UM FLAGELO NO SERTÃO BAIANO

Transcrição

UM FLAGELO NO SERTÃO BAIANO
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
UM FLAGELO NO SERTÃO BAIANO:
COTIDIANO, MIGRAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA
NA SECA DE 1932
(VILA DE CANABRAVA DO GONÇALO/XIQUE-XIQUE)
DAIANE DANTAS MARTINS
SANTO ANTONIO DE JESUS-BA, SETEMBRO/2010
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DAIANE DANTAS MARTINS
UM FLAGELO NO SERTÃO BAIANO:
COTIDIANO, MIGRAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA
NA SECA DE 1932
(VILA DE CANABRAVA DO GONÇALO/XIQUE-XIQUE)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
MESTRADO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
Texto apresentado para a Defesa à Banca
Examinadora do Programa de PósGraduação em História Regional e Local,
da Universidade do Estado da Bahia, como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em História Regional e Local.
ORIENTADORA: PROFª DRª CARMÉLIA APARECIDA SILVA MIRANDA
SETEMBRO/2010
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TERMO DE APROVAÇÃO
UM FLAGELO NO SERTÃO BAIANO:
COTIDIANO, MIGRAÇÃO E SOBREVIVÊNCIA
NA SECA DE 1932
(VILA DE CANABRAVA DO GONÇALO/XIQUE-XIQUE)
DAIANE DANTAS MARTINS
Data da Aprovação: ____/____/_____.
Banca Examinadora:
_________________________________________________________________
Profª Drª Carmélia Aparecida Silva Miranda (Orientadora)
_________________________________________________________________
_________________________________________________________________
SETEMBRO/2010
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Este trabalho é dedicado a todos os sertanejos
que resistiram, migraram ou mesmo morreram
em decorrência da seca de 1932.
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LISTA DE MAPAS E FOTOGRAFIAS
Mapa 1 - Território de Irecê......................................................................................................28
Foto 1 - Lagoa e caldeirões do Meio da Rua no povoado do Caldeirão, município de
Uibaí .........................................................................................................................................36
Foto 2 - Praça Marinho de Carvalho, município de Uibaí nos anos 1960 ...............................37
Foto 3 - Casa de farinha no povoado de Caldeirão de Uibaí em 1978 .....................................42
Foto 4 - Engenho de Luis no povoado de Grama de Uibaí ......................................................43
Foto 5 - Engenho de Luis no povoado de Grama de Uibaí ......................................................44
Foto 6 - Cumbuca que era utilizada para a retirada da tapioca há alguns anos ........................49
Foto 7 – Vagens de mucunã......................................................................................................70
Foto 8 – Sementes de mucunã...................................................................................................71
Foto 9 – Vista da Ipueira do rio São Francisco na cidade de Xique-Xique..............................92
Foto 10 - Primeiro caminhão que chegou em Canabrava do Gonçalo no final dos anos
1920 ........................................................................................................................................108
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AGRADECIMENTOS
Agradeço à FAPESB que possibilitou o financiamento da minha pesquisa. À
Professora Doutora Carmélia Aparecida Silva Miranda, pelas orientações ao longo de todo o
trabalho, bem como à Banca Examinadora, composta pelos Professores Doutores Daniel
Francisco dos Santos e Antonio Fernando Guerreiro de Freitas, pelas sugestões no Exame de
Qualificação.
Aos Funcionários do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local,
especialmente Ane e Consuelo, pela competência e cortesia com que sempre atenderam às
solicitações, bem como aos coordenadores e professores, notadamente os Professores
Doutores Raimundo Nonato, Daniel Francisco, Maria das Graças e Carlos Zacarias, que
ministraram disciplinas e levantaram discussões fundamentais para o desenvolvimento desta
pesquisa, também aos colegas que enriqueceram o trabalho com sugestões, sobretudo nas
apresentações em reuniões de linha.
Aos moradores da Ceu-Jac (Casa de Estudantes de Uibaí em Jacobina) pelo
acolhimento durante as estadas em Jacobina para orientações. À Família Guedes por
disponibilizar o acervo dos jornais A Luz e A Ordem.
Gostaria também de agradecer ao professor Mestre Onildo Reis David, pelo incentivo
na escolha e definição da temática durante a Graduação em História e à Professora Doutora
Lina Aras, pelas leituras e observações sobre o trabalho. A Flávio, Celito e Taiane pelas
leituras e sugestões.
Agradeço também a Lenivalter pela companhia ao longo do desenvolvimento da
pesquisa e pela disponibilidade em me acompanhar durante a realização de entrevistas em
locais mais distantes. A Marlon e Jaqueline, pelas traduções e a Janaina e Junior, pelas
revisões.
E, por fim, mas não menos importante, a Dona Zefa, Dona Glicéria, Sr. Pedro Velho,
Sr. Ângelo, Dona Clarice (in memorian), Dona Olga, Dona Idália (in memorian), Dona
Joaquina, Dona Josefa, Sr. Dão, Dona Jaci, Dona Jardelina, Dona Maria, Dona Irene, Dona
Gení, Sr. Pedro de Lázaro, Sr. Alfredo, Sr. Valmyr, Dona Morena, Sr. Horácio, Sr Liçú, Sr.
Sinó e Sr. Zuza que, com suas narrativas, foram fundamentais para a conclusão deste trabalho.
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RESUMO
Discutimos neste trabalho as experiências vivenciadas pelos sertanejos baianos, associadas às
formas de enfrentamento da seca de 1932, nas imediações da Vila de Canabrava do Gonçalo,
atual cidade de Uibaí. Trouxemos para o mundo da escrita, aspectos do modo de vida desta
população, que até então estavam restritos ao universo da oralidade, já que é através deste
universo que suas tradições se reproduzem. Visando penetrar no universo das memórias sobre
a seca de 1932, utilizamos prioritariamente as fontes orais para desenvolver a narrativa
histórica. Além delas, recorremos a jornais, Romances, Contos, poemas, livros de
memorialistas e registros de órgão oficiais do governo. A análise das fontes revelou aspectos
do modo de vida dos habitantes deste espaço durante a referida seca, cuja duração foi
responsável por alterar profundamente o cotidiano dos que habitavam não só a citada vila,
como também suas imediações, como a cidade de Xique-Xique, que recebeu o impacto de um
grande número de retirantes, pois lá estava o centro econômico regional da época. Ademais,
as narrativas dos depoentes nos permitiram perceber, entre outros aspectos, que houve a
necessidade de reorganização da vida cotidiana para obter alimentos durante este flagelo,
sobretudo para as famílias mais pobres.
PALAVRAS-CHAVE: Seca de 1932; Memórias; Canabrava do Gonçalo; Experiências.
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ABSTRACT
In this work, we considered the experiences lived by the inlanders of Bahia associated with
their ways to fight against the "seca de 1932", around Vila de Canabrava do Gonçalo, present
Uibaí town. We brought into the writing world the aspects of the living way of this population
that till then were restricted to the spoken universe, since it is through this one that their
traditions are repeated. Driving at penetrating into the memories universe about the "seca de
1932", we did put the spoken sources first to develop the history narrative. Besides them, we
resorted to newspapers, novels, short stories, poems, writers of memoirs books, and archives
of the government official agencies. The analysis of the sources revealed aspects of the living
way of the habitants in this space during the quoted dryness, whose duration was liable for
modifying deeply the quotidian of that who lived not only in the mentioned Vila, but also in
its immediacies, as in Xique-Xique town that received the impact of a great number of
migrants, for there it was the region economic center from age. Moreover, the affiants
narratives did let us understand, among other aspects, that was needed the reorganization of
the daily life in order to gain food during this scourge, mainly to the poorer families.
KEYWORDS: Seca de 1932; Memories; Canabrava do Gonçalo; Experiences.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................10
CAPÍTULO I: A VILA DE CANABRAVA DO GONÇALO E O COTIDIANO DE SEUS
HABITANTES..........................................................................................................................20
1.1. CONHECENDO A VILA DE CANABRAVA DO GONÇALO......................................22
1.2. OS “CANABRAVEIROS” E SUA LABUTA DIÁRIA...................................................29
CAPÍTULO
II:
FUGINDO
DA
SECA,
BUSCANDO
A
SOBREVIVÊNCIA..................................................................................................................52
2.1. CANABRAVA DO GONÇALO E A FUGA DA SECA DE 1932..................................53
2.2. EM BUSCA DA SOBREVIVÊNCIA: DIETA ALIMENTAR.........................................65
CAPÍTULO III: OS EXTREMOS DA SECA: A SOLIDARIEDADE, AS TENSÕES E A
MORTE.....................................................................................................................................75
3.1. SOLIDARIEDADE E TENSÕES NO COTIDIANO DA SECA DE 1932......................76
3.2. FOME E MORTE NA SECA DE 1932.............................................................................88
CAPÍTULO IV: A SECA, A IMPRENSA E O PROGRESSO NA CIDADE DE XIQUEXIQUE......................................................................................................................................97
4.1. EM BUSCA DO SÃO FRANCISCO: A ONDA DE FLAGELADOS EM XIQUEXIQUE......................................................................................................................................98
4.2. O FLAGELO E O PROGRESSO NO CENTENÁRIO DA CIDADE DE XIQUEXIQUE....................................................................................................................................106
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................119
FONTES..................................................................................................................................122
REFERÊNCIAS......................................................................................................................127
10
INTRODUÇÃO
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos
os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos
se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos.
(Walter Benjamim, 1994, p. 198).
A problemática das secas e a escassez de estudos historiográficos sobre o tema na
Bahia 1 motivaram o desenvolvimento de um estudo sobre a seca de 1932 no sertão,
especificamente, sobre a região que constituiu a Vila de Canabrava do Gonçalo2. Inicialmente,
durante a Graduação em História na Universidade Estadual de Feira de Santana, deparei-me
com a necessidade de contribuir com a história do município de Uibaí, meu torrão natal,
dando início ao desenvolvimento de um projeto de pesquisa, que pudesse dar visibilidade à
história sertaneja, pois apesar de estudos mais recentes, ainda é bastante negligenciada pela
academia. Neste contexto, rememorei as histórias acerca da “seca de 32”, que sempre escutei
dos mais velhos e me empenhei na tarefa, nem um pouco fácil, de tentar redesenhar as
vivências dos moradores da antiga Vila de Canabrava do Gonçalo, sobre este acontecimento
que parecia ter marcado tanto as pessoas daquela localidade.
Ao empreendermos pesquisas sobre a história do interior baiano, especialmente nas
localidades mais distantes da capital do Estado, esbarramos muitas vezes nas dificuldades de
acesso às fontes devido a algumas limitações, principalmente associadas ao armazenamento
da documentação. Praticamente não existem arquivos públicos devido à pouca atenção dada
pelos poderes públicos para a necessidade de recolher e armazenar adequadamente
documentos históricos. Muitas vezes nos deparamos com documentos que ainda não passaram
por um processo de catalogação e organização, sendo necessária uma verdadeira garimpagem,
sem nenhuma garantia de êxito. Apesar dessas barreiras, ao desenvolvermos pesquisas que
vislumbram desvendar aspectos da história de localidades pouco exploradas, recorremos aos
1
Existe uma vasta bibliografia sobre o fenômeno da seca no Nordeste de uma forma geral. Uma discussão sobre
algumas vertentes seguidas por estes estudiosos pode ser encontrada em ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval
Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino – de problema à solução (1877-1922).
(Dissertação) Mestrado em História do Brasil. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1988.
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Atual cidade de Uibaí. Situada na Chapada Diamantina Setentrional, na Microrregião de Irecê, cidade
localizada a 507 Km de Salvador, limita-se ao norte com Central, ao sudeste com Ibipeba, ao sudoeste com
Ibititá e a leste com Presidente Dutra. Tem uma população aproximadamente de 13.614 habitantes segundo o
senso do IBGE de 2001. Esta população tem a sua economia baseada na agricultura e pecuária.
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acervos particulares na esperança de que sejam disponibilizados documentos passíveis de
serem analisados na pesquisa desempenhada por nós.
Esta pesquisa teve como objetivos identificar, problematizar e analisar as
transformações econômicas, sociais e culturais, bem como as estratégias de sobrevivência da
população da Vila de Canabrava do Gonçalo, ocorridas durante a seca de 1932; identificar
formas de convivência dos moradores desta vila, com a referida seca, acompanhando a
mobilização de grupos do povoado, na busca por melhores condições de vida e estratégias de
sobrevivência, tanto de permanência quanto de migração; analisar as relações de solidariedade
e de disputas entre os sertanejos para enfrentar a seca; bem como, identificar e registrar
memórias da seca de 1932, problematizando os significados atribuídos a ela pelos diferentes
sujeitos; além de analisar o contexto que permeava a cidade de Xique-Xique, discutindo as
estratégias utilizadas para o enfrentamento da seca no centro econômico da região.
Para tal intento, nos debruçamos sobre as seguintes questões: quais as transformações
sociais, econômicas e culturais que ocorreram na Vila de Canabrava do Gonçalo com a seca
de 1932? Quem são esses sertanejos? Quais as suas ansiedades, suas vivências, seu cotidiano?
De que forma eles conviveram com a seca de 1932? Até que ponto o governo assistiu a esses
flagelados? Como a seca e os flagelados eram encarados pelos moradores da cidade de XiqueXique?
A partir das questões apresentadas, seguimos em busca de fontes que pudessem
suscitar análises sobre estes acontecimentos. Seguindo esse caminho, encontramos na História
Oral o tipo de fonte mais rico para a realização de um estudo sobre uma comunidade cujas
tradições se reproduzem, sobretudo, através da oralidade, ou seja, foi através da fala que esta
sociedade conservou vivo o que foi experimentado em vários momentos da vida, inclusive
durante “a seca de 32” e precisamos valorizar essas narrativas, pois, segundo Benjamim
(1994), as experiências de narratividade tem se perdido nas sociedades, em decorrência do
desenvolvimento do capitalismo que privilegia, cada vez mais, as experiências individuais.
Desse modo, as fontes que subsidiam a nossa pesquisa se constituem em grande parte
em depoimentos de pessoas que viveram direta ou indiretamente o flagelo e o rememoraram
através de entrevistas de História Oral e, nesse processo de rememoração, expressaram
vivências árduas e tempos difíceis. Acreditamos na importância da História Oral, que surgiu a
partir do “esforço de recuperar a experiência e os pontos de vista daqueles que normalmente
permanecem invisíveis na documentação histórica convencional e de considerar seriamente
essas fontes como evidência” (THOMSON, 1996, p.75), para adentrarmos em espaços que
não seriam acessíveis a partir de outros tipos de fontes.
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Foram utilizados depoimentos de 22 pessoas, dentre elas, 13 mulheres e 9 homens. O
principal critério para a seleção dos depoentes foi a idade, pois escolhemos pessoas que
vivenciaram diretamente o flagelo, ou que nasceram logo após a sua ocorrência e guardaram
em suas memórias, informações sobre experiências marcantes, contadas por pessoas mais
velhas, sobretudo seus pais.
A maioria dos depoentes trabalhou grande parte de sua vida em atividades associadas à
agricultura e pecuária, tanto que 20 depoentes se aposentaram como trabalhadores rurais. As
duas outras depoentes se aposentaram como comerciante e escrivã.
Além das fontes orais utilizamos Romances, Contos, poemas, livros de memorialistas
e registros de órgãos oficiais do governo e o acervo dos jornais A Ordem e A Luz, que
circularam na cidade de Xique-Xique nos anos de 1931 e 1932, respectivamente. Estes jornais
foram produzidos por um curto período na referida cidade e, como “jornais e revistas não são,
no mais das vezes, obras solitárias, mas empreendimentos que reúnem um conjunto de
indivíduos, o que os torna projetos coletivos, por agregarem pessoas em torno de idéias,
crenças e valores que se pretende difundir a partir da palavra escrita” (DE LUCA, 2005, p.
140), registraram as preocupações dos moradores de Xique-Xique, não só com a seca que
assolava as caatingas, mas também com o grande número de flagelados que enchia as ruas.
Para a escrita deste trabalho foram percorridos alguns caminhos para a análise das
fontes. Primeiramente, fizemos um levantamento de referências que pudessem ajudar a
utilizar melhor os conceitos e, concomitante à leitura de tal bibliografia, iniciamos a
realização de mais algumas entrevistas, pois outras já haviam sido realizadas anteriormente.
Em seguida, elas foram transcritas e analisadas, juntamente com as demais fontes,
acrescentadas ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Sendo assim, o nosso intuito foi
analisar aspectos referentes à seca através de um diversificado conjunto de fontes.
Como trabalhamos com a História Oral na perspectiva da memória, não podemos
ignorar a importância de Maurice Halbwachs, um dos pioneiros nos estudos sobre ela.
Segundo este teórico, a memória é coletiva e é construída a partir das experiências das
pessoas, sendo necessária uma base comum. Nessa base serão afixados os pontos, que se
entrecruzam nessas vivências. Assim,
Para que a nossa memória se aproveite da memória dos outros, não basta que
estes nos apresentem seus testemunhos: também é preciso que ela não tenha
deixado de concordar com as memórias deles e que existam muitos pontos
de contato entre um e outras para que a lembrança que nos fazem recordar
venha a ser reconstruída sobre uma base comum (2006, p. 29).
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As afirmações de Halbwachs orientaram a definição de memória, apresentada por
Henry Rousso, que também a trata como uma representação coletiva. Em vista disso, Rousso
afirma que,
A memória [...] é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de
fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele
do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar,
social, nacional. Portanto, toda memória é, por definição, “coletiva”, como
sugeriu Maurice Halbwachs (2002, p. 95).
Contudo, o caráter coletivo da memória não significa que todas as pessoas envolvidas
em um determinado contexto rememorem certos acontecimentos de uma mesma forma. As
memórias individuais, também elaboram os seus significados. Assim,
Se o caráter coletivo de toda memória individual nos parece evidente, o
mesmo não se pode dizer da idéia de que existe uma “memória coletiva”,
isto é, uma presença e portanto uma representação do passado que sejam
compartilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade (ROUSSO,
2002, p. 95).
Ainda sobre o caráter coletivo da memória, Bosi afirma que, “Por muito que deva à
memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado
a que tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de
um tesouro comum” (1994, p. 411).
O trabalho com fontes orais é inovador, pois as fontes surgem a partir de uma relação
estabelecida entre o pesquisador e não mais o seu objeto de estudo, e sim deste com os
sujeitos que compõem sua pesquisa, lembrando que as memórias constantemente reconstroem
as experiências dos sujeitos. Assim,
O conhecimento histórico torna-se, desse modo, mais dinâmico e humano,
aproximando duas dimensões em geral trabalhadas dicotomicamente: as
experiências vivenciadas e os significados atribuídos a elas pelo historiador
(MARCO, 1995. p. 4).
Preocupamos-nos em trazer à tona as memórias dos depoentes acerca da seca de 1932,
com a consciência de que não buscamos a verdade. Não nos interessa a comprovação do que
“realmente” aconteceu, pois devemos estar cientes de que ao buscarmos dar visibilidade a
uma história que tem como base a memória, existe interferência de outros elementos na
maneira como essas memórias vem à tona, pois,
Um indivíduo, quer fale espontaneamente de seu passado e de sua
experiência [...], quer seja interrogado por um historiador [...], não falará
senão do presente, com as palavras de hoje, com sua sensibilidade do
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momento, tendo em mente tudo quanto possa saber sobre esse passado que
ele pretende recuperar com sinceridade e veracidade (ROUSSO, 2002, p. 95).
Ecléa Bosi comparou a verdade dos depoimentos com a verdade da história que se
perpetua como oficial, e concluiu que “a veracidade do narrador não nos preocupou: com
certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas conseqüências que as omissões da
história oficial.” E, ainda acrescentou que o interesse dos pesquisadores de memória “está no
que foi lembrado, no que foi escolhido para perpetuar-se na história de sua vida” (BOSI, 1994,
p. 411). Corroboramos com a autora neste sentido, pois valorizamos o que foi lembrado e
acreditamos na preocupação dos depoentes em nos contar a sua verdade, aquilo que
desejavam que fosse eternizado na história de suas vidas e, o nosso trabalho consiste
justamente em interpretar estas memórias.
Ao analisar o processo de rememoração das vivências da seca de 1932, percebemos
relações indissociáveis entre o passado e o presente, pois a memória não é estática, ela é fruto
de reelaborações constantes. De acordo com Antonio Torres Montenegro (1994) a “memória
coletiva de um grupo representa determinados fatos, acontecimentos, situações; no entanto,
reelabora-se constantemente. Tanto o grupo como o indivíduo operam estas transformações”
(1994, p. 19). Tais transformações ocorrem com freqüência e absorvem também os
acontecimentos presentes, que de alguma forma influenciam as lembranças, por exemplo, se
as entrevistas foram realizadas na “seca” ou no “verde”, comparações com o momento atual
são frequentes. Assim,
As recordações não são meras exposições da memória, mas um olhar que
atravessa o tempo múltiplo, um olhar que reconstrói, decifra, revela e
permite a passagem de um tempo a outro e, especialmente, traz a
possibilidade de atualização do passado no presente (GUIMARÃES NETO,
2007, p. 103).
Para esta renovação da memória, que é constante, é importante a interação entre as
pessoas que lembram, quase sempre idosos e, é a partir desta convivência que surge o termo
“memória por tabela”, quando é permitido que se retome lembranças de coisas que não foram
vividas diretamente pelo entrevistado, como no caso da depoente Dona Morena que não viveu
a seca de 1932, mas se lembrou juntamente com seu irmão Senhor Ângelo, que a viveu, de
coisas ditas por seu pai. Assim,
O encontro com velhos parentes faz o passado reviver com um frescor que
não encontraríamos na evocação solitária. Mesmo porque muitas
recordações que incorporamos ao nosso passado não são nossas:
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simplesmente nos foram relatadas por nossos parentes e depois lembradas
por nós (BOSI, 1994, p. 407).
Outro aspecto importante sobre a utilização da História Oral neste estudo, diz respeito
ao que Michael Pollak denomina de memórias subterrâneas. Elas estariam relacionadas ao
fato de existir uma memória oficial que privilegia as camadas dominantes da sociedade
responsáveis pela formulação dessas memórias e, em contraposição, existiriam as memórias
subterrâneas formadas pelas memórias das camadas populares. Em vista disso, ele afirma que,
Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a
história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como
parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “memória
oficial”, no caso a memória nacional (1989, p. 4).
Assim, a memória é um campo de disputas e um instrumento de poder3. As memórias
são instituídas, circulam, são apropriadas e se transformam na experiência social vivida. Elas
são construídas a partir da interpretação da realidade vivida pelos indivíduos que constroem a
sua versão a partir dela. Além disso, é salutar que estejamos atentos aos silêncios, sendo
necessário que exploremos os seus significados históricos e culturais.
No sentido de contribuir com a valorização de uma história que privilegia os
marginalizados, se faz imprescindível a utilização de memórias de pessoas que vivenciaram
um episódio como a seca de 1932, pois lembranças de trabalhadores são fontes privilegiadas
para perceber aspectos relacionados ao cotidiano e às vivências destes sertanejos. Desse modo,
buscamos dar visibilidade a esses depoimentos, considerando a importância da utilização da
História Oral, pois esta admite adentrarmos em mundos que a tradição escrita não nos
permitiria conhecer.
O grande desafio é trazer ao mundo da escrita, aspectos que, até então, se encontravam
apenas no universo da oralidade, tendo em vista que o labor ultrapassa os limites das
considerações relativas à fala, pois, esta mesma fala vem acompanhada de silêncios, gestos,
olhares, sentimentos, ou seja, há todo um esforço em tentar rememorar momentos, muitas
vezes, angustiantes, e esses aspetos devem ser levados em consideração. Dessa forma, não
“podemos ter para com quem nos confiou uma parte importante de si próprio, a mesma
atitude que temos para com os documentos escritos” (JOUTARD, 2002, p. 58).
Estudar as relações estabelecidas entre diferentes grupos sociais nos períodos de seca e,
de modo especial, a repercussão da seca de 1932 na vila de Canabrava do Gonçalo é
3
Sobre essa discussão ver KHOURY, Yara Aun. Muitas memórias, outras histórias: cultura e o sujeito na
história. In: FENELON, Dea Ribeiro e outros (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho
d’Água, 2004.
16
fundamental, a partir do momento que notamos suas peculiaridades. Apesar de a população
ter sofrido duras penas nesse período, este espaço também serviu de refúgio às pessoas de
localidades circunvizinhas que fugiam das dificuldades geradas pela estiagem, pois este
mesmo espaço abarcava uma área de influência maior do que a do atual município de Uibaí,
agregando ainda o local onde hoje está localizado o município de Presidente Dutra e possuía
características específicas dentro do ambiente caatingueiro, devido à existência de riachos e
brejos, responsáveis por diminuir as dificuldades oriundas de uma seca tão prolongada, ao
menos para as famílias beneficiadas por tais privilégios.
Como os brejos e riachos existentes não favoreciam a todos, parte da população se
retirou em busca de melhores condições de sobrevivência. Lugares diversos foram procurados,
mas a cidade de Xique-Xique foi o grande foco de atração tanto dos retirantes que saíram da
referida vila, quanto daqueles que deixaram seus lugares de origem e passaram na vila quando
buscavam as margens do rio São Francisco. Enquanto o grande rio não era alcançado,
esbarravam às margens do riacho Canabrava em busca da sobrevivência com base nas
relações de solidariedade estabelecidas entre os moradores locais, que ainda tinham uma
reserva a ser repartida com os quais nada restava.
A motivação desse estudo parte da minha origem, nesta comunidade, e por eu ter
crescido ouvindo histórias sobre “a seca de 32”, como ficou cravada na memória dos que
presenciaram o episódio e o repassaram através da oralidade às gerações posteriores. Além da
necessidade pessoal de construir a história local da terra de onde sou filha, entendendo, em
consonância com Fagundes Neves, que:
o estudo do regional, ao focalizar o peculiar, redimensionaria a análise do
nacional, que ressalta as identidades e semelhanças, enquanto o
conhecimento do regional e do local insistira na diferença e diversidade,
focalizando o indivíduo no seu meio sócio-cultural, politico-econômico e
geo-ambiental, na interação com os grupos em todas as extensões,
alcançando vencidos e vencedores, dominantes e dominados, conectando o
individual com o social (2002, p. 89).
Assim, esta pesquisa se desenvolveu na tentativa de realizar essa interação e contribuir
com a História da Bahia, através de um estudo sobre a temática das secas, ainda muito pouco
explorada neste Estado. Outro fator motivante é a preocupação em deixar um registro que
possibilite aos uibaienses e demais interessados, tomarem conhecimento sobre a seca de 1932,
construída com o apoio da memória daqueles que resistiram à seca e ainda persistem na luta
pela própria sobrevivência, bem como, pelo registro da história e se sentem parte dela ao
colaborar com esse tipo de trabalho.
17
A carência de material disponível sobre a temática, que inicialmente era um obstáculo,
tornou-se mais um incentivo para a realização desta pesquisa, pois não encontramos na
historiografia nenhuma produção sobre a temática da seca de 1932 no Estado da Bahia. Assim,
o desenvolvimento deste trabalho contribuiu para dar espaço a um estudo inédito e pioneiro,
de fundamental importância para a comunidade envolvida, para sua educação e cultura, além
de uma importante referência no campo da Historiografia baiana sobre o sertão, ao dar
visibilidade a especificidades deste espaço, antes pouco explicitadas.
Dessa forma, reconhecer a relevância do presente trabalho permitiu registrar a história
de luta constante de sertanejos pela própria sobrevivência, no sentido de fazê-los notar-se
enquanto sujeitos de sua própria história, além de possibilitar o inicio de um registro
historiográfico da História desse povo.
Na perspectiva da História Social encaramos a seca como um fenômeno natural/social
que é apreendido de formas diversas pelas diferentes classes e, portanto, a contribuição de E.
P. Thompson nesse trabalho é perceber que não há o sertanejo, mas o sertanejo “pobre”, o
fazendeiro “sertanejo”, o sertanejo pequeno proprietário, o sertanejo sem-terra, o sertanejo
garimpeiro, todos eles vivendo de modo particular as experiências da seca, conforme os
lugares sociais que ocupam.
Outra contribuição de Thompson (1982) é o conceito de experiência, entendido como
o ponto de encontro entre a determinação social e a atuação histórica, pois experiência é a
categoria de análise concebida a fim de superar a contradição entre agência humana e
determinação no interior da historiografia 4 , fundamental para compreendermos como as
pessoas agiam de diferentes formas, diante de um evento que era comum a todos, como no
caso das experiências sobre a seca de 1932.
Experiência – uma categoria que, por mais imperfeita que seja, é
indispensável ao historiador, já que compreende a resposta mental e
emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos
acontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo de
acontecimento (THOMPSON, 1982, p. 15).
Assim, percebemos que houve várias respostas — migração para São Paulo, para
Canabrava do Gonçalo, permanecer em Canabrava do Gonçalo, etc — diante da experiência
determinante que foi a seca.
Quanto às resistências, é evidente que os sertanejos necessitavam recorrer aos meios
disponíveis, para conseguir a sobrevivência. Iam resistindo como era possível, mantendo suas
4
Essa categoria é discutida na obra A Miséria da Teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento
de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
18
práticas culturais, buscando adequar a natureza às suas carências, recorrendo à religiosidade,
na apelação a Deus e aos Santos, e como alternativa última, abandonavam sua terra, enquanto
a chuva não chegava, visto que geralmente, quando a realidade se modificava e a chuva
voltava a cair, eles retornavam e recomeçavam as suas vidas.
Este trabalho divide-se em quatro capítulos. No primeiro, A Vila de Canabrava do
Gonçalo e o cotidiano de seus habitantes, além da apresentação do espaço a que nos
referimos ao longo de todo o texto, trazemos uma discussão sobre o cotidiano dos moradores
de Canabrava do Gonçalo – a maioria sendo composta por trabalhadores rurais -, marcado
profundamente pelo trabalho, definido principalmente a partir da condição social de cada
indivíduo, bem como tratamos da sua modificação em decorrência da seca de 1932, quando,
especialmente os mais pobres, tiveram de se adaptar às novas condições.
No segundo capítulo, Fugindo da seca, buscando a sobrevivência, discutimos a
migração como uma das alternativas de resistência à seca, além de trazermos as dificuldades
de enfrentamento empreendidas pelos que optaram por permanecer na Vila de Canabrava do
Gonçalo e readaptaram a sua dieta alimentar, recorrendo a produtos que não compunham
habitualmente a lista de alimentos consumidos pela população, encontrados na vegetação
nativa.
Já no terceiro capítulo, Os extremos da seca: a solidariedade, as tensões e a morte,
discutimos aspectos que se referem às relações de solidariedade, bem como de disputas
ocorridas no cotidiano da seca de 1932. Ao mesmo tempo em que existiam aqueles que se
solidarizavam com a situação de pobreza vivida por muitos e faziam doações, sobretudo de
alimentos, existiam os denominados de “seguros” que se negavam a ajudar os pedintes,
levando alguns flagelados a furtar alimentos para sobreviver. Essas relações decorriam de
acordo com os interesses dos mais abastados, pois, apesar do cunho humanitário na ajuda
estabelecida, notava-se também a necessidade de manter os pedintes sob controle, sobretudo
na cidade de Xique-Xique, que recebeu um grande número de flagelados, os quais
representavam uma ameaça diante da falta de trabalho e de alimento.
Tratamos ainda de situações mais extremas que permearam as memórias dos
depoentes, demonstrando momentos de angústia, decorridos da necessidade de abandonar
crianças pelas estradas ou com outras famílias, quando não possuíam forças suficientes para
carregá-las adiante, ou ainda, parentes enterrados após morrerem de inanição ou por doenças.
Tratamos da realidade enfrentada pelos migrantes da seca de 1932, bem como, da
receptividade encontrada por eles na cidade de Xique-Xique. Utilizamos depoimentos que
demonstram vivências de pessoas que emigraram de seus espaços como estratégia de
19
sobrevivência às agruras desta seca, e citamos três experiências, que de uma forma específica,
demonstram dificuldades enfrentadas por muitas famílias.
Por fim, no quarto capítulo, A seca, a imprensa e o progresso na cidade de XiqueXique, analisamos a repercussão da chegada do grande número de flagelados na cidade de
Xique-Xique, o principal pólo atrativo para os migrantes da Vila de Canabrava do Gonçalo e
região, conforme afirmado pelos depoentes e corroborado pela imprensa da cidade. Muitos
buscavam esta cidade e suas imediações por ter sido ela menos atingida pela seca e agregar
maiores possibilidades de fornecer emprego aos caatingueiros, além da proximidade das
margens do rio São Francisco e da possibilidade de embarque para outras localidades através
do transporte viário. No entanto, a expectativa dos flagelados que chegavam aos montes
resultou na apreensão da elite, preocupada em localizar espacialmente a “situação calamitosa”
na região das caatingas, excluindo do caos, o ambiente citadino, porém, conforme a realidade
se agravava, os poderes públicos buscavam ajuda externa para resolver o problema da cidade,
que não era a seca em si, mas o imenso número de flagelados a esmolar pelas ruas. Apesar da
tentativa de obter recursos para empregar a mão-de-obra flagelada em obras que
beneficiassem o progresso da cidade, através da construção de estradas, foi utilizada também
como estratégia a migração para o sul do Estado, onde seriam empregados na lavoura
cacaueira, ou mesmo para outros Estados, pois o principal objetivo era retirar os flagelados
das ruas da cidade.
Em vista disso, pretendemos com esse estudo, conforme Thompson, fazer uma
“história vista de baixo”, apresentando a voz dos sujeitos que foram marginalizados pela
sociedade de sua época, pelo descaso do Estado e pela pobreza e tiveram sua memória
silenciada pelas classes dominantes. Ao utilizamos a História Oral como fonte principal,
aproximamos narrativas e memórias, cuja importância nesse trabalho consiste em dar
visibilidade a grupos sociais, que apesar de terem experimentado essas vivências estavam
marginalizados
da historiografia.
Assim,
a
História Oral
foi
fundamental
problematizarmos as experiências desses sujeitos e para dar visibilidade a suas memórias.
para
20
CAPÍTULO I
A VILA DE CANABRAVA DO GONÇALO
E O COTIDIANO DE SEUS HABITANTES
No ano de 32,
Quando a seca castigô
Esse pedaço de chão
Quase tudo se acabô
O sertanejo gemeu
E muita gente morreu
Cuma morre uma fulô
[...]
Silva Dias5 – Poema de Cordel A angústia de Zé Carote na seca de 32.
A seca é um problema enfrentado há séculos, onde hoje constitui a Região Nordeste6
do Brasil e é um dos acontecimentos que traz mais angústia aos seus habitantes,
especialmente aqueles mais pobres trabalhadores da lavoura que não têm possibilidades de
acumulação de capital e dependem da ocorrência de chuvas com certa regularidade e
suficiência para manter a produtividade agrícola e, conseqüentemente, a dignidade para sua
sobrevivência.
Refutando a tese que encara a seca, enquanto um fenômeno natural, ela é abordada
aqui enquanto um fenômeno social, tendo em vista que aflige sobremaneira não o “sertanejo”
em geral, mas o “sertanejo” pobre, o pequeno proprietário, o sem-terra, o trabalhador rural,
que depende das chuvas para conseguir uma safra razoável e, na maioria das vezes, não possui
nenhuma arma de defesa para lutar contra ela, ficando muitas vezes refém dos políticos e dos
grandes proprietários que desenvolveram estratégias7 ao longo dos anos para se aproveitar da
situação de carência de boa parcela da população e se beneficiar da chamada “indústria da
seca” que representa um fracasso na tentativa de implementação por parte do Estado, de
5
Poeta, natural do município de Central-Bahia.
A invenção do Nordeste enquanto um espaço imagético-discursivo foi discutida por Durval Muniz de
Albuquerque Junior em ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de A invenção do Nordeste e outras artes. 2.
ed. Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001.
7
Segundo Albuquerque Junior, a seca é transformada em problema justamente devida à decadência econômica
em que se encontrava a elite do antigo “Norte”, que ocasionou também, a perda de espaço no cenário político
nacional. Em vista disso, se utilizaram da seca de 1877 para o retorno das atenções a este lugar. In:
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. Falas de astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino
– de problema à solução (1877-1922). (Dissertação) Mestrado em História do Brasil. Universidade Estadual de
Campinas, 1988.
6
21
políticas de combate aos efeitos da seca, pois existe uma classe dominante na região que até
se beneficia do flagelo das secas, ao conseguir captar recursos que são empregados em
benefício próprio, além de utilizarem a seca como forma de obter prestígio político
(ANDRADE, 1993, p. 48).
A fome, uma das principais consequências da seca de 1932, não atingia a população da
Vila de Canabrava do Gonçalo apenas neste momento. Ela já fazia parte das dificuldades
vivenciadas diariamente por muitos dos moradores das áreas próximas à caatinga e se
agravava durante as intempéries climáticas, refletindo uma intensificação das dificuldades
enfrentadas cotidianamente por boa parte da população, que vivia de forma precária. Com isso,
o aumento da fome durante as secas causava as mais diversas reações: furto, fuga, morte,
doenças etc., não sendo esta, um fenômeno que aconteceu de forma específica na região
Nordeste do Brasil, e nem durante a seca citada, “a fome coletiva é um fenômeno social bem
mais generalizado. É um fenômeno geograficamente universal, não havendo nenhum
continente que escape à sua ação nefasta. Toda a terra dos homens tem sido também até hoje
terra da fome” (CASTRO, 2008, p. 32).
