Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara
Os quilombolas e a Base de lançamento de foguetes de Alcântara República Federativa do Brasil Presidente - Luiz Inácio Lula da Silva Vice-Presidente - José Alencar Gomes da Silva Ministério do Meio Ambiente - MMA Ministra - Marina Silva Secretário Executivo - Claudio Langone TAL Ambiental - Fabrício Amilívia Barreto (coordenador) Secretária de Coordenação da Amazônia - Muriel Saragoussi Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Basil - Nazaré Soares (coordenadora) Secretário de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável - Gilney Amorim Viana Diretor de Agroextrativismo - Jorg Zimmermann Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS Ministro - Patrus Ananias de Sousa Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA Ministro - Miguel Soldatelli Rossetto Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR Ministra - Matilde Ribeiro Edições Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis Centro Nacional de Informação, Tecnologias Ambientais e Editoração SCEN - Trecho 2 - Bloco B Cep: 70818-900 - Brasília-DF Telefone: (61) 3316-1065 Fax: (61) 3316-1189 E-mail: [email protected] Brasília 2006 Impresso no Brasil Printed in Brazil Os quilombolas e a Base de lançamento de foguetes de Alcântara laudo antropológico Volume 1 Alfredo Wagner Berno de Almeida Brasília, 2006 Grupo Executivo Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara Coordenador: Adelmar de Miranda Torres (Casa Civil da Presidência da República) Carlos Eduardo Trindade Santos (SEPPIR) Isabella Fagundes Braga Ferreira (MMA) Milton Nascimento (MDS) Mozar Artur Dietrich (MDA) Paulo César Spyer Resende (MMA) Thelma Santos de Melo (MMA) Zorilda Gomes de Araújo (MDS) ______________________________ Coordenação Editorial: Projeto de Apoio ao Monitoramento e Análise (AMA) do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (vinculado à Secretaria de Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente) e TAL Ambiental Coordenadora do Projeto AMA – Onice Dall’Oglio Coordenadora Adjunta do TAL Ambiental – Fernanda Costa Corezola Cooperação Técnica Alemã – Petra Ascher (GTZ) Responsável por esta edição – Kelerson Semerene Costa Editoração: Edições Ibama Projeto Gráfico e Diagramação: Carlos José e Paulo Luna Capa: Denys Márcio Normalização Bibliográfica: Helionídia C. Oliveira Fotos: Alfredo Wagner Berno de Almeida (exceto naquelas em que outro autor estiver indicado) Digitalização das fotos e preparação do mapa: Design [Casa 8] Direitos reservados ao autor Distribuição dirigida Tiragem: 2.000 exemplares Catalogação na Fonte Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis A447q Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara: laudo antropológico / Alfredo Wagner Berno de Almeida. – Brasília: MMA, 2006. 2 v. : il.; 24cm Bibliografia ISBN 85-7300-198-4 1. Grupo étnico. 2. Quilombo. 3. Antropologia. 4. Alcântara (cidade). I. Ministério do Meio Ambiente. II. Secretaria de Coordenação da Amazônia. III. Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável. IV. Título. CDU 39 (812.1) Conceitos emitidos e informações prestadas nesta publicação são de inteira responsabilidade do autor Apresentação Sr. Pedro Sá A presente obra reflete a luta travada pelas comunidades remanescentes de quilombos do município de Alcântara, estado do Maranhão, por seus direitos ao território e à autodeterminação étnico-racial. Trata-se do resultado de uma perícia antropológica encomendada pelo Ministério Público Federal para subsidiar ação civil pública ambiental e étnica em prol do reconhecimento dos direitos destas comunidades. A publicação desta peça acadêmico-jurídica traz ao público a batalha determinada e contínua, ainda na contemporaneidade, de várias comunidades que ousaram, nos anos 80, ainda em plena ditadura militar, questionar a lógica arbitrária e intervencionista da instalação de um grande projeto desenvolvimentista de caráter tecnológico e militar em seus territórios, o Centro de Lançamento de Alcântara - CLA. Os oito mil e setecentos hectares já desocupados para instalação da primeira fase do Programa Nacional de Atividades Espaciais, onde está o CLA, correspondem a parte significativa das terras tradicionais das comunidades quilombolas do município de Alcântara. Dali foram retiradas 32 comunidades, realocadas em sete agrovilas, num formato que tem comprometido a lógica tradicional a partir da qual estruturam suas relações sociais, produtivas e ambientais e, por conseqüência, as relações entre as comunidades realocadas e as demais, com as quais mantêm laços de parentesco e forte relação de interdependência. A mobilização social dessas comunidades tem na perícia antropológica um de seus principais trunfos, símbolo da conquista do direito à justiça, ao território tradicional, à visibilidade pública de sua realidade e de suas visões de mundo. A saga das comunidades negras rurais de Alcântara traduz, num outro espectro, a luta de várias minorias e movimentos sociais para transpor as fronteiras das injustiças e desigualdades que assolavam e, em alguns casos, ainda assolam o país, impondo aos seus protagonistas um isolamento da realidade nacional. Essas minorias e movimentos sociais começam a ter destaque a partir dos anos 90, quando o Brasil passa a experimentar os frutos de um novo Estado de direito, advindo da Constituição Cidadã de 1988 e do fortalecimento das instituições democráticas. Nos anos 90, e em especial com a chegada do século XXI, o caso de Alcântara ganha novos matizes. Além da acolhida de suas reivindicações pelo Ministério Público Federal, obtendo seu reconhecimento étnico-racial e, apesar de faltar ainda a regularização fundiária do seu território, essas comunidades apelaram para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2003, contra o Estado Brasileiro, por crime de genocídio étnicoracial. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva herda, portanto, um quadro dramático no município de Alcântara, exacerbado pela aparente contradição entre desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento das comunidades locais. No campo das políticas públicas estratégicas, para o desenvolvimento tecnológico e para a segurança nacional, persiste e é reforçada a relevância da continuidade do Programa Nacional de Atividades Espaciais. Por outro lado, orientado pelas diretrizes de defesa dos direitos humanos e de inclusão social, há a determinação de reconhecer o direito das comunidades tradicionais, representadas neste caso pelos quilombolas de Alcântara. Buscando equacionar o problema e encontrar soluções, em 27 de agosto de 2004, o Governo Federal instituiu, por decreto, o Grupo Executivo Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara. Seu objetivo central é "articular, viabilizar, propor, acompanhar ações para o desenvolvimento sustentável de Alcântara, visando eficiente condução do programa nacional de atividades espaciais e o desenvolvimento das comunidades locais, respeitando suas particularidades étnicas e sócio-culturais, em especial, a questão quilombola". Participam do GEI vários ministérios, entre os quais o Ministério do Meio Ambiente - MMA, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SEPPIR, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS e o Ministério de Desenvolvimento Agrário - MDA, que apresentam ações de várias ordens, sobretudo aquelas referentes ao desenvolvimento sustentável, à segurança alimentar e nutricional, à regularização fundiária, ao empoderamento das comunidades quilombolas e à valorização dos seus conhecimentos. É nesse contexto que se insere a publicação conjunta deste laudo antropológico de autoria do professor Alfredo Wagner Berno de Almeida: uma ação que cumpre o papel de lançar a pedra fundamental do reconhecimento dos direitos constitucionais destas comunidades, trazendo à luz do conhecimento sua história, seus costumes, sua cultura, suas práticas produtivas e suas relações com a natureza. Brasília, dezembro de 2005. Marina Silva Ministra do Meio Ambiente Patrus Ananias de Sousa Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Miguel Rossetto Ministro do Desenvolvimento Agrário Matilde Ribeiro Ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial Agradecimentos Teria sido impossível produzir este laudo no prazo formalmente definido se não fosse a dedicação de mais de uma centena de pessoas, que não se importaram em passar horas dando entrevistas, discutindo, participando de oficinas de elaboração de mapas, levando-me para visitar ruínas, antigos esconderijos e terrenos de cultivo e de extração vegetal. Quero agradecer a todos eles e aos demais moradores dos povoados mencionados neste laudo antropológico. O Sr. Samuel Moraes, então presidente do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, STTR, prestou uma contribuição inestimável, acompanhando todas as etapas do trabalho de campo. Infelizmente, muitos dos que contribuíram encontram-se enfermos, como o Sr. Benedito Basson, ou faleceram, como o Sr. João Canela de Pau, o Sr. Manuelão, de Santa Maria, e Dona Estela com seus 115 anos. Agradeço também aos pesquisadores que me ajudaram a coligir os dados e aos advogados da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos, SMDH, que a todo momento se mostraram solícitos a prestar esclarecimentos: Dr. Domingos Dutra e Dr. Luiz Antonio Pedrosa. O autor Tabelas, gráficos e quadros demonstrativos Povoados onde foram assinaladas ruínas de "casarões" e/ou moendas .......................... 65 Alcântara , 1861 - senhores de engenho de açúcar .................................................................. 68 Povoados onde foram assinaladas ruínas de "engenhos" e "casas-grandes" ou "casarões" ................................................................................................ 66 "Senhores de engenhos", "Fazendeiros e escravos": Alcântara, 1860-61 ......................... 75 Terra de Santo, Terra de Santa e Terra de Santíssimo ........................................................ 81 Registro de cartas de datas e sesmarias (1777-1816) ............................................................... 107 Registro de demarcação de sesmarias (1816) ............................................................................ 108 Quilombos em Alcântara (1701-1788) ........................................................................................ 119 Quilombos em Alcântara (1800-1886) ........................................................................................ 126 Registro de terras segundo declaração do possuidor - Alcântara, (1854-1857): Registros paroquiais ................................................................................................. 132 Territórios de parentesco ................................................................................................................. 151 Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriada para instalação da base de lançamento de foguetes ................................................................. 159 Povoados referidos às comunidades que se localizam fora da área desapropriada para instalação da base de lançamento de foguetes ............................................................... 162 Cemitérios ............................................................................................................................................172 Calendário de festas religiosas ....................................................................................................... 174 Delegaciais sindicais .......................................................................................................................... 178 Siglas e Abreviaturas ABA ACONERUQ AEB ADCT AN APEM CCN-MA Cf. CLA CNPACNRQ COBAE COLONE CONAQ CONTAG DEPED DSG EMFA FCP FETAEMA FUNASA GICLA G.N. GPS IBAMA IBGE IHGB IHGEB INCRA INFRAERO IPEI ITERMA Associação Brasileira de Antropologia Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão Agência Espacial Brasileira Ato das Disposições Constitucionais Transitórias Arquivo Nacional Arquivo Público do Estado do Maranhão Centro de Cultura Negra do Maranhão Conforme Centro de Lançamento de Alcântara Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas Comissão Brasileira de Atividades Espaciais Companhia de Colonização do Nordeste Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento - Ministério da Aeronática Diretoria do Serviço Geográfico - Ministério do Exército Estado Maior das Forças Armadas Fundação Cultural Palmares Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão Fundação Nacional de Saúde Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara Grifo nosso Global Position System (Sistema de Posicionamento Global) Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária Instituto de Pesquisas Econômico-Sociais e Informática Instituto de Terras do Estado do Maranhão MAER MCT MEAF MECB MinC MIRAD MMA MOMTRA MONAPE MOPEMA MPP N. E PVN SMDH SUCAM SUDENE STTR TC TP TPo TS TSa TSi TSia UFMA UFRJ UnB UNESCO VLS Ministério da Aeronáutica Ministério da Ciência e Tecnologia Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários Missão Espacial Completa Brasileira Ministério da Cultura Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário Ministério do Meio Ambiente Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais Movimento Nacional dos Pescadores Movimento dos Pescadores do Maranhão Mestrado em Políticas Públicas Nota do Editor Projeto Vida de Negro Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos Superintendência de Campanhas de Saúde Pública - Ministério da Saúde Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Terra de Caboclo Terra de Preto Terra da Pobreza Terra de Santo Terra de Santa Terra de Santíssimo Terra de Santíssima Universidade Federal do Maranhão Universidade Federal do Rio de Janeiro Universidade de Brasília Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura Veículo Lançador de Satélite Sumário geral VOLUME 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................. 19 O OBJETO DA PERÍCIA E OS PROCEDIMENTOS DE OBTENÇÃO DE INFORMAÇÕES ......................................................................................... 27 Os arquivos como discurso de legitimação ................................................................ 35 Os mediadores e o discurso da mobilização .............................................................. 39 PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS ............................................................................................. 43 Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual dos conflitos .............................................................................................. 47 Área decretada e territorialidades específicas .............................................................. 53 Muralhas e Paredões: as ruínas das casas-grandes e dos engenhos como fator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos ...... 59 Os quilombos e a luta simbólica pelas ruínas ............................................................. O mapeamento das ruínas ............................................................................................... A fuga dos senhores de engenho e a recusa da tutela .............................................. As ruínas e o tempo livre ............................................................................................ A datação da fuga e das ruínas ................................................................................... A datação das ruínas das fazendas das ordens religiosas ....................................... Companhia de Jesus ............................................................................................... Ordem dos Carmelitas Descalços ....................................................................... Ordem de Nossa Senhora das Mercês ............................................................... Irmandade do Santíssimo Sacramento ............................................................... Territorialidades específicas ......................................................................................... As diferenças culturais e as premissas étnicas ........................................................... 61 63 70 72 74 76 76 78 78 79 80 82 O domínio "original": as "terras de índio" como "terras de preto" ............. 87 As "terras de preto" e as "terras de caboclo": a construção do território pelos fatores estigmatizantes .................................................................................................. 91 Da capitania de Cumã às sesmarias: a formação das fazendas ............................ 95 A "modificação da fisionomia étnica" ........................................................................... 100 Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio da Companhia Geral do Comércio ........................................................................................ 103 A derrocada da economia algodoeira............................................................................ 108 Os quilombos em Alcântara ............................................................................................. 115 Os quilombos e a governação pombalina .................................................................... 117 A consolidação dos quilombos no decorrer do século XIX .................................. 123 Os territórios de parentesco ............................................................................................. 141 As doações de terras ............................................................................................................. 141 As terras da pobreza ............................................................................................................. 143 As compras de terras ............................................................................................................. 144 Os territórios de parentesco ............................................................................................... 149 O território das comunidades remanescentes de quilombos ............................... 153 A interseção dos planos de organização social .......................................................... 165 A interdependência econômica e ecológica dos povoados........................................ 165 As "circunscrições" religiosas ............................................................................................. 170 Os cemitérios e as tensões sociais em face da interdição de uso, pelo CLA, do antigo cemitério de Peru e Marudá .......................................................... 171 A festas religiosas ............................................................................................................. 173 As instâncias políticas de mediação. ................................................................................. 176 NOTAS ................................................................................................................................................ 181 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 201 ANEXO ............................................................................................................................................... 207 "Terras das comunidades remanescentes de quilombos - territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios históricos e conflitos sociais" (mapa e memorial descritivo) VOLUME 2 RESPOSTAS AOS QUESITOS Quesito 1 ...................................................................................................................................... 17 Quesito 2 ...................................................................................................................................... 25 Quesito 3 ...................................................................................................................................... 73 Quesito 4 ...................................................................................................................................... 81 Quesito 5 ...................................................................................................................................... 87 Quesito 6 ...................................................................................................................................... 89 Quesito 7 ...................................................................................................................................... 93 Quesito 8 ...................................................................................................................................... 95 Quesito 9 ...................................................................................................................................... 97 Quesito 10 ................................................................................................................................... 99 Quesito 11 ....................................................................................................................................... 101 NOTAS ................................................................................................................................................ 103 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 109 ANEXOS ............................................................................................................................................... 115 Fontes documentais e arquivísticas: transcrição de documentos que registram, direta ou indiretamente, quilombos em Alcântara (1702-1886) Certidão referente à terra da pobreza Registro fotográfico Calendário agrícola e extrativo Introdução O povoado de São João de Cortes O laudo antropológico a seguir apresentado foi produzido por determinação da Procuradoria Geral da República consoante os termos da Portaria nº 007, de 07 de julho de 1999, do Ministério Público Federal no Maranhão. Foi instaurado o Inquérito Civil Público nº 08.109.000324/99-28 com o objetivo de apurar possíveis irregularidades verificadas na implantação da Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara. Ao considerar que as ações de deslocamento compulsório denominadas de "remanejamento" afetam "as comunidades negras rurais, remanescentes de quilombos", essa Portaria preconiza providências no sentido de "verificar a existência de estudos relativos às comunidades que se encontram nas áreas destinadas ao Centro de Lançamento de Alcântara, máxime no tocante ao componente étnico". Após audiências públicas realizadas em Alcântara e São Luís que assinalaram inconsistências no EIA-Rima, sobretudo aquelas relativas às relações antrópicas e à recusa em incorporar fatores étnicos, e mediante a possibilidade de novos remanejamentos, o Ministério Público Federal autorizou perícia antropológica no interesse da instrução do inquérito civil público. A partir de indicação de antropólogo pela Associação Brasileira de Antropologia, ABA, então presidida pelo Dr. Ruben George Oliven, o Procurador da República no Maranhão, Dr. Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, assim se manifestou em Despacho de 12 de abril de 2002: "Tendo em vista a indicação do Professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, conforme solicitação às fls.440, nomeio-o para proceder à perícia antropológica, no interesse da instrução do inquérito civil público". No mesmo Despacho, o mencionado Procurador delineou os onze quesitos a serem desenvolvidos pelo perito. Cabe registrar que a Procuradoria Geral da República, desde antes da mencionada Portaria, já acompanhava de maneira direta o desenrolar dos conflitos sociais em Alcântara através da Dra. Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira. Importa sublinhar também que os aspectos ambientais do projeto de expansão do Centro de Lançamento de Alcântara são objeto de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, tombada sob o nº 1999.37.00.007382-0, a qual tem curso perante a 3ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão, “remanescendo para análise suas implicações sobre as seculares comunidades quilombolas de Alcântara”. No que concerne à execução da perícia ora apresentada, quero informar ainda que os trabalhos de pesquisa e a elaboração dos argumentos para responder aos quesitos que a orientaram foram produzidos no prazo previsto, entre abril e julho de 2002, e entregues à Procuradoria Geral da República em setembro do mesmo ano. O trabalho de campo pericial, envolvendo consultas a fontes secundárias, produção de mapas e obtenção de dados in loco, se estendeu de 05 de abril a 11 de junho. As visitas aos povoados ocorreram entre 12 de abril e 02 de maio e entre 07 e 09 de junho de Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 2002. Foram visitados 53 povoados e obtidas informações sobre duas centenas deles. Em 17 deles, tive como assistente de pesquisa Patrícia Portela Nunes, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que além de permanecer por uma semana em Canelatiua e lá retornar várias vezes no decorrer de junho e julho, produziu para fins da perícia um relatório sobre os impactos sociais da implantação da base de lançamentos no processo de ocupação do perímetro urbano de Alcântara, focalizando a migração de membros das comunidades remanescentes de quilombos. Em nove deles, fui acompanhado por Aniceto Cantanhede Filho, mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, que já havia produzido, em 1997 e 1998, relatórios preliminares de identificação sobre os povoados de Samucangaua, Iririzal, Ladeira e São Raimundo. Em outros oito povoados, fui acompanhado por Cynthia Carvalho Martins e Silvianete Matos Carvalho, mestras em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão, que já haviam produzido, em 1997 e 1998, relatórios preliminares de identificação relativos aos povoados de Itapuaua e Ladeira. Cynthia C. Martins produziu também, em 1994, monografia de conclusão do curso de ciências sociais focalizando a agrovila de Cajueiro. No levantamento de dados sobre as desapropriações realizadas pelo Innstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra, no município, casos de Ibituba e Portugal, e na elaboração de séries estatísticas sobre a produção agrícola de Alcântara, nas últimas décadas, contei com a colaboração do economista Wilson de Barros Bello Filho, mestre em Políticas Públicas, que produziu, em 1999, comentários críticos ao EIA-Rima do CLA.