federal Art. 37 § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Diante do Código de Defesa do Consumidor, o hospital responde pelo dano produzido pelas coisas (instrumentos, aparelhos) utilizadas na prestação dos seus serviços, visto que ao dono da coisa incumbe, ocorrido o dano, suportar os encargos dele decorrentes, restituindo o ofendido ao statu quo ideal, por meio da reparação.9 Clássica já é a responsabilização do hospital pela infecção médico-hospitalar, que vem sendo analisada sob a ótica da falha na prestação de serviço, obrigação contratual relativamente à incolumidade do paciente, no que concerne aos recursos colocados à disposição para o adequado tratamento e recuperação10. 9 CARLOS ROBERTO GONÇALVES, Responsabilidade civil, p. 372. RT 768/353. “Reparação de danos – Hospital – Prestação de serviços – Simples traumatismo no dedo de um menor que, não obstante o atendimento médico recebido, acaba se transformando em infecção grave a ponto de ser necessária a amputação cirúrgica do membro – Falha no serviço caracterizada – Verba devida pelo estabelecimento hospitalar, pois, nos termos do art. 14 da Lei 8.078/ 90, responde objetivamente, independentemente de culpa, pelos danos causados aos consumidores.” 10 15 TEMA O Código Civil de 2002, assim como o Código revogado, não contemplou especificamente os estabelecimentos hospitalares em seu bojo, contudo, de maneira genérica, não deixou de mencionar que o autor do dano responde objetivamente, independentemente de culpa, pelas atividades de risco (art. 927, Parágrafo único). Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187) causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.” Na teoria do risco criado, inserta no Parágrafo único do artigo 927, supra, não se cogita da intenção ou do modo de atuação do agente, mas apenas da relação de causalidade entre a ação lesiva e o dano, sendo suficiente a existência do nexo causal entre a ação e o dano, porque, de antemão, aquela ação ou atividade, por si só, é considerada potencialmente perigosa11. Outrossim, o artigo 951 ampliou a esfera da responsabilidade, com relação ao 1545 do Código revogado, abrangendo todas as pessoas que em sua atividade profissional, com culpa em sentido estrito, causem dano ao paciente. Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplicase ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. 11 REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA, Novo Código Civil Brasileiro. (Ricardo Fiúza, coord.), p. 820. UNIESP 16 E, os artigos 948 a 950 tratam da liquidação do dano, o valor devido, nas hipóteses de responsabilização civil. Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido. Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até o fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. Parágrafo único. O prejudicado, se preferir, poderá exigir que a indenização seja arbitrada e paga de um só vez. Exposto o direito material, constata-se que o hospital, diante do ordenamento jurídico, submetido está ao regime da responsabilidade civil objetiva, seja porque responde pelos fatos de outrem, pelos atos de seus empregados (presunção de culpa), seja porque responde por sua adequada prestação de serviços. 17 TEMA RESPONSABILIDADE POR A TO OU F A TO DE ATO FA TERCEIRO – PRESUNÇÃO DE CULP A CULPA Responsabilidade dos empregadores ou comitentes pelos atos dos empregados, serviçais e prepostos (art. 932, III) Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil: III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele. Está-se diante da chamada culpa in eligendo: decorre da má escolha do representante, do preposto e culpa in vigilando: decorre da ausência de fiscalização. “Para que haja responsabilidade do empregador por ato do preposto, é necessário que concorram três requisitos, cuja prova incumbe ao lesado: 1º) qualidade de empregado, ser viçal ou preposto, do causador do dano (prova de que o dano foi causado por preposto); 2º) conduta culposa (dolo ou culpa strictu sensu) do preposto; 3º) que o ato lesivo tenha sido praticado no exercício da função que lhe competia, ou em razão dela.” 12 Resta ao empregador, como se verifica, apenas provar que o causador do dano não é seu subordinado ou que o dano não foi causado no exercício do trabalho que lhe competia. Típica é a responsabilidade médica hospitalar, quando caracterizado o erro médico, que causou danos a paciente internado em hospital. A responsabilidade do hospital é solidária, 12 CARLOS ROBERTO GONÇALVES. Op. cit., p. 148. UNIESP 18 a menos que se prove que o paciente tinha relação profissional pessoal com o médico, funcionário ou subordinado do hospital. Importante ressaltar que diante da complexa estrutura hospitalar, na qual existem grupos de médicos, tais como os médicos diretores; médicos chefes de equipe, médicos membros do Corpo Clínico, médicos plantonistas e médicos residentes, a responsabilização dos médicos pode se mostrar segmentada, dificultando a apuração de responsabilidades e até mesmo o exercício do direito de regresso pelo hospital. Por outro lado, se o paciente contratou apenas com o médico que, por sua vez, providenciou a equipe, responde pelos atos de todos os membros da equipe. Direito de regresso do indenizador do dano (art. 934, CC/02) Faculta o Código Civil àquele que ressarcir o dano causado por outrem, reaver o que houver pago daquele por quem pagou (art. 934), sendo recomendável que as entidades hospitalares contratem seus profissionais da forma mais minuciosa possível para viabilizar o exercício do direito de regresso, no âmbito hospitalar. Ao se esmiuçar a responsabilidade dos membros do Corpo Clínico e dos auxiliares, a entidade hospitalar estará facilitando a identificação dos responsáveis pelo eventual dano causado ao paciente. Erro médico O médico tem com o paciente relação contratual, assumindo, conseqüentemente, obrigações. Estas são chamadas de obrigações de meio e de obrigações de resultado. Nas obrigações de meio, cabe ao credor provar que a culpa, pela inexecução ou pelo dano, é do devedor da obrigação (do médico) que se obrigou a empregar todos os 19 TEMA meios e esforços para a consecução de seu objetivo, não respondendo, porém, pelo resultado. Observe-se que o próprio Código de Defesa do Consumidor (art. 14, § 4º) excepciona os profissionais liberais, entre eles o médico, da responsabilidade objetiva, diante da relação de pessoalidade subentendida nos contratos firmados com os profissionais liberais, de onde se extrai a obrigação de meio. Nas obrigações de resultado, por outro lado, dispensase a prova da culpa, porque o contratado se obrigou pelo resultado, como as cirurgias estéticas embelezadoras e não corretivas, nos exames laboratoriais, e, inclusive nos cuidados necessários para que paciente não contraia infecção. Nesses casos, a obrigação assumida é de alcançar a finalidade almejada. Nas obrigações de meio, o erro médico ou culposo, leciona João Monteiro de Castro, “supõe uma conduta profissional inadequada associada à inobservância de regra técnica, potencialmente capaz de produzir dano à vida ou agravamento do estado de saúde de outrem, mediante imperícia, imprudência ou negligência.13” É o mal provocado pelo médico no exercício de sua profissão, quando involuntário. “A Medicina presume um comportamento de meios, portanto o erro médico deve ser separado do resultado adverso quando o médico empregou todos os recursos disponíveis sem obter o sucesso pretendido ou, ainda, diferenciá-lo do acidente imprevisível.”14 A imprudência médica corresponderia a uma ação ou omissão do médico que assume procedimento de risco, sem lhe prestar, ou a quem de direito, os devidos esclarecimentos e 13 14 JOAO MONTEIRO DE CASTRO, Responsabilidade civil do médico, p. 141. JULIO CÉZAR MEIRELLES GOMES, Erro médico, p.244. UNIESP 20 colher o consentimento esclarecido, ou, ainda, atuar sem respaldo ou suporte científico, entre outras possibilidades. A negligência corresponderia a um comportamento negativo do médico que não se empenha no tratamento, não observa os deveres exigidos pela circunstância. Exemplifica Miguel Kfouri Neto: “Revela negligência do médico que, diante do caso grave, permanece deitado na sala dos médicos, em hospital, limitando-se a prescrever medicamento, sem contato com o paciente, criança desidratada, que veio a falecer.”15 A imperícia aconteceria se o médico que não domina determinada técnica a usa, em uma sociedade que se prima pelo constante aperfeiçoamento e especialização. Nas hipóteses acima, responderia o hospital solidariamente pelos atos culposos de seus empregados ou prepostos, recaindo sobre a vítima a prova da culpa. Na responsabilidade objetiva (art. 14, do CDC), o que se observa é que a responsabilidade independe da prova da culpa, bastando o dano para que o prestador de serviços seja compelido a repará-lo a menos que se prove a inexistência de defeitos no serviço prestado ou que a culpa é exclusiva do consumidor (paciente) ou de terceiro (aquele que não participou em nenhuma fase do fornecimento do serviço). DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO EST ABELECIMENTO HOSPIT ALAR ESTABELECIMENTO HOSPITALAR Na forma preconizada pelo artigo 14, caput, do CDC, como fornecedores de serviços, os hospitais estão obrigados a procederem dentro de rigoroso controle de qualidade, de modo que a infecção hospitalar é vista como responsabilidade 15 MIGUEL KFOURI, Responsabilidade civil do médico, p. 78. 21 TEMA objetiva do hospital, assim como danos decorrentes de outros equipamentos utilizados, de propriedade do nosocômio16. Importa observar ainda onde encerra a responsabilidade do médico e inicia a do hospital, ainda que inexista vínculo entre o médico e o hospital. Exemplifica Aguiar Dias: “a direção de um hospital é responsável pelos danos decorrentes de ter o médico do estabelecimento deixado, por vários dias, de verificar o estado de um cliente ali interno, do que resultou agravação do seu estado e anquilose da perna, por ter ficado na mesma posição por tempo prolongado. Não procede a defesa fundada em que se trata de erro técnico, que a direção não pode impedir, nem mesmo criticar, porque o caso é de negligência, cujas conseqüências ela poderia evitar se empregasse fiscalização mais severa. Admitido o doente como contribuinte, forma-se entre ele e o hospital um contrato, que impõe ao último a obrigação de assegurar ao primeiro, na medida da estipulação, as visitas, atenções e cuidados reclamados pelo seu estado.(...) Assim, para resolver se a administração é ou não responsável pela falta do médico, cumpre examinar se ele agiu no exercício de sua profissão. Se, por exemplo, ministrou alta dose de tóxico ao doente; se lhe corta um órgão vital no decorrer de operação cirúrgica, a responsabilidade é exclusivamente sua. Se, no caso contrário, deixa de examinar devidamente uma criança atacada de moléstia contagiosa, confiando-a a uma enfermeira, que é contaminada, pratica negligência ordinária, 16 “ementa da redação: Não respondem pela indenização decorrente de ato ilícito pela morte de paciente por infecção hospitalar os médicos que cuidaram da vítima, e sim o hospital onde permaneceu internada, ainda que os profissionais não sejam subordinados à entidade hospitalar, pois, de acordo com o art. 14, § 4º, do CDC, o contratante somente se exculpará do evento danoso quando o profissional liberal contratado desempenhar automaticamente, seu ofício no mercado de trabalho, o que não se aplica aos serviços profissionais prestados pelas pessoas jurídicas, seja sociedade civil, seja associação profissional. Responsabilidade civil – Indenização hospitalar, como fornecedora de serviços, à família da vítima, independentemente de culpa, mormente se não comprovada a existência de defeito ou culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro – Intelegência do art. 14, caput, e § 3º, I e II, da Lei 8.078/90. RT 755/469. UNIESP 22 que nada tem de profissional, negligência que a fiscalização do leigo poderia evitar. Examinar tardiamente um doente é também negligência ordinária. Acresce, no caso, o fato de haver um contrato entre o doente e o hospital, que se comprometeu, implicitamente, a proporcionar-lhe uma assistência idônea e satisfatória.(...) Concordamos em quase tudo com as ponderações do comentário. Apenas colocamos em lugar de maior importância o contrato entre o hospital e o doente. Em face da garantia que esse contrato encerra, torna-se ocioso indagar – sem proveito para a configuração jurídica da espécie, quando não em seu detrimento – se o médico desempenha ou não função de preposto. Ao cliente que contratou com a direção uma hospitalização em condições satisfatórias, pouco importa indagar do conteúdo da relação jurídica entre a administração e o técnico que presta o serviço por ele prometido.”17 No campo assistencial, a responsabilidade objetiva originou-se de ordem constitucional18, e se o centro médico ou hospital, no exercício de seu mister, aufere receitas, públicas e privadas, para a prestação de serviços médicos, colocando à disposição equipamentos e condições ao exercício da medicina, responde objetivamente pela ocorrência de danos ao paciente, em virtude de sua atividade específica e de seus equipamentos. 17 JOSE DE AGUIAR DIAS. Da Responsabilidade Civil, Tomo I, p. 365/6. CIVIL – FUNDAÇÃO PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO – ATENDIMENTO ERRO NO DIAGNÓSTICO – COMPROVAÇÃO DO NEXO CAUSAL – DEVER DE INDENIZAR – VERBAS. Morte de menor atendido no hospital da Fundação e tratado como caxumba, quando, na verdade, a doença era um abcesso cervical, que, diagnosticado e tratado corretamente poderia impedir a morte do paciente. Fundação, por aplicação da teoria do risco administrativo ou objetiva, a que alude o art. 37, § 6º, da Constituição da República, incidente mesmo não havendo culpa do agente causador do dano. Verificação da concorrência de causas de ambas as partes para o resultado morte e do dano sofrido pelos autores. Diante das circunstâncias de ser a vítima menor de dez meses de idade, apenas o “pretium doloris” deve ser ressarcido, assim mesmo com a redução da verba indenizatória do dano moral, Exclusão das pensões alimentícias, por incabíveis. Recurso parcialmente provido.(TJRJ – 7ª Câm. Cível, AC 2001.01.06708-RJ, Rel. Des. Paulo Gustavo Horta, j. 16/8/2001, BAASP 2282/608, 23.9.2002). 18 23 TEMA A PRESCRIÇÃO DOS MEDICAMENTOS O médico, no exercício da medicina, é obrigado, ainda, a aplicar produtos que, se perigosos, viciados ou inadequados, podem causar danos ao paciente. Diante desse quadro, questiona-se se responderá solidariamente o médico pelos produtos prescritos e o hospital pelos produtos utilizados pelos médicos que lhe são subordinados. A nosso ver, a responsabilização decorreria apenas se o medicamente ministrado que carreasse vício à saúde, tivesse sido prescrito em dosagem extrapolada ou na hipótese de receita de medicamento incongruente ao combate da doença. Eventuais efeitos colaterais devem ser devidamente informados e a dosagem corretamente indicada. Caso contrário, pelo defeito da informação, o médico poderá responder pelo dano causado. No caso de medicamentos defeituosos ou que não permitam a evolução do quadro clínico almejada, se o médico se circunscrever à prescrição de remédios de qualidade anteriormente comprovada, nenhuma responsabilidade advirá19. DA RESPONSABILIDADE DO PROVEDOR, PRESIDENTE, ADMINISTRADOR E DIRETOR CLÍNICO. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA Diante do contexto jurídico acima citado, se vislumbra que a instituição hospitalar acaba sendo um verdadeiro pólo de atração de indenizações por danos supostamente causados ao paciente. Não seria leviano afirmar que as entidades hospitalares são vítimas da indústria de indenizações intentadas pelos negociantes da honra. Importante então avaliar quais riscos que podem surgir aos maestros da majestosa ópera assistencial. 19 JOAO MONTEIRO DE CASTRO. Op. cit., p. 174. UNIESP 24 Quais as possibilidades de as perdas e danos, materiais ou morais, resvalarem nos comandantes, seja o provedor, o presidente, o administrador e diretor clínico, por meio do perigoso instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Perigoso sim, porque em mãos desatentas, pode se tornar verdadeiro constrangimento, para não se dizer ilegalidade, na medida em que, sem se atentar aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, muitos juízes, no afã de solucionar conflitos, arbitrariamente, podem desconsiderar a personalidade jurídica de entidades, mesmo as de fins não-econômicos, para atingir o patrimônio pessoal de seus membros, sócios e administradores, em violação frontal ao artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal20. Aplicando-se o Código de Defesa do Consumidor às relações entre o hospital, médico e paciente, conseqüentemente, se torna indispensável mencionar o artigo 28, do CDC, que dispõe: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação aos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provados por má administração. ———————————————— § 5º. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos causados aos consumidores. 20 art. 5º LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele atinentes. 25 TEMA De mesmo orientação, o artigo 50, do Código Civil de 2002: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. A pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente de seus membros, pois efetua negócios sem qualquer ligação com a vontade deles; além disso, se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas naturais que a compõem, se o patrimônio da sociedade não se identifica com o dos sócios, fácil será lesar os credores, mediante abuso de direito, caracterizado por desvio de finalidade, circunstância que, avaliada em concreto, poderá ensejar a despersonalização da pessoa jurídica para a satisfação dos direitos dos credores, com os bens pessoais dos sócios. Frise-se, porém, ser necessária a ocorrência de fatos fartamente demonstrados de desvio de conduta para a desconsideração da personalidade jurídica, a qual somente deveria ocorrer por meio de ação própria, oportunizando todo o direito de defesa àqueles que puderem ser prejudicados21. Para tal responsabilização, necessário também seria identificar as personagens responsáveis pelos atos autorizadores da despersonalização, a qual não deve ser feita de maneira genérica22. Nesta linha de raciocínio, necessário dissociar aqueles que atuam nas instituições mantenedoras, 21 Inúmeras são as propostas de lege ferenda de exigir-se ação própria para a despersonalização. 22 ENUNCIADO 7 do CEJ: “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irreguar, e limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido.” UNIESP 26 como o provedor e o presidente, daqueles que ocupam cargos de direção hospitalar, como o administrador e o diretor clínico. O provedor e o presidente das associações ou fundações atuam, sem qualquer remuneração, em prol do desenvolvimento da benemerência, da assistência, e somente responderão na demonstração de atitudes ilícitas em proveito próprio, com desvio de bens e ultrapassando as funções estatutárias. Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores exercidos nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo. Maiores riscos, a meu ver, correm o administrador e o diretor clínico, e isto porque no organograma hospitalar estes em geral são prepostos da pessoa jurídica, devendo zelar pela aplicação das regras do hospital e decidindo sobre as principais questões levantadas pelo Corpo Clínico (perante terceiros, são eles que manifestam a vontade da entidade), de modo a, eventualmente, responderem pelos atos de seus auxiliares, se compuserem o corpo de médicos ou, ainda, se realizarem procedimentos que não se compatibilizam com os estatutos e regimentos da entidade. Não nos parece, todavia, que qualquer erro médico culposo possa permitir o atingimento do patrimônio pessoal dos administradores, mas apenas em casos excepcionais, de clara demonstração de menosprezo ao ser humano, nos quais, conseqüentemente, existiria negligência dos superiores hierárquicos23. 23 PESSOA JURÍDICA – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURIDICA – Expediente que só se admite como medida excepcional. Necessidade de prova cabal e completa de que a sociedade tenha sido constituída com finalidade manifestamente ilícita. Situação fática, ademais, em que sequer se comprova a ausência de bens da entidade. Inexistência de elementos mínimos que autorizassem a despersonalização. Penhora sobre bens dos sócios afastada. (1º TAC/SP, 8ª Câm., AI n. 869.288-4 SP, Rel. Juiz Maurício Ferreira Leite, j. 4/ 8/1999). 27 TEMA Observe-se que, no exercício das atividades administrativas e de chefia, cabem ao administrador e diretor clínico “o dever de assegurar as condições mínimas para o desempenho ético-profissional da Medicina” (art. 17), não se olvidando de que “Nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital ou instituição pública ou privada poderá limitar a escolha, por parte do médico, dos meios a serem postos em prática para o estabelecimento do diagnóstico e para a execução do tratamento, salvo quando em benefício do paciente (art. 16, do Código de Ética Médica). Destacam-se ainda os seguintes mandamentos do Código de Ética Profissional do administrador hospitalar24: Art. 13. O Administrador Hospitalar testemunha respeito a todas as formas de manifestação da vida e empenha-se em preservá-la, mantê-la e desenvolvê-la, até o limite das suas possibilidades, repudiando tudo quando possa agredi-la ou diminuir sua plena expressão. Art. 16. O Administrador Hospitalar pauta sua administração pelo princípio de que a pessoa humana é o fundamento, o sujeito e o fim de toda instituição assistencial e, quando enferma, o centro e a razão de ser de toda a atividade de saúde e hospitalar. Pautando pela vida, estimulando o aprimoramento humano, cultural e técnico dos profissionais que trabalham no hospital, juntamente com a constante atualização tecnológica, o administrador hospitalar atuará em conformidade com os ditames legais, não podendo, conseqüentemente, se responsabilizar pessoalmente por infortúnios. Na ocorrência do dano oriundo de erro médico, caracterizado este como ato ilícito, responderão solidariamente os prepostos que atuaram para o fato e o empregador, hospital, 24 ELMA L.C. ZOBOLI, Ética e Administração Hospitalar, p. 246/5. UNIESP 28 sendo que se este último pagar o débito, poderá regressivamente cobrar dos causadores. A situação fica nebulosa para o administrador e diretor clínico, responsáveis pelo bom funcionamento do hospital, sendo o último obrigatoriamente médico, respondendo pelos atos de seus prepostos e possivelmente pelos danos pelo fato da coisa (eventual falha de equipamentos do hospital, por exemplo). Assinala Ângela Tuccio Teixeira25: “Importante notar que esse artigo26 indica de maneira abrangente que a atividade exercida pelo administrador gera obrigações para a entidade. Vale dizer que esse dispositivo traz pelo menos duas afirmações a serem consideradas: a) cabe à entidade delegar poderes de maneira razoável, cientificando-se de tudo quando ocorre no exercício da administração de seu estabelecimento. Delegar, pois, não significa conferir poderes ilimitados; b) cabe ao administrador zelar pelo seu exercício profissional, levando em conta a possibilidade de cumprimento das metas propostas e, principalmente, o contido no capítulo do Código de Ética do Administrador que trata de seus deveres. Não cabe a alegação de que eventual infortúnio tenha ocorrido porque o gestor nada poderia ter feito para alterar o curso dos fatos ditados pela entidade.” COMO PREVENIR A RESPONSABILIDADE CIVIL A prevenção se mostra, nessa sociedade de negociantes da honra, da indústria da indenização, como um forte remédio 25 ANGELA TUCCIO TEIXEIRA, O administrador hospitalar diante da vigente legislação civil. 26 Art. 47, do CC/02. 29 TEMA para se evitar abusos jurídicos e também aquelas medidas decorrentes de uma má informação. É óbvio que, com exceção das hipóteses de obrigação de resultado, o médico não pode se comprometer com o objetivo pretendido. Deve sim utilizar corretamente as técnicas preconizadas para alcançar o objetivo almejado. Mas isto não basta, pois precisa demonstrar que o resultado obtido foi o possível, além de informar previamente o paciente sobre os eventuais riscos. O primeiro mandamento para o médico evitar ser acusado de culpa que não lhe cabe é ser explícito com o paciente. Deve deixar claro e comprovado o pleno entendimento do paciente quanto à gravidade do problema e claramente entender a seu nível qual a evolução natural da doença e o que se pode esperar do tratamento proposto, inclusive, quais as alternativas de tratamento e os riscos confrontados com os benefícios que cada alternativa por oferecer27. O Termo de Consentimento Informado (Livre e Esclarecido) e o Termo de Responsabilidade se mostram como verdadeiras armas no combate às insatisfações dos pacientes, devendo dele constar: a) identificação; b) procedimento; c) descrição técnica; d) possíveis insucessos; e) complicações pré e pós-operatória; f) anestesia; g) possibilidade de mudança de conduta; h) declaração de atendimento; i) confirmação de autorização (local-data); j) revogação; l) assinatura; m) testemunhas28, dispondo, inclusive, sobre os direitos e deveres do paciente e do hospital, tais como: a) faculdades do médico em caso de iminente perigo de vida; b) procedimentos em caso de recusa do paciente em realizar exames; c) indicação do responsável em caso de incapacidade mensal do paciente etc. O dever de informação é fundamental para a salvaguarda dos profissionais e estabelecimentos da área de saúde: 27 IRANY NOVAH MORAES, Erro médico e a Justiça, p. 576. FLORISVAL MEINÃO, Cuidado nunca é demais, Revista da APM, abril de 2005, 24-25. 28 UNIESP 30 a) informação do paciente: É fundamental que o paciente seja informado pelo médico sobre a necessidade de determinadas condutas ou intervenções e sobre os riscos e conseqüências. b) informações registradas no prontuário: uma das primeiras fontes de consulta e informação sobre um procedimento médico contestado é o prontuário do paciente. É muito importante que ali estejam registradas todas as informações pertinentes e oriundas da prática profissional. c) informações aos outros profissionais: em muitas oportunidades, a participação de outros profissionais é imprescindível, sendo muito importante a interação, inclusive, aos substitutos do plantão sobre pacientes internados, por meio de registro circunstanciado em livro de ocorrências. RESPONSABILIDADE CIVIL E CRIMINAL (ART (ART.. 935, CC/02) A responsabilidade civil acarreta a necessidade de ressarcimento dos danos causados; a criminal a de cumprimento da pena estabelecida na lei penal. Contudo, se a sentença criminal reconhecer o fato e o respectivo agente ou negar a existência do fato e sua autoria, na justiça civil não poderão mais ser questionadas essas matérias. Em sentido contrário, a improcedência da ação penal, não inviabiliza a indenização, na esfera cível, na medida em que nem todo fato será considerado crime, podendo ainda se supor a absolvição pela ausência de provas. E, ainda, a sentença condenatória, na seara cível, nenhuma influência terá na instância criminal, a qual exige pressupostos específicos29. 29 RICARDO FIÚZA(coord.). Novo Código Civil Comentado, p. 833. 31 TEMA CONCLUSÃO A entidade assistencial hospitalar assume todas as responsabilidades da instituição privada com fins econômicos. Deve investir em seu aprimoramento e de seus auxiliares, em tecnologia, ciência e instalações adequadas ao bom atendimento porque a saúde é direito de todos. No desenvolvimento de suas atividades, essencial será tomar todas as precauções para evitar o erro médico, prestigiando a informação adequada e a constante atualização, seguindo os ensinamentos de Hipócrates para nunca se olvidar: “O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.”30. O fato de ser entidade assistencial, em nada atenua a sua responsabilidade, impondo, aliás, a obrigação de exercer o trabalho adequado e supervisionado pelos administradores e diretores clínicos. Cabem às entidades mantenedoras o acompanhamento dos trabalhos, em prol do bem estar do paciente, zelando pela melhor medicina, com competência e honestidade. A doação pessoal ao trabalho assistencial expressa verdadeira obra de bondade e fraternidade. Essa dádiva, porém, deve seguir rígido regramento, evitando serem desvirtuados os institutos e vulgarizada a medicina. Assumir tais incumbências é grande obrigação e, como tal, se violada, gera responsabilidade civil e criminal. 30 Art. 2º, do Código de Ética Médica. UNIESP 32 BIBLIOGRAFIA AGUIAR, José de. Da responsabilidade civil I. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1954. 389p. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA. Iniciação à bioética. São Paulo, 1998. 302p. ___________. Código de ética médica. São Paulo, 2004. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Responsabilidade civil.12ª ed. aum. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998. 560 p. FIÚZA, Ricardo (coord.). Novo código civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002. 1843 p. FRANCISCO, Caramuru Afonso. Responsabilidade civil dos hospitais, clínicas e prontos-socorros. Responsabilidade civil médica, odontológica e hospitalar. Coord. Carlos Alberto Bittar. São Paulo: Saraiva, 1991. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das obrigações (Parte Geral). 5ª ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002.133 p. ___________. Responsabilidade civil. 8ª ed. revista de acordo com o novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003.940 p. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 3ª ed. amp. atual. São Paulo: Saraiva, 1998. 690 p. 33 MATIELO, Fabricio Zamprogna. Responsabilidade civil do médico. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 1998. 266p. MONTEIRO DE CASTRO, João. Responsabilidade civil do médico. São Paulo: Método, 2005. 320p. MORAES. Irany Novah. Erro médico e a justiça. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. MEINÃO. Florisval. Cuidado nunca é demais. Revista da Associação Paulista de Medicina, São Paulo, 24-25. Abril de 2005. PEDROSO. Odair P. Evolução Conceitual da Assistência médicohospitalar. São Paulo: Associação Paulista de Hospitais, 1984. RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.716p. STOCCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. 4ª ed. atual e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 1348 p. TEIXEIRA, Angela Tuccio. O administrador hospitalar diante da vigente legislação civil. Indicador Jurídico, 2-2, agosto-setembro de 2003. ZOBOLI, Elma L.C.P. Ética e administração hospitalar. São Paulo: Loyola, 2002. TEMA Autor e Texto Author - Text Jerônimo Romanello Neto* A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ODONTOL OGIST A ODONTOLOGIST OGISTA THE CIVIL RESPONSABILITY OF THE ODONTOLOGIST RESUMO O advento do Código de Defesa do Consumidor trouxe um novo enfoque à responsabilidade civil. Moderno e eficiente, introduziu a responsabilidade objetiva trazendo, indiretamente, a melhoria dos produtos, tecnologia e de mercado, propiciando ao consumidor maiores oportunidades e escolhas. Mas deste fato não se pode concluir que o consumidor saiba, por si, dos riscos do tratamento, do uso de aparelhos odontológicos, médico-hospitalares etc. A responsabilidade dos fabricantes dos aparelhos é objetiva. A dos dentistas depende da prova de sua culpa. Todavia, pela teoria da inversão do ônus da prova, ao cirurgião-dentista cabe a prova liberatória de sua culpa. ABSTRACT The advent of the Consumer Defense Code brought a new focus to the civil liability. Being modern and efficient, it inserted the objective liability, bringing indirectly the improvement of products, technology and market, rendering to the consumer better opportunities and choices. But even so, one cannot conclude the consumer knows, by himself, about the risks of treatment, of using dental and medical apparatus etc. The responsibility of the manufacturers is objective, and the dentists’ depends on the proofs of their guilt. Nevertheless it is attributed to the dentist surgeon the defense proof to free him from guilt, according to the theory of proof onus inversion. PALAVRAS-CHAVE Responsabilidade Civil. Dentista. Cirurgião-dentista. Código de Defesa do Consumidor. Prova. Culpa. Responsabilidade subjetiva. Responsabilidade objetiva. Inversão do ônus da prova. KEY WORDS Civil Responsability. Dentist Surgeon. Consumer Defense Code. Proof. Guilt. Subjective liability. Objective liability. Proof onus inversion. *Mestre em Direito. Professor da Fatema/Uniesp. Advogado em São Paulo. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 34-49 34 Jerônimo Romanello Neto A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ODONTOL OGIST A ODONTOLOGIST OGISTA THE CIVIL RESPONSABILITY OF THE ODONTOLOGIST O CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO O Código Civil Brasileiro de 1916, Lei Federal n.º 3.071, de 1.º de Janeiro de 1916, revogado, trazia em seu artigo 1.545 a seguinte redação: “Art. 1.545 - Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência, ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento”. O atual Código Civil, Lei Federal n.º 10.406, de 10 de Janeiro de 2002, ao tratar da Indenização, em seu artigo 951 trouxe a seguinte redação: “Art. 951 - O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplicam-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”. Também, os artigos 186, e 927 a 965, aplicam-se ao assunto. O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Com o advento do Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei Federal n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990, cujas regras valem igualmente para o cirurgião-dentista, em um 35 TEMA primeiro momento, para estes profissionais, continua prevalecendo, em tese, a responsabilidade civil subjetiva, ou seja, deve ser provada a culpa do cirurgião-dentista para que lhe seja atribuída a responsabilidade pelo dano causado. “Certamente, o fundamento da responsabilidade civil, em sua dupla configuração - contratual e extracontratual ou aquiliana -, é a existência de um dano ressarcível que, por consistir na lesão da integridade psicofísica da pessoa humana, requer a existência de culpa do agente”1. É a seguinte a redação do artigo 14 do CDC: “Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido. § 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas. § 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. § 4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. Entretanto, conforme asseverado por Guimarães Menegale2, “... à patologia das infecções dentárias corresponde etiologia específica e seus processos são mais regulares e restritos, sem embargo das relações que podem determinar com desordens patológicas gerais; conseqüentemente, a sintomatologia, a diagnose e a terapêutica são muito mais 1 ARAÚJO, André Luís Maluf de. Responsabilidade civil dos cirurgiões-dentistas. In Bittar, Carlos Alberto (coord.) Responsabilidade civil médica, odontológica e hospitalar, p. 155. 