Compreendemos então que o fenômeno “seca” faz parte do cotidiano sertanejo e
carrega significados que vão além do momento em que ela está presente, ou seja, as
preocupações quanto à possibilidade da ocorrência de uma seca, se fazem constantes em todos
os momentos da vida destas pessoas que convivem diretamente com as suas consequências.
Com isso, recorremos a Alfredo Macedo Gomes (1998), que afirma que o significado que a
seca tem para os moradores do semiárido nordestino,
Não se restringe ao período seco, mas muito pelo contrário, estende-se a
todos os momentos da vida social, econômica, religiosa e cultural do
nordestino sertanejo. Se é período seco, de estio, a sua significação é
inquestionável; se é período de chuvas, onde se vive o “inverno” e as
plantações se concretizam, é a ausência da seca que lhe dá significado, pois
dela o sertanejo não pode esquecer (1998, p. 57).
A ocorrência de secas contribuiu para que os habitantes das regiões mais atingidas
desenvolvessem estratégias para seu enfrentamento, valendo a teimosia em muitos casos, pois
aqueles que optavam por permanecer nos locais atingidos, muitas vezes presenciavam seus
bens definharem junto com a seca e necessitavam empreender suas forças para o recomeço de
sua vida e, não raro, a “seca mata todo o seu rebanho, mas ele não desanima: com o dinheiro
arrancado do solo crespo com um esqueleto de enxada, comprará uma vaca no primeiro
inverno, recomeçando o criatório (LINS, 1983, p. 108)”. Essa atitude, todavia, não representa
um conformismo com a situação, mas uma forma de resistir à condição de opressão em que
22
vive boa parcela da população destes locais. Outros, apesar de possuírem suas terras, optam
pela via da migração recorrendo, muitas vezes, aos grandes centros como São Paulo (ROCHA;
MACHADO, 1988, p. 72) ou mesmo à região Norte8 em busca de uma vida melhor.
A “crise de 32” como é retratada pelos narradores que ajudaram a compor este
trabalho é apontada como a de maior repercussão de todas já enfrentadas, responsável por
alterar consideravelmente o cotidiano dos habitantes das imediações da Vila de Canabrava do
Gonçalo, sendo necessária uma readaptação de sua rotina a fim de superá-la. O cotidiano das
pessoas que moravam na região revela uma vida árdua, onde a luta pela água configurava uma
das principais preocupações dos habitantes das áreas menos úmidas e a própria ideia de seca
está presente na divisão do ano em etapas – seca e verde – que orientam as tarefas
desempenhadas em cada momento. Estes aspectos, entre outros, serão discutidos ao longo
deste Capítulo.
1.1. CONHECENDO A VILA DE CANABRAVA DO GONÇALO
No interior do Estado da Bahia desenvolveram-se inúmeras povoações que
aproveitaram as condições naturais para a escolha de ambientes mais favoráveis à instalação
de atividades agrícolas e pastoris que lhes permitissem o desenvolvimento econômico. Tais
sociedades se organizaram prioritariamente ao longo das margens de rios e riachos que
pudessem favorecer a sobrevivência em áreas semiáridas a exemplo das que surgiram ao
longo do rio São Francisco como é o caso da cidade de Xique-Xique e de um de seus distritos,
Canabrava do Gonçalo9, que se desenvolveu ao longo do riacho Canabrava.
Um dos principais rios onde às suas margens se afixaram sociedades que obtiveram
um prestígio considerável, tratado inclusive como fator preponderante para a integração
nacional, o rio São Francisco é apresentado por Wilson Lins (1983, p. 23) como via que abriu
caminho para o Brasil ser desbravado, sendo local privilegiado da mestiçagem que deu
origem aos habitantes dessa região. MOURA (1993) corrobora com esta afirmativa ao tratar
de uma viagem empreendida nos “sertões do São Francisco” por um frade capuchino
8
Sobre as experiências de migrantes nordestinos para a região Norte ver SANTOS, Daniel Francisco dos.
Experiências de migração de trabalhadores nordestinos – Rondônia. 1970-1995. Salvador, 2003.
9
O povoamento de Canabrava do Gonçalo se inicia a partir do riacho Canabrava, fato tão marcante que mereceu
destaque na composição do hino em homenagem à cidade de Uibaí e afirma: “Quem passou por aqui no começo/
Avistou Canabrava a crescer/ Sombreando as águas do leito/ Dando glórias ao sobreviver/ Do Brasil és um rico
pedaço/ Da Bahia um símbolo do amor/ Te guarnece essa gente de aço/ Do teu povo tu és o louvor [...]”.Trecho
do hino de Uibaí, antiga Canabrava do Gonçalo, de Autoria de Antonio Machado Souza.
23
acompanhado por três índios e um negro, que “simbolizaram, em meio à paisagem singular,
as origens do que viria a constituir a nascente sociedade brasileira, de que o mulato já seria o
elo biológico e culturalmente destacável” (1993, p. 31).
Nos sertões do São Francisco desenvolveram-se sociedades que apresentam um relativo
distanciamento do restante do Brasil, com costumes peculiares e um modo de vida específico.
Por muito tempo os habitantes do vale do São Francisco e incluímos aí as regiões que se
desenvolveram posteriormente, utilizando como referência as cidades aí situadas inicialmente,
viveram sem uma relação direta com as administrações centrais do Brasil, ficando
abandonados à própria sorte. Segundo Lins (1983),
é justamente aqui que começa a epopéia do homem são-franciscano, perdido
no ermo, brutalizando-se para sobreviver numa terra brava, sem Deus nem
lei. Abandonado à sua própria sorte, o curicoba nascido do cruzamento do
colono escravocrata com a índia escrava, para não perecer na solidão da
caatinga desértica, criou sua própria maneira de viver, e sobreviveu, fazendo
subsistir entre cardos e escarpas uma sociedade de espoliados, que, até hoje,
lá está desafiando o espírito público e o patriotismo dos nossos possíveis
estadistas (1983, p. 35).
O mesmo autor ainda complementa, posteriormente, da seguinte forma:
Por que modos aquela gente conseguiu sobreviver e, o que é mais importante,
logrou estabelecer pequenos núcleos urbanos com comércio entre si, isto é
um mistério. Largados no enorme vale, aqueles homens rudes construíram
com suas próprias forças a sua própria civilização (LINS, 1983, p. 38).
Apesar do espanto de Lins, o isolamento 10 contribuiu para o desenvolvimento de
modos de vida bastante peculiares, sobretudo nas comunidades que se distanciavam dos
pontos considerados centros, como a cidade de Xique-Xique, que agregava em torno de si
uma rede de sociabilidades, desconhecidas por muitos que jamais chegaram a visitar esses
espaços. Neste capítulo, daremos ênfase à apresentação da Vila de Canabrava do Gonçalo,
localizada na região da caatinga, como também discutiremos o cotidiano de seus habitantes no
início do século XX, quando seu território pertencia a Xique-Xique, cidade situada às
10
A situação de isolamento do São Francisco com relação ao restante do Brasil, ao menos do século XIX em
diante, pode ser refutada com base nas informações de Henrique Guilherme Halfeld, que em 1860 aponta como
uma das alternativas de sobrevivência utilizada pelos moradores de Xique-Xique a realização do comércio “tanto
fluvial, bem como por terra para a Bahia”, demonstrando a ligação daquele espaço com outras regiões,
quebrando com a tese do isolamento. HALFELD, Henrique Guilherme. Atlas e relatório concernente a
exploração do São Francisco desde a Cachoeira de Pirapora até o Oceano Atlântico, levantado por ordem do
Governo de S. M. I. O Senhor Dom Pedro II. Rio de Janeiro, 1860, p. 24. Apud SILVA, Fernando Altenfelder.
Análise comparativa de alguns aspectos da estrutura social de duas comunidades do vale do São Francisco.
Tese de Livre Docência. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Curitiba: Universidade do Paraná, 1955. p.
21. Apesar disso, não podemos desconsiderar as dificuldades devido às más condições em que se encontravam as
estradas.
24
margens do rio São Francisco e que funcionou como um ponto de refúgio para retirantes que
fugiram da seca de 1932.
As terras que deram início à formação de Xique-Xique e, posteriormente, à Canabrava
do Gonçalo pertenciam a uma das famílias que mais herdou terras ao longo do rio São
Francisco, a Guedes de Brito, que “estendiam-se do Morro do Chapéu às nascentes do Rio das
Velhas. O latifúndio da Casa da Ponte buscava as terras férteis e ricas de Minas Gerais”
(LINS, 1983, p. 27). E se tornou um dos mais extensos latifúndios, que após ser desmembrado
originou inúmeras povoações11.
A cidade de Xique-Xique teve origem a partir da construção de uma capela dedicada a
Senhor do Bonfim ao redor da qual, em torno do ano de 1700, fazendeiros passaram a
construir casas que deram início ao arraial de Senhor do Bonfim e Bom Jesus de XiqueXique12. Este arraial, em 1714, foi elevado à categoria de Freguesia e, em 6 de julho de 1832,
foi criado o município de Xique-Xique. Ainda no século XIX,
O crescimento de Xique-Xique, como cidade, foi devido a fatores diversos: a
riqueza do peixe na ipueira do mesmo nome e nas lagoas vizinhas; a
descoberta de ouro e diamantes nas minas próximas de Assuruá, Santo
Inácio, Gentio e Cocaes13, os movimentos e carreiras políticas que fizeram
com que se abrigassem na povoação promissora, os oposicionistas banidos
de outros centros vizinhos (SILVA, 1955, p. 24).
Estes atrativos contribuíram para que, com o passar dos anos, o município ribeirinho
se tornasse o centro econômico de uma região em torno da qual, ainda no século XIX,
surgiram várias povoações, acompanhando o processo de desagregação das terras
pertencentes aos herdeiros do latifúndio outrora pertencente à Casa da Ponte, conforme foi
citado.
Uma das mais antigas dessas povoações era Canabrava do Gonçalo, localizada do
ponto de vista geográfico, no intermédio entre a Chapada Diamantina e o Médio São
11
FERREIRA, aborda a dinâmica da estrutura fundiária e da desagregação das terras pertencentes aos herdeiros
da Casa da Ponte, intensificada no século XIX, nas imediações de Xique-Xique. In: FERREIRA, Elisangela
Oliveira. Entre vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão do São
Francisco. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal
da Bahia. Salvador, 2008.
12
Sobre a origem da cidade de Xique-Xique ver MACHADO NETO, Cassimiro. Senhor do Bonfim e Bom Jesus
de Chique-Chique (História de Chique-Chique. Xique-Xique: Edição do Autor, 1999.
13
Correspondem atualmente a cidades e povoações de menores dimensões, localizadas nas proximidades da
cidade de Xique-Xique.
25
Francisco (ROCHA; MACHADO, 1988, p. 54), na região caatingueira, que foi repovoada14
em meados do século XIX15 e deu origem ao povoado quando,
Por volta de 1844, um escravo de nome Vicente Veloso, fugindo da região
mais próxima ao litoral para as brenhas do sertão, veio encontrar sua
liberdade nas encostas da Serra das Laranjeiras, ou Serra Azul, onde viveu
por algum tempo escondido da terrível repressão dos capitães-do-mato.
Vicente Veloso se localizara exatamente no boqueirão onde hoje tem início o
arruado de casas que vai formar a aprazível cidadezinha de Uibaí16. Além de
caça com fartura, o negro Vicente encontrou, na escarpa da serra, os frutos
de jatobá, que lhe serviram de farinha, e excelente fonte de água corrente
(ROCHA; MACHADO, 1988, p. 50).
Após permanecer algum tempo na região, o escravo fugido Vicente Veloso seguiu
viagem rumo à serra do Assuruá, onde entrou em contato com Venceslau Pereira Machado
que se tornaria o principal responsável pela compra e posterior ocupação das terras que
compuseram a fazenda Canabrava, quando,
Em São Domingos, Vicente Veloso encontrou-se com Venceslau Pereira
Machado, pequeno criador e filho de escrava, com quem se relacionou.
Vicente lhe deu boas informações sobre a área de baixios. Grandes áreas de
terras totalmente desabitadas, bastante água e excelente qualidade do solo
(ROCHA; MACHADO, 1988, p. 50).
Depois de comprar as referidas terras, Venceslau Pereira Machado se mudou para
ocupar a fazenda Canabrava17, juntamente com sua esposa, Francisca Rita da Rocha, os doze
filhos do casal, incluindo a primogênita Isabel Pereira Machado, o genro José Pereira
Machado e três escravos. A referida fazenda foi dividida com seu genro e filha. O patriarca e
sua família saíram de uma região onde, em torno de dez anos antes, teriam sido descobertas
minas de ouro e diamante, atraindo inúmeras pessoas. Entretanto, Venceslau e os seus fizeram
o caminho inverso descendo a Serra do Assuruá, para ocupar as novas terras compradas dos
herdeiros da Casa da Ponte (FERREIRA, 2008, Pp.71-73).
14
Provavelmente a região onde se constituiu a Vila de Canabrava do Gonçalo já havia sido povoada por povos
“primitivos”, que foram exterminados, o que se evidencia pela grande quantidade de pinturas rupestres em vários
lugares na serra, ao pé da qual a povoação se desenvolveu.
15
Segundo FERREIRA, a ocupação das terras de Xique-Xique se relacionou com os contrastes naturais da
região. As áreas mais próximas ao rio São Francisco foram as primeiras a receber uma povoação mais densa já
no século dezenove. Enquanto isso, “a vasta área do interior do município, marcada pela paisagem da caatinga e
que se estendia muito além do rio Verde, se caracterizava pelo despovoamento, com algumas habitações esparsas
e isoladas durante boa parte do período oitocentista. In: FERREIRA, Elisangela Oliveira. Entre vazantes,
caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão do São Francisco. Tese (Doutorado
em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2008.
16
Em 1938 a Vila Canabrava do Gonçalo tem seu nome modificado para Uibaí.
17
A Fazenda Canabrava do Gonçalo corresponde à sede do município de Uibaí.
26
Além de Venceslau Pereira Machado, Gonçalo José dos Santos, seu conhecido, e
Raimundo Pereira da Rocha, seu cunhado, também adquiriram dos herdeiros dos Guedes de
Brito, terras nas caatingas de Xique-Xique, nas proximidades da fazenda Canabrava. Gonçalo
José dos Santos e família situaram “o sítio Olho d’Água18, com duas léguas de comprimento e
duas de largura, [...] provavelmente entre o final dos anos 1840 e o início da década seguinte”
(FERREIRA, 2008, p.72). Já Raimundo Pereira da Rocha e parentes ocuparam as terras
situadas mais ao norte, denominadas Riacho de Areia”19. A povoação desse espaço se iniciou
prioritariamente ao longo dos riachos que cortam a região como o riacho Canabrava, o riacho
do Olho d’Água e o riacho de Areia, respectivamente fazenda Canabrava, fazenda Olho
d’Água e fazenda Riacho de Areia. Assim,
Em ambas as fazendas descobertas [Fazenda Canabrava do Gonçalo e Olho
D’Água do Gonçalo, podendo incluir também a Riacho de Areia], a maior
atração para quem as visitasse eram os riachos com sua água vítrea e as
plantas existentes em suas margens úmidas e férteis (SOUZA , 1984, p. 8).
Percebemos, portanto, a importância da água para o início da povoação desta área
sertaneja, já que,
Os fatores naturais, em particular a existência de água corrente, tão preciosa
nos terrenos de cultura ou em qualquer parte da região semi-árida da Bahia
tem um valor incalculável para quem procura abrir novas fronteiras. Quando
se trata de “olho-d’água” designação que aparece freqüentemente na
toponímia do interior nordestino, a atração do líquido é evidente, com
sedutor efeito, seja para o simples viajante, ou para quem procura pouso
mais demorado (ROCHA; MACHADO, 1988, p. 51).
A existência de riachos em alguns pontos da Serra Azul, também conhecida como
Serra das Laranjeiras, somado à fertilidade do solo, chamaram a atenção do principal
responsável pelo início da povoação, já que o mesmo estaria descontente com as terras pouco
férteis que ocupava na Serra do Assuruá e se interessou pelas localizadas ao pé da Serra Azul,
tendo em vista que os “povoados, inicialmente, deram toda preferência pelas margens dos
riachos, pelas encostas úmidas das serras, onde os verdejantes brejos de bananeiras e cocais
foram sendo formados como o cartão de visita de uma terra de abundância” (ROCHA;
MACHADO, 1988, p. 51). Essa mesma abundância de água existente nos riachos, aliada a
outros fatores que serão discutidos posteriormente, também serviu de atrativo para os
flagelados da seca de 1932, quando fugiam da fome que assolava toda a região e encontraram
18
Hoje, a antiga Fazenda Olho D’Água do Gonçalo corresponde a um povoado da área rural do município de
Uibaí, chamado Olho D’Água.
19
Atualmente corresponde a Hidrolândia, Vila de Uibaí.
27
na Vila de Canabrava do Gonçalo, o oásis que permitia a recuperação de suas forças para
poderem seguir viagem para a cidade de Xique-Xique - mesmo que algumas famílias
optassem por permanecer na vila - em busca de melhores oportunidades às margens do rio
São Francisco, alterando não só a rotina dos moradores dessa pequena vila, mas também da
própria cidade de Xique-Xique, que não estava preparada para a onda de flagelados que para
lá se deslocou em busca da sobrevivência.
Com o aumento da população e o aumento da dinâmica do povoado, ocorreu a
fundação de povoações nas regiões mais longínquas que compuseram, posteriormente, os
limites da vila, sempre buscando ocupar os espaços onde estivesse disponível algum tipo de
reservatório aqüífero quer fossem riachos, cacimbas ou caldeirões, pois desse líquido
dependia a sobrevivência de todos.
Concomitante a isso, Canabrava do Gonçalo se tornou distrito pela Lei Estadual n.
2.204, de 08 de agosto de 1929, e manteve a mesma nomenclatura até receber o nome de
Uibaí, pelo Decreto Lei Estadual n. 11.089, de 30 de novembro de 1938. Em 1961, a Vila de
Uibaí se emancipou politicamente e se tornou a cidade de Uibaí (FALCÃO, s/d, p. 631).
Atualmente o município de Uibaí possui uma população de 13. 719 habitantes20 e se localiza a
uma distância de 507 quilômetros da capital do Estado, Salvador.
A área de influência da Vila de Canabrava do Gonçalo, no tocante ao espaço,
englobava o que hoje corresponde ao município de Uibaí, juntamente com o município de
Presidente Dutra, conforme pode ser observado no Mapa 1. Portanto, ao estudar a Vila
Canabrava do Gonçalo no início da década de 1930 ultrapassamos os limites do atual
município de Uibaí. Além disso, existiu nesse período uma forte relação entre as pessoas que
habitavam regiões próximas à Vila com esta, pois ao fugir da fome seguindo em direção à
cidade de Xique-Xique em busca de melhores condições de sobrevivência, passavam pela
sede da Vila, que fazia parte deste longo e cruel percurso21.
20
Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/contagem_final/tabela1_
1_16.pdf.Acesso em 13 de agosto de 2009.
21
Em 1932 as pessoas que buscavam Xique-Xique passavam por Canabrava do Gonçalo, principal via de acesso.
Atualmente existe ainda uma estrada que interliga o município de Uibaí ao de Xique-Xique que, entretanto,
apesar de encurtar a distância entre eles, não é muito utilizada pelo fato de não ser pavimentada, ficando como
principal opção a via Estrada do Feijão.
28
Mapa 1: Território de Irecê. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Secretaria de Desenvolvimento Territorial.
Plano Territorial de Desenvolvimento Rural
Sustentável de Irecê – Ba. Setembro 2008.
29
Assim, pudemos analisar o contexto que permeou o surgimento da Vila de Canabrava
do Gonçalo, localizada na caatinga da promissora cidade de Xique-Xique, que além de
possuir o privilégio de se localizar às margens do rio São Francisco, também obteve um
prestígio considerável devido à extração de minérios nas suas proximidades, absorvendo em
torno de si todo um universo de possibilidades, o que provavelmente contribuiu para que
muitos deixassem suas localidades para tentar uma vida melhor na cidade ribeirinha, inclusive
moradores da Vila de Canabrava do Gonçalo.
1.2. OS “CANABRABEIROS”22 E SUA LABUTA DIÁRIA
Interligada ao município de Xique-Xique, Canabrava do Gonçalo em 1932, era uma
vila pacata apesar de já ter sido palco de acontecimentos responsáveis por trazerem a
desordem para seu pequeno espaço. Sua população era difícil de ser estimada por conta de
acontecimentos que interferiram na dinâmica local ao estimular a movimentação de grupos de
pessoas ora chegando à vila, ora deixando a mesma23.
Dentre esses acontecimentos, ganharam lugar de destaque na memória dos moradores
mais antigos, três eventos: o período quando a vila teve bastante importância, enquanto um
pólo produtor de borracha de maniçoba, por volta de 1904 até 1914,24 quando os moradores
do arraial presenciaram uma movimentação intensa de forasteiros que se interessavam em
enriquecer com a maniçoba daquela serra; outro foi a guerra entre Jóvito Machado e
Benjamim Machado, primos e compadres que se desentenderam por questões políticas e
acabaram desencadeando uma guerra entre os moradores de Canabrava do Gonçalo, nas
primeiras décadas do século XX25, contribuindo para o abandono da povoação por parte de
algumas famílias26; a terceira, a passagem da Coluna Prestes27 em 1926, episódio em que
22
Forma utilizada popularmente na comunidade para denominar os moradores de Canabrava do Gonçalo.
Os registros de contagem da população realizados no início do século XX são demasiadamente vagos e
apresentam dados referentes à população do município de Xique-Xique, em alguns períodos, de forma geral.
24
Sobre a produção de borracha de maniçoba existe um importante trabalho realizado por Zhentner, contratado
pela Inspetoria de Obras contra as Secas, interessada em estudar a possibilidade de utilizar este produto no
combate às secas. Nessa visita aos principais centros de produção, o autor fez considerações sobre os maniçobais
de Canabrava do Gonçalo. ZEHNTNER, Leo. Estudo Sobre as Maniçobas do Estado da Bahia, em relação ao
problema das secas. Rio de Janeiro: Inspetoria de Obras Contra as Secas, 1914. Todavia, a utilização da
maniçoba para combater os efeitos da seca, jamais foi implementada na região em foco, sendo a influência deste
produto bastante passageira.
25
Sobre essa briga ver ROCHA, Osvaldo de Alencar e MACHADO, Edimário Oliveira. Canabrava do Gonçalo:
uma vila do Baixo Médio São Francisco. Brasília: Ed. do Autor, 1988. p. 98-104.
26
A entrevistada Josefa Machado relatou que seu pai, parente de ambos os envolvidos na discórdia, saiu de
Canabrava do Gonçalo, na época para não tomar partido de nenhum lado.
23
30
Canabrava foi quase totalmente destruída. Segundo ROCHA e MACHADO, os homens de
Prestes,
Antes de saírem, atearam fogo em setenta e três casas da Vila que naquele
tempo somavam pouco mais de cem e eram todas cobertas de palhas.
Aproveitando o estoque de querosene de Chico de Rogério, usaram-no como
combustível para queimar ainda as únicas lojas de tecidos que havia na vila
[...] (ROCHA; MACHADO, 1988, p. 113).
Além da atitude dos combatentes da Coluna, em represália à resistência oferecida
pelos habitantes de Canabrava do Gonçalo ao seu movimento, não podemos desconsiderar a
existência de um temor generalizado no imaginário desta população sobre “os revoltoso” de
quem esperavam todo tipo de perversidade, sendo recorrente após o ocorrido, que alguns
maldosos espalhassem a notícia de que “os revoltoso” estavam chegando para afugentar a
população fazendo com que muitos abandonassem suas casas e se refugiassem no mato.
Apesar do temor vivido nesta época, alguns depoentes chegaram a defender os
membros da Coluna, afirmando que suas intenções eram pacíficas. Esse ponto de vista
demonstra uma formação política, provavelmente adquirida posteriormente, a partir de
alguma leitura, e vai de encontro com o que é disseminado pela maioria da população que
afirma que “os revoltoso” atacaram e destruíram não só Canabrava do Gonçalo, mas todos os
lugares por onde a marcha passou. Na localidade citada, desorganizaram a forma de viver das
pessoas, pois a maioria fugia de suas casas em direção à serra, onde estavam mais protegidas.
Já o período de exploração de maniçoba ficou registrado na poesia de um antigo
morador, no ABC da maniçoba 28 do qual transcrevemos alguns trechos, que possibilitam
percebermos a repercussão da exploração da maniçoba neste espaço:
[...]
Foi mercê que Deus fez
O dinheiro vim na terra
Mas quêra Deus que maniçoba
Num venha se acabá em guerra
Pois os besta tão dizeno
Que os ladino tamém erra
Grande guerra nesta terra
Todo mundo em confusão
Quem fura tal maniçoba
27
Além de ter ficado marcado na memória das pessoas mais velhas do lugar o combate também foi registrado na
obra de LIMA, Lourenço Moreira. A coluna Prestes – Marchas e combates. 3ª Edição. São Paulo: Alfa-Omega,
1979.
28
Poema de cordel, recolhido pelo historiador Flávio Dantas Martins, com o Sr. João Ferreira dos Santos que o
guardou em sua memória por décadas.
31
Num planta mie nem fejão
Quando vinhé arrependê
É tarde meus irmão
[...]
Não se iluda, minha gente
Maniçoba num é nada
Quem fura tal maniçoba
Eu vejo é cum a vida arriscada
Uns furano, ôtos panhano
Segue uma vida danada
Orrô de facada e tiro
Tamo veno a todo instante
Quelé Dunga veno isso
Retirou-se para Tanque
Dinhero de maniçoba
Faz as vêis de diamante
[...]
A partir das informações contidas no ABC da maniçoba, percebemos o impacto
causado pela exploração deste produto, responsável por uma intensa movimentação de
pessoas vindas de outros locais para extrair essa riqueza, provocando um aumento
demográfico considerável que acabou resultando em tensões provocadas pela disputa entre os
próprios envolvidos na produção e comercialização da borracha.
A decadência do produto no mercado poucos anos depois, fez com que a maioria das
pessoas deixassem a Vila, ficando apenas algumas famílias de trabalhadores dos maniçobais29.
Em momentos marcados pela ausência de tensão exacerbada, os moradores de Canabrava do
Gonçalo desenvolviam suas atividades no exercício da sua vida cotidiana. Esta seria definida
por Agnes Heller como a “vida de todo homem” (2008, p. 31), não sendo possível a ninguém
desligar-se inteiramente da cotidianidade. Segundo a referida autora,
A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na
vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua
personalidade. Nela, colocam-se em funcionamento todos os seus sentidos,
todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus
sentimentos, paixões, idéias, ideologias (HELLER, 2008, p.31).
Esta vida cotidiana é bastante ampla, sendo composta por uma série de subdivisões.
Para Heller (2008): “São partes orgânicas da vida cotidiana: a organização do trabalho e da
vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a
purificação” (2008, p. 32). Segundo esta autora, as pessoas já nascem inseridas em sua
29
Sobre a exploração de borracha a partir da maniçoba existe o trabalho de MARTINS, Flávio Dantas. ABC da
maniçoba: um estudo preliminar. Texto Inédito. Páginas digitadas, 2005.
32
cotidianidade e devem aprender a conviver neste ambiente onde fazem parte, a fim de adquirir
sua independência.
Abordando aspectos referentes à vida cotidiana dos habitantes de Canabrava do
Gonçalo no início do século XX necessitamos evidenciar que esse cotidiano foi marcado pela
dependência das condições da natureza. À grande maioria da população, formada por
trabalhadores rurais, cabia desenvolver estratégias para conviver com o risco iminente da seca.
Algumas vezes, quando ela alcançava proporções alarmantes era necessário migrar e exercer
outras atividades, que não as da agricultura e da pecuária a que estavam acostumados, como
em garimpos para obter dinheiro a fim de alimentar a família. Até mesmo para as famílias
mais abastadas existiam dificuldades nesses contextos, pois inclusive para aquelas pessoas
vistas como as que tinham “mais condição”, “alicerce”, a aquisição de bens alimentícios
dependia da articulação com outros espaços mais desenvolvidos economicamente. Assim, a
situação econômica contribuía em grande parte na definição da vida cotidiana de cada um.
Aliado a isso, a condição social definia o lugar ocupado por cada indivíduo nessa
sociedade, por isso é necessário acrescentarmos mais dois aspectos, tão importantes quanto
este já citado, que se associam à origem e à etnia a que cada um pertence. Em estudo
realizado sobre a mesma sociedade enfocada neste trabalho, na década de 1950, Taiane
Martins faz a seguinte afirmação sobre o conflito existente nesta comunidade entre os
“nativos” e os “de fora”:
Ter sangue dos “Machado” era um sinal de status, sobretudo, se fosse um
“sangue puro”. Isso facilitava o arranjo de casamentos favoráveis do ponto
de vista financeiro e a cooperação entre pequenos proprietários do núcleo
familiar. Um “forasteiro”, todavia, além de contar com a desconfiança da
população “canabrabense”, se não fosse um agregado, carecia de proteção
desta em caso de envolvimento em “baruios” – conflitos, violência, etc. – e
se o opositor fosse um “nativo”, o “invasor” ganhava a família inteira por
adversária. Em muitos casos, era preferível ser um pobre “da terra” do que
um proprietário “de fora” (2008, p. 25-26).
Posteriormente, a mesma autora discute a importância da questão étnica na definição
do status dos indivíduos,
Ser “nego” ou não ser pode favorecer ou complicar casamentos, compras de
terras e estabelecimento de moradia de forasteiros nas terras de Uibaí. Os
considerados “brancos” tinham seu acesso facilitado e, na maioria das vezes,
preferencial para se estabelecerem na terra, associações conjugais ou
empregos de temporadas maiores como o de vaqueiro ou até mesmo se
tornar um agregado. Havia ainda a crença de que os negros deveriam receber
as atividades mais pesadas para realizar (MARTINS, 2008, p. 26).
33
O aspecto social estava intrinsecamente relacionado à condição de origem e etnia,
contribuindo na definição das experiências vivenciadas pelos moradores da Vila de Canabrava
do Gonçalo. Para além da condição social definindo as experiências destes sujeitos, no que se
refere à sua economia, esta vila estava ligada economicamente à cidade de Xique-Xique e
muitos dos produtos necessários à sobrevivência dos seus moradores, que não eram lá
produzidos, eram carregados por tropas da beira do rio São Francisco e de outras regiões, para
serem vendidos na pequena feira local, para abastecer os habitantes da caatinga. Sendo assim,
A auto-suficiência era a marca da economia regional. Os homens que deram
início à ocupação populacional deste recanto do país, produziam,
praticamente tudo quanto necessitavam para o consumo. Plantavam milho,
feijão, mandioca e algodão; criavam vacas, cabras, porcos e galinhas. A mãe
natureza, generosa como sempre, oferecia-lhes a complementação pela caça
de pequenos e médios animais e pelo nutritivo mel das abelhas nativas
(ROCHA; MACHADO, 1988, p. 51).
Dentre os produtos mais consumidos de outros mercados estavam aqueles cuja
produção os catingueiros não dominavam como o sal 30 e outros produtos vendidos pelos
comerciantes da localidade em suas lojas, “sobretudo, de tecidos baratos, ferramentas, armas e
munições; querosene, remédios, fósforos e algumas bebidas” (ROCHA; MACHADO, 1988, p.
59). Todavia, quando as intempéries climáticas atingiam mais profundamente a produção
agrícola, era necessário que recorressem também a Xique-Xique, para se abastecerem dos
gêneros alimentícios que tivessem a sua produção interna afetada pela seca, como ocorreu em
1932, principalmente no caso de farinha, pois muitos habitantes encontraram dificuldades de
abastecer deste produto as suas dispensas, devido à seca que devastava as suas produções
havia alguns anos. Para os mais abastados, era possível buscar neste mercado o abastecimento
deste produto.
Canabrava do Gonçalo estava cravada em um território inserido na região
institucionalizada como polígono das secas, assim classificada devido ao acontecimento de
constantes estiagens, apesar de apresentar características que a diferenciava de vários outros
lugares em aspectos associados às possibilidades de obtenção de água, pois dispunha de
alguns riachos que privilegiavam os moradores das localidades mais próximas. Ainda assim, a
ocorrência de secas periódicas afetava constantemente o cotidiano de muitos dos seus
30
Sobre a realidade de Xique-Xique no século XIX, Elisangela Ferreira afirma que, “da província mineira
vinham pelo rio São Francisco o café, o açúcar e a rapadura, únicos artigos que necessitavam ser “importados”
em meados do século XIX para o consumo dos moradores de Xique-Xique [...]”. Quanto ao sal, era muito
produzido na localidade, sendo a posse de salinas um dos principais bens inventariados nessa época. In:
FERREIRA, Elisangela Oliveira. Op. Cit., p. 120.
34
moradores, contribuindo para o desenvolvimento de novas estratégias para o seu modo de
vida, levando em consideração tais fenômenos.
Outro aspecto relevante que influenciava o modo de vida dessas pessoas, independente
da situação econômica, era a situação de isolamento em que viviam, com relação aos poderes
públicos instituídos. Apesar de Canabrava possuir um representante político, Marinho
Carvalho31, constantemente em contato com as pessoas mais influentes de Xique-Xique, não
podemos considerar que esse fator tenha contribuído para diminuir esse isolamento, já que a
própria cidade de Xique-Xique vivia de certa forma, sem um contato mais aproximado com a
capital do Estado. Em vista disso, apontamos a contribuição de Wilson Lins ao tratar do
isolamento em que viviam os habitantes de longínquas regiões, com relação à capital do
Estado - Salvador, destacando que,
O sertanejo está inteiramente absorvido pela idéia do município. O Estado,
para ele, é uma abstração. O sentido de baianidade, tão altamente
considerado pelos políticos da Capital, não tem nenhuma significação para o
ribeirinho de Casa Nova, Carinhanha, Pilão Arcado e demais localidades
baianas da ribeira” (1983, p. 82).
Esta observação pode ser ampliada para regiões distantes das ribeirinhas, mas que
mantêm com elas uma relação mais direta do que com a capital do Estado. Essa ligação fica
evidenciada em situações mais extremas de fome ocasionadas pelas secas que levavam vários
grupos a procurar os peixes da Ipueira32 de Xique-Xique para sobreviver, pois esses peixes já
eram utilizados na alimentação dos ribeirinhos desde quando a região foi ocupada. Assim, de
acordo com Silva,
As águas piscosas da Ipueira de Xique-Xique, farão com que pescadores ali
vão puxar suas rêdes. Os primeiros moradores da região tinham suas casas
na Ilha do Miradouro, e somente penetravam na Ipueira de Xique-Xique em
suas pescarias (SILVA, 1955, p. 20).
A cidade já estava consolidada enquanto centro econômico regional, quando os peixes
da referida Ipueira serviram de sustento para catingueiros que tentavam sobreviver às agruras
da seca de 1932.
Os caatingueiros constituem apenas uma parcela da população que compõe o vale do
rio São Francisco, considerando a diversidade existente, e são eles os principais atingidos
31
Um dos mais influentes representantes políticos de Canabrava do Gonçalo, foi também correspondente de
jornais que circularam na cidade de Xique-Xique, entre 1931 e 1932, sendo homenageado com a utilização de
seu nome para denominar uma das mais tradicionais praças da atual cidade de Uibaí.
32
Denominação utilizada para caracterizar um braço do rio São Francisco que banha a cidade de Xique-Xique, já
que esta cidade não é cortada diretamente pelo citado rio, mas se aproveita dos seus benefícios.
35
pelas secas e os primeiros a se retirarem, em busca de possibilidades de sobrevivência, para
poder retornar a seu lugar quando a seca tiver sido amenizada. Essa diversidade foi observada
no espaço da região do vale do rio São Francisco e descrita da seguinte forma:
A caatinga como disse Morais Rego, cobre as regiões do baixo e médio vale,
em que se verifica o fenômeno das secas. Já os brejos formam esparsos oásis
verdes dentro do mundo seco da caatinga, nas zonas interiores, longe das
margens. Os habitantes das três zonas, vazante, caatinga e brejo, são
conhecidos respectivamente como beiradeiros, caatingueiros e brejeiros
(LINS, 1983, p. 106).
Considerando a diversidade regional, Canabrava do Gonçalo se localizava na região da
caatinga, mas também conta com uma diversidade de espaços própria. A sede da vila se
desenvolveu ao pé de uma serra rica em riachos, ao longo dos quais foram sendo
estabelecidos brejos que proporcionavam uma diminuição das dificuldades de obtenção de
alimentos, pois nesses brejos e nos baixões que se seguiam foram plantados inúmeros
produtos, o principal deles talvez tenha sido a batata que serviu para saciar a fome de muitos
na seca de 1932. Nos locais mais afastados dos riachos, as povoações que se desenvolveram
logo depois, privilegiaram a existência de quaisquer reservatórios que captassem e
acumulassem as águas despejadas pelas chuvas, ao menos por um período do ano, posterior às
chuvas, como cacimbas33, caldeirões e lagoas, como observamos na Foto 1.
Apresentaremos uma descrição da sede da Vila feita nos anos 50 do século XX,
quando já havia recebido o nome de Uibaí, permitindo uma visualização, mesmo superficial,
do que constituía a vila e a disposição das casas ao longo do riacho, pois acreditamos que a
mesma não tenha sofrido grandes modificações, a não ser no número de pessoas do ano de
1932 para os vinte anos seguintes, quando foi descrita da seguinte forma:
Uibaí, encostada na serra, e cortada pelo riacho do mesmo nome, é sem
dúvida a mais pitoresca das vilas de Xique-Xique. Sua população é de mil
almas (999 pelo censo de 1950), mas o distrito, que é pequeno, conta com a
maior densidade demográfica de todo o Município. O solo é marcado pela
mesma terra vermelha, símbolo da fertilidade agrícola; as casas, na grande
maioria, caiadas ou pintadas com afrescos de um artista local, são cobertas
de telha ao menos na rua principal que acompanha paralelamente a margem
esquerda do riacho Uibaí. A vila se espraia para o Norte, onde as casas
comerciais se concentram ao redor de uma pequena praça (Foto 2), local
também da feira semanal (SILVA, 1955, p. 30).