* *** Este laudo antropológico foi subdividido, para efeitos de ordem de exposição, em duas partes: a primeira atendo-se à relação entre os princípios elementares de investigação científica e os procedimentos necessários à produção das chamadas provas periciais; e a segunda consistindo numa resposta aplicada e mais direta aos quesitos propriamente ditos, formulados pelos procuradores. Numa parte, reuni os trabalhos de pesquisa que fundamentam e subsidiam as conclusões; na outra, tomei esse esforço analítico como pressuposto imediato para as argumentações respondentes. A razão desta distinção, embora formal, concerne ao entendimento da perícia enquanto uma forma particular de produção de conhecimento, inclusive para que o antropólogo não esteja tão-somente reconhecendo "problemas oficiais" tal como colocados pelo campo jurídico, através da demanda intrínseca a processos e inquéritos sob responsabilidade de operadores do direito. Ademais, o lugar de onde é produzida a perícia expressa um modo peculiar de ligação entre teoria e intervenção, evitando uma relação mecânica entre instrumentos teóricos de sentido universal * Em sua versão original, o laudo antropológico consta de três volumes. O terceiro volume, onde se encontram os "Anexos", reúne um vasto repertório de documentos, entre os quais se incluem fotos, estudos produzidos especialmente para apoio à perícia e a transcrição das numerosas fontes documentais dos séculos XVIII e XIX que fudamentaram parte da pesquisa. O material que compõe a presente edição, em dois volumes, difere da versão original apenas por uma seleção dos anexos, procedida pelo autor, publicando-se tão-somente aqueles considerados essenciais para o público mais amplo ao qual ela se destina. (n.e) 22 Alfredo Wagner Berno de Almeida e problemas concretos referidos a realidades localizadas. Os conceitos teóricos, não podendo ser aplicados mecanicamente, demandam aproximações sucessivas e estratégias de pesquisa próprias coadunadas com cada situação examinada. No presente caso, considerei apropriado, sem qualquer pretensão de realizar uma etnografia, descrever as condições de obtenção dos dados, os critérios de seleção dos entrevistados e demais escolhas metodológicas efetuadas durante o trabalho de campo pericial. Um discernimento preliminar, entre a região onde ocorre a investigação e o "problema" em pauta, se impõe, posto que a perícia não se reduz a um "estudo de área" e tampouco se restringe aos seus contornos geográficos, mais se tratando de um argumento de autoridade científica mediante uma questão específica. Tal argumento pode esclarecer ou dirimir dúvidas a partir do exame detido de um determinado "problema", qual seja, no presente caso, a identificação étnica, tendo como referência empírica as comunidades remanescentes de quilombos do município de Alcântara, estado do Maranhão. Enquanto "problema" localizado, concernente a agentes sociais determinados com seus sistemas de representação, compreendendo categorias classificatórias e respectivas condições de existência coletiva, a identificação mostra-se indissociável do processo de territorialização das mencionadas comunidades e dos elementos identitários de que se acham investidos seus integrantes. Pode-se adiantar que a situação social designada como comunidade não se constitui espontaneamente e tampouco pode ser interpretada como "natural", já que se estrutura segundo diferentes planos de organização social e consoante ações conjuntas de produtores diretos que historicamente lograram autonomia em face do domínio das grandes plantações. Através dos povoados distribuídos pelo que hoje corresponde ao município de Alcântara, elas se tornam empiricamente observáveis. O laudo, nessa ordem, já exprimiria a necessidade de reconhecimento jurídico-formal dessas comunidades para fins de titulação definitiva das terras que lhes correspondem, preconizada pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ADCT, da Constituição Federal de 1998*, como resposta a uma controvérsia. A iniciativa por si só torna evidente uma situação de antagonismo de interesses, que contrapõe as referidas comunidades às medidas oficiais que afetam seu modo de fazer e viver. Essas medidas concernem à implantação da base de lançamento de foguetes pelo Ministério da Aeronáutica, que tem como ato inicial, datado de 1980, a desapropriação por utilidade pública de uma área de 52.000 hectares, ampliada posteriormente para 62.000 hectares, ou seja, que compreende mais da metade da superfície do município de Alcântara1. A multiplicidade de órgãos governamentais envolvidos (Ministério da Ciência e Tecnologia, MCT; Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, MinC-FCP; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan; Ministério do Meio Ambiente/Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, MMA-Ibama; Ministério do Desenvolvimento Agrário/Incra e Governo do Maranhão) exprime a relevância oficialmente atribuída ao "problema". Com base nessa premissa relacional é que fui balizando os procedimentos inerentes à perícia, com execução de trabalho de campo e verificações in loco nos povoados, * “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (Constituição Federal, ADCT, art. 68) (n.e) 23 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 utilizando técnicas de observação direta e de história oral e mapeando interesses em pauta, de igual modo que compulsando fontes documentais e arquivísticas. A imperatividade do aprofundamento das questões me levou, inclusive, a acionar assistentes técnicos, tanto para avaliar os impactos da implantação do CLA e dos deslocamentos compulsórios sobre a economia agrícola das unidades familiares desses povoados – organizada em torno da produção de gêneros alimentícios e notadamente da mandioca e do arroz – quanto para examinar as novas tendências migratórias no município, caracterizadas pela intensa pressão demográfica sobre a estrutura urbana da sede municipal. Instituída a equipe, percorremos os povoados da área desapropriada, elegendo como pontos de observação: a área de influência de São João de Cortes, ao norte, e aquela centralizada por Canelatiua, e por Brito, na denominada "área de segurança da base", que corresponde a 30.000 hectares, ou seja, quase a metade da área desapropriada*. No limite da "área de segurança", elegemos Santa Maria e, descendo na direção sul, alcançamos as agrovilas, tomando como referência Só Assim, Peru, Espera e Cajueiro. A noroeste do município, principiamos por Itapuaua com ramificações para as margens do rio Periaçu, de um lado, e alcançando Esperança e povoados que ladeiam a Baia de Cumã, de outro. Na estrada, que liga o noroeste à rodovia MA-106, os povoados de Engenho, Flórida, Forquilha e Vai com Deus, fazendo de Peroba de Cima um ponto de apoio. Deste ponto, dobrando no sentido leste, atingimos Peroba do Meio e Peroba de Baixo. Retornando à estrada e nos dirigindo ao sentido oposto, alcançamos Ladeira, Samucangaua e Iririzal já nas nascentes do Periaçu e adjacências. Daí, retomando novamente a estrada, visitamos Pavão e depois São Raimundo I, Mocajubal e Centro da Vovó. A partir de Baixa Grande, percorremos povoados cujas terras confrontam com a área desapropriada para instalação da Base. Fomos ganhando o sentido sul, visitando os povoados logo abaixo do limite da área desapropriada, que consiste na própria rodovia MA-106. Castelo e Santo Inácio foram assim alcançados. Retomando a rodovia, privilegiamos os povoados que a margeiam até o cruzamento para Cujupe e daí nos dividimos, tanto seguindo para o extremo sul do município já na área de influência de Itamatatiua, quanto virando no sentido leste, abrangendo São Mauricio, Arenhengaua e demais povoados circunvizinhos. Detivemo-nos, a partir do próprio resultado da análise das informações que orientaram nossos itinerários, nas áreas desapropriadas por interesse social para fins de reforma agrária pelo MDA-Incra, em 1994 e 1996, denominadas Portugal e Ibituba, localizadas ao sul do município, e naquelas em torno de Itamatatiua e de São Raimundo II, onde o Iterma procede, desde 1997, ao reconhecimento de comunidades remanescentes de quilombo. Embora tenhamos percorrido além do igarapé Tiquara e do local Pedra Grande, para efeitos de pesquisa exploratória, em verdade nos detivemos de fato em São Raimundo, apontado desde as entrevistas realizadas nos povoados a noroeste e nos demais a seguir como limite de uma complexa rede de relações sociais e de intercâmbio de bens e serviços interpovoados. Nesses percursos sucessivos, visitamos 53 povoados, entrevistamos 70 pessoas, contatamos pessoas de mais de uma centena de povoados e coletamos, enfim, informações sobre quase duas centenas deles. * A consultar, neste volume, o mapa “Alcântara: terras das comunidades remanescentes de quilombos - territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios históricos e conflitos sociais”. (n.e) 24 Alfredo Wagner Berno de Almeida Para além dessas visitas, vale acrescentar que, no decorrer do trabalho de campo realizado em abril e maio, a estação chuvosa não trouxe somente dificuldades. Pelo contrário, esse tempo mostrou-se bastante adequado para a consecução de entrevistas mais detidas e recapituladas e também para a realização de reuniões amplas nos povoados. As atividades de perícia coincidiram com a segunda capina do arroz, que não exige toda a força de trabalho das unidades familiares, e, por outro lado, coincidiram também com as farinhadas, que é como designam o conjunto das atividades finais de transformação e beneficiamento da mandioca. Isso facilitou enormemente a ampliação dos contatos, uma vez que muitas famílias encontravam-se, nas denominadas casas de forno, trabalhando sob forma de cooperação simples, desmanchando juntas a mandioca e produzindo a farinha e demais derivados; enquanto que outras encontravam-se retirando o carvão das caieiras e empilhando os cestos na beira da rodovia para serem transportados para o porto. O repertório fotográfico em anexo permite uma visão ampla dessas atividades. Também nos empenhamos, juntamente com assistentes técnicos com competência em agronomia e agrimensura, em produzir bases cartográficas que facultassem uma delimitação das extensões controladas efetivamente pelas citadas comunidades e que, por pelo menos dois séculos, têm assegurado a sua reprodução física e social. Buscamos superar as imprecisões e equívocos verificados nos mapas disponíveis, em especial as cartas da Diretoria do Serviço Geográfico do Ministério do Exército, DSG-ME*, que apresentam povoados plotados erroneamente, e acrescentar elementos de conhecimento da área indicados pelos próprios entrevistados, a saber: recursos naturais estratégicos para os povoados, incluindo-se os juçarais, os babaçuais, os mangues e os igarapés; locais de fabricação de redes de pesca, embarcações, tipitis e adobe; povoados localizados na "área de segurança" e ameaçados de deslocamento compulsório; povoados já deslocados pela base de lançamento e as agrovilas; povoados com energia elétrica e com estabelecimentos de ensino; e ainda a localização de diferentes tipos de ruínas (engenhos, casas-grandes, sumidouros) e dos antigos quilombos. De certo modo, essa modalidade de trabalho de campo pericial consistiu num meio de conferir visibilidade a situações que permanecem socialmente invisíveis, não obstante as contínuas referências oficiais à abolição da escravatura. Como corolário dessa etapa, a equipe técnica fez uso de GPS para amarrar pontos e produzir um memorial descritivo correspondente ao território das comunidades remanescentes de quilombo. Os trabalhos de levantamento de fontes secundárias, incluindo-se os mapas compulsados, ocorreram em São Luís, no Arquivo Público do Estado do Maranhão, na Biblioteca Pública Benedito Leite, nas bibliotecas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísitica, IBGE, e da antiga Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, Sudene, nas sedes do Incra e do Instituto de Terras do Estado do Maranhão, Iterma, e nos arquivos do Projeto Vida de Negro da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos, SMDH, e do Centro de Cultura Negra. Aconteceram também no Rio de Janeiro – na Biblioteca Nacional, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no Arquivo Nacional. Em Alcântara, os levantamentos ocorreram no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras * O autor reporta-se, com freqüência, a fatos anteriores à criação do Ministério da Defesa, que, a partir de 1999, passou a reunir a Marinha, o Exército e a Aeronáutica, forças antes representadas por seus respectivos ministérios. (n.e) 25 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Rurais, STTR, no escritório da antiga Superintendência de Campanhas de Saúde Pública – Sucam, incorporada pela Fundação Nacional de Saúde, Funasa – e nos dois cartórios, valendo-me de informações já levantadas anteriormente pelo doutorando em Direito da Universidade Federal do Paraná Joaquim Shiraishi Neto. A coleta de copiosa documentação alusiva a sesmarias, entre 1777 e 1816, aos "registros paroquiais", entre 1854 e 1857, e a imóveis rurais demarcados a partir de 1891, ateve-se ao fato de as obras de referência da história regional sempre indicarem implicitamente uma dicotomia entre formalização da propriedade e ocupação efetiva das terras. Foram detectadas inúmeras informações concernentes a uma certa autonomia dos povoados de produzir e viver livremente em diferentes situações históricas, sendo que uns desde pelo menos 1760, quando da expulsão dos jesuítas de Alcântara; outros, desde a derrocada da economia algodoeira, entre 1812 e 1819; e outros, ainda, desde a falência dos engenhos de açúcar imediatamente após 1870. Tais registros corroboraram genealogias e narrativas de reconstituição histórica propiciadas pelos entrevistados. O conjunto dessas informações permite assinalar que Alcântara usufrui de uma situação singular, posto que vastas extensões territoriais, da superfície atual do município, ficaram praticamente dois séculos sem uma presença efetiva dos "senhores" e sem maiores pressões sobre a terra, que não fossem tentativas pontuais de aforamento. Com os atos desapropriatórios para instalação da base de lançamentos, em 1980, as tensões sociais afloraram. Da mesma maneira, assistiu-se ao advento de uma identidade étnica mantida sob invisibilidade social com suas respectivas territorialidades cognominadas terras de preto, terras de caboclo e terras de santo, até então reconhecidas apenas no plano local, mas não necessariamente registradas. Ao considerar que a noção de etnicidade abrange também uma interação com uma certa maneira de produzir e de relacionar-se com a natureza, identificamos essas territorialidades verificando que agrupam uma vasta rede de povoados e convergem para um território étnico determinado, cujos contornos foram objeto do trabalho de delimitação consistindo num dos resultados finais da perícia. 26 O objeto da perícia e os procedimentos de obtenção de informações Moradores de Santo Inácio No decorrer do trabalho de campo, realizado no âmbito desta perícia antropológica, quando visitava os povoados1– que representam as principais unidades de agrupamento dos agentes sociais observados – e apresentava o objetivo da pesquisa, em torno da identificação das comunidades remanescentes de quilombo, invariavelmente me sugeriam, quaisquer que fossem os interlocutores, contatar os que detinham a autoridade de reconstituir a história do lugar. Antes mesmo que qualquer interrogação pudesse ser feita, adiantavam-se nessa indicação. Mediante essa maneira de proceder, a minha primeira impressão foi que, por um lado, os informantes estabeleciam uma relação necessária entre fato histórico e identidade coletiva, expressa num plano comunitário pelas suas demandas junto aos órgãos competentes de reconhecimento oficial como remanescentes de quilombo, enquanto, por outro, individualizavam o portador de uma forma de saber que eu supunha mais difuso e de sentido coletivo. Nesse sentido, a situação de conflito em face da instalação da base de lançamento de foguetes leva à história. O passado é acionado como argumento e arquivo contrapondo-se às pretensões dos decretos desapropriatórios. A fala dos entrevistados deixa entrever que os anos não são medidos da mesma maneira pelas partes em confronto, porque são vividos de modo desigual. Há, em decorrência, uma politização da história que traz o passado para o presente através de uma atitude que leva à história do grupo, enquanto fundamento das pretensões de direito, e que leva o pesquisador justamente àqueles que dela podem falar. No primeiro momento do trabalho de campo, vi-me conduzido, desse modo, não necessariamente aos lugares institucionais dos mediadores ou lideranças de natureza política ou econômica, que inclusive haviam me introduzido na área, mas a pessoas mais idosas, sejam homens ou mulheres, referidas a uma posição social singular. Tal posição não reflete um confronto entre gerontocracia e mediação política, sindical ou religiosa, porquanto não estão em jogo quaisquer disputas por instrumentos diretos de mediação. É bem verdade que os idosos, que usufruem de aposentadorias, atualmente são vistos num patamar superior de possibilidades econômicas, com papel de destaque, seja na manutenção de seus grupos familiares, devido aos percebimentos mensais regulares, seja no âmbito da própria entidade sindical dos trabalhadores rurais2, em virtude de suas contribuições sindicais voluntárias. Embora não tenham qualquer obrigatoriedade legal em recolhê-las, cerca de 900 aposentados têm contribuído generosa e espontaneamente para o STTR de Alcântara. Trata-se de um número significativo, uma vez que, conforme os dados do Censo Demográfico de 2000 do IBGE, a população residente do município de Alcântara corresponde a 21.291 habitantes, sendo que 73,3% encontram-se na área rural distribuídos por mais de duas centenas e meia de povoados, e os que se encontram numa faixa etária igual ou superior a 60 anos correspondem a 1.833 habitantes, ou seja, pouco mais de 8,0% da população residente. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Os aposentados são vistos nos povoados segundo uma interpretação positiva ao injetarem permanentemente recursos para o consumo básico e garantirem a provisão de bens essenciais, mesmo nos períodos mais críticos, intermédios entre uma colheita e outra. Suas remunerações não são apropriadas individualmente. Os entrevistados ponderam que a quantia recebida pelos aposentados, mesmo quando não são mais cabeça de família e nem administram a unidade de trabalho familiar, é utilizada nas despesas domésticas e serve para ajudar filhos e demais parentes. O volume de recursos das unidades familiares, tradicionalmente concentrado no período das colheitas de arroz e de mandioca para o preparo da farinha e variando em conformidade com as fases dos ciclos agrícola e extrativo e com as intempéries climáticas, passa a ter nas aposentadorias, percebidas mensalmente, uma receita regular com distribuição temporalmente mais curta, significando um fator de fortalecimento constante de sua renda monetária. Situação análoga foi verificada com as unidades familiares que vivem principalmente da pesca3. Ainda que afastados do processo de produção, os aposentados representam, portanto, um arrimo tanto para as famílias que têm na agricultura sua atividade principal, quanto para aquelas que se concentram mais na pesca e no extrativismo. Tal função econômica dos idosos, embora seja mais recente, perpetua a posição de relevância tradicionalmente assumida por eles, consistindo ademais numa fonte do tipo de autoridade efetiva que atualmente detêm. O fato de terem idade avançada e essa condição econômica de destaque não se revelam, no entanto, suficientes para lhes assegurar a aludida competência, qual seja, a indicação de narradores da história do grupo. A singularidade mencionada tanto concerne ao fato de tais pessoas acharem-se dispostas numa linha de descendência direta, por consangüinidade ou afinidade, de ancestrais que são apontados como tendo assegurado o livre acesso dos grupos familiares à terra, quanto ao fato de possuírem responsabilidades simbolicamente definidas em face de antigas famílias de proprietários ou diante de divindades (santos, santas) e instituições pias e religiosas (irmandades, ordens), que igualmente são representadas como tendo facultado o acesso à terra. O critério de ancianidade não funciona, pois, isoladamente, aparecendo sempre combinado com fatores genealógicos e de patronagem. Sobre a noção de genealogia, cabe salientar que a convergência para um informante dos registros de conexão da trajetória do conjunto das unidades familiares em face dos recursos básicos pode transcender às relações de consangüinidade entre elas. Em outras palavras, pode-se dizer que há pessoas consideradas localmente como unidas por relações de parentesco, como foi possível constatar no decorrer do trabalho de campo, embora não se verifique entre elas, estrito senso, qualquer laço de consangüinidade ou vínculo genealógico real. Mesmo que não haja formas legais de reconhecer o contrato que as aproxima, há rituais de coesão social que ultrapassam uma simples rede de parentesco e amizade, fortalecendo uma idéia de comunidade apoiada em critérios político-organizativos, que, inclusive, constrói socialmente o seu território. No que tange ao conceito de patronagem, recorri ao sentido que lhe confere G. Foster de uma relação contratual, informal e assimétrica, entre "pessoas" de status e poder diferentes, que trocam bens e serviços distintos. Essas trocas podem ser simbólicas e estabelecidas entre moradores de um mesmo povoado ou entre estes e não-moradores, incluindo divindades (santos, santas) e seres sobrenaturais (Foster,1967:221)4. Os fatores genealógicos e de patronagem, assim conceituados, atualizam-se na perspectiva dos informantes através de doações, aquisições, heranças, autorizações 30 Alfredo Wagner Berno de Almeida informais de livre uso, aforamento, ocupações e conflitos com antagonistas históricos que pretendiam usurpar seus domínios efetivos. Tais meios asseguraram centenariamente a transmissão da terra, com suas denominações específicas referidas a cada situação, e de um sistema de uso comum dos recursos fundamentais à reprodução física e social do conjunto de famílias. O que mais realça as narrativas sobre esses meios, quando contrastados com a documentação oficial, concerne ao fato de os registros cartoriais serem formalmente centralizados na "pessoa" – seja um sesmeiro, uma divindade ou um adquirente, a partir de 1850 – e não nas terras, isto é, no imóvel rural (Shiraishi,1999:04) e naqueles de posição subordinada (escravos e alforriados) que efetivamente o controlam5. Além disso, no plano de identificação da "pessoa", faz-se mister considerar que são por demais conhecidas as dificuldades de registros documentais sobre idade, etnia e famílias de escravos6. Mesmo após a Lei de Terras de 1850 e as exigências de registro paroquial, perdura o problema. Os termos da relação entre a condição de escravo e aquela de proprietário de terra, ainda que se admitindo a possibilidade de pecúlio pelo escravo, mostram-se excludentes, como sublinha Perdigão Malheiro em 1864 ( Malheiro, 1976: 63, 96). O mesmo não sucederia com escravos alforriados, cujas ocorrências de aquisição não conseguimos, entretanto, detectar em Alcântara7. Levando em conta essas impossibilidades, as lacunas acima assinaladas e a ressalva feita por Shiraishi, acresce a importância da história oral e das técnicas de entrevistas abertas acionadas no trabalho de campo, posto que somente elas podem facultar o acesso às genealogias das famílias escravas que de fato possuíam controle sobre os recursos naturais, a seu sistema de apropriação desses recursos e às extensões de terra correspondentes. As narrativas, em decorrência, facultam a compreensão antropológica das relações com a natureza, do sistema de sucessão legítima e dos elementos identitários e de representação da vida social, incluindo-se as categorias de autodefinição coletivas, que foram historicamente construídas, tais como pretos e caboclos, os atributos respectivos que tanto as diferenciam quanto as aproximam, e as territorialidades que lhes são referidas. As regras de uso comum, que disciplinam a apropriação dos recursos, são indissociáveis dessas formas de domínio e teriam sido historicamente instituídas, objetivando também superar os limites do ecossistema local8, que se tornou mais fragilizado a partir da ação predatória e da devastação das matas pelas grandes plantações de algodão e cana-deaçúcar, na segunda metade do século XVIII e no início do século XIX. Autoridades do período colonial, como o engenheiro militar B. Pereira do Lago e o grande proprietário de terras e "economista" R. Gaioso, sublinham solos exauridos, terrenos arenosos e áreas inteiramente devastadas em Alcântara (Pereira do Lago,1872:388). Do prisma das figuras ancestrais citadas