2 MENEGALE, J. Guimarães. Responsabilidade profissional do cirurgião-dentista. Revista Forense, vol. 80, p. 37 e seguintes. UNIESP 36 definidas e é mais fácil para o profissional comprometer-se a curar”, pelo que a obrigação de resultados seria comum e a de meios exceção. O avanço da odontologia, como ciência, é inegável. As técnicas e aparelhos, com um maravilhoso desenvolvimento tecnológico, proporcionam ao cirurgião-dentista, nos dias de hoje, a opção pelo tratamento ao invés da opção única que lhe restava, não faz muitos anos - arrancar o dente doente. Veja-se a ortodontia, ramo da odontologia que se ocupa da prevenção e correção dos defeitos de posição de dentes e problemas faciais associados, que trouxe àqueles desafortunados portadores de problemas ortodônticos a inegável possibilidade da efetiva correção desses problemas, diminuindo-lhes os problemas psicossociais. Uma verificação dos resultados pretendidos com os tratamentos odontológicos levam-nos a, racionalmente, enxergar que a obrigação do cirurgião-dentista, ora é de meios, ora é de resultados. Entendemos que a obrigação de cura do cirurgiãodentista está sempre presente durante o tratamento. É que, durante o tratamento, sua obrigação de meios compreende isentar o paciente da dor, tratar o dente e restaurá-lo. Se, todavia, o tratamento não for possível e, conseqüentemente, a restauração, o dever de privação de dor continua, devendo o dentista optar por aquela última alternativa - arrancar o dente doente. E igual procedimento se faz presente nos casos mais complicados do que um simples tratamento de cárie. Mas ainda existe um agravamento da responsabilidade do cirurgiãodentista, a estética. Esteticamente falando, o cirurgião-dentista tem sempre uma obrigação de resultado, quer seja na restauração do dente doente, quer seja na reposição, por implante, do dente arrancado. Todavia, nem sempre é possível devolver a estética que o paciente almeja, mas sim uma estética adaptada às condições bucais atuais do paciente, razão pela qual esse esclarecimento, por parte do odontologista ao cliente é imprescindível. O sorriso, para alguns, é uma fonte de renda. É assim que surge para o cirurgião-dentista uma obrigação de resultado, de eficácia, de acordo com sua 37 TEMA especialidade. Alguns autores entendem que não geram obrigação de resultado os casos de prótese buco-maxilofacial; cirurgia e traumatologia buco-maxilofaciais. Como obrigação de resultados, citam os casos de dentística restauradora, odontologia legal, prótese dental e radiologia. Para o cirurgião-dentista, são aplicáveis todas as regras de especialidade, técnica, diagnóstico, omissão e consentimento aplicáveis aos médicos, guardadas, obviamente, as devidas proporções. Alguns elementos devem estar presentes para que se possa ver nascer a responsabilidade do cirurgião-dentista, quais sejam: a) por parte do cirurgião-dentista deve haver um ato ação ou omissão; alguns autores o definem como ato odontológico; b) este ato deve causar um dano em algum bem material ou imaterial - direito à saúde, integridade física, à vida, à personalidade, dano moral, dano patrimonial etc.; e, c) o dano deve advir daquela ação ou omissão. Do ato odontológico danoso surge a obrigação de reparação desse mesmo dano. O dano, em razão dos serviços odontológicos prestados, pode derivar da assistência sem a devida diligência; da atuação em desacordo com as regras consagradas pela prática odontológica; da atuação em desacordo com o desenvolvimento da ciência no momento da prestação dos serviços; de um erro de diagnóstico; de um erro de tratamento; etc. Guimarães Menegale divide o erro do profissional odontológico em faltas ordinárias e faltas técnicas. As primeiras são as que o profissional incide em caráter eventual e não específico de seu ofício. As segundas, as técnicas, as que só se verificam em razão do exercício da profissão. Aguiar Dias3 propõe que “preferível, às vezes, prescindir da classificação, dado o problemático resultado que proporcionam”. “Isso quer dizer que a distinção, em princípio, existe, com a vantagem de, uma vez estabelecido o caráter da 3 DIAS, José de Aguiar. Op. cit., p. 285. UNIESP 38 falta profissional, indicar ao juiz que se abstenha de decidir a respeito de circunstâncias peculiares à arte médica. Mas os seus inconvenientes aconselham a abandoná-la. O principal deles é a dificuldade de estabelecer uma discriminação definida. Com efeito, multiplicam-se os exemplos em que uma afirmação peremptória se torna arriscada. É erro profissional ou ordinário o que pratica o cirurgião que opera para remover imperfeição física que não afeta a saúde? E o abandono do doente?”. Finalizando suas observações, Aguiar Dias adotou, com as reservas que fez, entre elas as acima transcritas, o método de Guálter Lutz na classificação dos erros profissionais do cirurgião-dentista: a) erros e acidentes na anestesia; b) erros de diagnóstico; c) erros de tratamento; d) erros de prognóstico; e) falta de higiene; e f) erro nas perícias. André Luís Maluf de Araújo preferiu classificar o erro odontológico em “atos odontológicos ilícitos”, subclassificandoos em: a) falta da diligência devida: a imperícia odontológica e a negligência odontológica; b) erro de diagnóstico; c) erro ou falha de tratamento; d) falta ou falha dos meios técnicos. Uma classificação diferente não é comportável no objeto de uma dissertação, que nas palavras da American Library Association4 “é um tratado sistemático e completo sobre um assunto particular, usualmente pormenorizado no tratamento, mas não extenso no alcance”, razão pela qual optamos por explicar cada uma delas. Sobre os erros e acidentes na anestesia, “o dentista não pode responder pelo fato de alguém sentir dor ou sofrer lesões labiais devido à sua relutância em submeter-se a ela; não se pode cogitar de responsabilidade do dentista pelas conseqüências imprevisíveis da anestesia, máxime quando se tratar de profissional de reconhecida competência; é preciso provar a imperícia ou negligência do cirurgião-dentista para que se possa responsabilizá-lo com base em acidente decorrente da anestesia; não se aplica à responsabilidade do 4 LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica, p. 7. 39 TEMA dentista, em conseqüência de acidente derivado na anestesia, a regra res ipsa loquitur; é iniludível a responsabilidade do cirurgião-dentista que, praticando uma injeção destinada a aliviar a dor do paciente, produz-lhe um fleimão no braço, em virtude da má assepsia da agulha; é de rigor a esterilização da seringa, da agulha, da ampola, da serra própria para rompê-la, assim como a aplicação da tintura de iodo na parte da mucosa destinada à penetração da agulha, pois a omissão de tal cuidado implica em estender a flora microbiana desse ponto por todo o trajeto da agulha; é grave a falta profissional do dentista que injeta em tecido solapado por infecção, porque a infiltração do líquido propaga os germes e prejudica a vitalidade e a resistência dos tecidos, ainda que aplicadas substâncias antisépticas; não constitui culpa a anestesia no decurso da menstruação ou gravidez, havendo quem condene, entretanto, o emprego da adrenalina em tais ocasiões como fonte de resultados lamentáveis; o rompimento da agulha não estabelece, por si só, a responsabilidade do dentista, devendo, contudo, examinar-se a participação do profissional no acidente, havendo decisão que o condena em face das circunstâncias em que ocorreu a ruptura, assim como em presença de sua manifesta imperícia, em forçar indevidamente a agulha ou procurar, por exemplo, extrair a agulha quebrada por meio de incisão na gengiva do paciente, em condições pouco favoráveis; o emprego de substância como a adrenalina e a supra-renina, capazes de produzir intoxicação, dada a existência de anestésicos que as substituem com vantagem; as lesões de nervos causadas pelo manejo da agulha contra as indicações da arte”. Por erro de diagnóstico, capaz de gerar a responsabilidade, o mesmo deve ser “expressão de ignorância indesculpável; ou de má interpretação de dados semiológicos corretamente obtidos; ou de desinteresse em obtê-los; ou da omissão de pesquisas clínicas e radiológicas necessárias ao tratamento, se o meio em que atua o profissional dispõe desses recursos”. Se tem por origem o estado imperfeito da ciência, o erro de diagnóstico é escusável. UNIESP 40 Ainda, sobre o erro de diagnóstico, o profissional deve atuar previamente sobre dois aspectos, o primeiro pela averiguação dos sintomas e o segundo pela aplicação da melhor técnica conhecida para eliminação do quadro patológico. Resulta que a responsabilização do profissional por um erro de diagnóstico é extremamente difícil, em razão de se tratar de um campo científico. A conduta do dentista na elaboração do correspondente diagnóstico é o que deve ser investigado, para que possa ele vir a ser responsabilizado. O erro ou falha de tratamento traz em si dois problemas jurídicos: em um primeiro momento, o diagnóstico pelo dentista que deve ter liberdade para ordenar a terapêutica correspondente e, em segundo, a autoridade da prescrição odontológica em função do consentimento do paciente. “O dentista deve ordenar o tratamento menos perigoso, salvo em caso necessário, em que outra providência não possa ser tomada”. As informações ou atuações defeituosas, anteriores ao tratamento, geram, como conseqüência, o erro ou falha de tratamento. Os erros de tratamento, podem consistir “na escolha de tratamento defeituoso ou impróprio; no tratamento mal orientado de cáries e canais; no emprego de instrumentos inadequados, nas intervenções, ou de materiais impróprios, nas obturações, restaurações e trabalhos de prótese; na má colocação destes ou na sua defeituosa confecção técnica; no emprego de remédios perigosos ou trocados; na extração leviana imprudente ou desnecessária; na má interpretação de radiografias claras; na imperícia no uso dos aparelhos radiológicos e fisioterápicos; na omissão de providências, cautelas e conselhos que devam acompanhar o tratamento, nos fatos das coisas ou instrumentos utilizados e, em geral, nos fatos dos prepostos (enfermeiras, protéticos etc.) que de qualquer forma o auxiliam ou intervêm no tratamento”. Sobre erro de prognóstico, casos muito raros, incide o dentista que, “dando pouca importância à lesão do paciente, ocorrida na prática da exodontia, influi no seu ânimo para que não procure um médico”. 41 TEMA “Os principais casos de falta de higiene, de demonstração difícil, consistem em transmissão de moléstias contagiosas, principalmente a sífilis, cujo contágio se dá, ou diretamente do dentista ao cliente ou de um cliente a outro, por intermédio de instrumentos empregados na clínica odontológica”. Também podemos incluir a responsabilidade do cirurgião dentista pelo contágio da SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) - AIDS, como caso de falta de higiene. Andrea Cavalli e Maria Rita Cortese 5 dizem: “considerando que, na atual situação, a única esperança de controle da moléstia é uma correta prevenção, assume um ponto de fundamental relevo a informação, seja aquela a ser fornecida à população, seja aquela endereçada exclusivamente ao pessoal sanitário, nos termos de uma mensagem sobretudo clara e explícita nas diferenciações do quanto é conhecido e no quanto se sugere, dando especial atenção às situações dotadas de um potencial perigoso. No círculo do pessoal sanitário, a exigência de uma correta informação é sentida de modo particular pelos dentistas, posto que as primeiras manifestações clínicas da A.I.D.S. surgem a nível da cavidade bucal. Basta pensarmos sobre a candidíase, sobre as lesões herpéticas e sobre as formas cancerosas e pré-cancerosas localizadas na boca, e próprias dos quadros de imunodeficiência...; em todos estes casos um correto diagnóstico se revela de extrema importância ao término de um tratamento precoce de A.I.D.S. Dentro de um consultório dentário, como em qualquer outro ambiente cirúrgico, subsiste um documentado risco de transmissão do VHI (Vírus Humano da Imunodeficiência) - HIV entre o dentista e o paciente e o pessoal auxiliar, de modo que deve ser levado a fundo o problema relativo à possibilidade de veiculação do vírus de um paciente a outro por meio de instrumental não submetido 5 CAVALLI, Andrea e Cortese, Maria Rita. La Responsabilità Professionale Dell´Odontoiatra Per Infezione da H.I.V.: Problematiche Medico-Legali. In La Responsabilità Medica in Ambito Civile, Attualità e Prospettive, Canepa, Giacomo e Fiori, Angelo, op. cit., p. 589 a 592. UNIESP 42 eficazmente ao procedimento de esterilização. Esta última situação, a qual é induvidosamente uma patologia de natureza iatrogênica, assume um notável interesse médico-legal. De fato, deve ser verificada a hipótese de um dentista chamado a responder em sede penal ou civil por um sujeito soro positivo, ou contaminado com o vírus da A.I.D.S., por um comportamento culposo do profissional. Neste ponto, deve ser verificado o mérito do argumento, pelo que é necessária alguma precisão: 1) no âmbito civil, o eventual montante do ressarcimento é devido à vítima do dano sofrido; ora, se os reflexos de uma condição de A.I.D.S. atingem a eficiência psicofísica e a capacidade laborativa do sujeito, prestando-se a uma avaliação médico-legal, não se pode, entretanto, dizer que isso ocorra num caso de “simples” soropositividade, faltando atualmente aquele conhecimento da natureza puramente biológica e clínica que poderiam permitir um correto enquadramento da situação mórbida também em função da projeção prognóstica ...”. Sobre a falta da diligência devida, sobre a imperícia odontológica e a negligência odontológica, diz André de Araújo que “para exercer diligentemente a atividade odontológica e com disposição às regras da arte, é necessário que o profissional possua os conhecimentos técnicos correspondentes, obrigação que o Código de Ética Odontológica impõe em seu artigo 4º., quando prescreve que o cirurgião dentista tem o dever e a responsabilidade de manter atualizados os seus conhecimentos e de aperfeiçoar sua capacidade profissional. Já assinalamos que a negligência implica, apesar de estar o dentista na posse dos conhecimentos suficientes, na prestação por ele dos serviços odontológicos com abandono, descuido, apatia, omissão de precauções, enfim, desatenção às regras que presidem a arte da odontologia, o lex artis, e também as normas deontológicas”. O problema relacionado com os aparatos utilizados pelo dentista no exercício de sua profissão: uso de bisturis, aparelhos ortodônticos, ferramental em geral, raios laser, raio X, bombas de cobalto, cirúrgicos, aparelhos elétrico-eletrônicos, informáticos, nucleares, enfim, qualquer objeto classificável como sendo aparelho médico-hospitalar, podem gerar a 43 TEMA responsabilidade do dentista, clínicas, hospitais e outras instituições pelos danos causados ao paciente. Trata-se de verificar a possibilidade de imputar responsabilidade ao ente causador do dano ou prejuízo ao paciente pelo uso do instrumental. Há dois pontos que distinguem a matéria: a) o dano pode ser causado pelo dentista por intermédio dos aparelhos; e, b) o dano pode ser causado pelo próprio aparelho. No primeiro caso, o dentista é responsável pelo dano que ocasionar ao seu paciente através dos instrumentos, por não dominar a respectiva técnica de uso e manejo ou por utilizar aparelho em condições inadequadas de funcionamento. A prova liberatória de sua culpa há de ser por ele produzida. Isto significa que, para não ser responsabilizado, o dentista deverá fazer prova de que não agiu com culpa, provando que o dano ocasionado não o foi em razão da forma como utilizou o aparelho e nem pelas condições do aparelho de sua propriedade ou do hospital, clínica, etc. O ente (dentista, hospital, clínica, etc.) tem um dever de prudência e de diligência quando utiliza uma “coisa”, seja ela instrumento ou produto, pelo que deverá utilizar os maiores cuidados na escolha, manutenção e conservação dessas mesmas “coisas”. Na França, conforme Aguiar Dias, ob. cit., pp. 262 e 263, o cliente aceita as conseqüências do uso dos instrumentos, salvo culpa do dentista. Diz o autor: “Temos dúvida em aceitar integralmente o ensinamento, considerando que o cliente, de ordinário, ignora os riscos dos instrumentos médicos. Como presumir que aceite esses riscos? O caso, para nós, incide no âmbito da regra fundamental concernente ao exercício da profissão. Se a aplicação do instrumento oferece riscos, é dever do médico advertir deles o cliente, respondendo pelas conseqüências danosas, se não o faz. Em outros termos: a aceitação dos riscos não se presume. Pode, entretanto, deduzirse dos conhecimentos do cliente, do uso generalizado do instrumento e de outras circunstâncias de fato que os juizes saberão apreciar”. UNIESP 44 Assim, se o dano ocasionado o foi pelo aparelho e não pelo dentista ou pelo uso inadequado do aparelho, responde o fabricante perante o consumidor, agora dentista e paciente, equiparados por força do art. 17 do Código de Defesa do Consumidor. A obrigação do profissional da odontologia é a de prestação de assistência facultativa, com a devida diligência, utilizando os meios técnicos necessários. “Por isto, a doutrina assinala o seguinte: a) a obrigação de cada dentista de possuir o material adequado para que possa realizar o trabalho em condições normais; b) a obrigação de manutenção e correto estado de funcionamento dos aparatos que utilize, sendo responsável pelos prejuízos que os defeitos dos aparatos, material ou instrumento produzam no paciente; c) a obrigação de evitar contágios, epidemias e outras implicações externas.” No caso concreto, deve-se perquirir se os aparatos ou meios técnicos pertencem ao dentista e se são utilizados em sua consulta privada ou se pertencem a uma instituição, de caráter público ou privado, e se nela são utilizados. Também há de se verificar se o dentista presta serviços a terceiros ou não, tudo no intuito de se responsabilizar o indivíduo correto. “Sobre as especialidades, a obrigação é de resultados, dada a natureza jurídica do contrato de prestação de serviços odontológicos em torno do contrato de serviço ou do contrato de obra.” Ainda, André de Araújo, ob. cit. p. 172, cita como especialidades de resultado a dentística restauradora; odontologia legal; odontologia preventiva e social; ortodontia; prótese dental; radiologia. Como especialidades que podem variar de caso a caso: endodontia; cirurgia e traumatologia buco-maxilofacial; odontopediatria; ortodontia; patologia bucal; prótese buco-maxilofacial; e periodontia. De acordo com o sistema legal vigente, a responsabilidade do cirurgião-dentista, independentemente da natureza dessa mesma responsabilidade civil - se contratual ou extracontratual, somente se dá quando provada pelo paciente a culpa do profissional (arts. 186, 927 e 951 do Código Civil). 45 TEMA Ocorre que, pela introdução das regras do Código de Defesa do Consumidor, além da facilitação da defesa dos direitos do consumidor, quando, a critério do juiz, diante de alegação verossímil e a hipossuficiência do consumidorpaciente, poderá ocorrer a inversão do ônus dessa prova. Invertido o ônus, ao cirurgião-dentista caberá fazer a prova liberatória de sua culpa. E de nada adianta entendermos ser regra geral a obrigação de resultados a do dentista, tendo a de meios como exceção, se na obtenção da reparação do dano sofrido o paciente deve provar a culpa do profissional. Já o dissemos, é uma forma, senão mais justa, mais equilibrada de receber a relação fornecedor (cirurgiãodentista) e consumidor (paciente). As dificuldades de provar a culpa do profissional da área odontológica são as mesmas encontradas para provar a culpa do médico, advogado, engenheiro, enfim, dos profissionais liberais. Os danos indenizáveis são os danos patrimoniais e os morais. Menciona o autor André de Araújo o dano corporal. Este último compreende a invalidez parcial e total do rosto, ou prejuízo estético, assim como outros prejuízos decorrentes de uma anestesia aplicada indevidamente. O advento do Código de Defesa do Consumidor trouxe um novo enfoque à responsabilidade civil. Moderno e eficiente, introduzindo a responsabilidade objetiva indiretamente trouxe a melhoria dos produtos, da tecnologia e de mercado, propiciando ao consumidor maiores oportunidades e escolhas. Também, e não se pode negar, o consumidor pôde tornar-se mais exigente. Mas deste fato não se pode concluir que o consumidor saiba, por si, dos riscos pelo uso de aparelhos médico-hospitalares. A responsabilidade dos fabricantes dos aparelhos é objetiva. A dos dentistas depende da prova de sua culpa. Todavia, ressaltamos que, pela teoria da inversão do ônus da prova, ao dentista cabe a prova liberatória de sua culpa. UNIESP 46 CRONOL OGIA LEGISLA TIV A CRONOLOGIA LEGISLATIV TIVA O Decreto Federal n.º 20.931, de 11.01.1932, regula e fiscaliza o exercício da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, parteira e enfermeira, no Brasil, e estabelece penas. Em seus artigos 11 e 12, trata da falta grave e do erro de ofício; em seus artigos 20 a 22, cuida do receituário e da prescrição de substâncias químicas (entorpecentes). Os artigos 30 a 33, cuidam do exercício da odontologia. Já o Decreto-Lei n.º 4.113, de 14 de fevereiro de 1942, regula a propaganda de médicos, cirurgiões dentistas, parteiras, massagistas, enfermeiros, de casas de saúde e de estabelecimentos congêneres, e a de preparados farmacêuticos. A Lei Federal n.º 4.324, de 14.04.64, instituiu o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Odontologia. No seu artigo 18, encontramos as penas disciplinares aplicáveis pelos Conselhos Regionais, de cujas aplicações caberá recurso para o Conselho Federal. O Decreto n. 68.704, de 03.06.71, regulamentou a Lei 4.324/64, que instituiu o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Odontologia e nele estão contidas normas de ordem administrativa interna dos Conselhos Federal e Regionais, processos administrativos, inscrições, eleições dos membros dos Conselhos etc. A Lei Federal n.º 5.081, de 24 de agosto de 1966, regula o exercício da odontologia, dizendo que o exercício da Odontologia, no território nacional, só é permitido ao cirurgiãodentista habilitado por escola ou faculdade oficial ou reconhecida, após o registro do diploma na Diretoria do Ensino Superior, no Serviço Nacional de Fiscalização da Odontologia, na repartição sanitária estadual competente e inscrição no Conselho Regional de Odontologia sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade. Interessante ponto da legislação é o que diz competir ao cirurgião-dentista, entre outros: - proceder à perícia odontolegal em fôro civil, criminal, trabalhista e em sede administrativa; - aplicar anestesia local e truncular; - 47 TEMA empregar a analgesia e a hipnose, desde que comprovadamente habilitado, quando constituírem meios eficazes para o tratamento; - manter, anexo ao consultório, laboratório de prótese, aparelhagem e instalação adequadas para pesquisas e análises clínicas, relacionadas com os casos específicos de sua especialidade, bem como aparelhos de Raios X, para diagnóstico, e aparelhagem de fisioterapia; - prescrever e aplicar medicação de urgência no caso de acidentes graves que comprometam a vida e a saúde do paciente; e, - utilizar, no exercício da função de perito-odontólogo, em casos de necropsia, as vias de acesso do pescoço e da cabeça. A Lei nº. 6.681, de 16.08.79, que trata da inscrição de médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares nos respectivos Conselhos Regionais, em seu artigo 5º., menciona que estes militares não estão sujeitos à ação disciplinar dos Conselhos Regionais nos quais estiverem inscritos, e sim à da Força Singular a que pertencerem. A Lei Federal n.º 6.710, de 05.11.1979, dispõe sobre a profissão de Técnico em Prótese Dentária e determina outras providências. Recentemente, foi publicado no DOU de 6.10.2004, pelo Conselho Federal de Odontologia, o Código de Processo Ético Odontológico, cujo objetivo consta dos seus arts. 1.º e 2.º. Em sede penal, os artigos 268 e 282 do Código Penal Brasileiro tratam dos “CRIMES CONTRA A SAÚDE PÚBLICA”, “Infração de medida sanitária preventiva” e “Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica”. BIBLIOGRAFIA ARAÚJO, André Luís Maluf de. Responsabilidade civil dos cirurgiõesdentistas. In BITTAR, Carlos Alberto (Coord). Responsabilidade civil médica, odontológica e Hospitalar. São Paulo: Saraiva, 1991. UNIESP AZEVEDO, Álvaro Villaça. Transmissão de AIDS por transfusão de sangue. Inexistência de nexo de causalidade. Ausência de responsabilidade civil. R.T. Consulta. 721. 62-78. 48 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Curso de direito civil, teoria geral das obrigações. 5ª. ed. 2ª. tiragem. São Paulo: R.T., 1994. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10ª. ed. V. I. Rio de Janeiro: Forense, 1995. BITTAR, Carlos Alberto. As atividades científicas e profissionais médicas, odontológicas, hospitalares e congêneres e o Direito: princípios norteadores. In BITTAR, Carlos Alberto (Coord.). Responsabilidade civil médica, odontológica e hospitalar. São Paulo: Saraiva, 1991. FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. São Paulo: Ed. Atlas, 1991. GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 6ª. ed. v. II. São Paulo: Saraiva, 1989-1993. _________. Os direitos da personalidade. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989. GRINOVER, Ada Pellegrini et. al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992. _________. Reparação civil por danos morais. 2ª. ed. São Paulo: R.T., 1994. CAHALI, Yussef Said (Coord.). Responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 2ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. CAVALLI, Andrea e CORTESE, Maria Rita. La responsabilità professionale dell’odontoiatra per infezione da HIV: problematiche medico-legali, in la responsabilità medica in ambito civile, attualità e prospettive. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1989. CHAVES, Antonio. Necessidade de atualização da reparação pelo dano à pessoa humana. Separata da Revista de Informação Legislativa. Senado Federal. N.º 80. Ano 20. Outubro/ Dezembro de 1983. JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal. 17ª. ed. v. I. São Paulo: Saraiva, 1993. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. São Paulo: R.T., 1994. LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1985. LIMA, Alvino. Culpa e risco. São Paulo: R.T., 1960. MAGALHÃES, Teresa Ancona Lopez de. O dano estético. São Paulo: R.T., 1980. MENEGALE, J. Guimarães. Responsabilidade profissional do cirurgiãodentista. v. 80. Revista Forense. DENARI, Zelmo, et al. Comentários aos artigos 8º. ao 28 do código de defesa do consumidor. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992. 49 TEMA Autor e Texto Author - Text * Sueli Soares de Lima PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS: LEGISLAÇÃO AS LEGISLAÇÃO,, REALIDADE E PERSPECTIV PERSPECTIVAS SMALL AND MEDIAN SIZE ENTERPRISES: LEGISLATION, REALITY AND PERSPECTIVE RESUMO O objetivo deste trabalho é o de alcançar uma reflexão sobre como é a realidade das pequenas e médias empresas no Brasil, concernente a aspectos legais e questões financeiras. É apresentada uma visão geral, seguida de considerações finais. ABSTRACT The objective of this work is to motivate a reflection about the reality of small and medium size enterprises in Brazil, in concerning to lawful aspects and financial issues. A general view is presented, followed by final considerations. PALAVRAS-CHAVE Negócios no Brasil. Pequenas e médias empresas. Funcionamento legal. Perspectivas. KEY WORDS Business in Brazil. Small and medium size enterprises. Legal operation. Perspectives. *Aluna do Curso de Graduação em Direito Fatema/ Uniesp. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 50-69 50 Sueli Soares de Lima* PEQUENAS E MÉDIAS EMPRESAS: AS LEGISLAÇÃO PERSPECTIVAS LEGISLAÇÃO,, REALIDADE E PERSPECTIV SMALL AND MEDIAN SIZE ENTERPRISES: LEGISLATION, REALITY AND PERSPECTIVE É indiscutível a importância das pequenas empresas na economia global. Inobstante, em recente artigo, abordou-se a falta de incentivos para aquelas empresas no Brasil: Hoje em dia as grandes empresas desempregam mais do que contratam. São as pequenas e médias que geram emprego, aqui e mundo afora. Mas, em vez de fortalecer a pequena empresa, quase todos os governos do Brasil a ignoram ou a enfraquecem. Sob o título “O fim das pequenas empresas”, o referido autor discorreu sobre uma série de circunstâncias que desestimulam o empresário e o empreendedor no país: Ainda segundo estimativas de Burti, 59% das pequenas e médias empresas fecharão as portas em 2009. Essas estatísticas não são exageradas. O número de insolvências nesse segmento sempre foi elevado, só que antigamente cinco novas empresas eram criadas para cada quatro que quebravam.1 1 KANITZ, Stephen. O fim das pequenas empresas. Revista Veja, São Paulo: Editora Abril, n. 1845, 17 mar. 2004. Disponível em: <http://www.veja.com.br>. Acesso em: 1 abr. 2004, 23h. 51 TEMA Além disso, teceu comentários a respeito dos impostos: houve a elevação, bem como a redução dos prazos de pagamento (120 para quinze dias), ocorrendo, inclusive antecipação da receita ao governo. A partir dessas considerações, aguçou-se a curiosidade sobre as normas reguladoras das empresas de porte pequeno e micro, objeto deste trabalho. PEQUENAS E MICROEMPRESAS E A LEGISLAÇÃO VIGENTE Conceito Não existe uma definição absoluta, aceita universalmente. Segundo COLOSSI; DUARTE, as possíveis variáveis concernem: “emprego” e “investimento”, ou “volume de vendas” e “consumo de energia”, ou, ainda, pelo número de empregados, variando de estado para estado2. Adotaremos o conceito preconizado por Rubens Requião, concernente à receita bruta anual, conforme definido em lei: De acordo com a Lei no 9.841/99, considera-se microempresa a pessoa jurídica e a firma mercantil individual que tiver receita bruta igual ou inferior a R$ 244.000,00. Já empresa de pequeno porte será a pessoa jurídica ou a firma mercantil individual que, não enquadrada como microempresa, tiver renda bruta anual superior a R$ 244.000,00 e igual ou inferior a R$ 1.200.000,00 (art. 2o)3. 2 COLOSSI, Nelson; DUARTE, Roberta C. Determinantes organizacionais da gestão em pequenas e médias empresas (PEMS) da grande Florianópolis– SC. In Revista TEMA, n. 37, p. 6-27. São Paulo, jul./dez. 2000. 3 REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 24. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 63. UNIESP 52 Ao Poder Executivo cabe a atualização desses valores para o enquadramento das microempresas (ME) e das pequenas de pequeno porte (EPP). Os arts. 8o e 9o da referida Lei prevêem o enquadramento e o desenquadramento. Enquadramento (de ME para EPP, ou EPP para empresa comum), quando os tipos analisados superarem, por dois anos, consecutivos ou três anos alternados, em um período de cinco anos, os limites referidos de renda bruta. O enquadramento de empresa comum, para empresa de pequeno porte e desta para microempresa, pode ocorrer trinta dias, a contar da data da ocorrência, que pode ser feita por via postal, com aviso de recebimento. Os limites devem ser apurados no exercício civil (1o de janeiro a 31 de dezembro de cada ano), somando-se as receitas brutas de todos os meses.4 SEBASTIÃO ROQUE menciona duas formas jurídicas para ME e a EPP: forma individual – trata-se do empresário que se registra com o próprio nome para exercer atividades empresariais [...] “empresa individual” ou “empresário individual”[...]. pessoa jurídica – é a chamada empresa coletiva pela CLT: deve revestir-se de forma societária prevista pelo Código Comercial e devidamente registrada na Junta Comercial.6 Estatuto A Lei no 9.841 instituiu novo Estatuto da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, que objetiva dar um tratamento 4 5 ROQUE, José Sebastião. Moderno curso de direito comercial. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ícone, 2001, p. 78-79. ROQUE, 2001, p. 79. 53 TEMA jurídico diferenciado às ME e EPP, conforme previsto na Constituição Federal vigente: CAPÍTULO I DO TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO Art. 1o – Nos termos dos arts. 170 e 179 da Constituição Federal, é assegurado às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento jurídico diferenciado e simplificado nos campos administrativo, tributário, previdenciário, trabalhista, creditício e de desenvolvimento empresarial, em conformidade com o que dispõe esta Lei e a Lei no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, e alterações posteriores. Parágrafo único. O tratamento jurídico simplificado e favorecido, estabelecido nesta Lei, visa facilitar a constituição e o funcionamento da microempresa e da empresa de pequeno porte, de modo a assegurar o fortalecimento de sua participação no processo de desenvolvimento econômico e social. Existiam, anteriormente, uma série de leis, cujo objetivo centrava-se em um tratamento diferenciado às ME e EPP: (a) Decreto-lei no 1.750, de 14 de abril de 1980; (b) a Lei n o 7.256 de 27 de novembro de 1984; (c) a Lei no 8.864, de 28 de março de 1994, implantando o Estatuto da Microempresa; (d) a Lei no 9.317, de 5 de dezembro de 1996, que, revogando artigos da Lei no 8.864/94, estabeleceu o Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – o SIMPLES, sobre o qual efetuaremos abordagem mais pormenorizada, a posteriori. Dessarte, REQUIÃO afirma haver uma preocupação do Governo em instituir uma política de desburocratização ainda no regime militar, por volta de 1979.6 6 REQUIÃO, 2000, p. 62-63. UNIESP 54 Registro A Lei no 9.841/99, como mencionado anteriormente, fixa o limite da receita bruta anual para o enquadramento. O registro dá-se por meio de uma declaração do titular ou sócios, que pode ocorrer tanto perante o registro público de empresas mercantis, executado pelas Juntas Comerciais, como perante o registro civil das pessoas jurídicas, dependendo da origem de inscrição do ato constitutivo da empresa. REQUIÃO atesta: [...] trata-se de comunicação de um fato ou situação especial, e não de pedido de reconhecimento, a ser deferido. O órgão que opera o registro apenas tomará nota do comunicado, promovendo os registros necessários. A Lei no 9.841/99, por outro lado, no art. 6o utiliza a expressão ‘arquivamento’ para designar o ato do registro da microempresa ou empresa de pequeno porte[...]7 Destarte, não cabe ao órgão verificar a veracidade das informações. Contudo, declarações falsas incorrem em penalidade, prevista no Código Penal: Art. 299 – Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante: Pena – reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa, se o documento é particular. 7 REQUIÃO, p. 64. 55 TEMA No registro, deverá constar, em seguida ao nome, a expressão “microempresa” ou, abreviadamente “ME”, ou “empresa de pequeno porte” ou “EPP”: Art. 7o Feita a comunicação, e independentemente de alteração do ato constitutivo, a microempresa adotará, em seguida ao seu nome, a expressão “microempresa” ou, abreviadamente, “ME”, e a empresa de pequeno porte, a expressão “empresa de pequeno porte” ou “EPP”. Regime T ributário e Fiscal Tributário Os art. 11 e 12 da Lei n o 9.841/99 discorrem sobre algumas dispensas, complementada pela Lei no 9.317/96, assim exemplificada por REQUIÃO: [...] essa proposição se transformou em determinação direta da lei, pois a de no 9.317/96, ao estabelecer um interessante sistema de pagamento de impostos e contribuição (art. 3o), eliminando alguns, reduzindo outros, e concentrado a sua liquidação em poucos atos decorrentes da atividade das empresas micro e de pequeno porte. Pelo art. 7o, § 1o, elas ficam dispensadas de escrituração comercial, desde que mantenham, em boa ordem e guarda e enquanto não decorrido o prazo decadencial e não prescritas eventuais ações que lhes sejam pertinentes: I – Livro Caixa, no qual será escriturada toda a sua movimentação financeira, inclusive bancária; II – Livro de Registro de Inventário, no qual deverão constar registrados os estoques existentes no término de cada ano; III – todos os documentos e demais papéis que serviram de base para a escrita antes referida. Mas essas facilidades não dispensam o cumprimento de obrigações acessórias previstas na legislação previdenciária e trabalhista.”8 8 REQUIÃO, 2000, p. 66. UNIESP 56 Cálculo e Recolhimento do Imposto Unificado Objetivando o favorecimento às ME e EPP, criou-se uma forma simplificada e unificada de recolhimento de tributos, por meio da aplicação de percentuais favorecidos e progressivos, incidentes sobre a renda bruta da empresa (vide 2.1). Trata-se do Sistema Integrado de Pagamento e Impostos e Contribuições das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – o SIMPLES. O prazo de recolhimento é o décimo dia do mês subseqüente àquele em que a receita bruta tiver sido auferida.9 A título informativo, anexamos tabela contendo os percentuais fixados e partilhados, conforme artigos 5o e 23 da Lei no 9.317/96, com alterações promovidas pelo art. 3o da Lei no 9.732/98 e Lei no 10.034/00.10 PERCENTUAIS POR FAIXA DE RECEITA BRUTA Imposto Contribuição Microempresa Empresa de Pequeno Porte Até de de de Até de de de de de de de R$ 60.000,01 90.000,01 240.000,01 360.000,01 480.000,01 600.000,01 720.000,01 840.000,01 960.000,01 1.080.000,00 R$ 60.000,00 a a a 240.000,00 a a a a a a a 90.000,00 120.000,00 360.000,00 480.000,00 600.000,00 720.000,00 840.000,00 960.000,00 1.080.000,00 1.200.00,00 IRPJ zero zero zero 0,13% 0,26% 0,39% 0,52% 0,65% 0,65% 0,65% 0,65% 0,65% PIS/PASEP zero zero zero 0,13% 0,26% 0,39% 0,52% 0,65% 0,65% 0,65% 0,65% 0,65% CSLL zero 0,4% 1% COFINS 1,8% Contribuições Previdenciárias 1,2% 1,6% 2,0% 2,14% 2,28% 2,42% 2,56% 2,7% 3,1% 3,5% 3,9% 4,3% 3% 4% 5% 5,4% 5,8% 6,2% 6,6% 7% 7,4% 7,8% 8,2% 8,6% 7,9% 8,3% 8,7% 9,1% SUBTOTAL 2% 2% 0,5% IPI TOTAL 1% 3,5% 4,5% 0,5% 5,5% 5,9% 6,3% 6,7% 7,1% 7,5% 9 SEBRAE. Conheça o Simples. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/br/ home/index.asp>. Acesso em: 9 maio .2004, 14h 30min. 10 SEBRAE. Conheça o Simples. 