33
As cacimbas são minadores naturais de água, mas necessitam das chuvas para que sua água seja mais
abundante. Quanto aos caldeirões e lagoas dependem exclusivamente da ocorrência de chuvas para serem
abastecidos.
36
A Vila de Canabrava do Gonçalo, posteriormente vila de Uibaí, é apresentada como “a
mais pitoresca das vilas de Xique-Xique”, sendo possível notarmos o estabelecimento de uma
relação campo e cidade, discutida por Raymond Williams (1989), que apresenta estes espaços
como sendo distintos. “O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz,
inocência e virtudes simples. À cidade associou-se a ideia de centro de realizações – de saber,
comunicações, luz” (WILLIAMS, 1989, p. 11). Para além da fertilidade do solo, bastante
importante tendo em vista que, “a cidade se alimenta do que o campo produz” (WILLIAMS,
1989, p. 75), o pitoresco atribuído à Vila devia-se, justamente à aproximação da realidade
desta com o que era considerado ideal na cidade de Xique-Xique: “a maior densidade
demográfica”, as casas “caiadas ou pintadas com afrescos” e “cobertas de telha”.
Foto 1: Lagoa e caldeirões do Meio da Rua no povoado do Caldeirão, município de Uibaí (Fotografia
de Daiane Dantas Martins, em 28/11/2009).
Para os moradores das partes mais úmidas da vila as dificuldades de abastecimento de
água eram amenizadas, já que, além do número de pessoas ser pequeno, a abundância de água
decorria do número de riachos, que apesar de serem intermitentes davam conta de abastecer a
sede da Vila. Em contrapartida, a luta pela água e pelos alimentos nas zonas mais afastadas
dos aquíferos era mais complicada, pois havia a necessidade de se percorrer vários
37
quilômetros de distância para encontrar água para as atividades diárias de beber, cozinhar,
lavar utensílios, e matar a sede dos animais34.
Foto 2: Praça Marinho de Carvalho, município de Uibaí nos anos 1960 (Autor desconhecido).
Os moradores de Caldeirão, localidade que não tinha o privilégio de possuir nenhum
riacho, dispondo apenas de reservatórios naturais, chamados de caldeirões, que acumulavam
água da chuva e secavam logo que chegasse o estio, recorriam ao baixão da comunidade de
Lagoinha, distante alguns quilômetros, a fim de obter água. Esta atividade de buscar água, ao
menos nas famílias mais pobres, era desempenhada por meninos que, às vezes, se distraiam
no caminho e se demoravam, quando isso acontecia era necessário esperar pelos minadores
para obter um pouco de água, como foi relembrado pelo Senhor João:
Depois que eu já tava grandinho todo dia nós ia buscar uma carga de água
sabe aonde? No Baixão da Lagoinha. Quando nós demorava lá, minha mãe
perdia a paciência, pegava uma cabacinha e ia na Gia rapar uma cabacinha
de água lá nos tanque do Véio Romão que nesse tempo, água rapada aqui era
ne todo lugar, já daí pra cá..., minava, mas já era pouquinha, logo aí nesse
tempo tinha era meio mundo de criação de gado, de jumento, de égua e de
bode, de tudo. Essa água era pouquinha. Veis que ela chegava da Gia
primeiro que nós ainda, que nós ia panhar lá na Lagoinha, pra cozinhar, água
salobra, a água da Lagoinha é salobra, que não é bem doce, pra cozinhar. E
banhar, se banhava quage quando enchia as lagoa, de seis em seis mês, que
não tinha água. Umas vez os menino ia lá pro Peixe, eu mesmo nunca fui
34
Sobre a importância da existência de água em propriedades nesta localidade, MARTINS afirma: “Os
reservatórios de água, naturais ou construídos, adicionam um valor bem maior às propriedades que os integram e
mesmo quando em áreas públicas possuem proprietários”. In: MARTINS, Taiane Dantas. Viver pra parir,
labutar pra não morrer: cotidiano de trabalhadoras rurais no sertão baiano. Vila de Uibaí, Xique-Xique, 19501960. (Monografia de Especialização). UNEB, 2008, p. 45.
38
não, mas eles ia pro Peixe, chegava aqui tava do mesmo jeito ou pior
(Depoimento de João Dantas de Carvalho, em 19 de julho de 2009).
A lavagem de roupas, atividade realizada geralmente pelas mulheres, ocorria nas
fontes em cima da serra, sendo a Fonte Grande35 muito procurada, além de outros riachos
existentes ao longo da serra36. Elas iam, muitas vezes, sozinhas como a mãe do Senhor João.
Este nos relata que,
Minha mãe saía daqui de pé, ia lavar na Fonte Grande. [...] depois com o
tempo meu pai arrumou um cavalo e ela ia de cavalo, mas a maior parte do
tempo até nós ficar grandão, rapaz, ela ia de pé. Vez em quando a coisa
apertava muito, meu pai metia a cara já o sol dentro e ia encontrar ela lá pela
ladeira grande, pela casa de Antonio de Cadete que ela vinha pra cá, já de
noite (Depoimento de João Dantas de Carvalho, em 19 de julho de 2009).
Apesar de ser comum que mulheres fossem sozinhas lavar roupas nas fontes, elas
também iam acompanhadas por outras mulheres que desempenhariam a mesma função ou, até
mesmo, por crianças que também poderiam ajudar na execução do serviço. Não era raro que
algumas delas realizassem esse tipo de trabalho para as famílias mais abastadas e recebessem
um pagamento por esse serviço. Um exemplo disso foi a lavadeira que, ao longo de anos,
prestou serviços à família de Dona Olga, que relembra com emoção as idas à Fonte Grande
em sua companhia e diz:
Eu fui muito na Fonte Grande, conhecia ela como as palmas das mãos, mas
tu sabe mais quem eu ia? Mais Mariinha, a filha do finado José Félix, que eu
falei. Eu me entendi ela lavando roupa pra minha mãe. Eu casei e peguei ela
pra lavar a minha roupa. Tu sabe como é que eu fazia pra ela? Eu comprava
o pano, fazia um vestido enfeitava a coisa mais linda de sianinha pra levar lá,
quando ela via ah esse deu comigo. E vai pagar em lavagem de roupa, pra
mim. Mas ela morreu. Eu senti tanta falta porque eu gostava tanto dela
porque ela era uma moça velha, mas uma moça velha de um caráter
(Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de março de 2009).
As roupas não deviam ser muitas, pois elas eram, em sua maioria, confeccionadas
rusticamente pelos artesãos do próprio lugar, principalmente por aquelas pessoas mais pobres.
35
A Fonte Grande era um espaço localizado nas proximidades da sede da vila utilizado por mulheres para
realizarem as lavagens de roupa tanto de sua família, quanto para outras pessoas em troca de pagamento pelo
serviço. Além de ser um espaço utilizado para a realização de um trabalho, era também um lugar onde se
estabeleciam sociabilidades entre essas mulheres. Conforme Ferreira Filho, ao tratar de Salvador, “um lugar de
múltiplas sociabilidades, nas fontes as lavadeiras iniciavam suas filhas menores no ofício; amizades e
compadrios se estabeleciam, bem como brigas e querelas diversas ali tinham lugar”. In: FERREIRA FILHO,
Alberto Heráclito. Salvador das mulheres: condição feminina e cotidiano popular na Belle Époque imperfeita.
Dissertação (Mestrado em História). Pós-Graduação em História. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 1994, p. 56.
36
A senhora Zelita Ribeiro da Silva relatou uma experiência sua quando lavava roupas no Riacho do Meio no
livro de PAIVA, Pita. Um conto de cada canto. Apresentação Edimário Oliveira Machado, Taiane Dantas
Martins e Celito Regmendes. 1ª Ed. Irecê: Gráfica Iagrapel, 2009.
39
A ocasião de ir à fonte lavar roupas era aproveitada pelas pessoas que moravam nos locais
mais secos para tomar o seu banho semanal. Aqueles que não tinham o hábito de ir aos
riachos da serra tomar banho poderiam demorar até a próxima chuva para se lavar, dada a
dificuldade de encontrar água para usar nessa atividade.
Nesta mesma localidade, a criação de animais cabia principalmente às famílias mais
abastadas, e se dava com os animais soltos pelas caatingas. Esses animais só eram recolhidos
ao final do dia para saciar a sede onde tivesse água mais próxima. Criavam, principalmente, o
gado bovino, algumas cabeças para produção de leite e derivados como coalhada, requeijão
para consumo familiar; ovelhas e carneiros, em número mais extenso; e cabras e bodes, esses
com uma grande vantagem por sua resistência aos períodos de estiagem e seca, pois quando
muito intensos, ocasionavam a morte de rebanhos inteiros e provocavam inclusive a falência
financeira de famílias de criadores.
A atividade da criação de gado contribuía para que a carne tivesse um baixo custo,
sobretudo em períodos de escassez. Era preferível matar o gado e vender a carne barata do
que vê-lo morrer de fome.
A carne, essa era barata porque o gado, tinha muito gado e era, às vezes
tinha uns que se não ficava muito magro, aí eles matavam e vendiam.
Vendiam quase de graça que era muito barato, mas se não matasse pra
vender, amanhã morria de fome que não tinha pasto nesses campo. Naquele
tempo o povo criava aí avulso, ninguém plantava uma cova de capim. O
povo não dava..., quando produzia milho, o povo que era criador não dava
milho a gado porque diz que o gado empanturrava, inchava, tinha vez que
perdia gado e perdia o milho. Criava solto, não tinha roça não pra prender, o
gado era aí, solto (Depoimento de Sinobilino Sancho Paiva, em 02 de abril
de 2009).
A posse de animais proporcionava certo prestígio para a família, tanto que uma tropa
de burros poderia representar o auge de riqueza para alguém, como afirma o Senhor
Sinobilino:
Naquele tempo era muito difícil porque não tinha transporte, não tinha carro,
nesse tempo não tinha carro, nem estrada, era, trabalhava quem tinha um
certo recurso comprava os burro pra transportar, pra viajar pra Xique-Xique,
lá ne Jacobina, pra essas banda das Matas carregando a farinha, lá é mata e
certo é que o cara quando tinha uma condição melhor, ele não tinha carro e
tinha de viver da estrada, então ele comprava uns burro (Depoimento de
Sinobilino Sancho Paiva, em 02 de abril de 2009).
Esses animais eram fundamentais para a garantia do abastecimento da região, pois até
a chegada do caminhão e a abertura de estradas, eram eles que transportavam os bens a serem
comercializados nas feiras das regiões mais afastadas do rio do São Francisco, além das
40
pessoas, pois essas regiões não dispunham do transporte fluvial e usufruíam desse meio de
transporte que, muitas vezes, percorria longos e estreitos caminhos para transportar essas
mercadorias como relatou Dona Josefa Machado, ao lembrar-se das dificuldades dos tempos
de outrora:
Tudo na vida quanto fosse que você pensasse tudo era difícil. Nada, não
tinha fácil. Água não, a água daqui era muito salgada, mas tinha, mas aqui
nuns lugares daqui de perto não tinha, vinham beber aqui na Baixa Verde37
porque não tinha água. No Presidente38 não tinha água, vinha carregar daqui
da Baixa Verde nos lombo dos jumento. Era uma vida difícil, cansada e os
burro é quem carregava a sobrevivência do povo pra fora, que levava e trazia,
levava pra Jacobina, lá em Jacobina vendiam mamona, vendiam couro,
qualquer tipo de couro, de gado, de bode, de caititu, de peba, qualquer tipo
de couro levava pra Jacobina e vendia (Depoimento de Josefa Machado, em
08 de abril de 2009).
A memória é seletiva e a desta depoente selecionou o que para ela foi a principal
preocupação da população naquela época, a falta de água e a precariedade dos meios de
transporte que resultavam numa “vida cansada”. Essa “vida dura”, principalmente para as
famílias mais pobres, não tornava as pessoas passivas ao sofrimento, mas as ensinava como
lidar com a natureza e a dominá-la. Sobre essa resistência Lins (1983) afirma:
O povo da caatinga é mais resistente ao sofrimento. Na caatinga não há o
peixe fácil nem a água ao alcance da mão. A água do caatingueiro é presa e
de cacimba. Nos estios mais longos, o gado morre de sede a apenas seis ou
oito léguas do maior rio brasileiro. No entanto, ele não desanima. Espera a
chuva chegar, e, se a chuva não chega, ainda continua esperando mais um
pouco (1983, p. 107).
Contudo, essa espera não era infinita, sendo comum a retirada de algumas famílias
para outras áreas em busca de melhores condições de sobrevivência até as próximas chuvas
começarem a cair. As chuvas poderiam não vir no momento esperado do ano seguinte,
prolongando assim a expectativa, tendo em vista que a natureza e o tempo têm um ciclo para
os moradores da região. Este ciclo divide o ano em seca e verde, abdicando da classificação
comum em outras áreas, de verão e inverno. Essa divisão foi explicada da seguinte forma:
É seis mês de seca e seis mês de nome de verde, que só tem o nome. A
diferença de um pra outro é que nos mês da seca é só essa nuvem mole
correndo aí e o sole. E a diferença do verde é que o sole é mais quente e os
dia é quage que é maior. O verde começa em outubro, é outubro, novembro,
dezembro, janeiro, fevereiro e março, seis mês de verde, de nome de verde e
37
38
Atualmente corresponde a uma localidade da área rural do município de Presidente Dutra.
Refere-se ao que hoje corresponde à cidade de Presidente Dutra.
41
seis mês de seca, quer dizer que é quase tudo os doze mês, mas tem essa
diferença que no verde quando corre essa nuvem assim é porque a chuva
estiou, chove, chove, depois quando a chuva para, que corre essa nuvem
assim, estiou, mas depois com pouco tempo torna mudar o tempo traveis,
esquentar e fazer mormaço, fazer nuvem de chuva. E a seca o rojão é esse aí
(Depoimento de João Dantas de Carvalho, em 19 de julho de 2009).
Essa fala revela a sua insatisfação com o contexto em que a entrevista ocorreu,
marcado pelo predomínio da “seca” e nos remete ao que é discutido por autores que trabalham
com memória e enfatizam a relação estabelecida entre o passado e o presente no relato oral,
ou seja, a constante reelaboração da memória, pois “o sujeito social, ao relatar o passado no
presente, elabora um passado composto pela contemporaneidade, pelo diálogo que estabelece
com a sociedade na qual está inserido e na forma como se insere” (MAUAD, 2001, p. 165).
Assim, a insatisfação com a época de “seca” em que ocorreu a entrevista, influenciou, de certa
forma, suas lembranças da seca de 1932. Essa relação permeou vários momentos na entrevista
e se fez presente também no momento em que ele explicou as mudanças que ocorrem do
“verde” para a “seca”. Para ele,
Muda muito. Porque no verde quando chove até bem, não falta emprego
porque não falta capina, não falta planta, porque aqui é assim: de primeiro,
ne meu tempo, quando nós era menino só plantava uma vez, se fosse no pó
era em outubro, outubro a novembro, plantava no pó, nascia, nascia, crescia,
crescia, crescia, quando desesperava era tempo que penduou, não bonecou e
aí ninguém plantava mais. E a diferença da seca é que a seca não tem
trabalho, se deu o milho tem o milho pra aproveitar e a mamona. Nesse
tempo não tinha mamona e hoje já tem essa diferença porque tem a mamona,
quando chove no fim, a seca toda tem mamona e tem a cana e tem a
mandioca e agora apiorou porque mudou em tudo porque não tem chuva,
nem mamona, nem cana, nem nada. [...] Nesse tempo era o tempo que tinha
a cana, a mandioca e era a seca toda arrancando mandioca e moendo cana e
agora não tem mais nada, não tem chuva, as cana não cresce e num tempo
desse tá quage tudo parado (Depoimento de João Dantas de Carvalho, em 19
de julho de 2009).
Essa divisão do tempo evidencia uma organização própria para conhecerem melhor os
caprichos da natureza e organizarem a sua economia. Ela define as tarefas que devem ser
desenvolvidas na “seca” e no “verde”, nos remetendo à “orientação pelas tarefas” analisada
por Thompson (1999), no contexto inglês. Portanto, a realização do trabalho estava sujeita à
época do ano, pois ela direcionava a efetivação da tarefa.
No verde aproveitava-se o que estava sendo produzido, eram incluídos na sua dieta
maxixe, abóbora e melancia que começavam a produzir tão logo as primeiras chuvas caíssem,
portanto, mais rapidamente do que o milho ou mesmo o feijão de corda. Quando as chuvas
paravam de cair e as colheitas dos produtos cultivados no verde tinham sido concluídas, este
42
era o momento para se preparar as atividades desenvolvidas na seca, como a arranca da
mandioca e o seu processamento nas casas de farinha (Foto 3), produzindo um pouco de
farinha39, de tapioca40 e de farinha de bôrra41.
Foto 3: Casa de farinha no povoado de Caldeirão de Uibaí em 1978 (Fotógrafo desconhecido, Acervo
Digital de Taiane Dantas Martins)
Nas casas de farinha, o processo de fabricação de farinha e de tapioca se dava, mais ou
menos da forma que foi descrita por SILVA (1955):
A primeira operação, depois que a mandioca se acha empilhada no interior
da oficina, protegida assim contra os animais, é o descascamento. O trabalho
é feito manualmente, com o auxílio de facas de cozinha. [...] os raspadores
de mandioca, em geral mulheres, sentam-se sôbre esteiras no chão ou, às
vezes, em bancos de madeira. [...]
Após descascadas, as raízes são lavadas e levadas ao moinho. [...]
Após ser a mandioca ralada no moinho e recolhida no cocho, inicia-se o
preparo da tapioca. Consiste em espremer a massa ralada em gamelas de
madeira inteiriças. [...] extrai-se assim o sumo da mandioca que é deixado ao
relento, até que o polvilho se deposite no fundo. [...]
Depois de espremida para a obtenção da tapioca, a massa da mandioca é
conduzida a uma prensa de madeira, para ser libertada do suco venenoso. [...]
39
Alimento básico para a população, era produzida após a massa da mandioca ralada, ser torrada no fogo.
Amido obtido com a lavagem da massa da mandioca ralada, utilizado no preparo de biscoitos, beijus e
brevidades.
41
Farinha mais grosseira feita com a bôrra obtida também da mandioca, comida geralmente com a adição de
leite.
40
43
Após submetida à prensa, a massa da mandioca é considerada “enxuta”.
Deve ainda porém ser submetida à torração, o que é feito numa plataforma
de argila, construída sôbre um fôrno de lenha, cujas bocas dão para a parte
externa da casa, protegendo o recinto contra a fumaça e facilitando a
operação de revirar a farinha (1955, p. 104-105).
Os proprietários que possuíssem plantação de cana em suas propriedades deslocariam
a sua atenção para os engenhos. Nesses engenhos (Fotos 4 e 5) eram fabricadas as rapaduras,
utilizadas para adoçar os alimentos, fabricar doces e ser comida in natura; também era
fabricado o mel, melaço muito apreciado na culinária local.
Existiam diferenças consideráveis no modo de vida dos moradores de Canabrava do
Gonçalo, dependendo, dentre outros fatores, da situação econômica em que a família se
encontrava. Essa diferença ficou latente a partir das memórias de vários dos depoentes, sendo
os mesmos, crianças na época em foco. Suas memórias evidenciaram as diferenças que
permeavam o cotidiano dos vários grupos, a maioria se constituindo de trabalhadores rurais.
Foto 4: Engenho de Luis, localizado no povoado de Grama de Uibaí (Fotografia tirada por Dod Alves, em
31/08/2002)
44
Foto 5: Engenho de Luis, localizado no povoado de Grama de Uibaí (Fotografia tirada por Dod Alves, em
31/08/2002)
Selecionamos, pois, dois casos extremos: o de um morador da zona mais afastada da
sede da vila, pertencente à camada mais pobre e o de uma moradora da sede, que fazia parte
da elite da época. Seus relatos permitiram observar as diferenças no cotidiano de crianças, a
depender de aspectos como o local de residência e a situação econômica. Era comum crianças
pertencentes às camadas subalternas, desenvolverem algum tipo de trabalho. Um dos
entrevistados, pertencente a uma família de não proprietários de terra, relatou as atividades
laborativas desenvolvidas por ele desde os oito anos de idade:
Moço, eu quando comecei a trabalhar, era tangendo boi em roda do engenho.
[...] levantava duas da manhã, botava os boi no engenho, dois moedor, um
dum lado, outro do outro. O engenho era pequeno, de três moenda e eu
rodando atrás desses boi. Quando era quatro hora da tarde, tirava os boi do
engenho e tocava e ia dar água lá no Baixão da Lagoinha. E aí depois,
quando eu fiquei maiorzinho, talvez com uns quinze anos era trabalhando
pra ganhar o pão mais meu pai e Valdemar e Jairo, pra ganhar o pão, pra não
morrer de fome. [...] Na roça capinando pra um, plantando pra outro e o
rojão era esse (Depoimento de João Dantas de Carvalho, em 19 de julho de
2009).
A fala revela a condição social42 determinando o tipo de experiência vivenciada pela
família não proprietária, que até tornar-se proprietária se submeteu à prestação de serviços em
42
Uma discussão sobre esta temática pode ser encontrada em MARTINS, Taiane Dantas. Op. Cit., 2008.
Especificamente, no Primeiro Capítulo.
45
terras alheias “pra ganhar o pão”, sendo esta a forma encontrada pelos mais pobres, para
adquirir o que fosse necessário à sua sobrevivência, bem como acumular alguma reserva que
lhes permitisse, após alguns anos, se tornarem proprietários e trabalharem para si mesmos. O
mesmo entrevistado evidenciou o momento em que seu pai teria comprado as primeiras terras:
“A terra que meu pai arrumou foi essa aqui do caldeirão, mas nós já era grandinho. A primeira
roça que ele botou aí nós já era uns rapaizinho. Era trabalhando pra ganhar o pão”
(Depoimento de João Dantas de Carvalho, em 19 de julho de 2009).
Já as pessoas pertencentes às camadas mais elitizadas tinham um cotidiano
diferenciado, principalmente se tratando de mulheres, pois o mesmo era voltado para o
desenvolvimento de atividades no espaço privado, o espaço rural apenas se destinava a visitas
periódicas43:
Eu ia ne roça porque meu pai tinha fazenda no Sobreira, tinha uma casa
muito boa. Inda hoje tem, quem passa por eu, eu pergunto... Tinha um tio
meu que era irmão de tio Quinco, era tio, chamava Antonio, morava pra lá,
no Sobreira44. Tinha muito gado, bode, tinha roça enorme, plantava algodão.
Minha vó tinha muita coisa assim, isso eu ainda lembro porque a gente ia pra
lá passar assim um dia pra outro a gente ia, ele deixava a gente ir, pra casa de
tio Antonio, eu ia muito (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de
março de 2009).
Esta depoente nos mostra o lugar de proprietários ocupado pelos seus familiares,
desenvolvendo atividades de criação e plantação que permitiam à família ostentar o poder de
ser uma das famílias mais tradicionais da localidade. Ela se queixa, inclusive, da rigidez de
seu pai:
Agora eu vou te dizer, a casa era cheia, mas tu pensa que nós ia brincar? [...]
Meu pai num deixava. Filho dele pra vagabundar, nunca. Quando chegava
cinco horas, botava uma cadeira na porta, quem ousava travessar pra brincar
na rua? Nenhum. [...] Tu sabe o que é que ele dizia? Entra pra dentro, pegue
o livro e vai estudar. Quem é que desobedecia? Não tinha. Todo mundo tinha
medo (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de março de 2009).
Ela considerou também, que a rigidez com que o pai a criou interferiu nas suas
memórias, já que não pôde vivenciar de uma forma mais intensa o movimento da rua, e
lamenta:
43
Devemos considerar que havia mulheres que moravam em fazendas e faziam o percurso inverso ao citado pela
depoente.
44
Distante da sede da vila de Canabrava do Gonçalo cerca de 4 Km.
46
Se tu achasse uma pessoa omeno dois anos ou três anos mais velha do que eu.
Porque olha, mesmo que eu quisesse lembrar, a idade até que já dava, mas
menino não liga, liga? Eu com doze anos e um pai que era rígido com a
gente ali pra não viver na rua. [...] já se eu saísse eu tinha visto muita coisa,
mas não deixavam” (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de março
de 2009).
A rigidez na criação dos filhos não é uma característica pertinente apenas aos líderes
das famílias mais abastadas de Canabrava do Gonçalo. Ela pode ser estendida às famílias das
camadas mais pobres. Com a ressalva acerca da presença de uma diferença quanto ao fato de
ser mais comum o domínio do espaço público por crianças das camadas menos favorecidas,
tendo em vista a necessidade de utilizá-lo para a sua sobrevivência através da realização de
trabalhos remunerados.
Outro aspecto foi observado com relação ao desenvolvimento de algumas atividades
por determinados grupos da sociedade. Principalmente trabalhos manuais como tecer, costurar,
lavar roupas, entre outros, deveriam ser desenvolvidos pelas mulheres, preferencialmente,
pertencentes aos grupos mais pobres, talvez sob influência de ideias disseminadas no período
da escravidão, quando os mesmos eram desenvolvidos pelos subalternos, especialmente as
pessoas negras. Em vista disso, Taiane Martins, ao tratar da influência étnica nas relações
sociais nesta mesma localidade, observou o seguinte:
Havia ainda a crença de que os negros deveriam receber as atividades mais
pesadas para realizar. Isto estava tão impregnado na sociedade local que uma
trabalhadora destaca que, na sua infância, por ela ser a única negra da casa,
lhe era atribuída a realização das tarefas mais pesadas como o transporte de
cana e a colocação desta na moenda do engenho do pai. Ela diz: “moer era
eu, trabalho mais pesado, eu era mais preta, tinha o sague mais forte, tinha
que pegar (risos)” (2008, p. 26).
Percebemos, então, resquícios do período escravista contribuindo para arraigar um
preconceito velado, onde o próprio oprimido reconhece a sua condição de subalternizado,
justificado no caso acima, pela força superior do sangue negro. Não era raro que pessoas das
camadas mais abastadas impedissem o contato dos seus com pessoas que desenvolvessem
trabalhos artesanais. Uma das entrevistadas, que pertencia a uma das famílias que pode ser
considerada pertencente à elite local, afirmou: “Pra ir na casa de Mônica45 eu saia escapulida
pra mim ver Mônica tecer. Êta mas tu queria saber, Mônica, ela morreu moça velha”
(Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de março de 2009).
45
Refere-se a uma das mais famosas tecelãs de Canabrava do Gonçalo na época.
47
Ao longo de toda a entrevista esta depoente deixou transparecer o seu desejo de ter
aprendido a tecer e sua paixão pela costura, ao afirmar o seguinte:
Eu cansei de sair escondida daí, pedia a minha mãe pra ir lá na casa do
finado Chicão, pra mim ver Mônica tecendo que eu achava era bonito, eu
tinha era vontade de ver. Ô Mônica, me dá chô tecer, porque fazia assim com
o pé e puxava com o pé (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de
março de 2009).
Nesse momento da entrevista, a depoente demonstrou uma imensa satisfação ao
relembrar esses momentos de “escapulidas” para admirar um trabalho manual, pouco
valorizado por seu pai e lamentou por não ter sido permitido a ela aprender tal arte: “Minha
filha, eu era menina e eles não iam me deixar” (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de
março de 2009). Apesar de sua admiração por esse tipo de trabalho, ela foi “preparada” para
ocupar um cargo público, tendo se aposentado como escrivã do cartório local.
É latente, portanto, a existência de uma diferença relativamente grande de
possibilidades de acesso aos bens materiais entre as famílias que tinham condições de
sobreviver, independente da presença ou não das crises de seca e, paralelamente a esse grupo,
aquelas famílias que passavam por dificuldades de abastecimento, também independente da
crise, situação que, entretanto, era agravada em decorrência da má colheita, já que não
possuíam reservas suficientes para suportar uma seca prolongada por anos, como aconteceu
em 1932. Sobre essa diferença Dona Olga aponta,
Era horrível, porque aqueles que tinham condições tinha tudo pra sobreviver
e os que não tinham condições iam tudo morrer, morrer de fome mesmo, de
fome. Eu alcancei... olha tua mãe não sabe, mas talvez tua vó sabia, eu
alcancei uma família da mesma nossa. O velho chamava José Félix e a
mulher chamava Francisca, chamava Chiquinha. Ele tinha uma prole de
filhos, e todas mulheres, só tinha dois homens Felisberto e Rogério tu sabe
duma coisa? Eram exclusivamente fazendo renda e lavando roupa pra os que
tinha mais condições de pagar, era assim fazendo renda (Depoimento de
Olga Machado Levi, em 18 de março de 2009).
Assim, mulheres das camadas intermediárias, que não exerciam o trabalho nas
lavouras, desenvolviam outras atividades que permitissem alcançar algum conforto na vida
familiar. As rendeiras, costureiras, bordadeiras e lavadeiras prestavam seus serviços para as
famílias mais abastadas. Segundo Dona Olga, não eram raras as mulheres que teciam sua
sobrevivência e, não interrompendo seus trabalhos no tear nem mesmo nas épocas de crise,
encontravam compradores para seus produtos, mesmo a preços baixos. Ela afirma que,
48
Aqui tinha o finado Chicão, tinha Mônica, que era boa tecelona. Auta de
Chico Grande que era uma boa tecelona. Aqui tinha muita é porque eu não
lembro. Vou te contar, esse povo de família que fazia essas coisa não parava,
fazendo pra aqueles que ainda tinha condições de pagar pra fazer, fazer de
como diz quase de graça (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de
março de 2009).
Muitos dos aspectos dessa vida cotidiana ressaltados no decorrer deste trabalho,
sofreram alterações, principalmente no que se refere à produção alimentícia durante a seca de
1932. Tal fato contribuiu para o aprofundamento das dificuldades diárias de sobrevivência,
especialmente tratando da população carente, pois nessa seca não houve produção
considerável, nem mesmo para os produtos colhidos e beneficiados no período anual,
denominado seca como mandioca e cana, prejudicados pela falta de chuva no período certo.
Segundo o Senhor João acabava tudo,
Acabava porque a cana só segura com chuva, a mandioca do mesmo jeito e a
mandioca quando ela tem a raizinha já meia grossa, se não chover e já tiver
uma raizinha assim e não chover no verde dela criar ela mofa, faz como cuca
de imbu, mofa e nunca mais presta, ela fófa (Depoimento de João Dantas de
Carvalho, em 19 de julho de 2009).
Dessa forma, foram muitos os prejuízos, pois praticamente todos os proprietários
plantavam esses produtos, “quage todo mundo. E nesse tempo inda era com mais essa: era ralada
era no braço, a roda era aqui assim oh, era dois rodando a roda, um dum lado, outro do outro e outra lá
relando no relador, no cevador” ( Depoimento de João Dantas de Carvalho, em 19 de julho de 2009).
Foi revelado, ainda, como ocorria o rudimentar processo de produção da farinha e de
outros derivados da mandioca, sendo destacada inclusive a divisão sexual nesse tipo de
trabalho bem como a quantidade produzida, pois
Pra ralar era os homem, quer dizer que era os homem que rodava a roda
porque precisava de muita força, os homem ralava e até mulher empurrava a
raiz e a tapioca era só mulher. Inda era com mais essa: não tirava esses
mundo como tira hoje não, era na mão, os bolo oh, tirá o quê? Por rança, é
duas cumbuca (Foto 6)46, cumbuquinha assim desse tamanho, duas, três e só.
E hoje é tunel de tapioca que tira (Depoimento de João Dantas de Carvalho,
em 19 de julho de 2009).
46
Espécie de cabaça grande, bastante utilizada na região para armazenamento, devido à escassez de outros
materiais como, por exemplo, o plástico que só se popularizou nas últimas décadas.
49
Foto 6: Cumbuca que era utilizada para a retirada da tapioca (Fotografia tirada por Daiane Dantas Martins, em
28/11/2009)
Assim, a divisão do trabalho na casa de farinha é sexual, ou seja, existe uma separação
entre as atividades desempenhadas por mulheres e homens. Cabe às mulheres praticamente
todo o processo: elas raspam a mandioca para retirar a casca, “tiram tapioca”47, escorrem a
tapioca até que fique apropriada para o consumo. Já aos homens, cabia arrancar a mandioca,
ralar e espremer na prensa para retirar o restante de água, além de mexê-la no forno para,
finalmente, fabricar a farinha. O que era produzido nas casas de farinha contribuía na
composição da dieta alimentar dos caatingueiros, rica em farinha das mais variadas formas:
“fazia a farinha de mandioca, fazia a farinha de bôrra, fazia até a farinha de tapioca também
que vocês não conhece, boa que é uma beleza, a farinha de tapioca também” (Depoimento de
João Dantas de Carvalho, em 19 de julho de 2009). Descrita como a mais saborosa delas, a
farinha de tapioca – atualmente pouco comum na região – era saboreada, juntamente com os
outros tipos, da seguinte forma:
A de tapioca você comia com leite, a de bôrra também com leite, que até
hoje é boa, e a outra era só pra comer com feijão, com carne com essas coisa
e a farinha de bôrra pra quem sofre queima não, mas pra quem não sofre, pra
comer com rapadura vige, e a de tapioca inda melhor, que a de tapioca é
muito mais saborosa, que é boa (Depoimento de João Dantas de Carvalho,
em 19 de julho de 2009).
47
Processo que permite a separação da massa (ralada) para a fabricação da farinha, do amido ou tapioca usada
para fazer beijus, biscoitos e brevidades bastante explorados pela culinária local.
50
É importante frisar que para além de ser, assim com a Fonte Grande, um espaço de
realização de trabalho, as pessoas se socializavam, pois
Farra boa era na hora de rapar a mandioca, ficava aquele rebanho de mulher
zoando, igual a um bando de papagaio, como antigamente que tinha muito
papagaio nos pés de braúna comendo as frutas. Era a mesma laúsa, era
animada a prosa, as conversas, era uma alegria sem fim (ROCHA, 2009, p.
34).
A casa de farinha, apesar de ter a presença masculina em algumas atividades, era
“dominada” pelas mulheres, que desfrutavam naquele ambiente de trabalho, de maiores
possibilidades para conversar enquanto trabalhavam. Era um espaço em que elas estabeleciam
sociabilidades, entravam em conflitos, desfrutavam de maior liberdade. Destarte, “a casa de
farinha era compreendida como um signo de ‘riqueza’” (SANTANA, 1998, p. 76), não sendo
possível a qualquer um ser proprietário de uma delas ou mesmo de engenho para a fabricação
de rapadura, tinham então de recorrer ao aluguel a quem as possuíssem.
O dono da mandioca escolhia se dava na meia ou se vinha de mudança pro
engenho, com a família, por dez ou quinze dias. Mas teve um, o finado
Moisés, da Grama, que ficou cinqüenta e três dias com a família dormindo e
vivendo no engenho enquanto trabalhava” (ROCHA, 2009, p. 34).
Notamos, portanto, o quanto a condição social influenciava no modo de vida destas
pessoas, sendo determinado pelas atividades a serem desenvolvidas, a depender do período
anual, existindo assim, “pouca separação entre o ‘trabalho’ e ‘a vida’”, mesmo porque era
bastante complicado estabelecer estes limites.
A sociedade da Vila de Canabrava do Gonçalo vivenciou suas experiências de
maneiras diversas, sendo seu cotidiano orientado, prioritariamente, pela sua condição social.
Era ela que impunha os limites que seriam experimentados pelos vários grupos que ali
conviviam e no caso da seca de 1932, esta condição social determinou os limites entre a fome
e a “fartura”, a mendicância e a doação, pois esta seca trouxe alterações profundas ao
cotidiano da maioria dos “canabrabeiros”, sobretudo os mais pobres que deixaram de
desempenhar algumas das atividades citadas acima, já que muitos deles trabalhavam no
preparo do solo, em capinas, ou mesmo na colheita em propriedades alheias. Com o
prolongamento da seca tiveram de modificar a sua maneira de viver, algumas pessoas
migraram, outras foram pedir esmolas, dentre outras formas de enfrentamento.
Outros aspectos que compõem o vasto leque de variações nas atividades da vida
cotidiana dos habitantes do sertão calcinado pela seca, como a necessidade de buscar
51
melhores condições de vida e refúgio em outros locais, além da alteração na dieta alimentar
empreendida por inúmeros flagelados, bem como a convivência dos moradores que não
emigraram com os novos e nem sempre provisórios moradores, serão ressaltados
posteriormente, nos Capítulos seguintes.
52
CAPÍTULO II
FUGINDO DA SECA, BUSCANDO A SOBREVIVÊNCIA
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes
tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente
andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a
viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A
folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Graciliano Ramos. Vidas Secas (p. 9).
Muitas pessoas migraram em busca de melhores condições de sobrevivência e
abandonaram parentes, amigos e conhecidos, quando a situação se tornou insustentável,
durante a seca de 1932. Habitantes da Vila de Canabrava do Gonçalo e de localidades
vizinhas seguiram rumo, principalmente, à cidade de Xique-Xique, pois havia rumores de que
para aqueles lados a seca estava mais amena, além de lá existir peixes em abundância e ainda
outro atrativo que era a possibilidade de embarcar de vapor para outras regiões.