nas entrevistas, a manutenção de uma sustentabilidade elementar à reprodução coadunada com solos fracos tornou-se tributária de práticas de preservação de recursos naturais e de direitos comuns sobre pastagens, praias, mangues, apicuns, cocais, juçarais e aglomerados de mangueiras, indicadores das antigas benfeitorias das fazendas. Peixes, frutos silvestres, óleos vegetais (de carrapato, de babaçu) e diferentes ervas com propriedades medicinais passaram a compor uma pauta de produtos de autoconsumo das unidades familiares, impondo a preservação de espécies várias, impedindo a devastação e quebrando a monotonia dos grandes plantios de algodão e de cana. Em razão disso é que a caça, a pesca e a coleta de produtos florestais – inclusive para fabricação de óleos vegetais 31 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 e resinas –, tanto quanto a retirada de palha das reservas e a escolha do local de plantio, prosseguem passando por um crivo ecológico e de responsabilidade comunitária. Nessa ordem, a natureza pode ser entendida como produto de um repertório de práticas centenárias de uso comum, encetadas em Alcântara por unidades de trabalho familiar organizadas em povoados a partir da desagregação das fazendas. O pano de fundo dessa interpretação reflete uma maneira de entender esse tipo de sucessão de bens por várias gerações como uma transmissão de direitos e como adstrito a um princípio de preservação ambiental. As práticas agrícolas e extrativas, mantendo uma relação relativamente equilibrada com recursos escassos e com um ecossistema frágil, durante dois séculos consecutivos, reforçaram a necessidade de manter em reserva áreas com cobertura florestal permanente, de conservar as palmáceas nos terrenos mais baixos e de efetuar um rodízio das terras cultivadas, com intervalos de descanso sempre superiores a três anos ou capoeiras de curta duração. A recomendação principal para as terras cultivadas é que não sejam colocadas próximas às nascentes ou margens de rios e igarapés. Já as reservas ou áreas mais preservadas recebem nos povoados de Flórida, Forquilha e Peroba de Cima a denominação de ponta de mato (Linhares,1999:60). Em São Raimundo e Itaperaí, registrei a expressão uma bola de mato, cuja finalidade consiste em suprir necessidades comuns às famílias em momentos de extrema precisão. Quanto às áreas de conservação ou sujeitas a regras de manejo, que asseguram uma produção permanente, localizamos entre Peroba de Cima e Peroba de Baixo duas áreas criteriosamente conservadas, separadas por uma campina, que são as chamadas baixas ou zonas de várzeas onde predominam juçarais. Os moradores desses povoados não proibem ninguém de tirar a juçara, mas há uma regra de uso que não pode ser violada: só podem coletar a juçara madura e interditam que seja coletada ainda verde. Os referidos moradores proíbem também a derrubada da juçareira. Regras de uso similares, com proibição de cortar o cacho de coco e de extrair o coco verde, foram verificadas nas áreas de ocorrência de babaçuais, que se distribuem por praticamente todo o município de Alcântara. Em Baixa Grande, a expressão "Terras de Seu Pedro" foi registrada por L. Galvão como sendo utilizada para designar tais áreas reservadas (Galvão, 1998:13). Neste último caso, além de herdeiro, o Sr. Pedro detém poderes9 para negociações com o Ministério da Aeronáutica, respondendo formalmente pelas terras do povoado, localizadas límitrofes à área pretendida pela base militar. As chamadas terras de herdeiros aqui referidas acabam se confundindo parcialmente com um determinado imóvel rural cadastrado. Podem ser destacadas, a propósito dessas práticas preservacionistas e de conservação dos recursos naturais, aquelas que, implicitamente, deixam entrever uma preocupação e um certo controle da pressão demográfica sobre o estoque de recursos disponíveis. A despeito de essas práticas observadas não poderem ser convertidas em norma, podese adiantar que há situações em que a força de trabalho familiar ultrapassaria o potencial dos terrenos de cultivo disponíveis ao grupo. Mediante fatos dessa ordem, o próprio grupo familiar é levado a estimular a saída de alguns de seus membros para centros urbanos e regiões de fronteira agrícola, vinculando-os à receita familiar pelo trabalho assalariado e acionando-os eventualmente em etapas do processo de trabalho agrícola, que requerem uma maior concentração de atividades, tais como as colheitas de arroz e de mandioca. Outro componente dessa estratégia familiar e comunitária implica na 32 Alfredo Wagner Berno de Almeida mudança geográfica do local de residência e de cultivo do próprio grupo doméstico ou mesmo do próprio conjunto de famílias que constituem o núcleo central do povoado. Escassez de recursos essenciais nas proximidades do povoado, maior distância entre terrenos de cultivo e locais de moradia e brigas de famílias também concorrem para tanto. Isso explica por que certos povoados são abandonados e novos núcleos residenciais vão sendo criados. Aru, por exemplo, em 1854 constituia-se no povoado central de uma rede de povoados e, em 2002, a última família que nele permanecera estava se mudando para outro povoado. Situação semelhante foi observada, no decorrer do trabalho de campo, com respeito a São Lourenço. Não se trata propriamente de uma itinerância, uma vez que as mudanças geográficas ocorrem dentro dos limites de uma mesma territorialidade específica ou de uma mesma região socialmente delimitada, como veremos adiante. Impõe-se uma distinção entre essa prática, que denota uma dinâmica dos povoados em relação ao potencial dos recursos naturais, e os impactos sociais provocados pela implantação da base. Apropriando-se de grande extensão de terra, deslocando compulsoriamente povoados inteiros para agrovilas, comprimindo-os em áreas tradicionalmente ocupadas por outros povoados e restringindo o estoque de recursos naturais ao alcance das demais famílias, a implantação da base militar provocou uma migração forçada e uma catástrofe natural. Ao localizar as agrovilas junto às nascentes dos cursos d'água, os responsáveis pela implantação da base comprometeram rios e igarapés. O exemplo mais flagrante concerne ao rio do Pepital, que abastece a sede municipal, cuja redução do volume d'água mostra-se drástica. Quanto à migração forçada, foi registrada no trabalho de campo a célere ocupação de áreas da periferia da sede municipal por famílias procedentes de povoados com sua reprodução física comprometida. No perímetro urbano de Alcântara, acentuam-se tensões sociais, envolvendo centenas de famílias das comunidades remanescentes de quilombos e as delimitações preconizadas pelo zoneamento definido pela Lei Municipal nº 224, de 10 de outubro de 1997. Essas tensões envolvem também o Iphan. Foi possível constatar, inclusive, uma interpenetração entre as ruínas do casario assobradado e terrenos de plantio de mandioca e fruteiras, reatualizando no perímetro urbano relações de trabalho e de uso comum de terrenos vagos características dos povoados10. A história oral, ao registrar o reconhecimento social desse costume11 de apropriação, permanente e comum, do conjunto de recursos naturais imprescindíveis à existência das comunidades remanescentes de quilombo e do elenco de medidas transmissíveis, que disciplinam o seu uso, concorre para definir e consolidar direitos. Na mesma direção podem ser entendidas as iniciativas dos entrevistados de acrescentarem comprovantes à sua narrativa, recorrendo a croquis, plantas e bases cartográficas. Em pelo menos três contatos, os entrevistados nos exibiram mapas, elaborados por agrimensores, assinalando as áreas de seus respectivos povoados – quais sejam, Arenhengaua, Canelatiua e Santo Inácio – e de povoados circundantes. Em quatro outros povoados, como São Raimundo, Itapuaua, Baixa Grande e São João de Cortes, apenas mencionaram que possuíam os documentos sem, no entanto, exibí-los. Em Ladeira, Iririzal e Samucangaua, a discussão ocorreu em cima de um esboço de mapa desenhado com carvão no piso de chão batido da chamada tribuna, 33 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 que é a edificação que serve para a realização das reuniões. Em quase todos eles, indicaram-nos os marcos de pedra, denominados de pedras de rumo, que delimitam, desde a segunda metade do século XVIII, antigas concessões de terras a sesmeiros e que hoje correspondem aproximadamente às áreas que são reconhecidas como concernentes aos povoados. Os próprios mediadores, porta-vozes das demandas do grupo, embora muitas vezes também portassem mapas e documentos das áreas referidas e dispusessem de informações sobre a cadeia dominial – que, inclusive, subsidiam as reivindicações – e bem soubessem narrar as condições de apropriação dos recursos naturais, declinavam em favor desses mais velhos e passavam a ouvir atentamente os seus relatos 12. Valorizavam tais narrativas, procurando coaduná-las com as reivindicações. Seus depoimentos, nesse sentido, secundaram aqueles. Os arquivos como discurso de legitimação Foram realizadas, no decorrer das visitas aos povoados, entrevistas e conversas informais com 31 pessoas numa faixa etária igual ou superior a 60 anos, correspondendo a 26 homens e cinco mulheres. Elas distribuem-se por 25 povoados. Dezessete entre elas têm mais de 70 anos. Dez situam-se acima de 75 anos. Os entrevistados invariavelmente se autodefinem como pretos e assim são representados por aqueles com quem interagem socialmente, além de terem nessa categoria uma manifestação de identidade coletiva refletida na designação da territorialidade correspondente, ou seja, terra de preto. A relação com esses agentes sociais13, que detêm a autoridade da memória coletiva, requer maneiras estandardizadas de agir, que denotam respeito profundo aos anciãos, como saudar com deferência ou pedir a benção. Expressam, de igual modo, formas de afinidade, compreendendo dezenas de afilhados14 e de conhecidos que guardam certa fidelidade à amizade recíproca entre seus antecessores, numa vasta rede de relações sociais evidenciando, também, que os povoados de Alcântara podem ser interpretados como se estruturando enquanto "entidades afetivas" (Prado, 1974:64) com hierarquias dadas pelo parentesco e pelo compadrio, como já chamava a atenção R. Prado, em observação etnográfica de 1972. Tais maneiras de agir vão, entretanto, além dessas reverências. Registramos pessoas solicitando dos entrevistados autorização para a retirada de madeira e de palha das reservas ou para utilizar um terreno para plantio, porquanto seriam eles, simbolicamente, os responsáveis pela administração do estoque de recursos disponíveis ao uso comum de um grupo de famílias ou de um povoado como um todo. São relações ritualizadas ainda que se possa dizer que sua eficácia hoje é relativa, em virtude sobretudo da ação desapropriatória15 de 1980. Tal instrumento jurídico, que passou as terras para o controle formal do Estado com finalidade de implantação da base de lançamento de foguetes, desautorizou16 a ação reguladora desses agentes sociais. Foi possível constatar, entretanto, que tal autoridade está sendo reativada num contexto dramático e conflitivo em que percebem riscos de usurpação de seus domínios e de deslegitimação de seu modo específico de produzir, de fazer e de viver. A função do narrador, que relata a legitimidade 34 Alfredo Wagner Berno de Almeida das vias de acesso à terra e aos recursos básicos e a dinâmica de construção da territorialidade pelo grupo como um todo, torna-se vital numa situação de tensão social e conflito. Descrevêla para quem realiza a perícia, que é um instrumento científico que contribui para responder a questionamentos sobre expectativas de direitos, significa um ato demonstrativo de afirmação de diferenças culturais, que os agentes sociais pretendem sejam reconhecidas juridicamente. O reverenciamento ao narrador, nesse contexto, significaria também uma forma ritual de o grupo destacar a maneira de acessar o seu arquivo ou conhecimentos acumulados sobre a trajetória do conjunto de famílias que estruturam o povoado. A descendência evidencia, ademais, um tempo histórico e um processo de produção permanente, comprovado pela distribuição das atividades econômicas das famílias em terrenos não-contíguos, distribuídos ao longo de uma extensa área, e pela residência duradoura. O ato de me levarem à casa das pessoas indicadas já representava, pois, uma evidência comprobatória acerca da ancianidade do lugar, porquanto propiciava o acesso direto às fontes de referência constitutivas dos arquivos do grupo focalizado, dando uma existência física à história. Tanto a descendência, símbolo de um passado distante, quanto a residência, que no presente expressa uma idéia de continuidade, estão relacionadas de modo complexo à ecologia, ao conhecimento profundo do ecossistema e ao controle permanente de bens econômicos que traduzem as condições de possibilidade da reprodução física e social. Considerando esta relação entre tempo e espaço, não é difícil perceber a lógica da seleção de quem deveria falar antes que qualquer outro. Encontrei-me, portanto, diante de uma certa divisão do trabalho de reconstituição histórica que transcendia aos esquemas práticos dos mediadores e de lideranças sindicais, religiosas e políticas, os quais sintetizam o projeto coletivo do grupo e atuam em função de suas necessidades frente ao Estado e aos demais poderes instituídos. A demonstração, pelos entrevistados, de um certo conhecimento factual, intrínseco ao grupo, de uma extensa nominata de ancestrais, de uma extrema familiaridade com o meio biológico, descrevendo caracteres genéricos da flora e da fauna locais, de um repertório de informações sobre a piscosidade dos igarapés e dos meios lingüísticos para descrever confrontantes e lindeiros, utilizando um conjunto de termos próprios da documentação cartorial de registro de terras dos séculos XVIII e XIX17, consiste em etapa preliminar de uma confrontação maior. Ao elegerem para narrar os que detêm esse saber genuíno e são dotados de uma competência e de uma habilidade legítimas, que nem sempre se restringem a acontecimentos diretamente úteis, os agentes sociais afirmam um ponto de vista criteriosamente articulado e bastante denso, desautorizando outras possíveis versões. A história oral do grupo, transmitida de maneira detalhada e geograficamente precisa pelos responsáveis em preservar a memória coletiva, expressa, desse modo, uma modalidade afirmativa de interlocução, como se a própria perícia estivesse enredada numa polêmica e pudesse assim ir dirimindo elementos possíveis de dúvidas. A seleção desses entrevistados pelos agentes sociais, eles mesmos, exprime por si só um ato de delegação que, em certa medida, contém uma percepção de direitos coletivos e uma expectativa de que a perícia tenha como resultante o esclarecimento. Quem é instado a falar o faz com a autoridade de um "documento vivo" e de referências cartográficas irretorquíveis em oposição aberta às pretensões de antagonistas que porventura pretendam seus domínios territoriais, suas terras e 35 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 demais recursos básicos. As entrevistas, nesse sentido, podem ser assemelhadas a um discurso de legitimação, sancionado, seja pelos mediadores, seja pelo próprio grupo. Através dessa modalidade discursiva, colocam suas tradições, seus elementos identitários e suas formas de controle e de uso dos recursos naturais em consonância com as disposições jurídicas, refutando implicitamente qualquer interpretação contrária. Nas narrativas dos entrevistados, após asseverarem que essas terras pertenciam originalmente aos índios, retrocedem a um número determinado de gerações, condicionado sempre por aquele ancestral ou pelo grupo de parentes que facultou o livre acesso aos recursos naturais. O quadro genealógico dos antepassados tem sua origem na geração ou na pessoa que assegurou o controle da terra, de maneira autônoma, para o grupo doméstico. A narrativa memorialística, mesmo variando o número de gerações citadas pelos diferentes entrevistados, retrocede até a situação em que ocorre o mencionado acesso à terra. A regra de descendência, que filia o entrevistado àquele ancestral ou grupo de parentes, provê tanto direitos permanentes quanto obrigações concernentes à garantia de reprodução dos recursos essenciais ao grupo. São esses os fundamentos dos laços solidários que consolidam a coesão social na organização dos povoados e na interligação que historicamente passam a manter entre si. As entrevistas podem propiciar informações que, ao pesquisador, não é possível checar inteiramente, como genealogias de famílias escravas e atos de divindades, mas, enquanto representações significantes para os entrevistados, não constituem verdade ou mentira, sendo tão-somente o que vivem, acreditam e enfatizam como dando sentido à sua organização social. Podem ser lidos dessa maneira os acontecimentos pertinentes às divindades. A menção explícita aos santos, às santas e às irmandades é igualmente posterior à referência aos índios, circunscrevendo os atos de sucessão das famílias responsáveis pela manutenção do sacro patrimônio e suas respectivas relações contratuais com as divindades. A divindade é registrada formalmente como proprietária do imóvel, como seria o caso de Nossa Senhora do Livramento18. De igual modo sucede com a Irmandade do Santíssimo Sacramento19. Santa Teresa, por sua vez, é representada como uma santa viva, que inclusive teria uma irmã igualmente santa, que caminha à vista de muitos, percorrendo seus domínios, assim como São João Batista e Nossa Senhora do Livramento em suas respectivas terras. Uma vez encontrados nos campos, rios e matos, são sempre recolhidos pelos fiéis e levados às suas respectivas capelas em forma de imagem. As portas dos templos são cerradas para evitar que saiam outra vez. Ocorre, entretanto, que invariavelmente escapam, sem que se saiba como e para onde. Quando as capelas são abertas, eles já se foram. "Nada consegue detê-los", de acordo com as assertivas dos entrevistados. Nas terras de Santa Teresa, registra-se ainda uma variação: existem três imagens de tamanho diferente, mas apenas uma delas é apontada como santa viva e milagrosa, que já foi levada várias vezes para Alcântara e sempre escapa de lá, retornando para sua capela em Itamatatiua. Para Lopes, referindo-se a N. S. do Livramento, seriam "imagens migradoras como referem os folcloristas" (Lopes, 1957:302). Do ponto de vista da presente interpretação, seriam relações próprias de contratos diádicos firmados para legitimar o uso continuado de recursos. Santos e santas são representados como fiscalizando seus patrimônios. Santa Teresa é vista percorrendo os campos e olhando os terrenos de plantio e seus rebanhos ao sul do município de Alcântara. Do prisma de quem narra, ela estaria cumprindo as 36 Alfredo Wagner Berno de Almeida expectativas de sua posição assimétrica numa relação contratual efetiva. E tanto assim é que um dos entrevistados relata que presenciou a conversa de uma senhora com a imagem da santa, tratando-a por "Sinhá" (H.M. 26/04/2002 ENT. 25)*. De modo similar, São João Batista era visto com uma vara de pesca na beira de lagos e igarapés a noroeste do município mas, consoante os entrevistados, ele teria sido levado para outras terras e substituído na igreja de São João de Cortes por uma simples imagem que, como tal, se mantém imóvel20. Esses episódios de antropomorfismo ou que atribuem às divindades comportamentos característicos de seres humanos não transformam exatamente os santos em "patrões", uma vez que, historicamente, o ato de fugir para as terras sob proteção divina significou uma via de acesso à liberdade e à consolidação dos quilombos em Alcântara. Os registros de sucessivas ocorrências de quilombos nessas terras, entre 1837 e 1868, bem ilustram sua diferença em face da severidade dos mecanismos escravistas dos engenhos. Para além dos registros de terras e das narrativas míticas, está-se diante de contratos firmados entre as divindades e os moradores das áreas, que são operacionalizados através de um corpo administrativo de funcionários religiosos, denominados encarregados da terra ou ainda encarregados da santa, que zelam pela capela, organizam os rituais religiosos e coletam donativos, designados localmente como jóia, caso das terras de Santa Teresa, em Itamatatiua21. Tais funcionários integram também as chamadas comissões, como no caso do patrimônio de São João Batista, em São João de Cortes, como arrecadadores e administradores de um fundo cerimonial para realização periódica das festas e demais rituais religiosos. Para dar conta dessas variações, os agentes sociais reconstituem as vias de acesso aos recursos naturais e a consolidação de seu domínio com um repertório de expressões e categorias peculiares que se distinguem das disposições jurídico-formais de propriedade e de titulação privada, evidenciando territorialidades específicas que contrastam com a estrutura agrária de Alcântara, tal como oficialmente descrita, e lhe conferem particularidades. Há uma contradição flagrante entre a difusão e a persistência dessas categorias na vida social dos povoados e a noção comumente difundida de que agora trata-se de "terras da base". A colisão de classificações evidencia a profundeza dos antagonismos e possibilita uma interpretação do conflito a partir de formas diferenciadas de representação da terra, que evidenciam, por um lado, uma noção geográfica e mercantil, enquanto bem físico passível de indenização, e que manifestam, do lado oposto, um processo de construção de territorialidades, resultante da mobilização de comunidades estruturadas socialmente em povoados. Para efeito de apresentação e síntese do significado dessas categorias, pode-se adiantar, grosso modo, que: no contexto da descendência e dos atributos pelos quais se auto-representam e são vistos, os entrevistados mencionam as denominadas terras de preto e terras de caboclo; no contrato com as divindades, referem-se às terras de santo, terras de santa, terras de santíssimo, terras de santíssima, terras santistas e designações aproximadas como irmandade; no contexto de regras de sucessão e transmissão de patrimônio, falam de terras de herdeiros e terras de parentes. * Entre parênteses, a forma padrão de referência às entrevistas realizadas durante a perícia, da qual constam: iniciais do entrevistado, data e número de ordem. (n.e) 37 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Consoante os termos documentais de registros do período colonial, falam de datas e sesmarias. De acordo com termo de doação específico, firmado em cartório, referem-se a terras da pobreza. Nos registros paroquiais, encontramos menção a terras de irmandades religiosas e das próprias divindades. No contexto de transferência de imóveis rurais adquiridos e registrados em cartório, mesmo que sem formais de partilha efetivados, falam também de terras de herdeiros. Sobre as terras devolutas municipais, mencionam as chamadas terras da Câmara. Perpassando todos os diferentes planos formais e informais, da identidade coletiva e dos contratos diádicos, falam de terra de índios, quando tratam da referência original ao domínio das áreas, e de terra comum, no que tange à relação antrópica e às regras de uso dos recursos naturais. Estas duas últimas designações perpassam todas as outras situações mencionadas. Quanto aos denominados brancos, as narrativas memorialísticas jamais falam em terras ou recursos naturais, senão com referência a um passado remoto, cingindo-se a mencionar tão-somente as ruínas do que teriam sido suas moradias, classificadas como taperas de branco. Adiantando na análise das interrelações, pode-se asseverar que tais territorialidades específicas se interpenetram simbolicamente, consoante o tipo de critério que possibilita sua delimitação em diferentes planos organizativos, fazendo, por exemplo, com que as intituladas terras de preto ou as terras de caboclos se imbriquem com as terras de santo e com as chamadas terras de herdeiros sem se imbricarem necessariamente entre si. Nessa ordem, elas não seriam redutíveis a uma noção de terra, enquanto recurso básico, ou a uma distinção de domínio, quer dizer, entre posse e propriedade. Em verdade, constituem territórios construídos historicamente e legitimados por um sistema de relações sociais intrínseco a cada uma das situações em jogo. A multiplicidade das formas de propriedade e de apossamento e a complexidade das relações entre elas, que concernem a tais territorialidades, por si sós contrariam a homogeneização oficialmente imposta pelo aparato administrativo do Estado. Através das estatísticas cadastrais do Incra, que utilizam a categoria "imóvel rural", e do censo agropecuário do IBGE, que utiliza a categoria "estabelecimento", tem-se a síntese da classificação oficial adotada pelo Estado em termos de estrutura fundiária. A propriedade privada e a posse, com suas variações, enquadrariam qualquer modalidade de domínio e de uso da terra. Os procedimentos censitários e de cadastramento elidem o fator étnico, excetuando-se os casos de tutela, tal como sucede com os povos indígenas, e reprimem toda diferenciação no interesse da uniformidade. As situações peculiares empiricamente constatadas têm que se conformar necessariamente à padronização instituída ou correm o risco de não existirem enquanto realidades censitárias e cadastrais, isto é, não terem existência legal. Em Alcântara, há formas de apropriação dos recursos da natureza que não são individualizadas – como no caso de "imóvel rural", baseado na noção de propriedade privada – e nem estão apoiadas na noção de unidade de exploração, independente da dominialidade, tal como o IBGE define "estabelecimento". Combinando-se