57 TEMA Regime Previdenciário e T rabalhista Trabalhista A Lei no 9.841/99 assegura, no capítulo V: Art. 10. O Poder Executivo estabelecerá procedimentos simplificados, além dos previstos neste Capítulo, para o cumprimento da legislação previdenciária e trabalhista por parte das microempresas e das empresas de pequeno porte, bem como para eliminar exigências burocráticas e obrigações acessórias que sejam incompatíveis com o tratamento simplificado e favorecido previsto nesta Lei. No art. 11, enumeram-se as dispensas concernentes à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT, arts. 74; 135, § 2o; 360; 429; 628, § 1o). Incentivos O capítulo VII – do Desenvolvimento Empresarial – dispõe: Art. 19. O Poder Executivo estabelecerá mecanismos de incentivos fiscais e financeiros, de forma simplificada e descentralizada, às microempresas e às empresas de pequeno porte, levando em consideração a sua capacidade de geração e manutenção de ocupação e emprego, potencial de competitividade e de capacitação tecnológica, que lhes garantirão o crescimento e o desenvolvimento. No mesmo capítulo, são asseguradas prioridades à ME e à EPP, quanto: (a) aplicação de recursos em pesquisa (art. 20); (b) acesso a serviços de metrologia e certificação de conformidade prestados por entidades tecnológicas públicas (art. 21); (c) competitividade no mercado interno e externo, inclusive mediante o associativismo de interesse econômico UNIESP 58 (art. 22); (d) estabelecimento de mecanismos de desburocratização e capacitação (art. 23); (e) política de compras governamentais (art. 24). Apoio Creditício Assevera-se, no capítulo VI – do Apoio Creditício: Art. 14. O Poder Executivo estabelecerá mecanismos fiscais e financeiros de estímulo às instituições financeiras privadas no sentido de que mantenham linhas de crédito específicas para as microempresas e para as empresas de pequeno porte. Art. 15. As instituições financeiras oficiais que operam com crédito para o setor privado manterão linhas de crédito específicas para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, devendo o montante disponível e suas condições de acesso ser expressas, nos respectivos documentos de planejamento, e amplamente divulgados. PEQUENAS E MICROEMPRESAS E OS PROGRAMAS DO GOVERNO SEBRAE O SEBRAE é o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, em cujo estatuto encontram-se os fundamentos da entidade, o âmbito de atuação e objetivos institucionais, bem como estrutura organizacional e afins (arts. 1º, 5º e 6º), objetivando “fomentar o desenvolvimento sustentável, a competitividade e o aperfeiçoamento técnico das microempresas e das empresas de pequeno porte industriais, comerciais, agrícolas e de serviços, notadamente nos campos da economia, administração, finanças e legislação”. 59 TEMA No site do SEBRAE, é possível ao empresário encontrar informações relevantes às suas necessidades. Estatutos, leis, decretos, resoluções até formulários estão presentes naquele site. Inclusive um capítulo concernente a empréstimos: “Como obter crédito e capital”. Inicia-se com informações importantes e concretas: A falta de crédito é um dos principais obstáculos para a criação e o desenvolvimento dos pequenos negócios no Brasil. Apesar de responderem por aproximadamente 20% do Produto Interno Bruto (PIB) e 60% dos empregos gerados no País, as MPE recebem apenas 10% dos créditos concedidos pelos bancos oficiais e privados. O papel do Sebrae é facilitar o acesso dos pequenos empreendimentos ao crédito e a capitais, de forma pioneira e indutora de mercado. Financiamentos e capitalizações são descritos: Crédito, Cooperativismo de crédito, Microcrédito, Capital de risco. Obtêm-se informações sobre os mesmos: o que são, quem pode ter acesso, onde procurar, modalidades, links úteis. Não obstante, o SEBRAE alerta aos futuros candidatos a financiamentos: [...] só o faça quando estiver seguro de que a empresa terá condições de pagá-lo. Verifique se o financiamento é condição imprescindível para o sucesso de sua empresa. Lembre-se que obter um financiamento para cobrir outro tem levado empresas a contrair dívidas crescentes e difíceis. [....] O crédito deve ser utilizado para expansão e fortalecimento do negócio ou para capital de giro.11 11 SEBRAE. Legislação de Microcrédito. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/ br/home/index.asp>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h 30min. UNIESP 60 PROGER No site da Caixa Econômica Federal, encontram-se as informações, referentes ao objetivo do PROGER – Programa de Geração e Renda: O PROGER – Micro e Pequena Empresa é uma linha de crédito instituída pelo Ministério do Trabalho voltada ao financiamento de Planos de Negócios de investimento e capital de giro associado, visando a geração e manutenção de emprego e renda, com a utilização de recursos do FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador.12 Para utilizar-se do programa, o empresário dirige-se a uma agência da Caixa a fim de preencher um cadastro. Havendo aprovação, o mesmo apresenta um Plano de Negócios, que sofre nova análise. Nesse momento, observa-se a viabilidade do plano, garantias e possibilidade de honrar o compromisso. No mesmo site, são indicadas o que são contemplados pelo financiamento. - Investimentos fixos representados por bens, inclusive equipamentos importados, e serviços inerentes às atividades do proponente, previstos no Plano de Negócio apresentado; - Capital de giro associado destinado a suprir as necessidades de execução das atividades previstas no Plano de Negócio; - Investimentos para implantação de sistemas de gestão empresarial, quando previstos no Plano de Negócio, exceto para cooperativas e associações de produção. 12 CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. PROGER. Disponível em: <http:// www1.caixa.gov.br/pj/asp/PROGER_Saibamais.asp>. Acesso em: 29 jun. 2004, 14h. 61 TEMA Limites para o financiamento (até 90% do projeto, limitado a R$ 5 mil; até 90% do projeto, limitado a R$ 10 mil, apenas para recém-formados em medicina, veterinária, odontologia, farmácia e fisioterapia, e dentro de convênios ou projetos integrados; inclui-se nestes limites a parcela de capital de giro associado, quando houver, que não pode exceder a 50% do total do financiamento); prazos (até 24 meses, incluindo carência de até 6 meses) e encargos (TJLP + 3% ao ano, e IOF conforme legislação vigente; juros e TJLP durante o período de carência) são novas barreiras para o empresário. PEQUENAS E MICROEMPRESAS E A REFORMA TRIBUTÁRIA Projeto Em julho de 2003, o SEBRAE encaminhou propostas para Emendas à PEC 41 para impulsionar os Pequenos Negócios, que objetiva criar uma Lei Geral a fim de tornar mais eficaz o tratamento diferenciado, previsto na Constituição Federal. O documento assevera a importância das ME e EPP: [...] cerca de 98% das empresas estabelecidas no País, respondem por aproximadamente 12% das exportações e por cerca de 60% dos empregos gerados. [...] No período de 1995 a 2000, cerca de 96% dos novos empregos foram criados por MPE.13 No item 6 do referido documento, encontra-se a Emenda, na qual são reproduzidos os dispositivos da PEC no 41 a serem alterados (sublinhados): 13 SEBRAE. Reforma Tributária – Proposta das MPE. Disponível em: <http:// www.sebrae.com.br/br/parasuaempresa/reformatributariapropostadasmpe.asp>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h, p. 9 (grifo do autor). UNIESP 62 Art. 1o Os artigos da Constituição adiante enumerados passam a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 146. Cabe à lei complementar:......... III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:........d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, inciso II, e das contribuições previstas no art. 195, inciso I, e nos § 12 e 13, e no art. 239. “ ........”Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:........ II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;....... § 2o O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:........VI - relativamente a operações e prestações interestaduais, será observado o seguinte:............g) será dispensado tratamento simplificado às operações em que estejam envolvidas microempresas e empresas de pequeno porte, não se aplicando a vedação e o condicionamento previstos na alínea “e”; VII não será objeto de isenção, redução de base de cálculo, crédito presumido ou qualquer outro incentivo ou benefício fiscal ou financeiro que implique sua redução, exceto para atendimento ao disposto nos arts. 170, IX, e 179, hipótese na qual poderão ser aplicadas as restrições previstas na alíneas “a” e “b” do inciso II; ..........XII ................. j) definir regimes especiais ou simplificados de tributação, inclusive para atendimento ao disposto nos arts. 170, IX, e 179, hipótese em que poderá diferenciar o porte das empresas e as suas obrigações acessórias em razão do Estado da sua localização; ........”Art. 195. ................ IV - 63 TEMA ...............§ 12. A lei que instituir, em substituição total ou parcial da contribuição incidente na forma do inciso I, “a”, do caput, contribuição específica incidente sobre a receita ou faturamento definirá a forma da sua não-cumulatividade, admitida a definição de regime simplificado para atendimento ao disposto nos arts. 170, IX, e 179. § 13. A lei definirá os setores de atividade econômica para os quais a contribuição incidente na forma do inciso I, “b”, do caput, será nãocumulativa, sem prejuízo do atendimento ao disposto nos arts. 170, IX, e 179. .................. Art. 2o Ficam acrescentados os seguintes artigos ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 92. Fica vedada, a partir da promulgação da presente Emenda, a concessão ou prorrogação de isenções, reduções de base de cálculo, créditos presumidos ou quaisquer outros incentivos ou benefícios fiscais ou financeiros relativamente ao imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição, exceto para atendimento do disposto nos arts. 170, IX, e 179, hipótese em que continuarão aplicados até que lei complementar disponha em contrário sobre o tratamento favorecido e diferenciado previsto nas legislações estaduais na data da promulgação desta Emenda.” (NR) “Art. 94. Enquanto não entrar em vigor a lei complementar prevista no art. 146, III, “d”, da Constituição, com a redação dada por esta Emenda, ficam mantidas as isenções, os incentivos, os regimes especiais e qualquer forma de tratamento favorecido e diferenciado dos tributos federais, estaduais e municipais dispensado às microempresas e às empresas de pequeno porte vigentes na data da promulgação desta Emenda.” UNIESP 64 Efetivação O site do Sebrae é o local onde se encontram as informações atualizadas a respeito do andamento das reformas. Sob o título “Desburocratização: Lei Geral deve incluir Cadastro Único para pequenas empresas”, em 12.03.2004, assevera-se a necessidade de criar um cadastro unificado: A unificação da base cadastral das micro e pequenas empresas é uma das principais novidades que podem ser aprovadas pelo Congresso Nacional nas discussões da Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas. De acordo com essa proposta, todas as informações sobre as empresas do segmento seriam concentradas no mesmo endereço.14 Por meio desse cadastro, poder-se-ia “classificar as MPEs e criar incentivos e facilidades contábeis, fiscais e tributárias”15, bem como facilitaria a vida do empresário na medida em que este não necessitaria percorrer os vários órgãos para registrar seu negócio. Entretanto, quase um ano após a confecção da proposta de emenda à PEC 41, não existem quaisquer alterações concretas, promovidas pelo Governo e “[...] só deverá sair do papel no ano que vem devido ao marasmo que paralisa o Legislativo em ano de eleições”16. Os principais pontos da Lei Geral para as micro e pequenas empresas são: - Criação do Super simples, com sistemas diferenciados de tributação para cada atividade empresarial; 14 BRITO, Vanessa. Lei Geral deve incluir Cadastro Único para pequenas empresas. Disponível em: <http://www.sebrae.com.br/br/home/index.asp>. Acesso em: 27 jun. 2004, 15h. 15 BRITO, 2004. 16 LEITE, Janaína. A lei dos mais fracos. In Revista Época, São Paulo: Editora Abril, 26 abr. 2004, p. 50. 65 TEMA - Garantia de acesso a novos mercados, como o de compras governamentais; - Diminuição da burocracia e racionalização de procedimentos administrativos; - Juizados especiais nos âmbitos municipal, estadual e federal; - Implementação de um cadastro único para as micro e pequenas empresas, para facilitar o acesso ao crédito.17 PEQUENAS E MICROEMPRESAS E A REALIDADE DO EMPRESARIADO Burocracia e excesso de tributos são tidos como os vilões na vida do pequeno e médio empresário. Uma pesquisa realizada pelo SEBRAE constatou: [...] serem necessários 15 procedimentos nos âmbitos municipal, estadual e federal para a abertura de uma empresa. Eles tomam em média 152 dias [...] contra dois dias na Austrália, três no Canadá e quatro nos Estados Unidos. [...] O empresário chileno espera mais ou menos 28 dias [...]. Na hora de fechar uma empresa, a burocracia não é menor: O tempo médio para a papelada correr no país é de dez anos. Um prazo 40 vezes acima dos três meses exigidos na Irlanda e 20 vezes maior do que os seis meses registrados no Japão18. Além disso, o número exorbitante de regras (cerca de 50 mil artigos de leis concernentes a impostos) e a falta de um marco regulatório crível trazem conseqüências alarmantes: no 17 18 Ibidem, p. 50. LEITE, 2004, p.49. UNIESP 66 final de 2003, após uma alteração das regras de adesão, mais de 80 mil empresas perderam o direito de opção de recolhimento de tributos pelo SIMPLES.19 O acesso ao crédito, por outro lado, não é uma realidade concreta: 61% das ME e EPP nunca utilizaram crédito bancário; 74% desconhecem as opções de microcrédito, limitadas a R$ 10.000,00 (dez mil reais); somente 10% dos créditos concedidos são destinados a esse segmento. Os empresários, então, recorrem aos limites de cheque especial, honerando-os em até 143% de juros anuais.20 Destarte, “três de cada dez micro ou pequenas empresas fecham as portas antes de completar um ano de vida”.21 CONCLUSÃO Analisando a legislação vigente e a realidade do pequeno e médio empresário, nota-se a existência de uma grande lacuna. Isso é, a legislação assegura direitos, porém, os mesmos não se concretizam devido à falta de uma regulamentação efetiva. O Governo não consegue promover mecanismos para a efetivação da lei. Da promoção de mecanismos, poderia advir nova realidade ao país. Prioritariamente, as ME e EPP, representando 98% das empresas aqui estabelecidas, poderiam diminuir consideravelmente o alto índice de desemprego. Com a geração de empregos, haveria novos consumidores, com necessidade de novos produtos. 19 Ibidem, p. 50. SEBRAE. Como obter crédito e capital. Disponível em: <http:// www.sebrae.com.br/br/home/index.asp>. Acesso em 09.05.2204, 14h 30min. RYDLEWSKI, Carlos. A vida sem crédito. In Revista Veja, São Paulo: Editora Abril, n. 1850, 21 abr. 2004. Disponível em: <http://www.veja.com.br>. Acesso em: 2 maio. 2004, 13h. 21 RYDLEWSKI, 2004. 20 67 TEMA Entretanto, apesar da sua importância, essas empresas recebem somente 10% dos créditos concedidos. E muitos deles desconhecem as linhas de crédito. A aprovação das emendas à PEC 41, bem como a existência de uma Lei Geral são, indubitavelmente, necessárias à criação/manutenção das ME e EPP. Contudo, há que se buscar recursos para a viabilização das leis. Caso contrário, as empresas desse segmento não terão condições de manter-se em um mundo tão competitivo. BIBLIOGRAFIA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: informação e documentação – citações em documentos – apresentação. Rio de Janeiro, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: informação e documentação – referências – elaboração. Rio de Janeiro, 2002. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6024: informação e documentação – numeração progressiva das seções de um documento escrito – apresentação. Rio de Janeiro, 2003. BRASIL. Decreto no 3.474, de 19 de maio de 2000. Regulamenta a Lei no 9.841, de 5 de outubro de 1999, que institui o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 22 maio. 2000. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ ccivil_03/decreto/D3473.htm>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h. BRASIL. Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 1º jan. 1942. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 29 jun. 2004, 12h. UNIESP BRASIL. Lei no 5.452, de 1º. de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Rio de Janeiro, RJ, 1o. maio. 1943. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br>. Acesso em: 29 jun. 2004, 12h. BRASIL. Lei no 10.194, de 14 de fevereiro de 2001. Dispõe sobre a instituição de sociedades de crédito ao microempreendedor, altera dispositivos das Leis nos 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 8.029, de 12 de abril de 1990, e 8.934, de 18 de novembro de 1.994, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 14 fev. 2001. Disponível em: <http://www.presidencia.gov.br/ccivil_03/ Leis/Leis_2001/L10194.htm>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h. BRASIL. Lei no 9.841, de 5 de outubro de 1999. Institui o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, dispondo sobre o tratamento jurídico diferenciado, simplificado e favorecido previsto nos arts. 170 e 179 da Constituição Federal. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 5 de out. 1999. Disponível em: <http://www.presidencia.gov. br/ccivil_03/Leis/L9841.htm>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h. 68 BRASIL. Resolução no 2.874, de 26 de julho de 2001 do Conselho Monetário Nacional. Dispõe sobre a constituição e o funcionamento de sociedades de crédito ao microempreendedor. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 26 jul. 2001. Disponível em: <http:// www5.bcb.gov.br/ixpress/correio/ correio/DETALHAMENTOCORREIO. DML?N=101142093&C=2874&ASS= RESOLUCAO+2.874>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h. RYDLEWSKI, Carlos. A vida sem crédito. In Revista Veja, São Paulo: Editora Abril, n. 1850, 21 abr. 2004. Disponível em: <http://www.veja. com.br>. Acesso em: 2 maio 2004, 13h. BRITO, Vanessa. Lei geral deve incluir cadastro único para pequenas empresas. Disponível em: <http:// w w w. s e b r a e . c o m . b r / b r / h o m e / index.asp>. Acesso em: 27 jun. 2004, 15h. SEBRAE. Conheça o simples. Disponível em: <http://www.sebrae. com.br/br/home/index.asp>. Acesso em 9 maio 2004, 14h 30min. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. PROGER. Disponível em: <http:// w w w 1 . c a i x a . g o v. b r / p j / a s p / PROGER_Saibamais.asp>. Acesso em: 29 jun. 2004, 14h. COLOSSI, Nelson; DUARTE, Roberta C. Determinantes organizacionais da gestão em pequenas e médias empresas (PEMS) da grande Florianópolis – SC. In Revista TEMA, n. 37, p. 6-27. São Paulo, jul./dez. 2000. KANITZ,, Stephen. O fim das pequenas empresas. In Revista Veja, São Paulo: Editora Abril, n. 1845, 17 mar. 2004. Disponível em: <http://www.veja. com.br>. Acesso em: 1 abr. 2004, 23h. LEITE, Janaína. A lei dos mais fracos. In Revista Época. São Paulo: Editora Abril, 26 abr. 2004, p. 49-50. ROQUE, José Sebastião. Moderno curso de direito comercial. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ícone, 2001, p. 78-79. SEBRAE. Como obter crédito e capital. Disponível em: <http://www.sebrae. com.br/br/home/index.asp>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h 30min. SEBRAE. Estatuto do Sebrae. Disponível em: <http://www.sebrae. com.br/br/home/index.asp>. Acesso em 9 maio 2004, 14h 30min. SEBRAE. Legislação de microcrédito. Disponível em: <http://www.sebrae. com.br/br/home/index.asp>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h 30min. SEBRAE. Reforma Tributária – Proposta das MPE. Disponível em: <http:// w w w. s e b r a e . c o m . b r / b r / p a r a s u a empresa/reformatributariapropostadas mpe.asp>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h. VIEGAS, Antonio Francisco. Reforma tributária: justiça fiscal às micro e pequenas empresas. SEBRAE SEBRAE. Disponível em: <http://www.sebrae. com.br/br/home/index.asp>. Acesso em: 9 maio 2004, 14h. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito comercial. 24. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 49-71. 69 TEMA Autor e Texto Author - Text Orlando Villas Bôas Filho* A AÇÃO INOVADORA; O SUCESSO NA VIDA POLÍTICA E O CUSTO DA VIDA SOCIAL A P ARTIR DOS PENSAMENTOS PARTIR DE BERNARD MANDEVILLE E NICOLAU MAQUIAVEL THE INNOVATIVE ACTION. SUCCESS IN POLITICAL LIFE AND THE COST OF SOCIAL LIFE BASED ON BERNARD MANDEVILLE AND NICOLAU MAQUIAVEL’S THOUGHTS RESUMO O presente artigo pretende realizar uma análise comparativa das obras de Nicolau Maquiavel e Bernard Mandeville, a partir de três temas básicos: a ação inovadora, o sucesso na vida política e o custo da vida social. ABSTRACT The present article intends to realize a comparative analysis of Nicolau Maquiavel and Bernard Mandeville works, from three basic themes: Innovative action, success in political life and the cost of social life. PALAVRAS-CHAVE Maquiavel. Mandeville. Ação inovadora. Sucesso na vida política. Custo da vida social. KEY WORDS Maquiavel. Mandeville. Innovative action. Success in political life. Cost of social life. * Bacharel em Direito (PUC/SP), História (USP) e Filosofia (USP). Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Professor de direito das Faculdades Integradas Teresa Martin e Universidade Presbiteriana Mackenzie. Ex-professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato-Grosso do Sul (UFMS). R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 70-81 70 Orlando Villas Bôas Filho A AÇÃO INOVADORA; O SUCESSO NA VIDA POLÍTICA E O CUSTO DA VIDA SOCIAL A P ARTIR DOS PENSAMENTOS PARTIR DE BERNARD MANDEVILLE E NICOLAU MAQUIAVEL THE INNOVATIVE ACTION. SUCCESS IN POLITICAL LIFE AND THE COST OF SOCIAL LIFE BASED ON BERNARD MANDEVILLE AND NICOLAU MAQUIAVEL’S THOUGHTS N icolau Maquiavel e Bernard Mandeville são, acima de tudo, autores que se situam num contexto em que ética e política não são mais esferas indissociáveis, como ocorria na ética clássica que vigia na pólis grega.1 Esse contexto, ademais, também não é mais aquele da epistéme medieval em que a política era pautada pela idéia de bom governo (buon governo).2 O que se observa em ambos os autores é a entrada no pensamento moderno que rompe com a concepção medieval, segundo a qual o bom governo seria aquele que estivesse assentado no monarca bom.3 Tanto Maquiavel como Mandeville irão enfatizar o momento pragmático que se volta contra a concepção medieval de que a política deve ser conduzida por um governante 1 2 3 Cf. BIGNOTTO, Newton. As fronteiras da ética: Maquiavel. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 113. A esse respeito, ver também: WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: ______. Textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 249-255. (Os pensadores). Cf. RIBEIRO, Renato Janine. O retorno do bom governo. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 101. A comparação de Maquiavel com Thomas Morus é, nesse sentido, sugestiva, uma vez que permite aquilatar a extensão da ruptura entre a concepção medieval e a moderna. Se Morus contrapõe o bom rei ao tirano, de modo a enfatizar a imagem tradicional do corpo político como aquele composto pelo governante (cabeça) e os súditos (membros) numa relação orgânica que, ademais, é pautada pelo amor, semelhante ao da família, que ligaria os membros à cabeça do corpo político, Maquiavel estará preocupado em, constatando a ineficiência desse modelo, assegurar a manutenção do governo, ainda que pelo uso da maldade. Nesse sentido, ver: RIBEIRO, Renato Janine. O retorno do bom governo, p. 102-103. 71 TEMA virtuoso, com todas as conseqüências que disso decorrem.4 Assim, a breve articulação que se fará aqui entre Maquiavel e Mandeville tentará recuperar essa ruptura que é comum aos dois autores sem, entretanto, desconsiderar que estes, malgrado esse ponto em comum, sustentam perspectivas bastante distintas no que se refere ao modo de conceber a própria política: pode-se dizer que Maquiavel representa a perspectiva que prioriza a ação política, enquanto Mandeville representa a perspectiva que prioriza a instituição política. A AÇÃO POLÍTICA INOVADORA CONTRA A ORDENAÇÃO INSTITUCIONAL DA AÇÃO Maquiavel é um pensador que, ao enfatizar a ação política,5 não poderá deixar de levar em conta a necessidade de inovação que está implicada numa tal ação. A ação política em Maquiavel deve ser essencialmente criativa, no sentido de que não deve nem pode pautar-se por regras já estabelecidas, nem por parâmetros prévios de avaliação, a fim de ser bem-sucedida. Nesse contexto, a ação inovadora/criativa não é apenas fundamental, mas, em certo sentido, inexorável, uma vez que o governante está posto numa posição em que não há regra ou garantia prévia à ação. Isso implica que a ação do governante (pois é dela que Maquiavel fala) se furte a regras de conduta predeterminadas, ou a um elenco de virtudes rigidamente preestabelecido. Aliás, é a idéia de ação inovadora que opõe 4 Tal como ressalta Merleau-Ponty, ao referir-se a Maquiavel, “ele escreve contra os bons sentimentos em política, mas é também contra a violência. Desconcerta tanto aqueles que crêem no Direito como os que crêem na Razão de Estado, já que tem a audácia de falar em virtude no momento em que fere duramente a moral comum”. MERLEAU-PONTY, Maurice. Nota sobre Maquiavel. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 238. 5 Claude Lefort enfatiza que “Maquiavel é considerado diabólico por haver exposto o mais amplo leque de figuras da ação política.“LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale. In: ______. Desafios da escrita política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. p. 176. UNIESP 72 Maquiavel à concepção medieval de bom governo, na qual o governante deveria agir conforme os mandamentos da religião, subordinando-se ao bem agir, a fim de salvar a si e aos súditos.6 Em Maquiavel, as prédicas de Cícero não têm mais a mesma ressonância que haviam obtido na tradição renascentista italiana de Bartolomeo Sacchi, Giovanni Pontano e Francesco Patrizi. Tal como ressalta Claude Lefort, “Maquiavel quer ser o fundador de uma ciência segura que forneça a inteligibilidade da sociedade e das coisas do mundo; pretende desarraigar a idéia de que haveria uma virtude em si, uma justiça em si, as quais, mesmo sendo de fato inacessíveis, constituiriam uma norma para a conduta humana e para a organização social”.7 Entretanto, não é desse modo que a perspectiva que prioriza a instituição política se posiciona em relação à questão da inovação, mesmo porque o que se visa aqui não é a ruptura ou a mudança, e sim a cristalização e a reposição de padrões rompidos. Ademais, a ação é, nessa perspectiva, mitigada em sua importância. Em Mandeville, a ênfase está no que se pode apontar como uma espécie de trabalho de “hidráulica”, que leva uma ação privada, via de regra viciosa, a um resultado benéfico socialmente. Nesse sentido, a questão da inovação sofre um sensível deslocamento nessa perspectiva. O papel do sujeito que atua é minimizado, assim como suas intenções. Aliás, não é o caráter inovador e criativo da ação política, nem mesmo a própria ação política, tal como a entende Maquiavel, o que lhe interessa. O que importa para Mandeville são ações que, brotando em sua espontaneidade, uma vez bem canalizadas, conduzem a benefícios gerais, e mesmo nesse caso a ênfase está na estruturação que permite atingir tais benefícios. 6 Maquiavel ressalta que “é preciso entender que um príncipe, sobretudo um príncipe novo, não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens são considerados bons, sendo-lhe freqüentemente necessário, para manter o poder, agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade e contra a religião.“ MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 85. 7 LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 156. 73 TEMA O SUCESSO NA VIDA POLÍTICA No que concerne ao que se pode denominar de “sucesso na vida política”, Maquiavel, enquanto representante de uma perspectiva que prioriza a ação política inovadora, opõe-se à tradição medieval, na qual a questão da salvação se impunha como primordial à avaliação da eficácia da ação do governante. Logo no início do Capítulo XV de O príncipe, Maquiavel, ao analisar a ação do príncipe/governante, afirma que: “ao discutir essa matéria, me afastarei das linhas traçadas pelos outros. Porém, sendo meu intento escrever algo útil para quem me ler, parece-me mais conveniente procurar a verdade efetiva da coisa do que uma imaginação sobre ela”.8 Isso sugere, logo de início, que a eficácia em Maquiavel não é medida com base no além, mas no plano do real. Portanto, para Maquiavel, o sucesso da ação política não se relaciona com a salvação, e sim com o propósito básico do príncipe que é mantenere lo stato.9 E, para alcançar esse propósito, “os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo está sempre voltado para as aparências e para o resultado das coisas, e não há no mundo senão o vulgo (...)”.10 Advém daí a máxima segundo a qual, em Maquiavel, “os fins justificam os meios”, bem como o recorrente equívoco de imaginar que toda e qualquer ação é válida para tanto. É preciso notar, entretanto, que Maquiavel não reduz a ação política à mera ação bem-sucedida. Não obstante enfatize o resultado, isto é, os fins a serem alcançados, Maquiavel não 8 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe, p. 73. A esse respeito, ver também: LEFORT, C. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 146 e 170. 9 Cf. SKINNER, Quentin. Maquiavel. Tradução de Maria Lúcia Montes. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 51; MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe , p. 85. 10 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe , p. 85-86. UNIESP 74 exclui aquilo que ele denomina de virtù,11 que é de tal forma um fator imprescindível à configuração da ação política, que a ação pode por vezes obter sucesso sem que seja uma ação política propriamente dita.12 Trata-se do exemplo de Agátocles, que, embora tenha sido bem-sucedido, não pode, segundo Maquiavel, ser “celebrado entre os homens excelentes”.13 Percebe-se, assim, que para Maquiavel o sucesso na vida política não se implementa pura e simplesmente com a manutenção sob controle do sistema de governo. Como observa Skinner, “além da mera sobrevivência, há objetivos muito maiores a se buscar; e ao especificar quais são eles, Maquiavel mais uma vez se revela um verdadeiro herdeiro dos historiadores e moralistas romanos. Ele parte do pressuposto de que todos os homens desejam acima de tudo conquistar os bens da Fortuna. (...) No entanto, tal como os moralistas romanos, Maquiavel descarta a aquisição de riquezas como um objetivo básico, argumentando que (...) a conquista da 11 Celso Lafer aponta no pensamento de Maquiavel (que, segundo ele, “preferia a salvação da pátria à salvação de sua alma”) os pressupostos da distinção weberiana entre ética de convicção e ética de resultados, que colocaria a ética de resultados como a ética própria da política. Cf. LAFER, Celso. A mentira: um capítulo das relações entre ética e política. NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 229. A esse respeito, vale notar, entretanto, que, malgrado a análise de Lafer seja correta, a separação entre ética de convicção e ética de responsabilidade, em Weber, não é tão simples, pois, segundo este autor, “a ética da convicção e a ética da responsabilidade não se contrapõem, mas se completam e, em conjunto, formam o homem autêntico, isto é, um homem que pode aspirar à ‘vocação política’”. WEBER, M. Ciência e política: duas vocações. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 1999. p. 122. 12 Vale notar aqui mais uma vez a observação de Merleau-Ponty, que ressalta a importância da virtude na vida política. Segundo ele, “Maquiavel a adota [a virtude] como sinal de valor em política – e não o sucesso, uma vez que dá como exemplo César Borgia, que não foi bem-sucedido, mas possuía virtù , e o contrapõe a Francesco Sforza, que foi bem-sucedido, mas por sorte.” Cf. MERLEAU-PONTY, M. Nota sobre Maquiavel, p. 244. 13 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe, p. 38. Aliás, a esse respeito seria interessante indagar se tal não ocorreria justamente por não haver no caso de Agátocles qualquer práxis envolvida na ação e sim mera fabricação, no sentido em que Hannah Arendt emprega os termos. Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. 75 TEMA honra e glória mundana constitui o mais alto objetivo (...)”.14 Ora, caracterizado o sucesso nesses termos, fica claro que, em Maquiavel, a sua obtenção está vinculada a uma ação criativa, inovadora, no sentido em que o termo foi empregado acima. Em Mandeville, o sucesso na vida política é aferido de forma diferenciada. Para ele, não é uma ação criativa, inovadora, que conduz ao êxito na vida política, êxito esse que também não consiste na mesma coisa de que fala Maquiavel, cujo pensamento está centrado no sujeito que age politicamente. Em Mandeville, o sucesso é aquilatado a partir de outras premissas: ele consiste e é aferível na pujança alcançada pelo corpo social como um todo, no modo como, partindo de vícios privados, se atingem benefícios públicos. Há uma equação curiosa no pensamento de Mandeville, que se expressa logo no início do prefácio da Fábula das abelhas, em que ele nota que se se examina a natureza do homem, abstraindo-se da arte e da educação, é possível observar que o que o torna um animal social consiste não em seu desejo de companhia, sua boa natureza, piedade, afabilidade, ou outras virtudes, mas as mais vis e detestáveis qualidades.15 Ou seja, em Mandeville, não são as qualidades tradicionalmente consideradas como boas, mas sim as mais vis e odiosas características do ser humano que garantem a prosperidade da sociedade e permitem aos homens 14 SKINNER, Quentin. Maquiavel , p. 51-52. No mesmo sentido, Claude Lefort ressalta que “Maquiavel não estaria absolutamente interessado nas virtudes antigas e modernas tal como são entendidas em todos os tempos pelo senso comum – em oposição aos vícios (...); somente estaria interessado no que nomeia como virtù, uma virtude que proporciona ao sujeito uma força enorme para resistir às adversidades da fortuna e lhe assegurar grande poder de agir”. LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 146. 15 A esse respeito, Mandeville afirma que: “so they that examine into de Nature of Man, abstract from Art and Education, may observe, that what renders him a sociable Animal, consists not in his desire of Company, good Nature, Pity, Affability, and other Graces of a fair Outside; but that his vilest and most hateful Qualities are the most necessary Accomplishments to fit him for the largest, and according to the World, the happiest and most flourishing Societies”. MANDEVILLE, Bernard. Preface. The fable of the bees. London: Penguin Books, 1970. p. 53. UNIESP 76 conseguir satisfazer seus desejos de conforto, prazer, luxo etc.16 Nesse sentido, em última análise, seriam as qualidades odiosas que uniriam os homens. Essa premissa anti-aristotélica acentua não as ações individuais (políticas ou não), mas o modo pelo qual estas podem ser convertidas em benefícios públicos. Aqui fica bem delineada a distinção entre a perspectiva da instituição política e a perspectiva da ação política, pois, enquanto Mandeville coloca todo o acento nas instituições que fazem o trabalho de conversão de vícios privados (private vices) em benefícios públicos (public benefits), Maquiavel, sem desconsiderar as instituições, ressalta que estas são moldadas pela ação dos homens. Ao se referir a Maquiavel, Claude Lefort ressalta que “as instituições, julga ele, tendem a modelar o caráter de um povo e de seus dirigentes. Contudo, como já Aristóteles observava, elas não crescem como plantas, nem se reproduzem como tais. Não somente trazem consigo a marca da mão do homem em sua origem, mas também requerem, para durar, a ação de indivíduos (...). A análise das formas de sociedade política induz portanto ao exame das formas de ação, e vice-versa”.17 Mandeville, entretanto, não está interessado nas ações. Segundo Maurice Goldsmith, o ataque de Mandeville ao que ele chama de “ideologia da virtude pública e privada” (ideology of public and private virtue) consiste em afirmar que luxúria, vício e corrupção conectam-se com a higidez, o poder e a prosperidade, enquanto a virtude é acompanhada da simplicidade, da pobreza e de condições primitivas de 16 Curioso notar a impressionante semelhança entre a análise de Mandeville e a de Hobbes acerca do homem. Hobbes afirma, numa dentre várias passagens do Leviatã, que “o desejo de conforto e deleite sensual predispõe os homens para a obediência ao poder comum, pois com tais desejos se abandona a proteção que poderia esperar-se do esforço e do trabalho próprios”. Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 65. (Os pensadores.) 17 LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale, p. 175. 