Muitos dos que migravam das regiões vizinhas, quando iam de encontro às águas do
rio São Francisco, passavam pela Vila de Canabrava do Gonçalo pedindo esmolas para se
alimentarem até chegar em lugares mais próximos do seu destino. Tanto o Senhor Pedro,
morador de Quixabeira, que revela: “lembro era que passava aqui”, quanto Dona Jaci do
Sobreira rememoraram em seus depoimentos a passagem de pessoas que migravam e
passavam por estas localidades, enquanto fugiam da seca, embora não se lembrassem
exatamente quais eram os lugares de origem, afirmaram que se tratavam de pessoas de locais
vizinhos.
Apesar de existir na vila algumas famílias mais abastadas que não foram muito
afetadas pela seca, a maioria da população passou por dificuldades, porém, a migração não era
a única forma de resistir. Muitas famílias não abandonavam suas propriedades e persistiam na
vila mesmo que as condições de sobrevivência não fossem muito favoráveis. Permaneciam
em suas casas e, para se alimentar, necessitavam recorrer a estratégias diferentes das
utilizadas no dia-a-dia.
A caça era muito explorada, mas não era suficiente. Era necessário buscar na
vegetação nativa alimentos e beneficiá-los. Nesse empreendimento reorganizavam o seu
modo de vida e criavam estratégias alimentares emergenciais, as quais recorriam apenas em
53
épocas de escassez alimentar, geralmente em decorrência de secas prolongadas, a exemplo
das que ocorreram em 1932 e 1939. Discutiremos, portanto, duas medidas emergenciais
tomadas pela população mais pobre da Vila de Canabrava do Gonçalo, para resistir à seca de
1932: a migração e a adaptação da dieta alimentar.
2.1. CANABRAVA DO GONÇALO E A FUGA DA SECA DE 1932
A seca teve início em meados de 1929 e se prolongou por anos. Tal extensão
ocasionou a fome maciça de grande parcela da população pobre da região, onde se localizava
Canabrava do Gonçalo. Houve uma movimentação intensa de pessoas em condições precárias,
muitas vezes desnutridas e doentes, tentando encontrar alimento para poder esperar o próximo
“verde”. Quando a seca alcançou o seu ápice em 1932, não eram poucas as famílias de
retirantes se movimentando em busca de alternativas que lhes possibilitassem lutar contra
adversários cruéis como a fome e as doenças, responsáveis por atacar flagelados
enfraquecidos e arrasar famílias. Inúmeras famílias buscavam a sobrevivência se retirando da
região mais afetada, buscando a cidade de Xique-Xique como ponto de refúgio, pois lá
esperavam encontrar em abundância os peixes tão fartos na ipueira, que cortava a referida
cidade, formada por um braço do rio São Francisco.
O cotidiano da retirada relatado pelos narradores, se assemelha em alguns aspectos ao
descrito por Graciliano Ramos na sua célebre obra “Vidas Secas”(2007). Uma das principais
semelhanças verificada é caminhada à pé realizada pelas famílias que carregavam junto a
alguns pertences os filhos e, assim como o personagem Fabiano, queriam viver e esperavam
encontrar no caminho da retirada, forças que permitissem seguir a vida para esperar o
próximo “verde”. Muitos dos retirantes sonhavam como Fabiano e aguardavam, pois se
chovesse bem “a catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral [...]. Os meninos,
gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinhá Vitória vestiria saias de
ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde” (2007, p 15).
É provável que este fosse o sonho de todo retirante: superar as dificuldades e se reerguer
novamente tão logo a seca terminasse, trabalhando para acumular alguma reserva para
consumir no próximo estio, passando de um verde a outro sem dificuldades.
Durante a seca de 1932, nem mesmo as famílias mais abastadas, possuidoras de vastos
rebanhos de gado, não ficaram alheias aos efeitos devastadores de tão prolongada estiagem,
pois algumas dessas famílias vieram à falência, a escassez de alimentos para os animais
54
contribuiu para dizimar rebanhos e acabar com o patrimônio delas. Um caso que exemplifica
tal situação foi relatado por um depoente:
Além de tudo não deu nada, até minha tia Luzia que era irmã de minha vó,
que eram fazendeiro muito rico, de gado. Eram muito rico lá no São Tomé,
mas Manoel Bastos que era neto, inda alcançou eles pegando cem bezerro
por ano, mas aí quando veio 32, não tinha outra coisa pra dar, só sol, os
bicho morreram, meio mundo de gado. Diz ele que urubu nunca que voava
era caminhando de uns pra outros e aí passou, passou, quando foi ne 39 veio
a outra, aí passou a vassoura e não ficou uma. Vieram morar aqui no
Caldeirão debaixo dum pé de juá que tinha na lagoa, nos caldeirão do meio
da rua, com uma mão adiente e outra atrás, sem nada (Depoimento de João
Dantas de Carvalho, em 19 de julho de 2009).
Viver no sertão era mesmo perigoso como disse Guimarães Rosa (2001), pois a
riqueza das famílias mais abastadas não estava assegurada indefinidamente. A depender da
força que o estio tivesse, ou mesmo a sequência em que ocorressem vários, devastaria boa
parte do patrimônio e transformaria famílias, outrora promissoras, em retirantes, já que como
foi afirmado sobre as secas de 1932 e de 1939, não houve tempo suficiente para o patrimônio
ser reorganizado entre uma seca e outra48.
Entra em cena, portanto, o personagem que permeia o cotidiano da seca: o retirante.
Em se tratando da seca de 1932, na região em que localizava Canabrava do Gonçalo e do que
foi compartilhado conosco pelos depoentes sobre suas vivências no flagelo nos deparamos
constantemente com relatos sobre famílias inteiras que migravam em busca de melhores
condições de sobrevivência.
A retirada de famílias inteiras provocou inclusive o despovoamento de uma localidade
conhecida como Juá. Ela era habitada por algumas pessoas que, após as águas que lá existiam
secarem, migraram, sobretudo para a localidade de Poço que era uma das mais próximas.
Segundo o depoente Senhor Sinobilino,
As águas acabaram. Tinha uma minação, as minação acabaram e aí o povo
não tinha outra alternativa e aí foram mudando. Quando eu vim conhecer, já
o Juá tinha acabado a influênça, depois com o tempo tornou melhorar,
apareceu umas águas lá e aí tornou a crescer, que hoje o Juá tem um bocado
de gente (Depoimento de Sinobilino Sancho Paiva, em 02 de abril de 2009).
Apesar de existirem migrações internas, ou seja, entre localidades que pertenciam à
própria vila, nessa região o lugar mais procurado foi a cidade de Xique-Xique, pois rumores
48
Perpetuou-se inclusive na tradição oral um poema que ilustra a decadência de famílias em decorrência de
prejuízos oriundos de estiagens sequenciadas como o seguinte: “Eu me chamo Virgílio/ Mas meu apelido é Bié/
Em 39 eu tinha doze burro/ Mas hoje eu ando a pé”. Poema Recolhido por Flávio Dantas Martins com o Senhor
João de Guidú.
55
teriam se espalhado de que nas proximidades daquela cidade a seca estava menos devastadora.
Ao tratar da repercussão regional da seca de 1932, o Senhor Ângelo nos fez afirmações que
demonstraram um panorama menos agressivo da seca, quando se aproximava a cidade de
Xique-Xique, logo após a Tiririca49:
Era essa região toda, não era só lá na Laranjeira50 a crise não, a crise era
como tem aqui a microrregião de Irecê que é 20 ou 21 município, mais ou
menos e agora passou a território, era esse território todo. Esta serra aí, este
chamava Assuruá51, jogando por Ibipeba52, era esse mundo todo aqui. Agora
dali de Itaguaçú que era Tiririca, dali pra lá não tinha a crise de chuva,
choveu (Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira, em 07 de abril de 2009).
A fuga da seca levou inúmeras famílias a seguir pelas estradas que davam acesso à
cidade ribeirinha e, neste percurso, passavam por Canabrava do Gonçalo. A opção de ir para a
cidade de Xique-Xique surgiu, pois, segundo Osvaldo Rocha e Edimário Machado, muitos
“buscavam apenas as margens do rio São Francisco ou de seus tributários mais caudalosos,
onde havia alguma colheita de alimentos nas plantações das vazantes, além do peixe”
(ROCHA; MACHADO, 1988, p. 72). Ainda segundo a depoente Dona Joaquina: “Ia pro
Xique-Xique, porque lá tinha ‘omeno’ água e tinha a beira do rio, tinha peixe. Os outros foi
pra outro lugar longe, que eu nem sei onde era”(Depoimento de Alves de Miranda, em 11 de
fevereiro de 2005), evidenciando que, para além de buscar melhoria nas condições de vida na
“beira do rio”, muitos enveredavam por outros caminhos.
Além de flagelados de regiões vizinhas, muitas famílias que residiam na sede de
Canabrava do Gonçalo e, também, nas imediações do interior da vila, buscaram alternativas
de sobrevivência às margens do grande rio, na cidade de Xique-Xique e suas imediações
como na comunidade de Marrecas, que também se localizava às margens do São Francisco.
Esse movimento de saída ganhou evidência, através da experiência de alguns depoentes como
Dona Joaquina, Dona Idalina e o Senhor Ângelo, cujas memórias demonstram sentimentos
opostos. Evidencia-se um misto de angústia, ao tratar da retirada e das dificuldades
encontradas em meio aos caminhos tortuosos que seguiram, com a satisfação por terem
conseguido superar as dificuldades decorridas da seca, posto que tratam da melhoria de suas
vidas em um momento posterior.
49
Atualmente a antiga Tiririca constitui o município de Itaguaçu da Bahia, próximo a Uibaí.
Atualmente faz parte da área rural do município de Uibaí.
51
A Serra do Assuruá foi um importante pólo produtor de ouro, metais e minérios preciosos desde o início do
século XIX, sendo alvo de muitos na fuga das secas da década de 1930, que iam trabalhar como garimpeiros. É
constituída, atualmente, por partes do município de Gentio do Ouro, Ibipeba, Ipupiara e Xique-Xique.
52
Município vizinho a Uibaí.
50
56
Para além do cotidiano do migrante, as memórias dos depoentes sobre a seca de 1932
revelaram a amargura ao falar da angústia que foi compartilhada por eles. Neste processo, o
que ficou latente nos depoimentos foi o sofrimento, não apenas o sofrimento físico da fome
que provavelmente atingiu a quase todos, mas a aflição que se nota na fala de Dona Joaquina
quando diz que “tudo sofria, sofria porque só de ver os outros sofrendo”. Em vista disso, no
seu relato transparece o lugar ocupado por sua família naquele espaço, quando ela reconhece
que todos eram pobres “nós era pobre, mas meu pai tinha disposição”. Essa “disposição” de
seu pai aparece em vários momentos de seu depoimento, o que nos leva a crer que a mesma
esteja relacionada ao fato de ser ele um agricultor, que tinha roça de mandioca, criava gado,
porco, além de buscar outras alternativas para resistir ao flagelo, como ir à cidade de XiqueXique comprar farinha para comercializar, matar gado também para vender, em contraposição
a algumas pessoas que, “não tinha disposição, ficava aí deitado com fome”, é como se essas
pessoas se entregassem devido a essa falta de “disposição” de ir em busca de alternativas de
resistência, revelando uma tensão entre os dispostos e os outros (Depoimento de Joaquina
Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005).
Para além da “disposição” para o trabalho, outros aspectos influenciaram a forma de
tratar a fome na Vila. A dificuldade de encontrar alimentos para saciá-la, até mesmo através
de esmolas, especialmente para os mais pobres da localidade, em alguns casos, revela
aspectos que constituíam parte dos costumes desta sociedade, pois algumas pessoas sentiam
vergonha dos conhecidos saberem que passavam fome em 1932. Tal fato fica evidente na fala
de Dona Joaquina quando ela demonstra uma série de valores dessa sociedade. Segundo ela
“tem uns que tem vergonha de dizer que tá com fome, outros diz logo, mas de primeiro53 o
povo tinha vergonha, tinha vergonha de dizer que tava com fome. Chamava a gente pra comer,
não queria, morrendo de fome” (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de
fevereiro de 2005).
Evidenciam-se aí, costumes que permeavam a moral desta sociedade. A vergonha
existente no fato de se admitir ter fome resultava dos valores desse povo que o relacionava, de
uma forma geral, com o fato de não ser moralmente aceito o fato de passar fome,
possivelmente por estar ligado à questão da chamada “disposição” para buscar alternativas de
trabalho que possibilitassem a estas pessoas contornar a situação. Por outro lado, não
podemos deixar de considerar que era demasiadamente complicado ter “disposição”, tal o
nível de desnutrição. Não existindo saída, muitos se entregavam à morte.
53
Esse primeiro a que ela se refere é um tempo que se encontra em um momento recuado de suas memórias em
contraposição aos valores de hoje.
57
Apesar dos esforços empreendidos e da “disposição” de seu pai, é importante salientar
que, quando as possibilidades de sobrevivência haviam sido reduzidas, Dona Joaquina,
juntamente com sua família, se retirou para Xique-Xique em busca de melhores condições.
Esta experiência é uma amostra também do processo de empobrecimento de famílias em
decorrência da seca. Citamos aqui o exemplo de um chefe de família, produtor rural
proprietário, que experimentou a vida de açougueiro e pequeno comerciante para resistir em
seu lugar às agruras da seca de 1932, mas não obteve êxito. O trajeto foi narrado desde a saída
do Poço54 até a chegada à cidade ribeirinha, bem como as atividades desenvolvidas ao longo
desse caminho, no ano 1933, quando, possivelmente, tinham sido esgotadas as alternativas de
sobrevivência na localidade de origem. Dessa forma, a depoente relata:
Eu, meu pai e minha mãe, nós saímos daqui, de pé, tudo de pé daí do Poço, foi
pra lá. Daqui pra lá foi vendendo umas coisinha. Meu pai vendia umas coisinha
assim na rua, comprava [...] farinha, comprava um mirreis de crumatá, umas
crumatazona grande. De lá, nós foi pra Marreca55, na Marreca lá, ele mexia
farinha, cumpade Zuza56 mexia farinha, ganhava o dinheiro, parece que mil e
quinhentos, não sei se era um mirréis no dia, um mirréis por dia, e daquele
dinheirinho comprava o que a gente comer, pouquinho assim. Só comia pouco,
uma vez no dia, comprava os peixim e tratava e comia com farinha. As farinha
ruim que fazia medo, [...] farinha da beira do rio, farinha ruim, azeda
(Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005).
Após o sofrimento passado em Xique-Xique e Marrecas, quando provavelmente a
situação melhorou nas proximidades da vila, a família foi retornando aos poucos para o lugar
de origem. O retorno não foi imediato, estabeleceram-se inicialmente em Roça de Dentro57 e,
depois, seguiram rumo ao Poço. No processo inverso à retirada, se evidenciou o contraste da
crise deixada na saída, com a fartura do retorno em anos posteriores. Assim,
Nós voltemo bem que foi ne 33 ou 34 eu não me lembro mais. Ne 34 nós
viemo e fiquemo na Roça de Dentro, meu pai fez uma casa lá ainda. Vendeu
a casa e tornemo a voltar pro Poço, até eu casei. Quando eu casei, meu
marido trabalhava dois mirréis por dia, toicim de porca era um cruzado. Aí já
era fartura muita, era dois cruzado o quilo de toicim e de porca e de porco
era um mirreis, feijão de arranca já tava de fartura, seis litro por ..., aí já foi
ne 36. [...] Em 36 foi muita fartura nas roça, deu muita coisa. Feijão de
arranca era seis litro por um mirreis, tapioca seis litro por um mirreis, as
coisa tudo barata, mas pra vender dava o que fazer (Depoimento de Joaquina
Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005).
54
Atualmente o Poço faz parte da área rural do município de Uibaí, distante em torno de 12 Km.
Localidade próxima à cidade de Xique-Xique, localizada também às margens do rio São Francisco.
56
Irmão da depoente.
57
Atualmente Roça de Dentro constitui o município de Central, limitante do município de Uibaí.
55
58
Houve dificuldade de vender o que foi produzido depois do término da seca, sobretudo,
devido à grande produção, mas também, por se tratar de uma sociedade em que a economia
era familiar de subsistência. Não obstante, o momento do retorno é descrito quase como
mágico devido a tanta fartura obtida na lavoura:
Chegou, foi tirar palha de banana, pra encher os colchão tudo, os colchão
tudo era de palha de banana, tudo. Meu pai plantou arroz, que tinha um brejo,
nós cerçava arroz, comia, tirava as casca. Quando eu casei tinha muito arroz,
assim nos baixão que plantava. O meu pai tinha um brejo e plantava os arroz,
[...] assim de passarinho, panhava aquelas anágua e fazia aquela zuada pros
passarinho voar. Tanto passarinho, mas já foi ne 37, o ano que eu casei, já
tinha muita fartura, muitas coisa, muito feijão de arranca, feijão de corda,
milho deu bom, os feijão, deu muito feijão mesmo e fazia aquelas sacas que
a gente podia deitar em cima da boca, de feijão, tanto feijão, tanta fartura, o
ano que eu casei, farinha muita (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda,
em 11 de fevereiro de 2005).
A fartura iniciada em 1936 foi interrompida com a seca subsequente, ocorrida na
mesma década, em 1939. Mais uma vez, Dona Joaquina teria de se retirar, mas nessa ocasião
a sua realidade diferenciava-se da de 1932. Já residente na sede da vila, com uma filha de dez
meses e abandonada pelo marido, a depoente relembra que na rua em que residia só ficou um
homem, os outros seguiram em busca de sobrevivência e de condições de sustentar a família,
tendo em vista que, ao menos em 1939, era comum o chefe da família se retirasse sozinho a
procura de emprego, sendo bastante usual a ida, não mais para a cidade de Xique-Xique como
em 1932, mas para os garimpos nas suas imediações. Dona Joaquina se retirou, acompanhada
da filha e do irmão, para trabalhar em um garimpo na Barra:
Valdú tinha ido embora pra lá, tinha ido embora pro mundo e eu fiquei numa
casinha. Aí cumpade Zuza disse: eu vou pra Bela Vista, se você quiser ir
mais eu, no Poço não dá mais pra se ficar, se quiser ir mais eu lhe levo. Aí eu
digo: eu vou, vou mais você cumpade Zuza. Aí eu fiz uma trouxa, quando
ajuntei os trenzinho tudo que eu tinha pra carregar deu vinte quilo. Aí disse:
não lhe deixo levar essa menina. Eu disse: eu levo. Você deixa pelas estrada,
por aí viram umas menina morta, uns menino morto, as mãe não agüentava,
a mãe morta e os menino mamando nos peito. Na estrada da Bela Vista
acharam gente assim, as mãe morta. Digo: minha filha eu não dou. Você não
guenta levar essa trouxa. Digo: não tem o que tirar (Depoimento de Joaquina
Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005).
Foram momentos certamente marcantes e um tanto quanto decisivos. De um lado a
necessidade de encontrar novas alternativas de sobrevivência e, de outro, a incerteza de
alcançar o destino procurado. Entretanto, a depoente preferiu seguir a viagem tão arriscada e
resistiu, assim como sua filha, criada sem a presença do pai.
59
Outro depoente, o Senhor Ângelo, também migrou com sua família, buscando a
sobrevivência às margens do rio São Francisco e de lá seguindo até a proximidade de
Barreiras. A família que migrou era formada por seu pai, sua mãe e irmãos que saíram da
localidade de Laranjeira, distante cerca de doze quilômetros da sede da Vila de Canabrava do
Gonçalo e seguiram em direção à cidade de Xique-Xique a pé. Instalaram-se por um tempo na
localidade de Marrecas que margeava o São Francisco. Então, segundo ele,
Aí, no fim do 32, na entrada do 33 começou a melhorar, que choveu e foram
plantando, foi recuperando, mas de lá ele mudou. Ele não veio pra aqui, ele
foi com nós lá pra aquela região de Riachão das Neves e Barreiras onde
moravam uns familiares dele, tio, tia, primos carnais e nos levou pra lá
(Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira, em 07 de abril de 2009).
A partir da fala do Senhor Ângelo, notamos que o fato de terem saído contribuiu para
vivências diferenciadas das que foram experimentadas por aqueles que optaram por
permanecer na sua localidade, sendo todas marcadas pela dificuldade. Ele afirma:
A gente saiu, meu pai nos levou logo pra beira do rio e aqui ficaram
comendo mucunã, aquela parreira, que é uma batatona, uma raizona, o povo
arrancando a parreira, ralando no ralo e lavando. Dizem que lavavam em
nove águas que a parreira é veneno. [...] na data da execução da parreira nós
não tava mais aqui, tava na Marreca, com um ano na Marreca meu pai
mudou com nós cá pra região de Riachão da Neves, Barreiras pra um lugar
de nome Jardim, de Jardim mudou mais pra cima um pouco pra Gameleira.
Foi tempo de sofrimento (Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira, em 07
de abril de 2009).
Além da família do Senhor Ângelo, se retirou outra, formada por parentes seus. Era a
família de Berto, natural do Piauí, vindo de lá provavelmente fugindo de alguma seca, que
fixou morada na Laranjeira após se casar com uma mulher desta localidade. Senhor Ângelo
vivenciou em Marrecas experiências de trabalho, compartilhadas com Berto:
Meu pai saiu com nós pra Marreca. Eu era um menino e lá meu pai arrumou
um introsamento lá com um dono de uma rede, homem de nome Jonas e ele
arrumou uma colocação pra mim e Berto que era também da Laranjeira, era
do Piauí, mas casou na Laranjeira. [...] Berto foi com a família e ele arrumou
com Jonas pra nos levar como se fosse filhos dele pras pescarias de rede, que
era uma rede de pescaria. Permitiram nós catar aqueles peixinho miúdo e
trazer pra casa, mas Jonas tinha bom coração e ele nos colocou e passou a
nos dar um quinhão de peixe, quer dizer, um quinhão muitas vezes tem dez
pescadores, joga o lance de rede faz o cerco uma vez ou mais vez e todo o
peixe que colher nas arrastada de rede, os enxugadores, na beira da lagoa ou
do rio faz os enxugadores, ali é dividido com os pescadores, parte igual
(Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira, em 07 de abril de 2009).
60
E afirmou ainda com grande satisfação sobre o resultado da pescaria: “Divide por os
dez pescadores e nós ganhava como pescador” (Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira, em
07 de abril de 2009). A experiência como pescador durou até o momento em que seu pai
resolveu dar prosseguimento à retirada e tentar novos caminhos, rumo à região de Barreiras.
Sobre esta parte da viagem quem nos ajuda a apresentar aspectos do dia-a-dia do retirante é
Dona Morena58, irmã do Senhor Ângelo, que enfatizou momentos marcados pelo cansaço, a
pobreza e a fome:
E meu pai foi pra Barreira, pedindo esmola na estrada diz que tinha Nezinha,
uma irmã minha que morreu era de pé descalço e Nista essa irmã minha.
Quando o sol esquentava daqui pra Barreiras, como era o lugar que vocês
morava? Era Jardim, e daqui pra Jardim, pra lá de Barreiras, pra cá, ia tudo
com os pé descalço os menino, quando o sol esquentava meu pai parava
numa árvore até o sol esfriá, viajava mais era nas hora que o sol esfriava,
tudo com os pé descalço, porque não tinha nenhuma sandália pra calçá e
aqui e aculá pedia coisa nas casa pra comer até chegá lá que tal?
(Depoimento de Ercília Brito de Carvalho, em 07 de abril de 2009).
Esse “tempo de sofrimento” foi interrompido em 1936, quando retornaram à
Laranjeira e lá permaneceu até que viesse outra seca na mesma década, a seca de 1939, que
levou a família a se retirar, dessa vez, para os garimpos na serra do Assuruá, em Gentio do
Ouro. Ela já estava mais experiente sobre o processo de retirada, ou as condições de trabalho
estavam mais amplas, mas o certo é que assim como a família de outros depoentes, o alvo
durante a seca de 1939, foi tentar a sorte nos garimpos de Gentio do Ouro. Inicialmente o
chefe, no caso o pai, ia para lá e enviava o que fosse conseguido para a família se sustentar,
enquanto não findasse a seca. Entretanto, nem todas as esposas que ficavam tinham a
paciência de aguardar notícias, bem como os filhos mais velhos, acostumados a trabalhar
ficavam sem oportunidades de trabalho. Então, os parentes que ficavam, acabavam se
retirando em seguida. Assim,
Meu pai foi pro Gentio do Ouro e eu fiquei aí mais minha mãe e as menina
na Laranjeira aí, depois eu falei com minha mãe digo olha: não dá pra nós
ficar aqui não, se eu achasse serviço pra trabalhar eu garantia as despesa,
mas não tem aqui, é algum serviço e os dono mesmo faz e muito pouca coisa
e ele tá lá no garimpo, se ele tivesse pegando ouro, tivesse bem, tava
mandando ou vinha trazer, mas ele não tá pegando ouro não, é melhor nós ir
pra lá. Pedi muito e minha mãe acabou resolvendo e nós fomos pra lá.
58
Esta depoente, apesar de não ter presenciado esta seca, por ter nascido em um momento posterior, construiu
suas memórias sobre ela a partir de aspectos relatados por seus pais e irmãos que viveram experiências durante a
seca. Isto é possível graças ao que foi afirmado por BOSI: “muitas recordações que incorporamos ao nosso
passado não são nossas: simplesmente nos foram relatadas por nossos parentes e depois lembradas por nós”
(1994, p. 407).
61
Arrumamos as trouxa, pegamo a estrada pra Gentio do Ouro, quando
chegamos lá ele reclamou, não achou bom, mas minha mãe disse: nós viemo
porque você é responsável por sua família (Depoimento de Ângelo de Brito
Teixeira, em 07 de abril de 2009).
O papel do chefe da família nesta sociedade evidenciou-se na fala acima, cabendo,
portanto, aos homens da família – o pai e, em seguida, o filho mais velho – o dever de garantir
a manutenção da casa. Destarte, ser filho homem e primogênito, tinha o peso da
responsabilidade pela mãe e irmãs na ausência do pai, sendo também necessário trabalhar
para ajudar no sustento da família, como foi o caso do Senhor Ângelo. Por outro lado, os
filhos homens poderiam exercer poder sobre as irmãs e esposas.
A chegada ao garimpo de Gentio do Ouro foi narrada pelo depoente da seguinte forma:
Agora eu disse: caça um serviço pra mim. Lá tinha Honorato Vitório, era até
o delegado de polícia, ele arrumou um quadro assim, marcou o quadro, uma
catra na mina da marcela, não sabia ainda do ouro que tava ali, pegou a sair
ouro, aí os vizinho lá viram, os amigos, como tinha Januário ali do, parece
que dos Patos59 era, era dos Pato e os outros disse: fala com o Honorato pra
colocar o menino aí como meia praça porque aí vai dar pedaço de ouro e eu
carregando, desmontado, tirando a terra com o cabudé e o cabudé botava
aqui no ombro e assim numa certa distância despejava lá na muntueira aí ele
disse: não, eu não boto como meia praça eu pago a ele no contrato da
empreitada, pago bem pago, mas como meia praça não. Ai aconselharam uns,
aconselharam meu pai, leva o menino, aí de noite vocês dois, meia noite, aí
tinha os caldeirão, no cascalho, na hora que der no cascalho, tira o cascalho
dos caldeirão que é onde tá dando os pedaço de ouro, fazia aquela panela no
mocororô, no cascalho bem atochado e cascalho dá aquelas panela, aqueles
caldeirão, era onde tava os pedaço de ouro (Depoimento de Ângelo de Brito
Teixeira, em 07 de abril de 2009).
O trabalho no garimpo, embora estafante, rendia poucos frutos, pois o trabalhador de
empreitada realizava o serviço necessário para chegar ao ouro, mas devia entregá-lo ao dono
da terra, recebendo somente o combinado pela realização da tarefa, contribuindo muito pouco
para a melhoria das condições de sobrevivência da família. Nessa vida de garimpeiros, não
obstante as dificuldades diárias, as péssimas instalações em que a família se encontrava,
Senhor Ângelo destacou a honestidade como sendo um princípio de que se orgulha, pois
apesar dos problemas enfrentados, não deixaram de entregar todo o ouro encontrado a um só
beneficiário:
E aí não teve quem vencesse Honorato, aí eu fiz o serviço todo, meu pai
entregou a ele, nós não demo pra isso graças a Deus, roubá não. E nós no
abarracamento, numa moita assim encostadim, pertim do serviço, tava sem
59
Comunidade pertencente ao atual município de Lapão, localizada nas proximidades do povoado de Laranjeira.
62
casa nesse tempo, morando debaixo de uma moita (Depoimento de Ângelo
de Brito Teixeira, em 07 de abril de 2009).
Além disso, ele destacou um ponto que pode caracterizar um cotidiano marcado pela
situação de tensão, quando fala de pesadelos constantes com cachorros vermelhos muito
grandes lhe perseguindo querendo lhe pegar, que chegavam a preocupar seu pai, pois ele
acordava assustado, gritando. Entretanto, a interpretação do dono da terra explorada atribuiu o
significado dos cachorros vermelhos à quantidade exorbitante de ouro encontrada onde ele
estava cavando. Senhor Ângelo afirmou:
Meu pai passou assim aberando a catra e ele tava tirando cascalho dos
caldeirão quando meu pai passou que deu boa tarde ele disse: Nestor, já tô
pegando os cachorrão vermelho que avançava no menino. E tá, ele disse: tô e
o palitó dependurado assim do lado com as gibeira cheia de pedaço de ouro,
chega tava assim puxano, arrastano, mas não foi homem nem pra me dá uma
gratificação. Ele me pagou pra desmontar, tirar a terra, mas ele foi ruim
(Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira, em 07 de abril de 2009).
A conclusão do depoente classifica de forma negativa a atitude de seu patrão que “foi
ruim”. Talvez ele esperasse uma solidariedade maior deste, para com a situação de flagelados
em que se encontravam no momento, tendo em vista a maneira como foi tratado pelo patrão
em Marrecas, na ocasião da seca de 1932, mas a realidade das relações de trabalho do
garimpo diferia da vivenciada na seca anterior, já discutida anteriormente.
Mesmo após conseguir construir uma casa coberta com palha de carnaúba, o que já
representou uma melhoria das condições de vida, a família retornou ao seu cotidiano na
Laranjeira.
Os locais que margeavam o rio São Francisco como a cidade de Xique-Xique e a
localidade de Marrecas foram alguns dos destinos buscados por moradores de Canabrava do
Gonçalo e de localidades vizinhas que tentavam resistir ao flagelo e como última saída
migravam na esperança de encontrar uma forma de amenizar o sofrimento. Muitos
retornavam como foi o caso da família de Dona Joaquina e do Senhor Ângelo que
regressaram ao Poço e à Laranjeira, respectivamente, ao final da seca.
As zonas ribeirinhas não eram as únicas a definir a rota dos retirantes. Alguns deles,
no início do flagelo, ao menos nas imediações de Irecê, teriam seguido o sentido contrário e
procurado no “sul” 60 a sobrevivência, como a família de Dona Idália, que inicialmente se
retirou para Jequié, depois retornou a Irecê e encontrou o ponto de refúgio e acolhimento em
60
Nessa época a lavoura cacaueira foi uma opção de emprego da mão-de-obra dos flagelados da seca, que
segundo dona Idália, iam à levas, de Irecê para o Sul.
63
Canabrava do Gonçalo. Segundo ela, “Viemos pra Irecê antes de 32, nós tava morando ne
Irecê, depois deu a crise e nós foi pro sul, do sul nós tornemo a voltar pra Irecê e do Irecê
viemo pra aqui [Canabrava do Gonçalo]” (Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de
2005).
Nascida no momento em que sua família estava escondida no mato, fugindo dos
“revoltoso”61, Dona Idália perdeu parte de sua família em decorrência da seca de 1932. Um
irmão morreu de fome quando ainda estavam em Irecê, onde ela nasceu. Seu pai e outro irmão
morreram de uma doença que, segundo ela, matou muitos flagelados quando emigraram para
a região de Jequié, onde se encontravam vários deles. Estas mortes ocorreram antes da vinda
de sua mãe com o restante da família para Canabrava do Gonçalo. No decorrer da entrevista
se faz presente uma espécie de gratidão à população de Canabrava do Gonçalo por ter se
solidarizado e permitido ao que restou da família se estabelecer em definitivo na localidade.
Ao rememorar a retirada, Dona Idália falou da grande quantidade de pessoas de vários
lugares que buscavam caminhos semelhantes aos de sua família, da seguinte forma: “virge,
era gente que nem formiga, era gente do mundo inteiro. Você só via moitha pra aqui, moitha
pra aculá, que nem cigano62, moitha pra aqui, moitha pra aculá, só de gente morrendo de
fome”. Mas, a fome teria sido compensada pela fartura por eles encontrada no “sul”: “Quando
nós chegamo ne Jequié tantas barriga nós tivesse pra carne, banana e tudo quanto é fruta era
um farturão. Graças a Deus aí a fome acabou (Depoimento de Idalina Leite, em 03 de
fevereiro de 2005).
As memórias desta depoente sobre o flagelo demonstram um ir e vir de angústias, pois
quando a fome cessou, esta família se deparou com as doenças que atacavam os corpos
debilitados. Dona Idália falou de uma doença denominada muquirana que provocava feridas
no corpo, talvez se tratasse da varíola. Ela explicou qual a alternativa encontrada por sua mãe
para acabar com a doença:
Aí mãe disse assim: vamo pro rio preto da Palmeira com uma lata dessa de
gás tirada a boca, pra ferventar as roupa tudo pra poder chegar aqui na Bahia
que tava tudo podre de Muquirana. Aí nós foi nas arrancharia pra lá pra
debaixo dos pau pra lavar as roupa na beira do rio. [...] Ne Palmeira. [...] De
Lençóis. [...] Nós arranchemo nuns pau e pegou lenha e botou fogo na lata e
botou as roupa, ferventou as roupa, levemo uns três dia fazendo isso
(Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
61
Denominação utilizada para designar os combatentes da Coluna Prestes, que passou pela região no ano de
1926. Sua chegada provocou a fuga em massa da população.
62
Outros depoentes compararam os retirantes da seca a ciganos.
64
Curados da muquirana seguiram viagem, mas no meio do percurso se depararam com
uma nova doença, a sezão, como se popularizou na região, conhecida também por
impaludismo ou malária, comum nos locais ribeirinhos. Esta sezão teria sido adquirida na
arrancharia63 onde tentavam se curar da muquirana e se banharam no rio, mas do casal e onze
filhos, atingiu apenas Dona Idália, seu pai e sua mãe, únicos que não entraram na água.
Contudo, logo em seguida faleceu o pai de Dona Idália e com um intervalo de alguns dias,
morreram dois irmãos. A depoente e sua mãe, apesar de acometidas pela sezão, sobreviveram
e seguiram a viagem de volta à região de Irecê, temendo perder mais algum familiar. Segundo
ela:
Quando amioremo que minha mãe perguntou, disse que tinha morrido. Daí
minha mãe disse: se Deus me ajudar que amanhã eu amanheça sem febre, eu
arribo daqui com meus filho, senão fica tudo enterrado aí. Aí, quando foi no
outro dia, os anjo disse amém, nós não demo febre, mas caminhava daqui na
Formosa64, drumia, caminhava como daqui na Boca D’Água65 e ia drumir
(Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
O que restou da família de retirantes seguiu sua viagem, “tudo a pé, tudo com a trouxa
na cabeça”. Agora já sem possuir bens, pois sua casa em Irecê foi trocada por bode para
comer na retirada e o jegue, que transportou a carne e os acompanhou durante o percurso foi
vendido, uma vez que,
O jegue ela vendeu logo lá, acho que pra fazer funeral de meu pai, não sei
como foi. Só sei contar que eu não vi a morte deles, e aí nós não tinha mais
jegue, não tinha mais nada, só tinha os filho. E aí nós rompemo, rompemo,
viemos chegar aqui com não sei quantos dias” (Depoimento de Idalina Leite,
em 03 de fevereiro de 2005).
Eles teriam buscado Canabrava do Gonçalo por terem parentes morando tanto na sede
da vila, quanto nas proximidades, em lugar denominado Riacho de Areia. Em Irecê, lugar de
origem, eles não tinham nenhum parente.
Finalmente, depreendemos da fala de Dona Idália, uma mudança ocorrida na vida de
seus familiares após se situarem na Vila de Canabrava do Gonçalo. É como se fosse um
momento de ruptura do sofrimento maior, pois lá, após viverem por um tempo de esmolas,
morando em uma casa com apenas três paredes e sem porta, encontraram um novo amparo
que foi o padrasto “arrumado” pela mãe quando saiu em busca de trabalho em uma localidade
próxima, denominada Porcos, pois, “lá ela arrumou um marido, trouxe e veio, porque ele fez
63
Espécie de acampamento onde flagelados se aglomeravam no processo da retirada.
Distância equivalente a três quilômetros.
65
Distância equivalente a seis quilômetros.
