Carolinas ou Aurélias?* Um panorama sobre a história das mulheres

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Carolinas ou Aurélias?* Um panorama sobre a história das mulheres
Carolinas ou Aurélias?*
Um panorama sobre a história das mulheres
Ludmila Giovanna Ribeiro de Mello**
Resumo
Este artigo busca apresentar uma breve história das mulheres ocidentais, focalizando também
um panorama no Brasil. Como eram vistas, controladas, quais seus direitos e, principalmente,
seus deveres em um mundo dominado pela voz patriarcal e de que maneira a visão sobre a
mulher foi mudando ao longo dos séculos. Este texto trata também da relação entre a história
e o surgimento da mulher como escritora no Brasil. A história das mulheres em nosso país é
importante para compreendermos o surgimento da voz feminina e, por consequência, da literatura como repercussão dessa voz.
Palavras-chave: História das mulheres. A mulher no Brasil. Literatura de mulheres.
Introdução
As mulheres compartilham uma história, imposta pela sociedade patriarcal dominadora, repleta de repressão, preconceito e reclusão com a qual,
muitas vezes, Þzeram questão de compactuar, pois
a própria mulher reconhece que o universo em seu conjunto
é masculino; os homens modelaram-no, dirigiram-no e ainda
hoje o dominam; ela não se considera responsável; está entendido que é inferior, dependente; não aprendeu as lições
da violência, nunca emergiu, como um sujeito, em face dos
outros membros da coletividade; fechada em sua carne, em
sua casa, aprende-se como passiva em face desses deuses de
Þgura humana que deÞnem Þns e valores. (BEAUVOIR, 1980,
p. 364)
Muitas aceitavam as imposições no campo político-econômico, outras
também no campo cultural e doméstico. Entretanto, algumas lutaram e reivindicaram seus direitos; às vezes, não de forma direta e coletiva, mas posi*
**
Carolina refere-se à protagonista do livro A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, escritor do Romantismo brasileiro, que concentra em sua personagem todas as características
esperadas da mulher: submissa, “dona do lar”, ligada ao casamento e à maternidade. Já
Aurélia é a personagem central do livro Senhora, de José de Alencar, que, embora também
seja escritor romântico, foge aos estereótipos quando concebe Aurélia como decidida, questionadora, “senhora” de si mesma.
Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. (E-mail:
[email protected]).
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cionando-se contras decisões de seus maridos e/ou pais. Além disso, há aquelas que buscaram na escrita e nas produções artísticas voz para suas causas.
A história que cabe à mulher das Américas, por exemplo, não se
inicia com a colonização ou após isso; ela vem de raízes mais profundas e
como resultado de outras civilizações, tais como as tidas como clássicas.
Quando observamos o papel da mulher nas polis gregas, ele é divergente, mostrando o quanto a importância da mulher varia de acordo com
a necessidade masculina. Em Esparta, por exemplo, “as mulheres só casavam caso se ajustassem perfeitamente com o companheiro. Gozavam de
muita liberdade; em geral, possuíam riquezas, recebidas em herança ou conseguidas no comércio, atividade proibida aos homens” (ARRUDA, 1994, p.
42). Essas atividades só lhes eram permitidas porque cabia ao homem o papel de guerreiro e defensor da sociedade. As demais atividades eram tidas
como frívolas e, por essa razão, podiam ser feitas somente pelas mulheres.
Histórias semelhantes não são encontradas na Idade Média, nas “civilizações” europeias, nas quais a mulher é mantida em casa como um bem
do qual se pode desfazer a qualquer momento, sem voz ou direitos. Reßexos dessa sociedade aparecem na América, fruto do sistema colonial.
Conhecer a história das mulheres é importante para podermos entender o seu surgimento como escritoras e, por consequência, a literatura
produzida por elas.
1 Margarida Porete1: a sociedade medieval
O período conhecido como Idade Média é marcado pelo feudalismo,
um sistema socioeconômico baseado na relação servo versus senhor. O senhor possuía a terra; o poder político, militar e jurídico; e seus servos. Estes
tinham a posse útil da terra, da qual podiam usufruir, e contavam com a
proteção de seu senhor sob o peso de impostos e inúmeras regras. A Igreja
possuía terras; portanto, poder. Ela monopolizava a interpretação dos textos
sagrados e impunha à sociedade feudal as normas divinas, sob a lei do céu.
Na sociedade feudal, há ao menos duas concepções sobre a mulher
– ela é algo temido e ao mesmo tempo venerável –; aÞnal, a Bíblia proporciona duas visões sobre ela: a da perdição, representada por Eva, e a da
santidade, a exemplo de Maria.
Durante toda a “era da escuridão”, a Igreja, que dominava e deÞnia
ações e pensamentos, pregava que a mulher era imperfeita por ter-se derivado de uma costela defeituosa de Adão, e, por essa razão, devia ao homem
obediência e submissão. As comunidades eclesiásticas usavam de todo seu
poder para “adestrar a sexualidade feminina, aÞnal o homem era superior,
e, portanto, cabia a ele exercer a autoridade” (ARAÚJO, 2000, p. 45-46.).
1
Mulher que foi excomungada e sentenciada à morte na fogueira, em 1310, em Paris, por escrever um livro de teologia mística (Mirouer des simples âmes).
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A Igreja usou e, em muitos casos, ainda usa, as palavras da Bíblia,
lembrando-nos de que são palavras de Deus – por isso, indiscutíveis –,
para justiÞcar a subserviência e a inferioridade feminina, tais como, por
exemplo, os trechos que seguem, retirados do Novo Testamento:
O homem não deve cobrir a cabeça, porque é a imagem e a
glória de Deus; mas a mulher é a glória do homem. Pois o
homem não foi tirado da mulher, mas a mulher foi tirada
do homem. E o homem não foi criado para a mulher, mas
a mulher foi criada para o homem. (BÍBLIA, 1 Coríntios, 11,
7-9)
Que as mulheres Þquem caladas nas assembléias, como se
faz em todas as igrejas dos cristãos, pois não lhes é permitido
tomar a palavra. Devem Þcar submissas, como diz também a
Lei. Se desejam instruir-se sobre algum ponto, perguntem aos
maridos em casa; não é conveniente que a mulher fale nas
assembléias. (BÍBLIA, 1 Coríntios, 14, 34-35)
Mulheres, sejam submissas a seus maridos, pois assim convém a mulheres cristãs. (BÍBLIA, Colossenses, 3, 18)
Durante a instrução, a mulher deve Þcar em silêncio, com
toda a submissão. Eu não permito que a mulher ensine ou
domine o homem. Portanto, que ela conserve o silêncio.
Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E não foi
Adão que foi seduzido, mas a mulher que, seduzida, pecou.
Entretanto, ela será salva pela sua maternidade, desde que
permaneça com modéstia na fé, no amor e na santidade.
(BÍBLIA, 1 Timóteo, 2, 11-15)
Baseando-se em passagens como essas e recorrendo ainda a outras
do Antigo Testamento, a Igreja Católica discutiu, durante o Concílio de Mâcon, no ano de 585, se as mulheres possuiriam alma. As atas de tal Concílio,
que constam de vinte leis, informam que, por uma pequena maioria, os bispos presentes concluíram que sim, o que mostra o quanto a aceitação da
mulher como um ser igual ao homem foi marcada por um longo e difícil trajeto,
sendo que, em muitos lugares, ainda hoje, essa igualdade é questionada.
A atuação da mulher na sociedade medieval era extremamente limitada. Elas estavam subordinadas à Igreja, aos pais, aos irmãos e ao marido.
Sendo nobres, eram reclusas desde muito cedo em conventos, nos quais deveriam aprender a ler e a escrever, assim como instruir-se na submissão a
Deus e aos homens. (BAUER, 2001, p. 34). Antes dos quatorze anos, casavam-se e, diferentemente do que podem fazer-nos acreditar as cantigas trovadorescas, quase nunca por amor, e sim por arranjos familiares feitos quando
ainda eram meninas.
Os conventos cumpriam um importante papel para as famílias nobres durante a Idade Média, pois permitiam àquelas com várias Þlhas situá-las social e culturalmente, como pode-se constatar nos dizeres que seguem:
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Dois lugares foram propícios à escrita: os conventos e os salões, o claustro e a conversação. Na Idade Média, os conventos favoreceram a leitura e mesmo a escrita das mulheres, a
tal ponto que, ao Þnal do século XIII, as mulheres da nobreza pareciam culturalmente superiores aos homens que se
dedicavam a guerrear, como nas cruzadas ou em outras circunstâncias. Cultas e desejosas de amar de uma outra maneira: daí surge talvez o amor cortês. As religiosas copiavam os
manuscritos e se apropriavam do latim proibido. (PERROT,
2007, p. 32)
No entanto, a mulher-serva e a camponesa representavam a maior
parte das mulheres no feudalismo. Elas trabalhavam nas terras para ajudar
no próprio sustento e no de seus familiares, além de garantir, é claro, os
trabalhos domésticos (BAUER, 2001, p. 39).
Independentemente da classe social, o destino da mulher medieval
deveria ser o matrimônio, cerimônia sacramentada pela Igreja. A mulher
tinha por obrigação ser submissa ao marido e por direito ser “suportada”
por ele, pois o casamento era então considerado indissolúvel perante Deus.
O comportamento da mulher era vigiado de perto pelos clérigos e
demais homens da sociedade, e muitas delas eram acusadas de heresia e
bruxaria ao menor sinal de subversão:
As bruxas eram acusadas de pactuar com o demônio, fazer
longas viagens pelo ar sobre cabos de vassoura, participar
de assembléias ilegais aos sábados (os sabás), cultuar o
diabo, beijar o rabo do diabo, copular com íncubos (demônios masculinos) e com súcubos (demônios femininos) e de
canibalismo, além de causar tragédias, como tempestades,
secas, destruição de colheitas, redução de homens à impotência e de mulheres à esterilidade, roubo e devoração de
criancinhas; eram acusadas até mesmo de causar problemas
cotidianos, como dores de cabeça, telhados quebrados e assim por diante. (BASSANEZI, 1986, p. 83).
O medo do desconhecido, do incontrolável, buscou na Þgura do demônio e de seus seguidores (magos e bruxas) explicações para problemas
políticos, sociais e naturais da época. As mulheres, menos privilegiadas
socialmente, foram acusadas do “mal”, e muitas delas foram levadas à fogueira. Segundo Bassanezi (1986, p. 83), chegaram ao número de 900 em
dez anos, apenas em Lorena; e, na Alemanha, oito fogueiras coletivas foram
feitas em nove meses, por exemplo.
Com a crise feudal e o Þm da Idade Média, um novo horizonte se
abriu também à mulher, mas não menos marcado pela diferença, pela reclusão e pela obediência aos homens.
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2 Joana D’Arc2: a Idade Moderna
Com o Þm do Feudalismo, no século XIV, a Europa voltou a reagrupar-se em cidades, desenvolvidas pelo comércio. Os castelos e palácios
foram tomados pelos povoados e por uma nova ordem social com a qual
surgiu a burguesia mercantil, mas que continuava centrada nas mãos de
reis. O Velho Mundo abalou-se com a “descoberta” da América e, junto
com ela, os costumes e as riquezas que alterariam o poder na Europa.
A Idade Moderna foi marcada por novos e velhos valores que tentaram conciliar-se nas sociedades. O “humanismo renascentista caracterizou-se pelo racionalismo, pelo equilíbrio e pela busca da clareza na apresentação dos seus principais postulados, que buscavam constituir uma nova
visão de mundo” (BAUER, 2001, p. 49).
Para a mulher, a Idade Moderna continuaria sendo, no entanto, uma
época de reclusão. A participação feminina nos ofícios urbanos continuou
restrita ao trabalho familiar, centrado nas pequenas oÞcinas domésticas.