77 TEMA subsistência.18 É por essa razão que Goldsmith afirma que, para Mandeville, o vício produz não apenas a prosperidade, mas a própria civilização, pois, em primeiro lugar, o vício, no sentido de deficiência física, privação ou necessidade, tornaria a sociedade indispensável para a sobrevivência humana e, em segundo lugar, porque o vício, no sentido de um defeito moral (avareza, vaidade, orgulho, egoísmo, luxúria e inveja), estimularia a produção e o desenvolvimento. Ou seja, as necessidades e os apetites fariam a cooperação social desejável na medida em que esta aumenta os benefícios e os recursos disponíveis.19 Portanto, para Mandeville, o sucesso na política não está na ação política, mas na possibilidade de implementação de instituições que canalizem as ações viciosas para o benefício público. A questão aqui, diferentemente do que ocorre em Maquiavel, não está na ação do príncipe com vistas à manutenção do Estado, mas na consolidação das instituições que tornem vícios privados em benefícios públicos. O CUSTO DA VIDA SOCIAL Por fim, também no que se refere à questão do custo da vida social, cabe ressaltar que esta recebe um tratamento bastante diferenciado em cada um dos dois autores aqui 18 Nas palavras de Goldsmith, “if luxury, vice and corruption are connected with wealth and power and so with prosperity, then the converse is also true: virtue is accompanied by simplicity, poverty and primitive conditions”. GOLDSMITH, Maurice M. Private vices, public benefits: Bernard Mandeville’s social and political thought. New York: Cambridge University Press, 1985. p. 34-35. 19 Segundo Goldsmith, “Mandeville contents that vice produces not only prosperity but civilization as well (…) firstly, vice in the sense of physical deficiency, privation and need makes society necessary of human survival; secondly, vice in the sense of moral defect (greed, vanity, pride, selfishness, lust, luxury and envy) stimulates production and improvement. Needs and appetites make social cooperation desirable in conditions where it will increase the available benefits and resources”. GOLDSMITH, Maurice M. Private vices, public benefits: Bernard Mandeville’s social and political thought, p. 40. Ver também: MANDEVILLE, Bernard. Preface, p. 55. UNIESP 78 brevemente analisados, não obstante seja possível afirmar que ambos, também no que tange a esse aspecto, se inserem na perspectiva moderna. A perspectiva de Mandeville visa uma estruturação da sociedade que seja o menos onerosa possível, fundando-a naquilo que, para ele, é, no homem, assim como em todos os demais animais, uma característica comum: seguir suas inclinações. Mandeville, em Enquiry into the origin of moral virtue, lembra que foi atribuído o nome de vício a tudo aquilo que, sem se relacionar ao público, o homem pode cometer para satisfazer seus apetites.20 Nesse sentido, os vícios privados não devem ser reprimidos, pois podem ser convertidos em benefícios públicos. Isso obviamente acarreta um barateamento da vida social, pois a ênfase passa para a opulência econômica das nações que, sob essa perspectiva, identifica-se com a razão da felicidade dos povos. Sob vários aspectos, pode-se dizer que a perspectiva de Mandeville expressa bem aquilo que Benjamin Constant demonstrara em sua célebre conferência de 1819:21 que a vida social havia se tornado onerosa para os “modernos”, que estariam concentrados na esfera da vida privada. Percebe-se, portanto, que Mandeville já descreve o homem em termos modernos, como um indivíduo centrado na esfera da vida privada, cujas ações viciosas podem redundar em benefícios públicos passíveis de aferição pela riqueza da nação. Maquiavel, por sua vez, se situa noutro paradigma, o qual está ainda a certa distância da análise de Benjamin Constant acerca da diferença entre a liberdade dos modernos comparada à dos antigos. No entanto, já é possível vislumbrar em seu pensamento elementos que, afastando-o do conceito moralista de virtus, o colocam entre os modernos e não entre 20 Cf. MANDEVILLE, Bernard. Enquiry into the origin of moral virtue. The fable of the bees. London: Penguin Books, 1970. p. 86. 21 Cf. CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée a celle des modernes. In: GAUCHET, Marcel. De la liberté chez les modernes: écrits politiques, textes choisis, présentés et annotés par M. Gauchet. Paris: Librarie Générale Française, 1980. 79 TEMA os antigos. Contudo, tal como ressalta Maurice Merleau-Ponty, no pensamento de Maquiavel, há uma espécie de “moralismo” que, oposto ao “imoralismo” que impera na política, pautaria a vida privada. 22 Trata-se, portanto, de dois âmbitos que, entretanto, estariam articulados pela capacidade do governante em “evitar o despertar dos cidadãos”23 e que, nesse sentido, já parecem estar remetidos, ainda que se tomando o devido cuidado de não cometer anacronismos, à esfera de uma vida privada, que caracteriza os modernos. BIBLIOGRAFIA ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. BIGNOTTO, Newton. As fronteiras da ética: Maquiavel. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BOBBIO, Norberto. Teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981. CONSTANT, Benjamin. De la liberté des anciens comparée a celle des modernes. In: GAUCHET, Marcel. De la liberté chez les modernes: écrits politiques, textes choisis, présentés et annotés par M. Gauchet. Paris: Librarie Générale Française, 1980. GOLDSMITH, Maurice M. Private vices, public benefits: Bernard Mandeville’s social and political thought. New York: Cambridge University Press, 1985. 22 Segundo Merleau-Ponty, “citam-se sempre máximas dele que remetem a honestidade à vida privada, e fazem do interesse do poder a única regra em política. Mas vejamos as razões pelas quais ele [Maquiavel] subtrai a política ao puro juízo moral: apresenta duas. A primeira é que ‘um homem que quer ser perfeitamente honesto, em meio a pessoas desonestas, não pode deixar de sucumbir cedo ou tarde’. Fraco argumento, já que poderíamos do mesmo modo aplicá-lo à vida privada, onde, contudo, Maquiavel permanece ‘moral’. A segunda razão vai mais longe: é que, na ação histórica, a bondade por vezes é catastrófica e a crueldade menos cruel que o temperamento bonachão”.MERLEAU-PONTY, Maurice. Nota sobre Maquiavel, p. 242. 23 Idem, Ibidem, p. 238-239. UNIESP 80 HARTH, Phillip. Introduction. In: MANDEVILLE, Bernard. The fable of the bees. London: Penguin Books, 1970. HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores.) LAFER, Celso. A mentira: um capítulo das relações entre ética e política. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ––––––. O moderno e o antigo conceito de liberdade. In: LAFER, Celso. Ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Perspectiva, 1980. LEFORT, C. Maquiavel e a veritá effetuale. In. ______. Desafios da escrita política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. MANDEVILLE, Bernard. Enquiry into the origin of moral virtue. The fable of the bees. London: Penguin Books, 1970. ____________. Preface. The fable of the bees. London: Penguin Books, 1970. 81 MANDEVILLE, Bernard. The grumbling hive: or, knaves turn’d honest. The fable of the bees. London: Penguin Books, 1970. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Martins Fontes, 1999. MERLEAU-PONTY, Maurice. Nota sobre Maquiavel. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. RIBEIRO, Renato Janine. Filosofia, ação e filosofia política. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n. 36, p. 143149, fev. 1998. ________. O retorno do bom governo. In: NOVAES, Adauto (Org.). Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. SKINNER, Quentin. Maquiavel. Tradução de Maria Lúcia Montes. São Paulo: Brasiliense, 1988. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1999. ________. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: ________. Textos selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores.) TEMA Autor e Texto Author - Text Romeu Giora Junior* NOV A LEI PREVÊ MODEL O INOV ADOR DE NOVA MODELO INOVADOR INVESTIMENTO E P ARCERIA DO SETOR PARCERIA PÚBLICO COM O PRIVADO NEW LAW FORESEES INNOVATIVE MODEL OF INVESTMENT AND PARTNERSHIP BETWEEN PUBLIC AND PRIVATE SECTORS RESUMO A Parceria Público-Privada, conhecida mundialmente pela sigla PPP, vem ganhando espaço como uma forma de viabilizar a implantação de projetos de infra-estrutura básica, em face das carências sociais e econômicas de nosso país, mediante a colaboração entre o setor público e o privado. ABSTRACT The Private-Public Partnership known as PPP, is increasing as a way to insert projects of basic infra-structure, facing the social and economic lack in our Country, by means of contribution of public and private sectors. PALAVRAS-CHAVE Parceria público privada. Administração pública. Serviços públicos. Riscos e investimentos. KEY WORDS Private-public partnership. Public administration. Public services. Risks and investments. *Mestre em Direito. Professor da Fatema/Uniesp. Advogado em São Paulo. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 82-89 82 Romeu Giora Junior NOV A LEI PREVÊ MODEL O INOV ADOR DE NOVA MODELO INOVADOR INVESTIMENTO E P ARCERIA DO SETOR PARCERIA PÚBLICO COM O PRIVADO NEW LAW FORESEES INNOVATIVE MODEL OF INVESTMENT AND PARTNERSHIP BETWEEN PUBLIC AND PRIVATE SECTORS N o final de 2004, após muito esforço do Governo brasileiro, o Congresso Nacional aprovou a Lei 11.079 de 30 de dezembro de 2.004, conhecida como a Lei da PPP – Parceria Público Privada, que nada mais é do que uma transposição de modelos adotados em outros países. O conceito Parceria Público-Privada nasceu na Inglaterra, na década de 90, com a finalidade de viabilizar determinados projetos de infra-estrutura nos quais o Governo apresentava forte interesse, mas não tinha como financiá-los. Atualmente, esse instituto é forte tendência mundial, principalmente nos países europeus, tendo em vista o processo de globalização e o intenso intercâmbio entre as nações, o investimento torna-se cada vez mais importante no cenário internacional. A nova lei pode ser avaliada como um instrumento para eliminação de obstáculos para crescimento da economia, atraindo recursos e investimentos privados para setores de atuação que são de responsabilidade do Estado. Como veremos, o texto legal preocupou-se em oferecer segurança ao setor privado, com a implementação de diretrizes e condições a serem seguidas por um contrato de Parceria Público-Privada e a criação de garantias aos investimentos realizados. 83 TEMA CONCEITOS O novo regulamento jurídico estabelece normas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, aplicáveis aos órgãos da Administração Pública, aos fundos especiais, às fundações públicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às demais entidades controladas diretamente ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. A lei define parceria público-privada como um contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa, típica categoria de direito público. A modalidade patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas abordada na Lei nº 8.987 de 13 de fevereiro de 1.995, mas acrescida da requisição de uma tarifa aos seus usuários. Na realidade, é uma concessão comum onde o Estado adicionalmente realiza alguma forma de contraprestação. Um exemplo a ser citado desta concessão é a ampliação e administração de rodovias e ferrovias. Já a concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços que a Administração Pública pode ser usuária tanto direta como indireta, ainda que ligada à execução de obra ou fornecimento e instalação de bens. Nessa modalidade, um exemplo é a licitação para construção e operação de hospitais. A intenção do legislador no novo ordenamento legal é que o contrato de parceria público-privada se desenvolva concomitantemente aos contratos de concessão comuns já existentes, com enfoque aos projetos de infra-estrutura. O contrato de concessão comum é aquele em que a Administração delega a execução de um serviço do poder público ao particular, sendo que este a explorará independente de qualquer garantia, pelo prazo e nas condições previamente estabelecidas. A origem das receitas do particular é o que diferencia o contrato de parceria público-privada do de concessão comum, uma vez que o primeiro é formado por pagamentos efetuados UNIESP 84 pelo Governo ou este associado com tarifas obtidas dos usuários do serviço, enquanto que no último se constitui exclusivamente de tarifas provenientes dos usuários do serviço. A Lei 11.079 de 2004 prevê expressamente que as concessões comuns persistem, sendo regulamentadas pela Lei das Concessões, e que a Lei 8.666 de 21 de junho de 1993 permanece regendo os contratos administrativos, exceto os da concessão comum, patrocinada ou administrativa. REGRAS APLICÁVEIS O legislador preocupado com o uso indiscriminado do contrato de parceria público-privada veda a celebração deste nos seguintes termos: se o valor do contrato for inferior a 20 milhões de reais; se o período de prestação do serviço for inferior a 5 anos e se tiver como objeto único o fornecimento de mão-de-obra, o provimento e instalação de equipamentos ou a execução de obra pública. A lei ainda estabelece algumas diretrizes a serem seguidas como: eficiência no cumprimento das missões de Estado e no emprego dos recursos da sociedade; respeito aos interesses e direitos dos destinatários dos serviços e dos entes privados incumbidos da sua execução; indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado; responsabilidade fiscal na celebração e execução das parcerias (a própria Lei 11.079/04 estabelece no art. 10, inciso I, b, a observância das regras da Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar 101 de 04 de maio de 2.000); transparência dos procedimentos e das decisões; repartição objetiva de riscos entre as partes; sustentabilidade financeira e vantagens socioeconômicas dos projetos de parceria. As diretrizes acima especificadas espelham a forma que a Administração Pública deverá proceder a suas contratações, indicando alguns princípios que devem ser aplicados. 85 TEMA ASPECTOS BÁSICOS Quanto à s Garantias – Fundo Garantidor (FGP) A nova norma institui um peculiar sistema de garantias das obrigações pecuniárias contraídas pela Administração Pública, dentre elas se destaca o Fundo Garantidor das Parcerias Público-Privadas (FGP). O Fundo Garantidor detém como função exclusiva a viabilização do contrato de parceria público-privada e terá como objetivo “prestar garantia de pagamento de obrigações pecuniárias assumidas pelos parceiros públicos federais”. Apresenta natureza privada e patrimônio próprio, dotado de direitos e obrigações. A União, autarquias e fundações estão autorizadas a participar do Fundo, desde que respeitado um limite global de 6 (seis) bilhões de reais. A sua gestão e administração serão exercidas por uma entidade financeira estatal direta ou indiretamente pela União que deverá zelar pela manutenção de sua rentabilidade. As garantias deverão ser prestadas de forma proporcional à participação do cotista, sendo vedado a concessão de uma garantia a um, cujo valor líquido ultrapasse o ativo total do fundo, devendo ser somadas as garantias prestadas anteriormente e demais obrigações. Implementação de uma PPP As Sociedades de Propósito Específico Antes da celebração do contrato, os projetos de Parcerias Público Privadas serão implantados e geridos por uma Sociedade de Propósito Específico, que são sociedades de objeto exclusivo, utilizadas em consórcios e operações estruturadas. O objetivo delas é segregar determinados ativos e riscos de forma efetiva dentro de uma operação. Assim, sua eficiência UNIESP 86 depende de seu grau de independência em relação às demais partes e atividades envolvidas em determinado projeto. A lei não impõe restrições na forma de constituição da sociedade, assim se organizada no formato de uma companhia aberta, poderá inserir valores mobiliários no mercado. Contudo estabelece limitações quanto à composição do capital e controle desta, uma vez que a Administração Pública está impossibilitada de ser a titular da maioria do capital votante, além de ser fundamental uma autorização prévia para transferência do controle. Esses dispositivos permitem que a Sociedade de Propósito Específico apresente controle e estabilidade para manutenção deste em relação ao parceiro privado. Em síntese, trata-se de uma repartição objetiva de riscos, direitos e obrigações entre setores público e privado, no contexto de cada projeto. Da Licitação A contratação da parceria público-privada será antecedida de licitação na modalidade concorrência, sendo que a abertura do processo licitatório está condicionada a algumas determinações a serem cumpridas pela Administração Pública. Como a seguir analisaremos, a Lei da Parceria PúblicoPrivada apresenta algumas inovações no tocante à licitação. Primeiramente, é possível a inversão das fases de habilitação e julgamento. O edital poderá prever que após analisadas e julgadas as propostas, será verificada apenas a habilitação do licitante que apresentou a melhor proposta. Essa inversão pode tornar a licitação mais competitiva e ainda mais rápida e dinâmica. Por outro lado, poderá diminuir a fiscalização dos demais licitantes que não obtiveram uma boa classificação. O julgamento poderá adotar como critério, além dos previstos na Lei 8.987 de 1995, o de menor valor da contraprestação a ser paga pela Administração Pública. 87 TEMA Outra novidade se refere aos lances em viva voz. O edital possibilita que esses sejam feitos em lances sucessivos pelos licitantes, após a abertura dos envelopes com as propostas econômicas. Além disso, restringe a apresentação de lances cuja proposta inicial escrita seja no máximo 20% maior que o valor da proposta inicial. A lei ainda estipula que a proposta técnica poderá ser eliminatória e não apenas classificatória, como se dá no modelo tradicional da Lei de Licitações. Outro ponto a ser mencionado é a possibilidade do edital permitir o saneamento de falhas, de complementação de insuficiência ou ainda de correções de caráter formal no curso do procedimento, permitindo que os licitantes em um segundo momento apresentem documentos de habilitação que deixaram de constar no respectivo envelope, que corrijam eventuais erros aritméticos presentes nas propostas econômicas ou ainda acrescentem dados técnicos. Assim, a lei da Parceria Público-Privada incorpora ao tradicional modelo da concorrência mecanismos modernos que tendem a aumentar a competição entre os licitantes e a dinamizar o procedimento, sem prejuízo da necessária transparência. CONCLUSÃO A Parceria Público-Privada reflete uma conjugação de interesses das duas partes principais envolvidas, o setor público e o privado. Ao primeiro está assegurado a contribuição de conhecimento técnico e tecnológico, inovação e sistemas sofisticados de administração de riscos. Já o setor privado viabiliza oportunidades reais de negócios e retorno adequado para seus investimentos. Apesar desse instituto não ser a solução para as deficiências que o nosso país possui na área de infra-estrutura, representa um grande passo para o seu crescimento, uma vez que contribuirá para a reativação da atividade econômica e ainda para a produção direta e indireta de empregos. UNIESP 88 As perspectivas são positivas quanto à utilização da Parceria Público-Privada e seus resultados, em face do bom retorno alcançado em outros países. No entanto, resta ao poder público cumprir expectativas, ofertando aos particulares parcerias para a realização de atividades que sejam de seu interesse, em condições que viabilizem a contratação e ainda honrando os compromissos assumidos de forma a consolidar a credibilidade no novo instituto. Afinal, a Parceria Público-Privada só terá êxito se as negociações entre as partes caminharem para uma relação segura e equilibrada. BIBLIOGRAFIA HARADA, Kiyoshi. Parecer elaborado a pedido da OAB/SP, pela inconstitucionalidade parcial do art.8º da Lei 11.079/04, 2005. Lei nº 9.074 de 7 de julho de 1995. http://www.institutoppp.org.br MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 7º ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2003. http://www.jusnavegandi.com.br Lei nº 8.666 de 21 de junho de 1993. 89 Lei nº 11.079 de 30 de dezembro de 2004. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27º ed. São Paulo: Melhoramentos, 2003. TEMA Autor e Texto Author - Text Zenaide Bassi Ribeiro Soares* EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL: O DIREITO COMO SÍMBOL O DE UMA FORÇA IDEALIZADA SÍMBOLO EVOLUTION OF THE SOCIAL THOUGHT: RIGHT SYMBOL OF AN IDEALIZED FORCE RESUMO Este artigo aborda os vários significados da palavra Direito, incluindo mitos que cercam sua acepção jurídica. Trata ainda de sua materialização em símbolos como a deusa Diké (da Grécia) e da deusa Iustitia (de Roma). ABSTRACT This article refers to several meanings of the word Right, including the myths that sorround its juridical acceptance. It also deals with symbols, as the goddess Diké (Greek) and the goddess Iustitia (Roman). PALAVRAS-CHAVE Direito. Justiça. Balança. Equilíbrio. Espada. KEY WORDS Right. Justice. Balance. Equilibrium. Sword. * Mestre em Ciências Sociais pela FESP-USP. Doutora em Comunicação e Artes pela Universidade Mackenzie. Pós-Doutorado em Literatura. Responsável pela área de pesquisa e extensão da FATEMA. Professora titular na Universidade Guarulhos. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 90-97 90 Zenaide Bassi Ribeiro Soares EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO SOCIAL: O DIREITO COMO SÍMBOL O DE UMA FORÇA IDEALIZADA SÍMBOLO EVOLUTION OF THE SOCIAL THOUGHT: RIGHT SYMBOL OF AN IDEALIZED FORCE A palavra Direito tem vários significados. Esse termo é definido, no dicionário Aurélio, da seguinte forma: “direito: reto, direto, probo, justo, honrado. Aquilo que é justo e reto conforme a lei. Faculdade concedida pela lei; poder legítimo. Conjunto de normas jurídicas vigentes num país”. Como se vê, em suas diversas acepções, a palavra direito remete à idéia de retidão, equilíbrio, justiça. Atesta que o direito é visto, popularmente, como um instrumento capaz de oferecer, a todos, oportunidades iguais e assegurar proteção contra atos violentos, de tirania, ou prepotência. Seria, enfim, um meio eficaz de corrigir injustiças. Em geral, observa-se que o homem comum atribui ao Direito uma série de valores que o tornam símbolo de uma força idealizada. Para ele, o Direito seria algo impreciso que evoca instituições perfeitas, capazes de apontar o reto caminho e distribuir justiça. Essa concepção é bem antiga. A idéia da justa distribuição, dos direitos iguais, em suma a idéia do equilíbrio já estava na antiguidade, materializada num símbolo onde figurava uma balança, com um fiel no centro e dois pratos colocados lado a lado, exatamente no mesmo nível. Na Grécia, quando não havia o fiel, a balança aparecia na mão esquerda da deusa Diké1, postada de pé e de olhos 1 Uma das Horas, filha de Têmis e Zeus. 91 TEMA abertos, mantendo na mão direita uma espada, sinalizando que o reconhecimento do Direito não excluía o uso da força para executá-lo. Os romanos, por sua vez, adotavam como símbolo a deusa Iustitia, de olhos vendados, segurando a balança. Os olhos vendados sugerem a imparcialidade: quem julga não distingue entre senhor e escravo, rico e pobre, fraco e poderoso. Em suma: as classes sociais e o poder econômico não contam. Os olhos vendados sugerem ainda a valorização da audição, da palavra falada, da argumentação oral bem articulada e ouvida com atenção. Entre os romanos, porém, a deusa Iustitia segurava a balança mas não usava a espada, o que leva a supor a valorização da prudência, do equilíbrio, da segurança e firmeza na ação com a dispensa da força da arma. Na língua portuguesa, a palavra direito preservou tanto o sentido de jus como de derectum. Jus no latim clássico, falado pelas pessoas cultas, significava direito. A palavra jus era usada nos meios especializados, como entre os juristas, e outras pessoas dotadas de saber. Continha, em seu sentido original, certa deificação da justiça enquanto virtude moral. Ainda entre os romanos, a palavra jus foi, ao longo do tempo, sendo substituída pela palavra derectum, que era usada em documentos não jurídicos destinados ao povo. Era, em geral, empregada com um sentido associado à noção de retidão, ao equilíbrio das balanças, ao ato correto da justiça. Isto significa que a palavra evocava um ordenamento jurídico onde a ação de praticar a justiça se fazia através de um aparelho judicial que, por sua vez, é dotado de virtudes morais, ou seja das artes do bom e do justo. Em português a palavra direito absorveu os significados de jus e derectum e isso pode significar que o sentido moral da justiça juntamente com o ato prático de bem aplicar a norma jurídica estão presentes no significado da palavra direito em nossa língua. A palavra direito envolve também algumas ambiguidades, relacionadas com as possibilidades de indução, persuasão e imposição. Por exemplo, ela pode sugerir e induzir o indivíduo a seguir as regras sociais, persuadindo-o de que UNIESP 92 isso lhe trará tranqüilidade. De modo implícito estará alertandoo para os riscos de se adotar uma conduta desviante, pois poderá pesar sobre o transgressor, de modo inevitável, as penas da lei. A ameaça permanente pesa sobre ele: “não pule fora dos trilhos, não saia da linha”. Essa ameaça será mais forte ou menos forte conforme o caráter da sociedade - mais tolerante ou mais intolerante - e conforme o momento histórico que ali se vive. Num momento de predomínio de uma ditadura, por exemplo, o medo fará parte do cotidiano da população com muito mais intensidade do que num momento de maior liberdade e tolerância diante de opiniões divergentes. Nas mais diversas sociedades, todos sentem pairar sobre as suas cabeças as imposições das leis. O não cumprimento das normas pode levar o infrator a punições que variam de acordo com as leis vigentes em cada país. Como, porém, teriam sido elaboradas as primeiras Leis? Sabe-se que as regras foram estabelecidas por seres humanos, segundo normas e padrões de sua cultura. Os romanos, porém, distinguiam algumas regras que não teriam sido elaboradas pelos homens: as leis da natureza. GÊNESE DO DIREITO: TUREZA NATUREZA AS LEIS DA NA “Antes de todas as leis, existem as leis da natureza, assim chamadas porque decorrem unicamente da constituição de nosso ser” - diz Montesquieu em sua famosa obra “O Espírito das Leis”. “Para bem conhecer essas leis, é preciso considerar o homem antes do estabelecimento das sociedades” - pondera Montesquieu, na obra citada. Antes, porém, de Montesquieu, e de modo diferente, outros pensadores consideraram a questão das leis da natureza. Na Grécia antiga, acreditava-se que há no ser humano certas idéias inatas, que o predispõem ao bem e ao justo, que o desviam do mal e o proíbem. Aristóteles admitia a existência de uma via natural que aspira à beleza, que reside na ordem, 93 TEMA na harmonia, na proporção. Essa noção de belo que quer a perfectibilidade, a natureza corrigida, para Aristóteles, era imanente ao espírito humano, portanto eterna e imutável. Sendo, então, superior à realidade, cabia ao homem buscar através de uma compreensão direta, profunda e intuitiva a beleza plena, regular, ordenada, harmoniosa e simétrica que já estava idealmente dentro dele. Essas noções ideais são princípios superiores, eternos e imutáveis, com os quais o ser humano já nasce: uma espécie de herança divina. No Direito, os adeptos dessa crença constituíram uma escola, que ficou, então, conhecida como jusnaturalista ou do Direito natural. Na Grécia antiga, o direito se caracterizava como exercício ético, valorizando-se a prudência, o equilíbrio e a ponderação nos atos de julgar. O Direito se revestia de um caráter de perfeição e invariabilidade e se admitia, desde o filósofo Heráclito, que a doutrina de um Direito imutável assentava-se na lei natural e no logos universal, nas quais deveria sustentar-se a legislação humana. Em Roma, Cícero, em De República, estabeleceu uma síntese da concepção jusnaturalista, ressaltando o caráter universal e eterno do direito. Alí se entendia que a lei era igual para todos os homens, em todos os tempos e em todos os lugares. Não importava que fosse em Roma ou em Atenas, nem que se tratasse desta ou daquela nação, neste ou em outro lugar: seu caráter permanente e imutável derivava da própria natureza do homem, da essência divina que havia em cada ser humano e que lhe permitia distinguir entre o bem e o mal, induzindo-o ao bem. Cícero escreveu o seguinte: “Existe uma lei verdadeira, reta razão, conforme a natureza, difusa em todos, constante, eterna, que apela para o que devemos fazer, ordenando - o, e que desvia do mal, que ela proíbe; que, no entanto, se não ordena nem proíbe em vão aos bons, não muda por suas ordens nem por suas proibições os maus(...) É de instituição divina que UNIESP 94 não se possa propor ab-rogar essa lei e que não seja permitido aboli-Ia (...) não é preciso procurar um Elio Sexto como seu comentador ou intérprete; ela não é diferente em Roma ou Atenas, não é diferente hoje nem amanhã; mas sim, lei única, eterna e imutável,ela será para todas as nações e para todos os tempos...” Os romanos estabeleciam distinção entre o direito natural e o direito civil. Para eles, o direito civil era constituído pelas normas próprias de cada Estado (civitas). As leis civis, porém, norteavam-se pelos princípios gerais estabelecidos pelo direito natural. Ulpiano, jurisconsulto romano, no segundo século da era cristã resumiu em três máximas os preceitos ideais de conduta, regidos pelo direito natural: 1°) - Viver honestamente; 2°) não prejudicar o próximo; 3°) dar a cada um o que lhe é devido. Na Idade Média foram elaborados elementos de uma doutrina jurídica e São Tomás de Aquino irá distinguir três tipos de direito. O primeiro, de fundo religioso, é o direito divino, que irá centrar-se nas Escrituras Sagradas e nas decisões tomadas pelos papas e concílios. O segundo, chamado de direito natural, equiparava-se ao que estabeleciam os romanos e confundiamse com o direito divino. Centrava-se na capacidade de que é dotado o ser humano de apreender o que é inerente à sua condição ou seja a noção do bem, do justo, do certo, do errado. O terceiro é o direito positivo. Este sim teria sido criado pelos homens para regular suas relações inter-pessoais e grupais Os fundamentos desse direito são antigos e derivam do estado de guerra. Este estado surge quando os indivíduos, que estão em sociedade, descobrem sua força como grupo e passam a combater outros grupos. “Cada sociedade particular passa a sentir sua força; isso gera um estado de guerra de nação para nação. Os indivíduos, em cada sociedade, começam a sentir sua força: procuram reverter em seu favor as principais vantagens da sociedade: isso cria entre eles um estado de guerra” - afirma Montesquieu, analisando as origens das leis positivas. São então, segundo 95 TEMA ele, essas duas espécies de estado de guerra (entre indivíduos e entre nações) que irão propiciar o estabelecimento de leis entre os homens. Assim, serão estabelecidos o Direito das gentes (das nações), o Direito Político e o Direito Civil. O Direito das gentes estabelece as relações que diferentes povos mantêm entre si. O Direito Político considera, numa determinada sociedade, as relações entre os que governam e os que são governados. O Direito Civil estabelece as relações que todos os cidadãos mantêm entre si. Na Idade Média, os filósofos cristãos estabeleceram uma distinção entre razão e revelação: assim para eles havia a razão como luz natural e a revelação como luz sobrenatural. Aos conhecimentos divinos chegava-se através da revelação. Foi através da revelação, registrada nas escrituras, que o conhecimento do divino teria chegado aos homens. O cristianismo absorveu e reelaborou noções antigas do Direito natural relacionando-as com a religião, a partir das noções reveladas que os livros sagrados registram. Assim, o homem feito à imagem e semelhança de Deus degradou-se através do pecado. O trabalho, a propriedade privada, o Estado, as penas, a escravidão decorrem do ato primeiro de infringir a vontade divina, através do pecado original. A luta do homem entre o bem e o mal expressa-se na obra de Santo Agostinho, “A cidade de Deus”. Mais tarde, as concepções religiosas perderam impacto. As concepções dos racionalistas ganharam força na Europa. A palavra razão tem origem em duas fontes: Termo ratio (latino) e logos (grego). Na sua origem as duas palavras têm sentidos semelhantes: contar, reunir, juntar, calcular. Marilena Chauí diz que “logos, ratio ou razão significa pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de modo compreensível para outros. Assim, na origem, razão é a capacidade intelectual para pensar e exprimir-se correta e claramente, para pensar e dizer as coisas tais como são. A razão é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível. É, também, a confiança de que podemos UNIESP 96 ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis, ordenáveis, compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas, isto é, as próprias coisas são racionais”. Para Kant, a idéia de uma constituição civil já contém, a priori, um princípio da razão prática, segundo o qual o poder legislatório constituído deve ser obedecido, independentemente das características de sua origem. Segundo ele, somente através do ordenamento racional-jurídico o gênero humano percebe o progresso. O progresso avança ao infinito, no sentido da articulação plena entre moralidade e felicidade - e essa conjunção perfeita constitui, segundo Kant, o sumo bem. Os seres humanos, segundo ele, são determinados a priori, pela razão, no sentido de promover, com todas as forças, o maior bem do mundo, entendendo-se que esse bem consiste na ligação dos seres racionais com a moralidade, conforme estabelece a lei. O direito, segundo ele, só se aprimora numa ordem estabelecida e a luta pelo seu aprimoramento é travada com as armas da argumentação. BIBLIOGRAFIA ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, coleção Os Pensadores, 1974. LéVY-BRUHL, Henri. Sociologia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. _____________. A política. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. MONTESQUIEU, Charles Louis de. O espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BASTIDE, Roger. Arte e sociedade, 2a ed., São Paulo: Nacional e Ed. da USP, 1971. MOURA, D. Odilão. Princípios da filosofia de São Tomás de Aquino. Porto Alegre: EDIPUCRS - PUC-RS, 1998. GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 3a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. PLATÃO. O banquete. Lisboa: Edições 70, 2000. ________. Diálogos. Madri: Gredos, 1996. JOHNSTONE JUNIOR, Henry W. Heraclitus. Indianapolis: Hackett Publishing, 1989. ROUANET, Paulo Sérgio. As razões do iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Coleção Os Pensadores). 97 TEMA Autor e Texto Author - Text Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci* A RETÓRICA JURÍDICA E O CINEMA: ANÁLISE DO FILME “DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA UZ DOS SENTENÇA”” À L LUZ ENSINAMENTOS DO DOUTRINADOR CHAIM PERELMAN THE JURIDICAL RHETORICAL AND THE CINEMA. FILM ANALYSIS: “TWELVE MEN AND A SENTENCE”, BASED ON THE TEACHINGS OF INDOCTRINATOR CHAIM PERELMAN RESUMO O presente trabalho tem como objetivo analisar o filme americano “Doze homens e uma sentença” em consonância com o estudo da retórica desde sua origem até os dias atuais e sua ampla aplicabilidade na instituição do Tribunal do Júri nos Estados Unidos e no Brasil. ABSTRACT The present work aims to analyze the American film “Twelve Men and a sentence” according to a rhetorical study since its origin until now and its large applicability in the Law Court Institution in the United States of America and Brazil. PALAVRAS-CHAVE Filme . Retórica. Tribunal do Júri. Estados Unidos. Brasil. KEY WORDS Film. Rhetoric. Law Court. United States. Brazil. * Mestre e Doutoranda em Direito Previdenciário na PUC/SP. Professora do Curso de Direito da Fatema/Uniesp e da Universidade Presbiteriana Mackenzie na Graduação e Pós-Graduação. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 98-127 98 Ana Cláudia Pompeu Torezan Andreucci A RETÓRICA JURÍDICA E O CINEMA: ANÁLISE DO UZ DOS SENTENÇA”” À L LUZ FILME “DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA ENSINAMENTOS DO DOUTRINADOR CHAIM PERELMAN THE JURIDICAL RHETORICAL AND THE CINEMA. FILM ANALYSIS: “TWELVE MEN AND A SENTENCE”, BASED ON THE TEACHINGS OF INDOCTRINATOR CHAIM PERELMAN “Há de tomar o pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividila para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer as dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força da eloquência os argumentos contrários, e depois disso há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar” Padre Antônio Vieira (Sermão da Sexagésima) “Sem conhecer a força das palavras é impossível conhecer os homens.” Confúcio “D oze homens e uma sentença” é um filme para ser assistido e analisado pelas mais diversas ciências.São aspectos sociais, psicológicos, jurídicos, linguísticos entre outros que foram enfocados com maestria nesta obra americana. 