64
65
uma barraca pra nós lá embaixo, na rua do cascalho onde tinha um pé de imbu. Ele fez uma
barraca lá e nós moremo lá” (Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
A vida dos seus teria então melhorado com o segundo casamento de sua mãe, “porque
ele pegou a trabalhar e aí é foi amilhorando, foi amilhorando”. Esta melhoria pode estar
associada ao novo momento em que se encontravam, pois com a seca praticamente no fim as
oportunidades de trabalho voltavam aos poucos. Tal mudança não alterou o reconhecimento
por parte de Dona Idália da importância do seu padrasto para a transformação em suas vidas,
já que, segundo ela, “do dia que ele entrou pra dentro de casa nós não pedimos mais esmola”
(Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
Analisamos neste item momentos associados à migração de pessoas fugindo da fome e
da pobreza, intensificados durante a seca de 1932, rememorados por protagonistas deste
processo. São reveladas lembranças sobre momentos, muitas vezes difíceis, de trabalho árduo
e mal recompensado, da perda constante de parentes, provocando uma verdadeira
desestruturação da família da depoente Dona Idalina, mas, por outro lado, percebemos que no
processo de ressignificação dessas memórias, com a intervenção do presente no processo de
rememoração, a seca de 1932 aparece como um período, que apesar de ser marcado por
diversas dificuldades, parece ter sido superado, já que momentos posteriores surgiram como
símbolo de fartura. Além disso, percebemos como os garimpos da Serra do Assuruá
funcionaram como um atrativo para várias famílias de “canabrabeiros”, principalmente
durante a seca de 1939, como também serviu a outras famílias na seca de 1932.
2.2. EM BUSCA DA SOBREVIVÊNCIA: DIETA ALIMENTAR
A fome foi um problema bastante presente na realidade de boa parcela da população
brasileira em diversos momentos de sua história. Na Bahia, ela contribuiu para que o
cotidiano de muitas pessoas fosse alterado durante a seca de 1932.
A partir de uma perspectiva atual, podemos considerar que os habitantes do sertão
baiano, em especial os habitantes das imediações da Vila de Canabrava do Gonçalo, no início
do século XX tinham uma alimentação baseada em uma variedade de alimentos relativamente
pequena. Consistia na criação de animais bovinos, caprinos e aves; nos produtos derivados da
mandioca como a farinha, os beijus e biscoitos de tapioca, as brevidades66; os ovos; bem
66
Bolo feito basicamente com tapioca, ovos e rapadura.
66
como o leite e a coalhada; a carne de caça; o mel; e o feijão de corda, dependendo, a
variedade, das condições socioeconômicas de cada família. Esse cotidiano e essa
disponibilidade alimentar estão associados a momentos em que as crises de fome originadas
com as secas não se fazem presentes.
Sertanejos dessa vila utilizaram várias estratégias de adequação da alimentação no
enfrentamento e convivência com um dos principais problemas do flagelo na região da
Canabrava do Gonçalo, a fome, que se intensificou nestes momentos extremos, obrigando-os
a resistirem como podiam. Consumiram os produtos mais exóticos. Frutos silvestres
considerados venenosos pela população como a mucunã67 que foi utilizada em outras regiões
durante as secas, raízes de plantas encontradas ao longo das caatingas como a parreira68 e a
cuca de umbu69, além de cactos como o xique-xique70, entre outros.
Dentre os proprietários, existiam os mais abastados que eram criadores de gado.
Contudo, boa parte das criações que existiam não resistiu ou então, os animais estavam
demasiadamente magros para serem abatidos e morriam.
No 32 tinha muito gado, esse campo aí era tudo cheio, no tempo que chovia
e depois que as chuvas faltaram foi faltando alimento pra esse gado, os
fazendeiro foi se preocupando que não achava a quem vender, não tinha
quem comprasse e pra todo lado tinha gado e não tinha alimento, ficou sem
chover, a coisa mais triste e morreu mais da metade. A carne era fácil, mas
não tinha dinheiro pra comprar e a criação morria de fome porque não tinha
alimento e não tinha a quem vender porque naquele tempo não tinha
transporte era tocado assim na frente, como saía umas boiada muito grande
do Piauí, passava por aqui e ia no giro da Feira de Santana e vendia esse
gadão (Depoimento de Sinobilino Sancho Paiva, em 02 de abril de 2009).
A crise de falta de alimentos era geral, mas a precariedade da situação, sobretudo para
a população mais pobre se deu em decorrência da falta de farinha – que constituía e ainda
constitui em determinadas localidades, a base da alimentação. A ausência desse alimento,
devido à escassez de chuva seria, portanto, a principal causadora da fome e, em consequência,
do sofrimento. As famílias mais abastadas, que possuíam uma quantidade considerável de
criações, especialmente de cabra, conseguiam resistir de uma forma menos precária, tendo
67
Mucunã é uma semente, encontrada na vegetação da caatinga, que foi consumida de diversas formas, durante a
seca de 1932, em Canabrava do Gonçalo. Era considerada tóxica pela maioria dos depoentes, necessitando ser
lavada por nove vezes para poder ser consumida.
68
A parreira, ao que tudo indica, fazia parte da flora da caatinga e era encontrada em uma certa abundância em
períodos de escassez de chuvas e permitia que de sua raiz, após ser ralada, espremida e torrada, fosse feito um
tipo de farinha, nas épocas de emergência.
69
A cuca do umbu consiste na raiz do umbuzeiro, que acumula uma grande quantidade de água e permitiu aos
sertanejos se aproveitarem dessa característica da planta para consumi-la natural ou transformá-la em farinha, já
que a mandioca estava escassa.
70
O xique-xique é um tipo de cacto, comum na vegetação nativa da região em destaque.
67
inclusive a possibilidade de se solidarizar com os que não se encontravam na mesma situação,
pondo em prática as ações de solidariedade que também se fizeram bastante presentes no
cotidiano da seca de 1932, na Vila de Canabrava do Gonçalo, mas que serão problematizadas
mais adiante.
Acerca das dietas alimentares desenvolvidas pelos sertanejos para saciar a fome, Josué
de Castro (2008) aponta que,
Fazem parte desta dieta forçada dos flagelados pela seca inúmeras
substâncias bem pouco propícias à alimentação, das quais os habitantes de
outras zonas do país nunca ouviram falar que fossem alimentos. Substâncias
de sabor estranho, algumas tóxicas, outras irritantes, poucas possuindo
qualidades outras além da de enganar por mais algumas horas a fome
devoradora, enchendo o saco do estômago com um pouco de celulose (2008,
p. 202).
Na Vila de Canabrava do Gonçalo, na seca de 1932, foram consumidos diversos
alimentos que talvez se associassem a estas características descritas acima, tais como os
produtos retirados da parreira, cactos como o xique-xique e a própria mucunã.
Silvanito Dias e Silva, cordelista natural do município de Central71, em seu poema de
cordel A angústia de Zé Carote na seca de 32 traz um panorama dessa seca na região que
Canabrava do Gonçalo fazia parte. Apesar dessa fonte não ter sido produzida no local em foco
neste estudo, mas no município de Central, retrata uma realidade que permeou toda a região
no período e foi produzido recentemente com base em vários depoimentos em que, entretanto,
não foram utilizados os recursos da História Oral que subsidiam esta pesquisa. Acerca da
alimentação destaca-se o fato de que,
Mucunã e coro cru,
Sirvia de alimento,
Pra aliviá a fome,
Dum povo em disalento,
Padiceno noite e dia,
Na severa agunia,
Asperano livramento
Até cuca de imbu
Fico difice achá
Se cumia batatão
E raiz de caruá
Fazeno agradecimento
A Deus a todo momento
Pra sua vida salvá (SILVA, s/d, p. 6).
71
O município de Central é vizinho ao de Uibaí, e em 1932 também fazia parte do município de Xique-Xique.
68
Aqui ganha destaque a mucunã, o couro cru, cuca de imbu, batatão e raiz de caruá72
como fontes de alimento utilizadas durante a seca. A semente da mucunã aparece em várias
fontes e não se restringe a essa região, talvez por ter sido um grande desafio sobreviver
dependendo de um fruto que se acreditava ser tóxico. Assim,
Muitas vezes para matar a fome, recorriam às raízes da mancambira73 ou de
umbu; da fruta da mucunã, lavada em sete águas para tirar as substâncias
tóxicas, faziam uma espécie de cuscuz, segundo dizem, de péssimo sabor e
duvidosa qualidade alimentícia. Os que se embrenhavam pela Chapada
Diamantina, premidos pela fome, escapavam tomando o leite do mucugê 74
(ROCHA; MACHADO, 1998, p. 72).
A mucunã é um tipo de alimento em que se recorreu de forma frequente em épocas de
seca, inclusive sendo bastante utilizada durante a seca de 1932. Existia uma grande
desconfiança das pessoas que consumiram a semente nesse período, pelo fato de a
considerarem tóxica e atentarem para a necessidade de lavarem o pó retirado das sementes
depois de piladas, por nove vezes, para que não fossem envenenados. Podemos citar um
fragmento do depoimento de Dona Clarice que afirma,
Botava no fogo e descascava, tirava as casca, tá vendo? Pra depois pisar no
pilão, pisar no pilão, eu pisava era botando fogo nela mesmo. Quando o fogo
apagava eu botava um bucadinho de massa de mucunã, oh o fogo pra cima,
pra pisar, lavar minha fia, ne nove água, tu tá vendo? Ne nove água, pra
fazer o cuscuz pra comer. Cuscuz bonito só se você ver, mas inchava. Eu
mesmo inchei meus pé, eu não comia quase, vivia inchando meus pé
(Depoimento de Clarice Alves de Souza, em 11 de fevereiro de 2009).
Percebemos no depoimento acima que também se faz presente em outros, a
desconfiança da população quanto à sua utilização na alimentação, pelo fato de apresentar em
muitas pessoas reações desagradáveis, como inchaço. Entretanto, para fugir da fome era
necessário que se recorresse à mucunã.
Quanto a isto, é salutar acrescentar o que foi discutido no estudo sobre a fome
realizado por Josué de Castro na década de 1940, que a estuda a partir de uma divisão do
território brasileiro em áreas geográficas em que ela ocorre, nos interessando a área do sertão
72
Faz parte da vegetação nativa, semelhante à mancambira, é utilizada como matéria-prima para a fabricação de
um tipo de corda improvisada. Ambas representam algo negativo, originando inclusive um ditado popular para
criticar alguém por uma troca considerada mal sucedida, especialmente de parceiros: “saiu do caroá e entrou na
mancambira”.
73
Compõe a vegetação da caatinga.
74
Consiste em um tipo de vegetação encontrada na Chapada Diamantina.
69
nordestino. Sobre as características nutritivas da mucunã, afirma que “Trata-se, pois, de um
alimento vegetal extremamente rico em proteínas, dos mais ricos do mundo, quase idêntico à
soja (com 38%) e altamente energético por seu conteúdo de hidrocarbonetos” (CASTRO,
2008, p. 206). Quanto à toxidez relata que,
Realizamos longos estudos experimentais sobre o valor nutritivo da suposta
toxidez da mucunã, chegando à conclusão de que a mesma é destituída de
toda toxidez, ocorrendo os fenômenos observados tanto ao homem como nos
animais alimentados com a mesma planta por conta de graves carências,
principalmente de certos aminoácidos indispensáveis (CASTRO, 2008, p.
206).
Além disso, recomendava o seu plantio para uso em períodos de seca para combater a
fome, pois é “uma leguminosa de alto valor nutritivo e atóxica, que considerando sua
extraordinária resistência aos períodos de seca deveria ser plantada no sertão como um valioso
recurso para combate à fome nos períodos de calamidade” (CASTRO, 2008, p. 206). Quanto
a essa recomendação, provavelmente seria difícil convencer os moradores da Vila de
Canabrava do Gonçalo ou mesmo de Uibaí atualmente, a incluir a mucunã na sua dieta dada a
desconfiança que ainda existe quanto à sua toxidez, bem como a associação que fazem do seu
consumo à ocorrência de crises.
Dessa forma, percebemos certa resistência cultural que surgiu a partir de experiências
originadas em situações de crise, como o trauma que existe na população local acerca da
mucunã. Tal foi a imagem negativa que prevaleceu para a população que foi bastante
complicado encontrar um exemplar da planta para uma fotografia na área pesquisada,
encontramos apenas algumas vagens e sementes (Fotos 7 e 8).
Jaksom Rubem dá destaque ao xique-xique, um cacto que teria servido de fonte
alimentícia para algumas pessoas, descrevendo o processo pelo qual passava até poder ser
consumido.
O xique-xique ajudou muita gente a sobreviver durante secas terríveis,
quando não restava mais nada como alimento. Pegavam o xique-xique,
retiravam todos os espinhos, e o assavam. Feito isso, retiravam suas cascas
como se estivessem descascando uma banana e comiam sua parte mais tenra.
O restante era dado aos animais, permitindo-lhes, também, continuarem
vivos (RUBEM, 1997, p. 80).
70
A entrevistada Dona Joaquina ao rememorar os gêneros alimentícios consumidos por
ela e sua família durante a seca de 1932, demonstra, inclusive como eles eram preparados. Ao
falar de seu pai ela diz que “ele tinha um brejo de batata que a gente dava o povo e uns ia
pedir até folha de batata pra ferver pra fazer cariru pra comer, folha de mandioca, frevia e
comia” (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005). Esta
entrevistada fazia parte de uma família com certo destaque econômico na sua localidade,
chamada Poço, que atualmente faz parte da área rural do município de Uibaí.
(Foto 7: Vagens de mucunã (Fotografia tirada por Daiane Dantas Martins, em 14/07/2010).
Dona Joaquina informou o que foi consumido em Poço, durante a seca de 1932.
Segundo ela,
Quando nós cerçava assim [milho] numa peneira pra tirar as peles da canjica o
povo aparava. Chegava e dizia: [...] me dá essas pela pra eu torrar pros menino
comer, aquelas sementes de melancia que tinha, pegava tudo [...] comia até a
raiz da taboa, o povo comia, mucunã (Depoimento de Joaquina Alves de
Miranda, em 11 de fevereiro de 2005).
71
(Foto 8: Sementes de mucunã (Fotografia tirada por Daiane Dantas Martins, em 14/07/2010).
É notório na fala dessa depoente o lugar ocupado por seu pai nessa sociedade.
Segundo ela, ele possuía roças de mandioca que possibilitavam a obtenção de farinha, tão
fundamental para a dieta alimentar dessa população e, naquele momento encontrava-se
escassa. Além disso, realizou, antes de migrar com a família para Xique-Xique, uma espécie
de comércio, revendendo produtos, em especial, a farinha, que ele ia até Xique-Xique, centro
econômico regional, comprar para ser revendida, consumida e doada. Quando é revelado o
que as pessoas comiam, Dona Joaquina cita:
Aquelas carne véia magra, que a gente tem nojo, [...] comia carne de gado,
mas feijão era muito pouco [...], comia bode também, [carne] de bode, de
porco, uns porco véio magro [...], cozinhava os imbu verde e botava água e
botava um saco pra escorrer e comia ali puro; folha de mandioca, frevia as
folha de mandioca, moía na máquina, comia com imbu maduro também, de
batata, as folha de batata (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11
de fevereiro de 2005).
Sua fala revela um universo de possibilidades alimentares nesse cotidiano. Além disso,
ela identifica a existência de diferença na dieta alimentar entre os que ela considera como “os
que podia” em oposição aos outros que não podiam. Segundo ela “os que podia comia cuscuz
de manhã e de noite, comia o angu de milho, os que tava bem, farinha era com um tiquinho de
72
feijão um taquinho de carne, carne era barata” (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda,
em 11 de fevereiro de 2005).
Algo interessante a ser destacado diz respeito ao final da fala citada anteriormente. O
fato de se enfatizar que “carne era barata”. Contudo, apesar da carne ser barata, boa parcela da
população não tinha condições de comprar e as dificuldades eram ainda agravadas pela
escassez de farinha e, segundo ela, “tudo a gente comia com farinha e não tinha farinha”.
Assim, apesar de se encontrar em uma posição que permitia ajudar outras pessoas, não
podemos desprezar o fato de Dona Joaquina e sua família estarem incluídos nesse universo de
pessoas que resistiram à seca de 1932, enquanto ela mesma se inclui entre as pessoas que
passaram por dificuldades recorrendo inclusive à retirada para Xique-Xique e por fim, revela
“ia passando, passou, a gente passa, come tudo quanto é coisa e passa” (Depoimento de
Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005).
Realidade um pouco diversa foi a revelada por outra depoente, Dona Idália, que
nasceu em Irecê 75 e juntamente com sua família em 1932 emigraram para Jequié e de lá
vieram para Canabrava do Gonçalo após seu pai e alguns irmãos falecerem em decorrência da
seca. O depoimento dessa senhora evidencia uma realidade diferente da anterior, pois Dona
Joaquina em momento algum cita que sua família chegou a pedir esmolas, enquanto a fala de
Dona Idália está permeada por este fato.
Dona Idália também aponta a escassez de farinha como responsável pela precariedade
da situação. Quando ela fala da saída de sua família de Irecê diz que “meu pai tinha um jegue,
vendeu o barraco a troco de bode e daí panhou os bode e salgou e botou dentro das bruaca,
pra nós ir comendo os pedacinho, só salgado sem farinha, até onde encontremo farinha”
(Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
Tal era a dificuldade de encontrar esse alimento que da saída de sua família de Irecê
em direção a Jequié só foram encontrar farinha em Morro do Chapéu76, farinha esta que era
feita de palmito de coco. É provável que essa farinha de palmito já fosse feita com a
finalidade de ser doada aos flagelados, pois, o Senhor Valmyr, outro depoente, nos falou de
parentes seus que faziam farinha de cuca de umbu para ser misturada à farinha de mandioca
doada aos pedintes.
Dona Idália quando narrou a saída de sua família até chegar a Jequié revelou o que era
ingerido, oriundo de esmolas dadas a esses flagelados. Segundo ela, as pessoas davam
75
76
Município distante 36 quilômetros da cidade de Uibaí.
A distância entre a cidade de Irecê e a de Morro do Chapéu é de cerca de 84 quilômetros.
73
“cabeça de fralda77 pra nós comer e nós comia e achava bom. Palmito de coco aqueles pedaço,
nós comia e achava bom, inda dava Deus que te ajude” (Depoimento de Idalina Leite, em 03
de fevereiro de 2005). Em contraposição à escassez de alimentos em todo o caminho
percorrido até chegar a Jequié, suas memórias revelaram o lado da fartura encontrada “no sul”.
“Ne Jequié. Quando nós chegamo ne Jequié tantas barriga nós tivesse pra carne, banana e
tudo quanto é fruta era um farturão. Graças a Deus aí a fome acabou” (Depoimento de Idalina
Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
Segundo Dona Idália, na cidade de Jequié existia um espaço reservado aos flagelados
fugitivos da seca e nesse espaço, esta depoente teria perdido parte de sua família que morreu
de uma doença que ocorria em decorrência da seca, pois os organismos das pessoas estavam
enfraquecidos devido à fome excessiva e não tinham possibilidade de reagir, provocando
óbitos, como o do pai da entrevistada que, segundo ela, morreu de muquirana78.
Nesse cotidiano marcado por dificuldades de encontrar alimentos o depoente Senhor
Valmyr afirmou que “comia rato, gato, rabudo, naquele tempo eles matavam e comiam, a
fome era devastadora, era pouca gente que não passava fome” (Depoimento de Valmyr Roza,
em 18 de fevereiro de 2005). O lugar ocupado pela família do Senhor Valmyr se assemelha à
de Dona Joaquina, pois ele reportou a sua fala à solidariedade prestada por seus familiares às
pessoas que estavam passando fome. Ele falou de seu tio Dió Miranda que era considerado
rico nessa época e marcava um dia para matar um boi do qual se aproveitava tudo, “tripa, não
ficava nada”. Além disso, ele afirmou que “muitos tomavam água com sal, não tinha outra
coisa, até hoje tem esse ditado: tá vivendo n`água e sal, naquele tempo era mesmo n`água e
sal” (Depoimento de Valmyr Roza, em 18 de fevereiro de 2005)).
Associada à fala de Senhor Valmyr, podemos apontar o que foi relembrado por Dona
Clarice sobre o seu irmão, que era afilhado de Dió Miranda, e o padrinho teria presenteado o
afilhado com uma novilha, ele teria comido a mesma quase crua devido à fome intensa, que
ela classificou como sendo uma doença chamada de “fome preta”79. Segundo Dona Clarice,
seu irmão comeu até carniça “comia carniça, se achasse um cabrito morto ele botava debaixo
do braço e saía rasgando” (Depoimento de Clarice Alves de Souza, em 11 de fevereiro de
2009), por conta de tal fome e pelo fato de não encontrar outro tipo de alimento, já que sua
fome não era saciada. Comia-se até couro cru como foi apresentado pelo cantor e compositor
77
Cabeça de frade é o nome de um cacto bastante comum na vegetação da caatinga que normalmente não é
aproveitado na alimentação nem de animais.
78
Não encontramos outros registros da ocorrência desta doença.
79
Segundo a depoente, esta doença caracteriza-se pela impossibilidade de saciar a fome, o que levava o doente a
comer tudo que encontrasse pela frente, inclusive carniça.
74
do município de Central, Wilson Oliveira, que em sua canção A seca de 32 no sertão da
Bahia trouxe informações sobre a alimentação durante essa seca que corroboram com as
informações recolhidas a partir dos depoimentos: “Dos 15 filhos que eu tanto gostei / Hoje
presenciei 05 desencarnar / Dez que’inda restam, eu admirei / Comeu couro cru e mucunã pra
escapar”.80
Em vista disso, pudemos perceber uma infinidade de recursos oferecidos pela natureza
em momentos de escassez que eram aproveitados através de uma adaptação da dieta alimentar
como forma de resistir ao flagelo e ajudou esses sertanejos a superar as agruras da seca. Suas
experiências foram reproduzidas como forma de aprendizado para as gerações posteriores que
retratam essas vivências de várias formas, seja através da oralidade, de poemas de cordel e de
músicas, contribuindo para a sua disseminação. Assim, reorganizaram suas atividades
cotidianas e desenvolveram estratégias alimentares ou não, para sobreviver ao flagelo de 1932.
80
Trecho da música A seca de 32 no sertão da Bahia. In: Sem medo de ser feliz. SONOPRESS, de Wilson
Oliveira, cantor e compositor do município de Central.
75
CAPÍTULO III
OS EXTREMOS DA SECA: SOLIDARIEDADE, TENSÕES E MORTES
Olha cumpade, eu sei que o Senhor,
Sempre me ajudou, mas sou franco a dizer,
Tô que num guento vê os filho sofrê,
Passar fome, morrer, sem eu ter jeito pra dar.
(OLIVEIRA, Wilson. A seca no sertão da Bahia.)
Durante a seca de 1932 na Vila de Canabrava e nas imediações da cidade de XiqueXique foram registrados acontecimentos catastróficos em decorrência da adversidade
climática que se associou à situação de pobreza em que vivia boa parcela desta população.
Quando a seca alcançou seu auge trouxe consigo um dos maiores flagelos: a fome,
conforme discutimos em outro Capítulo. Ela foi responsável por gerar momentos onde as
ações de solidariedade dividiam espaços com tensões e, até mesmo mortes, atingiram famílias
que chegaram a perder vários dos seus integrantes.
De acordo com os depoentes a solidariedade permeou a realidade vivenciada pela
população pobre da Vila de Canabrava do Gonçalo, até mesmo porque os proprietários
preferiam doar alimentos a ter suas propriedades invadidas por famintos, muitas vezes
desconhecidos. Contudo, as relações de solidariedade sofriam limitações, como por exemplo,
o fato de ser priorizada a ajuda a parentes que passassem por dificuldades, criando ou
reforçando o costume da ajuda mútua entre pessoas de uma mesma família, quer fosse em
épocas de fartura, quer nas marcadas por dificuldades de abastecimento alimentício; além
disso, o fator econômico muitas vezes funcionava como um empecilho a estas relações, pois
nem todos dispunham de condições de ajudar.
As relações de solidariedade não eram as únicas manifestações perceptíveis. Existiam
momentos de tensão, onde algumas pessoas transgrediam as regras costumeiras,
principalmente os forasteiros que passavam famintos pelos brejos e furtavam cachos de
banana. Os retirantes vindos de áreas próximas à Vila de Canabrava do Gonçalo, que se
deparavam com plantações de frutíferas nos brejos e não estavam inseridos nos costumes
locais, poderiam não respeitar as normas que condenavam invasões a propriedades alheias. O
mesmo dificilmente aconteceria tendo à frente um morador da vila, já que as sanções eram
duras e a honra estava acima da necessidade, tendo em vista que tratamos de um coletivo que
condenava qualquer tipo de transgressão às regras comuns nesta sociedade.
76
A população que vivia na vila e nas localidades que a rodeavam era guiada pelo
respeito à propriedade privada e condenava, com base em costumes, atitudes que fossem de
encontro com o que era considerado ideal de honestidade, como furtos, mesmo justificados
pela fome. Quem transgredisse estas “regras” poderia sofrer represálias.
Era preferível penar em decorrência da fome a correr o risco de “ficar sujo” perante a
sociedade, pois a honestidade de cada um determinava as condições de trabalho que lhe
estariam disponibilizadas:
Se um pobre uma hora roubasse uma coisa numa roça ficava sujo. O povo
tinha era nojo dele. Aqueles pobre mais direito, que quando ia trabalhar
trabalhava milhor, às vezes quando chegava um tempo de crise assim, um
começo de verde tinha uns que ajudava com um milho pra plantar, um feijão.
E aqueles mais inrolista era uma fome disgraçada (Depoimento de José
Filgueira Neto, em 04 de março de 2009).
Estas punições poderiam ser direcionadas às pessoas que faziam parte desta sociedade
e eram conhecidas e observadas pelos demais, o que tornava possível ações que limitariam o
seu acesso a algum benefício quando necessitasse, como por exemplo, durante uma seca. Com
isso, a punição pela conduta indevida apareceria naturalmente em épocas de crise. Portanto,
especialmente os mais pobres eram “controlados” pela possibilidade de condenação em um
momento de necessidade e, considerando que a fome poderia levar até à morte, era um
controle quase naturalizado.
Vale considerar ainda que apesar da solidariedade e das várias estratégias utilizadas
pelos flagelados para combater as dificuldades, alguns morriam de fome nas estradas que
percorriam e, outros tantos, faleciam acometidos por doenças como o impaludismo 81 que
ceifou a vida de muitos que buscaram trabalho nos lameiros próximos ao rio São Francisco e
não resistiram.
3.1. SOLIDARIEDADE E TENSÕES NO COTIDIANO DA SECA DE 1932
As relações de solidariedade entre moradores do sertão baiano, sobretudo entre os
mais pobres, além dos laços familiares, acabavam se fortalecendo em épocas marcadas pela
ocorrência de secas, especialmente na região próxima a Canabrava do Gonçalo 82 . A
81
Também conhecida como malária, acometeu muitas pessoas que se retiravam para as proximidades da cidade
de Xique-Xique durante a seca de 1932.
82
Ainda hoje, em comunidades menos populosas na área rural do município de Uibaí é comum a divisão de
tarefas entre amigos e parentes, chamada de adjunto, bem como a de benefícios entre familiares, por exemplo,
77
preocupação primeira consistia em ajudar os parentes mais próximos através da doação,
principalmente de alimentos, mesmo que as condições de sobrevivência não fossem muito
favoráveis até mesmo para os que doavam.
As memórias dos depoentes revelaram a existência de momentos marcados pelas ações
de solidariedade, onde as contribuições com o próximo eram estabelecidas através de doações,
inclusive durante a retirada de flagelados que fugiam das agruras da seca. Estas lembranças se
assemelham a exemplos extraídos da Literatura que versa sobre o tema e apresenta episódios
em que podemos presenciar o exercício da solidariedade entre os retirantes, como o que foi
retratado por Jorge Amado no romance Seara Vermelha83 (1978), quando este escritor aborda
o processo de retirada empreendido pela família de Jerônimo, quando caminhava pela
caatinga em busca do porto de Juazeiro e, ao descansar embaixo de árvores da exaustiva
viagem à pé, se deparou com uma outra família faminta. Apesar de correr o risco de ficar sem
alimento, a família de Jerônimo não resistiu em ajudar os desconhecidos. Então, dividiu sua
carne seca, rapadura e café para que todos compartilhassem.
Assim como na Literatura, na vida real a situação de miséria das pessoas que sofriam
com a ocorrência de secas e que moravam em locais mais afastados dos grandes centros
urbanos favoreceu a ajuda mútua, até mesmo porque as populações que habitavam regiões
longínquas viviam em grande parte na pobreza quase absoluta.
Elisangela Ferreira (2008, p. 140-146) discute a pobreza da população de Xique-Xique,
no século XIX, chamando atenção para as redes de solidariedade estabelecidas entre a
população mais abastada e os mais pobres, sendo comum nos inventários pesquisados por ela,
a presença de alguns registros de roupas entre os bens deixados como herança para os mais
pobres. Tal atitude demonstra, além das limitações em que vivia parte da população xiquexiquense naquele século, a preocupação em beneficiar de alguma forma a população mais
carente. A inquietação em ajudar os necessitados permaneceu nos costumes da população que
habitava as imediações da cidade de Xique-Xique no início do século XX e, durante a seca de
1932, contribuíram para que muitos se compadecessem com a situação de miséria em que
algumas pessoas se encontravam.
Para além da preocupação em manter sob controle a massa flagelada, que devido à
proporção do número de pessoas que possuía, era capaz de atemorizar comerciantes,
quando matam um porco, dividem algumas partes do animal entre os familiares, independente da ocorrência de
seca.
83
Romance escrito por Jorge Amado, que trata da saga vivida por sertanejos em busca da sobrevivência e, diante
da adversidade climática e da pobreza, reorganizam suas vidas.
78
sobretudo na cidade de Xique-Xique, existia na região um consenso em relação à necessidade
do envolvimento da população menos afetada na ajudar aos demais.
Nesta seca muitos se valeram de doações de alimentos para saciar a fome que arrasava
um extenso número de famílias habitantes das regiões mais próximas à caatinga,
especialmente os migrantes, pois as pessoas mais pobres que permaneceram em seus lugares
de origem reorganizaram sua dieta alimentar recorrendo à mucunã 84 , parreira e outros
produtos, conforme ocorreu em Canabrava do Gonçalo e foi discutido anteriormente.
Era comum a solidariedade das pessoas que ainda tinham condições de se alimentar,
para com aquelas mais pobres a quem não restou outra opção senão pedir esmolas. Entretanto,
não era raro que muitos se negassem a ajudar e ainda demonstrassem repulsa contra os que o
haviam feito, como foi afirmado pelo Senhor Ângelo sobre pescadores de Marrecas 85 que
saíram do grupo ao qual pertenciam quando o dono das redes o empregou, juntamente com
outro conhecido que havia se retirado no mesmo grupo da Laranjeira86. O dono das redes
resolveu que ao invés de lhes dar os peixes pequenos que não serviam para os pescadores,
lhes daria uma parte igual a que cabia aos pescadores, levando em consideração a difícil
situação vivenciada por suas famílias. Segundo Senhor Ângelo: “Teve pescador que saiu do
grupo porque Jonas nos dava quinhão de peixe” (Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira,
em 07 de abril de 2009).
O Senhor Ângelo demonstra na entrevista certo agradecimento pela atitude de Jonas
que foi de encontro com as intenções do grupo de pescadores, fazendo a sua parte no combate
à fome decorrida da seca. O depoente afirma:
Ele disse o que era que nossos pais ia fazer com aquele peixinho miudinho,
que eles soltavam de novo pras água pra nós trazer só aquele peixe e que era
um negócio que era combate à fome ele ia fazer isso mesmo. Um tempo
duro(Depoimento de Ângelo de Brito Teixeira, em 07 de abril de 2009).
Houve resistência destes pescadores que se opuseram a participar da divisão do seu
patrimônio, já que os peixes oferecidos em “combate à fome” eram retirados do total pescado
por eles, tendo em vista que Senhor Ângelo e seu companheiro eram crianças na época e não
tinham condições físicas para desempenhar o trabalho na pescaria de forma igualitária aos
demais, todos adultos. Uma possibilidade de explicação para essa reação é o fato de não
existir nenhum vínculo familiar ou afetivo que os ligasse, além de não podermos
84
Semente retirada da vegetação nativa, que floresce justamente na época anual denominada de “seca”.
Entretanto, não compõe a dieta alimentar desta população, sendo utilizada apenas em ocasiões extremas, como
durante as secas de 1932 e 1939.
85
Comunidade às margens do Rio São Francisco, que foi alvo de flagelados da seca de 1932.
86
Comunidade pertencente à Vila de Canabrava do Gonçalo.
79
desconsiderar o fato de que muitos dos pescadores poderiam se encontrar em situação
econômica desfavorável também.
Os laços de solidariedade se fortaleciam quando as pessoas que passavam por
necessidades pertenciam a famílias que ainda dispunham de alguns alimentos e priorizavam
os parentes mais próximos para ajudar. Associado a esta afirmação, apresentamos o
depoimento de Dona Joaquina, que ao tratar das pessoas que ajudavam umas às outras,
demonstra a ligação entre laços de solidariedade e de parentesco. Segundo esta depoente, “os
parentes ajudava assim, dava umas rapinha de mandioca que desse pra relar, aí comia”
(Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005). Tal afirmação
permite visualizarmos a definição de relações solidárias, pois somente após ajudar parentes e
agregados, como no caso de afilhados é que se podia pensar em ajudar desconhecidos.
Portanto, uma limitação às relações de solidariedade.
Talvez esta limitação dos laços de solidariedade fosse um dos fatores responsáveis por
gerar tensões nesta sociedade durante a seca de 1932, e tivesse levado uma das depoentes a
afirmar que existia “o povo que era seguro não dava a ninguém, comia lá um tiquinzim de
farinha” (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005). Esta
afirmação dá a impressão de que muitas pessoas se escondiam para se alimentar distante dos
vários famintos que aguardavam alguma esmola.
A mesma depoente diz que, até mesmo peles de caroços de milho obtidas após estas
sementes serem moídas e peneiradas para fazer cuscuz em sua casa, eram esperadas por mães
que tinham filhos famintos e nada para alimentá-los. Estas peles seriam utilizadas para
fabricação de mingau. Assim, apesar das limitações econômicas e da escassez de alimentos a
solidariedade fazia parte daquele cotidiano na maioria das vezes, pois as pessoas em muitas
ocasiões,
Não tinham o que dar, os que tinha o que dar dava sem pedir, sem pedir mesmo
dava [...] vinha nas casas e o povo dava mesmo sem pedir, os que tinha coragem
de pedir, eles dava sem pedir. Ia comprar sem o dinheiro, daí eles davam, não
tinha dinheiro pra pagar. Lá em casa mesmo nós dava assim os tiquim de
farinha, as mão cheinha de farinha assim e acabava que deixava dois prato pra
nós comer e acabava tudo, no outro dia era preciso nós relar mandioca, relar
mandioca e cozinhar as folha de mandioca pra comer, os imbu verde porque não
tinha nada pra comer (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de
fevereiro de 2005).
Existia uma espécie costume na época que levava a própria população, diante da
miragem que era o poder público, a se sentir responsável por minimizar as dificuldades dos
que estivessem em uma situação mais lastimável que a sua, as relações econômicas baseadas
80
no lucro ficavam em segundo plano. Tais ações nos remetem ao conceito de “economia
moral” discutido por E. P. Thompson quando trabalha com as manifestações populares dos
trabalhadores ingleses no século XVIII, especialmente relacionados aos motins da fome. Ele
critica a “visão espasmódica” acerca dos motins, que era disseminada pelos estudiosos que o
antecederam, já que para ele,
O motim da fome na Inglaterra do século XVIII era uma forma altamente
complexa de ação popular direta, disciplinada e com objetivos claros. [...] os
motins eram provocados pelo aumento dos preços, por maus procedimentos
dos comerciantes ou pela fome. Mas essas queixas operavam dentro de um
consenso popular a respeito do que eram práticas legítimas e ilegítimas na
atividade do mercado, dos moleiros, dos que faziam o pão etc. Isso, por sua
vez, tinha como fundamento uma visão consistente tradicional das normas e
obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos da
comunidade, as quais, consideradas em conjunto, podemos dizer que
constituem a economia moral dos pobres (1999, p. 152).
Thompson contraria a ideia de que as reações populares em períodos de crise eram
simplesmente determinadas pela fome e considera a palavra motim como limitada para
abarcar estas questões apontando que,
essa economia moral não se intrometia apenas nos momentos da perturbação
social, mas incidia de forma muito geral sobre o governo e o pensamento do
século XVIII. A palavra “motim” é demasiado pequena para abarcar tudo
isso (1999, p. 152-153).
Não era o simples fato de não ter o que comer que levava multidões a se rebelar, mas
sim a consciência da necessidade de regulação da oferta de produtos para os mais pobres se
alimentarem, o respeito aos costumes daquela população. Essa “visão espasmódica” foi alvo
de críticas disseminadas por Frederico de Castro Neves, pois segundo ele, tal opinião foi por
muito tempo partilhada por pesquisadores brasileiros que simplificaram as relações sociais ao
associar fome e ações da multidão. Ele considerou que esta vinculação prejudicou o avanço de
pesquisas sobre a temática das manifestações populares em épocas de seca, pois
Acabou por afastar este tema quase completamente dos estudos históricos e
sociais. Mesmo as melhores pesquisas sobre os movimentos populares no
meio rural desprezam os saques e as invasões como estratégias deliberadas
de enfrentamento dos conflitos sociais aguçados pela seca, incluindo-as, ao
contrário, no rol das “reações”, normalmente “desesperadas”, dos retirantes
face a uma inacreditável situação de miséria, que o momento de crise
acentua (2000, p. 15).
Outros autores brasileiros que partilharam do conceito de “economia moral” foram
João José Reis e Márcia Gabriela de Aguiar e consideraram que,
81
Muitas situações de escassez alimentar e alta de preços aconteceram e
acontecem na história sem que o povo se rebele, ou populações submetidas
às mesmas pressões de escassez alimentar podem reagir diferentemente,
umas se rebelando, outras não (1996, p. 134).