Embora, no século XIV, países como França e Inglaterra tenham proibido o trabalho feminino como “desonesto e infamante”, durante os séculos
XVII e XVIII, a expansão econômica na Europa permitiu à mulher trabalhar
na indústria fabril, uma vez que o trabalho doméstico não tinha condições
de competir com as fábricas (BAUER, 2001, p. 52-53).
Outros dois ofícios bastante ligados à mulher de então eram o de
ama de leite e o de parteira, tendo, no entanto, esse último que competir, no
século XVIII, com os cirurgiões (BAUER, 2001, p. 56). Contudo, o papel da
mulher como esposa e mãe ainda era exigido.
Após a consolidação do capitalismo mercantil e, junto com ele, da
burguesia, a mulher assumiu grandes responsabilidades na sociedade moderna, mas somente no que diz respeito ao lar, ao marido e aos Þlhos, sendo ela considerada responsável pela felicidade familiar.
O processo de colonização, que durou do século XVI ao XVIII, no
Brasil, estava ligado ao mercantilismo, à expansão marítima europeia e ao
fortalecimento das monarquias absolutistas. Depois da Índia e das diÞculdades encontradas pelos portugueses para lá estarem, decidiram por colonizar efetivamente o Brasil. Aqui depararam-se com uma civilização desconhecida e “exótica”.
As diferenças entre os brancos europeus e os índios eram muito
grandes: nas maneiras de vestir, de encarar o trabalho, de alimentar-se, de
ver o mundo e, consequentemente, na maneira de ver e tratar a mulher.
2
Chefe de guerra de dez mil homens, responsável pela coroação de Carlos VII. Em seguida,
ela foi encarcerada, acusada de magia e heresia, e foi queimada viva em praça pública da
cidade de Ruão, em 1431.
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As colônias que surgiram ao longo do século XVI tentaram repetir
as ações de suas metrópoles, tidas como corretas e justas. Nas colônias portuguesas, como o Brasil, a história não foi diferente, mas os colonizadores
se confrontaram, no início, com comunidades que mudaram de alguma forma a visão da mulher.
Nas primeiras décadas de colonização do Brasil, muitos pesquisadores e viajantes arrolaram testemunhos sobre as civilizações conhecidas
como selvagens, nas quais as mulheres eram as Þguras centrais, como se lê
neste relato: “os ‘índios-fêmea’ montavam tendas públicas para servirem
como prostitutas. Algumas índias cometiam desvios contra a ordem natural
e furtavam-se de contatos carnais com os homens, vivendo um estreito voto
de castidade” (RAMINELLI, 2000, p. 26-27).
Mas eram os rituais antropofágicos os que mais prendiam a atenção
das sociedades modernas; é sobre esse tema que apareceram gravuras e
narrativas. Enquanto cabia ao índio a execução e o fracionamento do corpo,
a “vingança feminina estava expressa na alegria, no prazer e no escárnio”.
Por essa razão, não era raro associar à índia a trilogia “prazer, canibalismo
e mulher” (BEAUVOIR, 1980, p. 33-34).
No entanto, estava nas colonas centrado o maior medo ou controle,
pois cabia a elas criar uma sociedade tal como a portuguesa. Assim, a Igreja
e a sociedade colonizadoras, detentoras das decisões e dos poderes, impuseram ao país uma sociedade patriarcal e repressora.
A ideia que se formou e se difundiu das mulheres nesse território,
ainda primitivo em questões sociais e preconceituoso, era de que elas eram
possuidoras de características divergentes que deveriam ser observadas e
guiadas de perto, pois “num cenário em que doença e culpa se misturavam,
o corpo feminino era visto, tanto por pregadores da Igreja católica quanto
por médicos, como um palco nebuloso no qual Deus e Diabo digladiavam”
(Del Priore, 2000, p. 78).
Porém, as Revoluções Francesa e Industrial, que viriam com o Þm do
século XVIII, na Europa, trariam perspectivas para uma nova era.
3 Olympe de Gouges3: a mulher nos séculos XVIII e XIX
No Þnal do século XVIII, uma revolução transformaria a organização
social e econômica da Europa e, por consequência, das Américas: a Revolução Industrial. No campo ideológico, as transformações mais importantes
viriam com intensidade após a Revolução Francesa, de 1789, marcada pelo
caráter liberal e democrático (ARRUDA, 1994, p. 186).
3
Autora francesa do livro Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, escrito em 1791, no
qual reivindicava direitos iguais para homens e mulheres, mas, por suas reivindicações, foi
levada à guilhotina em 1793.
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A partir de então, as mulheres passaram a reivindicar direitos sociais
e políticos, tais como o direito ao voto, à educação e ao divórcio. Após 1848,
o feminismo, aliado ao movimento socialista, buscava também melhores
condições de trabalho e salários. As mulheres não participaram em grande
número da Revolução Industrial; no entanto, no início do século XIX, a
presença delas nas indústrias cresceu, mas sempre em condições precárias e
recebendo salários inferiores aos dos homens (BAUER, 2001, p. 64).
Além das fábricas têxteis, outros setores também passaram a absorver a mão de obra feminina. É o caso das fábricas de calçado, da indústria
de papel e de fabricação de ladrilhos e telhas, assim como as minas de carvão. Contudo, foi a prestação de serviços domésticos que mais cresceu durante o século XIX, devido ao fortalecimento da burguesia, que buscava,
através desse diferencial, mostrar distinção.
Apesar dos notáveis avanços no mundo do trabalho para as mulheres, o casamento continuou a ser o destino “natural” reservado a elas, principalmente para as jovens de classe média. Cuidar dos Þlhos e do marido,
além de cumprir as obrigações domésticas, era a ocupação mais louvável
para uma jovem burguesa. Dessa forma, a mulher tornava-se totalmente subordinada ao homem.
Por outro lado, com o aumento da população urbana, consequência
da industrialização, os grandes centros urbanos apresentaram aumento da
prostituição feminina, uma vez que o ganho com esse tipo de trabalho era superior ao oferecido pelas fábricas às operárias, por exemplo, além do fato da
existência de períodos de sazonalidade nas indústrias (BAUER, 2001, p. 74).