99 TEMA É importante ressaltar que o filme foi filmado pela primeira vez em 1957 sendo protagonizado por Henry Fonda e Lee J. Cobb e tendo por diretor Sidney Lumet, que à época debutava no cinema, apesar de já ser conhecido no teatro e em produções para televisão. Sucesso de crítica e bilheteria a obra foi refilmada em 1996, tendo na segunda versão como estrelas principais Jack Lemmon, no papel de argumentador maior e George C. Scott, seu maior opositor, e último jurado a mudar de voto. Apenas a título de consideração introdutória deve ser informado o fato de que na primeira versão do filme nenhum dos jurados era negro. Contudo, na segunda versão há quatro negros, sendo que um deles, o que representa o empresário emergente, durante todo o julgamento demonstrou ser o mais preconceituoso em relação a sua própria raça. No contexto do filme uma indagação de primordial importância deve ser formulada: qual a razão para refilmagem de uma obra que durante 93 minutos mantém 12 homens em uma sala mal decorada e a portas fechadas deliberando pelo destino de um outro homem? Não há ação, romances, viagens e outros artifícios que agradam aos cinéfilos. Há apenas um objeto central, a palavra, a persuasão, a retórica. No que diz respeito à retórica esta técnica argumentativa é a “estrela maior” do filme, é, por meio dela, que o filme persuade o destinatário a assistir, bem como o diretor e atores envolvidos se engajam na tarefa de demonstrar aos espectadores que a instituição do Tribunal do Júri nos EUA deve ser repensada. Mais do que a utilização e análise de argumentos e fatos, o filme desnuda o Tribunal do Júri americano e tece severeas críticas tendo por base os erros nos julgamentos, em razão do jurado não estar comprometido com sua função e, o que é pior não saber separar a sua realidade, do julgamento que está em questão. No presente trabalho o filme será discutido em consonância com o conceito de retórica, sua origem, evolução UNIESP 100 histórica e principalmente tendo por alicerce maior a nova retórica proposta pelo estudioso belga Chaim Perelman. Ademais, à guisa de melhor ilustração do assunto a instituição do Tribunal do Júri nos EUA e no Brasil será apresentada em todos os seus aspectos formais através da legislação que norteia a matéria. Por meio da análise de um filme é oportuno relatar que o cinema é fonte inesgotável de motivação para o estudo dos mais variados temas, em especial aqueles que remontam à época antiga. Torna-se imprescindível mencionar ainda que a metodologia utilizada para a realização do trabalho em questão foi a pesquisa bibliográfica, buscando obras pátrias bem como de outros países para que se pudesse embasar a matéria. Finalmente a conclusão a ser apresentada revelará como a retórica é um assunto atual e se apresenta de forma constante nas lides advindas do Tribunal do Júri. A crítica trazida pelo diretor do filme à instituição do Tribunal do Júri nos Estados Unidos será traduzida para o cenário brasileiro, apontando como a retórica utilizada por acusador e defensor, atores no Tribunal, pode levar a erros. Ao final procurar-se-á apresentar proposta para a legislação pátria brasileira com o intuito maior de não eliminar a retórica como arma argumentativa, mas pelo menos, diminuir sua atuação, que atualmente encontra-se no nosso direito pátrio cingida apenas nas mãos da promotoria e defensoria nos julgamentos, já que os jurados não têm simplesmente a possibilidade de discutir o caso e seus votos são secretos. DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA “Antes mil vezes absolver o culpado do que uma só vez condenar o inocente.” (absolvere nocentes satius est, quam condemnare inocentem) Brocardo Latino 101 TEMA A história O filme começa nas derradeiras horas de um julgamento por assassinato, tendo como réu um porto-riquenho e a denúncia de ter esfaqueado seu pai, levando-o à morte. O cenário para o julgamento de uma questão tão difícil, não é nada aprazível, o dia é quente e abafado e o Tribunal não oferece condições para atenuar tais fenômenos da natureza. A juíza que preside o caso deixa clara a responsabilidade daqueles doze homens, qual seja, de serem juízes e decidirem pela culpabilidade ou pela inocência de um réu. E adverte: “Vocês devem julgar imparcialmente, separar os fatos da fantasia. Não invejo essa tarefa, a responsabilidade é enorme”. Após as explicações necessárias, seguem aqueles doze homens para a sala secreta e com a advertência de que de lá só poderiam sair com um resultado unânime: absolvição ou condenação. O Diretor do filme, propositalmente, nos apresenta um cenário desagradável, com paredes mofadas, mal pintadas, janelas quebradas e ar condicionado sem funcionar, o que seria imprescindível num dia daqueles. A pressa era reinante entre a grande maioria dos jurados, e em princípio a idéia é a de levar o caso rapidamente à votação. A pressa inicial que tomava conta dos jurados aumenta na medida em que vão se instalando na desconfortável sala secreta. Contudo, não se pode dizer que a pressa era a regra geral para todos os componentes do Conselho de Jurados. Para o arquiteto protagonizado por Jack Lemmon, não havia pressa, havia comprometimento, preocupação com o destino de uma pessoa, apego ao ideal de justiça. Havia para ele uma “dúvida cabível” no caso a ser tratado, e por via de consequência o réu não poderia ser condenado, consubstanciado na maxima latina “ in dubio pro reo”, ou seja, na dúvida a favor do réu. Além do arquiteto, integram o corpo de jurados: UNIESP 102 1) um senhor de idade, com dificuldade de locomoção e que é o primeiro a mudar de voto; (HUME CRONYN) 2) um corretor de seguros que sempre busca argumentos lógicos; (ARMIN MUELLER –STAHL) 3) um negro nascido e criado num cortiço e que trabalha num hospital do Harlem; (DORIAN HAREWOOD) 4) um vendedor que quer acabar logo o julgamento para ir ao jogo de beisebol; (TONY DANZA) 5) um publicitário; (WILLIAN PETERSEN) 6) um imigrante do leste europeu que trabalhava como relojoeiro; (EDWARD JAMES OLMOS) 7) um muçulmano emergente; (MIKELTI WILLIAMSON) 8) um senhor negro, simples e que trabalha em um banco; (OSSIE DAVIS) 9) um técnico de beisebol que é o jurado coordenador dos trabalhos; (COURTNEY B. VANCE) 10) um pintor de paredes, “sem opinião própria”; (JAMES GANDOLFINI) 11) um pequeno empresário “inflamado” em suas idéias e que caracteriza-se pelo rancor pela juventude, espelho de seu filho que o ameaçou e o abandonou anos atrás. Este é o último a mudar de voto, contra-atacando todos os argumentos trazidos. É neste que está 103 TEMA configurado o exemplo maior de que para alguns não se dissocia a fantasia da realidade. (GEORGE C. SCOTT) Na primeira votação sugerida pelo jurado coordenador dos trabalhos, o resultado é uma surpresa 11 a 1, tendo em vista que o arquiteto demonstra que não está seguro para condenar o Réu. No princípio o jurado discordante é visto como uma “ovelha negra”, mas pouco a pouco, e utilizando-se da retórica, arte de persuadir, vai lentamente influenciando seus colegas a repensarem suas opiniões, afastarem seus preconceitos, falhas e medos. Como já dito a obra americana serve de suporte para vários campos de estudo, mas é para os estudiosos do direito e lingüistas, um exemplo de como a retórica pode modificar a opinião das pessoas. O trabalho de advogado de fato e não de direito do réu feito pelo arquiteto demonstra a fragilidade das provas trazidas aos autos e sobre as quais os demais jurados estavam convencidos, sem questionar, entendendo que o julgamento encontrava-se solidamente embasado. Mostra ainda a fragilidade do júri, quando “despe” os jurados, pondo-os a nu com seus preconceitos, sua educação. Se o filme não nos dá uma sentença condenatória à Instituição do Júri,pelo menos nos leva a pensar sua precariedade, já que as pessoas, não conseguem afastar seus juízos, preconceitos e aspectos pessoais do julgamento. As condições precárias da sala dos jurados podem ser consideradas como meio de induzi-los a rapidamente decidir, para saírem do sofrimento, do desconforto. O interessante de ser notado no filme é a seqüência dos argumentos utilizados e o momento em cada argumento convence um jurado determinado. Há argumentos que convencem um ou outro jurado, mas há argumentos que pelo impacto da informação têm o condão de fazer com que todos repensem a validade de seus conceitos. UNIESP 104 Ademais, nota-se claramente em determinados trechos do filme que apesar de alguns argumentos serem sólidos e profundos, muitos são os jurados que se sentem motivados a mudar de opinião, mas com o intuito orgulhoso de não ceder resolvem manter suas opiniões originárias. Há de ser mencionado que muitos são os argumentos trazidos ao filme, mas apenas aqueles de maior impacto serão enfocados.Senão vejamos. Argumento n. 1 : A faca A faca, instrumento do crime, em primeiro lugar é tida como única, pelos depoimentos prestados durante a instrução. Seu desenho é exclusivo e não haveria meios de haver outra igual. Pela primeira vez no discurso argumentativo o arquiteto formula uma indagação aos demais jurados a qual leva a suscitar uma dúvida. O arquiteto demonstra que uma faca como aquela pode ser comprada em qualquer loja da região, e que ele mesmo no dia anterior ao julgamento esteve no bairro onde morava o réu e obteve facilmente uma faca com iguais características àquela utilizada no assassinato. No que tange ainda à faca é necessário ressaltar como resultou o ferimento por ela produzido na vítima. Segundo o laudo pericial inserto nos autos o ferimento foi feito com a faca de cima para baixo. A faca que se abria de seu compartimento só poderia ser usada com pressão de cima para baixo. Como explicar este fato já que o réu era 15 (quinze) centímetros mais baixo que seu pai. Restou claro, naquele momento, que para funcionar a pressão teria sido de cima para baixo e em virtude da diferença de altura, não seria o réu o responsável pela morte de seu pai, mas sim uma pessoa que tivesse estatura maior que a da vítima. 105 TEMA Deve ser notado que este argumento não foi trazido pelo arquiteto, mas sim pelo senhor negro, bancário, que poderia ser qualificado como “medroso” e “sem opinião própria,” mas com o incentivo do arquiteto pôde demonstrar que também era capaz de raciocinar e de deixar de lado o medo de defender seu ponto de vista. Os argumentos, ora trazidos, afetaram sobremaneira o negro que trabalhava num hospital do Harlem, fazendo-o lembrar que aquele tipo de faca não se usava de cima para baixo, mas exatamente o contrário. Logo, mais uma dúvida foi inserida no pensamento dos jurados. Argumento n. 2 : Os gritos ouvidos no andar debaixo Outra prova que mereceu especial atenção do corpo de jurados foi um depoimento testemunhal de um senhor “idoso” que vivia no andar debaixo e teria ouvido o menino dizer ao seu pai “Vou matar você”. Esta prova é facilmente derrubada quando o arquiteto demonstra com base em outro depoimento testemunhal, agora de uma mulher, que vivia do outro lado da rua, de que naquele exato momento de exclamação da frase ameaçadora passava um trem na ferrovia vizinha ao local dos acontecimentos. Assim é fato: como identificar no andar debaixo com o barulho ensurdecedor de um trem a voz do filho dizendo ao seu pai: Vou matar você! Tal possibilidade não só é impossível como nos remete a outra indagação, como confiar num depoimento como este? Com isso derruba-se o depoimento testemunhal daquele senhor e todos os fatos por ele alegados em juízo são desmascarados, entendendo até mesmo um componente do corpo de jurados, também idoso, que aquela testemunha teria se sentido importante no momento do Júri e poderia até mesmo fantasiar fatos que efetivamente não teriam acontecido. UNIESP 106 Argumento n. 3 : O vulto do filho visto pelo vizinho do andar debaixo O argumento n. 3 trazido no filme também tem total relação com a testemunha acima explicitada, ou seja, o senhor “idoso” morador do andar debaixo. Esta testemunha, que sofrera um derrame um ano antes, depôs dizendo que ouvira o garoto brigar com o pai e depois um corpo cair ao chão. Disse ainda que quinze segundos depois, o garoto teria descido as escadas do edifício. O arquiteto, através da lógica matemática que é inerente a sua profissão, analisando a planta do apartamento e simulando a ação do velho, comprovou que o percurso da cama da testemunha até a porta que levava ao corredor demorava 42 segundos, e não 15 segundos como havia a testemunha mencionado. Pela segunda vez esta testemunha é colocada em dúvida . Argumento n. 4 : A mulher que presenciou o crime através das janelas do trem Cumpre destacar que o argumento n. 4 está relacionado a uma mulher, descrita no filme como muito elegante e vaidosa e que testemunhou dizendo que havia presenciado o crime por meio das janelas do trem que passava no momento. Ressalta-se que esta testemunha morava no lado oposto e que o trilho do trem era a marca divisória entre a sua casa e a da vítima. No momento do crime , a testemunha encontrava-se repousando em sua cama e ao ouvir os gritos pôde presenciar o filho matando o seu pai. É interessante notar que esta testemunha é desmascarada pelo jurado mais idoso, e ressalte-se como é 107 TEMA comum com a terceira idade, sendo tratado com desprezo por alguns companheiros do Júri. O jurado atentamente olhava para o jurado, corretor da bolsa de valores, que esfregava suas marcas de expressão na parte interna dos olhos, profundas e típicas de quem usa óculos com graus maiores. Tal gesto, como de maneira mágica fez com que o jurado mais “idoso”, se lembrasse que a vaidosa testemunha tinha o mesmo hábito de esfregar o canto dos olhos. Pôde assim perceber que por ser vaidosa, ou até mesmo instruída pela Promotoria, foi ao Tribunal sem seus óculos. A constatação aliada ao fato de que no momento do crime a testemunha encontrava-se repousando fez com que o jurado raciocinasse que para poder enxergar ela precisaria colocar seus óculos e que no tempo descrito não poderia ter testemunhado o crime. Ou ainda o que é pior, não seria possível para quem não dispõe das faculdades visuais perfeitas, enxergar através das janelas do trem que passava no momento do crime. Todos os argumentos e os detalhes que formam o enredo do filme são um convite ao estudo da arte da palavra, das técnicas da argumentação e para resumir, da arte retórica. De todos os filmes que existem no cenário americano, no qual encontra-se a maior safra de filmes desta natureza, talvez seja “Doze homens e uma sentença” o exemplo daquele que melhor trata da retórica, enquanto técnica, enquanto arte, enquanto “estrela maior” do espetáculo. No próximo capítulo será a retórica apresentada em seus aspectos conceituais e toda a sua evolução através dos tempos. Procurar-se-á ainda cotejar elementos identificados no filme e citações formuladas pelo “pai da retórica moderna” o estudioso belga, Chaim Perelman. UNIESP 108 RETÓRICA “O que melhor caracteriza a retórica é ter sido definida como a ciência de dizer bem, porque isto abrange ao mesmo tempo todas as perfeições do discurso e a própria moralidade do orador, visto que não se pode verdadeiramente falar sem se ser um homem de bem.” Quintiliano Conceito Anteriormente ao conceito do instituto é necessário enfocar que a retórica só ocorrerá dentro de um sistema, chamado de discurso, disciplinado pela Teoria Geral do Processo de Comunicação. Nesse sentido, o discurso deve ser entendido consoante lições de Tércio Sampaio Ferraz Júnior1 como “uma ação linguística dirigida a outrem, donde o seu caráter de discussão, em que alguém fala, alguém ouve e algo é dito. E argumenta ainda o professor Tércio2 que “ assim, a situação comunicativa se limita internamente também na forma de regras de atribuição e de diferenciação de papéis. Com isso é possível 3 determinarem-se diversas reações avaliativas dos partícipes: cooperativas, contestativas, indiferentes, etc, com a conseqüente qualificação do objeto do discurso e seu controle (função estimativa do discurso). Assumimos, assim que as partes, na situação comunicativa, estão motivadas, isto é, têm em princípio, interesse pelo que se diz, certeza de que algo vai ser alcançado e incerteza sobre o que será alcançado.” 1 2 3 Direito, Retórica e Comunicação, p. 57. Op. cit., p. 59. O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática, p.12. 109 TEMA Deve ser ponderado que todo o discurso está relacionado com um objetivo maior na comunicação, qual seja, segundo David Berlo4 o de nos fazer influenciadores dos outros, dos ambientes e até de nós mesmos. Tal influência é feita de maneira intencional pelo agente ativo da comunicação. Resta clara assim, a idéia precípua de que o discurso é a base da comunicação humana e esta visa acima de tudo influenciar. Comungando das mesmas considerações o professor Ubaldo César Baltazar 5 define o “discurso como um acontecimento linguístico e social, único e irrepetível. Pode produzir vários sentidos porque se constrói com o material lingüístico, e é heterogêneo porque reflete a multifacetação cultural do tecido social:há diferentes sistemas de referência que possibilitam múltiplos sentidos numa dada formação social.” Quanto ao termo retórica impõe considerar que já esteve vinculado como sinônimo de oratória, mas contudo a melhor definição para que se possa entender a natureza da retórica está adstrita ao mestre Chaim Perelman6 que a considera como o “estudo dos meios de argumentação, não pertencentes à lógica formal, que permitem obter ou aumentar a adesão de outrem às teses que se lhe propõem ao seu assentimento.” Há de ser verificado que a retórica tem por finalidade, enquanto ciência, o estudo das formas de argumentação que levam à adesão de um auditório. Neste cenário oportuno se torna mencionar que os termos persuasão e convencimento são indissociáveis da idéia de retórica. 4 5 6 O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática, p.12. O poder das metáforas : Homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat, p. 20. Retóricas. p. 57. UNIESP 110 David Berlo7 comunga das mesmas idéias asseverando que “Aristóteles definiu o estudo da retórica (comunicação) como a procura de todos os meios disponíveis de persuasão”. Discutiu outros possíveis objetivos de quem fala, mas deixou nitidamente fixado que a meta principal da comunicação é a persuasão, a tentativa de levar outras pessoas a adotarem o ponto de vista de quem fala”. E acrescentou “nosso objetivo básico na comunicação é nos tornar agentes influentes, é influenciarmos outros, nosso ambientes e nós próprios, é nos tornar agentes determinantes, é termos opção no andamento das coisas. Em suma, nós nos comunicamos para influenciar – para influenciar com intenção.” Desta forma evidencia-se a idéia que ao se comunicar o ser humano implicitamente visa cativar, conquistar, convencer e persuadir, necessariamente nesta ordem. A intenção do emissor da mensagem é a concordância do receptor e para tanto a maior responsabilidade para que ocorra o objetivo almejado encontra-se nas mãos do emissor. Contudo, para argumentar Ronaldo Caldeira Xavier8 elucida que “a argumentação, porém, é o ponto fundamental , a pedra de toque da eloquência. Nela se resume a arte de discutir as provas, distinguir o verdadeiro do falso, de rebater as razões do adversário, tendo por fim convencer o ouvinte. A argumentação, por sua vez, pode subdividir-se em confirmação e refutação. A primeira é a parte defensiva; a Segunda, a parte ofensiva. Consoante velho conselho dos mestres da palavra, a confirmação deve dispor os argumentos de modo que os mais fortes venham em primeiro lugar, para atrair a atenção; depois os menos poderosos e, só então, quando já se tem granjeada a confiança da platéia, os mais fracos. Finalmente, coroando tudo, os mais vibrantes, para que causem grande impressão no espírito dos ouvintes. Na refutação, o orador passa para o ataque, para a destruição dos argumentos opostos aos seus. 7 8 Op. cit,. p. 20. Português no Direito. p. 226. 111 TEMA Se o desejar, pode fazê-la preceder à confirmação, dependendo da estratégia oratória adotada. A refutação far-se-á segundo o obstáculo pela frente: criticando a falsidade ou dubiedade de um fato, desarticulando o aparato lógico de um raciocínio tendencioso, reduzindo-o à mais simples expressão, se possível, ao nada, responder-se-á à paixão com a paixão, à injúria com a injúria, à ironia com a ironia. Em suma, o orador combaterá com as mesmas armas que usar o adversário.” Das lições trazidas resulta destacar que o emissor deverá conhecer o receptor, ou melhor seu auditório, falando o que convém , no momento mais oportuno. Convém enfatizar ainda que o que for propício para um auditório muitas vezes não o será para outros. Conforme Chaim Perelman9 a argumentação teórica tem por objetivo a adesão do auditório, e cada auditório a que se dirige deve ser visto de modo singular, o que funciona como premissa para um determinado público poderá não ser para outro, e aí está a base da argumentação e da retórica. Ademais parafraseando o mestre belga10 impõe notar que a retórica guarda diferenças da lógica pelo fato de se ocupar não com a verdade abstrata, categórica ou hipotética, mas com a adesão. Tem por meta a retórica produzir ou aumentar a adesão de um determinado auditório a certas teses e seu ponto inicial será a adesão desse auditório a outras teses. Importa salientar que o orador no momento de desenvolvimento do seu discurso deve dar especial atenção à adesão alheia, propugnando para que os receptores da mensagem fixem a atenção, sejam conquistados e em especial, formem uma espécie de comunidade comprometida com o teor da comunicação. A citação ora trazida ao trabalho encaixa-se perfeitamente na intenção do jurado arquiteto, posto que toda a sua retórica estava destinada a convencer um auditório 9 10 Retóricas. p. 70. Op. cit. p. 71. UNIESP 112 heterogêneo, mas que de certa forma encontrava-se comprometido com um mesmo problema, qual seja, a decisão dentro de um julgamento de assassinato. Perelman11 invoca ainda em seus estudos que situações envolvendo vários interlocutores com pensamentos diversos ocorrem com freqüência e, ainda além do adversário, receptor da mensagem, muitas são as pessoas que não participam diretamente do processo comunicativo, mas assistem à discussão. Podemos notar tal teoria explicitada pragmaticamente no filme “Doze homens e uma sentença” no qual por vezes uma tese era aceita por alguns, mas não por outros jurados, a resposta para esta assertiva pode ser compreendida como a possibilidade de adesão pelos demais ouvintes quando a tese parecer mais adequada, oportuna e contemporânea. O filme nos mostra ainda em várias passagens que o argumentador principal, qual seja, o jurado arquiteto, ao estabelecer as premissas fundamentais de sua tese e ao se dirigir ao jurado em especial, buscava a persuasão de todos aqueles que assistiam à discussão. Destaca-se também que por não estar a retórica ligada a uma ciência exata tudo pode ser motivo para indagações a esse respeito e Perelman12 informa em sua obra “Retóricas” “que tudo sempre pode ser questionado; sempre se pode retirar a adesão: o que se concede é um fato, não um direito”. É evidente que no filme “Doze homens e um sentença” tudo foi questionado e todos os conceitos que pareciam intangíveis foram sendo derrubados um a um. Por conseguinte, há de ser relevado que em todos os momentos os jurados que apresentavam-se comprometidos com a argumentação dos fatos expostos no julgamento fictício não se deixavam levar pelas emoções desenfreadas, posto que estas muitas vezes pode dificultar a finalidade maior da argumentação. Cabendo citar para corroborar as idéias acima 11 12 Op. cit., p. 77. Op. cit. p. 77. 113 TEMA expostas o entendimento do mestre Whitaker Penteado13 "a legítima argumentação deve ser construtiva na sua finalidade, cooperativa em espírito e socialmente útil. Embora seja exato que os ignorantes discutem pelas razões mais tolas, isto não constitui motivo para que os homens inteligentes se omitam em advogar idéias e projetos que valham a pena. Homens mal intencionados discutem por motivos egoístas ou ignóbeis, mas este fato deve servir de estímulo aos homens de boa vontade para que se disponham a falar com maior frequência e maior desassombro. O ponto de vista que considera a discussão como vazia de sentido e ausente de senso comum é não só falso, mas também perigoso, sob o ponto de vista social”. Neste mesmo diapasão é de ser verificado que as discussões trazidas pelos jurados na sala secreta fizeram com que o julgamento fosse repensado, e medos, preconceitos e hipocrisia foram lentamente deixados de lado para ocupar o papel central, o objetivo maior da questão, ou seja destino de um outro homem. Quanto ao destino deste outro homem não poder-se-ia precisar se era culpado ou não, mas repensar sua condição diante de uma “dúvida cabível” quanto a sua inocência. A retórica muitas vezes, por consistir na arte de persuadir, visa questionar fatos, que não podem ser tomados como verdades absolutas. Quando se trata da análise da retórica no Júri pode-se evidenciar que a verdade é tida sempre como relativa, devendo os jurados enquanto juízes da questão analisarem os fatos em consonância com as provas dos autos.A verdade provisória ou relativa não macula apenas o Tribunal do Júri, mas sim é marca característica da ciência do Direito, como elucida a professora Maria José Constantino Petri14 que no campo do Direito sempre se nota a relatividade da verdade, pois cada acontecimento 13 14 A técnica da comunicação humana. p. 233. Argumentação linguística e discurso jurídico. p. 97. UNIESP 114 ocorre em determinado tempo e local e tais questões devem ser analisadas na relação entre tese e norma jurídica.Tendo o Direito o Homem como objeto central não é possível se falar em verdades absolutas, pois as ações se projetam para o futuro. Nem o próprio momento é absoluto, varia no passado, presente e futuro. Cabe à Justiça a singularidade de cada caso em concreto realizando um fim em si mesma e o discurso jurídico busca a sentença absolutória ou condenatória do acusado, o que faz do discurso jurídico altamente argumentativo e persuasivo. O pensamento da professora Maria José Constantino Petri talvez seja o melhor exemplo para fundamentar o vasto campo da retórica na ciência do Direito, sua atuação enquanto principal instrumento de atuação. Pode-se dizer que é a retórica inspiração constante dos diretores de cinema, em especial, os americanos, tendo em vista que naquele país inúmeros são os filmes que tratam da arte de persuadir, enumerando suas formas e artifícios. Também nos bancos das academias do curso de Direito a retórica é estudada como principal ferramenta de trabalho daqueles que objetivam trabalhar na área. Tal como se evidencia nos dias atuais a retórica sempre foi objeto de estudo de filósofos, lingüistas, estudiosos do Direito entre outros. Retórica: Da antiguidade aos dias atuais Originou-se a retórica em Siracusa, Grécia, 485 a.C., configurando-se como primeiros professores Empédocles de Agrigento, Corax e Tísias de Siracusa. Segundo Barthes citado por Maria José Constantino Petri a retórica inicial era marcada pela tentativa de sistematização de um discurso e Corax foi o responsável por tal sistematização elaborando o Plano composto de cinco partes do discurso entre elas: o exórdio ou introdução, a narração ou ação, a argumentação ou prova, a digressão e o epílogo. 115 TEMA Górgias foi considerado outro expoente no estudo da retórica preocupando-se com a utilização de figuras de linguagem, sendo seguido por Platão . Talvez tenha sido Aristóteles quem melhor engendrou estudos sobre o tema. O filósofo grego com base no seu tratado denominado “Topica” escreveu “Techne Rhetorike”. Para Aristóteles a retórica é uma técnica que visa persuadir, raciocinar sobre o verossímil e pontos de vista, e portanto não poderia ser considerada como uma ciência, pois esta última tem como finalidade demonstrar. Como técnica que era a retórica estava consubstanciada em três gêneros: o judiciário, o deliberativo e o epidítico. No que tange ao Império Romano a retórica marca sua passagem nos idos do Século II a C. e surgem em Roma as escolas de Retórica; é de Cícero a obra “Rethorica ad Herenium” sendo seguido por “De Institutione Oratoria” de Quintiliano considerado à época como professor especialista na retórica de Aristóteles e lhe é dada a missão de lecionar tal assunto, como forma de propagar a matéria. Na Idade Média a retórica foi difundida juntamente com o cristianismo tendo por precursor Santo Agostinho. No século XX a retórica é inicialmente rejeitada em virtude do espírito analítico matemático que pairava no ar. São tempos de teorias matematicamente demonstráveis através da lógica formal. À época nada que fosse comprovado e demonstrado seria aceito e assim a retórica que era considerada como a arte do provável, do verossímil é deixada de lado, só renascendo com Chaim Perelman através de seu tratado da argumentação. Para Perelman as ciências humanas devem ser respeitadas e há regras diferentes para cada ciência, não tornando nenhuma submetida à outra. No que tange à retórica defendia Perelman que se tratava de uma ciência com leis próprias . UNIESP 116 O TRIBUNAL DO JÚRI “Não sou contrário ao Júri. Penso que, bem organizado, o tribunal popular distribuirá a justiça em melhores condições do que os juízes togados. Julgando de consciência, o jurado defenderá a sociedade de seus maus elementos e impedirá que os bons elementos sofram os rigores da lei.” Ministro Costa Manso Origem A origem do Júri remonta à antiguidade, época em que os acusados em geral eram julgados por reis ou seus autorizados. Com a conscientização sobre a liberdade individual de cada um, os julgamentos passaram a ser realizados com a intervenção do povo. Conforme o processualista Vitorino Prata Castelo Branco, “com o aparecimento da democracia, com a intervenção do povo na administração da justiça, o homem, acusado de algum crime , passou a ser julgado por seus iguais, assim surgindo o júri, denominação inglesa, derivada do antigo francês jurée, marcando, no meridiano do mundo político o aparecimento do poder popular”. Há referências de julgamentos pelo Tribunal do Júri na Roma Clássica, na Grécia Antiga. Na Inglaterra, o Júri Popular foi instaurado nos idos do século VII no governo do Rei Alfredo, o Grande. Já na França o Júri Popular apareceu tardiamente somente sendo instituído após a Revolução Francesa de 1789. Origem no Brasil Em se tratando de Brasil, o Júri teve sua história marcada em 18 de junho de 1822 objetivando julgamentos oriundos de crime de imprensa. 117 TEMA Foi por meio do Código de Processo Criminal do Império de 1841 que o Tribunal do Júri alcançou sua primeira sistematização. Impera ressaltar que somente a partir do Decreto-Lei n. 167 de 5 de janeiro de 1938 o Júri teve sua competência limitada sendo-lhe facultado apenas os julgamentos dos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados, entre eles o homicídio, o aborto, o infanticídio e o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Desde o Decreto-Lei supra citado encontra-se o Júri adstrito aos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida, sendo de todo importante salientar que está erigido à categoria de Direito e garantia fundamental do cidadão no artigo 5, XXXVIII da Constituição Federal de 1988, cabendo citar: Art. 5 o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes: XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) A plenitude de defesa; b) O sigilo das votações; c) A soberania dos veredictos; d) A competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Procedimentos processuais do Tribunal do Júri Os procedimentos relativos ao Tribunal do Júri encontram-se elencados no Código de Processo Penal, Capítulo, Seções I a V, artigos 406 a 496. UNIESP 118 Ressalta-se assim que são 90 artigos destinados a operacionalizar todo o funcionamento dos crimes julgados pelo Tribunal do Júri, quais sejam, os dolosos contra a vida, tentados ou consumados. Da função do jurado Impõe destacar que a instituição do Tribunal do Júri é consubstanciada no julgamento do réu pelos seus pares e assim sendo o artigo 434 estabelece que o serviço do Júri é obrigatório. O critério de idoneidade dos cidadãos será um dos requisitos para que se possa participar como jurado. Cumpre observar que a missão do jurado é de absoluta importância e sua recusa importará na perda dos direitos políticos, conforme acentuado pelo artigo 119, b da Constituição Federal. Por outro lado é necessário enfatizar que o artigo 437 estabelece ser a função de jurado um serviço público relevante, garantindo ao jurado “presunção de idoneidade moral e assegurará prisão especial, em caso de crime comum, até o julgamento definitivo, bem como preferência, em igualdade de condições, nas concorrências públicas.” Do julgamento pelo Júri No dia designado para o julgamento são intimados 21 jurados para que compareçam à sessão. Dentre os 21 jurados convocados, sairão 7 jurados que irão compor o Conselho de Sentença. A escolha dos 7 julgadores será mediante sorteio e após a formação do conselho de sentença os convocados sob a presidência do juiz farão a seguinte exortação, informada no artigo 464 do Código de Processo Penal: 119 TEMA “Em nome da lei, concito-vos a examinar com imparcialidade esta causa e a proferir vossa decisão, de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça”. Após a exortação seguem–se nesta ordem o interrogatório do réu, a leitura do relatório do processo com as provas e fatos pertinentes. A seqüência dar-se-á com a oitiva das testemunhas e, posteriormente, com aquela fase em que a retórica aparece de forma mais evidentes, os chamados debates. Inicialmente o promotor pela acusação e o advogado pela defesa terão 02 horas cada um para a exposição de seus argumentos. Para a réplica do acusador e tréplica do defensor o tempo será de 30 minutos conforme dispositivo expresso no artigo 474 do diploma processual penal. Após os debates os jurados se recolhem à sala secreta , onde lhes são entregues os autos do processo, “devendo o juiz estar presente para evitar a influência de uns sobre os outros”, consoante reza o artigo 476 do Código de Processo Penal. Resta claro que os jurados não poderão conversar sobre o caso, cabendo ao juiz impedir qualquer manifestação ou questionar acerca do julgamento. Ressalta-se que, nesta fase difere-se sobremaneira da votação nos EUA onde há liberdade entre os jurados para questionar e argumentar sobre o caso. Destaca-se que aos jurados são distribuídas cédulas para que sejam respondidos os quesitos. Cada cédula sigilosamente é entregue ao oficial de justiça que as repassará ao juiz. A decisão poderá ser por maioria de votos e finda a votação os termos dos quesitos serão assinados pelo juiz e pelos jurados. O comprometimento e a consciência ao julgar Pela análise dos tópicos anteriormente expostos no capítulo em questão, necessário se faz ressaltar que a tarefa UNIESP 120 do jurado encerra uma das maiores responsabilidades, qual seja, ser um juiz e sentenciar o destino de uma pessoa. Neste momento impõe trazer à baila os ensinamentos do especialista em Tribunal do Júri, Vitorino Prata Castelo Branco15 cumprindo citar: “ a arte de julgar, missão difícil mas digna, não depende da ciência ou de sabedoria, depende tão-somente de bom senso, virtude que qualquer pessoa responsável possui.”. E acrescenta “ o maior perigo do julgamento é julgar errado, não punir o culpado certo, ou condenar um inocente. A lei processual procura garantir a verdade dos fatos, na contrariedade dos debates, escritos e orais. Todavia, a justiça humana, sempre falha, permite o aparecimento de erros judiciários, ocorridos no estrangeiro e no Brasil”. Desta feita, consoante as lições ora trazidas tem-se por óbvio que a consciência e o comprometimento devem ser requisitos presentes no jurado sorteado. Contudo, na prática verifica-se constantemente que tais pressupostos por vezes não ocorrem e que na figura de julgadores, muitos são os jurados que se sentem como pessoas superiores e dignas de maior merecimento que o réu que ali se encontra. O Júri nos Estados Unidos Importa esclarecer que para que se possa entender em toda a sua plenitude o filme “Doze homens e uma sentença” necessário se faz o estudo pormenorizado do Tribunal do Júri nos Estados Unidos. Neste diapasão é imprescindível sublinhar suas origens, crimes de sua competência e aspectos formais-procedimentais. O instituto, na sua forma norte-americana de ser, terá no presente tópico por metodologia de análise a comparação com as formas preconizadas no Brasil. 15 O advogado no Tribunal do Júri. p.42. 