E foram respostas variadas à fome enfrentada durante a seca de 1932, que
encontramos ao longo do trabalho. As experiências dos depoentes revelaram várias formas de
enfrentamento da crise, a exemplo da migração e da adaptação da dieta alimentar.
Não encontramos em nossa pesquisa nenhum motim organizado por causa da fome,
apenas manifestações isoladas como o caso rememorado por Dona Idália, ao afirmar que sua
mãe, quando ainda morava em Irecê, havia ido à casa de uma comadre rica, madrinha da
depoente, pedir um pouco de farinha para tentar salvar a vida do filho que já não se
alimentava havia três dias, e assim narrou este episódio:
Era muito rica de fazendeira, daí minha mãe foi e falou [...] disse: bota
minha filha as tripinha no fogo que eu vou atrás de de comer na casa de
cumade Lidinha. Chegou lá, ela foi e trouxe. Disse: eu vou meio dia em
ponto. Os prato tava na mesa e disse: cumade Lidinha eu vim aqui pra você
me arrumar uma xícara de farinha pra matar a fome do menino que tá com
três dias doente de fome. – Não tem cumade, a que eu tinha botei na mesa.
Ela olhou ali pra baixo, viu uma taca de tanger galinha, chegou lá abriu o
pano e pegou a farinha, disse: - Pois cumade pode botar outra farinha na
mesa, eu panhei. Daí passou na casa da polícia. Chegou lá disse: o que é
cumade? É porque antes de vim dar parte de mim eu vou dar. – Diz o que foi.
–Eu passei na casa de minha cumade Lidinha que compra farinha é de saco,
e falei uma xícara de farinha, pra levantar um menino que tá com três dia de
fome e ela não me ..., ela disse que não tinha e eu panhei a da mesa, que tava
botada na mesa. Ele disse: - Panhou muito bem. Deu um pedaço de carne a
ela e dez conto em dinheiro pra ela comprar farinha e disse: - Vai dar de
comer a seu filho. Mas quando foi de dar ele já tinha, já tava a fome passada.
[...] Morreu (Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
A madrinha da depoente não se compadeceu da situação ao dizer que só tinha farinha
o suficiente para aquele dia. Tal situação despertou a ira da mãe que tinha um filho prestes a
falecer, necessitando de se alimentar. Ela não aceitou a justificativa fundamentada na escassez
de alimento, pois sabia das condições financeiras de sua comadre, pertencente a uma das
famílias mais tradicionais da região. A percepção da mentira e a inconformidade com a
mesma a levou a pegar a farinha que estava posta em cima da mesa para o almoço e levar para
o seu filho, ciente da transgressão que havia cometido. Até mesmo a atitude do policial ajuda
a fundamentar uma explicação baseada na solidariedade para com os famintos, sendo capaz
de perdoar a falta e fazer até mesmo a sua doação pessoal. Esta visão acerca da caridade se
82
assenta na visão cristã, para a qual o ato de caridade abençoa a quem a pratica mais do que
quem a recebe.
Já em Canabrava do Gonçalo, os depoentes não fazem referência à existência
constante de roubos. Ao contrário disso, uma depoente se admira de mesmo em situações de
extrema fome ser mantido o respeito ao que era alheio. Dona Glicéria87 afirma que,
Nesse tempo o povo era besta não robava, ninguém robava. Não dava pra
ninguém passar fome, mas o povo era tão besta que ninguém não robava. [...]
Porque dava dado, porque dava pra roubar criação aí, à vontade, porque
tinha cabra à vontade, mas eles não roubava, não roubava não, sofreram
muita fome. Foi muito dura a crise de 32, foi muito feia (Depoimento de
Glicéria Pereira Rocha, em 03 de abril de 2009).
Nesta época em que era preferível morrer de fome a correr o risco de ferir a própria
honra ao ser apanhado realizando algum furto, mesmo que fosse para matar a fome. Existia,
portanto, uma moral que não permitia às pessoas naturais da Vila de Canabrava do Gonçalo
interferir nos rebanhos ou mesmo nas plantações de seus conhecidos. Portanto, a honestidade
estava acima do risco de morrer de fome, pois esta sobrevivência estaria comprometida pelas
sanções sociais que o violador atrairia para si. Em vista disso, outra depoente classifica roubos
que ocorreram nas plantações nos brejos de sua família, como obra de forasteiros que
passavam por lá no processo de retirada. Segundo ela,
Tinha uns que não iam ajeitar nada, coitados, era robando os trem que os
outros plantava. Acho que de por aí mesmo tinha mais pouco. Os que vinha
de fora por falta de água de lá da Presidente88 vinham tudo pro Uibaí e uns
não panhava as coisa dos outros na Lagoinha e outros panhava muito. [...] E
criação também tinha uns que pegava quando achava, mas os de por aqui
mesmo nunca tivero isso, mas não é tudo que vai agüentar a fome mesmo
vendo as coisa (Depoimento de Josefa Rocha Machado, em 29 de março de
2009).
É evidente a preocupação desta depoente em diferenciar “os de por aqui mesmo”
referindo-se aos moradores de Canabrava do Gonçalo, com relação aos “que vinha de fora”,
tratando dos que realizavam furtos como sendo forasteiros, já que segundo a maioria dos
depoentes muitas pessoas passavam diariamente pela Vila, enquanto migravam para XiqueXique.
87
Apesar de ter vivido experiências da seca de 1932, nas proximidades de onde hoje se localiza o município de
Lapão, a realidade vivenciada por esta depoente, se assemelha ao que foi descrito pelos demais depoentes, que
viviam na própria Canabrava do Gonçalo.
88
Ela se refere ao atual município de Presidente Dutra, Lagoa da Canabrava à época, de onde nesta seca
emigraram algumas famílias em busca de localidades próximas que dispusessem de mais água, como Canabrava
do Gonçalo.
83
Uma espécie de moral permeava o pensamento e refletia nas ações dos moradores de
Canabrava do Gonçalo, que condenavam o “mal feito”, mesmo que ele pudesse ser justificado
pela fome. Além disso, os donos dos produtos furtados não repreendiam violentamente os atos
“infratores”, pois a mesma depoente confirma que muitos proprietários acabavam relevando
estes acontecimentos por entenderem, “porque era com precisão” (Depoimento de Josefa
Rocha Machado, em 29 de março de 2009).
Esta forma de encarar o furto realizado pelos retirantes da seca é bastante diversa da
apresentada por Frederico de Castro Neves, ao demonstrar que,
Em outros lugares, o retirante era castigado com violência – era açoitado e
tinha seus cabelos raspados – antes de ser morto e seu cadáver atirado ao
campo, quando não era, simplesmente, assassinado pelo proprietário das
terras, incomodado em seu “sagrado” direito de propriedade (2000, p. 29).
Ainda que não considerassem tão “sagrado” o seu direito à propriedade, alguns
proprietários de Canabrava do Gonçalo tentavam se prevenir dos furtos desenvolvendo
estratégias para impedir que os produtos cultivados em seus brejos fossem levados pelos
retirantes famintos, sobretudo quando a seca se prolongou, sendo necessário a montagem de
vigílias sob os pés de banana, conforme nos contou Dona Zefa:
Quando foi pro fim tinha uns que ia esperar, deitavam, pegava no sono,
quando acordava já tinham carregado os cacho de banana que o homem tava
deitado dejuntim. Bem que o sono pesado, diz que vinha e carregava, aí diz
que vinha livusia89 (Depoimento de Josefa Rocha Machado, em 29 de março
de 2009).
Ela ainda compara a seca de 1932 à de 1939, quando foi utilizada a mesma estratégia
de plantio nos brejos por aqueles que os possuíam e afirma que os roubos teriam ocorrido em
menor quantidade, do que na seca anterior, talvez por ser unânime entre os entrevistados que
apesar da seca de 1939 ter sido extremamente cruel, não conseguiu superar a de 1932.
Na fala da depoente Dona Joaquina, para além da existência de solidariedade entre
alguns moradores do Poço90 e flagelados que pediam esmola para se alimentar, evidencia-se
também, o fato de que existiam os que ela denomina de seguros, ou seja, não existia uma
sociedade homogênea na forma de tratar os retirantes, existiam conflitos. Havia uma
separação entre os que se compadeciam da situação dos pedintes e eram favoráveis à doação
de alimentos e aqueles que se negavam a fazê-lo, comendo de portas fechadas. Ela ainda
89
90
Termo utilizado para denominar aparições sobrenaturais.
Atualmente é um povoado da área rural do município de Uibaí.
84
relata: “o povo que podia vinha aqui [em Canabrava do Gonçalo] comprar um prato 91 de
farinha, chegava lá não podia dar a ninguém [...] o povo que era seguro não dava a ninguém,
comia lá um tiquinzim de farinha” (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de
fevereiro de 2005). Sendo assim, notamos que quando ela trata do “povo que podia” e não
compartilhava o que possuía se localiza em um universo diferente do ocupado por sua família,
pois teria ela se solidarizado com os necessitados, apesar das limitações já que não fazia parte
do “povo que podia”. Portanto, ela reservou um lugar social para sua família nas memórias
que compartilhou conosco.
Mesmo considerando as tensões apresentadas acima o que permeia a maioria dos
depoimentos é a ideia da doação, da caridade, a ponto de algumas pessoas ficarem sem ter o
que comer. Tendo em vista a gravidade da situação, não era admissível vislumbrar pessoas
morrendo de fome, crianças e adultos, a ponto de ser incômodo até mesmo contar essas
histórias como foi apontado pela depoente Dona Joaquina que afirmou: “não gosto de contar
esses causos”, demonstrando emoção em sua fala, principalmente ao retratar sobre mortes que
ela ouviu dizer que ocorreram em função da seca de 1932 da seguinte forma: “eu vi dizer que
diz que tinha um menino que dizia assim: ô gente tárra pra morrer de fome se desse um tiquim
de farinha não morria”. Ou ainda ao rememorar sobre a morte de uma mulher, que na
ansiedade por se alimentar foi ao Poço92 pedir esmola e, segundo ela, “dero umas raiz de
mandioca pra relar pra fazer um grolado e ela tava com tanta fome e ela comeu um pedacim
de mandioca e morreu, embebedou” (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de
fevereiro de 2005). Tais revelações demonstraram a intensidade das lembranças, bem como o
trauma deixado pelas situações vivenciadas.
A análise das experiências de vários dos depoentes sobre a seca de 1932, que em
muitos aspectos são semelhantes, revelou a existência de certa angústia ao reconhecer que
apesar dessa solidariedade entre as pessoas muitos passavam fome sem que os outros
soubessem, quando descobriam já era tarde. Segundo uma depoente, quando o estágio de
fome já está avançado a pessoa “não come mais nada”. Esta fala mostra também um certo
pesar quando aponta que algumas pessoas passavam fome porque “tem uns que o povo não
sabe” (Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005). Em vista
disso, pode-se depreender que no ponto de vista desta depoente “o povo” era o grande
responsável pela garantia do bem estar de si mesmo, já que para além da ajuda entre os
próprios moradores locais, a população da Vila de Canabrava do Gonçalo, não obteve auxílio
91
92
Medida utilizada na época, correspondente a três litros.
Atualmente faz parte da área rural do município de Uibaí.
85
de políticas públicas voltadas para dar subsídios às populações atingidas pelo flagelo, para
que pudessem sobreviver, como as frentes de trabalho que foram criadas justamente em 1932,
pelo ministro de Viação e Obras Públicas José Américo de Almeida (VILLA, 2001).
Apenas na cidade de Xique-Xique foram tomadas medidas para minimizar os efeitos
da crise de 32, sobretudo para retirar das ruas o grande número de retirantes que as ocupavam,
através da promoção do “recrutamento” de famílias que deveriam embarcar para outros
Estados ou para o Sul da Bahia a fim de servir de mão-de-obra, como discutiremos no
próximo capítulo.
Kênia Sousa Rios discutiu o trabalho realizado em frentes de serviço durante a seca de
1958, no Ceará. Segundo ela “as famílias costumam trabalhar nas frentes de serviço durante
toda a seca e, quando termina a estiagem, muitas vezes, retornam para o trabalho com os
antigos patrões” (2001, p. 288). Contudo, em localidades mais distantes dos grandes centros
urbanos como na Vila de Canabrava do Gonçalo a população ficou abandonada a própria
sorte, tendo apenas a Deus para apelar, pois conforme uma depoente, “não tinha pra quem
apelar, não tinha prefeito por aqui, nesse tempo não tinha prefeito, não tinha nada por aqui”.
Ela ainda tenta justificar essa ausência de intervenção do governo quando ela considera que
ele “não podia ajudar, não sabia ajudar. O povo era muito ignorante nesse tempo. O primeiro
carro que entrou daqui do Uibaí pra lá pro Poço foi o carro de Marinho de Carvalho”
(Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005). Essa ignorância do
povo relacionava-se possivelmente ao atraso em relação ao que se considera como ideal de
moderno como automóveis e estradas. Entretanto, apesar do desconhecimento desta depoente
o Estado sabia da crise e até mesmo prometeu o envio de ajuda através de uma verba de
10:000$000 (A Luz, Xique-Xique, 15 de maio de 1932, n. 13, p. 4) que, pelas informações da
imprensa da cidade de Xique-Xique, pareceu jamais ter chegado.
Voltando a tratar das situações de tensão, podemos apontar que elas também se
fizeram presentes no cotidiano dos moradores da cidade de Xique-Xique durante esta seca,
conforme pode ser observado a partir de registros presentes em alguns exemplares de A Luz,
como em um que versava sobre o trabalho de investigação desempenhado pela polícia para
descobrir “os autores de ferimentos por arma de fogo verificados em uma das rezes” de uma
propriedade, com o intuito de intimidar esse tipo de “ataque” à propriedade alheia veiculando
o seu desejo de punição dos culpados da seguinte forma: “A policia saberá por termo a tais
desumanidades, que poderão tomar proporções perigosas, premiando os atiradores com os
mimos merecidos” (A Luz, Xique-Xique, 17 de abril de 1932, n. 10, p. 4). Tais “ataques”,
considerando o contexto em que ocorreram podem ter alguma relação com a ocorrência da
86
seca, pois a situação de miséria e de fome pode ter levado flagelados a realizar tais
transgressões, porém, esta relação não foi feita pelo jornal que não voltou a se pronunciar
sobre este tipo de acontecimento.
Em outros momentos, as ações de solidariedade e tensões dividiam o mesmo espaço,
sendo também registradas pelo referido jornal, quando o semanário conclamava ajuda aos
“infelizes irmãos caatingueiros”, como foram denominados os flagelados. O chamado à
solidariedade ocorreu da forma a seguir:
O seu aspecto cadavérico, traduzindo a fome que lhe tortura,
desperta o instinto caritativo de todos os que por aqui passam.
Passageiros, Comandantes, Tripulantes de todos os vapores que por
aqui transitam, num gesto louvável, dignificante, caritativo, distribuem
viveres e dinheiro.
Condoem-se desses açoitados da sorte.
E assim, essa falange famélica, mal ouve o silvar dos vapores,
afluem aflitos ao caes a espera do gesto filantrópico dos corações bem
formados.
E assim, esses pobres miseráveis recebem uma pequena partícula
que lhes auxiliam a suportar o flagelo que lhes tortura! (A Luz, XiqueXique, 10 de abril de 1932, n. 9, p. 4).
Assim foi apresentada “a triste sorte” dos habitantes da caatinga, que tinham de
recorrer à caridade dos que viajavam nos vapores ou mesmo circulavam pelo porto da cidade
de Xique-Xique e se comoviam com a situação de calamidade para muitos. Contudo, a ideia
da necessidade de ajudar os flagelados a saciar a fome não atingiu a todos e esta mesma
matéria criticou a ação de policiais que reprimiram mulheres e crianças que visitavam o porto
em busca de doações:
A Polícia daqui, num triste momento, que provocou o mais revoltante
protesto intimo de todos que assistiram, fez debandar sob ameaças de coices
de suas armas e vozerias ameaçadoras, um grupo de creanças e mulheres que
recebiam das almas caridosas dos tripulantes e passageiros do “São
Francisco” uma caridosa esmola de viveres (A Luz, Xique-Xique, 10 de
abril de 1932, n. 9, p. 4).
Apesar do incômodo gerado pela grande quantidade de pessoas a esmolar pelas ruas da
cidade de Xique-Xique e também frequentando o porto, muitos flagelados permaneciam lá em
busca de “almas caridosas” que pudessem diminuir um pouco o sofrimento ocasionado pela
fome.
Não eram poucos os que buscavam justamente o porto da cidade, pois era lá onde
ocorriam algumas situações em que pessoas ilustres faziam doações de alimentos que
deveriam ser distribuídos aos famintos. Um caso que exemplifica esta situação ficou
87
registrado nas páginas de A Luz, do mês de maio de 1932, ao tratar da doação feita pelo
Capitão Nelson Xavier, importante político da época, de 15 sacos de farinha, 5 sacos de feijão,
3 sacos de café e 5 fardos de rapadura que deveriam ser “distribuídos criteriosamente com os
flagelados” (A Luz, Xique-Xique, 15 de maio de 1932, n. 13, p. 4). Para esta tarefa deixou um
encarregado, possivelmente um funcionário da Agência de Viação onde ficaram depositados
os alimentos. Além da doação de alimentos o Capitão anunciou o envio da verba de
10:000$000 citada anteriormente, que deveria ser destinada à ocupação da “grande leva de
flagelados que esmolam nas nossas ruas” na construção de uma rodovia “talvez para Joazeiro
ou para a Cidade da Barra” (A Luz, Xique-Xique, 15 de maio de 1932, n. 13, p. 4), que
entretanto, pelas informações que dispomos do próprio jornal acabou não chegando à cidade
de Xique-Xique.
Mesmo parecendo que o porto tinha se popularizado como o lugar mais provável de se
obter esmolas, até porque é possível que muitos o buscassem na expectativa de conseguir
embarcar para locais mais “promissores”, onde pudessem encontrar trabalho para poder se
sustentar, muitos flagelados circulavam pelas ruas próximas a ele e obtinham ajuda da
população, pois a “população desta cidade concorre com esmolas diárias a criancinhas
esqueléticas, mulheres, homens, maltrapilhos que esmolam por não achar o que fazer” (A Luz,
Xique-Xique, 08 de maio de 1932, n. 12, p. 3).
Ao longo das páginas do semanário A Luz aparece uma espécie de campanha pela
ajuda aos flagelados, quer fosse divulgando ações isoladas de pessoas consideradas ilustres,
quer defendendo intervenções dos poderes públicos para conceder emprego para os flagelados.
Sobre isso afirmam que as “construções de rodovias, cães, açudes dao eficientes resultados,
podendo fazer-se os pagamentos em viveres e dinheiros e sob criteriosa administração de um
funcionário” (A Luz, Xique-Xique, 08 de maio de 1932, n. 12, p. 3). Esta foi a forma
encontrada pela imprensa para se solidarizar com a situação dos flagelados, levantando
propostas para diminuir o sofrimento dos famintos e por outro lado defender os interesses dos
proprietários, que conviviam diretamente com este problema e tinham que se manifestar de
alguma forma.
Apesar dos laços de solidariedade terem sido relativamente fortes não só em
Canabrava do Gonçalo, mas também na cidade de Xique-Xique, como pudemos notar em
vários depoimentos e nos registros da imprensa, a existência de conflitos foi constante,
principalmente quando as pessoas se negavam a dividir o que ainda lhes restava. Isso
contribuía para que algumas pessoas, no auge do desespero, pegassem comida à força, ou
mesmo intervenção da polícia a fim de “manter a ordem”. Outros buscavam na fé o fim do
88
sofrimento, pois só podiam apelar “só pra Deus”, já que “o povo não tinha muita disposição
não nesse tempo [...] por isso que sofria mais, ficava aí queto, dentro de casa rezando”.
Contudo essa realidade não era única, pois “uns rezava, outros xingava, brigava”
(Depoimento de Joaquina Alves de Miranda, em 11 de fevereiro de 2005). Assim, o que
restava muitas vezes aos mais pobres era “esperar a chuva”, apelando para Deus e para as
pessoas que pudessem fazer doações.
3.2. FOME E MORTE NA SECA DE 1932
A fome foi uma das maiores angústias sofridas pela população mais pobre durante a
seca de 1932, tanto na Vila de Canabrava do Gonçalo, quanto em suas imediações. Josué de
Castro observou peculiaridades em aspectos relativos à fome que atingia periodicamente parte
da área do sertão nordestino comparada a outras regiões no Brasil. Segundo ele,
no estudo desta nova área – a do sertão nordestino – vamos encontrar um
novo tipo de fome, inteiramente diferente. Não mais a fome atuando de
maneira permanente, condicionada pelos hábitos de vida cotidiana, mas
apresentando-se episodicamente em surtos epidêmicos. Surtos agudos de
fome que surgem com as secas, intercaladas ciclicamente com os períodos
de relativa abundância que caracterizam a vida do sertanejo nas épocas de
normalidade (2008, p. 157).
Esta peculiaridade contribuiu em grande parte para o desenvolvimento de estratégias
que possibilitassem a sobrevivência em momentos de estio, como a reserva de parte do que
era produzido pelo pequeno proprietário para suprir as necessidades básicas da família,
durante este período do ano. Contudo, quando a parcela anual caracterizada localmente como
época de “seca” – de abril a outubro - se prolongava, era necessário tomar medidas
emergenciais para conter a fome.
Dentre estas medidas encontram-se basicamente as que já foram apresentadas no
decorrer deste trabalho como a adaptação da dieta alimentar por aqueles que não optaram pela
via da emigração, o furto a propriedades, ou mesmo o pedido de esmolas ao longo das
localidades, por onde passavam durante a retirada, que tinha como principal objetivo alcançar
a cidade de Xique-Xique que possuía uma das alternativas mais procuradas pelos flagelados,
já debilitados após a longa caminhada caatinga adentro: o porto. No porto da cidade de XiqueXique, estes retirantes aguardavam a possibilidade de embarcar rumo a uma região mais
promissora, onde não fossem vitimados pela miséria que chegava juntamente com a seca.
89
Algumas famílias embarcaram para trabalhar em fazendas distantes, outras tantas
buscaram diferentes rumos. As famílias do Senhor Ângelo e de Dona Joaquina migraram para
a cidade de Xique-Xique e permaneceram em seus arredores até o fim da seca, prestando
alguns serviços temporariamente para obter recursos. Com o retorno das chuvas ambas as
famílias optaram pelo retorno a Canabrava do Gonçalo, onde possuíam propriedades que lhes
possibilitavam o recomeço93.
Josué de Castro classificou como fome global o fenômeno que resultava das secas
nordestinas. Para este autor,
São epidemias de fome global quantitativa e qualitativa, alcançando com
incrível violência os limites extremos da desnutrição e da inanição aguda e
atingindo indistintamente a todos, ricos e pobres, fazendeiros abastados e
trabalhadores do eito, homens, mulheres e crianças, todos açoitados de
maneira impiedosa pelo terrível flagelo das secas (2008, p. 157).
Concordamos com o autor citado acima, quando ele aponta que a fome atinge a todos
em uma sociedade assolada pela seca, porém, tratando da comunidade de Canabrava do
Gonçalo e suas imediações – acreditamos que esta observação serve para outros locais
também - é necessário relativizar os efeitos da seca a depender da situação econômica de cada
família, pois apesar dela provocar mudanças no cotidiano de toda a população atingida, cada
grupo responde a ela de uma forma diferente, muitas vezes a partir das suas condições
econômicas. Uns migravam, outros resistiam de maneira diferente, outros ainda faziam
doação de esmolas, mas não podemos desconsiderar o fato de que a seca de 1932
desorganizou e reorganizou o modo de vida de muitos, incluindo famílias outrora abastadas,
que vieram à falência em decorrência da seca, como já apontamos em outro momento.
Diante das diferentes respostas, bem como das diferentes experiências uma se
sobressaiu: a migração, que foi discutida no Capítulo II. A fome excessiva fez com que muitas
famílias deixassem seus lares e se retirassem, percorrendo diferentes lugares, tentando
encontrar uma vida melhor. Para alguns, mesmo à custa de humilhações e sofrimento, da
fome e da miséria, as dificuldades não vinham acompanhadas diretamente da dor da perda de
parentes em decorrência da seca. No entanto, para outros a tristeza de ver parentes ficando
para trás, nas estradas por onde passavam foi mais constante, como para Dona Idália que
93
O fato de ser proprietário pode ter funcionado como aspecto definidor na escolha do retorno para Canabrava
do Gonçalo de muitas famílias que se retiraram em função da seca de 1932. Tal observação pode ser comparada
e considerada divergente da realidade apresentada pela Literatura através das obras Vidas Secas (2007), Seara
Vermelha (1978) e O Quinze (2002), que tratam de outras localidades e apresentam a retirada como um caminho
sem retorno, pois as famílias migrantes não tem propriedade para retornar.
90
demonstrou sua experiência, explicando o que levou sua família a emigrar durante a seca de
1932, para a região de Jequié:
Mode a Cris que tava matando gente de fome e no sul tinha muito o que
comer. Meu pai foi com um bocado de filho pra vê se salvava a situação, e
do meio pro fim ficou meu pai lá e um monte de irmão tudo enterrado
(Depoimento de Idalina Leite, em 03 de fevereiro de 2005).
A crueldade da seca devastava famílias. Corpos se espalhavam pelos caminhos mais
procurados pelos retirantes, causando a terrível sensação que pode ser percebida a partir
leitura da obra Vidas Secas (2007), quando trata do temor de Fabiano e de Sinhá Vitória das
arribações, ou seja, dos urubus que aguardavam ansiosos o desfecho da vida de mais um
animal e, muitas vezes atacavam antes que a morte o definhasse por completo.
As estradas percorridas pelos retirantes que buscavam a cidade de Xique-Xique como
refúgio ficavam abarrotadas de corpos de flagelados que não resistiam à viagem e morriam
pelos caminhos. Uma depoente afirmou que seu pai, que morava em uma fazenda próxima à
cidade de Xique-Xique, lhe contava que,
Quando ele vinha pra aqui [Xique-Xique] fazer compras ele encontrava
muitos corpos de pessoas que não resistia chegar aqui na beira do rio. Então,
me lembro que uma certa vez a gente vindo até de cavalo e ele disse assim:
olha minha filha ali foi enterrado o pessoal que vinha correndo da seca
(Depoimento de Gení Feitosa, em 01 de julho de 2009).
As notícias sobre a devastação que a seca provocou naqueles que buscaram o caminho
da emigração, se espalhavam do mesmo modo através das páginas de A Ordem, que também
tratou da terrível situação enfrentada pelos retirantes. Segundo esse jornal nas proximidades
da cidade de Xique-Xique,
Foi encontrada morta, uma mulher com duas criancinhas também mortas, ao
seu lado e outra que ainda estava amamentando. Esta, porém, ainda vivia,
sendo salva pela pessoa que as viu entregando-a aos cuidados de sua família.
Morreram de fome!
E assim tem sido outros tantos que se não tem levado de vistas (A Ordem,
Xique-Xique, 20 de dezembro de 1931, p. 4, n. 19).
Quem percorria as estradas se deparava com um grande número de flagelados que
migrava, além disso, encontrava corpos, inclusive de crianças que juntamente com suas mães,
não resistiram à viagem.
Era noticiada pela imprensa a morte de crianças pelas estradas. Muitas delas poderiam
ter sido abandonadas pelos pais devido à falta de condições de levá-las adiante, pois, anos
depois da seca de 1932, uma das famílias que migrou de Canabrava do Gonçalo fugindo da
91
seca, retornou e trouxe consigo um menino deficiente que, segundo uma depoente, foi
abandonado por sua família à beira de uma estrada, já que seus pais não tiveram mais forças
para levá-lo consigo.
Diz que o tempo tava muito ruim e diz que Preta mais Antonio Marchinha
foram aí pra esse giro de Minas e daí minha fia naquele tempo não tinha
carro, não tinha nada, ia de pé. Aí quando eles disseram que ia Antonio
Marchinha mais Preta, aí o pai de Cirço mais a mãe também diz que ia e diz
que Cirço destamanhão, mas diz que não caminhava minha fia, diz que
quando colocava em pé as perna veia drobava, não caminhava. Aí diz que
ajuntaro foro os quatro junto. Quando um cansava dava a outro, quando um
cansava da a outro. Aí diz que quando chegou aí por esse mundão de Minas
diz que tinha uma estrada assim com duas perna, uma prun canto outra pro
outro. Aí diz que Preta mais Antonio Marchinha queria ir pra um canto e o
pai de Cirço mais a mãe queria ir pra outro aí findou que separaro. Aí dona
Preta mais Antonio Marchinha entraro pra outro, o pai mais a mãe entrou por
outro, mas lá na frente a estrada saía num canto só, encontrava. Aí diz que
Preta mais Antonio Marchinha chegou primeiro que eles não ia com pesado
né. Aí tinha um pezão de pau muito grande aí diz que dissero: nós vão espera
aqui fulana mais fulano aí diz que ficaro, mas demorô, demorô muito tempo,
diz que já tava quage meio dia, aí diz que quando aponta só a muié e o homi.
Aí diz que Preta mais Antonio Marchinha disse: e o menino? O que foi feito
daquele menino? Aí diz que quando eles chegaro diz que Preta mais Antonio
marchinha disse: e cadê o menino? E ela disse: o menino nós larguemo por
aí pra onça comê porque nós não ia carregá um peso daquele só. Ah menina,
mas pra que dissero isso, diz que Preta mais Antonio marchinha dero um
topo logo e aí diz que azuaro e o veio mais a veia ficou lá e eles voltaro atrás
de Cirço, aí diz que tudo viajaro um bom tempo minha fia, diz que viro que
era o eco de Cirço minha fia, chorando e gritando, de quatro pé pro lado que
o pai mais a mãe saiu. Aí diz que chegaro lá e panharo Cirço e aí também
não voltaro mais pra cá pra não encontrá com o pai mais a mãe, de lá mesmo
eles voltaro e foro pra outro canto e eu acho que o pai mais a mãe de Cirço
não viro mais ele e aí diz que foro pra Minas (Depoimento de Irene Gomes
Soares, em 07 de abril de 2009).
Cirço sobreviveu graças à solidariedade do casal até então desconhecido para ele, que
se compadeceu das suas limitações e conseguiu inclusive fazer com que conseguisse andar
após alguns anos. Viveu em Uibaí até morrer atropelado nos anos de 1980.
Apesar dos depoentes não terem citado casos de óbitos de moradores de Canabrava do
Gonçalo, confirmaram a ocorrência de mortes entre os flagelados que buscavam nas
imediações da Vila melhores condições de sobrevivência, como foi citado por Dona Joaquina
a morte de uma mulher que pedia esmola na localidade do Poço e faleceu após se envenenar
comendo um pedaço de mandioca crua. Outra depoente, Dona Jaci nos relatou sobre uma
pessoa, também retirante, que havia morrido nas imediações do Sobreira94, quando percorria o
caminho em direção à cidade de Xique-Xique.
94
Atualmente corresponde a uma localidade homônima na área rural do município de Uibaí.
92
As causas de mortes em períodos de seca tinham diversas origens. A principal era a
fome, que enfraquecia e debilitava os corpos e, além de provocar a morte por inanição, abria
caminho para que fossem instaladas nos frágeis flagelados algumas doenças que se tornavam
facilmente epidemias. A leva de retirantes carregava consigo o “perigo” da contaminação e
disseminação da varíola, por exemplo.
Além disso, outras doenças como o impaludismo foram responsáveis por arrasar
populações. Era uma doença corriqueira nas regiões banhadas pelas águas do rio São
Francisco (Foto 9) e atacava frequentemente as populações ribeirinhas dos arredores de
Xique-Xique95 e, em 1932, foi somada aos problemas resultantes da seca, pois
É sabido ainda que além do flagelo da fome, o paludismo esta disimando as
populações das zonas sanfranciscanas, desassombradamente, tendo há cerca
de cinco dias o Cel Franklin solicitado do Diretor de Saúde Pública recursos
de medicamentos para atender a situação de desespero de mais de três ou
quatro mil paludados de Barra até Casa Nova (A Luz, Xique-Xique, 03 de
julho de 1932, p. 4, n. 19).
Foto 9: Vista da Ipueira do rio São Francisco na cidade de Xique-Xique (Fotografia de Daiane
Dantas Martins, em 30 de junho de 2009).
95
Uma depoente nos afirmou que seu marido, quando era vivo e residente na cidade de Xique-Xique foi
vitimado pelo impaludismo uma série de vezes.
93
O impaludismo se tornou um forte aliado da fome na destruição de vidas. Vários
depoentes citaram exemplos de conhecidos seus que, para fugir da seca na caatinga, se
retiraram para “a beira do rio” e não sobreviveram.
A retirada era motivada pelas dificuldades advindas, sobretudo da falta de alimentos
ocasionada pela falta de chuvas nos anos que antecederam 1932. Sobre isso, o depoente
Senhor Sinó, que morava na localidade de Laranjeira, nos falou um pouco sobre a realidade
enfrentada por muitas pessoas durante a seca de 1932:
Da seca de 32 houve uma grande falta de chuva vários tempos, vários anos.
Naquele tempo não tinha transporte, não tinha carro e aí agora acabou o
alimento na região, pouca gente é que tinha condição de guardar um certo
alimento e o mais era tudo com precisão. Uns saíram pra aqui pra XiqueXique, Marrecas, outros foram pra aqueles lados de Barreiras e outros saíram
pra fora, um bocado morreu por aí, ali ne Cotegipe 96 (Depoimento de
Sinobilino Sancho Paiva, em 02 de abril de 2009).
Para este depoente a situação de pobreza e as limitações no desenvolvimento dos
meios de transporte contribuíram para dificultar ainda mais a vida da população mais pobre,
pois a carência de chuvas trouxe a escassez de alimentos. Não tendo outra saída, alguns
migraram para regiões mais promissoras como última alternativa. Assim,
Não tinha o que fazer porque o povo era lavrador, vivia duma rocinha, não
tinha arte, não tinha cultura, não tinha nada. Porque vivia em cima daquele
sofrimento e uns ganhavam o mundo e não voltavam mais, muita gente. Eu
mesmo inda perdi dois tio meu aqui na Marreca que saiu daqui, lá foram,
pegaram, na Marreca acho que a trabalhar num lameiro lá, mas era uma
sezão danada e eu perdi dois tio lá que foram trabalhar pra mandar alguma
coisa pras família. Era um tio, era Zupero e o outro era Agenor. Morreram lá
na Marreca de impaludismo, de sezão. Não tinha naquele tempo o combate à
febre amarela que hoje faz. Naquele tempo não tinha isso não. O lugar mais
atrasado, o governo, o Estado era muito grande e os governo era muito longe
(Depoimento de Sinobilino Sancho Paiva, em 02 de abril de 2009).
Diante da adversidade proporcionada pela situação de calamidade em decorrência da
seca, muitos emigraram à procura de trabalho para poder sobreviver, porém, algumas vezes se
deparavam com a sezão e não conseguiam resistir. Dessa forma, enquanto fugiam da morte
em decorrência da seca eram destruídos pelas doenças as quais não eram acostumados.
Contudo, é necessário ponderarmos que, apesar de parte da sociedade “canabrabeira”
ter sido acometida por dificuldades durante esta seca e migrado, existiam diferenças sociais
mesmo que não fossem tão acentuadas como em outros locais. Essas diferenças tiveram peso
96
Localizava-se nas proximidades de Barreiras.
94
no contexto da seca de 1932, pois eram capazes de determinar a forma de enfrentamento da
crise instalada neste momento.
O depoente Senhor Zuza nos apresentou a descrição de alguns elementos que
caracterizavam um rico no início do século XX em Canabrava do Gonçalo, citando o exemplo
de um filho de migrantes que conseguiu se destacar economicamente nesta sociedade:
Antonio de Cadete plantava as roça de milho, na enxada, e capinava. A roça
dele era bem zelada, bem limpinha, mansa e ele andava capinando com uma
capanga97 panhando o pé de mato pra botar dentro da capanga, que é pra não
amadrucer ali, pra não sementear. E aí, plantava meio longe e a terra muito
boa, inda é lá naquele lugar [...]. E aí ele pegava aquela safra de milho, dava
muito milho, era difícil perder e ele ficava com ele lá por o meio da roça,
sem quebrar. Quando abusava sem quebrar, sem dar pressa, ele quebrava e
ajuntava e enchia o paiol lá, fazia as casa. Casa mal feita, de parede de pau
assim deitado, enchia de milho na espiga e deixava lá. Aí, às vezes no outro
ano era mais ruim, não tinha chuva, não dava milho, ele ia vender aquele
milho. Guardava na palha, aí fazia muito dinheiro, vendia caro porque os
outro não tivero pra vender, aí comprava vaca com aquele dinheiro, ainda
criava um bocadinho de gado. Mas era assim as riqueza, não tinha negócio
de cama boa, nem coberta boa e nem filtro e nem colchão bom (risos) e nem
televisão e nem nada. Era só a mesa de feijão com gordura de toicim, carne
era o dia que eles matasse um porco pra comer, uma galinha, um frango,
uma coisa, ou bode. Pobre que não tinha nem bode, nem cevava porco e nem
nada era trabalhando o dia pra ganhar o dinheiro, quando algum pagava, se
não pagasse era aí passando fome (Depoimento de José Filgueira Neto, em
04 de março de 2009).