Durante os séculos XVIII e XIX, entre as mulheres mais instruídas,
as proÞssões de dama de companhia e de professora foram ocupações concorridas. A educação pública e a alta burguesia permitiram à mulher ver,
no ensino, uma proÞssão. O ensino não foi só mais um trabalho aberto às mulheres, mas sim um dos ofícios em que a mulher iria tornar-se maioria em
um curto espaço de tempo.
No entanto, o “mundo da escrita” sempre se impôs como algo proibido às mulheres e, com isso, “sua escritura Þcava restrita ao domínio privado, à correspondência familiar ou à contabilidade da pequena empresa”
(PERROT, 2007, p. 97).
Escrever pressupunha cultura e instrução, e isso só foi possível de
ser obtido com a extensão dos cursos superiores também às mulheres. Os
primeiros colleges femininos surgiram nos Estados Unidos no Þnal de 1860,
sendo seguidos pelos ingleses, que inauguraram a “escola feminina de medicina” em 1874.
No Brasil, a mulher era vista como um “mal” necessário. Com o ciclo
do ouro em Minas Gerais, no século XVIII, todas as atividades mantinham-se
apenas quando orientadas para a região das Minas, para atender às necessidades de seus habitantes, e é lá que a mulher brasileira começa a ganhar
espaço. Com grande parte dos homens nas minas procurando ouro ou em
afazeres ligados a ele, coube à mulher assumir papéis que antes lhe eram
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negados, como a crescente necessidade da participação das mulheres nos
comércios. Assim, “descortina-se um universo de signiÞcativa participação
das mulheres nas práticas sociais e na economia, ao contrário do que sempre
pareceu constituir submissão e passividade, outrora marcas da presença feminina na história do Brasil” (FIGUEIREDO, 2000, p. 184).
Essas atividades exercidas pela mão feminina eram enfrentadas apenas pelas camadas mais empobrecidas, nas quais, muitas vezes, o papel era
invertido por exigência masculina. Com isso, a hipocrisia social aumentava,
pois, ao mesmo tempo em que não eram permitidos à mulher certos papéis
sociais e políticos, era-lhe exigido pelo cônjuge, pai ou amante o trabalho
em prol do bem-estar da família.
Mesmo estando a mulher mais próxima da “vida masculina”, ela não
deixava de suscitar nos médicos e pesquisadores curiosidades acerca de seu
corpo, como a “mística em torno do sangue menstrual que imputava-lhe qualidades mágicas e associava-o à loucura e à morte” (ENGEL, 2000, p. 335).
Contudo, não só o trabalho tido como digno para a mulher cresceu
em Minas Gerais, mas, assim como na Europa, a prostituição atingiu índices altíssimos. Muitas vezes, essa proÞssão era apoiada ou impingida pela
família para seu sustento, permitindo às mulheres receber os “fregueses”
em suas próprias casas e entre seus próprios parentes. Algumas vezes,
mães, Þlhas e sobrinhas trabalhavam sob o mesmo teto e nas mesmas circunstâncias.
Com a desmoralização desse ambiente, a instituição do casamento
Þcou comprometida, principalmente entre os populares e, com ela, alguns
papéis da mulher. A mãe solteira ou amancebada deixava de ser vista e taxada de promíscua, e as relações extraconjugais apareceram com força nas
Minas, pois “a estabilidade nas uniões consensuais instituídas entre as camadas populares possibilitou uma divisão de papéis no domicílio caracterizada por uma maior atuação feminina do que a prevista no casamento
cristão” (FIGUEIREDO, 2000, p. 178).
O ciclo do ouro mineiro pode, em toda a sua extensão, não ter trazido
somente desenvolvimento àquela região, mas, com certeza, trouxe uma modiÞcação na visão da sociedade sobre as atitudes e o papel da mulher.
Entretanto, não só o sistema econômico alterou-se nesse século, pois
surgiam no país os primeiros movimentos literários brasileiros, com o desenvolvimento do Barroco e o apogeu do Arcadismo, esse último com força
nas Minas Gerais. Os mesmos poetas que usavam do escapismo nas poesias
participavam das revoluções sociais lá instauradas, como a Conjuração Mineira.
Apesar das tantas diÞculdades de expressão e produção, temos nesse período a primeira escrita feminina, feita por Tereza Margarida da Silva
e Orta. Embora ela tenha nascido no Brasil, viveu desde muito pequena em
Portugal, onde teve oportunidade de publicar Aventura de Diófanes (1752).
Como ela não mais retornou ao Brasil, há divergências sobre sua produção
ser considerada verdadeiramente brasileira.
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Na região sul do Brasil, outros fatores, como as guerras e as disputas
de território, permitiram à mulher uma maior liberdade, seja em casa ou fora desta, pois elas tiveram que assumir a direção dos empreendimentos para garantir a sobrevivência da família (PEDRO, 2000, p. 280).
Houve, portanto, na sociedade brasileira do século XVIII, um maior
paralelismo entre homens e mulheres, devido à maior divisão dos papéis
no domicílio e mesmo socialmente, que acabaram por desenvolver-se no século seguinte.
Do ponto de vista da ciência e da cultura, as características do século XIX trouxeram junto de si desenvolvimento nos campos mais diversos,
como os das invenções químicas e físicas, as revoluções industriais e comerciais, transformando as condições de vida da população, principalmente das
classes dominantes, como o caso da burguesia emergente no Brasil.
A partir da aÞrmação de D’Incao (2000, p. 222), podemos observar
a visão que se tinha do casamento e, junto desse, da mulher na sociedade
burguesa brasileira do século XIX: “Um sólido ambiente familiar, o lar acolhedor, Þlhos educados e esposa dedicada ao marido, às crianças e desobrigada de qualquer trabalho produtivo representam o ideal de retidão e
probidade, um tesouro social imprescindível.”