121 TEMA As bases fundantes do Tribunal do Júri nos Estados Unidos encontram sua gênese nos aspectos históricos já mencionados na origem do instituto de maneira geral. Quanto aos procedimentos o modelo americano segue o disposto no modelo inglês onde o jurado responde ser o réu culpado ou inocente, guilty ou not guilty. É o jurado, nos Estados Unidos, um juiz da matéria de fato e de direito, diferentemente do que ocorre no Brasil, onde aos jurados é dada a função de responder aos quesitos e ao juiz aplicar o direito conforme respostas aos quesitos formulados. São escolhidos no Júri americano 12 jurados que irão compor o Conselho de Sentença. Ademais, comparativamente ao Brasil outro aspecto de salutar importância e que merece ser analisado é que as votações são abertas e aos jurados é permitida a análise dos fatos e provas. No instituto americano não há interferência do juiz, enquanto fiscal, para que os jurados não conversem no momento da decisão, como é o caso do Brasil. Muito pelo contrário, no sistema americano o debate, o questionamento e as discussões são presentes em todos os julgamentos. Talvez seria necessário meditar se o sistema americano não representa o melhor sistema de Tribunal do Júri, já que através do número maior de jurados e a troca de informações entre eles, possibilita a discussão e a análise minuciosa dos fatos e provas do processo visando evitar injustiças oriundas de preconceitos, falácias, erros e verdades inabaláveis. CONCLUSÃO “Quem seduz induz; quem seduz conduz; quem seduz deduz; e quem seduz aduz.” Gabriel Chalita Em se concluindo o presente artigo é oportuno reiterar que a retórica, instituto que teve sua origem nos idos do século V a.C., continua atual e revivida pela escola de Chaim Perelman. UNIESP 122 O conceito de retórica é indissociável do exercício profissional dos operadores do Direito, tendo em vista ser a palavra a principal ferramenta de trabalho destes profissionais. Entretanto, dentre os mais diversos campos da Ciência do Direito, é no Processo Penal, ou mais precisamente no Tribunal do Júri, que a retórica aparece como estrela maior. Sublinha-se que o filme “Doze homens e uma sentença” traz a lume uma crítica bem fundamentada ao instituto do Tribunal do Júri, haja vista que por caber aos leigos o julgamento de réus, muitos são aqueles que não conseguem separar a realidade da fantasia, ou o que ainda é pior, separar seus preconceitos, dogmas e crenças do objeto do julgamento. Mister se faz salientar também a existência de recursos amplamente utilizados pelos atuantes no Júri, entre eles promotores e advogados, com a finalidade básica de persuadir. As falácias, pode-se dizer, que são muito utilizadas e os leigos, não preparados, se vêem impedidos de questionar aspectos fundamentais. A mensagem do filme é clara e transparente ao abordar que se deve repensar a instituição, Tribunal do Júri. Se não houvesse o arquiteto protagonizado na 2a versão por Jack Lemmon e para os saudosistas por Henry Fonda na versão inicial, talvez um inocente teria sido condenado. Mas, por que sublinhar a condicional talvez? A resposta a tal indagação é simples, posto que o filme não quer reduzir a discussão ao fato de ser o réu culpado ou inocente, mas sim de que paraiva uma “dúvida cabível” e que por si só não poderia gerar uma condenação. Em face do brocardo latino “ in dubio pro reo”, havendo dúvida esta deve ser entendida a favor do Réu. A condenação requer provas robustas e cabais da culpabilidade do réu, em razão do princípio maior da presunção da inocência, qual seja, todos são inocentes até que se prove o contrário. Impende mencionar que a retórica, enquanto técnica da persuasão, esteve presente em todos os momentos do enredo, seja na acusação da promotoria, seja na defesa formulada em 123 TEMA prol do réu, pelo defensor “ad hoc”, mas e, principalmente, na sala do Conselho de Jurados. É interessante notar que no primeiro momento do filme cabe apenas ao arquiteto a reflexão e interpretação consciente de que as provas carreadas aos autos não eram suficientes para sentenciar a condenação do Réu e não existiam provas robustas que comprovavam a tese proposta pela acusação. Vencido na primeira votação na sala secreta é o arquiteto que inicia a persuasão do auditório, atentando firmemente para o fato que encontrava-se diante de um auditório heterogêneo. Após suas primeiras indagações o arquiteto “planta” na mente de seus colegas do Júri uma “dúvida cabível” sobre ter sido o réu autor ou não do assassinato de seu pai. Neste cenário, após ter sido o precursor da retórica o arquiteto consegue o que almejava fazendo com que à sua tese houvesse adesão. E é através desta adesão que alguns jurados passam também a trabalhar como argumentadores buscando outros elementos que ainda não haviam sido abordados. Pode-se concluir então que o arquiteto é colocado no filme como a força motriz inicial para os debates e daí se originam os questionamentos e a persuasão por meio da retórica. Deve-se deixar claro que nos Estados Unidos o Conselho de Sentença no Júri é formado por 12 jurados e o voto é feito de maneira aberta, o que possibilita, como se verifica no filme, a existência de cidadãos mais comprometidos e mais questionadores. Em se tratando de Brasil a realidade é absolutamente outra tendo em vista que o Conselho de Sentença é formado por 7 jurados, os quais estão advertidos que não podem debater a questão e o voto é tomado um a um de maneira secreta através de votação de vários quesitos. Se o filme for analisado de forma criteriosa perceber-seá que não se objetiva terminar com o Júri nos EUA, a crítica ali disposta é para que se reflita acerca da necessidade de questionamento dos argumentos retóricos trazidos pela acusação e pela defensoria. UNIESP 124 Entretanto, ao se pensar no Brasil deve ser deixado claro que inúmeros são os artifícios retóricos utilizados pelos profissionais que atuam no Júri, sendo absolutamente visto como um palco, onde vence aquele que melhor atuar. Neste sentido, é célebre a frase do poeta Mário Quintana: “ Tribunal do Júri: local onde os senhores jurados decidem, entre dois litigantes, qual o que tem o melhor advogado”. Resta claro que se injustiças ocorrem no voto aberto, elas são ainda maiores no escrutínio secreto, haja vista não ocorrer a conscientização e o comprometimento tão necessários à função de julgar. Finalmente, em virtude das considerações expostas este artigo não teve por objetivo esgotar o assunto, já que este é rico em detalhes, mas apenas almejou por finalidade precípua incutir na mente daqueles que o lerem, a idéia de que o Tribunal do Júri deve ser repensado de maneira geral, mas em especial no caso do Brasil em razão da votação ocorrer de forma secreta o que certamente, impossibilita o questionamento por todos aqueles que serão responsáveis por uma decisão. Não se pretende no presente ensaio opinar pela extinção do Tribunal do Júri, mas simplesmente enfatizar que a retórica, artifício utilizado tanto pela acusação como pela defesa no Júri brasileiro, não é questionada. Os interessados ditam suas verdades como absolutas e, jurados , na sua grande maioria, como leigos que são, encontram-se impedidos de discutir abertamente as provas e os fatos trazidos aos autos. Como sugestão poder-se-ia dizer que através do voto aberto, questionado, discutido e refletido por todos os jurados envolvidos não se daria azo a tantas injustiças. Não se pode dizer também que com o voto aberto a retórica, neste momento entendida em seu mau sentido, ou seja de mascarar uma verdade, deixe de existir. Como já dito seu conceito é intimamente ligado ao conceito do Tribunal do Júri e junto a ele permanecerá. 125 TEMA Mas com certeza, como no filme “Doze homens e uma sentença” a retórica bem utilizada, como forma de desnudar preconceitos e apresentar argumentos dispostos de maneira lógica fará com que uma dúvida seja apreciada, e ela por si só não levará à condenação do acusado. Por derradeiras palavras, o que se pretende num Estado Democrático de Direito é a justiça e de todas as formas ela deve ser buscada! BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Christiano José de. O problema dos métodos da interpretação Jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. BALTAZAR, Ubaldo César (coord). O poder das metáforas: Homenagem aos 35 anos de docência de Luis Alberto Warat. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. BARTHES, R. A Retórica antiga. Petrópolis: Vozes, 1975. BERLO, David. Kenneth. O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática. Tradução Jorge Arnaldo Fontes, revisão da tradução Irami B. Silva. 9a ed. São Paulo: Martins Fontes,1999. DAMIÃO, Regina Toledo; HENRIQUES, Antônio. Curso de português jurídico. 5a ed. São Paulo: Atlas, 1997. FAGUNDES, Valda Oliveira. O discurso no Júri: aspectos linguísticos e teóricos. São Paulo: Cortez, 1987. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Direito, retórica e comunicação. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1997. GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 14a ed. Rio de Janeiro: Editora Getúlio Vargas, 1988. NASCIMENTO, Edmundo Dantès. Linguagem forense. 10a ed. atual e ampl. São Paulo, Saraiva, 1997. CASTELO BRANCO,Vitorino Prata. O advogado no tribunal do júri. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1993. ____________. Lógica aplicada à Advocacia. 4a ed. São Paulo: Saraiva, 1991. CHALITA, Gabriel. A sedução no discurso. São Paulo: Max Limonad, 1998. NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. A intuição e o direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. CHALITA, Gabriel. O Poder. 2a ed. São Paulo: Saraiva, 1999. PENTEADO, José Roberto Whitaker. A técnica da comunicação humana. 4a ed. São Paulo: Pioneira, 1974. COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de lógica jurídica”. 3a ed.São Paulo: Max Limonad,1998. UNIESP .Lógica jurídica: nova retórica.Tradução Vergínia K. Pupi. São Paulo:Martins Fontes, 1996. 126 PERELMAN, Chaim. Retóricas. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira.São Paulo: Martins Fontes, 1997. _________. Tratado da Argumentação. Prefácio Fábio Ulhoa Coelho; tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PETRI, Maria José Constantino. Argumentação linguística e discurso jurídico. São Paulo: Selinunte editora, 1994. 127 POLITO, Reinaldo. Como falar corretamente e sem inibições. 52a ed. São Paulo: Saraiva, 1998. SILVA, Luciano Correia da. Manual de linguagem forense. São Paulo: Edipro,1991. XAVIER, Ronaldo Caldeira. Português no Direito. 15a ed. São Paulo: Forense, 1999. TEMA Autor e Texto Author - Text Evilásio Ferreira Filho* APONT AMENTOS ACERCA DA FIGURA APONTAMENTOS JURÍDICA DO CARGO DE CONFIANÇA NOTES ABOUT HE JURIDICAL FIGURE OF THE TRUSTWORTHY CHARGE RESUMO O cargo de confiança é aquele ocupado por empregado que possua de forma objetiva o poder de gestão na empresa, ou seja, aquele que possua o poder de mando sobre os demais empregados, isto é, a possibilidade de abonar faltas, advertir, punir, negociar com baços, admitir, demitir etc. no âmbito de suas funções. ABSTRACT The trustworthy charge is the one occupied by the employee who has in an objective way the power of management, or ever, who has the power of leadership over other employees, that is, the possibility of warrant absence, advert, punish, negotiate with moods, admit, dismiss etc. in the line of duty. PALAVRAS-CHAVE Cargo de confiança. Empregado. Possibilidade de abonar falta de empregados. Poder de mando. Poder de gestão. Direção da empresa. Poder de Contratação e demissão. KEY WORDS Trustworthy charge. Employee. Possibility of warrant absence. Leadership power. Management power. Enterprise administration. Power of contracting and dismissing. *Mestre em Direito. Professor da Fatema/Uniesp. Advogado em São Paulo. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 128-133 128 Evilásio Ferreira Filho APONT AMENTOS ACERCA DA FIGURA APONTAMENTOS JURÍDICA DO CARGO DE CONFIANÇA NOTES ABOUT HE JURIDICAL FIGURE OF THE TRUSTWORTHY CHARGE Definir é algo geralmente difícil. Por isto, tudo que vamos discorrer neste artigo, acerca do cargo de confiança, haverá de ser entendido como simples enunciado provisório, sujeito à contestação. N o mundo em que vivemos, a velocidade dos fatos acaba por alterar diversos segmentos do mercado econômico. Em épocas passadas, as sucessivas intervenções do Governo na Economia provocaram uma onda de instabilidade no país, e as empresas foram obrigadas, num primeiro momento, a diminuir o volume de seus negócios e investimentos e a cortar despesas para suportar aquele período difícil e tumultuado. Entre as despesas cortadas estão os contratos de trabalhos dos empregados, que ocupavam o cargo de confiança, junto aos seus ex-empregadores. MAS O QUE É CARGO DE CONFIANÇA? Não devemos nos iludir com a possibilidade de definir o que é cargo de confiança. Definir é algo geralmente difícil. 129 TEMA Por isto, tudo que vamos discorrer neste artigo, acerca do cargo de confiança haverá de ser entendido como simples enunciado provisório, sujeito à contestação. Para Amauri Mascaro do Nascimento o cargo de confiança1 é aquele desenvolvido pelo empregado que não está vinculado a certos direitos do trabalho e possua uma vantagem financeira diferenciada. Por outro lado, cumpre destacar que o cargo comum proveniente do contrato de trabalho é aquele exercido pelo empregado para desenvolver a atividade para qual se comprometeu realizar mediante um contrato nos termos do artigo 442 da CLT. Assevera o inciso II do artigo 62 da CLT que os gerentes2, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam os diretores e chefes de departamento ou filial estão excluídos da proteção da jornada normal de trabalho, não tendo controle da jornada de modo que deixam deter direito a horas extras. Na verdade o problema é definir no Direito do Trabalho quem seja estes gerentes, posto a variedade de interpretação dos magistrados sobre o tema. Assim, diante do caráter preventivo é importante que seja entendido como cargo de confiança aqueles empregados que tenham poderes de gestão, ou seja, o ato de gerir, o de gerência e administração, tendo mandato expresso ou tácito. O Professor Sérgio Pinto Martins3 esclarece que: “é gerente o que tem poderes de gestão, como de admitir ou dispensar funcionários, adverti-los, puni-los, suspendê-los, 1 2 3 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Iniciação ao Direito do Trabalho, p.348. OLIVEIRA. Aristeu Consolidação das Leis do Trabalho Anotadas e Legislação Complementar. p.28. MARTINS. Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. p.284. UNIESP 130 de fazer compras ou vendas em nome do empregador, sendo aquele que tem subordinados, pois não se pode falar num chefe que não tem chefiados. Para Valentin Carrion 4 o que vale é o poder de autonomia nas opções importantes a serem tomadas, poder este que o empregado substitui ao empregador. Délio Maranhão5, por seu turno, entende que a lei se refere “àqueles não que podem, mas cujo exercício, põe, necessariamente, em jogo os próprios destinos da atividade do empregador. Assim, o empregado que administra o estabelecimento ou aquele que chefia determinado setor vital para os interesses do estabelecimento. Não é possível enumerar, a priori, quais sejam esses cargos. Tudo depende da natureza da função em relação à finalidade do estabelecimento”. A matéria é extremamente controvertida, de modo que a empresa, ao conceder pelo exercício de cargo de confiança à determinada pessoa deve fazê-lo somente àquelas que têm poder de gestão, este entendido entre outras características como poder de mando aos demais funcionários; presença de subordinados; possibilidade de abonar faltas, advertir, punir empregados; poderes para representar a empresa; aprovar funcionários para contratação; negociar contratos; negociar com bancos, autonomia nas decisões dentro do âmbito de suas funções. Importante é que o empregado tenha liberdade e flexibilidade em seu horário de trabalho. Não se pode esquecer que mesmo que exerça este cargo de gestão, muito importante que tenha um salário6 superior a 40% do salário que recebia antes da promoção ou comparado 4 5 6 CARRION. Valentin. Comentários à CLT. p.320. MARANHÃO. Délio. Instituições de Direito do Trabalho. p.235. OLIVEIRA. Aristeu Consolidação das Leis do Trabalho Anotadas e Legislação Complementar , Cenofisco p.39. 131 TEMA com os demais funcionários do setor, vejamos, quanto a isto, o parágrafo único do artigo 62 da CLT: “O regime previsto neste capítulo será aplicável aos empregados mencionados no inciso II deste artigo quando o salário do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se houver, for inferior ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de 40%” Note-se a indispensabilidade dos requisitos devem estar presentes concomitantemente, ou seja, o funcionário deve efetivamente exercer cargo de gestão e receber salário diferenciado, devendo tais cargos serem exceção e não regra. O artigo 224, § 2º que trata dos bancários7, estabelece que é considerado cargo de confiança aquele que compreende cargos de direção, gerência, fiscalização ou chefias, bem como outros semelhantes. Para justiça laboral, não importa a nomenclatura utilizada pelo empregador, sendo sempre analisado os aspectos fáticos que envolveram a relação de trabalho. Assim, deverá existir prova suficiente de que o funcionário exercia cargo de função e a demonstração inequívoca do aumento salarial e da diferença entre o salário deste e dos demais. Assim, ao optar-se por conferir “cargo de confiança” a determinada pessoa a empresa deverá ter presente os requisitos do cargo (poderes de gestão – em sentido amplo), bem como diferença salarial, devendo tal fato ser documentado através de termo aditivo, termo de retificação ou alteração nos contratos de trabalho a serem celebrados. 7 OLIVEIRA. Aristeu ob.cit. , p. 81. UNIESP 132 BIBLIOGRAFIA CARRION. Valentin. Comentários à CLT. São Paulo: Atlas, 2001. MARANHÃO. Délio. Instituições de direito do trabalho. São Paulo: LTR, 2003. MARTINS. Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 14ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2004. 133 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Iniciação ao Direito do Trabalho. 31ª ed. São Paulo: LT, 2002. OLIVEIRA. Aristeu consolidação das leis do trabalho anotadas e legislação complementar. São Paulo: Cenofisco p.39. TEMA Autor e Texto Author - Text Maria Lúcia de Barros Rodrigues* DO REGIME DA PROPRIEDADE INTELECTU AL E O SISTEMA DE P ATENTES: INTELECTUAL PA AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS PROPERTY OF INTELLECTUAL REGIME AND THE PATENT SYSTEM: COMPULSORY LICENSES RESUMO O presente trabalho tem por objetivo estudar a licença compulsória na Lei nº 9.279/96 e no Decreto nº 4.830/03, em especial matéria de emergência nacional. Para alcançar os objetivos almejados, o trabalho se fundamenta em importantes posições doutrinárias acerca da propriedade intelectual, as quais caminham no sentido de se entender que se faz necessária uma reforma na regulamentação existente no ordenamento brasileiro. ABSTRACT The present work aims to study the compulsory license in Law number 9.279/ 96 and Decree number 4.830/03, especially national emergency matters. In order to achieve the desired objectives, the work is grounded in important doctrinal positions about the intellectual property, which objective to understand a necessary renewal in the existent rules in the Brazilian ordinance. PALAVRAS-CHAVE Propriedade intelectual. Licenças compulsórias. Função social da propriedade. KEY WORDS Intellectual property. Compulsory license. Property. Property social funtion. *Professora de Direito Empresarial, doutora em Direito e advogada em São Paulo. R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 134-179 134 Maria Lúcia de Barros Rodrigues DO REGIME DA PROPRIEDADE INTELECTU AL E O SISTEMA DE P ATENTES: INTELECTUAL PA AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS PROPERTY OF INTELLECTUAL REGIME AND THE PATENT SYSTEM: COMPULSORY LICENSES UM DIREITO DE PROPRIEDADE SUI GENERIS P oder-se-ia imaginar que a discussão acerca da natureza jurídica do direito sobre os bens imateriais parece sem importância ou desprovida de interesse prático para os estudiosos do Direito. Mas, na verdade, dependendo da natureza jurídica que se atribua a esse - ou qualquer outro direito - diferente será a maneira de interpretá-lo e, conseqüentemente, aplicar a própria lei. Se optarmos por uma vertente, assim será a sua aplicação e interpretação. Melhor explicando: se dermos a qualificação para os direitos sobre os bens imateriais como direitos pessoais ou reais, a interpretação e aplicação da lei seguirá o regime jurídico inerente aos direitos pessoais ou reais. Os bens imateriais - ou bens incorpóreos - não existem materialmente ou, preferindo, concretamente. Mas são economicamente valiosos, fazem parte do estabelecimento empresarial e podem ser chamados de “classe especial de ativos intangíveis”.1 1 SOUZA, Ana Cristina França. Avaliação de Propriedade intelectual e ativos intangíveis, Revista da ABPI nº 39, p. 9 a 14, p.10. 135 TEMA - “propriedade intelectual: é uma classe especial de ativos intangíveis que é única, por ter seu uso e exploração protegidos por lei. Pode ter uso interno ou ser transferida para terceiros (marcas, patentes, processos secretos, direitos autorais, software, etc.).” A divisão em direitos de natureza corpórea e incorpórea já vinha desde os Romanos, obedecendo à possibilidade ou não de serem tocados. Porém, a melhor definição não é a que relaciona a imaterialidade ao fato de se poder “tocar” ou não. Mas sim, aquela que admite sua existência em virtude da atividade intelectual e inventiva do homem, devidamente regulamentados pelas normas de direito industrial (marcas, patentes, modelos de utilidade e desenhos industriais), bem como das de direito do autor. Posto isto, surgiram várias teorias para explicar a natureza jurídica dos direitos relacionados aos bens imateriais. Se pegássemos a teoria da propriedade pura e simples (tout court), teríamos que esta procurava identificar a natureza jurídica dos direitos sobre os bens incorpóreos como de natureza real, ou seja, o verdadeiro direito de propriedade. O direito de propriedade, segundo a melhor doutrina, é exclusivo e absoluto. Para o novo texto do Código Civil - art. 1.228, caput: “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Conforme ensinamentos de Gama Cerqueira: 2 “Resumindo tudo quanto nesta parte ficou exposto, poderemos dizer que o direito do autor e de inventor é um direito privado patrimonial, de caráter real, constituindo uma propriedade móvel, em regra temporária e resolúvel, que tem por 2 Gama Cerqueira. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1, parte I, Ed. Forense, p. 148. UNIESP 136 objeto uma coisa ou bem imaterial; denomina-se, por isto, propriedade imaterial, para indicar a natureza de seu objeto”. PROPRIEDADE IMA TERIAL IMATERIAL Há várias definições de bem. A que mais se aproxima da matéria relativa à propriedade intelectual é a que afirma que bem é tudo aquilo- corpóreo ou incorpóreo- que, contribuindo direta ou indiretamente, venha propiciar ao homem o bom desempenho de suas atividades, que tenha valor econômico e que seja passível de apropriação pelo homem. O inventor, quando cria algo novo, apresenta para a sociedade o fruto de sua intelectualidade. A invenção, por isso, é um bem intangível do qual pode resultar um bem material, exemplo, um produto ou processo suscetível de ser utilizado pela indústria. A intelectualidade é a fonte indutora dos bens imateriais, sendo estes os geradores dos bens materiais. Outros exemplos: Ao transferir para a tela a genialidade da minha arte, transformei um bem intangível (minha capacidade artística), de minha propriedade, em um bem tangível — a obra de arte. O engenheiro, que tem conhecimento técnico, projeta e dimensiona a construção de um edifício — bem material. Vejamos a propriedade intelectual. A PROPRIEDADE INTELECTUAL Propriedade, lato sensu, é o poder irrestrito de uma pessoa sobre um bem. Propriedade dos bens imateriais é regida por regras específicas que constituem o direito da propriedade intelectual. Propriedade irrestrita e ilimitada não existe, porque há, inclusive, limitações constitucionais. Exemplo: a função social da propriedade. 137 TEMA Porém, propriedade intelectual pode ser conceituada como o direito de uma pessoa sobre um bem imaterial. Aqui, também existem suas limitações. O autor de uma obra literária ou artística usufrui da proteção relativa ao bem, concedida pelos direitos autorais, limitada a um certo período, que varia de acordo com o previsto na lei ou convenção adotada por cada país. O direito outorgado a um inventor, o qual garante o poder deste sobre a invenção, fica condicionado a um prazo determinado pela lei. Aí, cai em domínio público, o objeto da invenção. E esse direito é relativo, pois pode acontecer de um inventor ter proteção ao seu invento em um país e não ter em outro. Exemplo, a briga dos remédios entre EUA x Brasil. As regras da propriedade intelectual não se aplicam às coisas corpóreas. A propriedade intelectual volta-se para o estudo das concepções inerentes aos bens intangíveis que, de modo geral, podem ser divididos nas categorias: · Artísticas · Técnicas · Científicas Criações artísticas: englobam obras literárias, escritas ou orais; Obras musicais, cantadas ou instrumentadas. Obras estéticas bidimensionais (desenhos, pinturas, gravuras, litografias, fotografias, etc.). Tridimensionais (esculturas e obras de arquitetura). Criações técnicas: invenções. São as leis de patentes. Concepções científicas: são descobertas nos campos da física, química, biologia, astronomia, etc. UNIESP 138 Descoberta não é protegida porque não é a criação de algo novo. É um fenômeno natural ignorado até então. O autor só teve o mérito de antecipar sua revelação à humanidade. Ele é um descobridor, não um criador. O que faz a propriedade intelectual é ligar o autor (criador) com o bem imaterial, bem como estatuir suas regras da proteção. PROPRIEDADE INDUSTRIAL Episódio da propriedade intelectual que trata dos bens imateriais aplicáveis nas indústrias. São assuntos referentes às invenções: · Modelos de utilidade · Desenhos industriais · Marcas de produto ou serviço, de certificação ou coletivas. · Repressão às falsas indicações geográficas e demais indicações. · Repressão à concorrência desleal A propriedade industrial abrange os campos do Direito, da Técnica e da Economia. Por causa do desenvolvimento mundial das técnicas industriais e da globalização do mercado internacional, a propriedade industrial vem passando por várias alterações em sua estrutura. Por exemplo em 1994, os EUA adotaram o GATT (General Agreement for Tarifs and Trade), que promoveu mudanças importantes em sua legislação de propriedade intelectual para compatibilizar com o TRIPS e o Tratado de Livre Comércio da América do Norte - Nafta. 139 TEMA SISTEMA DE P A TENTES PA É um conjunto de regras que tratam da produção das invenções voltadas para a indústria. A patente é o direito outorgado pelo governo de uma nação a uma pessoa, o qual confere a exclusividade de exploração do objeto de uma invenção, ou de um modelo de utilidade, durante um determinado período em todo o território nacional. O sistema de patentes é justificado por quatro aspectos: direito, economia, técnica e desenvolvimento. RAZÕES DE DIREITO O inventor tem o direito natural da propriedade do bem imaterial, caracterizado na invenção. Proporciona um meio de defesa contra a apropriação indevida por terceiros. Dá a ele o privilégio da exclusividade. A patente é a defesa do inventor contra a exploração indevida, o que causa ao inventor vários prejuízos, dentre eles a perda da clientela, cujo resultado é baixar o preço de seu produto. Sim, porque a simples cópia do resultado final da invenção permite aos copiadores desonestos a venda do produto a preços e qualidade bem inferiores aos do autêntico inventor. A patente confere um monopólio temporário de exploração ao seu titular. Dá a ele a possibilidade de intervir na justiça, com objetivo de paralisar a contrafação e, eventualmente, reaver possíveis prejuízos contra terceiros que, sem consentimento, estejam explorando a invenção. RAZÕES DE ECONOMIA A invenção proporciona um benefício à sociedade, sendo justo que o inventor lucre com o seu trabalho. O privilégio da exclusividade é o modo mais apropriado de retribuição ao inventor. UNIESP 140 O grau de utilização de uma patente varia na razão direta do interesse público. Quanto maior a clientela da patente, mais lucros tem seu titular. Os lucros são estimulados pelo fato de a patente restringir somente ao seu titular a devida exploração. Induz uma escassez de uso, por isso o preço é alto. Para evitar especulações e sobre lucros dos titulares, algumas nações adotam em suas leis dispositivos como a concessão da licença obrigatória - art. 68 da Lei n.º 9.279/96(“LPI”) -para a exploração do privilégio a terceiros, quando ficar provado que o uso efetivo por parte do titular não atende à demanda do mercado. Se o abuso ou o desuso não forem sanados pela licença obrigatória, há o que se chama pedido de caducidade - art. 78, III da LPI. Porém, sem retribuição, os inventores manterão suas idéias em segredo e os empresários não se arriscarão a investir em algo novo se não houver a expectativa do lucro conseqüente à existência desse privilégio temporário que a patente possibilita. No âmbito de um país ou países que façam parte de blocos econômicos e tratados internacionais, o sistema de patentes funciona como autêntica arma de economia, pois evita que técnicas desenvolvidas por inventores nacionais sejam apropriadas por estrangeiros. RAZÕES DE TÉCNICA As patentes contribuem para o aumento de conhecimento nos mais diferentes campos da técnica. Patent Office norte- americano revela que a patente é o fator estimulante da atividade criativa das pessoas. Incentiva a demanda de soluções técnicas para as carências e os anseios da sociedade. Amplia o campo de opções. 141 TEMA Cresce o estado da técnica. Um arquivo contendo matéria de patentes é, sem dúvida, uma autêntica universidade de conhecimentos técnicos. Com a proteção da patente, o inventor revela suas idéias. Elas podem servir de origem para outras concepções e desenvolvimentos. RAZÕES DE DESENVOL VIMENTO LV O sistema de patentes é fator de desenvolvimento. Daí ser adotado em quase todas as nações do mundo, independente do seu estágio de evolução. Onde não há esse sistema, a indústria não é tão desenvolvida, porque desanima inventores e empresários. As patentes são publicadas, devendo constar a descrição das características da invenção de modo que um técnico do assunto possa realizá-la. O progresso técnico é colocado ao alcance da coletividade, proporcionando a qualquer pessoa o direito de utilizar a invenção objeto da patente, uma vez expirado o prazo de sua validade. FUNDAMENTO DO SISTEMA DE P A TENTES PA A partir do século XIX, o desenvolvimento industrial tomava proporção cada vez maior. Invenções surgiam no campo da técnica. Os sistemas de propriedade industrial se estendiam entre as nações. Mas os mecanismos de atuação eram essencialmente nacionais e variavam de país a país. Esse fato impunha aos inventores grandes dificuldades para a obtenção de patentes no estrangeiro. A noção de patenteabilidade variava de acordo com a lei de cada nação e com suas formalidades. UNIESP 142 Ao postular a patente, o inventor era obrigado a publicar as características de sua invenção - o que fazia com que a condição de novidade ficasse comprometida. Era assim: a condição de novidade no estrangeiro era absoluta porque as leis eram exemplarmente nacionalistas e não cogitavam de assegurar direitos de prioridade para inventores divulgados em outros países. Algumas nações não analisavam o mérito da invenção, concedendo as patentes e sendo elas julgadas a posteriori, judicialmente. Setores jurídicos e empresariais reclamam um sistema internacional de patentes. Discutia-se, na Europa, a adoção da uniformidade de tratamento para muitas classes de assunto. A fim de estabelecer os fundamentos de uma legislação internacional sobre as patentes, em 1880 forma-se a Conferência de Paris. Pelo projeto básico, foram elaboradas e aprovadas disposições sobre patentes e outras formas de propriedade industrial e a organização de um escritório internacional para a proteção da propriedade industrial. CUP -CONVENÇÃO DA CUP-CONVENÇÃO UNIÃO DE P ARIS PARIS A Convenção de Paris, para a Proteção da Propriedade Industrial é um acordo acessível a qualquer nação, podendo ser implementado mediante o termo de adesão de cada país à Organização Mundial da Propriedade Intelectual- OMPI. A Convenção estabelece as cláusulas para a proteção da propriedade industrial sob seus vários aspectos. Passaremos a abordar o tema das licenças compulsórias das patentes,após uma síntese elaborada sobre a propriedade intelectual e seu regime específico. 143 TEMA LICENÇAS COMPULSÓRIAS ORIGENS E TIPOS ORIGENS Para haver a exploração de uma invenção é necessária a sua patente, que é um direito de propriedade, e essa exploração deve ser feita dentro de um prazo, sob pena de ficar sujeita à concessão de uma licença compulsória. Desde legislações anteriores já havia a exigência de se explorar uma invenção patenteada. O prazo era de dois anos e se o interessado não explorasse sua invenção, perdia o direito. Havia determinações no sentido de que a exploração da invenção patenteada deveria ser feita industrialmente e mais, deveria atender às necessidades do mercado consumidor. Caso contrário, o titular perderia seus direitos ou então, em caso de produção insuficiente, os direitos seriam limitados a uma área do território. Podemos dizer que esse dispositivo foi, na verdade, o primeiro passo para privilegiar o interesse público em relação aos direitos de inventores e daqui partiu a licença compulsória. O Código da Propriedade Industrial de 1945 dispunha que a efetiva exploração tinha que ser comprovada pela prática regular da atividade daquela patente. Os Códigos posteriores, de 1967, 1969 e 1971 já dispuseram que a efetiva exploração deveria ser comprovada pela exploração contínua, em escala industrial, da invenção patenteada, fosse pelo titular ou por um licenciado. Além disso, o Código de 1967 dispunha sobre a exigência de que a exploração industrial daquela invenção fosse apropriada para atender a demanda do país. Posto isso, passaremos a abordar as modalidades de licenças compulsórias, tendo em vista a atual legislação, a Lei n. 9.279/96 (“LPI”). Tal legislação estruturou melhor o instituto das licenças compulsórias. Porém, primeiramente, cabe-nos abordar um capítulo sobre o TRIPS- “Trade Related Aspects of Intellectual Property UNIESP 144 Rights”, parte integrante do “Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio-OMC”, Anexo 1C, que trata da Propriedade Intelectual. DO ACORDO TRIPS INTRODUÇÃO Devido a uma interação entre a proteção dos direitos da propriedade intelectual e o direito internacional, ficaram os primeiros vinculados ao segundo. Desempenharam um papel fundamental para a evolução dos direitos de propriedade intelectual, tanto no âmbito interno como no âmbito internacional, a CUP - Convenção da União de Paris, de 1883, bem como a União de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas (1886). Depois da Segunda Grande Guerra, várias transformações mundiais ocorreram e refletiram em todos os âmbitos, inclusive do direito internacional que, por sua vez, refletiu no direito de propriedade intelectual. A ONU proporcionou alterações no sistema das Uniões - Paris e Berna. Suas estruturas se tornaram arcaicas e precisavam se adaptar às novas demandas. A carta das Nações Unidas teve importante papel em relação à cooperação econômica e social entre os EstadosMembros. Criaram dois órgãos: a) Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento - CNUCED/ Unctad (1964); b) Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial-ONUDI (1966); Com o aparecimento desses órgãos tornou-se necessário o aparecimento de algum outro, mais específico e apropriado para a propriedade intelectual. 145 TEMA A Convenção de Estocolmo, de 1967, criou a OMPI Organização Mundial da Propriedade Intelectual e que tem sede em Genebra. A função desse órgão é de unificar os conceitos, tornando-os “propriedade intelectual” que, por sua vez, engloba propriedade industrial e direitos de autor e conexos. Com o passar do tempo, a OMPI – cuja organização é de caráter eminentemente técnico – demonstrou uma certa deficiência, reconhecendo-a, uma vez que não há, em sua estrutura, um órgão para verificar o adimplemento, por parte dos estados, dos compromissos que assumiram em relação aos direitos de propriedade intelectual. Sabemos que a propriedade intelectual e sua proteção estão visceralmente ligados ao incremento do comércio mundial. Devido a pressões de países industrializados, especialmente dos Estados Unidos, o tema proteção à propriedade intelectual foi levado às portas do GATT. Tais negociações tiveram início em 1986 quando houve o lançamento da Rodada Uruguai. De acordo com Maristela Basso 3 : “Durante os debates, emergiram três concepções sobre propriedade intelectual: a) A primeira, defendida pelos Estados Unidos, entendia a proteção da propriedade intelectual como instrumento para favorecer a inovação, as invenções e a transferência de tecnologia, independentemente dos níveis de desenvolvimento econômico dos países. Os países desenvolvidos enfatizavam a vinculação entre propriedade intelectual e comércio internacional. 