Os que possuíam melhores condições econômicas, como no exemplo citado acima,
chegavam até a se beneficiar de crises menos devastadoras vendendo os produtos que tinham
sido poupados para o ano seguinte. Dessa forma, a possibilidade de realizar uma poupança
mais farta e com isso enfrentar uma seca menos severa, fazia com o que os “mais ricos”
socorressem ao menos os parentes mais próximos, pois segundo o Senhor Sinó,
Os mais ricos compravam umas coisa e guardava e iam se alimentando e
socorrendo e tinha uns que era de boa índole às vezes tinha boa ideia, bom
coração e fazia vendagens pra outros parente, também mais rico e ia
socorrendo, e aquele que não tinha socorro não tinha nada, agora acontecia
que ia morrer de fome. Aconteceu que muita gente faltou alimento e morreu
(Depoimento de Sinobilino Sancho Paiva, em 02 de abril de 2009).
Aqueles mais pobres que não tinham parentes com condições de socorrê-los seguiam
pelas estradas e muitas vezes esbarravam a caminhada, tomados pela morte. Por Canabrava do
Gonçalo passaram inúmeros flagelados que vinham de localidades vizinhas e buscavam
refúgio nas cidades ribeirinhas próximas à cidade de Xique-Xique, ou mesmo qualquer
97
Tipo de bolsa com alça grande muito utilizada para levar objetos para a roça.
95
alternativa naquelas imediações, pois o porto desta cidade era uma das principais vias de
acesso a outras regiões. Uma depoente destacou em sua fala um aspecto que se configurou
como uma das lembranças mais marcantes em suas memórias sobre a seca de 1932, o seguinte:
Tu sabe que a coisa que eu me lembro mais era daqueles povo pedindo
esmola. Era assim direto, direto, e muita gente que foi pra Xique-Xique, pra
beira do rio pra pegar peixe, mas não morreu de fome, mas morreu foi muita
gente, que morreu, tudo de impaludismo. Impaludismo é malária, acho que é.
Agora gente pedir esmola era demais, demais e ficou essa cidade
pequenininha que não era cidade era Arraial cheio de gente pobre que fazia ó
chô te falar que eu lembro bem essas coisa mais porque minha mãe, ela tinha
o coração bom, muito bom, minha mãe, era uma pessoa boa. Pediam e ela
não negava e condições graças a Deus, graças a meu pai, deu a muita gente,
muita gente. E muitos pedintes vinham de outros lugares. A seca não foi aqui
não, a seca foi, parece que foi na Bahia toda, ou foi no país que eu não sei
dizer (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de março de 2009).
No depoimento acima podemos destacar, além do grande número de pessoas que
pediam comida nas casas para matar a fome e da preocupação em construir uma memória
positiva sobre sua mãe, baseada na bondade expressa na caridade, a dimensão da seca, que se
revelou como algo que não atingiu apenas a Vila de Canabrava do Gonçalo e suas imediações,
mas o Estado da Bahia, ou até mesmo todo o Brasil. A consciência da extensão da seca pode
estar associada tanto à grande quantidade de pessoas pobres que não tinham como se
alimentar e migravam, inclusive de Estados vizinhos como Piauí e Ceará.
A existência do presente influenciando as memórias sobre o passado foi observada no
depoimento a seguir, em aspectos onde o hoje é comparado ao antes, ao momento em que
ocorreu a seca de 1932,
Não teve nada de roça, então não tinha trabalho. È porque não tinha o
socorro, naquele tempo os poderes públicos não faziam como hoje que vem
as ajuda. Ah se fosse hoje, hoje ninguém morria de fome, mas naquele
tempo. Olha, nas margens do rio São Francisco inúmeras, inúmeras,
inúmeras quando não morria da fome, a malária matava, que era o que tu
sabe que beira do rio que dá (Depoimento de Olga Machado Levi, em 18 de
março de 2009).
Assim como neste depoimento, nos demais, esta seca marcou as memórias de forma
negativa. Desta forma, o passado não está impregnado de nostalgia, muito pelo contrário, o
passado é a época do sofrimento, sobretudo da falta de assistência pública. Talvez este último
aspecto seja o responsável pelas mudanças existentes entre os dois momentos, pois a maioria
dos depoentes atribui mudanças entre as duas épocas à intervenção do Estado na região.
Muitas pessoas que moravam nas localidades próximas a Canabrava do Gonçalo e XiqueXique morreram em decorrência da seca de 1932, quer fosse pela fome, quer fosse por
96
doenças que se apoderavam dos corpos debilitados e para os depoentes de uma forma geral,
somente os poderes públicos seriam capazes de combater de maneira eficaz a seca e os seus
desdobramentos.
97
CAPÍTULO IV
A SECA, A IMPRENSA E O PROGRESSO NA CIDADE DE XIQUE-XIQUE
Com o processo migratório desencadeado em decorrência da seca de 1932, não só em
Canabrava do Gonçalo, mas em toda a região a circundava, inúmeras pessoas que passavam
por dificuldades de abastecimento seguiam viagem em direção ao centro econômico regional
da época, a cidade de Xique-Xique, na tentativa de encontrar trabalho, melhores condições de
vida e, sobretudo, alimentos para saciar a fome devastadora.
Uma “onda de flagelados” buscou esta cidade para sobreviver. Entretanto, subsidiados
pelas informações da imprensa local, percebemos que a população desta cidade estava, ao
menos inicialmente, mais preocupada com o embelezamento das ruas centrais da mesma ou
como chegariam de automóvel à cidade de Salvador, do que com a situação dos flagelados, já
que estavam ansiosos por implantar um novo modelo de infraestrutura.
As preocupações com as fachadas das casas e com o controle dos animais que ficavam
soltos circulando nas praças, se faziam mais importantes do que o grande número de famintos
que chegava à cidade e esperava algum tipo de ajuda. Esta realidade se modificou a partir do
momento em que o número de flagelados nas ruas atingiu proporções insustentáveis, esta
mesma imprensa, aliada ao prefeito municipal da cidade, deu início à procura de soluções
para o problema, que não era a seca em si, mas o que fazer com o imenso número de
miseráveis que esmolava pelas ruas, intensificado ainda pelo crescente índice de
desempregados em decorrência da crise na extração garimpeira da Serra do Assuruá. Alguns
destes, poderiam ser retirantes que haviam encontrado nestes garimpos possibilidades para
enfrentar a seca e, perdendo seu emprego se juntavam aos demais nas ruas.
Para resolver o problema que atingia a cidade, ou seja, para retirar estes flagelados da
cidade de Xique-Xique, foi pensada como alternativa o envio de famílias para trabalharem na
lavoura cacaueira do sul do Estado. A Prefeitura Municipal alistou um grande número de
famílias, entretanto, não foram todas que puderam embarcar por falta de vagas, conforme
apontaremos adiante. Entrou em cena também, o discurso que apontava outra solução: o
emprego da mão-de-obra ociosa na construção de obras públicas no espaço da própria cidade.
Tal medida casaria perfeitamente com os interesses da elite, preocupada em construir novos
espaços para abrigar o centro da cidade de costumes considerados ultrapassados, como a
limpeza de animais abatidos em calçadas, a presença de animais de montaria amarrados na
98
praça, hábitos estes que comprometiam o ideal de civilidade e progresso que tanto almejavam
alcançar.
4.1. EM BUSCA DO SÃO FRANCISCO: A ONDA DE FLAGELADOS EM XIQUEXIQUE
As dificuldades enfrentadas pelos moradores do sertão nordestino ao longo da seca
que culminou no ano de 1932 levaram inúmeros flagelados a buscar a sobrevivência às
margens do rio São Francisco, inclusive vindos da Vila de Canabrava do Gonçalo, como já foi
apresentado acima.
Mesmo que fossem muitas as pessoas que não conseguiram alcançar a cidade e
morreram pelas estradas, muitas delas encontraram na cidade de Xique-Xique o porto seguro
que lhes permitiria recobrar as forças para seguir viagem rumo a outro lugar, ou mesmo
esperar o fim da seca para retornarem ao ambiente de origem.
No processo de retirada, não eram raros casos de pessoas que, fugindo das caatingas
secas, não conseguiam alcançar o destino esperado. Um destes casos ficou registrado com o
título “Orror! Orror!”, pela imprensa da cidade de Xique-Xique. Em alguns trechos,
identificamos, ao menos, fragmentos da realidade vivida por flagelados que se retiraram na
seca de 1932:
Há poucos dias encontramos com dois garotos emigrados das caatingas.
Um de 12 e o outro de 10 anos, mais ou menos.
Disse-nos eles que eram dez irmãos, inclusive uma cazada98 que o marido
abandonou, que fugiam apavorados da fome que ora alastra todo o centro.
A falta de chuva tem trazido más conseqüências para essa pobre gente que só
vive da lavoura.
Há pouco tempo, no Poço de Manuel Felix, rejistrou-se um cazo tristíssimo.
Foi encontrada morta, uma mulher com duas criancinhas, também mortas, ao
seu lado e outra que ainda estava amamentando. Esta, porém, ainda vivia,
sendo salva pela pessoa que as viu entregando-a aos cuidados de sua família.
Morreram de fome! (A Ordem, Xique-Xique, 20 de dezembro de 1931, n. 19,
p. 4).
Eram levas de pessoas migrando para a cidade de Xique-Xique, à procura de alimentos
para suas famílias, já que as condições do campo estavam desfavoráveis àqueles que não
tiveram condições de reservar alimentos para o período de “seca”, contrariando o sentido que
98
Refere-se ao fato de uma das irmãs ser casada, mas abandonada pelo marido, possivelmente, impulsionado
pelas dificuldades oriundas da seca.
99
se dá à “cidade simultaneamente povoada, por homens provenientes dos campos circundantes
e mantida pela produção daqueles que permanecem no ambiente rural” (BARROS, 2007, p.
26-27). Naquele momento, os habitantes do campo foram à cidade em busca deste
abastecimento. Vários grupos de caatingueiros pobres emigraram do campo em direção à
cidade na tentativa de encontrar algum tipo de trabalho que lhes permitissem a sobrevivência,
embora muitos não tivessem alcançado o destino final, pois tombaram à beira das estradas que
davam acesso à cidade.
Ainda no ano de 1931, A Ordem, jornal que circulava na cidade de Xique-Xique,
reafirmou a situação de crise vivenciada na região. Não obstante, ressaltou que a mesma não
interferiu no andamento das comemorações da festa religiosa do dia 08 de dezembro, da
seguinte forma:
Apezar da grande crise que ora atravessamos, não deixou de correr bastante
animada a festa de Nossa Senhora da Conceição, graças aos esforços do
nosso amado pároco Mons. Costa Rego, ilustre vigário de nossa fraguezia.
O povo chique-chiquense que sempre mostrou boa vontade para com esta
festa não deixou de comparecer bem tanto para a missa como para a
procissão (A Ordem, Xique-Xique, 13 de dezembro de 1931, n. 18, p. 1).
Destacamos dois motivos para a animação da festa apesar da crise, com a presença
maciça de pessoas na missa e na procissão: em primeiro lugar é possível que a seca não
tivesse afetado a elite de Xique-Xique que, em grande parte, vivia do comércio e da pescaria e
era o grupo responsável pelo financiamento da festa; e, em segundo lugar, possivelmente a
grande presença de pessoas para prestigiar a festa estivesse relacionada a algum tipo de
pedido, penitência ou promessa realizada para a vinda de chuvas e, conseqüentemente, o fim
da seca, pois esta é a época do ano em que se espera chuvas na região.
A população da cidade de Xique-Xique não foi diretamente atingida pela seca de 1932,
a calamidade trouxe certo desconforto para os informantes do povo, que se comunicavam
através dos jornais da cidade, comunicando sobre o grande número de pessoas que chegava à
cidade e, também, reivindicava ao poder público que realizasse obras, assim como ocorreram
em outras localidades, para a construção de estradas a fim de ocupar flagelados da seca.
Serviços voltados para a ocupação destas pessoas, ao menos eram prometidos pelo
prefeito da cidade, que informou no jornal A Luz, “a alviçareira notícia de se achar em
construção o “mata burro” da rodovia para S. Inácio, no quilômetro 7” (A Luz, Xique-Xique,
14 de fevereiro de 1932, n. 1, p. 1). O correspondente do mesmo jornal complementou a
notícia, demonstrando a preocupação do órgão para com o número de “desocupados” que se
aglomeravam na cidade:
100
Oxalá que logo sejam terminados os serviços ali, S. Excia, reinicie os
trabalhos de construção de á muito paralizados na altura do quilômetro 37,
concorrendo assim, não só para a concluzão de um grande serviço, como
para o umanitário fim de socorrer ao grande número de flagelados que a cata
de trabalhos, esmolam pelas nossas ruas (A Luz, Xique-Xique, 14 de
fevereiro de 1932, n. 1, p. 1).
Para além do argumento “umanitário”, é latente a preocupação dos responsáveis pelo
jornal, tanto com o andamento das obras de melhoria de estradas, quanto com o ócio destas
pessoas. Esta preocupação em ocupar os flagelados da seca foi observada por Kênia Rios, ao
analisar o contexto desta seca na cidade de Fortaleza, pois a “seca de 1932 foi largamente
utilizada para a construção de obras na Capital” (1998, p. 59). Esta não era a única forma
encontrada pelos poderes públicos para ocupar os flagelados da seca. As pessoas que fugiam
do flagelo, também eram incentivadas a deixar a cidade, ampliando o número de alistados
para colonizar outros espaços que necessitavam de mão-de-obra para aumentar a sua
produtividade agrícola.
Por intermédio do próprio Interventor do Estado, através de telegrama publicado no
jornal A Luz, famílias de flagelados eram convidadas a se deslocar para a lavoura cacaueira,
no Sul do Estado, “no Núcleo Colonial Itaraca”. Todavia, não bastava que os familiares se
interessassem em emigrar para este espaço, pois o telegrama era enfático ao solicitar que
“deve ser feita seleção gente valida capaz entregar-se lavoura”, ficando evidente que, além de
“Aproveitá-los para o desenvolvimento agrícola na zona cacaueira – livra-los da penúria a que
estão causticados há longos tempos” (A Luz, Xique-Xique, 08 de maio de 1932, n. 12, p. 4),
tinham o objetivo de livrar a cidade do incômodo causado pelos flagelados.
A informação sobre o alistamento de famílias para serem encaminhadas ao sul do
Estado a fim de trabalhar nas lavouras de cacau, contribuiu para ampliar ainda mais o número
de flagelados à espera do alistamento nas ruas da cidade. Não foi possível enviar todas elas, e
mesmo os alistados tiveram de esperar por um bom tempo até o embarque, que passou a
acontecer de uma forma mais efetiva no decorrer do ano de 1932. Apesar de não ter sido
informado o destino, vapores transportaram para outros espaços, flagelados que se
encontravam na cidade de Xique-Xique. Foram enviadas 38 pessoas pelo “Djalma Dutra” e
42 pelo “Costa Pereira” (A Luz, Xique-Xique, 29 de maio de 1932, n. 15, p. 2) e ainda, 32
famílias, cerca de 260 pessoas, para trabalhar no serviço agrícola na “Fazenda São Martinho”,
em Martinho Prado, no Estado de São Paulo (A Luz, Xique-Xique, 05 de junho de 1932, n. 16,
p. 1).
101
Um novo fator somou-se a esse no envio de flagelados desempregados para a cidade à
espera de ajuda: a crise em que se encontravam os garimpos da serra do Assuruá, que estavam
suspendendo suas atividades devido à escassez de compradores para os produtos. Esta crise
afetava diretamente a economia regional, além de se tornar um complicador para o contexto
marcado pela seca que calcinava muitas pessoas, tendo em vista que os garimpos
funcionavam como oportunidade de empregar um grande número de flagelados da seca. Tal
era o desespero da imprensa com o agravamento da situação, que o jornal A Luz tratou de
encaminhar um telegrama aos congêneres na Capital pedindo ajuda para os flagelados:
Pedimos interessarem-se auxilio milhares flagelados esmolam nesta cidade
onde caridade publica já exausta socorrer pt. Numero aumenta
assustadouramente virtude depreciamento carbonado garimpos Assuruá onde
trabalhavam cerca 8000 pessoas que para aqui afluem (A Luz, Xique-Xique,
22 de maio de 1932, n. 14, p. 1).
Apesar de relatar no telegrama o empenho dos poderes públicos municipais em
minorar a situação de miséria em que se encontrava um grande número de famílias a esmolar
pelas ruas, o próprio jornal não destinou nenhum espaço para veicular este tipo de informação,
ao passo que sempre divulgava a ajuda destinada aos mesmos, empreendida por particulares.
Em vista disso, não podemos descartar a possibilidade de utilização da seca para captar
recursos a fim de que fossem empregados no desenvolvimento e urbanização da cidade,
considerando que foi enviado o pedido de verbas para empregar os flagelados em serviços de
construção de estradas, caes, etc., o que não resolveria os problemas gerados pela seca.
Assim, a preocupação com o emprego da mão-de-obra dos flagelados desocupados
que enchiam as ruas da cidade de Xique-Xique evidencia-se nas páginas do jornal A Luz, em
uma matéria que faz toda uma campanha em prol do trabalho, pois o “indolente, o preguiçoso
é um indivíduo perigoso, antisocial e repugnante – é um indivíduo perigoso que só vive a
ideialisar o mal e conjecturar perigosas maneiras de empregá-lo” (A Luz, Xique-Xique, 20 de
março de 1932, n. 6, p. 1). Possivelmente, esta matéria tivesse o intuito de atingir
indiretamente a grande massa de flagelados da seca, desempregados, que tomava conta da
cidade. Tal medida nos remete ao termo “classes perigosas”, apresentado por Sidney
Chalhoub (1996), para tratar da forma como os pobres eram designados, por serem temidos,
no contexto do Rio de Janeiro no período imperial.
Os pobres que tomavam conta da cidade e estavam às portas da Prefeitura Municipal
de Xique-Xique a implorar por trabalho, poderiam gerar também o temor do próprio prefeito,
José Nogueira, de que viessem a desenvolver ou mesmo estimular algum tipo de revolta,
102
tendo em vista o nível de miséria em que se encontravam, sobrevivendo de esmolas cedidas
por comerciantes e distribuídas em horários determinados para comover tanto o governo
Estadual, quanto o Federal e, assim, angariar recursos para combater a seca no município.
Como pano de fundo, notamos a preocupação em alertar para o fato de que,
Se não houver uma medida, que pelo menos arranje um recurso para esta
gente matar as suas necessidades fisiologicas, naturalmente o impulso de
conservação da vida, ha de estrugir e bramir impetuoso e indomavel, sem
que os Poderes Publicos e autoridades policiaes possam dar freio a
indignação humana” (A Luz, Xique-Xique, 22 de maio de 1932, n. 14, p. 2).
Corroborando mais uma vez com a indicação da existência de um temor com relação ao
potencial revolucionário dos flagelados.
Não obstante o incômodo gerado pela presença das “classes perigosas” na cidade e
mesmo que a situação gerada pela seca dificultasse a vida de muitos no ano de 1932, os
xique-xiquenses não perderam a empolgação para as comemorações do carnaval, que não
foram afetadas pela crise. Enquanto o número de famintos espalhados pelas ruas começava a
preocupar os poderes públicos que se empenhavam em encontrar um lugar adequado, onde
esta mão-de-obra pudesse ser empregada, a população, de uma forma geral, se divertia na
“folia do Deus Momo”.
Em meio à multidão que curtia as festividades, encontravam-se maltrapilhos, os
flagelados, parecendo comover, por alguns instantes, aqueles que se divertiam nos cordões da
festa. Neste momento, a alegria de alguns se misturava à precariedade da vida de outros,
conforme foi relatado pela imprensa local, que informa sobre a presença, logo após os cordões
festivos, de “uma pobresinha mendiga, que contava se muito mais de dez anos, pela sua
fizionomia alquebrada, olhos fundos, vestes rotas, demonstrando ali naquele corpinho frajil, a
miseria, a fome, a tristeza, a dor, e a cruel sorte” (A Luz, Xique-Xique, 14 de fevereiro de 1932,
n. 1, p. 2). Assim, era atribuída simplesmente à “cruel sorte” a situação deplorável na qual
muitos se encontravam, como forma de amenizar o remorso pela curtição das festas de
carnaval, em meio à miséria de muitos.
Muitos dos flagelados chegaram à cidade de Xique-Xique sem emprego e tiveram de
se submeter à mendicância para tentar amenizar a situação de miséria. Eram levas e mais
levas de pessoas que ocupavam o centro da cidade, saindo de porta em porta, especialmente
nas proximidades da área comercial a fim de comover a população, bem como os
comerciantes, de sua necessidade de serem ajudados. Mesmo incomodados com aquela
realidade, os mais abastados moradores da cidade de Xique-Xique, representados, inclusive,
103
pelos jornais, se comoviam com a miséria dos pobres e clamavam pela necessidade da
imprensa dar visibilidade a esta situação para que fosse possível solucionar o problema, pois
ninguém se condoi da sua penúria, ninguém dirije um apelo a seu favor.
Vivem coitados, chegam ás nossas portas, como vemos a todos os instantes,
famintos imundos, os olhos encovados a estender-nos a descarnada mão
implorando uma partícula do nosso pão que possa assegurar-lhes a triste
ezistencia por mais um dia. E nesta agonia interminável passam os
amargurados dias de vida, perguntando aos céus inclementes onde estará o
fim de tanto sofrimento (A Luz, Xique-Xique, 21 de fevereiro de 1932, n. 2,
p. 4).
A situação em que se encontravam muitos flagelados na cidade de Xique-Xique era
mesmo deplorável e digna de ajuda, sem contar os que faleceram, antes mesmo de encontrar
este espaço. Além dos mortos, as estradas que davam acesso à cidade estavam “apinhadas de
pessoas esqueléticas que imploram ao viandante uma migalha para suavisar o flagelo que lhe
quer vitimar!” (A Luz, Xique-Xique, 10 de abril de 1932, n. 9, p. 3), demonstrando que não
eram poucos os vitimados pela seca, que buscavam a cidade como um espaço que lhes
possibilitava a sobrevivência.
A própria cidade não sabia como lidar com o grande número de famintos que
adentrava no seu espaço. Sugestões apareciam na imprensa, preocupada com a possibilidade
da situação se tornar insustentável, pois ao mesmo tempo em que conclamava os poderes
públicos a empreender melhorias na infraestrutura e nos hábitos dos que habitavam a cidade,
para afugentar a ideia de atraso que poderiam ter os compradores de carbonados vindos da
Capital, se deparava com um novo problema: o número de famintos maltrapilhos que invadia
a cidade.
Uma alternativa proposta para resolver este problema foi veiculada na imprensa, que
considerou que, “Urge uma providencia e precisamos toma-la. A Prefeitura o Comercio
deviam dirigir-se as Empresas de Navegação e solicitarem o auxilio de passagens para os
nossos irmãos flagelados” (A Luz, Xique-Xique, 10 de abril de 1932, n. 9, p. 3). O próprio
jornal já se manifesta:
Daqui destas columnas imploramos por estas pobres vitimas aos Srs
Gerentes das Navegações do São Francisco, para darem lhes a grande
esmola de transporte para as paragens onde a calamidade não tocou, onde
ainda podem estas tristes almas adquirirem o preciso para sua manutenção
(Jornal A Luz, Xique-Xique, 10 de abril de 1932, n. 9, p. 3).
104
Era dessa forma que a imprensa da cidade de Xique-Xique tentava resolver a situação
em que se encontrava a cidade, abarrotada de flagelados e com outros tantos por vir, apesar de
não ter sido atingida pela seca, visto que a mesma havia abatido apenas as caatingas.
Desoladoras são as notícias que chegam das nossas caatingas onde a
calamidade do tempo tudo acabou tudo exterminou.
Viandantes, tropeiros, descrevem penalisados a situação que testemunham
nas suas passagens por aquelas paragens dantes tão promissoras. (A Luz,
Xique-Xique, 10 de abril de 1932, n. 9, p. 3).
As caatingas assoladas pela seca exportavam, cada vez mais flagelados. Como a
cidade não podia continuar com estas pessoas, o Prefeito providenciou o seu transporte para
outros lugares onde pudessem elas mesmas proporcionar sua manutenção, resolvendo assim, o
problema da cidade, não o dos flagelados. Todavia, esta opinião não era consenso, pois
mesmo que a população xique-xiquense, através de sua imprensa, demonstrasse um interesse
pela retirada dos flagelados da cidade, conclamando aos poderes públicos o fornecimento de
“passagens e hospedagens para portos agrícolas no sul do paiz” (A Luz, Xique-Xique, 08 de
maio de 1932, n. 12, p. 3), existiram opiniões diferentes quanto ao destino dos flagelados.
Para ocupar estes trabalhadores, surgiu o discurso de um letrado, o engenheiro Otavio
Carneiro, sobre alternativas mais interessantes do que a simples “distribuição de viveres e
dinheiros, pois tais iniciativas não solucionam o caso em vista das constantes explorações que
sempre surgem nessas ocasiões” (A Luz, Xique-Xique, 08 de maio de 1932, n. 12, p. 3), para o
direcionamento desta mão-de-obra ociosa. Para ele, as “construções de rodovias, caes, açudes
dão eficientes resultados, podendo fazer-se os pagamentos em viveres e dinheiros e sob
criteriosa administração de um funcionário” (A Luz, Xique-Xique, 08 de maio de 1932, n. 12, p.
3).
A opinião do engenheiro revela sinais de um discurso alinhado aos interesses de
utilização da mão-de-obra localmente, para o melhoramento urbano. Alternativa semelhante
foi observada, no mesmo contexto, em outros ambientes atingidos pela seca, como em
Fortaleza, onde foi percebido por Kênia Rios99 que,
As vantagens no emprego desta mão-de-obra são mais um elemento na
formulação dos protestos de alguns segmentos das classes dominantes contra
a emigração de retirantes. Com a emigração, sertanejos que poderiam estar
produzindo rendas na sua terra eram, então, entregues à atividade agrícola
em outros Estados” (1998, p. 43).
99
Historiadora que discutiu aspectos associados a formas de controle dos flagelados, durante a seca de 1932 na
cidade de Fortaleza, onde foram construídos campos de concentração para agregar e isolar os retirantes.
105
Além disso, seria mais fácil manter sob controle, flagelados ocupados, pois “o controle
dos retirantes e o desenvolvimento da cidade não são práticas excludentes. Ao contrário, o
desenrolar dos projetos de melhoramentos para a cidade era uma das formas de
disciplinamento dos sertanejos acossados pela intempérie” (RIOS, 1998, p. 56-57). Assim, já
que era necessário conviver com os flagelados, era melhor que eles não se transformassem em
uma ameaça. Essa possibilidade se aliava ao destino que deveria ser dado à sua mão-de-obra,
que estava sendo desperdiçada e poderia contribuir com o progresso da cidade. Obras como
um açougue público ou a construção de um espaço apropriado para que os tropeiros
estacionassem seus animais eram reivindicadas pela população da cidade de Xique-Xique, os
quais, caso o Prefeito Municipal conseguisse convencer o Interventor do Estado, da
necessidade do envio de verbas em prol dos flagelados, seriam construídos. No entanto, estes
recursos parecem não ter chegado, pois
até a década de 30 a Bahia parece não ter disputado, em condição de
igualdade com os outros Estados do Nordeste, os recursos advindo do
Governo Federal através das políticas de combate à seca. Enquanto no Ceará
o IFOCS construiu entre 1909 (quando foi criado) e 1929 cerca de 45 açudes
e iniciou a construção de mais 37, na Bahia, no período compreendido entre
a organização da Inspetoria do Estado em 1912, até 1930 foram construídos
apenas 9 açudes, 7 dos quais após 1919 (BAHIA, 1985, p. 30).
São elencados dois fatores que influenciaram para que o Estado da Bahia fosse
relegado a um segundo plano quando se tratava de combate às secas. O primeiro é o fato
Referente ao controle que outros Estados nordestinos (Ceará, Paraíba e Rio
Grande do Norte, especialmente) mantinham sobre as políticas e órgãos que
atuavam no combate ás secas [...] e outro, relativo ao fato das atividades
pilares da economia baiana terem se situado tradicionalmente na região
litorânea [...] As atividades econômicas desenvolvidas no interior do Estado
na região semi-árida eram colocadas, até então, em plano secundário
(BAHIA, 1985, p. 30).
Dessa forma, os recursos destinados ao combate às secas eram bastante disputados. Os
espaços mais beneficiados eram aqueles em que a seca já era considerada um problema
legítimo, como no contexto cearense, onde a necessidade de retirar os flagelados da cidade de
Fortaleza, levou os poderes públicos a fazerem altos investimentos para impedir que esta
população alcançasse o centro da cidade. Para isso, destinaram somas de dinheiro a fim de
que fossem construídos espaços para manter estas pessoas indesejadas isoladas, os campos de
concentração. Esses espaços tinham o objetivo de “controlar o movimento migratório dos
106
famintos; ou seja, tentar impedir a chegada dos flagelados à Fortaleza e a outras cidades do
Ceará [...]” (RIOS, 1998, p. 127). Esta alternativa não chegou à cidade de Xique-Xique,
distante da Capital do Estado, que não obteve auxílios suficientes para aplicar nenhuma
medida mais drástica para o mesmo fim, teve de lidar diretamente com os flagelados da seca
em seu espaço urbano.
O que se evidenciou a partir das páginas da imprensa dessa cidade é que os retirantes
que buscavam espaço não eram bem vindos e só não eram ignorados devido ao fato de se
encontrarem aos montes, espalhados a mendigar pelas ruas, despertando o medo de que
pudessem se rebelar e ameaçar a ordem. Só teve início uma campanha “em prol dos
flagelados” quando o discurso da seca passou a ser utilizado para angariar recursos que
pudessem beneficiar a cidade com a construção de obras emergenciais, a um baixo custo.
Assim, os líderes políticos da cidade de Xique-Xique também tentavam incluir mais este
espaço no rol dos que necessitavam de investimentos do Estado no combate à seca. Este
discurso foi utilizado inclusive, para reivindicar uma diminuição na carga de impostos
cobrados aos comerciantes, prejudicados pela crise.
A cidade de Xique-Xique recebeu um imenso número de flagelados que, em sua
maioria, viviam de esmolas. Para além da justificativa humanitária, as doações feitas aos
flagelados funcionavam como uma forma de manter aquelas pessoas sob controle. Além disso,
a realidade vivida pelos flagelados inicialmente era ignorada pelos jornais, mas passou a
integrar os discursos veiculados na imprensa a favor de ações a fim de resolver o problema
que afetava a cidade por conta da seca: o número de miseráveis a esmolar pelas ruas. A partir
desse momento, matérias e mais matérias passam a integrar as páginas do jornal A Luz, “em
prol dos flagelados”, surgindo como alternativas, tanto a emigração para outros espaços,
quanto o emprego dessa mão-de-obra para beneficiar a construção de obras que tinham como
pano de fundo o “melhoramento urbano” da cidade de Xique-Xique, através da construção de
estradas e outras obras.
4.2. O FLAGELO E O PROGRESSO NO CENTENÁRIO DA CIDADE DE XIQUE-XIQUE
Apesar da seca que vitimava populações que viviam nos arredores da cidade de XiqueXique nos primeiros anos da década de 1930, as preocupações da população desta cidade
giravam em torno de problemas associados à necessidade de implantar um ideal civilizador,
focado tanto na inovação de hábitos da população quanto em modificações ligadas à
107
infraestrutura da cidade, como o embelezamento de casas, o alargamento de ruas e a
utilização de automóveis como meio de transporte. O contexto da seca coincidiu com estas
novas demandas e esta situação contribuiu para a pouca visibilidade do flagelo nas páginas da
imprensa que circulava na cidade, além de ser o ano de 1932 a data comemorativa do
centenário de Xique-Xique.
Assim, data ainda do final dos anos 1920100 quando, a região onde se localizava a Vila
de Canabrava do Gonçalo, que tinha como centro econômico a cidade de Xique-Xique,
tomava conhecimento do progresso associado ao desenvolvimento automobilístico (Foto 10) e
se preocupava, cada vez mais, com a ligação da cidade ribeirinha à capital do Estado através
de estradas, que permitissem o tráfego de automóveis, pois, até então, era mais comum que
fossem de vapor e trem ou no lombo de animais. Em vista disso, no ano de 1931 apareceram
relatos na imprensa de Xique-Xique
101
sobre viagens realizadas, principalmente por
compradores de pedras preciosas que passavam pela cidade em busca das minas da serra do
Assuruá e traziam notícias do percurso, como foi relatado pelo Jornal A Ordem:
Pela segunda vez chega nesta cidade, em automóvel, vindo de Baia, Aziz
Ossmar comprador de pedras preciosas.
Agora, porém, já ele nos deu melhor informação e fez melhor viagem.
Da primeira vez, gastou ele três dias, sendo que desta, veio em trinta e seis
horas. O percurso é de 841 quilometros, conforme marcou o carro (A Ordem,
Xique-Xique, 09 de outubro de 1931, n. 12, p. 1).
Em seguida, registraram uma série de nomes de pessoas célebres que visitaram a
cidade, bem como as notícias da viagem realizada, o que evidenciou a preocupação das elites
xique-xiquenses com o seu desenvolvimento e progresso, que se associava à ligação da cidade
com a Capital do Estado, bastante fundamentado no comércio de pedras preciosas. Esta
preocupação com o desenvolvimento da cidade associado à sua ligação com a capital do
Estado, bem como com o progresso oriundo da possibilidade de se realizar este percurso102 de
automóvel se fizeram presentes em vários momentos na imprensa local.
100
Foi por volta do ano de 1927 que a população de Canabrava do Gonçalo avistou pela primeira vez um
caminhão, comprado por Marinho de Carvalho, importante comerciante da vila.
101
Até mesmo a preocupação de tentar fazer circular um jornal na cidade denota esta preocupação, tendo em
vista que, somente na década de 1930 foi empreendida a tentativa de fazer circular na cidade de Xique-Xique
três jornais. Segundo Tânia Regina de Luca, “Imprensa e progresso, letras e luzes eram freqüentemente
associados” (2005, p. 137). Essa ideia nos remete ao fato de que os jornais foram batizados com nomes
sugestivos, que demonstram a preocupação de seus editores, sendo chamados: A Ordem (1931); A Luz (1932); e
O Progresso (1936). Contudo, com exceção do último que não possuímos os dados sobre o tempo que circulou,
nenhum deles circulou nem mesmo por um ano.
102
Segundo FERREIRA, no século XIX, Xique-Xique estava mais vinculada comercialmente às cidades que
margeavam o rio São Francisco do que à própria Capital, Salvador. FERREIRA, Elisangela Oliveira. Entre
vazantes, caatingas e serras: trajetórias familiares e uso social do espaço no sertão do São Francisco. Tese
108
Foto 10: Primeiro caminhão que chegou em Canabrava do Gonçalo no final dos anos 1920 (Fotógrafo
desconhecido, s/d).
No decorrer de meses, em alguns números do semanário A Ordem, foram veiculadas
informações acerca das possibilidades desta viagem. Em uma destas matérias é relatada a
tentativa de confirmação, pelos correspondentes do próprio jornal, da possibilidade de trânsito
de automóvel entre as duas cidades. Apesar da seca nas caatingas próximas a Xique-Xique, a
viagem não pode ser concluída devido à ocorrência de chuvas na região das Matas, o que é
relatado pelo jornal ao tratar do empreendimento. A empolgação com a viagem era evidente:
O “Passaro Amarelo”, nome pelo qual foi batisado o nosso carro, voava.
O começo da viagem foi ótimo, porém ao chegar a Páu Darco, quebrou o
eixo propulsor e tivemos que demorar algumas horas, enquanto o nosso
amigo Antonio veio de bibicleta á Chique-Chique buscar o eixo [...].
Continuamos a viagem. Artur Raimundo, nosso companheiro de viagem,
sentindo-se mal, fomos forçados a pernoitar em Canabrava do Gonçalo. No
dia seguinte o “Passaro Amarelo” abrindo as azas, foi nos levar ao França (A
Ordem, Xique-Xique, 11 de setembro de 1931, n. 8, p. 4).
Mesmo guiados pela emoção de seguir uma viagem longa de automóvel, fizeram
algumas paradas pelo caminho, que não comprometeram o seu sucesso.
A viagem foi ótima, tivemos algum paradeiro: em Canoão, uns 40 minutos;
em Canabrava dos Mirandas, tivemos de almoçar em caso do cel. José
Martins, onde demoramos uma hora mais ou menos: no Ventura, tivemos
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia.
Salvador, 2008.
109
detomar gasolina e em Cinco Várzeas tivemos em consulta. Dali resolvemos
chegar somente até o França, pois as chuvas nos embargaram a viagem. Em
Mundo Novo, a estrada é um pouco ruim e de Feira de Santana em diante,
conforme nos informaram em Cinco Várzeas, não se podia romper, devido
as chuvas [...].
Podemos dizer, portanto, que já se vai de Chique-Chique á Baia 103 , de
automóvel, contanto que na Mata não esteja chovendo (A Ordem, XiqueXique, 11 de setembro de 1931, n. 8, p. 4).
Além dos moradores da cidade de Xique-Xique que se aventuravam pela estrada de
automóvel para demonstrar a possibilidade de realizar este trajeto, o comprador de diamantes
e carbonados nas suas proximidades, Aziz Ossmar, efetivou este empreendimento dias depois
da tentativa frustrada dos xique-xiquenses. Os passos de sua viagem foram registrados e
disseminados pela imprensa local:
Realizou-se enfim, a viagem a tanto esperada.
Não nos coube a vitória conforme dissemos no número passado, como era o
nosso desejo, mas assim que o Aziz soube da nossa iniciativa, animou-se e
veio da Baia a Chique-Chique em automóvel.
Assim que ele chegou foi fazer-nos a sua visita e nos explicou o passado da
viagem.
Quantos dias gastaram? Perguntamos-lhes.
Três dias. Assim mesmo porque erramos a estrada diversas vezes e uma
noite até dormimos no mato. Porém podemos garantir que se faz a viagem
francamente em dois dias. (A Ordem, Xique-Xique, 18 de setembro de 1931,
n. 9, p. 4).