essas formas intrínsecas com a mencionada elisão do fator étnico, resulta que são mantidas sob uma invisibilidade social, não obstante serem legítimas e efetivas. As múltiplas formas de apropriação e uso da natureza, designando territorialidades específicas, convergem para o processo de construção do território étnico das comunidades remanescentes 38 Alfredo Wagner Berno de Almeida de quilombos. Além de requererem novos procedimentos de classificação oficial, elas consistem numa conquista efetiva, historicamente consolidada, que não pode mais ser ignorada técnica e juridicamente e por si mesma perfila-se em face do conflito em jogo. Pode-se asseverar, portanto, que quem fala, nas entrevistas, já faz da narrativa um argumento. Está-se diante de uma fala que enuncia uma percepção de diferenças culturais em face da representação e uso dos recursos da natureza e que, de maneira implícita, demanda reconhecimento formal como remanescente de quilombos. Ao considerar que nos trabalhos de perícia há características de identificação que não podem ser conhecidas discursivamente e demandam atos de pesquisa e de observação in loco, pode-se dizer também que foram tornados argumentos os próprios roteiros e itinerários de visitas quase imperceptivelmente impostos ao perito. Transcendendo às narrativas, cabe observar que, nos povoados visitados, sempre me instavam a caminhar até seus terrenos de cultivo e até os escombros ruiniformes que são designados indistintamente como muralhas e paredões ou, quando há referências mais específicas, como engenhos e, ainda, quando há referencias explícitas a moradias ou antigas sedes de fazendas, como taperas de branco e sítio velho. Incentivaram-me também a percorrer as linhas delineadas pelos marcos de pedra enterrados nas extremidades das áreas, que remontam ao período colonial e são chamados pedras de rumo. Ainda que localizados muitas vezes em lugares distantes e encapoeirados, que demandavam mais de hora de caminhada por trilhas não necessariamente livres de matos, como no caso dos limites entre São Raimundo, Cajiba e Timbotiua22, havia insistência para tanto. Mostrando-me as letras, que afirmavam serem as iniciais do nome dos povoados limítrofes, e os sinais gráficos gravados na face superior das pedras de rumo, era como se estivessem me apresentando a territórios específicos de delimitação indiscutível com as evidências letradas próprias dos registros escritos, que simbolizaram a dominação colonial sobre sociedades ágrafas. Os mediadores e o discurso da mobilização Os contatos mais detidos e entrevistas com lideranças de povoados e mediadores que exercem o trabalho de delegação, incluindo-se representantes de entidades de representação e movimentos23, compreenderam 31 pessoas e um número pelo menos cinco vezes superior se totalizarmos os que participaram de reuniões ocorridas no decorrer do trabalho de campo. Outros contatos detidos foram realizados com associações voluntárias da sociedade civil, entidades confessionais e entidades de apoio24, que atualmente integram as mobilizações pelo reconhecimento dos direitos dos remanescentes de quilombos. Não constitui, por conseguinte, qualquer redundância reiterar que os trabalhos relativos à perícia foram realizados numa situação de antagonismos latentes e que as narrativas dos entrevistados, quaisquer que sejam, refletem de modo explícito a agudez desses conflitos. Eles vivem a ameaça constante de perder bens essenciais. Consideram que suas características culturais mais antigas e contrastantes mostram-se abaladas por circunstâncias recentes, externas à sua dinâmica histórica. Referem-se mais diretamente à implantação da base de foguetes do Centro de Lançamento de Alcântara que, desde 1980, vem limitando drasticamente a 39 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 sua sobrevivência física, sobretudo ao desapropriar extensa área, ao deslocar compulsoriamente povoados centenários, afetando a reprodução das famílias, como ocorreu em 1987, e ao ameaçar deslocar outros. Ressentem-se de uma total indefinição quanto ao futuro. Evidenciam isso ao sublinhar que os responsáveis pela implantação do CLA, nesses 22 anos, desde a decretação da área, jamais lhes apresentaram publicamente um cronograma de execução das atividades previstas referentes a deslocamentos de famílias, para que possam ter conhecimento das operações de que são objeto. Em certa medida, externam uma percepção crítica quanto à maneira de serem tratados como se não existissem enquanto sujeitos ou como se fossem "coisa", associando a ação do CLA, nesse contexto, a uma espécie de volta a um passado remoto que intitulam "tempo de escravidão" ou "antes dos brancos irem embora". Interdições à pesca e à coleta e ao livre deslocamento pelas praias e caminhos, agora controlados pela base militar, reforçam esse sentimento. O estado permanente de precariedade e de incerteza sobre o futuro próximo e quanto aos locais de moradia, de cultivo e da realização de atividades extrativas, vivido há mais de duas décadas, abala as condições elementares de reprodução social. A sensação oprimida de não controlar o presente produz uma incapacidade de fazer planos e de segui-los. O pânico e o medo diante de uma ordem superior que poderá, a qualquer momento, determinar o deslocamento geográfico não se sabe para onde inibe a ação dos que administram os recursos naturais disponíveis aos grupos familiares que constituem os povoados. A honra e a dignidade dos chefes de família acham-se seriamente afetadas diante da insegurança continuada. Acontecimentos dessa ordem, que serão analisados adiante, levaram os entrevistados a ativar a memória de maneira seletiva, além de provocar impactos sobre sua percepção de si mesmos diante dos direitos coletivos instituídos juridicamente para assegurar a persistência de diferenças culturais e étnicas. Em virtude disso é que se pode destacar previamente que o conflito social em Alcântara institui uma forma de presencialidade do passado, levando os procedimentos de trabalho de campo relativos ao laudo pericial a discutirem fatos de uma memória oculta e historicamente reprimida25. Esse tipo de memória é provocada por uma situação limite que, ao colocar em jogo a sobrevivência do grupo, acaba tornando transparentes acontecimentos, representações e elementos identitários que tradicionalmente eram mantidos segundo uma invisibilidade social. O conflito social cria condições de possibilidade para que venha à tona o ideal de autonomia e de trabalho livre, por conta própria. Constata-se a emergência de novas formas organizativas e de uma mobilização constante de resistência dos entrevistados a formas de imobilização da força de trabalho, a deslocamentos compulsórios e a outras medidas repressoras que reatualizam cotidianamente práticas de um regime escravista. Nesse contexto é que representam como submissão e que é vivida como rebaixamento moral a situação dos que foram deslocados para as agrovilas e que foram desprovidos dos meios de se manterem por conta própria. Em contrapartida, ganham visibilidade antigas práticas clandestinas, ocultas, que permitem mapear Alcântara pelas traços contrastantes em face de um sistema escravista que ainda na vigência da administração colonial não conseguiu manter imobilizada de maneira plena a força de trabalho. Multiplicam-se marcas evidentes dessa resistência, dispersas em designações do cotidiano que reativam a memória coletiva. Designam, por exemplo, como mocambo26, consoante a toponímia local, um lago localizado próximo ao povoado de Peru, ou um 40 Alfredo Wagner Berno de Almeida outeiro em Castelo, ou um grupo de casas no antigo Jarucaia ou, ainda, os denominados palheiros, edificações cobertas e revestidas nas laterais somente com folhas de pindova, como foi possível observar em Rio do Pau. Podem ser ressaltadas também as referências constantes a locais de refúgio, em trechos de capoeiras mais densas, onde há menções a velhas trilhas de escravos, como em Esperança e Itapuaua. E as menções a lugares onde pernoitavam escondidos ou onde diziam haver ossadas de gado roubado, pedaços de tiras de couro esgarçadas ou ainda onde diziam haver restos de ostras acumulados, que seriam vestígios do comer às escondidas, como em Brito, Itapera e Itapuaua. Embora não tenha havido menções explícitas a terrenos de cultivo nesses lugares, sempre enfatizam que havia muita farinha e que nas farinhadas se comia à vontade. Uma das qualidades de mandioca mais plantada é denominada "Joana Forra". O nome, reverenciando uma escrava liberta, evidencia autonomia e o fato de que a origem da espécie nada tem a ver com a grande plantação. Há ainda um povoado cujo nome encerra este sentido simbólico: "Fora Cativeiro". Utilizam o termo cativeiro para designar o regime de trabalho forçado no período colonial e hoje. Todos esses locativos constituem de maneira idealizada lugares de liberdade que exprimem um viver livre e por conta própria, seja no processo de produção, seja na esfera do consumo, fora do alcance da ação coercitiva de outrem. Entre eles, importa destacar os que são conhecidos localmente como toca, que é um sinônimo de esconderijo27. São freqüentes também casos referidos à fuga ou pegação, que é como nomeiam as formas de recrutamento obrigatório para prestar serviços guerreiros ou militares. Narram casos das andanças na beira-campo de Santo Antonio e Almas do "bandido" que, fugindo da prisão, buscava vingança e "matava feitores", lembrado pelos mais velhos como "negro Tito"28. Relatam situações passadas em que todos os homens dos povoados permaneciam escondidos nas matas ou em que adolescentes ficavam escondidos sob as saias das mães para não serem levados29. Para onde seriam levados, nunca se sabe ao certo, mas os entrevistados sempre fazem menção a guerras e as especificações circunscrevem-se, no mais das vezes, à mencionada "guerra paraguaia". Esses depoimentos foram coletados em São Raimundo II, Canelatiua, São João de Cortes e Baixa Grande. Enquanto narrativas, para além da questão da fidedignidade dos fatos, podem ser lidas como míticas ou como relatos simbólicos da recriação constante da sua condição de "libertos". Elas privilegiam, nesse sentido, atos de resistência a medidas de constrangimento, as quais sempre parecem pretender reinstaurar o que classificam de "tempo da escravidão". Tais atos são vividos como elementares para revigorar a coesão entre os grupos familiares e manter os planos organizativos que estruturam socialmente os povoados. Transcendendo a um mero léxico, tem-se um repertório de ações que negam disposições impositivas, capazes de cercear seus movimentos ou ainda de subordiná-los pela força bruta. Essas ações, embora à margem do ordenamento jurídico colonial, não são vividas necessariamente como transgressões. Ao contrário, são narradas como legítimas e tanto mais pelos mediadores do grupo – líderes sindicais, representantes de povoados, mandatários municipais, militantes do Movimento Negro – cujos depoimentos de reinterpretação dessa ordem de fatos são relevantes30. Além disso, aquelas práticas de resistência resultam por convergir para uma categoria construída simultaneamente: tanto a partir de um critério político-organizativo, que contesta a subordinação com a afirmação de uma identidade étnica, quanto de uma autonomia no processo produtivo e na esfera de consumo. A combinação de ambas corresponde à noção ressemantizada de quilombo31. 41 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 O significado de quilombo compreende um processo de trabalho autônomo, que por atos deliberados recusa a submissão forçada a terceiros, e as respectivas práticas de uso comum dos recursos e de livre comercialização de sua produção agrícola e extrativa. Compreende formas de cooperação simples e práticas de reciprocidade positivas entre as unidades familiares que se agrupam sob uma mesma identidade diante dos mesmos antagonistas. Tem-se, aqui, uma afirmação, simultaneamente étnica e econômica, de produzir para circuitos de mercado e de reverter domínios fundiários reconhecidos pela legislação colonial, em virtude de os grandes proprietários terem perdido o seu poder de coerção, como no caso de Alcântara, e buscado acordos verbais prometendo alforria e terras, ante a incapacidade de saldarem suas dívidas com comerciantes e de proverem os recursos para a "escravaria" se alimentar e produzir. Nesse sentido, vale repetir: não importa tanto se o quilombo acha-se localizado distante ou próximo das casas-grandes ou os demais aspectos formais da definição do período colonial, mais valendo o grau de autonomia que os membros das comunidades remanescentes de quilombos historicamente adquiriram e a territorialidade específica que socialmente construíram em sucessivos atos de resistência, que resultaram numa identidade coletiva consolidada e na garantia da persistência de suas fronteiras. A transição do léxico de rotina e de ações de resistência atomizadas e individuais para uma identidade que expressa uma existência coletiva não é simples, e só se mostra factível, no caso analisado, mediante uma mobilização étnica, entendendo-se o grupo étnico como tipo organizacional (Barth, 2000:11), isto é, o grupo passa a ser visto como uma forma de organização social. Enquanto há grupos que não se mobilizam em torno de seu pertencimento étnico que sugere auto-evidente, há outros que, diante da invisibilidade social prevalecente, como no caso de Alcântara, têm que construí-lo. A vicissitude dessa construção implica em se fazer conhecido em face dos outros de uma maneira distinta, através de atos que expressem uma existência coletiva. As formas de organização e as estratégias de mobilização continuada contra circunstanciais antagonistas significam instrumentos que tornam factível esta passagem. Detectá-las e descrevê-las torna-se uma condição essencial na identificação das comunidades remanescentes de quilombos e consiste justamente no objeto desta perícia. A partir dessas narrativas, relativas aos arquivos e aos mediadores, das observações diretas realizadas no decorrer do trabalho de campo e ainda da consulta às fontes documentais32 e arquivísticas, passarei a seguir à análise do processo de territorialização, deslocando o foco da pesquisa da constituição interna do grupo e de sua história para as fronteiras étnicas e sua persistência através de conflitos e de constantes mobilizações (Barth; 2000:27). 42 Processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos Moradias O processo de territorialização ora em pauta não pode ser pensado consoante um desenvolvimento linear, evolutivo e contínuo, incorporando gradativamente novas áreas e sempre tendendo a fortalecer, de modo ascencional, uma determinada identidade étnica ou regional. Somente uma interpretação historicista e acrítica poderia estabelecer uma continuidade e um sentido uniforme na formação desses territórios de quilombos. Não se trata, pois, de privilegiar uma reconstituição histórica sem fim em busca de precursores originais, traçando a partir daí as recorrências e as tendências constantes até alcançar as referidas comunidades. Ao contrário, conforme se pode perceber no caso de Alcântara, com apoio em copiosas referências bibliográficas,1 prevalecem descontinuidades. Assim, desde 1755, com a "abolição da escravatura indígena", a criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão e o confisco das fazendas da Companhia de Jesus2, até 1888, com a "abolição da escravatura pela Lei Áurea", e daí até a Constituição de 1988, esse processo apresenta-se marcado por rupturas e intermitências, delineando uma diversidade de situações com temporalidades distintas. Tais situações mostram-se bastante heterogêneas e condicionadas por transformações políticas e econômicas relativas aos mecanismos repressores da força de trabalho tanto no período colonial, quanto no republicano. Dos conflitos a que estão referidas, resulta uma diversidade de formas de apropriação da terra, cada uma com sua especificidade, cada uma com suas características peculiares. O conhecimento concreto dessas situações concretas consiste numa via de acesso às vicissitudes do processo de territorialização, evitando simplificações e reducionismos. Para distinguí-las de modo mais detido, designei-as como territorialidades específicas, mantendo seus traços intrínsecos. Correspondem a elas as denominadas terras de preto, terras de caboclos e terras de santo, tal como representadas pelos agentes sociais, isto é, pelos sujeitos responsáveis pelo seu advento. Com suas respectivas variações, elas convergem diferenciadamente para a formação de um território étnico, que é a expressão maior, em Alcântara, do processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos, evidenciando sua extrema complexidade. Mediante esse enfoque, não há qualquer consistência na suposição de que a autonomia produtiva, característica dos quilombos, foi aumentando, aumentando e incorporando extensões cada vez maiores ou que o tempo livre para os escravos trabalharem por conta própria, dentro das fazendas, a partir da queda do preço do algodão, foi dilatando, dilatando até que passassem a trabalhar somente para si mesmos em virtude da ausência dos senhores ou pelo seu completo abandono das terras. A dinâmica da construção da territorialidade mostra-se, sobretudo, relacional e disruptiva, caracterizada por antagonismos que tanto fazem avançar rapidamente a citada autonomia, quanto geram refluxos e contramarchas. Enquanto processo social, tal dinâmica não pode Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 ser reduzida a um mero componente fundiário ou a um elemento da estrutura agrária, embora esteja referida a conflitos que se manifestam nas relações com os meios de produção. Ainda que não se restrinja à terra, ela a tem como referência empírica, objeto de conflitos abertos e de diferentes modalidades de apropriação que podem, em dado momento, constituir particularidades. As clivagens decorrentes dessa dinâmica representam, inclusive, marcos significantes para os membros daquelas comunidades, os quais se mobilizam coletivamente ao perceberem a movimentação de seus antagonistas históricos e, coextensivamente, as alterações porque passam os instrumentos de imobilização da força de trabalho a as demais medidas que impedem seu livre acesso aos recursos naturais. Esses instrumentos, característicos de sociedades autoritárias fundadas em princípios escravistas, permanecem sendo constantemente redefinidos e reativados, principalmente através de dispositivos jurídicos e de atos que perpetuam o monopólio da terra e formas de endividamento com propósito de imobilizar a força de trabalho. Uma ilustração disso seria a retomada sucessiva de aparatos de dominação circunstancialmente debilitados através de novos instrumentos repressivos instituídos pela legislação provincial do Maranhão diante dos quilombos, em 1835, antes da guerra da Balaiada; em 1839-1841, durante a Balaiada; em 1847, com as medidas modernizadoras de reorganização dos engenhos de açúcar; em 1867, sob a pressão da Guerra do Paraguai, e em 1878, com as discussões públicas sobre a exportação de escravos das províncias do Norte e Nordeste para o Sul do Império. Após a campanha abolicionista, os atos efetivos, objetivando instituir aforamentos e "cobranças de renda", em fins do século XIX e meados do século XX, bem ilustram a regularidade de adoção de mecanismos repressivos da força de trabalho. Todos esses momentos críticos expressam antagonismos sociais profundos e um quadro de tensões que não foi e nem poderia ser suprimido por uma disposição jurídico-formal. De igual modo podem ser pensados os conflitos sociais decorrentes das ações desapropriatórias de 1980 e 1991 que recolocam a questão do estatuto jurídico das terras do município de Alcântara e, de maneira contrastante, trazem a público a discussão sobre o território das comunidades remanescentes de quilombo, fundada no que preconiza a Constituição Federal, promulgada em outubro de 1988, notadamente no Art. 68 do ADCT. Mesmo considerando que a noção de território não se atém necessariamente a um sentido geográfico e nem corresponde de maneira estrita ao sentido jurídico de propriedade de terras, descortina-se um novo significado dessas situações focalizadas, que manifesta a relevância dos fatores étnicos no sistema de relações sociais que concerne à estrutura agrária. O referido processo de territorialização, nessa ordem, torna-se mais factível de ser analisado pelas rupturas, como aquelas resultantes da desagregação das fazendas de algodão, desde fins do século XVIII, simbolizadas pelas ruínas das casas-grandes e engenhos. Pode ser analisado, também, pela intensidade dos conflitos, mediante o reposicionamento das forças de dominação escravistas, no decorrer do século XIX, com a tentativa "modernizadora" dos engenhos, e mais recentemente, em 1980, com o início da implantação de um grande projeto governamental. Na análise a seguir apresentada, incluiremos ainda os atos de mobilização e de afirmação étnica dos membros das comunidades remanescentes de quilombos com as respectivas respostas dos aparatos de poder. Incluiremos, principalmente, os fatos significantes na própria forma de eles representarem os meandros dessa construção social do território. 46 Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual dos conflitos Consoante estudos anteriormente realizados, pode-se asseverar, para efeitos de introdução, que o conhecimento da estrutura agrária de Alcântara aponta para particularidades históricas e de natureza étnica que a distinguem de outras regiões da Amazônia e do Nordeste. O intenso movimento de concessão de terras em Alcântara com grandes estabelecimentos agrícolas, apoiados no trabalho escravo e na monocultura de algodão, beneficiados por vantagens financeiras e mercantis propiciadas pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, a partir de 1755, teve duração efêmera. As concessões de sesmarias foram articuladas com a desativação das capitanias e com o confisco das terras de ordens religiosas e a expulsão dos jesuítas, ampliando os estabelecimentos de agricultura tropical. Embora essas medidas pombalinas tivessem dinamizado o processo produtivo e colocado os produtos do Maranhão e, notadamente, de Alcântara – que era considerada, em 1760, a vila mais próspera da região – no mercado internacional, seus resultados não foram duradouros. Diferentemente da costa nordestina, em que as grandes plantações de açúcar mantiveram-se, durante o período colonial, como o centro dominante mais estável da economia brasileira (Velho,1976:115), em Alcântara ocorreu um abrupto declínio dos estabelecimentos agrícolas dedicados ao cultivo do algodão a partir da extinção da Companhia Geral, em 1778, e do fim de seu monopólio comercial. A alta dos preços no último quartel do século XVIII, propiciada pela expansão da indústria têxtil britânica e pela independência das colônias inglesas que vieram a formar os Estados Unidos, mesmo tendo gerado divisas e caracterizado um período de "prosperidade no Maranhão" (Furtado, 1975:90), não foi suficiente para assegurar um desenvolvimento constante daqueles empreendimentos agrícolas. Enquanto no Nordeste os estabelecimentos açucareiros incorporaram tecnologia e se transformaram em plantations1 não obstante a tendência secular a uma decadência gradativa – em virtude, sobretudo, da competição, na segunda metade do século XVII, das plantações das Antilhas –, em Alcântara os estabelecimentos agrícolas não lograram estabilidade nem desenvolveram uma parte industrial para beneficiamento do algodão, e desagregaram-se vertiginosamente. Após os efeitos da guerra de independência, entre 1776 e 1778, os Estados Unidos organizaram sua economia de plantations no Sul, passando a produzir algodão em maior quantidade, com fibra de qualidade superior, e a controlar o mercado mundial do produto no início do século XIX. A queda de preço do algodão, resultante dessa reorganização do mercado, chegou ao fundo do poço em 1819 e acentuou o endividamento dos fazendeiros junto Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 às casas comerciais portuguesas e inglesas de São Luís2, apressando o abandono das fazendas em Alcântara. As limitações ecológicas, de solos frágeis e arenosos, e o uso predatório dos recursos naturais com queimada das matas para plantio de algodão e de cana-de- açúcar, durante mais de quarenta anos consecutivos, numa área não superior a 120 mil hectares, também teriam contribuído para o célere declínio da economia algodoeira. A devastação dessa área foi registrada a partir de observação direta feita pelo coronel engenheiro Pereira do Lago, em janeiro de 1820, quando de sua passagem pela estrada do Pirau-açu (Periaçu), que alcançava o Grão-Pará, passando pelas fazendas entre a cidade de Alcântara e o porto de São João de Cortes (Pereira do Lago, 1872:388). A expansão das fazendas de algodão teria se defrontado com limites insuperáveis, ocasionando uma derrocada em Alcântara profundamente devastadora e distinta daquela do Vale do Itapecuru, que tanto no período da Guerra de Secessão norte-americana (1860-1865), quanto no final do século XIX, conheceu inclusive uma reativação do plantio de algodão consolidado até a década de 1950-60 pelas indústrias têxteis de Codó, Caxias e Coroatá. Em conformidade com a formulação teórica de Wolf e Mintz, pode-se asseverar que em Alcântara não teriam ocorrido plantations, mas tão-somente fazendas. Ademais, ocorreu uma absoluta desagregação dessas fazendas, que, pelas exigências régias de confirmação, não eram propriamente propriedades privadas, senão concessões de sesmarias realizadas pela Casa Real. Num tempo historicamente curto, elas simplesmente deixaram de existir. Não houve qualquer transição para trabalho assalariado, nem tampouco ocorreu um desmembramento dos grandes estabelecimentos com a formação de um campesinato parcelar individualizado em pequenas glebas, que posteriormente foram reconhecidas como propriedade privada. O processo de desagregação dessas fazendas de algodão levou inicialmente ao advento de uma pequena agricultura subordinada, correspondente a uma situação incipiente e intermediária entre escravo e camponês ou ainda a um "protocampesinato escravo", caso se considere a interpretação de Mintz, relativa às plantations de sociedades caribenhas (Haiti, Cuba, Santa Lucia, São Vicente)3, como fenômeno aproximável. A desorganização da produção algodoeira em Alcântara foi, entretanto, de tal ordem e tão completo foi o abandono das fazendas pelos senhores – vendendo telhas, baldrames de casas-grandes destruídas, desmontando meios de trabalho e demais benfeitorias –, que tão logo resultou só em ruínas, como se poderá constatar no tópico desta perícia intitulado "Muralhas e paredões: as ruínas das casas grandes e dos engenhos como fator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos". Semelhante desmonte viabilizou o surgimento de uma camada de pequenos produtores agrícolas com autonomia no processo produtivo, desenvolvendo práticas de uso comum de recursos naturais bastante exauridos, e relativamente livres da dominação senhorial. A autoridade senhorial nessas fazendas tornou-se mais simbólica, tal como já sucedera com o senhorio eclesiástico nas terras da Companhia de Jesus, desde 1760, e das demais ordens religiosas (carmelitas, mercedários), a partir de 1821. Ela se manifestava, seja através de prepostos e das tentativas jurídico-formais de validar as cartas de datas e de sesmarias, entre 1777 e 1816, ou de reconfirmá-las, entre 1854 e 1857, consoante as exigências da Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de 1850; seja através de termos de doação aos escravos ou do simples abandono das fazendas. 