3 Basso, Maristela. O Regime Internacional de Proteção da Propriedade Intelectual da OMC/Trips. In: OMC e o Comércio Internacional, coordenação de Alberto do Amaral Jr., Aduaneiras, SP, 2002, p. 119. UNIESP 146 Durante as discussões, os países comunicaram ao GATT que a operação de suas companhias era ameaçada pela contrafação e inadequada proteção da propriedade intelectual. b) A segunda posição, defendida pelos países em desenvolvimento, destacava as profundas assimetrias Norte-Sul, no que diz respeito à capacidade de geração de tecnologia. Sem desconhecer a importância da proteção da propriedade intelectual, esses países defendiam que o objetivo primordial das negociações deveria assegurar a difusão de tecnologia, mediante mecanismos formais e informais de transferência. Os países em desenvolvimento tinham a preocupação de garantir o acesso seguro à moderna tecnologia, maior proteção dos direitos de propriedade intelectual. O dilema era como aumentar a proteção a esses direitos e garantir o acesso à moderna tecnologia. Para eles, suas necessidades de desenvolvimento econômico e social eram tão importantes (ou mais) que os direitos de propriedade intelectual. c) Por fim, tínhamos uma posição intermediária de alguns países desenvolvidos, dentre os quais o Japão e os membros da Comunidade Européia, que destacavam a necessidade de assegurar a proteção dos direitos de propriedade intelectual, evitando abusos no seu exercício ou outras práticas que constituíssem impedimento ao comércio legítimo. Isso porque os direitos exclusivos, outorgados pelos títulos de propriedade intelectual poderiam se tornar, muitas vezes, barreiras ao comércio, especialmente por seu uso abusivo. Para esses 147 TEMA países, as distorções no comércio podem surgir não apenas da “inadequada” proteção, como também de uma “excessiva” proteção.” DO TRIPS TRIPS - Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights é parte integrante do “Acordo Constitutivo da Organização Mundial do Comércio” - OMC, como ANEXO 1C. Entre nós, vigora pelo Decreto Presidencial n.º 1.355, de 30/12/94. É também conhecido como “Ata Final da Rodada Uruguai” 4 Os Estados-Membros da OMC são os destinatários do TRIPS. O TRIPS tem por objetivo: “(a) completar as deficiências do sistema de projeção da Ompi e (b) vincular, definitivamente, os direitos de propriedade intelectual ao comércio internacional e ‘reduzir as distorções e obstáculos ao comércio internacional’ levando em conta5 a necessidade de promover uma proteção eficaz e adequada dos direitos de propriedade intelectual ‘e’ a necessidade de assegurar que as medidas e procedimentos destinados a fazê-los respeitar não se tornem, por sua vez, obstáculos ao comércio legítimo” 5. O TRIPS tem disposições que constituem padrões mínimos de proteção, que devem ser observados pelas legislações internas dos Estados-Partes. Onde houver controvérsias, estas serão submetidas à OMC. 4 5 Basso, Maristela. Op. cit., p. 126. Preâmbulos do TRIPS, apud Basso, Maristela. Op. cit., p. 131. UNIESP 148 Ainda, de acordo com Basso 6: “O TRIPS e a OMPI não se excluem, mas somam forças para melhorar o disciplinamento, o reconhecimento e a proteção dos direitos de propriedade intelectual.” A partir do TRIPS, o regime internacional fundamental de proteção da propriedade intelectual tem esta configuração, que depois comentaremos. REGIME INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL Existem várias convenções: Convenção de Paris para a proteção da Propriedade Industrial de 1883, revista em Estocolmo, em 1967. Convenção de Berna para a proteção das Obras Literárias e Artísticas, de 1886, revista em 1971. Convenção de Roma para a proteção dos Artistas Intérpretes, Produtores de Fonogramas e Organizações de Radiodifusão, de 1961. Convenção de Estocolmo que cria a Organização Mundial de Propriedade Intelectual - OMPI, de 1967. Convenção de Washington sobre Propriedade Intelectual Relativa a Circuitos Integrados, de 1989. Trips - Acordo Relativo aos Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. No Brasil, o Trips tem dois tipos de efeitos: os externos e os internos. Os externos se relacionam às obrigações assumidas perante a OMC e aos seus Estados-Membros. Os internos se referem à entrada em vigor no nosso direito, bem como sua executoriedade. 6 Basso, Maristela. Op. cit., p. 150. 149 TEMA E para terminar esta parte, ainda no dizer de Basso 7: “O Trips é uma norma especial, ou seja, um acordo sobre aspectos de propriedade intelectual no campo do comércio internacional. Daí decorre a sua natureza especial, inclusive no que diz respeito aos direitos de propriedade intelectual”. Com relação ao tema em questão - licenças compulsórias - especialmente as relacionadas ao interesse público e emergência nacional, temos que a licença obrigatória de patentes é internacionalmente reconhecida como uma exceção, porém válida aos direitos que a patente confere, portanto, constante dos principais acordos internacionais, tais como a CUP - art. 5.A.2 e o TRIPS, art. 8. TIPOS A atual legislação – a Lei nº 9.279/96 – Lei da Propriedade Industrial – “LPI” – contém disposições sobre as licenças compulsórias. Denis Borges Barbosa nos explica: “Modalidades de Licença Compulsória A legislação em vigor prevê uma série de licenças coativas: - a licença por abuso de direitos; - a licença por abuso de poder econômico; - a licença de dependência; - a licença por interesse público; - a licença legal que o empregado, co-titular de patente, confere ex legis a seu empregador, conforme o artigo 91,§ 2º, do CPI/96. 7 Basso, Maristela. Op. cit., p. 160. UNIESP 150 Outra distinção absolutamente relevante é entre as licenças de interesse privado e as de interesse público; aquelas têm por pressuposto um interesse individual, subjetivado, cuja pretensão se exerce mediante requerimento ao ente público que examinará a legitimidade do requerente em face do pedido, e a satisfação das condições procedimentais e substantivas. As licenças de interesse público seguem processualistica própria e atendem a pressupostos constitucionais inteiramente diversos. Claro está que – de maior carga pública ou privada – o interesse em questão tem fundamentos no pressuposto constitucional do uso social do privilégio.” Dessa forma, parece-nos que a licença compulsória é voltada às situações extremas. Para Siemsen:8 “No âmbito internacional, a noção da falta de exploração de uma invenção patenteada foi inicialmente introduzida na Convenção de Paris, por ocasião da revisão do texto da Convenção, em Bruxelas, em 1900. A penalidade prevista foi a caducidade da patente, caso a falta de exploração não tivesse motivos justificados. Em Haia, em 1925, por ocasião de nova revisão do texto da Convenção de Paris, duas noções adicionais foram introduzidas: a primeira era a de que a falta de exploração deveria estar caracterizada como uma das formas de abuso dos direitos decorrentes da patente para que a mesma ficasse sujeita a sanções. Como outra forma de abuso, se poderia mencionar preço excessivo, que poderia ocorrer mesmo que o invento patenteado estivesse sendo explorado. 8 Siemsen, Peter Dirk, in “Painel 3”, Anais do XXI Seminário Nacional da Propriedade Intelectual, 2001, p. 56. 151 TEMA A segunda noção introduzida em Haia foi a de estabelecer que a caducidade, pena máxima, somente seria aplicável caso a concessão de um licença compulsória fosse insuficiente para prevenir o abuso. De qualquer maneira, nenhuma dessas sanções seria aplicável antes de decorridos os três anos da data da concessão da patente. No Brasil, as disposições para concessão de licenças compulsórias apareceram, pela primeira vez, no Código da Propriedade Industrial de 1945, quando as licenças eram concedidas, exclusivamente, devido à falta de exploração”. A licença compulsória tem sido uma constante nas legislações, porém aparece melhor regulamentada na atual legislação, a LPI. A título de ilustração, traremos o que nos ensina Gustavo Morais9: “Listarei a seguir algumas dentre as principais regras para licença obrigatória constantes da nossa nova legislação: Art. 68 (caput): Prevê a sanção para o detentor de patente que “exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial”, conforme autorizado no artigo 31 (k) de TRIPS. Não está, todavia, claro que o alcance e duração dessa licença “será restrito ao objetivo para o qual foi autorizado”, conforme estabelece a alínea c do mesmo artigo de TRIPS, nem que o detentor dos direitos deve ser “adequadamente remunerado”(alínea h). 9 Morais, Gustavo, in “Manutenção do Direito de Patente e Licença Obrigatória”, Anais do XVI Seminário Nacional de Propriedade Intelectual, 1996, p. 74. UNIESP 152 Essa disposição espelha o artigo 24-I(a) da Lei nº 8.884/94, que prevê a recomendação aos órgãos competentes, pelo Cade, para que seja concedida licença compulsória de patentes de titularidade do infrator da ordem econômica, sendo que os respectivos artigos 20 e 21 enumeram uma série de condutas reprimidas. O exercício prático deste dispositivo depende fundamentalmente das regras e da jurisprudência a ser estabelecida pelo Cade para julgar os abusos que podem ser cometidos através de direitos de propriedade intelectual, sendo os mais óbvios a formação de cartel, boicotes e vendas casadas. Em particular, será interessante acompanhar as diretrizes seguidas por este órgão para determinar a existência efetiva de posição dominante, já que, se o titular da patente não a ocupar, muito mais difícil falar-se em “abuso”. Naturalmente, a definição de “posição dominante” só é significante no contexto de “mercado relevante”, que deve ser determinado levando-se em consideração a possibilidade de substituição de um determinado produto por outros,10 os quais podem não ser patenteados. É sempre bom salientar, mesmo correndo o risco do óbvio, que é primordial determinar a abrangência de cada patente alegadamente envolvida em abuso através do criterioso estudo das suas reivindicações. Infelizmente, é relativamente comum determinar-se escopo de patente com base em mera leitura do relatório descritivo e observação de suas figuras. É também importante ter em mente que a propriedade de uma ou mais patentes não deveria caracterizar, necessariamente, a posição dominante, em especial em vista de sucedâneos. Esta conclusão parece ser hoje pacífica nos EUA e Europa, após décadas de debate. 10 Melville, Forms and Agreements on Intellectual Property and International Licensing, Sweet & Maxwell, Londres, 1996. 153 TEMA Finalmente, os EUA parecem ter sido os primeiros a prever licença obrigatória como forma de coibir violações das regras de concorrência. Não obstante, este recurso não vem sendo usado desde 1981, vez que parece haver uma percepção de que o licenciamento compulsório não é particularmente eficiente na restauração da competição.11 Art. 68, §1º e incisos: Licença compulsória concedida se o produto/processo objeto da patente não for fabricado/usado no Brasil, sendo admitida importação em caso de inviabilidade econômica. Comercialização que não satisfaz necessidades do mercado também enseja sanção. A inatividade do titular pode ser justificada, de acordo com o artigo 69 e incisos, por “razões legítimas”, “sérios e efetivos preparativos para a exploração” ou “obstáculo de ordem legal”, o que vai além do previsto no artigo 5(A)4 da CUP, que só prevê “razões legítimas” como justificativa. Notem-se as várias expressões (“razões legítimas”, “sérios e efetivos preparativos para a exploração”, “obstáculo de ordem legal”, “inviabilidade econômica” e “satisfação das necessidades do mercado”) cujo real significado deverá ser cifrado em futuras decisões. No caso da última, mais fácil, em tese, “satisfazer o mercado” se existirem no mercado sucedâneos para o produto/processo patenteado. Finalmente, o fato de só ser admitida importação nos “casos de inviabilidade econômica” (art. 68, inciso I) está em desacordo com o artigo 27.1 de TRIPS, que determina que “as patentes serão disponíveis e os direitos patentários serão usufruíveis sem discriminação... quanto ao fato de os bens serem importados ou produzidos localmente”. 11 Latham e Geissmar, “Should Competition Law be Used to Compel the Grant by Owners of Intellectual Property Rights of Licences in respect of their Creations?”, Revue Internationale de la Concurrence – International Reports, Salzburg, 1995. UNIESP 154 Art. 68, § 2º: Só pessoa com legítimo interesse, com capacidade técnica e econômica para exploração da patente no sentido de suprir, predominantemente, mercado interno, poderá requerer a licença. Art. 68, § 4º: Traz permissão ampla, sem qualquer limite temporal, para importação paralela por terceiros se o titular importa objeto da patente nos termos do § 1º, inciso I. Art. 70: Grande – e a meu ver perigosa – novidade em nosso sistema de patente, que autoriza a concessão de licença obrigatórias quando (i) ficar caracterizada dependência entre patentes, (ii) o objeto da patente dependente constituir substancial progresso técnico em relação ao da anterior, e (iii) forem infrutíferas as tentativas de acordo. Ora, o conceito de “substancial progresso técnico” é fugidio e altamente sujeito a debate, e não é por outra razão que tal critério, usado outrora para determinar patenteabilidade em diversos países (Alemanha, em particular), foi há muito – e em boa hora – substituído pela “nãoobviedade”, hoje internacionalmente consagrada e inserida em nosso ordenamento através do artigo 8º da nova Lei. A situação agrava-se diante do § 2º do artigo 70, que estabelece a possibilidade de uma patente de processo ser considerada dependente de uma patente de produto (e vice-versa). Assim, a patente de um fármaco revolucionário pode ter de ser licenciada para o detentor de mera patente de processo cujo “substancial processo técnico” tenha sido defendido com boa retórica. Deve-se reconhecer que TRIPS autoriza a concessão de licenças obrigatórias no caso de patentes dependentes. Entretanto, nossa nova lei diverge de TRIPS ao não estabelecer que o critério adicional de “considerável significado econômico” (art. 31-I-i) do objeto da patente dependente. Tal parâmetro também não é 155 TEMA particularmente concreto, mas sem dúvida reduz o escopo para concessão de licenças. Como comentário final, observo que a antiga lei holandesa previa um sistema peculiar de licenciamento compulsório em caso de dependência de patente, no qual inexistia sequer o critério do avanço técnico, pelo que um grande número de licenças era concedido a despeito das fortes críticas. Tudo isso caiu por terra com a adequação das regras daquele país ao TRIPS.12 Art. 71: Ao enunciar “emergência nacional ou interesse público” como fundamentos adicionais para a concessão de licenças obrigatórias, nosso legislador, de um lado, seguiu a alínea (b) do artigo 31 de TRIPS, que autoria tal medida em caso de “emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência”, até mesmo sem prévia tentativa de licenciamento, e, de outro lado, introduziu critério que se caracteriza pela indefinição e que não é previsto em TRIPS: o interesse público. Art. 72 a 74: Espelham, inter alia, algumas das restrições que devem – conforme TRIPS – caracterizar direito advindo de licença compulsória, a saber: não-exclusividade, inadmissibilidade de sublicenciamento ou cessão, esta última exceto em conjunto com a parte do empreendimento que a explore. Não obstante, nossas novas regras deixaram de incluir vários preceitos expressos nas alíneas do artigo 31 de TRIPS, entre os quais destacam-se: (alínea a) concessão de licenças com base no “mérito individual” de cada patente, (b) o requerente da licença deverá ter antes tentado “obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses 12 Hansen e Klusmann, “Compulsory Licenses in Western Europe”, Patentes & Licensing, vol. 26, nº 1. UNIESP 156 esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável” (TRIPS dispensa essa etapa nos casos de emergência e abuso), (c (g) restrição do alcance e duração da licença em função do objetivo visado (o art. 71 da nova Lei determina o caráter temporário apenas das licenças resultantes de emergência ou interesse público), e (h) remuneração “adequada”, apesar de o §6º do artigo 73 determinar que se leve em conta “o valor econômico da licença” no arbitramento da remuneração. Interessante notar que a alínea (c) do artigo 31 de TRIPS parece ter alçado a tecnologia de semicondutores à categoria distinta, já que a concessão de licença compulsória de patente nesta área só seria aceitável no caso de “uso público não-comercial” ou para remediar procedimento “anticompetitivo ou desleal”. Finalmente, deve-se observar que o artigo 31 de TRIPS estabelece que essas diversas “disposições serão respeitadas”, o que implicaria muito mais um controle dos atos das autoridades dos membros da OMC do que da linguagem utilizada nas respectivas legislações.” Ao elencarmos as licenças compulsórias na legislação atual, vimos que são elas, basicamente, as que versam sobre abuso de poder econômico, abuso de direito, licença por dependência e interesse público somado à emergência nacional. Concluímos que as licenças compulsórias já vinham tendo tratamento legal no Acordo TRIPS e foram mantidas pela nossa legislação. Sobre a licença compulsória do art. 71 da LPI vigente, o que comentaremos com mais vagar a seguir, o nosso então Ministro da Saúde, José Serra, baseou-se nessas razões legítimas, ou seja, emergência nacional e interesse público quando quis proteger os doentes de AIDS. 157 TEMA LICENÇAS COMPULSÓRIAS E VOLUNTÁRIAS Conforme dissemos anteriormente, a patente concedida é um direito de propriedade, mesmo que sui generis, mas é. Assim sendo, é passível de cessão e transferência, por ato inter vivos ou causa mortis. Tais anotações são feitas nos registros do INPI, que produzirão os efeitos em relação a terceiros, desde sua publicação. 13 As licenças, então, podem ser voluntárias ou compulsórias. As licenças voluntárias estão regulamentadas nos artigos 61 a 67 da LPI. O titular da patente poderá licenciar um terceiro a sua exploração através de um contrato, que deverá ser averbado no INPI. Tal contrato, ao ser averbado, passará a produzir efeitos perante terceiros. Ele também é um instrumento que define direitos e obrigações das partes intervenientes. A nossa legislação também prevê que o titular da patente poderá colocá-la em oferta para a exploração, através do INPI. Muito bem. Esses são os casos de licença voluntária. Mas existem os casos de licença compulsória, as quais já mencionamos. De acordo com Eduardo Grebler: 14 “A longa e minuciosa regulamentação que se encontra na LPI sobre a licença compulsória parece destinar-se a situações excepcionais. Com efeito, normas de caráter semelhante existiam no antigo Código, que chegava a contemplar a 13 Conforme Lei n.º 9.279/96 (“LPI”), artigos 58, 59 e 60 Grebler, Eduardo. A nova lei brasileira sobre a propriedade industrial, artigo publicado na Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n.º 111, Malheiros Editores, p. 107. 14 UNIESP 158 possibilidade de desapropriação do privilégio, quando considerado de interesse da segurança nacional ou quando o interesse nacional o exigisse” (CPI, arts. 33 a 39). Continuando: “Contudo, em 25 anos de vigência do Código, apenas três casos de licença obrigatória foram registrados no INPI — todos referentes à mesma patente —, a demonstrar a pouca aplicabilidade deste mecanismo, cujo maior efeito é de caráter dissuasório”. O autor aqui se refere à patente da vacina contra febre aftosa, requerida pelo Laboratório Valée. Para o Prof. Jacques Labrunie: 15 “A questão do privilégio temporário de exploração exclusiva da invenção, conferido ao inventor, pelo Estado, sempre foi objeto de discussões sobre possíveis abusos do poder econômico. Sobretudo nos países menos desenvolvidos, a questão assume grandes contornos, uma vez que a grande maioria das patentes depositadas e concedidas pertence a não-nacionais. Durante muito tempo, se defendeu que, para países como o Brasil, pertencer ao Sistema Internacional de Patentes, isto é, conceder patentes aos estrangeiros, só traria benefícios se tais invenções fossem exploradas localmente. Conseqüentemente, gerando empregos, impostos, transferência de tecnologia, utilização de matéria-prima local, poupança de divisas etc. Para se forçar o titular da patente a explorar a invenção localmente, foram criadas as sanções pelo não-uso, a saber, os institutos da caducidade por falta de exploração e da licença obrigatória”. A caducidade está prevista nos arts. 78, III, 80 e 83 da LPI e seu principal efeito é tornar a invenção de domínio público, ou seja, pode ser explorada por qualquer interessado. 15 Labrunie, Jacques. Licença Obrigatória e Caducidade de Patentes: As modificações geradas pelo texto de Estocolmo da Convenção de Paris. In: revista da ABPI, n.º 7, p. 17. 159 TEMA A diferença com a licença obrigatória é que neste caso, há a substituição do titular da patente, pela autoridade designada, com a finalidade de conceder a um terceiro a autorização de exploração da invenção. Vamos falar sobre os casos previstos na LPI sobre licença compulsória: Art. 68, § 1.º, I - estabelece que a licença obrigatória por falta de fabricação local ou falsificação local incompleta ou ainda falta de uso integral do processo patenteado, pode ser evitada no caso de inviabilidade econômica, quando será admitida importação. O § 2.º desse mesmo artigo determina que a licença obrigatória somente poderá ser requerida por pessoa com legítimo interesse e que possua capacidade técnica e econômica para realizar a exploração eficiente do objeto da patente. O licenciado obrigatório sofre uma limitação territorial, uma vez que a exploração deve se destinar predominantemente ao mercado interno. O licenciado pode exportar, mas deve satisfazer o mercado interno. O § 3.º do mencionado art. 68 estipula regras para a licença obrigatória obtida com base no abuso de poder econômico por parte do titular. Aqui, novamente a exceção permissiva da importação por tempo determinado (um ano da concessão da licença obrigatória) do objeto da patente, pelo licenciado obrigatório. O § 4.º fala da licença compulsória concedida por falta de exploração local bem como sobre a licença concedida por abuso de poder econômico, o que permite, em ambos os casos, ao licenciado e mesmo a terceiros importarem o objeto da patente, desde que sejam produtos legítimos — o que isso quer dizer — quer dizer produtos colocados no mercado pelo titular ou com seu consentimento (as tais “importações paralelas”). Sobre as licenças por abuso de poder econômico, isto funciona em duas esferas administrativas, o INPI e o CADE. Como toda e qualquer decisão administrativa, cabe recurso ao Poder Judiciário. UNIESP 160 No nosso entendimento, somente após trânsito em julgado da decisão judicial tornando definitiva a decisão do CADE é que seria possível ao INPI autorizar e conceder a licença ao requerente. E, finalmente, a licença compulsória por emergência nacional ou interesse público (art. 71 da LPI), objeto do presente trabalho, que passaremos a explicar. DA EMERGÊNCIA NACIONAL E DO INTERESSE PÚBLICO CONCEITO INDETERMINADO Primeiramente, devemos explicar o que é um conceito indeterminado ou aberto, uma vez que “emergência nacional” e “interesse público” são assim denominados. De acordo com Engish: 16 “Por conceito indeterminado entendemos um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos. Os conceitos absolutamente determinados são muito raros no Direito. Em todo o caso devemos considerar como tais os conceitos numéricos (especialmente em combinação com os conceitos de medida e os valores monetários: 50 km, prazo de 24 horas, 100 marcos). Os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados, pelo menos em parte. É o que pode afirmar-se, por exemplo, a respeito daqueles conceitos naturalísticos que são recebidos pelo Direito, como os de “escuridão”, “sossego noturno”, “ruído”, “perigo”, “coisa”. E com mais razão se pode dizer o mesmo dos conceitos propriamente jurídicos, como os de 16 Engish, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 6ª ed., p. 208 e seguintes. 161 TEMA “assassinato”, (“homicídio qualificado”), “crime”, “ato administrativo”, “negócio jurídico”, etc. O autor, mais adiante, menciona o “poder discricionário”, que aborda a “administração”. E explica que o nosso poder discricionário apenas aparece como “discricionaridade da estatuição” ou também como “discricionaridade na hipótese legal”. A título de ilustração, transcreveremos um trecho muito interessante: 17 “Conceitos discricionários como, ‘interesse público’ ou a ‘equidade’ podem de igual forma ser olhados como pressupostos da estatuição (logo como elemento da hipótese) ou como elementos determinantes da própria estatuição. Freqüentemente é apenas de uma questão de técnica legislativa que depende acharem-se os conceitos discricionários integrados na “hipótese” ou na “estatuição”, que se formule: ‘quando se esteja perante um interesse público, então...”, ou ‘o interesse público pode ser satisfeito, procedendo...”. Assim, podemos concluir que existe discricionaridade em nossa ordem jurídica, ainda que se fale em um Estado de Direito. O que vai se passar, nesse caso, é um sentido de valoração, uma vez que — como conceitos indeterminados — algo ou alguém, no caso a administração pública, determinará o que é emergência nacional, bem como interesse público. E fica a critério da hermenêutica jurídica onde e com que alcance tal discricionaridade existe. Partindo do pressuposto que interpretar (processo hermenêutico) quer dizer encontrar a significação de algo, caímos em três questões fundamentais, a saber: 17 Engish, Karl. Op. cit., p. 227. UNIESP 162 a) o que é que se interpreta; b) interpretando-se algo, o que vale e o que não vale; c) qual é o valor alcançado ao se descobrir ou ao se criar uma significação. E como se dá essa interpretação, digamos, como resolver o dilema? Temos vários tipos, tais como interpretação gramatical, interpretação sistemática (dentro do sistema normativo), interpretação valorativa ou axiológica e, finalmente, interpretação histórica... Difícil de responder. O fato é que o que se busca é uma verdade hermenêutica. O que prevalece? A vontade da lei ou a vontade do legislador? A interpretação gramatical ou léxica consiste na definição do significado dos termos usados pelo legislador, comparandose os contextos lingüísticos nos quais os termos são aplicados. A interpretação teleológica é aquela que busca a ratio legis,, ou seja, a finalidade ou motivos que levaram à criação da lei. A interpretação sistemática pressupõe o dogma da racionalidade do legislador, portanto, de que existe uma vontade unitária e coerente na elaboração da lei, inserindo-se esta no contexto geral do sistema jurídico. Neste caso o intérprete elimina as antinomias e integra as eventuais lacunas. A interpretação histórica utiliza documentos históricos,tais como estudos e trabalhos preparatórios para a elaboração das leis.18 Entretanto, a discricionaridade não implica que a administração pública seja ilimitada em suas determinações. Sempre existe a possibilidade de revisão pelo Poder Judiciário, que também fará seu processo hermenêutico, porém colocando um ponto final à discussão. Vamos apenas interpretar o que diz o art. 71 da LPI, bem como o Decreto n.º 4.830/03, que dá nova redação ao Decreto 18 Norberto Bobbio. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo, Ícone, 1995, p. 214. 163 TEMA n.º 3.201/99, que dispõe sobre a concessão, de ofício, de licença compulsória nos casos de emergência nacional e interesse público. ASPECTOS CONSTITUCIONAIS DO DECRETO 3.201/99, AL TERADO PEL O DECRETO 4.830/03. ALTERADO PELO PEQUENA INTRODUÇÃO Como é sabido, o art. 71 da LPI trata das licenças compulsórias por emergência nacional e interesse público, tendo sido regulamentado pelo Decreto n.º 3.201/99, o qual foi alterado pelo decreto n.º 4.830/03, posteriormente. A patente, assim, é um direito limitado por sua função: existe enquanto socialmente útil. O uso da exclusiva, de forma abusiva, é contradireito. A nossa Constituição traz dois aspectos que limitam o uso da patente: a) o privilégio – aliás, uma restrição excepcional à liberdade de concorrência – não pode ser abusado; b) mesmo que sua utilização esteja de acordo com a sua função social, ainda assim estará sujeito às limitações impostas pelo interesse coletivo . Analisaremos este último aspecto. DA CONSTITUCIONALIDADE DO DECRETO 3.201/99, AL TERADO PEL O DECRETO 4.830/03. ALTERADO PELO Toda propriedade, incluindo-se aqui a propriedade intelectual, ainda que sui generis, conforme já mencionado, goza de duas garantias: UNIESP 164 a) a de conservação, isto é, o dono somente perde se o interesse coletivo o exigir (necessidade pública, utilidade pública e interesse social). b) a de compensação, ou seja, a justa indenização do expropriado. Manoel Gonçalves Ferreira Filho 19 menciona a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: Art. 17: “sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode dela ser privado a não ser quando a necessidade pública legalmente verificada o exige de modo evidente e sob condição de uma justa e prévia indenização”. Prevista na nossa Constituição, no art. 5.º, XXIV, a figura em lei e mediante justa e prévia indenização em dinheiro. Como direito de propriedade que é, o direito do inventor se sujeita a essas mesmas regras. Por força da função social constitucional, aí se encontra o fundamento da desapropriação por interesse público. De acordo com Barbosa20, há dois tipos de licença compulsória: “Outra distinção absolutamente relevante é entre as licenças de interesse privado e as de interesse público; aquelas têm por pressuposto um interesse individual, subjetivado, cuja pretensão se exerce mediante requerimento ao ente público que examinará a legitimidade do requerente em face do pedido, e a satisfação das condições procedimentais e substantivas. As licenças de interesse público seguem processualística própria e atendem a pressupostos constitucionais inteiramente diversos”. 19 Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. A propriedade intelectual e o Desenvolvimento Tecnológico sob o prisma da Constituição Brasileira. Anais, 2002, ABPI, p. 25 e seguintes. 20 Barbosa, Denis Borges. A nova regulamentação da licença compulsória por interesse público. ABPI, n.º 67, p. 11. 165 TEMA A licença de interesse público se distingue das demais, uma vez que o interesse a prevalecer não é o do licenciado, mas o próprio nome diz, o interesse público. O Acordo Trips,já explicado anteriormente, prevê a licença por interesse público, em seu art. 31, especialmente por aplicação do art. 8.º. Em novembro de 2001, o Conselho Ministerial da OMC reuniu-se na cidade de Doha e os países emitiram uma declaração denominada Trips e a Saúde Pública. Barbosa21 nos explica: “Seguindo a explicação oficial da OMC, nesta declaração os ministros enfatizam que é importante executar e interpretar o Acordo Trips de maneira que dê apoio aos objetivos da saúde pública, promovendo acesso aos medicamentos novos. O enunciado afirma que o Acordo Trips não deve impedir que os governos nacionais ajam para proteger a saúde pública, pois que têm eles o direito de usar as flexibilidades do acordo”. Após tais declarações, fica esclarecido que os instrumentos da licença compulsória são absolutamente lícitos no contexto do Acordo Trips. Da mesma forma as importações paralelas: todo paísmembro poderá exportar produtos farmacêuticos sob licença compulsória. Todos os países-membros da OMC são elegíveis como importadores, mas desde que declarem que não podem fabricar o bem licenciado compulsoriamente. Esse mecanismo somente poderá ser utilizado em boafé, ou seja, para a saúde pública. O mecanismo da licença por interesse público já é admitido em outros países, como para o direito francês. O direto italiano também acolhe o instituto. 21 Barbosa, Denis Borges. Op. cit., p. 13. UNIESP 166 O nosso direito passou a admitir o instituto a partir de 1996, com a edição da já mencionada LPI, em seu artigo 71. NA TUREZA JURÍDICA DA LICENÇA NATUREZA COMPULSÓRIA DO ART ART.. 71 DA LPI. É necessária uma justificação da limitação da propriedade pelo interesse do Estado. Se, por um lado, existe a proteção constitucional da propriedade , por outro existe a prevalência de uma necessidade ou utilidade pública sobre o interesse privado. Não é o mesmo mecanismo da licença por abuso de poder econômico, ou daquelas por falta de uso. Aqui, trata-se de necessidade ou utilidade pública sobre o interesse privado. A regra constitucional, mais uma vez, é a do uso social da propriedade, previsto no art. 5.º, XXIX da Carta de 1988, que dispõe que a patente deve ser usada “tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país”. Podemos interpretar o artigo mencionado tanto para as correções de abuso, quanto para as situações de interesse social sobre o particular. Ainda Barbosa 22: “O exercício do domínio iminente do estado se faz em direito através da desapropriação ou da requisição. No caso brasileiro, entendemos que a licença compulsória pertinente é o caso específico de requisição”. CF/88, Art. 5.º, XXV: “No caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. 22 Barbosa, Denis Borges. Op. cit., p. 17. 167 TEMA Pontes de Miranda,23 em antigo estudo sobre o assunto em questão, destaca que a requisição é um instituto parecido com a desapropriação. Diz-se estado policial de necessidade. A propriedade do bem não é retirada do dono, portanto não há desapropriação. É o que passaremos a discutir a seguir: os aspectos inconstitucionais do Decreto 3.201/99, com alterações do Decreto 4.830/03. ASPECTOS INCONSTITUCIONAIS DO DECRETO 3.201/ 99, COM AL TERAÇÕES DO DECRETO 4.830/03. ALTERAÇÕES Vamos tomar alguns detalhes conceituais primeiramente, para podermos alcançar o nosso objetivo. Emergência nacional implica um agravado estado de interesse público ou coletivo, cujo atendimento das demandas é urgente. Iminente perigo público é próprio das requisições e não se identifica com o critério de emergência nacional ou interesse público, conforme nos ensina Barbosa24. A emergência é nacional, não local; O interesse pode ser difuso, coletivo ou público. Se for interesse público, pode ser em qualquer âmbito, não necessariamente federal. O interesse público pode justificar uma desapropriação de patente. O ponto a ser enfocado, assim, é no tocante à prévia indenização decorrente das desapropriações, mas dispensável nas requisições. Parece, entretanto, que se houver pagamento de “royalties” na mesma proporção do uso da patente, fica caracterizada uma forma de indenização. O domínio iminente justifica-se pelas noções de utilidade pública, onde encontramos o interesse público. 23 24 Miranda, Pontes de apud Denis Barbosa. Op. cit., p. 17. Barbosa, Denis Borges. Op. cit., p. 18. UNIESP 168 Assim dispõe o Decreto-Lei n.º 3.365/41, em seu art. 5.º: “Art. 5.º Consideram-se casos de utilidade pública: a) a segurança nacional; b) a defesa do Estado; c) o socorro público em caso de calamidade; d) a salubridade pública; e) a criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência; f) o aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, das águas e da energia hidráulica; g) a assistência pública, as obras de higiene e decoração, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais; h) a exploração ou a conservação dos serviços públicos; i) a abertura, conservação e melhoramento de vias ou logradouros públicos; a execução de planos de urbanização; o loteamento de terrenos edificados ou não para sua melhor utilização econômica, higiênica ou estética; a construção ou ampliação de distritos industriais; j) o funcionamento dos meios de transporte coletivo; k) a preservação e conservação dos monumentos históricos e artísticos, isolados ou integrados em 169 TEMA conjuntos urbanos e rurais, bem como as medidas necessárias a manter-lhes e realçar-lhes os aspectos mais valiosos ou característicos e, ainda, a proteção de paisagens e locais particularmente dotados pela natureza; l) a preservação e a conservação adequada de arquivos, documentos e outros bens móveis de valor histórico ou artístico; m) a construção de edifícios públicos, monumentos comemorativos e cemitérios; n) a criação de estádios, aeródromos ou campos de pouso para aeronaves; o) a reedição ou divulgação de obra ou invento de natureza científica, artística ou literária; p) os demais casos previstos por leis especiais.” A necessidade pública ou utilidade pública deverá ser declarada em ato do Poder Executivo Federal. Como é um conceito jurídico indeterminado, conforme já abordado, é mediante um decreto do Presidente da República, Governador ou Prefeito, que se chega à declaração. O art. 71 da LPI menciona a necessidade de uma publicação de interesse público ou emergência nacional em ato do Poder Executivo. O questionamento sobre a competência especificada, na lei, de alguma autoridade leva a uma eventual dúvida sobre a constitucionalidade da concessão de uma licença. Embora a Lei 9.279/96 determine a competência exclusiva da União para o procedimento declaratório, outras esferas do executivo também podem ser titulares de algum interesse público que demande um atendimento. UNIESP 170 A Administração Pública, todavia, não se manifestará nesse sentido – licença compulsória – se o titular da patente, bem como o licenciado, estiverem em condições de atender à demanda ensejada pela emergência ou interesse público. Para a defesa do interessado, a própria Constituição criou o mecanismo: “due process of law”, art. 5.