Ainda sobre o correspondente Aziz Ossmar, o mesmo jornal noticiou mais uma
viagem deste, agora retornando à Bahia. Não escondem o seu entusiasmo com a diminuição
no tempo necessário para percorrer o percurso de Xique-Xique a Salvador, pois anunciam:
“ele partiu daqui no dia 15 às 15 oras e chegando na Bahia a 17 às 6 oras, gastou portanto 39
oras de viagem, não se sabendo as oras de paradas” (A Ordem, Xique-Xique, 01 de novembro
de 1931, n. 14, p. 1). Este fragmento nos permite perceber a excessiva preocupação dos
responsáveis pela imprensa da cidade, bem como dos leitores, com uma diminuição da
distância da cidade com relação à capital do Estado, principalmente pela necessidade de
melhorar o escoamento das pedras preciosas que eram produto de destaque explorado na
região, além do que, os nomes mais citados no jornal, são justamente dos compradores de
diamantes que passavam pela cidade em direção aos garimpos, aparecendo no espaço do
semanário, neste ano de 1931, poucas referências à seca.
103
Como era comum que se referissem à cidade de Salvador. Este aspecto revela a ausência de uma identidade
dos moradores desta região com a Capital do Estado, talvez pelo relativo isolamento em que viviam, devido
principalmente à dificuldades de acesso entre os dois espaços.
110
Outro aspecto ressaltado na mesma matéria, associado também a ideia de progresso e
ascensão para a região indo além da ampliação da rede de estradas, mais uma vez relacionada
à necessidade dos compradores de diamantes e carbonados, diz respeito à busca de outras
melhorias, já que aproveitavam o espaço para evidenciar o apoio prestado por um influente
comprador destes produtos de nome Artur de Raimundo, associado a Aziz Ossmar, que
segundo o semanário, “tem grande interesse pelo término da estrada, auxiliando em tudo
quanto puder”. Além disso, asseverava: “Disse-nos este, estar trabalhando para arranjar o
telégrafo para S. Inácio o que não é muito difícil pois a linha está distante apenas 30
quilometros” (A Ordem, Xique-Xique, 01 de novembro de 1931, n. 14, p. 1).
Ao menos neste momento, a possibilidade de ligação da cidade de Xique-Xique com a
de Salvador, bem como o seu progresso, era surpreendentemente mais importante do que a
seca que assolava as caatingas próximas. Quando esta passa a ser objeto de destaque na
imprensa da cidade, principalmente no ano de 1932, no jornal A Luz, fazem questão de
ressaltar que a situação calamitosa da seca localizava-se e restringia-se à região das caatingas,
inclusive apresentando a comoção de pessoas “ilustres” que passavam pela cidade, em direção
aos garimpos de Santo Inácio, na Serra do Assuruá, como Artur Raimundo, comprador de
diamantes e carbonados, que se sentiu “penalisado pela calamidade que reina em nossas
caatingas, onde tudo atesta a penúria, a fome, o flagelo enfim” (A Luz, Xique-Xique, 06 de
março de 1932, n. 4, p. 4). O que evidencia a preocupação em manter a cidade de XiqueXique afastada da imagem de miséria e pobreza.
No início da década de 1930 as preocupações de parte da população da cidade estavam
voltadas para a concorrência focada na disputa pelo progresso. Despontava então, um rival
que ganhava, cada vez mais, prestígio. Era o arraial de Santo Inácio, rico em diamantes e
carbonados que atraíam um grande número de ilustres compradores destes produtos e era alvo
de melhorias que ameaçavam a superioridade de Xique-Xique, já reconhecida como cidade. O
medo de que o arraial superasse a sede do município evidenciou-se a seguir:
O cel. Manuel Alcântara, um dos maiores e incançaveis trabalhadores em
prol do progresso de S. Inácio, como tem mostrado com os serviços do
“Coelho”, onde tem gasto uma soma superior a 300 contos em um prédio de
3 andares, em S. Inácio, ainda em construção, agora foi à Bahia com a ideia
de comprar automóvel e caminhão e um motor para iluminar S. Inácio á Luz
elétrica (A Ordem, Xique-Xique, 22 de novembro de 1931, n. 17, p. 4).
O ciúme despertado com o avanço de Santo Inácio rumo à “civilização” com a vinda
de automóveis e caminhões, símbolos supremos de tecnologia na época, associado ainda à
111
iluminação do arraial, bem como outras melhorias, repercutiram na imprensa que demonstrou
certa indignação ao afirmar que:
Chique-Chique que é uma cidade e que há muito tempo preciza de Luz
eletrica, ficará envergonhado debaixo das lâmpadas de S. Inácio.
O plano do Cel. Manuel Alcântara é terminar a estrada de rodagem, e pôr
uma seção telefônica ligada ao nosso telégrafo.
Que assim seja são os nossos votos porque S. Inácio, não obstante ser um
arraial, é bem digno desses melhoramentos (A Ordem, Xique-Xique, 22 de
novembro de 1931, n. 17, p. 4).
Tão grande era a empolgação do povo de Xique-Xique com costumes e bens que se
associassem à ideia de progresso, que influenciou os moradores dos arredores, a exemplo da
ofensa sentida por habitantes de interior do município, na localidade denominada Santo Inácio,
que se sentiram ofendidos e travaram uma querela dentro do espaço do jornal A Ordem,
devido ao que foi afirmado por Anerzina F. de Brito, sobre as dificuldades enfrentadas pela
população local em decorrência da falta de água, ao afirmar que,
O povoado de São João, na acepção da palavra é dos melhores logarêjos do
ex-município de Assuruá; pois ali, além de conter todos os requisitos
ofertados pela fértil natureza, é muito abundante em água; ao passo que
Santo Inacio e outros lugares visinhos, nesse tempo, não tem água suficiente
nem para se beber; pois, a escassa água que ainda existe, é tirada com
alguma demora em cacimbas (A Ordem, Xique-Xique, 24 de julho de 1931,
n. 2, p. 2).
Os moradores de Santo Inácio sentiram-se ofendidos com tal afirmação, pois,
provavelmente, associavam a escassez de água ao “atraso” em que viviam algumas
localidades que não possuíam rios nem riachos, onde faltar água também poderia simbolizar
pobreza e aproveitaram a oportunidade para contestar de forma veemente as afirmações
declaradas anteriormente no mesmo jornal, especialmente quanto à origem da água ser de
cacimba. Esta discussão se fez presente em outros números do jornal, sendo rebatida: “Quanto
a água provir de cacimbas não é privilégio nosso, antes fosse, porque em todo Município é
nessas fontes que bebemos. Do mesmo modo, nunca nos faltou água para qualquer
necessidade quanto mais para beber” (A Ordem, Xique-Xique, 06 de agosto de 1931, n. 4, p. 1).
Esta afirmação é contestada pela autora da matéria inicial que se defende da seguinte forma:
Me lembro bem que certa ocasião, Firmino Miranda e Getulio Ribeiro, iam
para Gameleira e tiveram de pernoitar em S. Inácio. No outro dia quizeram
viajar cedo e não puderam porque estiveram mais de 3 horas a espera do café;
a pessoa que foi buscar a água para fazer o precioso liquido, teve que esperar
a sua vez porque era grande o número que esperava, e só ali, é que existia
112
um pouco de água[...] (A Ordem, Xique-Xique, 14 de agosto de 1931, n. 5, p.
2).
Ainda sobre a afirmativa de escassez de água em Santo Inácio, mais uma vez, uma
coluna do jornal deu espaço para explicações sobre o ocorrido e demonstrou o quanto os
moradores desta localidade se sensibilizaram para o fato e explicaram que a situação era
temporária e resultava da falta de chuvas:
Dirigimos as colunas deste jornal com relação aos snrs. Olimpio Bastos e
Getúlio Ribeiro que inconcientes estão afirmando que em S. Inácio a água é
escassa S. João tem com abundancia até corrente, quando não resta em suas
firmativas o menor veslumbre de verdade, pois somos filhos do povoado de
S. João e ninguém mais do que nós está apto a dizer as verdades neste
assunto, pois do modo que em S. Inácio bebemos água de cacimba, é o
mesmo que se bebem em São João, depende não haver abundância de chuvas,
como este ano não as tivemos, e assim outros que não nos são estranhos. É
nestes tempos que as águas destes lugares todas ficam de cacimbas como em:
S. João, Poços, Mangabeira, S. Inácio.
E aquele que ouvidar das nossas verdades venha pessoalmente verificar a
fim de levarem de vista para não andarem contestando o que não tem
conciencia.
Nestas ocasiões de seca todas estas águas que acima referimos são escassas
mas não nos falta para os nossos serventuários [...].
Aquele que interessar por água corrente de seca e verde em S. João
aconselhamos que faça um açude no rio S. Francisco afim de lá não se beber
água de cacimbas e de já afirmamos os nossos sinceros parabéns e votos de
felicidades, para que este progresso seja avante em beneficio daquela
povoação digna e merecedora, que dele tenho saudade, mais uma vez
Parabéns (A Ordem, Xique-Xique, 04 de setembro de 1931, n. 7, p. 4).
Para além da resposta dada a aqueles que, de alguma forma, acusavam os moradores
de Santo Inácio de não possuírem água nem para o café, notamos a intensificação das
dificuldades encontradas pelos moradores de regiões que se distanciavam das margens do rio
São Francisco. Eles tinham de recorrer à água de cacimbas que escasseavam em períodos de
seca, para saciar as necessidades, a exemplo de muitos dos moradores de Canabrava do
Gonçalo que obtinham água para o consumo desta forma.
A sedução pelo progresso e pela ideia de modernização se espalhou a tal ponto pelas
proximidades de Xique-Xique, que alguns ousavam empreender tentativas de inventar os
próprios carros para serem utilizados no transporte de cargas. Um destes momentos foi
satirizado na coluna do jornal A Ordem, denominada Dizem, que afirmava:
Que José de Ávila, em Poços, inventou um carro para puchar material, da
seguinte forma: precisa de um jumento para puchar o carro, um homem para
bater e outro para puchar o jumento, outro homem para empurrar o carro.
113
Serviço que um homem só podia fazer, carregando num caixote qualquer (A
Ordem, Xique-Xique, 14 de agosto de 1931, n. 5, p. 2).
Além disso, a preocupação com a ampliação das estradas de rodagem em direção à
Capital Salvador, era constante. Tal preocupação poderia estar relacionada à disseminação dos
automóveis que consistiam em verdadeiros artigos de luxo, constantemente exibidos, haja
vista que os moradores de Xique-Xique ansiavam pela visita dos mesmos e esperavam, pois
conforme registrado “brevemente virá de Morro do Chapéu á Chique-Chique, uma caravana
de automóveis, a passeio” (A Ordem, Xique-Xique, 14 de agosto de 1931, n. 5, p. 2).
A busca pelo progresso da região em torno de Xique-Xique estava associada também à
construção e melhoramento de prédios, o que pode ser percebido quando relatado sobre a
necessidade de construir uma igreja em Santo Inácio por um de seus representantes políticos,
Eliezer Leite “o qual tem mostrado ao povo Santinacense a sua boa vontade pelo progresso de
S. Inácio, trabalhando incansavelmente na construção da igreja que ha muitos anos vivia
esquecida pelo povo” (A Ordem, Xique-Xique, 14 de agosto de 1931, n. 5, p. 1).
A preocupação com a construção de edifícios para explicar a necessidade de novas
construções na região, pautava-se também nas necessidades higiênicas104. Esta revelação se
fez presente quando foi retratada a preocupação da sociedade xique-xiquense com a
salubridade do ambiente urbano, bem como com a sua alimentação, principalmente no tocante
à condenação à forma repugnante que, os “inescrupulosos vendedores, trazem essas carnes em
caixões imundos, em ganchos, em sacos, ou gamelhas nojentas e retalham-na nos passeios das
casas, onde se pisa, se escarra onde reside tudo que é inimigo do nosso organismo!” (A Luz,
Xique-Xique, 20 de março de 1932, n. 6, p. 1).
A fim de combater os perigos gerados pela manipulação inadequada das carnes,
chamavam atenção para a necessidade da construção de um local apropriado à realização
deste trabalho, um “açougue público”, contribuindo também para melhorar os hábitos desta
população. Tentava-se implantar um ideal de higiene na cidade de Xique-Xique e, para isso
procuravam apontar os culpados, considerando que “tão criminoso é o proceder desses
desalmados, como imperdoável e revoltante é o descuido da Prefeitura na sua fiscalização
higienica da cidade” (A Luz, Xique-Xique, 20 de março de 1932, n. 6, p. 2).
104
Segundo Rios, “O saber higienista ganhou, no final do século XIX, espaço institucional. Os diferentes
poderes urbanos – governo e burguesia comercial – passaram a utilizar o discurso da higiene como a “solução de
todos os problemas”, tais como: ruas mal alinhadas, avenidas estreitas, pobres dispersos, casas e prédios mal
feitos”. RIOS, Kênia Sousa. Isolamento e Poder: Fortaleza e os Campos de Concentração na Seca de 1932.
(Dissertação) Mestrado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1998, p. 67.
114
Também eram condenados os proprietários dos animais de pequeno porte como porcos
e galinhas que circulavam livremente pelo centro da cidade. Esta livre circulação ia de
encontro com os novos hábitos, considerados saudáveis e civilizados. Todavia, tais hábitos
não foram incorporados pela população, pois, já na década de 1950, eles continuavam a ser
verificáveis, pois no centro da cidade de Xique-Xique, segundo Altenfelder Silva é “comum
verem-se meninos de mais de doze anos defecando nas ruas, durante o dia. À noite, a área do
cais, mal iluminada, e os terrenos que bordejam o rio servem de instalações sanitárias; urinase e defeca-se na ipueira de cujas águas se serve a população para matar a sede” (1955, p. 62).
As novas ideias não obtiveram o sucesso esperado, o que notamos, é que existia nesta
cidade, nas primeiras décadas do século XX, uma pressão para a necessidade da
reorganização de seu espaço urbano, associada a uma mudança nos hábitos da população.
Para isso, a elite da cidade através das páginas dos jornais, reivindicava, cada vez mais,
melhorias na infraestrutura, com a construção de espaços “adequados” para manter longe da
Praça principal costumes “ultrapassados” como o de tratar animais nas calçadas das casas,
como também, não viam com bons olhos o uso do espaço das ruas do centro para o
estacionamento de animais de carga, utilizados pelos tropeiros para transportar boa parte das
cargas que chegavam ou saíam da cidade. Os donos desses animais foram responsabilizados
por tornarem sujo o ambiente citadino, pois segundo uma matéria de jornal, a “maioria dos
tropeiros, não contente com o entulho que produz os seus animais, entendem de transformar
as nossas ruas em estribarias, espalhando capins para pastagem dos mesmos” (A Luz, XiqueXique, 27 de março de 1932, n. 7, p. 3).
Ainda segundo a matéria acima, cabia à Prefeitura tomar as devidas providências para
alocar estes animais em um espaço para “isso preparado”. Era a tentativa de modificar um
costume há muito tempo existente na região, devido à necessidade de utilização deste meio de
transporte para se chegar aos lugares mais isolados. Esse costume, nesse momento, se tornava
incômodo, porém não era levado em consideração o fato de que esses animais eram mais
acessíveis à população, além de não serem muitas, nem amplas, as estradas disponíveis, os
automóveis ainda não haviam se popularizado nesta região, sendo pouco comum que
circulassem na cidade. A maioria dos automóveis pertencia aos compradores de diamantes e
carbonados que passavam pela cidade, antes de se dirigirem às minas e eram os responsáveis
por estimular a população da cidade a modificar o seu espaço, dando a ele um aspecto
progressista e o uso da força de trabalho dos flagelados da seca surge como uma alternativa.
115
Defendendo o “melhoramento urbano” da cidade, aliado à necessidade de ocupação da
mão-de-obra dos flagelados, o Capitão Nelson Xavier, Superintendente da Empresa Viação F.
do São Francisco, afirmou:
É um “Trabalhador incansável, progressista e ideialisador do bem, como
sobejamente tem provado, acaba de demonstrar a sua dedicação
especialmente para este município, para onde vem de obter com o Sr.
Interventor uma verba de 10:000$000, para atacar os serviços de uma
rodovia (talvez para Joazeiro ou para a Cidade da Barra) a fim de ocupar a
grande leva de flagelados que esmolam nas nossas ruas” (A Luz, XiqueXique, 15 de maio de 1932, n. 13, p. 4).
A reivindicação a favor da construção de uma estrada de rodagem para ocupar
flagelados que também visava contribuir para melhorias no acesso à cidade, surtiu efeitos e,
alguns meses depois,
Dr. Nelson Xavier e Cel. Franklin de Albuquerque conseguindo dos poderes
públicos a construção de uma estrada de rodagem, que partindo de Juazeiro,
vai até Barra, afim de minorar a situação angustiosa de nossos infelizes
irmãos, que, acossados pela fome e pela sede, procuram recursos de viver
nesta zona (A Luz, Xique-Xique, 15 de maio de 1932, n. 13, p. 4).
Assim, mais do que ocupar os flagelados, ela contribuiria para fortalecer as luzes do
progresso que se acendiam aos poucos na cidade.
Ainda com o objetivo de realizar um “melhoramento urbano”, foi solicitada a
construção de um barracão para a feira, próximo ao porto. Este pedido aliava a demolição de
um prédio ultrapassado, “de construção inacabada [...] para desobstruir a frente da travessa
que em paralelo a praça Conso. Luiz Viana, liga a rua 24 de outubro a avenida Rio Branco”
(A Luz, Xique-Xique, 15 de maio de 1932, n. 13, p. 4), à necessidade de renovar aquele espaço,
através da possibilidade de reformá-lo, transformando-o em um “abrigo de tropeiros e
bruaqueiros que vem fazer as feiras devido a estar situado a margem da ipueira lugar de fácil
embarque e desembarque” (A Luz, Xique-Xique, 15 de maio de 1932, n. 13, p. 4).
Contribuindo, tanto para retirar das ruas os indesejados animais, quanto para o
remodelamento do prédio abandonado, que trazia um ar de “atraso” à cara nova esperada para
a cidade.
A preocupação com o progresso da cidade, através de melhorias nas construções e nos
hábitos da população, parecia mais presente do que com a situação de miséria em que se
encontrava um grande número de pessoas, famintas e maltrapilhas, que buscavam a cidade.
Nesse sentido, importante mobilização existente na cidade, era a que estava voltada para as
obras de melhoria da Igreja Matriz, que passava por reformas com a finalidade de se preparar
116
para as festas de comemoração do centenário da Paróquia, que seria comemorado dia 06 de
julho. “Reina grande e entusiástica por tão dignificante serviço que atesta o grao de progresso,
de trabalho de nosso paroco, o Revmo. Mons. Antonio Costa Rego” (A Luz, Xique-Xique, 10
de abril de 1932, n. 9, p. 3).
Não foram impostos limites no sentido de arrecadar fundos para tão importante
empreendimento105, a população não mediu sacrifícios, apesar da seca.
As primeiras horas da noite, em uma verdadeira romaria são transportados os
materiais do porto para o local das obras.
Festivais tem sido realizados em prol do alto serviço.
Dadivas tem sido oferecidas por pessoas que a sua situação financeira assim
permite, tudo enfim, concorre com a sua pequena partícula em auxílio a
grande obra da nossa querida Matriz (A Luz, Xique-Xique, 10 de abril de
1932, n. 9, p. 3).
A população da cidade de Xique-Xique contribuiu também para o embelezamento da
cidade para as comemorações do seu centenário, que parecia mais importante do que as
condições precárias em que viviam inúmeras pessoas a esmolar pelas ruas. Essas esmolas
eram conseguidas pelos flagelados em grande parte no porto da cidade, espaço por eles,
localizado próximo ao centro. Eles esperavam encontrar na caridade dos passageiros e
tripulantes dos vapores, a sobrevivência por mais alguns dias.
Passageiros, Comandantes, Tripulantes de todos os vapores que por aqui
transitam, num gesto louvavel, dignificante, caritativo, distribuem viveres e
dinheiro.
Condoem-se desses infelizes acoitados da sorte.
E assim, essa falange famelica, mal ouve o silvar dos vapores, afluem aflitos
ao caes a espera do gesto filantrópico dos corações bem formados.
E assim, esses pobres miseráveis recebem uma pequena partícula que lhes
auxiliam a suportar o flagelo que lhes tortura! (A Luz, Xique-Xique, 10 de
abril de 1932, n. 9, p. 4).
As esmolas recebidas no porto eram o principal alimento que permitia aos flagelados
permanecerem vivos. Porém, sua presença parecia incomodar profundamente os responsáveis
pelo porto, a ponto de serem reprimidos pela polícia que “fez debandar sob ameaças de coices
de suas armas e vozerias ameaçadoras, um grupo de creanças e mulheres que recebiam das
almas caridosas dos tripulantes e passageiros do “São Francisco” uma caridosa esmola de
viveres!” (A Luz, Xique-Xique, 10 de abril de 1932, n. 9, p. 4). Este tipo de repressão, apesar
de não ser aprovada pelo jornal, evidenciou o tratamento direcionado aos fugitivos da seca na
105
A fim de angariar recursos para a conclusão de obras na Igreja Matriz, o Padre da cidade criou, até mesmo,
times de futebol que realizavam partidas para arrecadar dinheiro para a reforma.
117
cidade, que como se já não bastasse a humilhação a que já estavam imersos diariamente, não
eram bem vindos à cidade.
Outra preocupação acerca da presença destas pessoas nas ruas se relacionava ao perigo
em que elas se tornavam, no tocante à transmissão de epidemias que se apoderavam dos
corpos enfraquecidos pela desnutrição.
Doenças como a malária, velha conhecida dos ribeirinhos são-franciscanos106, já que
não infestava somente as vítimas da seca, se tornaram ameaças de contaminação para toda a
população e dividiam espaço com outras enfermidades que atingiam os assolados pela
intempérie, como a já citada muquirana e a fome preta, surgindo ainda rumores de que uma
infestação de varíola estaria atingindo o interior de Barreiras (A Luz, Xique-Xique, 01 de maio
de 1932, n. 11, p. 4), o que contribuiu para despertar a apreensão da população, tomada pelo
medo de que flagelados trouxessem mais pestes para a cidade, pois “as classes pobres não
passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porque poderiam oferecer problemas
para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam
também perigo de contágio”. (CHALHOUB, 1996, p. 29).
A alternativa encontrada no Ceará para manter afastados os flagelados, bem como as
doenças que carregavam, do centro da cidade de Fortaleza, foram os Campos de
Concentração107. Era uma forma de manter a pobreza isolada do centro da “Cidade do Sol”.
Tal realidade se aproxima do que pareceu ser a preocupação da elite xique-xiquense para com
a necessidade de construir um ideal de cidade limpa, civilizada, apesar de não fazerem
referência à necessidade de construção de campos de concentração, até porque não dispunham
de verbas suficientes. Contudo, os poderes públicos municipais da cidade de Xique-Xique
estavam preocupados com a retirada de flagelados do seu espaço urbano ao realizar acordos
com outras regiões que estavam aptos a receber estes migrantes como o Centro-Sul do Brasil,
ou mesmo o Sul do Estado da Bahia, conforme discutimos em momento oportuno.
Independente da presença dos flagelados, a cidade de Xique-Xique realizou as festas
em comemoração a seu centenário no dia 06 de julho de 1932. Para isso, foi imprescindível a
participação maciça da população, através de doações, da realização de festivais para
arrecadar fundos, ou mesmo da organização direta da festa, integrando as comissões dos
106
A Depoente Geni Feitosa informou que seu marido, já falecido, quando residia na cidade de Xique-Xique foi
atacado pela malária inúmeras vezes. Afirmando que era uma doença que acometia muitas pessoas na cidade.
107
Sobre o isolamento dos flagelados da seca de 1932 através dos campos de concentração no Ceará, Ver: RIOS,
Kênia Souza. In: Isolamento e Poder: Fortaleza e os Campos de Concentração na Seca de 1932. (Dissertação)
Mestrado em História. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 1998.
118
festejos (A Luz, Xique-Xique, 03 de julho de 1932, n. 19, p. 4). Dessa forma, ficou evidente o
objetivo da cidade,
Chique-Chique, quer que, na vida de sua historia, esforços inteligentes e
probos levem aos seus sertões as realidades d’uma ação progressiva de bemestar físico de material conforto, Chique-Chique quer que olhos vigilantes o
protejam e braços fortes o empurrem para um venturoso porvir (A Luz,
Xique-Xique, 17 de julho de 1932, n. 20, p. 1).
Enquanto muitas pessoas vivam em condições miseráveis, aguardando esmolas para se
alimentar, ou mesmo morrendo de fome, a população da cidade de Xique-Xique estava
preocupada com o andamento dos festejos comemorativos e com o embelezamento da cidade.
Desejavam que os sertões por si só se recuperassem para que seus habitantes retornassem a
seus lares e permitissem o desenvolvimento da cidade, através de construções cada vez mais
suntuosas que lhe concedessem ares de civilidade e progresso. Os flagelados partilhavam
dessas comemorações simplesmente porque não podiam ser ignorados.
Assim, a cidade de Xique-Xique comemorou o seu centenário no desejo de um futuro
marcado pelo progresso, independente das secas. Enquanto isso, os flagelados esperaram por
algum tipo de ajuda, sem a certeza de que ela viria. Alguns faleceram, outros migraram, e,
dentre os migrantes, muitos retornaram à região da caatinga para reconstruir suas vidas.
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Discutimos ao longo do trabalho experiências de sertanejos baianos, diante da seca de
1932, a partir de informações obtidas através da História Oral. A maioria dos depoentes é
composta por trabalhadores rurais, pois “a oralidade permite analisar o cotidiano e o pensar do
homem comum” (MIRANDA, 2004, p. 451). A seleção feita pelas memórias, nos possibilitou
abordar alguns aspectos do modo de vida de moradores da Vila de Canabrava do Gonçalo,
cujas vivências foram marcadas pelo trabalho, nem sempre bem recompensado, especialmente
diante da ocorrência de secas prolongadas como esta, que também era responsável por definir
a condição social dos indivíduos.
Suas narrativas revelaram respostas diferenciadas no enfrentamento das dificuldades
originadas em função desta adversidade. De acordo com os depoentes, muitas das pessoas ao
permanecer na vila se sujeitaram a uma dieta alimentar adaptada a fim de resistir à fome, onde
dispuseram de artigos oferecidos pela natureza nessas condições e chegaram até a correr o
risco de serem intoxicadas.
Os que buscavam a resistência através da migração, compunham o número de pedintes
seguindo pelas estradas, à procura da sobrevivência. Recorriam em grande número, à cidade
de Xique-Xique, assediados pelas informações de que a seca estava mais amena à beira do rio
São Francisco, onde esperavam encontrar trabalho e alimentos. Das famílias de migrantes
citadas pelos entrevistados, todas viviam em áreas mais afastadas da sede da Vila de
Canabrava do Gonçalo. Isso pode ser explicado pela maior concentração neste espaço, de
pessoas mais abastadas, com condições de sobreviver em períodos de secas prolongadas.
Para identificar o contexto da cidade de Xique-Xique recorremos às informações
registradas pela imprensa e notamos o predomínio de preocupações voltadas para o progresso
da cidade, associado à pavimentação de uma estrada que interligasse a cidade ribeirinha à
capital do Estado. A viabilidade de se realizar uma viagem de automóvel de “Xique-Xique à
Bahia” desviava o foco das atenções da seca naquele espaço, pois a mesma só inquietou a
população quando o número de flagelados cresceu vertiginosamente e se tornou uma ameaça
à ordem. Diante disso, se empenhou na busca de alternativas para retirar a massa flagelada da
cidade, pois não existiam condições de empregar a todos.
Inicialmente, realizaram o alistamento de famílias interessadas em migrar para a
região cacaueira, mas, logo em seguida, perceberam as possibilidades de empregar os
120
retirantes em obras que beneficiassem o desenvolvimento da cidade. Para isso, recorreram à
ajuda estadual ou mesmo federal, que, entretanto, não foi suficiente. Poucas famílias tinham
oportunidade de seguir viagem para as fazendas do Sul do Estado e a construção de obras
emergenciais também não atendeu as demandas, já que as promessas de envio de verbas pelo
Interventor do Estado não foram confirmadas pela imprensa.
Na Vila de Canabrava do Gonçalo, os depoentes afirmaram que devido ao isolamento
desta localidade com relação aos centros de poder institucional devido à falta de estradas, a
mesma ficou completamente abandonada. Sua população não teve auxílio e enfrentou mais
uma seca apenas com o suporte dos próprios conterrâneos, que ajudavam como podiam,
dividindo o pouco que havia restado.
Foi evidenciado também, que a vida cotidiana dos “canabrabeiros” estava marcada por
aspectos associados a sua condição social, étnica e de origem, que permeavam as relações
estabelecidas entre eles, contribuindo para percebermos o quanto estes elementos facilitavam
ou dificultavam a ascensão de famílias e isso foi importante no cotidiano da seca, pois ao
tomarmos como exemplo os laços de solidariedade, notamos que a ajuda priorizava os mais
pobres dentro da própria família.
Ainda tratando das lembranças, salientamos que surgiram, durante as entrevistas,
elementos que denotam uma certa resistência quanto a algumas rememorações que
demonstram o sofrimento ao ver ou mesmo saber que algumas pessoas morreram de fome.
Percebemos então a necessidade de cuidado ao buscar memórias acerca de fatos que
sensibilizam os depoentes, respeitando os sujeitos junto aos quais estamos construindo as
nossas fontes de pesquisa.
Diante das inúmeras formas de rememorar os fatos vivenciados, muitas vezes, as
lembranças vieram acompanhadas de referências distintas que serviram para dar sentido ao
que foi contado. Nas entrevistas ficou latente a utilização de pontos de referência, como ao
relembrar ambientes, pois muitos recorreram a pés de quixaba 108 para situar espaços.
Associado a isso, ocorre a necessidade de fazer referência a todas as pessoas citadas. É
necessário explicitar quem são os personagens da sua narrativa, revelando o grau de
parentesco entre as pessoas citadas, ou destas com o próprio narrador.
Dessa forma, apontamos algumas considerações sobre a seca de 1932 na Vila de
Canabrava do Gonçalo, levantando questões acerca das vivências de pessoas que conviveram
e resistiram a esse flagelo. Assim, através das experiências reproduzidas a partir das memórias,
108
Os pés de quixaba fazem parte da vegetação nativa da região e são árvores de grande porte e talvez por isso
fossem utilizadas para fazer referência a lugares importantes.
121
buscamos dar visibilidade a esses sujeitos que por tanto tempo foram marginalizados pela
historiografia e têm muito a contribuir para o alargamento dos estudos históricos, sobretudo
no que se refere aos estudos do sertão baiano.
Esta seca, de uma forma geral, representou para a maioria dos depoentes o definido
pela frase dita por Dona Clarice “ah tempo cru! Ah tempo incruado” (Depoimento de Clarice
Alves de Souza, em 11 de fevereiro de 2009), pois foi marcada por inúmeras dificuldades que
contribuíram para a permanência de uma visão negativa da mesma por parte dos entrevistados.
Por fim, apesar de escrevermos considerações finais, não pretendemos encerrar aqui as
discussões sobre o modo de vida de sertanejos baianos, especialmente em épocas de seca, pois
este fenômeno tem significados que vão muito além da falta de chuvas, ele é responsável por
direcionar a organização da sobrevivência de comunidades, já que as pessoas encaminham
seus afazeres de acordo com a seca ou com o verde. Diante disso, e ciente de que muitos
passos ainda podem ser dados, chegamos ao fim desta caminhada, na esperança de que nossas
análises sirvam de contribuições, tanto para a academia, quanto para comunidade estudada
que espera conhecer um pouco mais de sua própria história.
122
FONTES
FONTES ORAIS
Depoentes:
- Alfredo Pedreira Machado. Trabalhador rural aposentado, morador do povoado de
Caldeirão no município de Uibaí, nascido em 20 de julho de 1925. Entrevista realizada em 29
de março de 2009. Duração: 13 minutos.
- Ângelo de Brito Teixeira. Trabalhador rural aposentado, morador da sede do município, em
1932 morava na localidade de Laranjeira, nascido em 27 de dezembro de 1922. Entrevista
realizada em 07 de abril de 2009. Duração: 42 minutos.
- Clarice Alves de Souza: Trabalhadora rural aposentada, moradora da sede do município de
Uibaí, nascida em 16 de outubro de 1916, falecida em 14 de maio de 2010. Entrevista
realizada em 11 de fevereiro de 2009. Duração: 14 minutos.
- Gení Feitoza. Comerciante, moradora da cidade de Xique-Xique, nascida em 27 de outubro
de 1936. Entrevista realizada em 01 de julho de 2009. Duração: 23 minutos.
- Glicéria Pereira Rocha: Trabalhadora rural aposentada, moradora da localidade de
Quixabeira, no município de Uibaí, nascida em 17 de maio de 1925. Suas experiências na
seca de 1932 ocorreram no interior do atual município de Lapão, na localidade denominada
Patos. Entrevista realizada em 03 de abril de 2009. Duração: 46 minutos.
- Horácio Bispo do Nascimento. Trabalhador rural aposentado, morador da localidade de
Fazenda, no município de Uibaí, nascido em 17 de março de 1914. Entrevista realizada em 19
de abril de 2009. Duração: 15 minutos.
- Idalina Leite (Dona Idália). Trabalhadora rural aposentada, moradora da sede do município
de Uibaí que migrou para Canabrava do Gonçalo durante a seca de 1932, nascida em 19 de
setembro de 1926. Entrevista realizada em 03 de fevereiro de 2005. Duração: 35 minutos.
123
- Irene Gomes Soares. Trabalhadora rural aposentada, moradora da sede do município de
Uibaí, nascida em 03 de março de 1944. Entrevista realizada em 07 de abril de 2009. Duração:
30 minutos.
- Jaci Rocha Machado. Trabalhadora rural aposentada, moradora do povoado de Sobreira no
município de Uibaí, nascida em 02 de novembro de 1934. Entrevista realizada em 20 de
fevereiro de 2009. Duração: 20 minutos.
- Jardelina Alves Barreto. Trabalhadora rural aposentada, moradora do povoado de Boca
D’Água no município de Uibaí, nascida em 1916. Entrevista realizada em 03 de maio de 2009,
Duração: 5 minutos.
- João Dantas de Carvalho. Trabalhador rural aposentado, morador do povoado de Caldeirão
no município de Uibaí, nascido em 02 de novembro de 1934. Entrevista realizada em 19 de
julho de 2009. Duração: 36 minutos.
- Joaquina Alves de Miranda. Trabalhadora rural aposentada, moradora da sede do
município de Uibaí que migrou do interior da Vila de Canabrava do Gonçalo para a cidade de
Xique-Xique durante a seca de 1932, nascida em 29 de março de 1920. Entrevista realizada
em 11 de fevereiro de 2005. Duração: 40 minutos.
- Josefa Machado. Trabalhadora rural aposentada, moradora do povoado de Baixa Verde no
município de Presidente Dutra, que em 1932 fazia parte da Vila de Canabrava do Gonçalo,
nascida em 15 de abril de 1933. Entrevista realizada em 08 de abril de 2009. Duração: 24
minutos.
- Josefa Rocha Machado: Trabalhadora rural aposentada, moradora da localidade de
Caldeirão, no município de Uibaí, nascida em 23 de junho de 1923. Vivenciou experiências
na seca de 1932 na localidade de Lagoinha, interior da Vila de Canabrava do Gonçalo.
Entrevista realizada em 29 de março de 2009. Duração: 28 minutos.
- José Filgueira Neto. Trabalhador rural aposentado, morador da sede do município de Uibaí,
nascido em 13 de dezembro 1932. Entrevista realizada em 04 de março de 2009. Duração: 12
minutos.
124
- Licino Araújo Teixeira. Trabalhador rural aposentado, morador da sede do município de
Uibaí, nascido em 24 de julho 1924. Entrevista realizada em 07 de abril de 2009. Duração: 23
minutos.
- Maria Clara de Souza. Trabalhadora rural aposentada, moradora do povoado de Boca
D’Água no município de Uibaí, nascida em 1914. Entrevista realizada em 03 de maio de 2009.
Duração: 75 minutos.
- Ercília Brito de Carvalho (Dona Morena). Trabalhadora rural aposentada, moradora da
sede do município de Uibaí, nascida em 18 de março de 1937. Entrevista realizada em 07 de
abril de 2009. Duração: 42 minutos.
- Olga Machado Levi. Escrivã aposentada, moradora da sede do município de Uibaí, nascida
em 14 de dezembro de 1920. Entrevista realizada em 18 de março de 2009. Duração: 60
minutos.
- Pedro Francisco Rocha: Trabalhador rural aposentado, morador da localidade de
Quixabeira, no município de Uibaí, nascido em 24 de dezembro de 1924. Entrevista realizada
em 03 de abril de 2009. Duração: 46 minutos.
- Pedro Lázaro Machado. Trabalhador rural aposentado, morador da sede do município de
Uibaí, nascido em 08 de abril de 1917. Entrevista realizada em 23 de março de 2009. Duração:
26 minutos.
- Sinobilino Sancho Paiva. Trabalhador rural aposentado, morador da sede do município de
Uibaí, nascido em 01 de julho 1923. Entrevista realizada em 02 de abril de 2009. Duração: 48
minutos.
- Valmyr Roza. Trabalhador rural aposentado, morador da sede do município de Uibaí,
nascido em 1926. Entrevista realizada em 11 de fevereiro de 2005. Duração: 20 minutos.
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