48 Alfredo Wagner Berno de Almeida Escravos, cuja aquisição havia sido facilitada pela Companhia Geral de Comércio, índios desaldeados e que se mantinham livres nas antigas fazendas das ordens religiosas, ex-escravos e alforriados e também escravos fugidos compunham essa camada de pequenos produtores agrícolas em formação. O elemento mais contrastante nesse processo de completa derrocada é a debilidade econômica dos sesmeiros em manter, de maneira plena, uma produção permanente e sua incapacidade de acionar mecanismos de repressão da força de trabalho capazes de inibir os desdobramentos daquela autonomia. Quer dizer, não há registros de tentativas de reorganização da produção e nem há, tampouco, informações de que tenham conseguido mobilizar efetivos militares suficientes para reverter tal quadro. Sublinhe-se que esses acontecimentos coincidem com um período histórico atribulado que se inicia com conflitos políticos em Portugal, que levaram a família real a deslocar-se para a colônia, culminando com as lutas pela independência em 1822 e 1823. Coincidem, de igual modo, com o colapso do mercantilismo e do monopólio das grandes companhias de comércio, mediante a prevalência dos princípios liberais que inspiraram a decisão real de abertura dos portos, em 1808, e de tratados de comércio e amizade com a Inglaterra, em 1810. A partir desse início do século XIX, os registros administrativos sobre quilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam desde o início do século XVIII, aumentam significativamente. As articulações entre os quilombolas e os escravos das fazendas arruinadas tornam-se mais orgânicas e consolidadas, tornandose quase impossível distinguí-los com exatidão. Tal como os escravos, os quilombos também passam a ser designados pelas fazendas nas quais se manifestam, tornando indubitável que sua localização geográfica não se encontrava fora dos limites físicos dos grandes estabelecimentos de agricultura tropical. Em decorrência, as campanhas armadas contra os quilombos são parcialmente reeditadas e se voltam também para essas fazendas em desagregação, conforme noticia o coronel Pereira do Lago, em 1820, ao mencionar o "quilombo dos pretos de Viveiro" e aquele "da Fazenda das Mercês"(Pereira do Lago, 2001:28). Os registros constatam que os quilombos mantêm uma produção regular e contatos sistemáticos com comerciantes, concorrendo para o abastecimento de farinha e arroz das fazendas de gado da beira-campo, dos núcleos urbanos regionais e da capital São Luís. Transcendendo àquela situação de "protocampesinato escravo", constata-se que, tanto dentro quanto fora dos domínios físicos das fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, esses produtores autônomos foram se consolidando enquanto um campesinato, trabalhando a terra com suas unidades familiares e vendendo livremente sua produção agrícola nos circuitos de mercado relativos aos gêneros básicos, coletando especiarias da floresta, extraindo amêndoas de coco babaçu e dedicando-se à pesca marítima e nos rios e igarapés. O instituto das Cartas Régias não resistiu, em Alcântara, a essa trajetória ascendente dos grupos sociais estruturados em povoados que, para além de uma simples figura jurídica de apossamento, consolidaram direitos étnicos através da emergência das territorialidades específicas, tais como as intituladas terras de preto, terras de caboclo e terras de santo. Essa dinâmica de estabilização e de autonomia resultou por fortalecer uma identidade própria, articulando atividades agrícolas e extrativas, e por favorecer uma delimitação bastante sólida das territorialidades específicas de acordo com a forma de 49 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 desintegração de cada uma das fazendas, seja de algodão ou de cana-de-açúcar, seja de sesmeiros ou de ordens religiosas. São essas delimitações que vigem hoje, passados dois séculos. Isso, não obstante acentuados conflitos, em virtude sobretudo das medidas repressivas adotadas pelo governo provincial a partir de 1835, quando detém o governo da província um membro da "aristocracia alcantarense"(Viveiros, 1975:109) referido às fazendas da beira-campo, no Tubarão, Antônio Pedro da Costa Ferreira, Barão de Pindaré. Através da Lei nº 5, de 23 de abril de 1835, instituiu um corpo de polícia rural voltado para a vigilância do campo, "onde se açoitavam os escravos que fugiam do domínio de seus senhores, e os malfeitores que depredavam os gados"(Leal, 1873:254,255). Por intermédio da Lei nº 21, de 17 de junho de 1836, criou ademais o corpo de polícia da província. Os efeitos dessas medidas se fizeram sentir em Alcântara apenas episodicamente, em 1837-38, no caso dos quilombos de Itamatatiua, antiga fazenda da Ordem do Carmo. Com a guerra da Balaiada, entre 1839 e 1841, os efetivos militares foram concentrados nos Vales do Itapecuru e do Parnaíba e o aparato repressivo foi inteiramente redefinido na província do Maranhão. Após a guerra, objetivando reinstaurar a disciplina do trabalho nas fazendas, novas medidas foram instituídas pela legislação provincial. Quando da tentativa oficial, também malograda, de implantação de engenhos de açúcar no Maranhão e principalmente em Alcântara – que começou em 1847, no governo de outro membro da "aristocracia alcantarense" (Viveiros, 1975:109), o senador Joaquim Franco de Sá, genro do Barão de Pindaré –, foi promulgada uma lei específica para combater os quilombos: a Lei nº 236, de 20 de agosto de 1847, conforme se poderá observar adiante no tópico dedicado aos quilombos em Alcântara. As iniciativas subsequentes e episódicas, que sempre intentaram instituir o aforamento, só lograram êxito, imobilizando a força de trabalho, por curtos períodos de tempo sem conseguirem afetar profundamente a autonomia conquistada por escravos e ex-escravos nas terras das antigas sesmarias. A um malogro econômico sucederam outros, tal como a falência dos engenhos de açúcar, resultando numa nova campanha militar contra os quilombos. Foi encetada no início de 1878 pelo vice-presidente da província, Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú, também da nobreza alcantarense, proprietário do maior engenho da província, o Engenho Gerijó, e ex-secretário de governo do mencionado senador Franco de Sá. Embora estivesse debilitada a autoridade senhorial, pelos repetidos insucessos econômicos, foi empreendida uma ação militar ampla que levou à destruição do quilombo do Limoeiro, tornando-o uma presa de guerra para instalação das colônias agrícolas com famílias cearenses, que foram trazidas pelos vapores imperiais para o Maranhão em virtude da grande seca que afetou o Nordeste em 1877. Às ruínas das fazendas de algodão acrescentavam-se, portanto, aquelas dos engenhos. Abriu-se um novo capítulo de abandono das fazendas, de vendas de equipamentos e bens móveis, de doações de terras a escravos e de instituição do aforamento. Os senhores de engenho remanescentes haviam se tornado absenteístas, residindo fora de suas terras e mantendo com elas uma relação intermediada por prepostos, escolhidos entre as próprias famílias de escravos, principalmente entre os escravos domésticos. Essa ausência acabou se tornando permanente, como já ocorrera com os fazendeiros de algodão no início do século XIX, as benfeitorias se aluíram e não há registros de retornos efetivos ao controle das antigas fazendas, senão numa única situação4. 50 Alfredo Wagner Berno de Almeida Semelhante derrocada econômica, que desde 1850 já fazia de Alcântara uma cidade em abandono, propiciou condições para que se tornasse estável uma vasta rede social, com mais de duas centenas de povoados, que foram sendo erigidos sobre essas ruínas das fazendas, numa extensão em torno de 150.000 hectares, abrangendo, durante o período imperial, pelo menos três freguesias (São João de Cortes, Apóstolo São Matias e Santo Antonio e Almas)5 e criando um complexo sistema de trocas e de solidariedade, marcado por formas de ajuda mútua e reciprocidade positiva entre diferentes grupos familiares. Para definir esse sistema, os entrevistados usualmente definem sua forma de utilização dos recursos naturais como "em comum". A relação com o ecossistema, preservando cocais, juçarais, manguezais e terras agriculturáveis, disciplinando o uso de instrumentos de pesca e mantendo reservas de matas para extração de madeira (bacurijuba, paparaúba) para construções de casas, embarcações e benfeitorias, tornou-se gradativamente mais equilibrada, além de atentamente acompanhada por determinadas famílias e/ou pessoas, cuja autoridade para tanto era reconhecida no plano comunitário. A autonomia de decisão no que produzir, como e onde, lançando mão de que recursos naturais, aproxima tanto os denominados índios e pretos, quanto os chamados caboclos, fixando um padrão cultural apoiado num repertório de práticas correspondente ao que designam de roça. Essa designação polissêmica, mais que uma referência aos tratos culturais ou, num sentido restrito, ao plantio de mandioca e, ainda, a uma divisão sexual e etária do trabalho, expressa uma certa maneira de viver e de ser. Mais que um modelo de relação antrópica com recursos escassos, a denominada roça compreende um estilo de vida que vai desde a definição do lugar dos povoados, passando pela escolha dos terrenos agriculturáveis, e dos locais de coleta, de caça e de pesca, até os rituais de passagem que asseguram a coesão social em festas religiosas (tambor de crioula, procissões e demais cerimônias), em bailes ("radiolas de reggae"), em funerais e batizados. Essa designação expressa, ademais, uma representação particular do tempo, como pode ser visto no tópico sobre os ciclos produtivos, traduzida por intrincados calendários agrícolas e extrativos, e uma noção de espaço muito peculiar orientando o uso simultâneo, para cada unidade familiar, de diversas áreas de cultivo não necessariamente contíguas. A composição da unidade de trabalho para realização desses mencionados tratos culturais é absolutamente familiar e articulada por fora das exigências intrínsecas ao processo de produção. Ela é pré-definida no plano das relações de parentesco e de afinidade, refletindo a própria composição da família e suas interações mais diretas, consubstanciando a idéia do povoado como uma vigorosa rede social de serviços mútuos e recíprocos. Pode-se asseverar que a chamada roça trata-se de uma referência essencial que sedimenta as relações intrafamiliares e entre os diferentes grupos familiares, além de assegurar um caráter sistêmico à interligação entre os povoados. Ela consiste, além disso, num traço invariante e no símbolo exponencial da conquista de autonomia e, em decorrência, da identidade que lhe corresponde. Não há unidade familiar que não se estruture a partir das atividades essenciais a ela referidas, seja assegurando o autoconsumo ou obtendo, a partir da colocação da produção no mercado, a receita imprescindível para atender às necessidades básicas e de reprodução social. Essa reprodução evidencia que o fim econômico estaria além da produção de valores de uso, dependendo da inserção familiar e comunitária nos sistemas de troca no conjunto de comunidades semelhantes. Os agentes sociais avaliam capacidades pessoais e 51 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 se reconhecem uns aos outros a partir dessas atividades referidas direta ou indiretamente à chamada roça. Nesse sentido é que se pode asseverar que a etnicidade entra também em interação com uma certa maneira de produzir, de se relacionar com os recursos naturais, de agir segundo uma temporalidade própria, de delimitar grupos sociais interagindo com outros e estabelecendo os fundamentos de uma ação coletiva. Um dos resultados da persistência desses elementos de identidade étnica tem sido a certeza da viabilidade, já quase bi-centenária, dessa pequena agricultura autônoma, baseada num sistema de uso comum, numa área onde a grande exploração, além de falir, acarretou o rápido esgotamento do solo e o uso predatório dos recursos. Essas instituições sociais peculiares, que compõem o sistema de uso comum dos recursos6, ligando os grupos aos circuitos de mercados e rompendo com qualquer noção de isolamento, mostram-se informais e de certo modo invisíveis em termos jurídicos. A despeito de qualquer tipo de reconhecimento formal, consolidaram efetivamente diferentes domínios com seus respectivos planos organizativos de relações sociais, cada um deles agrupando inúmeros povoados, designados localmente, consoante o contexto, como terras de santo, terras da santa, terras de santíssimo, terras de santíssima, terras santistas, terras de caboclo e terras de preto, compreendendo as antigas terras de instituições pias e religiosas, as antigas sesmarias e posses centenárias. Por constituírem territorialidades específicas, suas fronteiras não correspondem exatamente à fixidez dos limites físicos das fazendas, ou seja, não se esgotam necessariamente na correspondência ao perímetro de imóveis rurais. Observa-se uma interpenetração entre elas com as denominadas terras de preto se atualizando e sobrepondo-se às terras de santo, do mesmo modo que as chamadas terras de caboclo se dispõem em face das terras de santíssimo. Enquanto territorialidades específicas, cujos planos organizativos se interseccionam de maneira articulada, elas convergem para a estruturação de um território étnico, distinguindo-se da noção estrita de terra, considerada como recurso básico fisicamente delimitado, conforme se pode constatar adiante no tópico que enfoca a interligação entre os povoados. Assim, pode-se afirmar que as denominações adotadas para nomear essas territorialidades específicas, mais que meros termos ou expressões, consistem em categorias classificatórias que apontam para as características intrínsecas e plurais da identidade étnica dos agentes sociais em questão. Eles se autodenominam e são denominados por aqueles com os quais interagem, consoante a situação específica, como pretos e/ou caboclos. Não se observam diferenças sensíveis entre as categorias reivindicadas por eles próprios e aquelas que lhes são atribuídas por outros. Pretos e caboclos consistiriam em categorias de pertencimento referidas a comunidades etnicamente distintas que foram aproximadas, por oposição aos denominados índios, pelas classificações estigmatizantes do período pombalino, e distinguiram-se posteriormente em oposições sucessivas, mostrando-se aproximáveis agora, numa situação dramática de conflito em que se confrontam com a implantação da base. Remetem, pois, antes de tudo, a "comunidades dinâmicas" que se organizam temporalmente de modo variável, assegurando a todo custo sua reprodução social em contraposição a antagonistas circunstancialmente mais poderosos. Esse fator de dinamismo explica a gama de possibilidades de interpenetração entre as diversas territorialidades específicas mencionadas, afastando as interpretações oficiosas de que bastam a si próprias e podem ser consideradas como "isolados negros" ou "isolados caboclos". 52 Alfredo Wagner Berno de Almeida Na medida em que esses agentes sociais se investem de identidades étnicas para categorizarem-se a si mesmos e às terras que historicamente ocupam, mobilizando-se coletivamente para fins de interação e manutenção dos recursos necessários para sua reprodução física e social, eles compõem grupos étnicos no sentido organizacional7, que transitam entre diferentes modalidades de domínio e de planos organizativos, construindo coletiva e socialmente o seu território. Área decretada e territorialidades específicas Durante quase dois séculos, esse sistema e as respectivas territorialidades específicas não conheceram maiores pressões de novos grupos interessados nas terras. As ocorrências de antagonismos e tensões sociais foram sempre localizadas e de curta duração. As iniciativas de colonização do governo estadual, em 1975-76, insistindo no desmembramento das territorialidades específicas consideradas como terras devolutas e disponíveis, e as tentativas de grilagem, em 1978-79, das terras de Santa Teresa foram episódicas e se esgotaram na própria circunstância. O cercamento de áreas localizadas nas terras da santa, nos confrontantes municipais de Alcântara e Bequimão, foi o estopim para intensas mobilizações, que provocaram a destruição pelos moradores dos povoados de vários quilômetros de cercas de arame farpado ilegalmente construídas. Cabe sublinhar aqui que jamais houve uma pressão constante e em bloco afetando com igual intensidade e concomitantemente as diversas territorialidades mencionadas e os respectivos povoados que as compõem. Isso, até que, em setembro de 1980, o governo do Maranhão procedeu à desapropriação por utilidade pública de 52.000 hectares, através do Decreto nº 7.320, objetivando a implantação de uma base de lançamento de foguetes no município de Alcântara8. A medida abrangeu quase 46% da superfície municipal, atingindo mais de 2.000 famílias distribuídas por mais de uma centena daqueles povoados já referidos. A partir daí, num curtíssimo período de tempo, foram intensificadas as formas de intervenção governamental na área e aceleradas as ações fundiárias, sem quaisquer estudos prévios relativos às particularidades da estrutura agrária ou à identificação étnica das famílias atingidas. Em 1982, foi firmado Protocolo de Cooperação entre o Ministério da Aeronáutica, o estado do Maranhão e o município de Alcântara, objetivando a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara. Na divisão de responsabilidades, coube ao estado do Maranhão o deslocamento das "populações da área" compreendida pelo decreto desapropriatório. Em suma, o resultado mais evidente é que uma situação conflitiva e tensões latentes e cotidianas persistem na região afetada, após 22 anos do decreto desapropriatório. Para sumariar esse período mais recente, no que tange principalmente a fatos pertinentes à relação entre estrutura agrária e o processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombo, importa sublinhar que, em junho de 1983, sob a coordenação do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara, as famílias atingidas reivindicaram do Ministério da Aeronáutica, responsável pela implantação da base, através de abaixo-assinado, o seguinte: "terra boa e suficiente, acesso à praia, permanecerem juntas, água suficiente, lugar para pasto de animais, não dependência de agrovilas, casa própria, títulos definitivos de terra, escola primária completa, posto de saúde com 53 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 representante do povoado, casa de forno, luz elétrica, mudas na quantidade suficiente para substituir as fruteiras, igreja, cemitério, tribuna, campo de futebol e assistência técnica". No mês seguinte, foi assinado um Acordo em que as autoridades militares9 se comprometeram a observar tais reivindicações. Segundo os entrevistados, o Acordo não foi cumprido, instaurando um clima de desconfiança. A região se tornou, a partir daí, uma zona crítica de tensão social e conflito, constituindo-se em objeto de ação da Coordenadoria de Conflitos Agrários do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, Mirad-Incra, em março de 1985, quando as famílias afetadas pela base bloquearam a rodovia que dá acesso ao CLA, impedindo o acesso de ministros de Estado – do Estado Maior das Forças Armadas, EMFA, da Aeronáutica e do Mirad – que visitavam a área10. Em outubro de 1985, a referida Coordenadoria realizou um primeiro levantamento, focalizando uma caracterização sociológica, em que chamava a atenção para as chamadas terras de preto, para a modalidade de uso comum dos recursos e para os problemas agrários da região. Os resultados levados ao ministro do Mirad e comunicados aos demais ministérios pertinentes, através de uma seqüência de reuniões, não foram acatados pelo EMFA e pelo Ministério da Aeronáutica. As instituições militares responsáveis diretas pela implantação do centro de lançamento de foguetes chamaram a si a responsabilidade pelas medidas de reassentamento das famílias afetadas. Ao desprezarem as vicissitudes do processo centenário de territorialização, consideraram estar lidando com um campesinato parcelar e suas glebas individualizadas. Induzidas ao erro, as medidas oficiais subseqüentes foram adotadas nesse sentido. Em 18 de abril de 1986, o Decreto nº 72.571, da Presidência da República, reduziu o módulo rural de Alcântara de 35 para 15 hectares apenas na área relativa à base, permanecendo o restante do município com a fração mínima de parcelamento já instituída. Em 1987, foram compulsoriamente deslocadas de 23 povoados11 centenários 312 famílias, e agrupadas em sete agrovilas, agravando a crise com indenizações não pagas após dez anos, direitos de posse desrespeitados e criação de agrovilas com lotes para cultivo de dimensão inferior aos critérios técnicos definidores dos módulos rurais para a região. Quase onze anos depois do primeiro decreto, em 08 de agosto de 1991, um novo decreto da Presidência da República ampliou a área da base, passando-a para 62.000 hectares. A área decretada, reforçada pelos deslocamentos compulsórios e pela divisão de lotes das agrovilas, instaura uma certa dissociação, que se manifesta através da colisão entre as medidas que tornam a terra individualizada e transferível versus o sistema de uso comum dos recursos que suporta as territorialidades específicas, com seus princípios de indivisibilidade das terras e da manutenção de limites fixos e intransferíveis. A separação imposta pelos deslocamentos menospreza a persistência histórica das fronteiras que mantêm as territorialidades, refletindo sobre a posição de cada um dos diferentes agentes sociais na organização social das denominadas terras de preto, das terras de santo e suas variações, das terras de caboclo e das terras da pobreza. A área decretada, ao separar o que sustenta a unidade dos diferentes elementos identitários e ao contrapor-se à lógica do processo produtivo, quebra com os povoados, enquanto organização social apoiada em relações de reciprocidade, e com suas hierarquias, enquanto territórios de parentesco, terminando por instituir outros critérios de autoridade local e por colidir com os princípios formadores do território étnico. Das formas de resistência a essa 54 Alfredo Wagner Berno de Almeida intervenção é que foram emergindo critérios político-organizativos e uma percepção aguçada de direitos étnicos concernentes às comunidades remanescentes de quilombo. No plano da economia, ou mais exatamente da agricultura familiar, os impactos se fizeram sentir com o declínio abrupto da produção de farinha, com o rápido esgotamento dos solos nos lotes delimitados para as famílias deslocadas para as agrovilas e com uma intensa migração de famílias para a sede municipal e para a capital São Luís. Cotejando-se os dados estatísticos dos Censos Agropecuários de 1985 e de 1996, constatase que nesses onze anos a lavoura temporária no município de Alcântara sofreu uma redução de 45% da área destinada ao cultivo de seus dois principais produtos, o arroz e a mandioca. Consoante o estudo elaborado para este laudo pericial pelo economista Wilson de Barros Bello Filho: "Este fato revela-se particularmente relevante quando se constata, tomando por referência o valor da produção registrado no Censo Agropecuário de 1996, que estes dois produtos são responsáveis por cerca de 80% da lavoura temporária do Município, o que corresponde a mais de 40% de toda a lavoura alcantarense (lavoura temporária mais lavoura permanente)." (Barros Bello, 2002:01) No caso da mandioca, o Censo de 1996 registra uma produção de apenas 4.907 toneladas, contra 8.139 toneladas em 1985, o que corresponde a uma queda de 40% na produção. Ainda com Barros Bello: "A redução e estagnação da produção de mandioca em Alcântara revelam-se particularmente preocupantes quando, além da significância do produto na lavoura do Município, se considera também que, segundo a Contagem da População de 1996, 74% dos seus habitantes (14.050 pessoas) vivem na zona rural."