º, LIV. Emergência nacional, entretanto, prejudica uma defesa prévia do titular. Podemos estar, novamente, diante de uma inconstitucionalidade? Bem, fora esse detalhe, a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei n.º 9.784/99) deverá ser aplicada: “Art. 2.º A Administração Pública obedecerá, entre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: (...) VIII - observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados.” A licença do art. 71 da LPI, assim, não se deve a um requerimento de algum interessado, mas, ao contrário, ela é concedida de ofício. Na verdade, sua razão de ser é para evitar preços excessivos por causa de um aumento de demanda. Um exemplo, uma epidemia que necessita de vacinas. O titular da patente não a licencia a terceiros e também não supre o mercado, aumentando o preço do medicamento. Surge, então, o motivo para a licença em questão. Podem ocorrer duas situações: a) ou a licença se destina à produção para o mercado; b) ou a licença se destina para compras governamentais. 171 TEMA Na hipótese “a”, a Administração apenas criou uma oportunidade de mercado. Já na hipótese “b”, a licença é subsidiária a uma demanda do Estado. A oferta de licença deve ser feita de forma impessoal e através de publicidade. Deve, portanto, constar de edital publicado a todos os interessados. Vejamos o que dispõe o art. 37 da nossa CF/88: “A Administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)”. Se for um caso específico de demanda do estado, além do acima transcrito (caput do art. 37 da CF/88), aplica-se o inciso XXI do mesmo artigo, especialmente no que diz respeito ao processo de licitação pública. A não ser no caso de emergência nacional, conforme o disposto na Lei n.º 8.666/93: Assim conceitua a Lei 8.666/93 para dispensabilidade de licitação: “IV- nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser concluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e ininterruptos, contados da emergência ou calamidade, vedada a prorrogação dos respectivos contratos”. Vejamos, a seguir, o procedimento da licença compulsória por interesse público. Distinguem-se claramente seis fases no procedimento da licença compulsória por interesse público: UNIESP 172 “- a determinação da necessidade ou emergência e da impossibilidade ou recusa do seu atendimento pelo titular da patente; - da declaração do interesse público ou da emergência; - da oferta pública ou licitação para a licença; - da outorga da licença; - da fixação ou arbitramento do valor do royalty na forma dos §§3.º e 4.º do artigo 73 da lei 9.279/96; - do registro da licença compulsória.” As duas primeiras situações estão dispostas na já referida lei n.º 9.784/99, sendo que a declaração de interesse público ou emergência seguirá o rito processual das declarações de necessidade ou utilidade pública para desapropriação; A oferta de licença segue as regras da Lei n.º 8.666/93; Finalmente, as duas últimas situações acima expostas são regulamentadas pelo disposto na Lei n.º 9.279/96, art. 73. Fator determinante para a promoção de oferta ou a contratação com a Administração Pública é o valor dos royalties. Assim... Ainda que se entenda a licença compulsória como instituto de requisição – e não de desapropriação – deve haver indenização, sob pena de inviabilizar os paradigmas da propriedade privada. Como igualmente cabe ao Poder Público avaliar, no caso concreto, a necessidade de fazer prevalecer o interesse social ao interesse privado. DA OUTORGA DA LICENÇA DO P APEL DO INPI PAPEL Não é da competência exclusiva do INPI para a concessão da licença ex-officio do artigo 71 da LPI. A Lei 9.279/96 não restringiu ao INPI essa função. Como a licença compulsória em questão tem natureza de requisição 173 TEMA administrativa, quem deve apurar a necessidade pública ou emergência é a autoridade à qual esteja vinculado o atendimento à necessidade pública referente. Se for um caso de saúde, a pasta é o Ministério da Saúde. E ainda, a necessidade ou emergência deveria ser declarada por um decreto da Presidência da República, porém essa função é do Ministério da área em questão. Quando declarada a existência do interesse público ou da emergência em relação a uma patente específica, a oferta ou determinação de licenciamento caberia ao órgão ou entidade incumbida de promover o procedimento de licitação. O INPI executa a decisão administrativa, de acordo com os §§ 3.º e 4.º do art. 73 da LPI, bem como o registro da licença compulsória. Existe remuneração ao instituto da requisição, de natureza indenizatória, não remuneratória. Então, a indenização será o valor econômico da patente, cujo cálculo será sobre o preço efetivamente praticado pelo licenciado compulsório – não sobre o que pratica o titular ou seu licenciado voluntário. A licença será temporária, pois visa atender à emergência ou ao interesse público temporário. Se tornar permanente, então há que se falar em desapropriação, pois muda a titularidade da patente em questão. Passa do particular para o âmbito público, então houve desapropriação, nesse caso. DAS MODIFICAÇÕES TRAZIDAS PEL O PELO DECRETO N.º 4.830/03 A primeira modificação relevante trazida pelo novo Decreto foi em relação ao uso “não comercial” desse tipo de licença, que o Decreto anterior dispunha. Havia nisso uma ilegalidade. Assim, o Decreto n.º 4.830/03, combinado com o art. 31 do Acordo Trips da OMC elucida essa questão, ou seja, quando UNIESP 174 existir emergência nacional ou outros casos de também emergência, o uso público pode ser comercial. O decreto delega ao ministro de Estado pertinente – através de portaria – a atribuição de declarar a emergência nacional ou o interesse público. Outra alteração é em relação ao art. 5.º, III do Decreto 3.201/99, em atendimento ao art. 24 da Lei nº 9.279/96, uma vez que o relatório da patente tem que expor a maneira de execução prática da solução técnica reivindicada. Uma alteração igualmente importante foi em relação à permissão ao licenciado de adquirir, no mercado externo, de qualquer fonte que o possibilite suprir a demanda do mercado. Finalmente, ao INPI caberá anotação das licenças – as quais – atendidas a emergência nacional ou interesse público, a autoridade competente deverá extinguir. A TU ALIDADES SOBRE O TEMA TUALIDADES CONCLUSÃO São seguramente, dois assuntos complexos: saúde e mercado. Saúde e propriedade são direitos igualmente garantidos pela nossa constituição. Saúde está no capítulo dos direitos sociais e no da ordem social. Já o direito à propriedade encontra-se no capítulo que regula os direitos individuais e coletivos e na ordem econômica. Saúde e propriedade se tocam quando falamos sobre medicamentos (políticas de preço, distribuição etc.) e suas patentes de invenção. Não há, no nosso ordenamento jurídico, nenhuma legislação específica sobre medicamentos. Logo, o que se aplica são as normas da Lei 9.279/96, a já mencionada LPI. Vimos que saúde é um direito difuso; medicamentos estão diretamente ligados à manutenção da saúde da população, uma vez que fazem parte da política sanitária do Estado. 175 TEMA É um ponto de vista defensável que os fármacos estão no patamar de coisa pública. Por esta razão é que o Estado se faz tão presente. Para Campilongo 25: “A Constituição brasileira de 1988 ratificou essa incumbência social do Estado ao estabelecer o direito à saúde como um dos seus princípios fundamentais. No seu art. 1º, III, a Carta Magna afirma que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do estado Democrático do Direito. E, no inciso IV do art. 3º, ressalta que a promoção do bem de todos é um dos objetivos da República do Brasil. Já no título VIII, Da Ordem Social, o direito à saúde é tratado mais especificamente, trazendo diretrizes, normas políticas essenciais à área da saúde”. Especificam melhor a questão os artigos 196 e 197 da nossa Constituição. Por sua vez, “a propriedade é elemento essencial da estrutura econômica de qualquer Estado”.26 Mas tem que passar pelo aspecto da função social da propriedade, pois não há como tratar da propriedade sem que ela se obrigue. Mas não há autorização constitucional para suprimi-la, apenas para socializá-la, por assim dizer. É um “meio de consecução da vontade pública”.27 Passemos às patentes: forma de propriedade, inclusive um monopólio legal. Existem diplomas constitucionais que incentivam a atividade científica, ex. art. 218 § 1.º; 218 § 3.º; 218 § 4 e 218 § 5. 25 Campilongo, Celso Fernandes. In: Política de patentes e o direito da concorrência, artigo componente de Política de patentes em saúde humana, Ed. Atlas S/A., SP, 2001, p. 156. 26 Campilongo. Op. cit., p. 157. 27 Idem. UNIESP 176 Proteger as patentes é trazer desenvolvimento, em última análise. E, com o intuito de não causar distorções ou, por outro lado, minimizá-los, é que foi criado o mecanismo de licenças compulsórias. Quem decide é a esfera administrativa, ou seja, o CADE e o INPI, mas sendo cabível tanto o recurso administrativo quanto o judicial de suas decisões. Os Estados Unidos não são simpáticos à proteção da produção nacional e alegam que, se todos os países membros da OMC quiserem manter seu programa de produção local acaba a globalização comercial. Depois, os EUA foram questionar a licença compulsória junto a OMC porque consideram que a nossa legislação não está de acordo com o Trips. Ainda não temos notícia de licenciamento compulsório no caso de patentes da indústria farmacêutica, mas é certo que é um setor de extrema importância por ser de relevância pública. Finalmente o que se tem hoje é um programa brasileiro de combate à Aids, com destaque internacional. O Brasil contribui com países africanos de língua portuguesa através da transferência gratuita de tecnologia para que se fabrique o coquetel anti-aids. A finalidade é garantir o acesso da população a tais medicamentos, uma vez que são de custo elevado. Se fizermos um paralelo entre o moderno Direito de Autor praticado por uma entidade sem fins lucrativos chamada “Creative Commons”, chegaremos a algumas possibilidades. Analisando o contexto de sua criação, o Creative Commons teve por objetivo coibir as práticas de violações de Direitos Autorais que a Internet facilita. Mas sem com isso proibir a pesquisa e uso de obras cujo acesso é aberto pela Internet. Assim, um professor da Universidade de Stanford, Lawrence Lessig criou o Creative Commons. Os titulares de direitos autorais disponibilizam suas obras aos interessados sem com isso perderem sua titularidade. Ao titular cabem os direitos autorais e a escolha sobre o que se pode ou não permitir aos licenciados fazer ou não fazer. Por exemplo, existem amplas 177 TEMA licenças que permitem qualquer tipo de uso, inclusive cópia, outras limitam ou mesmo proíbem cópias da obra. Se estendermos o raciocínio às patentes, veremos que se for criado um mecanismo semelhante, pelo menos no que diz respeito às patentes de medicamentos, não haverá necessidade de licenças compulsórias. O próprio titular da patente já determina o tipo de uso que pode ter sua invenção. Assim, a propriedade estará cumprindo sua função social. Para pensarmos. BIBLIOGRAFIA BARBOSA, Denis Borges. Licenças compulsórias: abuso, emergência nacional e interesse público. Rio de Janeiro, Revista ABPI, n.45, mar./abr., 2000. CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política de Patentes e o Direito da Concorrência. In Política de Patentes em Saúde Humana. São Paulo: Atlas, 2001. ____________. A Propriedade Intelectual e o desenvolvimento tecnológico sob o prisma da Constituição Brasileira. In XXII Seminário Nacional da Propriedade Intelectual. A inserção da Propriedade Intelectual no mundo econômico, Anais 2002, Publicação da ABPI. CERQUEIRA, Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense. __________. Importação, trabalho obrigatório, caducidade e licença compulsória. Rio de Janeiro, Revista ABPI, n.2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A Propriedade Intelectual e o desenvolvimento tecnológico sob o prima da Constituição Brasileira. In XXII Seminário Nacional da Propriedade Intelectual. A inserção da Propriedade Intelectual no mundo econômico, Anais 2002, Publicação da ABPI BASSO, Maristela. O regime internacional da proteção da propriedade intelectual da OMC/Trips OMC e o Comércio Internacional Cordenador: Alberto do Amaral Júnior. Aduaneiras, 2002 BOBBIO, Norberto O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. UNIESP ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 6ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. GREBLER, Eduardo. A nova lei brasileira sobre a propriedade industrial, artigo publicado na Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n.º 111. São Paulo: Malheiros Editores, p. 107. 178 LABRUNIE, Jacques. Licença obrigatória e caducidade de patentes: as modificações geradas pelo texto de Estocolmo da Convenção de Paris.Rio de Janeiro, Revista ABPI, n.07, 1993. MORAIS, Gustavo. In Manutenção do Direito de Patente e Licença Obrigatória, Anais do XVI Seminário Nacional de Propriedade Intelectual, 1996. 179 SIEMSEN, Peter Dirk. Painel 3. In Anais do XXI Seminário Nacional da Propriedade Intelectual, 2001. SOUZA, Ana Cristina França. Avaliação de Propriedade intelectual e ativos intangíveis. Rio de Janeiro, Revista da ABPI nº 39. TEMA Autor e Texto Author - Text Lúcia P. S. Villas Bôas* APONT AMENTOS SOBRE O PESQUISAR E O CONHECER APONTAMENTOS A P ARTIR DE UMA ABORDAGEM FUNDADA NA TEORIA PARTIR DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN NOTES ABOUT RESEARCH AND KNOWLEDGE FROM A BOARDING BASED ON NICKLAS LUHMANN’S SYSTEMS RESUMO Este texto objetiva oferecer alguns apontamentos para a relação entre conhecimento e pesquisa a partir de alguns aspectos da teoria sistêmica elaborada pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann. ABSTRACT This text aims to offer some notes for a relation between knowledge and research starting from some aspects of the systemic theory worked out by Niklas Luhmann, a German sociologist. PALAVRAS-CHAVE Niklas Luhmann. Teoria dos sistemas. Pesquisa. Conhecimento. Epistemologia. KEY WORDS Niklas Luhmann. Systems theory. Research. Knowledge. Epistemology.. * Mestre e Doutoranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação da Pontifícia da Universidade Católica de São Paulo e professora do curso de Direito das Faculdades Integradas Teresa Martin (FATEMA) e da Faculdade de Direito Carlos Drummond de Andrade. Ex-professora do curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). R.TEMA S.Paulo UNIESP nº 49 jan./jun. 2007 P. 180-192 180 Lúcia P. S. Villas Bôas APONT AMENTOS SOBRE O PESQUISAR E O APONTAMENTOS CONHECER A P ARTIR DE UMA ABORDAGEM FUNDADA PARTIR NA TEORIA DOS SISTEMAS DE NIKLAS LUHMANN 1 NOTES ABOUT RESEARCH AND KNOWLEDGE FROM A BOARDING BASED ON NICKLAS LUHMANN’S SYSTEMS “L ewis Carroll era professor de matemática na Universidade de Oxford quando escreveu o seguinte em Alice no país das maravilhas: ‘- Gato Chesire... quer fazer o favor de me dizer qual é o caminho que eu devo tomar? - Isso depende muito do lugar para onde você quer ir – disse o Gato. - Não me interessa muito para onde... – disse Alice. - Não tem importância então o caminho que você quer tomar – disse o Gato. - ... contanto que eu chegue a algum lugar – acrescentou Alice como uma explicação. - Ah, disso pode ter certeza – disse o Gato – desde que caminhe bastante’. A resposta do Gato tem sido freqüentemente citada para exprimir a opinião de que os cientistas não sabem para onde o 1 As idéias contidas neste artigo foram amplamente discutidas com Orlando Villas Bôas Filho, ao qual, desde já, agradeço a colaboração. 181 TEMA conhecimento está levando a humanidade e, além disso, não se importam muito. Diz-se que a ciência não pode oferecer objetivos sociais porque os seus valores são intelectuais e não éticos. Uma vez que os objetivos sociais tenham sido escolhidos por meio de critérios não científicos, a ciência pode determinar a melhor maneira de prosseguir. Mas é provável que a ciência possa contribuir para formular valores e, assim, estabelecer objetivos, tornando o homem mais consciente das conseqüências de seus atos. A necessidade de conhecimento das conseqüências, no ato de tomar decisões, está implícita na observação do Gato de que Alice chegaria certamente a algum lugar se caminhasse o bastante. Desde que esse algum lugar poderia revelar-se bem indesejável, é melhor fazer escolhas conscientes do lugar para onde se quer ir”2 (grifos do autor). O texto acima, apesar de evidenciar uma preocupação com os “fins da ciência”, permite pensar que, similar ao acontecido com Alice, vários são os caminhos para o conhecimento; caminhos estes que podem ir desde o dogmatismo, configurando-se como “seguros” e “desejáveis”, na medida em que se apresentam como uma via de mão única, sem bifurcações; até os que enfatizam o dissenso, configurando-se como polêmicos porque tentam modificar o estabelecido, o status quo. Partindo-se do pressuposto de que caminhos diferentes levam, por vezes, a distintas construções de conhecimento, podese afirmar então que, nesse sentido, muitas são as relações que podem ser estabelecidas entre pesquisar e conhecer. É isso que Arruda leva em conta ao afirmar que pesquisar é perigoso, parodiando Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa que por sentir-se atormentado por seu amor por Diadorim, pergunta-se o tempo todo se o mal está dentro ou fora de cada um, concluindo que viver é muito perigoso. Segundo esta 2 DUBOS, René. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1972, p. 165. UNIESP 182 pesquisadora, “também a pesquisa se perguntou por muito tempo como isolar os sentimentos, as crenças e tentou neutralizá-los. Pesquisar também é muito perigoso, o que ditou à pesquisa normas e dogmas para não arriscar-se (sic), para não escapar aos eixos do aceitável, garantindo a neutralidade.”3 Optar por Niklas Luhmann como eixo condutor na elaboração destes apontamentos também envolve riscos: sua teoria é altamente abstrata, eminentemente teórica, possui compromissos interdisciplinares e, ao final, não oferece nenhuma “solução” que possa ser reputada definitiva. É por isso mesmo que se acredita que alguns aspectos da teoria sistêmica proposta por esse autor permitem indicar diretrizes para a investigação da relação entre pensar, pesquisar e conhecer. Diretrizes estas que estão na contramão do “dogma” na medida em que, para Luhmann, o conhecimento só é possível como construção refutando, nesse sentido, a existência de um dogmatismo de grupos que se enclausuram a partir de um posicionamento inquestionável. Some-se a tal preocupação o próprio compromisso que a teoria de Luhmann tem com a generalidade, o que faz com que seus delineamentos não se restrinjam apenas ao âmbito da sociologia, mas possibilitem múltiplas leituras que extrapolam as fronteiras de uma teoria da sociedade. E é justamente uma dessas leituras que se pretende percorrer, como a um caminho mesmo, para refletir sobre as relações entre o pensar e o pesquisar. NOT AS SOBRE A CIÊNCIA E O CONHECIMENTO NA NOTAS PERSPECTIVA DE NIKLAS LUHMANN Toda a obra de Luhmann visa elaborar uma teoria geral da sociedade de caráter eminentemente descritivo por meio 3 ARRUDA, Ângela. As representações sociais: desafios de pesquisa. Revista de Ciências Humanas. Especial temática, 2002. p. 09. 183 TEMA do questionamento de categorias analíticas tradicionais para a sociologia clássica, tais como, sujeito, razão, ação, conhecimento, entre outros, que, segundo esse autor, seriam inadequados para a descrição da sociedade contemporânea.4 Como decorrência dessa inadequação, Luhmann se vê obrigado a buscar novos instrumentos conceituais para elaborar uma nova teoria da sociedade. Para tanto, tem, como suporte metodológico, a teoria da comunicação, dos sistemas, da organização, do direito, da evolução, cibernética, etc. o que torna sua obra extremamente interdisciplinar5. Assim, ao dispor desse novo instrumental teórico, Luhmann adverte que o objeto central de sua análise é a complexidade, tomada como excesso de possibilidades, como presença de múltiplas alternativas, em que reina a relação frente a todo e qualquer determinismo mecânico. A teoria luhmanniana, portanto, visa reduzir a complexidade, a fim de que esta se faça transparente, embora saiba que não pode eliminá-la. É nesse contexto que Luhmann concebe a sociedade como um sistema auto-referencial que cria suas próprias condições de existência e suas próprias condições de mudança. Um sistema que se diferencia a si mesmo – em um processo auto-criador – para abordar novos espaços de possibilidade que se oferecem ante ele. Com a evolução da sociedade, esta passa por uma progressiva diferenciação em distintos sistemas funcionais (direito, economia, educação, política, religião etc.) em que a ciência pode ser analisada como um deles, pois, como afirma Luhmann: “La forma de diferenciación de la sociedad moderna posibilita y aun obliga a la autonomía a 4 Cf. LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad . México: Universidad Iberoamericana, 1996. (Autores, textos y temas – Ciencias sociales, 10). 5 Para maiores informações sobre os âmbitos teóricos utilizados por Luhmann, sobretudo para a construção do seu conceito de complexidade, ver, por exemplo: IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo. Barcelona: Anthropos, 1990. p. 58 e ss. UNIESP 184 los diferentes campos funcionales, lo que se logra por medio del proceso de diferenciación de los correspondientes sistemas autopoiéticos y clausurados operativamente. Con ello, la diferenciácion impone a los sistemas rendimientos de reflexión que conciernen a su propria unidad y a su carácter insustituible, pero que tienen en cuenta también el hecho de que en el mundo existen otros sistemas funcionales del mismo tipo. Los conocimientos y precisamente los conocimientos exigentes y avanzados, son entonces solo una posibilidad social entre otras. Si éstos se pueden utilizar en la economia, si han de ser aprovechados en la política, si son apropriados para fines educativos, se decide en outra parte. Por cierto, habíamos llegado a la conclusión de que la comunicación verbal presupone ya conocimiento y que la sociedad, sin conocimientos, no puede comunicarse, es decir, no puede existir. Sin embargo, precisamente para los conocimientos de rendimiento máximo de la ciencia moderna, esto no es válido. La sociedad depende de estos conocimientos solo en un sentido muy específico, pero no para la autopoiesis de la comunicación sin más y más. De una manera singular, los conocimientos científicos deben defenderse y, a la vez, retirarse: siempre deben aportar nuevos rendimientos y renunciar, al mismo tiempo, a definir el mundo para la sociedad.”6 (grifos apostos). Essa idéia de que a ciência não deve definir o mundo para a sociedade é derivada do fato de que, para Luhmann, a ciência, tal como o conhecimento, não é descoberta, mas sim construção7. Nesse sentido, não existe diferença entre sujeito 6 7 LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad. p. 494-495. Cf. LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad . p. 501. Para Luhmann, a ciência provoca “la disolución de identidades encontradas en lo real en relaciones, y establece continuamente nuevas combinaciones con esas relaciones”. LUHMANN, Niklas. apud IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo. p. 305 (grifos do autor). 185 TEMA e objeto e, a ciência, então, não pode mais ser concebida como representação do mundo tal como ele é, na medida em que o conhecimento não está baseado em uma correspondência com a realidade externa, mas sim sobre as construções de um observador8 e, conseqüentemente, ela deve, por isso mesmo, “renunciar a su pretensión de poder instruir os otros sobre el mundo”, na medida em que ela apenas “produce una exploración de posibles construcciones que se pueden introducir en el mundo, y producen el efecto de la forma, es decir, producen uma diferencia.”9 Ou seja, a ciência é sempre produção e, como tal, não pode ser a ela reputada pretensões de caráter normativo10. Para Luhmann, a ciência, como um sistema autoreferencial e autopoiético, opera com um código binário de comunicação que é a questão do verdadeiro ou não verdadeiro. Nesse sentido, é possível afirmar que: “[...] la verdad científica no debe ser entendida como adaptación lograda a los objetos o como descubrimiento de la realidad. Los dos valores del código de la verdad, verdadero y no verdadero, no tienen ninguna correspondência con el ambiente externo: al contrario de cuanto sostiene la lógica clásica con ascendência aristotélica, la verdad no es una propriedad de los objetos y el error no es un privilegio de la consciência.”11. (grifos apostos). 8 Segundo Corsi, Esposito e Baraldi, na teoria de Luhmann, “la realidad es simplemente la que es, actual y positiva; pero el conocimiento que se basa en observaciones está forzado a captarla bajo la forma de distinciones, a las cuales, en la realidad no corresponde nada. El observador conoce entonces unicamente sus propias categorias e no datos primitivos” CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann. México: Universidad Iberoamericana, 1996. p. 51. 9 LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad. p. 501. 10 Um exemplo disso é a pretensão normativa de utilização da ciência para fins emancipatórios, rejeitada por Luhmann. Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006. p. 250. 11 CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann, p. 160. UNIESP 186 A existência, portanto, dessa autopoiesis no sistema ciência, traz algumas conseqüências para o conhecimento científico e para tudo o mais o que se produza por meio do código binário verdadeiro/não verdadeiro, na medida em que este pressupõe uma descontinuidade entre o sistema que conhece e a realidade externa a esse sistema (entorno), isso porque, o conhecimento se produz a partir das operações do próprio sistema. Nesse sentido, Luhmann afirmará que: “la verdad científica, por lo tanto, cierta-miente no se puede fundar sobre un concepto ontológico de objetividad, pero al mismo tiempo no puede tampoco renunciar a la pretensión de indicar la realidad. El valor positivo, verdadero, indica simplemente el hecho de que la comunicación puede conectarse inmediatamiente a um determinado enunciado y que precisamente esta posibilidad de conexión vuelve contingente a ese enunciado: se puede afirmar la misma cosa de una manera distinta, se podrían encontrar conexiones novas, y esto precisamente porque atrás del enunciado no se encuentra un pedazo de realidad, sino siempre e únicamiente otro conocimiento. El valor negativo, por su parte, marca un punto en el que las expectativas del sistema no se han realizado, en donde la realidad se ha manifestado bajo la forma de sorpresa, de condición insostenible de una cierta posición, de coacción a la reacción. El experimiento desempena entre otras cosas precisamiente esta función: conduce la comunicación ante la alternativa entre verdadero y no verdadero y expone la comunicación científica a la posssibilidad de la decepción.”12 (grifos apostos). Contudo, visando reduzir a complexidade do mundo e, nesse sentido, estabilizar expectativas cognitivas, as descrições produzidas pelo sistema da ciência não podem ser desmentidas pelo seu entorno. Assim, para que o conhecimento sirva de índice que permita guiar a ação em meio à contingência do 12 Idem, ibidem. p. 160-161. 187 TEMA mundo, é preciso que as expectativas que se baseiam em suas descrições não sejam frustradas por aquilo que ocorre no entorno. Quando há a frustração de uma expectativa de ordem cognitiva, ocorre a adaptação da mesma à realidade. Trata-se do contrário do que ocorre com as expectativas normativas13 que se estabilizam de forma contrafática, ou seja, se mantêm mesmo diante da desilusão. Essa distinção é importante porque, muitas vezes, algumas posturas dogmáticas podem transformar expectativas cognitivas em algo próximo às expectativas normativas, ou seja, não aceitam o descompasso das mesmas em relação à realidade e as mantém a despeito disso. Assim, uma teoria (e poder-se-ia acrescentar a pesquisa que nela se baseia), mais do que construir unidades, deve permitir o estabelecimento de diferenças e a criação de novas diferenças, processando-as de um modo dinâmico de modo a evitar uma “tranqüilidade epistêmica”. Sendo assim, a pesquisa não deve resolver problemas no sentido afirmativo de ação, ela deve gerar novos a partir dos problemas já resolvidos. É justamente essa busca constante de problemas que explica uma das maiores dificuldades intrínseca a toda obra luhmanniana que é a questão do diálogo com diferentes áreas do conhecimento, tais como, lingüística, biologia, matemática etc, mas que cumpre a exigência da elaboração de um aporte teórico complexo para descrever uma sociedade que também é complexa. Contudo, há que se cuidar para que a interdisciplinaridade não signifique anacronismo, ou seja, é preciso não usar uma proposição que o conjunto da obra de um determinado autor não autoriza. Todo esse diálogo e esforço teórico têm sentido para a proposição de uma teoria que, segundo Luhmann, não deve gerar déficits teóricos. Luhmann aponta alguns aspectos que, então, devem ser observados para a construção de uma teoria, 13 Como exemplos de expectativas normativas, podem-se citar as expectativas morais e jurídicas. Cf. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann . p. 181-184. UNIESP 188 aspectos estes que, ainda que esquematicamente, indicam (por que não?), elementos a serem levados em conta nas pesquisas a serem realizadas para que as mesmas não se baseiem em teorias que apresentem déficits teóricos em relação à complexidade de seu entorno. Sendo assim, segundo Luhamnn, uma “teoria adequada” é aquela que: a) possui generalidade e abstração de modo que os delineamentos teóricos não fiquem restritos a âmbitos particulares na medida em que estes podem ser aplicados a diferentes domínios. Segundo Izuzquiza, “tal exigência de generalidad convierte a la teoria en un verdadero artificio de generación de problemas que deben ser recogidos en su raíz general por la teoría. Más aún, uma teoria será tan eficaz como elevada sea su potencia para generar problemas nuevos”14; b) apresente, nesse sentido, dinamismo; c) tenha uma estruturação teórica segundo a lógica da diferença, superando posturas que se baseiam na univocidade; d) unida à observação, abandone as pretensões normativas; e) dê conta da complexidade de seu objeto e, nesse sentido, deve ser suficientemente complexa em si mesma. Assim, a teoria deve ser um instrumento de redução da complexidade, lembrando que a complexidade é o referente necessário de toda teoria com a qual se pretende observar a realidade. Para reduzir a complexidade, a teoria também precisa ser ela mesma complexa; 14 IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo. p. 13. 189 TEMA f) é reflexiva e auto-referente, uma vez que, sendo autoreferente, a teoria pode descrever-se a si mesma e gerar operações próprias de extremada complexidade. A auto-referência constitui o grau máximo de maturidade de uma teoria, ainda que demande uma lógica nova para ser entendida. O pesquisar e o conhecer, a partir desta perspectiva, implica ainda em não operar com a premissa “verdade” no sentido de dogma, isso porque o conhecimento é historicamente construído, portanto sempre provisório na medida em que se atrela a um determinado contexto, ou seja, se “por um lado, ‘todas as informações aparecem contextualizadas’, mas (sic) por outro lado, oferecem a possibilidade de um modo diferente de olhar. Nada mais é estabelecido por si mesmo. Tudo parece estar à mercê da comparação com outras possibilidades. Essa tendência leva à conclusão de que cada pessoa tem que se conscientizar da responsabilidade que tem para consigo e, assim, procurar ‘encontrar possibilidades de se orientar em si própria sob essas condições.”15 15 LUHMANN, Niklas. apud MARKET, Werner. Novos paradigmas do conhecimento e modernos conceitos de produção: implicações para uma didática orientada no sujeito e na ação. Disponível em: <www.educacaoonline.pro.br/ novos_paradigmas_do_conhecimento.asp?f_id_artigo=221>. Acesso em: 15 de junho de 2004. Um dos exemplos mais interessantes sobre as lacunas da nossa lógica ou sobre os aspectos contextuais das relações pode ser encontrado em um conto de Borges. Citando Foucault: “uma certa enciclopédia chinesa onde está escrito que ‘os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino e de pêlo de camelo, l) et etcetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas’. No deslumbramento dessa taxonomia, o que de súbito atingimos, o que, graças ao apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento, é o limite do nosso: a impossibilidade patente de pensar isso” FOUCAULT, Michel. Prefácio. In: _____ . As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p. 5. UNIESP 190 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os aspectos expostos acima que, segundo Luhmann, são indicadores de uma teoria sem déficit teórico são articulados pela questão da complexidade. Questão esta que traz implicações diretas para o fazer pesquisa. Assim, ao elaborar uma pesquisa, deve-se procurar manter o objeto de estudo e, portanto, o recorte efetuado, articulado à complexidade das relações, rejeitando que a hipostasia deste signifique uma simplificação ou mesmo perda das próprias relações desse objeto. Assim, se a ciência é um sistema que reduz a complexidade do mundo atual, tornando esta transparente de modo dinâmico e particular16, a pesquisa deve estar então estruturada em uma lógica de relações e no contínuo esforço de pensar, de modo reflexivo, a sua própria racionalidade, ainda que isso signifique expor o conhecimento científico à possibilidade de decepção.17 Acredita-se que o caminho traçado na elaboração destas considerações, é menos uma leitura teórica sobre a abordagem luhmanniana em sua relação com o pesquisar e o conhecer, e mais uma indicação de aspectos importantes a serem considerados quando da construção de conhecimento a partir de uma perspectiva crítica e problematizadora que, segundo Luhmann, é que deve pautar a ciência e, consequentemente, a produção da pesquisa. 16 Izuzquiza pontua que a redução de complexidade pela ciência leva à produção de um mundo semelhante a um cristal “que, donde se hace más compacto, se refleja en sí mismo y traspasa a otro la transparencia.” IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo. p. 305. 17 Cf. CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann . p. 160-161. 191 TEMA BIBLIOGRAFIA ARRUDA, Ângela. As representações sociais: desafios de pesquisa. Revista de Ciências Humanas. Especial temática, 2002. p.09-23. CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena; BARALDI, Cláudio. Glosario sobre la teoria social de Niklas Luhmann. México: Universidad Iberoamericana, 1996. (Autores, textos y temas. Ciencias Sociales, 9). DUBOS, René. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1972. FOUCAULT, Michel. Prefácio. In: _____ . As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p.5-14. IZUZQUIZA, Ignacio. La sociedad sin hombres: Niklas Luhmann o la teoría como escándalo. Barcelona: Anthropos, 1990. (Pensamiento crítico / pensamiento utópico, 55). LOURO, Guacira Lopes. Conhecer, pesquisar, escrever... Disponível em: < w w w. u f r g s . b r / f a c e d / g e e r g e / anpedinha_gua.htm>. Acesso em: 15 de junho de 2004. LUHMANN, Niklas. La ciencia de la sociedad. México: Universidad Iberoamericana, 1996. (Autores, textos y temas –Ciencias sociales, 10). MARKET, Werner. Novos paradigmas do conhecimento e modernos conceitos de produção: implicações para uma didática orientada no sujeito e na ação. Disponível em: <www.educacaoonline. pro.br/novos_paradigmas_do_conheci mento.asp?f_id_artigo=221>. Acesso em: 15 de junho de 2004. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. O direito na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Max Limonad, 2006. _________ . Introducción. In: LUHMANN, Niklas. Sociedad y sistema: la ambición de la teoria. 1ª reimpr. Barcelona: Paidós, 1997. (Pensamiento Contemporâneo, 8). UNIESP 192