A ascensão da classe burguesa junto à sociedade desse século fez
dele um diferencial em relação à cultura e à arte. O Romantismo surgiu
como reação a um Classicismo acadêmico e ao intelectualismo do século
anterior, enfatizando o sentimentalismo e o indivíduo. A partir de 1875,
apareceram novas tendências e correntes ÞlosóÞcas que levaram ao Naturalismo e ao Realismo, na prosa engajada, e ao Parnasianismo e ao Simbolismo, na poesia da “arte pela arte”.
Estabeleceu-se também “uma mudança no público leitor”, que se
tornou “muito maior”, constituindo-se, “em grande parte, de mulheres burguesas”. E a partir disso, surgiram, ao Þnal do século XIX, jornais que foram fundados por mulheres “visando esclarecer as leitoras, dar informações, chegando, no Þnal do período, a fazer reivindicações objetivas”
(TELLES, 2000, p. 426).
A partir da segunda metade do século XIX, apareceram vários periódicos abordando a condição feminina, principalmente no que tange à educação. Segundo grande parte desses textos editoriais escritos por mulheres,
a tão esperada emancipação feminina só viria com a sua educação. Surgia
ao Þnal desse século (1873), o primeiro jornal feminista, O sexo feminino,
que defendia a educação da mulher e tentava livrá-la do estereótipo de
submissão e de propriedade do homem.
Um texto do escritor Viveiros de Castro (apud COSTA, 1999, [s.p.]),
de 1895, dá uma ideia do que as mulheres sofriam ao ousarem abandonar o
papel de musa a favor do de escritora:
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Aquelas que, rompendo com um meio tão hostil, atrevem-se a
cultivar as letras devem logo resignar-se aos sarcasmos mais
pungentes e às chufas mais grosseiras. Contestam-lhes o talento e babam as mais vis calúnias sobre sua honra. Raramente recebem uma palavra de animação e, se alguém as
saúda, é logo suspeito de ser seu amante.
Em outras palavras, é o que a dramaturga Maria Angélica (apud
COSTA, 1999, [s.p.]) dizia, 19 anos antes, no prólogo da peça abolicionista
Cancros sociais:
A mulher brasileira, se não quer sujeitar-se ao escárnio dos
espirituosos e às censuras mordazes dos sensatos, não tem
licença para cultivar seu espírito fora das raias da música
ao piano [...]; entre nós, o que sai da lavra feminina, ou não
presta, ou é trabalho de homem.
Foi no nordeste brasileiro que apareceu nossa primeira escritora
tida como verdadeiramente brasileira. Nascida em 1810, no Rio Grande do
Norte, Dionísia Freire Pinto, que assumiu o pseudônimo de Nísia Floresta,
publicou, em 1832, a tradução da obra de Mary Woolstonecraft, Direito das
Mulheres e Injustiça dos Homens, a qual ela adaptou à realidade brasileira.
Mulher culta, que viveu muitos anos na Europa, onde publicou catorze títulos, entre eles Conselhos a minha Þlha (1842), recebeu elogios daquele que
é considerado o maior escritor daquele século, Machado de Assis. Ela foi
“também precursora do indianismo, abolicionismo, educadora militante
(como ela se deÞniu) e ainda romancista, poetisa e jornalista” (DUARTE,
1990, p. 115).
Podemos ainda usar sua voz para explicar a “condição feminina” no
Brasil em sua época:
Enquanto pelo velho e o novo mundo vai ressoando o brado
– emancipação da mulher –, nossa débil voz se levanta na
capital do império de Santa Cruz, clamando: educai as mulheres!
Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que
vos dizei liberal!
Onde está a doação mais importante dessa civilização, desse
liberalismo?
(FLORESTA apud GOTLIB, 1998, p. 13)
Apareceram nesse momento outros nomes femininos na nossa literatura, como os de Maria Firmina dos Reis, que publicou Úrsula (1859), em
São Luís; Narcisa Amália de Oliveira Campos, com sua publicação poética
Nebulosas (1872); entre outras.
Com a proclamação da República e a Constituinte de 1891, um grande número de mulheres acreditou que seriam inseridas no novo processo
eleitoral. Porém, apesar de a própria Constituição não descartar o sexo feminino da condição de cidadão e, consequentemente, de eleitor, todas as
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tentativas de participar dos pleitos feitas por mulheres esbarraram nos esdrúxulos preconceitos segundo os quais a mulher não estaria apta para a
vida política (BEZERRA, 2000, [s.p.]).
Ao longo da República Velha, as mulheres se manifestaram contra
esse abuso. Assim sendo, veríamos, em 1910, um grupo de mulheres fundar
o Partido Republicano Feminino, com a intenção de promover a discussão
sobre o voto feminino e também de trazer mais adeptas para a campanha.
Entretanto, era na submissão e no silêncio que a maioria das mulheres tinha seu reconhecimento, pois nessa sociedade cabia a elas “contribuir
para o projeto familiar de mobilidade social através de sua postura nos salões como anÞtriãs e na vida cotidiana, em geral, como esposas modelares e
mães” (D’INCAO, 2000, p. 229).
A mulher, nesse período, ainda aparecia como dependente do homem,
fato tido como legitimado pelo casamento e, consequentemente, pela maternidade; ou, pela total ausência deste, através da preservação da virgindade.
No entanto, esse conceito não se aplicava “in totum” às classes trabalhadoras,
pois muitas mulheres pobres preferiam abrir mão do casamento a suportar
um marido violento ou outras situações humilhantes (SOIHET, 2000, p. 377).
O corpo e a mente femininos não deixaram, durante o século XIX, de
ser um mistério para seus pesquisadores; continuando a ser um “lugar de
ambigüidade e espaço por excelência da loucura, o corpo e a sexualidade
femininos inspirariam grande temor aos médicos e aos alienistas, constituindo-se em alvo prioritário das intervenções normalizadoras da medicina
e da psiquiatria” (ENGEL, 2000, p. 333).