(Barros Bello, 2002:01) Em 1997, sem que fosse realizada qualquer avaliação dos resultados de seu "Plano de Reassentamento" e a despeito de a base não ter sequer licenciamento ambiental, foram anunciados pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, Infraero12, novos deslocamentos de famílias13. Nesse mesmo ano, foi aprovado pela Câmara Municipal e sancionado pelo prefeito o "Plano de Preservação da Cidade de Alcântara", através da Lei nº 224, de 10 de outubro de 1997, com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, definindo usos e ocupações do perímetro urbano. A delimitação de zonas de "preservação rigorosa" defronta-se com a expansão da ocupação provocada pelo crescimento da migração dos povoados para a sede do município, gerando tensões entre os ocupantes e o Iphan. Ainda nesse ano, a Fundação Cultural Palmares, atendendo ao pleito das famílias atingidas, autorizara os levantamentos preliminares para identificação das comunidades remanescentes de quilombo, consoante o Art. 68 do ADCT. Em 1998, o Mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão divulgou os primeiros resultados dos mencionados levantamentos que assinalaram 26 povoados compreendidos por essas comunidades e alertavam para dezenas de outros povoados em situação similar. A este tempo, já havia explícita recusa das famílias atingidas em aceitar novos deslocamentos. 55 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Entre 11 e 14 de maio de 1999, foram realizadas na Câmara Municipal de Alcântara discussões públicas com ampla participação de autoridades, associações voluntárias da sociedade civil e atingidos, alertando para os riscos dos deslocamentos compulsórios e para seus impactos sociais14. Esse evento, denominado "Seminário Alcântara: A Base Espacial e os Impasses Sociais", foi uma iniciativa do STTR de facultar aos representantes dos povoados acessos aos direitos elementares sobre suas terras, sobre suas práticas de uso dos recursos e sobre suas formas de organização social contempladas inclusive pelo Art. 68 do ADCT. É apontado em inúmeras entrevistas dos mediadores como um divisor de águas, que marcou a retomada da mobilização dos agentes sociais afetados não mais como trabalhadores rurais, mas também como remanescentes de quilombo que ocupam efetivamente as terras correspondentes às territorialidades específicas. Os elementos de identidade étnica até então mantidos em estado latente, sob certa invisibilidade social e desprezados pela ação fundiária oficial, tornaram-se públicos, denotando que os remanescentes de quilombos manifestavam-se segundo uma existência coletiva. A condução formal das mobilizações pelo STTR não foi vista como contradizendo a afirmação pública e coletiva das comunidades remanescentes de quilombos. Nos meandros da ação sindical, estaria implícita uma distinção entre identidade e ocupação, que não é vivida como contraditória ou como incongruência, uma vez que ambas são referidas praticamente às mesmas pessoas, sendo a primeira concernente aos quilombolas e a outra aos trabalhadores rurais. Um dos resultados mais imediatos da emergência dessa nova forma de mobilização foi a recusa conjunta dos povoados de receberem visitas dos técnicos do CLA para operacionalizar medidas de deslocamento. A equipe técnica encarregada dos trabalhos de "transferência e assentamento", que realizou visitas aos povoados no decorrer de 1998, era composta de dois veterinários, uma pedagoga e dois técnicos agrícolas, ou seja, critérios de competência e saber considerados insuficientes e inadequados pelas operações diretivas de reassentamento elaboradas por agências multilaterais e universalmente acatadas. Em decorrência, os povoados de Mamuna, Brito, Itapera, Baracatatiua e Caiuaua não aceitaram os termos da propalada "transferência" e os povoados de Itapuaua, Murari, Esperança e Cajitiua recusaram que os recursos naturais sob seu controle, considerados escassos para o atual contingente demográfico, servissem de área de destino ou de assentamento para as centenas de famílias com deslocamento compulsório previsto. No final desse mesmo maio, a empresa Kohän-Saagoyen Consultoria & Sistemas apresentou, por solicitação da Infraero, um Relatório de Impacto Ambiental do Centro de Lançamento de Alcântara. Várias entidades e associações voluntárias da sociedade civil questionaram os resultados, porquanto a área era tratada praticamente como vazio demográfico15. Em 07 de junho de 1999, a Portaria nº 007 do Ministério Público Federal instaurou Inquérito Civil Público para o fim de apurar possíveis irregularidades verificadas na implantação do CLA. Ao considerar que as ações de remanejamento afetam "as comunidades negras rurais, remanescentes de quilombo", essa Portaria preconiza providências no sentido de "verificar a existência de estudos relativos às comunidades que se encontram nas áreas destinadas ao CLA, máxime no tocante ao componente étnico". Foram agendadas para fim de julho as primeiras audiências públicas a serem realizadas em Alcântara e São Luís. O Ministério Público Estadual, o Iphan e o MPP56 Alfredo Wagner Berno de Almeida UFMA assinalaram, entretanto, inconsistências no EIA/Rima, sobretudo aquelas relativas às relações antrópicas e à recusa em incorporar os fatores étnicos. O Ibama agendou, então, para 18 e 19 de novembro, as novas datas para as audiências públicas. No dia 10 de novembro, no entanto, foi ajuizada Ação Civil Pública pela Procuradoria Geral da República, atendendo ao pleito de entidades como o STTR de Alcântara e a Federação dos Trabalhadores na Agriculutra no Estado do Maranhão, Fetaema, objetivando suspender o processo de licenciamento ambiental do projeto do CLA. Em seguida, uma liminar expedida por Juiz Federal da Seção Judiciária do Maranhão suspendeu as audiências públicas já agendadas. Em dezembro, uma reunião da Infraero com os representantes dos povoados dos atingidos pelo CLA concluiu pela realização de novas pesquisas para caracterizar as comunidades remanescentes de quilombos16. Os antagonismos em pauta foram ganhando novos contornos e o grau de contrastividade étnica parece estar aumentando com os desdobramentos do conflito. O processo de territorialização, mantido sob uma invisibilidade jurídico-formal, tornou-se público em polêmicas que se sucedem, ressaltando os elementos de identidade étnica em jogo e envolvendo a aplicação do Art. 68 do ADCT. A identidade de remanescentes de quilombos passou a caracterizar a interlocução com os organismos governamentais, demonstrando outras dimensões assumidas pelo conflito. Em 16 de agosto de 2001, tendo o Centro de Justiça Global como peticionário principal, foi encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em Washington, D.C., EUA, denúncia de "desestruturação sociocultural e violação ao direito de propriedade e ao direito à terra" de comunidades remanescentes de quilombos, atribuindo responsabilidades aos Estados brasileiro e norte-americano signatários do Acordo de Salvaguarda Tecnológica17, que prevê o uso do CLA, firmado entre estes dois países em 18 de abril de 2000 e ora em tramitação no Congresso Nacional para fins de apreciação e posterior votação em plenário. Os peticionários, referidos às comunidades de Samucangaua, Iririzal, Só Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha, entre outras, se apresentam nessa petição como referidos a "um mesmo território étnico". Nessa mesma data, em que apresentaram denúncia contra o Estado brasileiro, encaminharam também outra petição baseada nos mesmos fatos contra o governo dos Estados Unidos da América18. Ao adensamento dos conflitos sociais em Alcântara, acrescente-se uma intensificação das intervenções na estrutura fundiária, provocando em uma década transformações que têm afetado radicalmente a estabilidade que aquelas mencionadas territorialidades específicas lograram alcançar em quase dois séculos de existência. Num breve retrospecto dessas ações fundiárias oficiais da última década, podese adiantar que quase 66% do município de Alcântara foram alcançados por elas. Além da ação desapropriatória por utilidade pública, de 1991, compreendendo 62.000 hectares, registram-se duas ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária: a primeira, decretada em 10 de junho de 1996, incidindo sobre o imóvel denominado Portugal e abrangendo 2.025 hectares; e a outra, decretada em 20 de janeiro de 1994, compreendendo os imóveis denominados Bituba, Chapada, São Francisco, Santa Maria e Perimirim, com área de 4.111,6080 hectares 19. O Incra procedeu a levantamentos numa terceira área correspondente ao que denomina de Gleba Santo Inácio, com 1.534 hectares, mas o processo deixou de tramitar e teria sido arquivado. 57 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Vale acrescentar ainda as duas áreas sob atuação direta do Iterma, desde 1996, para fins de regularização enquanto comunidades remanescentes de quilombos: uma, na região de Itamatatiua, abarcando pelo menos 5.191 hectares, e a segunda em São Raimundo, correspondente a 547,42 hectares20. Cabe mencionar, finalmente, as ações discriminatórias em curso. Considerando que a superfície de Alcântara equivale a aproximadamente 1.114 km2, tem-se o percentual acima mencionado. A intensificação de sucessivas intervenções na estrutura fundiária, num breve período de tempo, faz com que os fatores étnicos, elididos historicamente nas intervenções governamentais, comecem a ser ressaltados na imediaticidade das tensões e dos conflitos diante da ação do Estado. A memória de uma situação comum, ligada a territorialidades bem delimitadas e a certas tradições e modos de vida simbolizados pela alusão freqüente às chamadas roças, surge reatualizada nos atos afirmativos de elementos identitários que persistem por longo tempo na consciência coletiva. A etnicidade se expressa também pelo conjunto de estratégias voltadas para a manutenção do território, incluindo-se a defesa do estoque de recursos naturais imprescindíveis para a reprodução física e social das comunidades remanescentes de quilombos. Expressa-se ainda pela recusa explícita dos deslocamentos compulsórios, que prenunciam uma desestruturação das comunidades e desse sistema de uso comum secularmente engendrado, porquanto referidos a recursos escassos que uma vez afetados inviabilizam a mencionada reprodução física e social. A perícia antropológica ora apresentada foi produzida no bojo desse conflito manifesto e deriva de providências decorrentes das medidas adotadas pela Procuradoria Geral da República a partir da Portaria nº 007, focalizando o processo de territorialização que consubstancia a citada mobilização étnica e suas vicissitudes. 58 Muralhas e paredões As ruínas das casas-grandes e dos engenhos como fator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos "Estão os paredões mesmo lá. Quando os brancos foram embora deixaram os paredões. Não puderam levar. Eu acho que outra coisa não tem mais e os pretos velhos ficaram trabalhando pelas terras, espalhados pelos matos." (L.A. 20/04/2002-ENT. 21-referência a Camarajó) O que se observa de mais peculiar e aparentemente mais paradoxal no processo de territorialização ora examinado é que a análise explicativa da afirmação das características das comunidades remanescentes de quilombo passa pelo seu contrário, através da arqueologia das fazendas de algodão e dos engenhos. Tomada a M. Foucault, essa modalidade de descrição arqueológica (Foucault, 1972:167) reinterpreta os métodos usuais de investigação científica, deslocando a análise para o que ficou à margem da história político-administrativa, para o que foi considerado residual e para o que contrariou disposições jurídico-formais. Para tanto, relativiza o peso das fontes documentais e arquivísticas oficiais e recusa uma interpretação historicista que se desenvolva linearmente do passado para o presente, explicando-o. Refuta, nesse sentido, a monotonia da historiografia oficial e os esquemas interpretativos dos comentadores regionais, que consagraram a opulência das casasgrandes e dos engenhos de Alcântara, perpetuando-a, através da monumentalidade das ruínas, para além das contingências de sua existência efetiva. Consoante essa descrição arqueológica, as ruínas dessas fazendas podem ser lidas sociologicamente como resultado da contradição entre quilombo – enquanto processo de trabalho e de moradia absolutamente autônomo, livre de qualquer submissão e sustentado fundamentalmente por unidades de trabalho familiar que cultivam principalmente gêneros alimentícios – e a economia escravista de agricultura tropical, com grandes estabelecimentos apoiados no trabalho escravo, no monopólio da terra e na monocultura. Nos seus desdobramentos, essa abordagem privilegia uma análise crítica das representações, discursos e práticas produzidas por membros das comunidades remanescentes de quilombo, bem como possibilita uma reinterpretação de seu campo de relações simbólicas. Está-se diante de uma aparente inversão, que focaliza empiricamente as ruínas das fazendas como concorrendo de maneira positiva para a coesão social dessas mencionadas comunidades, cuja trajetória histórica consiste justamente na negação da economia escravista, seu oposto simétrico. Diferentemente de outras regiões, a noção de monumento1 aqui é inteiramente revista e não se atém Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 ao que seriam as ruínas de possíveis edificações relativas aos próprios quilombos, porquanto são outras as ruínas que estão em jogo. Isso certamente consiste numa especificidade da situação de Alcântara, na qual a noção de monumento escapa das auto-evidências, que envolvem o patrimônio material, e, desdizendo-as de maneira radical, estabelece uma conexão algo invertida entre as ruínas dos grandes estabelecimentos agrícolas e a consolidação das comunidades remanescentes de quilombo. A ênfase nessa conexão ultrapassa os procedimentos usuais de perícias que giram em torno de "provas materiais" e "evidências", direcionando as observações para os aspectos relacionais. Ultrapassa também a forma de colocação dos problemas pela abordagem historicista, para a qual pareceria um absurdo considerar "ruínas de casas-grandes" como elemento do processo de consolidação das comunidades remanescentes de quilombo, já que uma suposta "alteração da seqüência dos fatos objetivos" conspurcaria o sentido histórico-monumental das ruínas. Ora, na situação examinada, está-se diante de uma contradição mais aparente que real. Assim, a relação privilegiada nesta perícia, através da descrição arqueológica, recoloca os termos do problema e parte do tempo presente em que tais comunidades fixam, inclusive, estratégias para preservar o que aparentemente seria o resíduo do patrimônio material edificado originalmente por seus antagonistas históricos. Em outras palavras, pode-se asseverar que um dos componentes da gênese do processo social de construção da identidade quilombola em Alcântara estaria nas ruínas das casas-grandes e dos engenhos. Essas ruínas das benfeitorias das fazendas, bem como as terras e o próprio nome das famílias dos antigos senhores ou da "aristocracia rural", como define Lopes (1957:18), ou ainda da "aristocracia alcantarense"2, como classificaria Viveiros (1975:109), permanecem hoje sob controle absoluto de descendentes de famílias de escravos. Araújo, Araújo Cerveira, Sá, Ribeiro, Cerveira, Coelho, Viegas, Morais, Ferreira, Diniz, Serejo e Silva, antes de designarem a nobreza3 e os sesmeiros, tal como consagrados na documentação do período colonial, designam hoje as famílias dos povoados de descendentes de escravos que se consolidaram com a derrocada econômica e a desagregação dos diferentes estabelecimentos rurais4 (algodão, cana-de-açúcar, gado). A onomástica dos moradores dos povoados revela que os antigos senhores de escravos tiveram seus nomes de família arrebatados pelos seus ex-escravos. Os patronímios aristocráticos, tal como as terras e as ruínas, foram conquistados pelos moradores dos povoados nessa situação conflitiva de desagregação das fazendas, em que se afirmaram antes como unidades de mobilização do que como unidades afetivas. Nesses agrupamentos, estruturaram-se relações de parentesco, de afinidade, de amizade e de vizinhança, em torno da distribuição e do uso comum dos recursos, resultando em vínculos solidários coextensivos à formação do povoado, enquanto uma comunidade potencialmente política que transcende, em certa medida, o grupo local de descendência de três ou quatro gerações. De igual modo, as antigas denominações das fazendas, registradas inclusive nas expedições e solicitações de confirmação de datas de sesmarias, nos registros paroquiais, após a Lei de Terras no 601, de 18 de setembro de 1850, e na documentação cartorial, correspondem, no momento atual, tão-somente àqueles povoados. As comunidades remanescentes de quilombo aí constituídas compreendem territórios de parentesco5, intrínsecamente articulados, que foram erigidos nessa dinâmica de múltiplas conquistas: das terras, dos nomes de família, das denominações das fazendas e dos 60 Alfredo Wagner Berno de Almeida símbolos ruiniformes do que outrora estava sob o poder dos senhores de escravos, de plantações e de engenhos. Os pertencimentos familiares conquistados e a construção de relações solidárias em terras de livre acesso funcionaram como fatores de consolidação do ideal de autonomia subjacente à identidade quilombola. As terras das antigas fazendas, suas denominações, os nomes de família dos antigos senhores de escravos e as ruínas convergem, cada um a seu modo, para o processo de territorialização étnica. Os quilombos e a luta simbólica pelas ruínas A dicotomização entre a civilização e os selvagens ou entre os denominados brancos e os chamados negros6, considerando indissociável a relação entre raça e cultura, tão cara ao pensamento colonialista e justificada através das ideologias do racismo e do progresso material das metrópoles, foi deslocada nesse processo e perdeu sua força explicativa no tempo. A tendência continuamente expansionista, inerente à idéia de civilização dos colonizadores – manifesta principalmente pelas inovações tecnológicas em engenhos (hidráulicos, a vapor), nas máquinas de descaroçamento de algodão e nas máquinas de descascar o arroz – foi abrupta e duramente interrompida em Alcântara. As técnicas de produção em larga escala, que inovavam os empreendimentos monocultores, e que vinham acompanhadas do conhecimento botânico das novas espécies e da capacidade de transferir sementes7, não foram aplicadas em toda sua extensão e profundidade. A descontinuidade, em fins do século XVIII e início do XIX, atribuída à extinção da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão e à flutuação dos preços do algodão, acarretou a derrocada dos grandes estabelecimentos agrários e criou condições objetivas para a emergência de uma economia camponesa. A expansão dessa economia de base familiar foi interpretada como "decadência" e "regressão" pelos comentadores regionais, já que invertia a tendência expansionista dominante. O evolucionismo implícito nessa interpretação enfoca as ruínas de Alcântara como símbolos do que chamam de "idade de ouro do Maranhão" (Almeida, 1983:61-70). Assim, de acordo com a explicação evolucionista, enquanto a ideologia do progresso assinalava os primeiros passos em direção a uma economia de transição para o trabalho assalariado, em Alcântara teria ocorrido uma "regressão". A emergência das territorialidades específicas antes citadas com a consolidação das comunidades remanescentes de quilombo seria vista, desse prisma, como produto de uma involução. As próprias narrativas míticas dos entrevistados, no decorrer dos trabalhos de perícia, invertem, entretanto, os termos daquela dicotomização ao acionarem, de maneira positiva, como fator de legitimidade de seu modo de viver e produzir, essas mesmas ruínas dos engenhos e casas-grandes e os demais destroços das fazendas abandonadas. Trata-se de uma disputa pelos elementos simbólicos, que quebra o corte simplificador da coleta de vestígios da cultura material. O poder de se apropriar das vantagens simbólicas associadas à posse das ruínas legitima o oposto simétrico das grandes plantações monocultoras baseadas no trabalho escravo, isto é, as comunidades remanescentes de quilombos, cuja forma de utilização da terra baseada em unidades familiares autônomas, livres e praticando um sistema de uso comum dos recursos naturais, passa a articular os diversos povoados. Antes de serem um vestígio do passado ou uma forma de retorno a uma economia natural, tais 61 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 características passam a representar no presente uma perspectiva de futuro com liberdade de decidir não apenas sobre o processo produtivo, mas também sobre seu destino. A posse das ruínas, pelos remanescentes quilombolas, torna-as um marco distintivo da autonomia de seus povoados, porque representa a evidência de que as fazendas não têm mais "condições de possibilidade" (Bourdieu, 1992) de efetivamente existirem8, ao mesmo tempo que comprova a rede de relações dos quilombolas que aí decidiram ficar. A forma esqueletal do que foram as edificações elementares das fazendas, publicamente exposta e constatável por uma arqueologia de superfície, sem qualquer necessidade de escavação, concorre para atestar isso. Lado a lado com a vida cotidiana dos povoados, essas ossaturas das fazendas certificam o longo tempo de existência deles. A datação das ruínas aqui equivale ao reconhecimento da "idade" das comunidades remanescentes de quilombo e consiste no correspondente ideal de sua certidão de nascimento. Torna-se quase impossível distinguí-los temporalmente. Nas próprias narrativas dos entrevistados, a referência mais recuada concerne ao tempo em que, segundo eles, "os brancos foram embora". A identidade quilombola se afirma nesse processo de negação do seu antagonista histórico e as ruínas tornam-se auto-explicativas em face das fazendas que não mais existem no município de Alcântara. Os entrevistados sublinham, em repetidos depoimentos, que os "brancos foram embora" e descrevem essa partida sem qualquer eufemização dos efeitos de uma fuga. Com a deserção, entretanto, os antigos senhores perderam, de modo efetivo, mas não simbolicamente, o monopólio da identidade regional, que foi cristalizado pelos historiadores consagrados e perdura nos seus compêndios. Certamente que esse monopólio dificulta o advento de outras identidades concorrentes, porque as mantém sob um tipo de invisibilidade social, característica de sociedades escravistas, e consiste num obstáculo ao pronto reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo. Os comentadores regionais focalizam tão-somente as ruínas, não se detendo naqueles agentes sociais e seus grupos familiares que há pelo menos um século e meio constituíram povoados no seu entorno e que delas não podem mais ser dissociados. Reconhecendo, implicitamente, que a "aristocracia rural" se foi das fazendas, os comentadores resultam por desumanizar as ruínas, como se pessoa alguma ali tivesse ficado. Redundante dizer que o fundamento dessa interpretação reproduz o princípio de que o escravo considerado como "coisa" deve, como tal, estar sob o domínio de alguém, sem direito a uma existência em separado. A invisibilidade, urdida nos fundamentos racistas dessa interpretação, nega a possibilidade de existência, seja do indivíduo, seja do grupo; como se aqueles que se autodefinem como pretos ainda não estivessem no uso de sua liberdade plena, a despeito de ela já estar assegurada em termos jurídico-formais desde o final do século XIX. Prepondera, sob todos os aspectos, a ideologia da tutela. O fato de esta liberdade já estar reconhecida pelo Estado e gerar direitos parece não ter sido incorporado pela historiografia oficiosa regional, que dobra a cerviz ao peso de uma tradição aristocrática e de cunho escravista. Esse esquema interpretativo se insinua nos meandros de uma luta simbólica de todo modo constantemente repetida e de difícil superação. Entrementes, cabe considerar, e isto é o que se constata com o trabalho de campo pericial, que as ruínas permanecem socialmente reapropriadas, e de maneira efetiva pelas comunidades remanescentes de quilombo. Constituem um símbolo da ancianidade do seu ideal de autonomia, e passam a figurar, juntamente com outros elementos identitários, 62 Alfredo Wagner Berno de Almeida alusivos às relações antrópicas, às transações comerciais e simbólicas com outros grupos sociais e às mobilizações político-organizativas como meios de garantia da persistência das fronteiras étnicas, que consolidaram e fazem vigir as comunidades remanescentes de quilombo em Alcântara. O mapeamento das ruínas Os resultados do malogro da economia escravista de agricultura tropical evidenciam-se, pois, na paisagem rural de Alcântara onde se agigantam ruínas velhas em demasia, escalavradas pela ação do tempo, e não se encontra uma sede sequer das antigas fazendas de algodão, nem das casas de vivenda assobradadas dos estabelecimentos das ordens religiosas, nem tampouco qualquer casa-grande restaurada que seja dos engenhos de açúcar. Das antigas sedes de fazendas e das soberbas casas de engenho restam escombros, escavações ruiniformes e pedras lavradas com vegetação revestindo quase tudo onde outrora se assentavam os alicerces. Parafraseando Gilberto Freyre, no prefácio à primeira edição de Casa-Grande & Senzala, com relação a casas-grandes do Nordeste, pode-se asseverar que também em Alcântara casas enormes edificadas para atravessar séculos começaram a esfarelar-se de podres por abandono e todo o fausto e toda a glória, traduzidos pela ostentação de uma arquitetura arrogante e sólida, virou monturo (Freyre, 1992:vii). Tais ruínas recebem a designação local atribuída às casas abandonadas e em destroços, acompanhada pela categoria que designa os "senhores", qual seja: tapera de branco. A expressão, no sistema de representação dos entrevistados, pode ser traduzida literalmente como: vestígio de uma dominação que já acabou e que foi transformado em símbolo legitimador dos povoados e das terras que lhes são correspondentes9. Dos equipamentos das engrenagens dos engenhos restam fragmentos de tachas de ferro fundido, de moendas, de caldeiras, de rodas hidráulicas e de tanques para depósito. Ferros torcidos, cilindros quebrados, elos de correntes, bocas de caldeiras avariadas misturam-se a cacos de cerâmica e de louças dispersos pela superfície, junto a muros de pedra em desmoronamento. Entrelaçados pela vegetação densa e pelos cipós rasteiros, jazem colunas de pedras das soleiras e pedregulhos dos alicerces. Esses vestígios das engrenagens dos engenhos e do casario assobradado recebem a denominação genérica de "ferros". Tudo mal ajustado ao avanço da natureza, aluindo-se. Para ilustrar de maneira precisa a dispersão desses escombros e sua distribuição pelo município de Alcântara, procedi, no decorrer do trabalho de campo, ao seu mapeamento. Quando visitava os povoados, os moradores sempre me instavam a caminhar até os escombros ruiniformes, que são denominados genericamente de muralhas e paredões. Incentivavam-me também a percorrer as linhas delineadas pelas chamadas pedras de rumo, mostrando-me as letras gravadas na sua face superior, como se estivessem me apresentando a territórios específicos de delimitação indiscutível. De fato, elas balizam extensões correspondentes às antigas fazendas e estão a pelo menos mais de século e meio controladas efetivamente por um ou mais povoados de descendentes de escravos. Em virtude disso é que a memória de sua localização exata é atributo, hoje, dos membros das comunidades remanescentes de quilombo, não obstante não terem necessariamente em mãos a 63 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 documentação cartorial que delineava confrontantes e lindeiros. Eles, e somente eles, são capazes de distinguir as pedras e recitá-las de cor, na seqüência devida, tecendo as relações com o mundo circundante. Considerando os instrumentos críticos de observação etnográfica, pode-se aduzir que esse tipo de conhecimento, antes que geográfico ou que uma memória da "terra do outro", expressa um sentido de pertencimento, isto é, de narrar uma delimitação física que hoje é coextensiva à sua maneira de existir socialmente. Quanto a isso, a antropologia reflexiva permite asseverar que os limites empíricos das comunidades podem ser isolados em sua descrição, representando traços distintivos da identidade e da regra de unidade do grupo ao definí-lo de fora para dentro, isto é, a partir de suas divisões (Bourdieu, 1989: 113) e das relações nas fronteiras. Em decorrência da aplicação desse preceito teórico, a partir das visitas às ruínas, com as anotações respectivas, e com as informações obtidas em reuniões e assembléias ocorridas nos povoados, durante o trabalho de campo pericial, montei dois quadros demonstrativos. Um deles arrolando os povoados onde as ruínas referem-se principalmente às fazendas de algodão e às fazendas que possuíam moendas, seja de ferro, seja de madeira. Constata-se uma vasta rede de povoados referidos a tais ruínas, abrangendo tanto o noroeste do município, com Itapuaua, Esperança e adjacências, passando pelo nordeste, como Mato Grosso e suas pressões constantes sobre os povoados das chamadas terras da pobreza, quais sejam Canelatiua, Retiro, Bom Viver e UruMirim, até alcançar Timbotuba (Timbotiua) mais no sentido centro-sul do município, no coração da área privilegiada em fins da década de 1840-50 para a implantação de engenhos. Incluí nesta listagem, dentre as denominadas taperas de branco, uma de datação mais recente, a de Janã, que foi também utilizada como entreposto de compra de amêndoas de babaçu e como local que centralizava a cobrança de aforamentos no breve período em que ocorreu uma parcial retomada de terras encetada por um comerciante de Alcântara e de Bequimão, o Sr. Antonino da Silva Guimarães10, sucedido por seu genro Marcial Ramalho Marques. Notas ao Quadro da página 65: (1) Para um aprofundamento, consulte-se: Linhares, L.F. do R. Terra de Preto, Terra de Santíssima: da desagregação dos engenhos à formação do campesinato e suas novas frentes de luta. Dissertação (Mestrado) - MPP-UFMA, São Luís, 1999. p 40-42. (2) Para maiores informações, consulte-se: Cantanhede, A. Ladeira, Iririzal e Samucangaua: relatório de identificação. Cadernos de Prática de Pesquisa. São Luís, MPP-UFMA, 1998. p. 15. (3) Para outros esclarecimentos, consulte-se: Carvalho, S. M. O povoado Ladeira:uma situação de terra de preto. São Luís, UFMA-GERU, 1998. p. 14-46. (4) Expressão também registrada comumente no Jornal da Lavoura, que circulou em São Luís (MA) nos anos de 1875 e 1876, para se referir aos estabelecimentos também chamados “engenhos de açúcar”. 64 Alfredo Wagner Berno de Almeida Povoados onde foram assinaladas ruínas de "casarões" e/ou moendas Povoados Denominações locais das ruínas Especificações Cujupe “paredões de pedra” poço, “sumidouro” Relato de moradores de Arenhengaua, quando da reunião em que foram discutidos os trabalhos relativos à perícia. Engenho “tapera de branco” “peças de ferro”, “cilindros de ferro das moendas” Relato de moradores em reunião realizada em Peroba de Cima e em Ladeira. Esperança “tapera de branco” “paredão” tanque, “sumidouro” mangueiral. Relato de moradores de Itapuaua, quando mencionaram os chamados “caminhos de escravos” e as “tocas”. Flórida “apera de branco” “sítio velho” “enormes pedras delineam o que seria o alicerce” (1) “pedras de rumo” Relato de moradores de Flórida que participaram de reunião em Peroba de Cima no início dos trabalhos no âmbito da perícia. Iririzal “tapera de branco” Alicerces, mangueiral, “restos de paredes de pedras existiam até alguns anos atrás” (2) Relato de moradores de Ladeira, que participaram de reunião em que foram discutidos os trabalhos relativos à perícia. Janã “casa do branco” “antigo comércio” “a casa acabou e foi feita uma casinha em cima da tapera" sempre apontada como lugar onde morava Marcial Marques Ramalho, genro do grande proprietário Antonio Guimarães. Entre Janã e Rio Grande há pedra de rumo. Relato de moradores de Peroba de Cima, Itapuaua, Ladeira e Vai com Deus. Ladeira “tapera de branco” “cemitério velho” Mangueiral (3) Relato dos moradores de Ladeira em reunião realizada em abril de 2002. “cacos de pratos, pedaços de caldeirões de ferro, poço” Relato de moradores de Mato Grosso e de Canelatiua em reunião realizada no decorrer dos trabalhos de perícia, no pequeno próprio de Canelatiua. Mato Grosso “paredões” Murari “tapera de branco” “sítio velho” - Tajurará “sítio velho” Alicerce Timbotuba “casa de engenho” (4) - Timbu “paredões”, “muralhas” As ruínas desmoronaram perto do lugar onde os moradores de “Só Assim” faziam seus cultivos. Quem fala sobre as ruínas e quando Relato de moradores de Itapuaua e de Samucangaua em reuniões para discutir os trabalhos relativos à perícia. Relato de participantes de Samucangaua na segunda reunião em Ladeira, em 08 e 09 de junho de 2002. Referência assinalada por moradores de Castelo, quando foram solicitados pelos trabalhos de perícia a procederem a uma reconstituição histórica da área. Relato dos moradores da agrovila de "Só Assim" referindo-se aos locais onde plantavam antes de serem compulsoriamente deslocados. 65 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Povoados onde foram assinaladas ruínas de "engenhos" e "casas-grandes" ou "casarões" Especificações e estado atual Quem fala sobre a Belém (Bethlen) "paredões de pedra" "engenho" e "casa grande" Relatos memorialísticos dos que hoje vivem na Agrovila Cajueiro, referindo-se às marcas ruiniformes da área onde viviam plantando e pescando. Cajiba (Cajuhyba) "paredão velho" "casa de engenho" Referência dos moradores de Cajiba, quando descrevem traços distintivos do povoado. Camarajó "paredão" "ruína de engenho grande com um pé de piquizeiro" Relatos memorialísticos dos que hoje vivem na agrovila de Novo Peru, referindo-se à área onde viviam antes do deslocamento compulsório. Castelo "já teve paredões, mas foram destruídos." "alicerces de sobrado", "poço de pedra" Referência dos moradores de Castelo ao relatar as evidências de sua antiga ocupação. Itapiranga "paredão" "desmoronaram as paredes grossas e retiraram as pedras" Referência dos moradores de Baixa Grande, Mutiti e Itapiranga à predação das ruínas por estranhos ao povoado. Jacaré "grande muralha" "perto da Norcasa estão as paredes grossas" Referência dos moradores de Jacaré, também mencionadas por diretores do STR de Alcântara. Jerijó (Jirijó) "muralha", "tapera de branco" e "sítio velho" "já tiraram muita coisa, Referência dos moradores de Baixa escavando e procurando Grande, Santo Inácio, Pavão, Jarucaia tesouros enterrados, mas e Conceição enfatizando a violação tem uma parte da muralha em das ruínas por pessoas alheias aos pé", "ferros" povoados na busca de jóias e potes de ouro supostamente enterrados. Marmorana (Tapera) "tapera de branco" "engenho" Referência dos moradores de São Raimundo I e Marmorana. Mutiti "paredão de pedra" e"tapera de branco" "engenho", "alicerces", peças de ferro, Mangueiral(2) Referência dos moradores de Baixa Grande, Itapiranga, Ladeira e Mutiti, que também narraram estórias de "potes de ouro", "baú de jóias" e outros "tesouros" aí enterrados. São Maurício "paredão" "na construção da estrada Referência dos moradores de São tiraram quase tudo", "ferros"(3) Maurício, São Raimundo, Arenhengaua. Santa Rita "paredão" "derrubaram paredão para vender as pedras" Referência dos moradores de Santa Rita. Traquaí (Novo Belém) "muralha" Derrubaram para vender as pedras em Bequimão Informação de moradores de Oitiua. Povoados 66 Denominações locais das ruínas ancianidade dos povoados (1) Alfredo Wagner Berno de Almeida No segundo quadro, concentrei as ruínas dos engenhos e compulsei, para efeito de verificação da fidedignidade das informações coletadas, as edições de 1858 a 1861 do Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial editado por Belarmino de Mattos, que apresenta uma relação de todos os 13 engenhos que então ainda existiam em Alcântara e seus respectivos proprietários. Todos esses engenhos que foram incentivados pela política de soerguimento das plantações de cana-de-açúcar, no decorrer do governo provincial do alcantarense Joaquim Franco de Sá, em 1846-47, localizam-se preferencialmente na freguesia do Apóstolo São Matias, não se constatando um sequer na freguesia de São João de Cortes. Na freguesia de Santo Antonio e Almas, cuja área correspondente foi desmembrada definitivamente de Alcântara em 1935 e equivale ao atual município de Bequimão, há também cinco outros engenhos, que não foram arrolados nos quadros demonstrativos, posto que se referem à situação das fazendas da beira-campo, que se encontram fora do município de Alcântara e que passaram por transformações sócio-econômicas não exatamente as mesmas. Dos 54 fazendeiros arrolados nessa freguesia, tem-se que a metade era constituída de criadores. O total da população correspondia a 6.000 pessoas, sendo que 1/3 foram classificados como escravos. A proximidade dos campos naturais e de áreas de maior densidade de cocais propiciou aos estabelecimentos dessa freguesia um certo tipo de desdobramento para as atividades de pecuária extensiva, conjugadas com aforamento e extração da amêndoa do babaçu (Almeida e Mourão, 1975:12). Notas ao Quadro da página 66: (1) Excertos das entrevistas realizadas durante a consecução da perícia serão acrescentados às observações diretas no transcorrer da análise, completando com maior rigor as menções ora apresentadas. (2) O mangueiral, também chamado de "mangal", designa um conjunto de mangueiras centenárias que caracterizavam a sede do engenho Mutiti. O mesmo termo aparece nas entrevistas com os moradores de Ladeira realizadas por Aniceto Cantanhede (Cantanhede, 1998:12). (3) Os "ferros" concernem a fragmentos e vestígios de objetos e instrumentos utilizados na transformação da cana-deaçúcar: tachas esféricas de ferro fundido, tachas de ferro estanhado, rodas hidráulicas, caldeiras, cilindros etc. 67 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Alcântara, 1861 Senhores de engenhos de açúcar Nome do proprietário Denominação do engenho Dr. Alexandre José de Viveiros Comendador José Maria Correia de Souza (1) Tenente José Mariano de Mello Comendador Manoel João Ribeiro Cap. Raymundo Marianno de Araújo Cerveira e sua mãe Coronel Severo Antonio d'Araújo Cerveira Filho Dr. Carlos Fernando Ribeiro (2) Capitão Euzébio Antonio Marques Dr. João Franco de Sá e Major Thomaz Ferreira Guterrez J. Baptista Gomes de Oliveira (Cajual) Tenente-Cel. Manoel Gonçalves de Sá D. Rosa Estella Ribeiro São Maurício e Santa Rita Piahuitá Pery-mirim (Cajuhiba) (Tapera) Castello Gerijó Santa Filomena (arrendatários de Bethlem) (Cajual) (Mutiti) Jacaré (3) Fonte: Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial. Ed. B. de Mattos. 1861 Notas: (1) O referido Comendador era casado com Francisca Isabel de Viveiros, irmã do senador Jerônimo José de Viveiros que, por sua vez, era pai do Barão de São Bento, Francisco Mariano Viveiros Sobrinho, que contraiu matrimônio com sua prima Mariana Francisca Correia de Souza, filha do Comendador, e passou a controlar o Engenho Piabitá. Além desse engenho, possuía também o Kadoz, localizado em Viana, mais exatamente no Quarto Distrito de São José de Penalva, que hoje corresponde aproximadamente a Cajari, que aparece na listagem de B. de Mattos e era considerado um dos mais completos da região da Baixada. (2) A propriedade dos engenhos parece acompanhar a divisão político-partidária em Alcântara, que separava, de um lado, os pertencentes ao Partido Liberal (famílias Ribeiro, Franco de Sá e Araújo) e, de outro, aqueles vinculados ao Partido Conservador (Viveiros, Gomes de Souza e Correia de Souza). (3) Na freguesia de Sant'Antonio e Almas, o Almanack do Maranhão de 1863, editado por Belarmino de Mattos, assinala os seguintes engenhos: Cajuiba, que só produzia aguardente e pertencia ao Comendador Alexandre José de Viveiros; San Vicente do Centro, do tenente José João de Macedo; Igarapé-assú, do major João Duarte Alves; Pontal, do Comendador José Ascenço Costa Ferreira; e San'Joaquim, de Luiz Ramos de Azevedo. 68 Alfredo Wagner Berno de Almeida As informações utilizadas para a montagem destes quadros demonstrativos foram também plotadas na base cartográfica11 anexa a este laudo, permitindo uma visão mais completa de sua distribuição geográfica e dos contornos de sua posição em termos topográficos. A localização sempre próxima a rios e igarapés ampara as referências constantes de que a cada engenho correspondia um porto e contribui para reforçar o argumento de que as comunidades remanescentes de quilombo, que passaram a desfrutar dessa posição geográfica, viabilizaram-se economicamente nesses dois séculos com intensas transações comerciais, abastecendo com farinha, arroz, carvão, peixes, frutas (murici, babaçu, bacuri...) e óleos vegetais a capital São Luís. Procedi à consulta de viajantes, naturalistas e engenheiros que estiveram em Alcântara nesse período e apresento suas observações. Raimundo Gaioso, em fins do século XVIII e início do XIX, já ressalta a produção de farinha em Alcântara diante dos demais produtos: "a sua produção consiste em arroz, algodão e muita farinha" (Gaioso, 1970:162). Henry Koster, o viajante inglês, em 1810, quando seu veleiro fez uma longa escala em São Luís indo para a Inglaterra, visitou Alcântara. Suas impressões sobre o Maranhão ressaltam que "o progresso aí foi menos rápido do que o de outro centros civilizados..."(Koster apud Mello Leitão, 1937:53) e que a terra é extremamente concentrada. O coronel engenheiro Pereira do Lago, visitando Alcântara, em 1819, chama a atenção para o fato de São João de Cortes produzir exclusivamente farinha (Pereira do Lago, 1872:388). Em julho de 1819, o médico e botânico K. F. P. von Martius e o zóologo J. B. von Spix, que integravam o séquito científico da arquiduquesa austríaca D. Leopoldina, estiveram rapidamente em Alcântara. Visitaram fazendas de Francisco Manuel Alves Caldas e mencionaram a produção das salinas e a exuberância da vegetação no sul de Alcântara, no porto do Carvalho. Nem uma palavra sobre a monocultura do algodão (Spix e Martius, 1973:250-251). Não foram incluídas nestes quadros as ruínas menores, dispersas e fragmentadas, complementares àquelas das sedes das velhas fazendas, mas que jazem isoladas e que se referem a: uma "boca de poço em pedra", no caso de Marudá; um "cemitério dos brancos que foi abandonado", no caso de área próxima a Ladeira; um poço de pedra de borda arredondada, no caso de Frade; e aos currais de bois, que são laterais aos caminhos de boiada que, indo para a beira-campo em Santo Antonio e Almas, passavam perto de Pavão, Baixa Grande e Itaperaí. Pereira do Lago, em 1819, menciona as estradas reais, que cortavam Alcântara, e J. de Viveiros, em 1954, recupera criteriosamente os caminhos da boiada e aqueles dos correios, indicando que havia uma malha de ramais que eram extensões das fazendas, ligando-as às áreas de pastagens e aos principais portos. No mapa elaborado para fins desta perícia, para facilitar a leitura e o entendimento da posição geográfica, procedi à classificação das ruinarias com três referências elementares: ruínas de casas-grandes sem registros de engenhos ou moendas, ruínas de engenhos de açúcar e ruínas de moendas conjugadas com casas-grandes. Realizei uma distinção entre grandes plantações de algodão e de-cana-de açúcar e, quanto a estas, entre os engenhos e as moendas. A leitura do mapa, conjugada com os quadros acima apresentados, propicia a percepção das áreas onde se concentram os engenhos e de forma coextensiva os povoados que se consolidaram a partir de sua desagregação. 69 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 A fuga dos senhores de engenho e a recusa da tutela "Até porque além das famílias serem mesmo negras, a grande maioria tem descendência até dos escravos, como foi uma avó que morreu com cento e treze anos. E as terras ficaram aí, os brancos foram embora." (G.C. 19/04/2002 - ENT.16 - referência a São Maurício). "Justamente nós temos ali os engenhos, já existem ali só os paredões grandes. Eu trabalho e passo por lá este paredão chama de Timbu. Está na beira do rio, está lá. Tem dois paredões medonhos lá. Todos dois. Este paredão foi até encancelado pelo pessoal, que tinha gente que queria esbandalhar, tirar pedra." (I.O. 16/04/2002 - ENT.12) Na representação dos moradores dos povoados, não se percebe qualquer nostalgia da proteção dos antigos senhores de escravos que abandonaram a região e que são referidos por eles como os brancos. O sentimento de autonomia, que construíram no decorrer dos últimos dois séculos e meio, dissocia radicalmente "cativeiro" e "proteção", ao contrário do que sempre imaginaram os legisladores do período imperial partidários de uma abolição gradual da escravatura (Viotti da Costa, 1998) como forma iludida de proteger os libertos12. Pelas entrevistas, é possível perceber que recusam a "tutela benéfica" dos antigos senhores e que alguns, inclusive, traçam historicamente a trajetória familiar sem referência exponencial à escravidão. Não se vêem como órfãos de senhores que se foram, mas como sujeitos da ação que os tornou livres, sem qualquer manifestação de vontade de que necessariamente estivessem presentes os senhores. O aquilombamento das ruínas significa, nesse sentido, uma ruptura radical com a ideologia da tutela, ressaltando um processo de autonomia. Este é expresso economicamente pela condição de libertos, entregues a si mesmos, vivendo e trabalhando por conta própria. Autônomos nas decisões de como, onde e o que cultivar sem a pretendida "capacidade administrativa" de senhores e feitores. Autônomos na esfera da circulação, transportando diretamente em barcos à vela, que denominam bianas, sua produção para o mercado consumidor da capital, sem a intermediação de companhias de comércio que já não mais existiam desde 1778. Aliás, o trabalho por conta própria não consistia numa prática desconhecida daqueles escravos que mantinham terrenos de cultivo para o sustento de suas famílias. Autônomos em termos das festas religiosas ou sem a presença de clérigos, cujas ordens foram expulsas desde 1759-60. Mediante essa maneira de agir e de se verem a si mesmos sob uma aura de autonomia, colocam-se, portanto, para além de qualquer tutela, seja do Estado, seja da Igreja, seja de senhores de engenhos. Mesmo nas situações concernentes à doação de terras a escravos e ex-escravos, como foi possível observar noutra parte desta perícia, em que as narrativas míticas recuperam aparentemente o mito do "bom senhor", o ideal de autonomia e não-submissão é sempre enfatizado. Relativizam as doações que a historiografia regional acriticamente considera um ato de benevolência do senhor bondoso e indulgente. Com base nesse princípio, eles vão reescrevendo, com suas narrativas memorialísticas, a ruinaria e o abandono das fazendas de 70 Alfredo Wagner Berno de Almeida algodão e dos engenhos. Deixam entrever uma ação senhorial descontínua, contingente, além de devastadora e predatória, quase impossível de transmitir qualquer sensação de amparo, de reprodução simples ou de atividade produtiva permanente. São muito difundidas também, e vão reaparecer na análise das doações de terras a ex-escravos, as menções ao endividamento dos senhores como uma das causas do abandono das fazendas13. Ao reiterarem que os antigos senhores "não puderam levar" os paredões e as muralhas, os entrevistados deixam transparecer episódios que a historiografia regional, no seu fascínio não-disfarçado pelas "ruínas que atestam a extinta opulência" (Raposo, 1944:258), acabou por desprezar. Em verdade, de certo modo, as ruínas teriam sido produzidas por atos deliberados resultantes dos endividamentos contraídos pelos senhores e da baixa do preço do algodão e depois do açúcar no mercado mundial. Elas evidenciam o malogro de uma economia escravista baseada em grandes estabelecimentos agrícolas, dedicados à monocultura, nessa região dos trópicos. Os depoimentos alusivos a como os "brancos foram embora" fazem referências ao destelhamento das casas-grande e à sua demolição, com as vigas do barroteamento dos soalhos e dos baldrames e demais peças de madeira de lei sendo levadas pelos senhores, quando de sua retirada de Alcântara. O mesmo destino teriam tido oratórios, imagens de santos, como no caso de São João Batista14, esculturas de mármore, louças inglesas, livros que compunham pequenas bibliotecas dos membros das ordens religiosas e o mobiliário colonial do casario assobradado das fazendas. As narrativas indicam também que partes das engrenagens dos engenhos, como as caldeiras e demais utensílios complementares (rodas hidráulicas, tachas de ferro estanhado e rodas de ferro inglesas) foram desmontadas e vendidas para o Ceará e outros estados do Nordeste. Os entrevistados, entretanto, alertam notadamente para o que não pôde ser materialmente levado nessa dramática retirada, cuja descrição tem conotações aproximáveis do saque e da pilhagem. Nos depoimentos coletados, tudo se assemelha a despojos de uma ação espoliadora que objetivava não deixar nada para trás, senão pedra sobre pedra15. Mencionam os bens imóveis em desmoronamento, tais como: as paredes de pedra – excedendo a um metro de largura, que se erguem sobranceiras nos outeiros e nas pequenas elevações não alcançáveis pelos terrenos alagadiços, designadas localmente como muralhas e paredões –, os poços de pedra lavrada, os tanques e os alicerces. Assinalam ainda elementos paisagísticos das sedes das fazendas, que tornam os lugares onde se erguiam mais facilmente distinguíveis. A pretensão de nobreza desses lugares é traduzida por plantas ornamentais da família das palmas, de estipe ereto, colunar, que chegam a atingir 40 metros, e que simbolizavam o poder senhorial na Colônia e durante o Império. Um exemplo seria a denominada "palmeira imperial" encontrada junto às ruínas do Engenho Gerijó: "...ainda existe uma palmeira imperial que era a planta lá do senhor. Acho que ela tem uns vinte ou mais de vinte metros de altura. Ainda existe lá no Gerijó." (V. 18/04/2002-ENT.14). Outro desses elementos característicos da paisagem que envolvem as sedes das fazendas são os mangueirais, conhecidos localmente também como mangais, que podem ser encontrados junto a quase todos os chamados sítios velhos e taperas de branco do município de Alcântara (Cantanhede, 1998:12,13). 