No cotidiano das cidades do novo Brasil urbano, o empenho em
afrancesar os lugares e, até mesmo, as pessoas, tornou os simples passeios
públicos em alvo de vigilância, controle e críticas. Os populares, muitas vezes, foram impedidos de passar em certas ruas ou de frequentarem determinados lugares. Nesse ambiente a mulher era ainda mais reprimida.
Entretanto, nesse século, as mulheres conquistaram um espaço que
acabaria por tornar-se símbolo do sexo feminino ao longo das décadas e,
até mesmo, no século subsequente: a sala de aula. Mas “a identiÞcação da
mulher com a atividade docente, que hoje parece a muitos tão natural, era
alvo de discussões, disputas e polêmicas” (LOURO, 2000, p. 450), pois lecionando a mulher deveria cuidar de dois ambientes: a escola e o lar. No
entanto,
o processo de feminização do magistério também pode ser
compreendido como resultante de uma maior intervenção
e controle do Estado sobre a docência – a determinação de
conteúdos e níveis de ensino, a exigência de credenciais dos
mestres, horários, livros e salários –, ou como um processo
paralelo à perda de autonomia que passam a sofrer as novas
agentes de ensino. (LOURO, 2000, p. 450-451)
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Com as nossas primeiras escritas femininas, com a conquista da preferência nas produções artísticas e com o início da “tomada” das salas de
aula, as mulheres do século XIX marcaram seu espaço, ainda pequeno, mas
que abriu portas e conscientizou muitos, não só da importância, mas também do lugar real da mulher na sociedade, lugar que ela conquistaria mais
efetivamente ao longo dos séculos seguintes. Já na Europa, com o novo
século, a burguesia reaÞrmaria o seu poder, e o neocolonialismo culminaria
na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). As conquistas sociais alcançadas
pelas mulheres, bem como outras transformações do século XIX, serviriam
de base para novas reivindicações.
4 Rosa Luxemburgo4: o advento do século XX
O século XIX criou vários atritos entre os países europeus, rivalidades essas que culminariam em enfrentamentos e, aliadas às políticas alfandegárias e ao forte nacionalismo, resultariam na Primeira Guerra Mundial,
o que transformaria toda vida política e econômica da Europa, além de guardar o germe da eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) (ARRUDA,
1994, p. 261).
Transformações importantes viriam também acontecer na vida das
mulheres. A participação feminina na economia, na política e na cultura
passou a ser marcante. Durante os anos da Primeira Guerra (1914-1918)
coube às mulheres assumir os postos de trabalho deixados pelos homens
em razão do fronte. Com isso, muitas tarefas consideradas até então exclusivamente masculinas foram assumidas pelas mulheres, tanto no campo
como nas cidades. No entanto, o trabalho doméstico continuava a cargo
delas e, com o Þm da guerra, o retorno ao lar foi expressivo. Mas
é interessante notar que, depois da Þrme e decidida participação das trabalhadoras nas amplas mobilizações por melhores salários e melhores condições de trabalho que se produziram em toda Europa, América do Norte e, inclusive, no
Brasil, durante os anos de guerra, a resistência à integração
das mulheres começou Þnalmente a se desvanecer. (BAUER,
2001, p. 88)
Em meio a esses acontecimentos, o movimento feminista se consolidou nos países capitalistas, mas foi nos Estados Unidos que ganhou forças.
Nesse país, as mulheres passaram a militar contra o sistema escravagista,
e muitas delas escreveram livros, artigos e ensaios sobre o assunto. Mas as
mulheres começaram a sofrer discriminação dentro do movimento abolicionista, o que deu o impulso necessário para que elas criassem um movimento autônomo.
4
Polonesa líder do movimento operário e do partido social democrata na Alemanha. Por sua
atuação política, foi assassinada em 1919.
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A primeira grande reivindicação conquistada pelas americanas foi o
direito ao voto, reconhecido em 1920. Mas, a partir da década de 1930, a organização do feminismo sofreu o golpe da “grande depressão”. A crise econômica gerada por essa situação levou a prostituição a números alarmantes
nos Estados Unidos.
A crise econômica dos EUA e o nazi-fascismo na Europa viriam alterar as relações sociais em todo o Ocidente. Os anos que decorreriam entre
as duas grandes guerras seriam tempos terríveis, principalmente para a
mulher.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, as mulheres voltaram
a ocupar os postos deixados vagos pelos homens. Mas, diferente do que
aconteceu após a Primeira Guerra, na década de 1940, as mulheres conseguiram alcançar transformações sociais importantes, como a incorporação
deÞnitiva ao mercado de trabalho. A ideia de que o trabalho “era necessário
e digniÞcava a mulher” (BAUER, 2001, p. 95) não fez desaparecer a diferença
entre homens e mulheres no mercado de trabalho. Elas continuaram a ganhar
menos e a ocupar cargos inferiores.
Com a mulher trabalhando, o serviço doméstico diminuiu, a taxa
de natalidade caiu, houve a industrialização de produtos antes feitos em
casa, criaram-se inúmeros eletrodomésticos, e métodos anticoncepcionais
surgiram e revolucionaram a vida da mulher.
A partir da década de 1960, o movimento feminista ganhou força e
repercussão. Nomes como BeĴy Friedan, Kate Millet e Simone de Beauvoir
surgiram para revelar a situação de opressão e alienação imposta às mulheres. Em 1975, a ONU declarou o Decênio das Nações Unidas para a Mulher,
procurando diminuir a discriminação contra ela.
Durante esse período, o Brasil passava por um desenvolvimento de
suas indústrias, já que, com a Europa em guerra, cabia às indústrias nacionais produzirem os bens necessários ao consumo interno. Com o crescimento industrial e a consequente modernização das capitais, nesse início de
século, houve a ascensão da burguesia. Com isso, as estruturas familiares
também se reorganizaram, e a dicotomia casa/rua tornava-se ainda mais
marcante, sendo que, enquanto os ambientes internos pertenciam às mulheres, os espaços externos, tidos como lugares de tentações, destinavam-se
aos homens.
Mais uma vez coube à mulher cuidar do sucesso da família, como podemos observar em Maria Ângela D’Incao (2000, p. 229-230):
Esposas, tias, Þlhas, irmãs, sobrinhas (e serviçais) cuidavam
da imagem do homem público; esse homem aparentemente
autônomo, envolto em questões de política e economia, estava
na verdade rodeado por um conjunto de mulheres das quais
se esperava que o ajudassem a manter sua posição social.
Contudo, em 1918, já havia sido fundada a Liga para a Emancipação
Feminina, liderada por Bertha Luĵ. Com o crescimento dessa sociedade, em
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1922, foi formada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, com representantes em quase todos os estados. Nesse mesmo ano aconteceu o Primeiro Congresso Feminista, realizado no Rio de Janeiro, com apoio de vários
políticos a favor do voto feminino.
Durante a década de 1920, tramitou no Congresso Nacional o projeto
do senador Justo Chermont, estendendo o voto às mulheres. A campanha
tornou-se mais acirrada quando as feministas receberam apoio do também senador e candidato ao governo do Rio Grande do Norte, Juvenal
Lamartine, que conseguiu que várias mulheres potiguares votassem. Além
disso, esse estado da federação já havia elegido a primeira prefeita da América Latina, Alzira Soriano, na cidade de Lages.
O ano de 1922 também Þcou marcado pela fundação do Partido Comunista Brasileiro e pelo Movimento Tenentista, que, buscando participação
política, lutou contra a elite detentora do poder na República Velha. Tudo
buscava, na verdade, um meio para a participação da burguesia no poder
de Estado. Essas transformações atingiram inclusive o campo das artes, culminando na chamada Semana de Arte Moderna, que marcou a eclosão do
Modernismo brasileiro.
Enquanto escritores como Mário de Andrade e Oswald de Andrade
buscavam a total ruptura com o conceito de arte vigente, chocando a população burguesa nos teatros e apresentações, muitas mulheres ainda continuavam a escrever como “os homens de antes” ou buscavam temas no sensualismo, o que, de qualquer forma, levava o público a lê-las com reservas
(GOTLIB, 1998, p. 20). Mas algumas artistas, também em outras áreas, como
a pintora Tarsila do Amaral, conseguiram quebrar essa atitude considerada
retrógrada.
Na década de 1930, com o Þm da república café-com-leite, mineiros,
gaúchos e paraibanos formaram a Aliança Liberal, que levaria Vargas ao
poder, com a Revolução de 1930. Com a queda da bolsa de Nova Iorque,
ocorrida um ano antes, Vargas optou por um governo que, além de ditatorial e nacionalista, tornou-se intervencionista, numa tentativa de salvar a
elite cafeeira. Entretanto, a falta de Þnanciamentos e o bloqueio das exportações mudaram o rumo da economia, favorecendo o desenvolvimento industrial. Com isso, grande parte do proletariado passava a ser formado
por mulheres, que precisavam do trabalho para sustentar a si e à família.
No entanto, as mulheres Þcavam mais uma vez com as tarefas menos remuneradas, tendo que enfrentar ainda o assédio e o preconceito.
Com o advento da Revolução de 30, as feministas se colocaram ao
lado de Vargas, e, na discussão para o anteprojeto da Constituição, em
1932, conseguiram que ele indicasse Bertha Luĵ para participar. Dessa forma, ela foi a única mulher a discutir o parecer. Porém, apesar de já estar
tudo encaminhado para a aprovação do novo código eleitoral, houve uma
manobra retirando o direito de voto às mulheres. Vargas, antecipando-se
à divulgação do anteprojeto, decretou o novo código através de lei, garantindo o voto feminino. Foi a primeira vitória de uma luta contínua pela
igualdade de direitos (BEZERRA, 2000, [s.p.]).
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Na Assembleia Constituinte de 1933, foi eleita a primeira deputada
federal, a paulista Carlota Pereira de Queiroz. No ano seguinte, foram eleitas cerca de oito deputadas para as assembleias constituintes estaduais.
Após o Estado Novo, o movimento feminista, bem como os outros movimentos sociais, teve sua ação limitada.
Nesse período, apareceram escritoras como Patrícia Galvão (Pagu),
que publicou seu único romance, Parque Industrial, em 1933. Como militante
comunista e feminista, passou cinco anos presa (1935-1940). Defendia o feminismo “dependente das reformas mais globais e ligadas a mudanças sociais
baseadas em princípios do materialismo histórico, bandeira que carrega[va]
também nas colunas críticas ‘A Mulher do Povo’. Aí [faz] veementes acusações às mulheres fúteis” (GOTLIB, 1998, p. 22).
Ainda na década de 1930, surgiram outros nomes na nossa literatura,
como o de Rachel de Queiroz, que estreou com a publicação de O Quinze, em 1930. E, em 1937, publicou Caminho de Pedras, romance que causou
polêmica devido ao tema que carregava: uma mulher que abandonava o
marido para unir-se ao homem que amava.
A partir de tudo isso, surgia então com mais força e reconhecimento
aquilo que Þcaria conhecido como Literatura Feminina, a qual possui uma
ótica diferenciada, como nos aÞrma Elódia Xavier (1991, p. 11, grifo do autor):
A representação do mundo é feita a partir da ótica feminina,
portanto, de uma perspectiva diferente (para não dizer marginal), com relação aos textos de autoria masculina. Não
existe “discurso masculino” porque não há “condição masculina”. A mulher, vivendo uma condição especial, representa o mundo de forma diferente.
As mulheres apareceram, nas décadas de 1940 e de 1950, extremamente ligadas ao Partido Comunista do Brasil. Lutavam, entre outras coisas, pelos próprios interesses de sua classe. Assim, em 1949, foi fundada a
Federação de Mulheres do Brasil, órgão que orientava várias associações de
bairros e outras organizações menores. Nesta época, circulou nacionalmente o jornal Momento Feminino, dirigido por Arcelina Mochel.
Entretanto, a moral dominante nessa sociedade ainda era de uma
mentalidade dominadora e reguladora:
Desde criança, a menina era educada para ser boa mãe e dona de casa exemplar [...]. A moral sexual dominante nos
anos 50 exigia das mulheres solteiras a virtude, muitas vezes
confundida com ignorância sexual e, sempre, relacionada à
contenção sexual e à virgindade. (BASSANEZI, 2000, p. 610,
613)
Mas os avanços tecnológicos e o crescimento industrial, aliados à
popularização da televisão, permitiram às mulheres alcançarem um espaço
tão negado, o do trabalho fora de casa. Assim, cresceu, na década de 1950, o
número de mulheres que conquistaram o mercado de trabalho,
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especialmente no setor de serviços de consumo coletivo, em
escritórios, no comércio ou em serviços públicos. Surgiram
então mais oportunidades de emprego em proÞssões como
as de enfermeira, professora, funcionária burocrática, médica,
assistente social, vendedora etc. que exigiam das mulheres
uma certa qualiÞcação e, em contrapartida, tornavam-nas
proÞssionais remuneradas. Essa tendência demandou uma
maior escolaridade feminina e provocou, sem dúvida, mudanças no status social das mulheres. (BASSANEZI, 2000, p.
624)
Foram, portanto, muito importantes para as mulheres “os anos dourados”, pois, como aÞrma Nelly Novaes Coelho (1993, p. 9),
[...] multiplicam-se os textos de romances ou contos que mostram a crescente consciência de que o problema da mulher
só será resolvido quando os limites tradicionais, mantidos
pela sociedade, forem ultrapassados e ela puder se projetar
como ser humano, para além do círculo amoroso, homem/
mulher, que se apresenta como único caminho de realização
para ela.
Nesse período, a Þgura de Clarice Lispector destaca-se, entre outros
nomes, como Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles e Lúcia Miguel Pereira.
A partir de 1975 – Ano Internacional da Mulher, instituído pela ONU
(Organização das Nações Unidas), surgem novos grupos e publicações feministas e começa-se a discutir amplamente o papel secundário que é atribuído
à mulher na sociedade. Ano após ano, o chamado Movimento de Mulheres vai
se ampliando com a participação de diferentes setores sociais: trabalhadoras do campo e da cidade, intelectuais, negras, ecologistas, portadoras de
deÞciência, lésbicas, lideranças comunitárias e donas de casa. É nesse contexto que a mulher abre um caminho maior para sua independência e seu
reconhecimento social como cidadã e modiÞcadora da realidade.
Durante todo o período ditatorial (1964-1985), a mulher passou a ganhar espaço e voz. A pílula anticoncepcional, aliada à necessidade de empregar-se, leva a mulher deÞnitivamente ao mercado de trabalho que, por
sua vez, conduzia aos sindicatos e à politização, como aÞrma Paola Cappellin
Giuliani (2000, p. 649):
As mulheres têm contribuído para que algumas transformações importantes possam ser postas em prática: a politização
do cotidiano doméstico; o Þm do isolamento das mulheres
no seio da família; a abertura de caminho para que se considere importante a reßexão coletiva; a deÞnitiva integração
das mulheres nas lutas sociais e seu papel de destaque na
renovação da própria cultura sindical.
Embora muitas mulheres tenham ampliado seu espaço na sociedade
e conquistado direitos, elas ainda permaneceram à margem dos direitos
sociais:
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A mulher que se liberta economicamente do homem nem por
isso alcança uma situação moral, social e psicológica idêntica
à do homem. A maneira por que se empenha em sua proÞssão e a ela se dedica depende do contexto constituído pela
forma global de sua vida. (BEAUVOIR, 1980, p. 451)
No ano de 1982 aumentou a participação feminina na política. Um
exemplo disso foi a eleição de oito mulheres para o Congresso Nacional.
Apareceram também no poder executivo, representando ministérios ou secretarias de Estados e nas prefeituras de algumas cidades. A pressão por
maior espaço político crescia: começavam a surgir os primeiros Conselhos
Estaduais e Municipais da Condição Feminina e, em 1985, surge o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, de âmbito federal, que elabora e implementa
políticas e ações governamentais em relação às mulheres (BEZERRA, 2000,
[s.p.]).
Com o Þm da ditadura, em 1985, o Brasil passa a ser governado
por presidentes civis com a eleição de Tancredo Neves seguida da de Fernando Collor de Melo. O Brasil ganhava uma Constituição mais liberal que
a do regime anterior, pois foi elaborada por um Congresso escolhido democraticamente no ano de 1986 (BEZERRA, 2000, [s.p.]). Entretanto, é somente
a partir da década de 90 que a mulher tem a sua história alterada. A mulher
ganha maior espaço no mercado de trabalho, ocupa cargos culturalmente
masculinos, rompe barreiras culturais e surgem com força outros nomes
da nossa literatura feminina. Hoje, sete mulheres já conquistaram o prêmio
Nobel de Literatura, dentre elas, Nadine Gordimer e Elfriede Jelinek.
Ao Þnal do século XX e hoje, no século XXI, pode-se dizer que houve
uma maior sensibilização dos governos e da sociedade ocidental para com
os problemas e os direitos das mulheres, permitindo a elas que possam buscar independência pessoal e proÞssional, vindo, assim, a alcançar o que
sempre buscaram: a igualdade entre os sexos.
Recebido em março de 2013.
Aprovado em maio de 2013.
Carolinas or Aurélias? An Overview of Women’s History
Abstract
This essay aims to present a brief history of Western women, focusing on the Brazilian
panorama. It describes how women were seen and controlled, their rights and duties in a
world dominated by patriarchal voice and how the point of view about women has changed
throughout the centuries. This text also shows the relationship between history and the
emergence of women as writers in Brazil. The history of women in our country is important to
understand the emergence of the feminine voice and, consequently, of literature as the result
of this voice.
Keywords: History of women. Women in Brazil. Women’s literature.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 54, p. 129-147, jul./dez. 2013
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