71 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Referem-se ainda os entrevistados às chamadas pedras de rumo ou marcos de pedra de cantaria, com inscrições e/ou letras na sua face superior, delimitando os confrontantes das datas de sesmarias a serem confirmadas ou já concedidas pelo poder real a nobres, fidalgos, cavaleiros de ordens e "homens de posse"16. As terras correspondentes a cada imóvel rural eram delimitadas com esses marcos ou pedras de rumo, que definiam ângulos, limites tríplices e pertencimentos. Elas foram igualmente reapropriadas e hoje balizam as delimitações dos povoados, podendo incluir um ou vários deles consoante a particularidade da desagregação da referida fazenda e da formação dos laços comunitários. Importa frisar que as pedras de rumo originalmente delimitavam terras e que nesta dinâmica de reapropriação pelas comunidades remanescentes de quilombo passam também a servir de referências para a construção social do território. Nesse sentido é que foi afirmado anteriormente que o processo de territorialização abrange múltiplas territorialidades específicas que foram se constituindo segundo temporalidades próprias e diferentes, mas convergindo, através de intensas conexões, para um território étnico. Os detalhes dessas descrições e a habilidade em discernir os diversos tipos de formas ruiniformes evidenciam a força da transmissão dessa versão nativa que, num debate ideal, se contrapõe à história oficial, recolocando o sentido efetivo das ruínas. Ao coonestarem esse tipo de saber histórico, as comunidades de cada povoado deslegitimam, de maneira implícita, os antigos senhores como detentores do monopólio da identidade regional e asseveram que têm mantido ininterruptamente sob seu controle absoluto, durante quase dois séculos, vastas extensões de terras que somente por algumas décadas tiveram sua exploração organizada pelos denominados brancos. Nessa ordem é que a versão dos descendentes dos ex-escravos, circunstanciando de maneira pormenorizada a "fuga" dos senhores, paradoxalmente nos autoriza a falar em aquilombamento das ruínas das casasgrande e dos engenhos. As ruínas e o tempo livre "Este era o paredão. Casa-grande, sim senhor. Casa-grande do feitor, o preto apanhava aí, não tinha direito quase nem de comer. Quando a sineta batia, cada um com sua colher ia caçar o que comer, se perder essa hora, só de noite, batia a sineta... Belmiro, Francisco, Antonio, Pedro cada um com sua cuínha, pegava aí, não tinha tempo de fazer nada, só mesmo da carroça buscar madeira, mandioca aqui neste centro..." (U.A.S.19/04/2002-ENT.18) Mostrando-me as ruínas do Engenho São Maurício, o entrevistado sublinha a impossibilidade do tempo livre no regime escravista. Deixa transparecer uma percepção de que a severidade da disciplina rotineira e a intensidade das tarefas impediam os escravos de fazer alguma coisa para si mesmos e para os seus. Essa representação da escravidão pela noção de tempo é resultado de uma longa experiência de aprendizagem em administrar, através de longas jornadas de trabalho, a produção de bens essenciais e a distribuição social do que for necessário à sobrevivência e à reprodução social. 72 Alfredo Wagner Berno de Almeida Através da categoria tempo livre (Elias et Dunning, 1994:129) é possível compreender o processo de trabalho nas comunidades remanescentes de quilombo, bem como suas representações sobre a vida social. Além de ser interpretada de maneira positiva, a categoria tempo livre, realçando uma posição de liberdade e independência, representa um traço distintivo em face da subordinação escravista de épocas pretéritas. O equilíbrio entre o trabalho por conta própria e as atividades de lazer, numa ruptura com a noção de "coisa" imposta ao escravo, resulta por reforçar no entrevistado a sua condição de sujeito e suas formas de existência coletiva. Como sugere Elias, uma das determinações do tempo seria a que faz dele um "símbolo social, cujo desenvolvimento acompanha o da vida coletiva" (Elias, 1998:31). À desintegração progressiva da autoridade dos senhores de escravos e de seus prepostos, corresponde a emergência de uma representação do trabalho, pelos membros das famílias de ex-escravos, desvinculada de qualquer forma de subordinação. Os ex-escravos passam a se constituir em indivíduos que governam a si mesmos, resistindo aos que insistem em subordiná-los. Sua liberdade repousa em sua possibilidade de controlar de maneiras diversas o acesso aos meios de produção, os seus meios de trabalho e o tempo equilibrado entre o trabalho para si e as formas de entretenimento. A identidade quilombola é construída sobre esse equilíbrio, redefinindo a geografia da dominação, articulando tempo e espaço como livres do controle de terceiros. Assim, o campo de futebol localizado em meio às ruínas evidencia um uso social determinado, simbolizando o lazer na área da antiga casagrande. Reagrupa as pessoas de uma forma distinta daquela das atividades produtivas. Todavia, reforça os laços de solidariedade e de coesão social da comunidade por igual. Percebe-se uma apropriação coletiva do espaço adjacente às ruínas, antigo lugar de trabalho compulsório, para o exercício destas atividades de entretenimento dos moradores dos povoados. Jogo de futebol, algazarra e batuque, quebrando com a rigidez do silêncio imposto às senzalas, rompem com os gestos comedidos e com o falar baixo de quem estava sendo sempre vigiado. Aqui também se constata a aludida inversão: o antigo espaço físico da casa-grande sendo incorporado ao lazer dos descendentes dos escravos e tornandose um indicativo da autonomia de decisão que socialmente construíram. A rigor, aquele espaço físico foi transformado numa característica do processo de territorialização étnica. Mas não se deve confundir essa noção de tempo com sequências temporais integradas num fluxo contínuo, como se as transformações fossem temporalmente lineares. Há outros fatores que entram em consideração. Não são somente a idade de uma ruína, a idade de um povoado ou a duração de certos processos sociais, como esse da territorialização das comunidades remanescentes de quilombos, que devem ser levados em conta. A percepção dos direitos étnicos, combinada com a conquista do tempo livre, e a disponibilidade para consolidar os elementos identitários, que autorizam a identificação étnica e justificam os direitos derivados, seja no lazer ou no trabalho, devem ser considerados. Os critérios político-organizativos e de mobilização, coextensivos à identidade étnica e às reivindicações de titulação definitiva das terras das comunidades remanescentes de quilombo, reconhecida pelo Art. 68 do ADCT da Constituição de outubro de 1988, atualizam-se também nesses domínios de trabalho e lazer, consubstanciando a plenitude da condição de sujeito conquistada pelos quilombolas. 73 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 A datação da fuga e das ruínas "...dos brancos não sobrou nada, só os ferros velhos"(U.A.S.19/04/ 2002 - ENT.18) São várias as datas e diferentes as temporalidades que registram a saída de Alcântara dos donos dos grandes empreendimentos agrícolas e os primórdios do desmoronamento das suas respectivas benfeitorias. O tempo mais recuado concerne às ordens religiosas. Elas tiveram seus bens confiscados e/ou transferidos ao Estado a partir de 1759, com os jesuítas, e completando-se em termos jurídicos em1891, com os carmelitas. A derrocada total das fazendas de algodão, a partir dos efeitos tardios da extinção da Companhia Geral de Comércio, em 1778, se completa em 1819, com os preços do produto indo ao fundo do poço no mercado internacional e com o agravamento dos débitos contraídos pelos sesmeiros junto a comerciantes, na compra de escravos. Os engenhos de açúcar com inovações tecnológicas, que foram incentivados pelo governo provincial em 1847, não lograram êxito. No final da década 1860-70, já estavam praticamente falidos, restando tão somente em Alcântara moendas de pequeno porte. Tais engenhos jamais chegaram a engenhos centrais. Usinas, com índice de industrialização semelhante àqueles da costa nordestina, não houve. Os engenhos se concentravam na freguesia do Apóstolo São Matias. Os criadores de gado que usavam os campos naturais do Tubarão e de Santo Antonio e Almas (Bequimão) sempre estiveram ligados às grandes fazendas, abastecendoas, sobretudo quando o peixe escasseava, e fornecendo os animais-de-tiro para movimentar as moendas e engenhos ou para o transporte das cargas. Ainda há vestígios próximos a Jarucaia dos chamados caminhos da boiada, que constituíam as vias de comunicação dos campos com os engenhos por onde eram conduzidos os rebanhos. Em Pavão e Itaperaí, há evidências dos denominados currais de bois, caminhos estreitos de beiradas elevadas de ambos os lados, cujas extremidades eram fechadas com porteiras, mantendo presas as reses até o abate. Nas áreas próximas às fazendas, conforme os entrevistados de Baixa Grande e Itapiranga, só existem poucas manchas de um tipo de pastagem, chamada paturá, que não comporta rebanhos. Seriam pastagens fracas, suficientes se tanto para os animais de tração das antigas fazendas e que hoje são utilizadas pelos bois-cavalos, de cada uma das famílias dos povoados. Com a destruição das fazendas, essa articulação entre monocultura e pecuária perdeu sua razão econômica. O criatório extensivo dos campos da Baixada redirecionou seus rebanhos para as feiras de gado e para o abastecimento de núcleos urbanos e principalmente da capital. Por outro lado, a atividade pecuária foi, de certo modo, redefinida. Vaqueiros, que eram escravos domésticos das antigas fazendas ou que haviam sido alforriados, passaram a cuidar, nos campos naturais, tradicionalmente abertos, do gado pertencente às famílias de escravos e ex-escravos dos povoados recém-formados. Praticavam o sistema chamado de sorte, ficando com percentuais das crias que variavam entre um quinto e um quarto. Todas as informações disponíveis indicam que os escravos podiam possuir um pecúlio17. Cada animal desse "novo" rebanho pertencia, pois, a uma família de escravos18, daquelas que permaneceram – cultivando de maneira autônoma e residindo – nos povoados 74 Alfredo Wagner Berno de Almeida que sucederam às fazendas. Os vaqueiros prestavam um serviço às famílias como um todo e, no final do século XIX, há registros de que vieram a adquirir terras de seus antigos senhores, no Engenho Mutiti (cf. P.S.-15/04/2002 - ENT.10), enquanto que famílias de comunidades remanescentes de quilombo adquiriram posteriormente terras para seu gado na beira-campo, mais exatamente em Boa Vista (Cantanhede,1998). Diante desse quadro, percebe-se que os mecanismos repressores da força de trabalho, desde fins do século XVIII, estavam fragilizados por demais nas fazendas, não obstante as tentativas dos legisladores provinciais de reativá-los. Isso, em certa medida, responde à pergunta de por que os senhores foram embora e não levaram ou venderam seus escravos, inclusive para saldar seus débitos. Não o podiam mais. Isso distingue Alcântara de outras regiões do Maranhão. Milhares de escravos foram vendidos e transportados do Vale do Itapecuru para as fazendas de café do centro-sul do país19. Deve-se destacar que nesses diferentes momentos de abandono das fazendas e da chamada "fuga" dos senhores, os quilombos já usufruíam de um grau de consolidação razoável em Alcântara, debalde os esforços das tropas de linha em combatê-los, e já era bastante elevado o número de escravos, produzindo por conta própria e fora do alcance pleno dos mecanismos de imobilização. Certamente que não há dados estatísticos oficiais disponíveis para corroborar isso, entretanto, compulsando as informações arroladas no Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial, de 1861 – editado por Belarmino de Mattos, que contava com colaboradores diretos em Alcântara –, pode-se destacar que na freguesia do Apóstolo São Matias, incluindo a cidade de Alcântara, assinalada por Mattos com visíveis sinais de abandono, os escravos constituíam mais de 55 % da população, perfazendo 4.500 de um total de 8.000 habitantes. Na freguesia de São João de Cortes, de 2.800 habitantes, tem-se que 800 são arrolados como escravos. "Senhores de Engenhos", "Fazendeiros e Escravos": Alcântara 1860-61 Município Freguesias* Total Alcântara Apóstolo São Matias 8000 São João de Cortes 3600 Total 11600 FONTE: Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial. 1861. Editor Belarmino de Mattos. NOTAS: ( * ) As freguesias de Santo Antonio e Almas, de São Bento dos Perizes e São Vicente Ferrer de Cajapió também pertenciam à comarca de Alcântara, mas não foram aqui incluídas por referirem-se a uma área geográfica que transcende aos objetivos do presente trabalho de perícia. ( ** ) Não houve qualquer registro de produção no Almanack de referência. O único registro sobre a produção que foi detectado refere-se a 20.000 arrobas de açúcar na freguesia de São Matias. 75 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Os registros de produção assinalados referem-se tão-somente ao açúcar dos 13 engenhos antes citados. Nada há sobre os 50 "fazendeiros" e as demais informações disponíveis no mencionado Almanack enfatizam tão-somente os plantios de mandioca e o fabrico de farinha em todo o município. Na área de Raimundo Sú, a exemplo de São João de Cortes, "quase que cultivam exclusivamente a mandioca e exportam alguma farinha" (Mattos, 1861:34). Quanto à cidade, registra o seguinte: "Hoje está meio abandonada, com as casas desertas e as ruas nuas de viandantes. Só nos dias festivos é que se lhe nota vida e animação." (Mattos, 1861:24) (g.n.) A datação das ruínas das fazendas das ordens religiosas No caso das ordens religiosas, há copiosa documentação em virtude de questões judiciais entre a Igreja e o Estado desde 1759 até o fim do padroado, em 1883. Para efeito de síntese, realizei uma reconstituição concisa sem qualquer pretensão de estabelecer periodizações. A despeito da abundância das fontes documentais e arquivísticas, não consegui obter maiores dados sobre a fazenda da ordem religiosa chamada Terra Santa, cujo arrolamento de 1877 dizia tão-somente: "huma fazenda na paróquia de São Matias em Alcântara" (P. Silva, 1922:419), consoante registro do Bispo do Maranhão D. Francisco Paula e Silva, publicado em 1922. Sobre ela também não consegui informações locais através de técnicas de história oral e de entrevistas provocadas. Coligi dados, principalmente, sobre as fazendas das ordens religiosas e irmandades e passo a descrevê-los numa sequência cronológica. Companhia de Jesus Os jesuítas tiveram seus bens confiscados na governação pombalina20 e abandonaram seus estabelecimentos agrícolas em Alcântara em 17 de junho de 1760 (Viveiros, 1977:41). Nem bem tinham saído e o desmonte de suas benfeitorias foi iniciado. Joaquim de Mello e Póvoas, governador e capitão-geral do Maranhão, propôs à metrópole, em 1761, que da casa da Companhia de Jesus em Alcântara se procedesse ao "aproveitamento da telha e mais alguma coisa nas obras do paço governamental de São Luis, que ele remodelou e proveu de mobília e algumas alfaias." (Lopes, l957:285). Quanto às fazendas, cabe assinalar que os mordomos régios tiveram dificuldades de vender o Engenho São Bonifácio. A Fazenda Pericumã, segundo Lopes, “deu origem ao povoado de São Lourenço" (Lopes, 1957:286). A Fazenda Gerijó, ainda segundo Lopes: 76 Alfredo Wagner Berno de Almeida "foi passando de mão em mão até chegar à do dr. Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú, que lá instalou uma usina de açúcar das mais adiantadas do seu tempo, mas obcecado pela política, nesta dissipou grande parte de sua fortuna. Dia chegou em que se viu na contingência de desmontar o belo e rico engenho para com uma parte do maquinário montar em São Luis uma fábrica destinada a descaroçar algodão e pilar arroz."(Lopes, 1957:286). Numa mesma fazenda, cada ruína se ergueu sobre a anterior, encadeando uma série de sucessivos malogros econômicos, tanto com o algodão21 e as moendas de madeira em finais do século XVIII, quanto na produção de açúcar bruto através dos engenhos, no último quartel do século XIX. Numa arqueologia de superfície, tem-se reatualizados os símbolos correspondentes na diversidade do que chamam de "cacos" (louças, cerâmicas, vidros) e "ferros" (caldeiras, rodas, tachas). Os entrevistados de Pavão, Santo Inácio e Baixa Grande descrevem o estado atual destas ruínas: "No Gerijó os alicerces ainda tem, ainda existe alicerce, ainda tem o poço, um poço muito grande também aí que entupido, mas ainda tem uma fundura boa e ainda se encontra algum material por lá, ferro de engenho. Pelo menos umas bocas de baixo das caldeiras que tinha, isto aí ainda se encontra ainda por lá." (V. 18/04/2002 - ENT.14) "...a fazenda dele era ali no Gerijó onde tem hoje as muralhas... os marcos estão lá, os casarões acabaram." (P.F.C. 12/04/2002 - ENT. 01 - referência a Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú) (g.n.) Em São João de Cortes, além de um colégio, os jesuítas mantinham uma unidade de produção de anil. Obtinham uma matéria corante de cor azul violácea fornecida pelo indigueiro, um arbusto tropical22. A fábrica tratava-se de uma manufatura onde se produzia uma substancia corante extraída das folhas e chamada anil. Ela tinha aplicação nas artes para tingir de azul. O azul índigo era por demais apreciado então na Europa pela sua tonalidade forte, muito semelhante ao azul-violeta, o que facilitava sua exportação. Os jesuítas treinaram escravos africanos e índios nas técnicas de processamento. As benfeitorias dos jesuítas em São João de Cortes ficaram desde 1760 sob o controle dos índios, abrigando inclusive escravos fugidos, dedicando-se principalmente à produção de alimentos, sobretudo farinha, sob uma economia de base familiar. Os entrevistados narram que os índios teriam doado as terras a São João Batista, que deixou livre o acesso a quem delas necessitasse (M.L. 20/04/2002 - ENT. 22.2). Os relatos do coronel engenheiro Pereira do Lago, visitando a região em 1819, reforçam este argumento da prevalência da pequena produção, invocando, entretanto, as condições do solo e não exatamente as unidades de trabalho familiar: "Esta povoação de índios é muito antiga, constava de 22 fogos e cousa de 90 a 100 almas; tem capela, mas não sacerdote, e o comandante é um sargento. Plantam só mandioca, porque para mais nada serve o terreno." (Pereira do Lago, 1872:388) (g.n.). 77 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Ordem dos Carmelitas Descalços Embora franciscanos, carmelitas e mercedários tenham tido um tratamento distinto daquele dado por Pombal à Companhia de Jesus (Mourão Sá, 1975), seus imóveis rurais decaíram por igual século XIX adentro. O Convento da Ordem dos Carmelitas Descalços, com suas três fazendas, incluindo-se Itamatatiua, uma olaria e muitas terras, a partir de 1821, segundo A. Pratt, não teve mais condições materiais para manter seu patrimônio. De acordo com a interpretação de Pratt: "Desligada como se achava a Vigairaria Carmelitana do Maranhão do seu tronco vital (...), sem meios para soerguer-se, só podia esperar o seu extermínio". (Pratt, 1941:188). Nas chamadas terras de Santa Teresa, centralizadas em Itamatatiua, onde existe a capela da santa, foram registrados inúmeros quilombos, desde meados do século XIX. Eles foram severamente reprimidos em 1837, mas não destruídos. As fazendas de gado de Piracumã (Pericumã), do Tubarão e do Suassíu Cumã soçobraram lentamente e foram desmembradas. A Ordem Carmelitana de Alcântara, em 1835, quando já não mais controlava efetivamente suas fazendas, todas elas pontilhadas de povoados, doou seus bens ao governo da província do Maranhão, conforme Anais da Assembléia Legislativa do Maranhão em sessão de 23 de março de 1835. Atendendo à determinação de Circular de D. Luís da Conceição Saraiva, Bispo Diocesano e Visitador da Ordem Carmelitana, de 17 de novembro de 1868, o Frei Caetano de Santa Rita Serejo procede a relatório circunstanciando os bens dos conventos e, entre eles, o de Alcântara. Registra que o convento possuía 160 escravos e diz que as terras da fazenda "Tamatatuba"(Itamatatiua) pouco podem produzir. Menciona as terras aforadas e, sabedor de que nenhum religioso permanecia na área e que os escravos produziam livremente, completa: "Os escravos deste convento que sempre foram insubordinados e desmoralizados, acham-se moralizados, contentes e satisfeitos". (Serejo, apud Paula e Silva,1922:468,469). Ordem de Nossa Senhora das Mercês O Convento da Ordem de Nossa Senhora das Mercês e suas duas fazendas, incluindo-se as terras de Sant'Ana23 e muito gado, viram tudo a perder durante as primeiras décadas do século XIX. As terras onde foram erguidos o convento e a igreja foram doadas aos mercedários pelo antigo donatário, Antonio Coelho de Carvalho. O convento foi fechado em 1850, data do falecimento de seu último administrador. A partir daí, os relatórios e ofícios sempre frisam que não há mais religiosos em Alcântara, tendo sido a administração do convento entregue ao capitão João Vidal de Souza. Nas duas fazendas havia então o registro de 84 escravos, que desenvolviam agricultura de base familiar. 78 Alfredo Wagner Berno de Almeida A fazenda de Sant'Ana, "com uma légua de frente e meia de fundo nos centros de Santo Antonio e Alma", designada hoje como Terra de Sant'Ana, é limítrofe com a fazenda Tamatatiua (Itamatatiua) ou Terras de Santa Tereza, da Ordem do Carmo, e, de acordo com a "Relação de bens de raiz que possui a Ordem Mercedária desta Província do Maranhão", de 05 de outubro de 1870, assinada por Frei Caetano de S. Rita Serejo, administrador do patrimônio da Ordem, a outra fazenda trata-se de: "Meia légua de terra nas costas da baia de Alcântara comprada pelos religiosos, na qual tiveram eles uma olaria e hoje acham-se abandonadas". O referido administrador faz menção a Alcântara, "cidade que a muitos anos decresce", ao "convento em ruínas" e à igreja na qual, devido a desmoronamentos e aos reparos no teto, "não há decência precisa para a celebração do culto divino"(sic). No Parecer da Comissão do Convento das Mercês, datado de 12 de dezembro de 1862 , encontra-se registrado que: "os conventos estão em estado de ruínas pelo abandono (...) em Alcântara (...) o convento está em terra". No que tange às fazendas, embora sem menção explícita a quilombos, como no caso dos Carmelitas, cuja fazenda é limítrofe, os religiosos falam eufemisticamente em "indisciplina". Assinalam o seguinte: "As suas fazendas estão abandonadas, e nem fazem para o sustento diário dos próprios servos, que vivem sem disciplina e alguns miseravelmente...".24 No Ofício de 30 de setembro de 1863, da mesma Comissão, há um alerta de que a igreja "de Alcântara está a desabar" e uma sugestão de que os escravos que estão no Convento de São Luís sejam levados de volta às antigas fazendas. Os superiores da Ordem, em portaria de 24 de janeiro de 1870, determinam que os escravos sejam incorporados às fazendas da Ordem do Carmo. Irmandade do Santíssimo Sacramento A Irmandade do Santíssimo Sacramento teve a expedição de seu registro paroquial, exigência da Lei de Terras de 1850, documentada no Livro de Registros no 20, folha 18v., e datada de 30 de junho de 1856. A este tempo, os povoados dentro dessas terras já se encontravam relativamente consolidados, muitos deles consistiam em quilombos de escravos fugidos dos engenhos Mutiti e Itapiranga, que foram se deslocando para as margens dos igarapés das cabeceiras do rio de São João (Periaçu). A abundância de moluscos (caramujos, ostras e mariscos) e de diversas espécies de peixes propicia uma atividade de pesca constante combinada com a agricultura familiar. Samucangaua, Aririzal (Iririzal), Itauaú, Panamirim, Ladeira, Santa dos Caboclos, Flórida e Forquilha são assinaladas pelos informantes como estando localizadas integralmente dentro dessa área, denominada terra de santíssima, terra da santa ou terra de santíssimo25, ou sendo alcançadas parcialmente pelos seus limites. 79 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Consoante observação de Shiraishi, construída a partir da leitura de Gaioso, as cartas de sesmarias não implicavam necessariamente em afirmar que as terras estavam efetivamente ocupadas e sob controle daquele que as requereu (Shiraishi, 1998b.:24). Assim, embora estivessem de fato abandonadas e sob efetivo aquilombamento – e os relatórios, ofícios e pareceres confirmam sobejamente isso –, as fazendas das ordens religiosas continuam a ser objeto de inventariamento de bens e exame de comissões mais em virtude de pendências com o governo federal26. Do mesmo modo que os detentores de antigas cartas de datas e sesmarias ou os que adquiriram esses títulos, sem ter efetivamente o controle das fazendas, à exceção dos engenhos beneficiados pela política de reativação das plantações de cana do governo provincial de 1847, as ordens religiosas buscaram registrar suas terras nos anos de 1854-57, atendendo tão-somente às disposições legais, sem ter em mira qualquer exploração agropecuária de fato. Territorialidade específicas Nas terras das antigas fazendas das ordens religiosas, através de sua ocupação efetiva por ex-escravos e quilombolas, foram construídas complexas redes de relações sociais delimitando territorialidades específicas, que abrangem dezenas de povoados, e são referidas tanto pelos que nelas vivem, quanto pelos circundantes, como terras de santo ou terra santista, terras da santa, terras de santíssimo ou terras de santíssima. Essas designações, numa referência empírica às mesmas áreas e num contexto de fatores identitários, alusivo às auto-representações, coexistem com as denominadas terras de preto e terras de caboclo. Antes mesmo de terem permanecido como patrimônios de ordens religiosas, elas constituem, portanto, terras que foram de fato ocupadas por escravos, alforriados, libertos pela lei de 1755 e escravos fugidos de fazendas, os quais, de maneira independente ou através de aforamentos simbólicos, como afirma B. de Mattos (1861:34), aí construíram sua autonomia social e econômica em face do poder senhorial. Para efeito de ilustração, arrolei sete situações sociais27 hoje no município de Alcântara assim classificadas e que permanecem de fato ocupadas, integrando o território étnico reivindicado pelas comunidades remanescentes de quilombos. 80 Alfredo Wagner Berno de Almeida Terra de Santo, Terra de Santa e Terra de Santíssimo Denominação local Divindade referida Terra de Santo Terra Santista São João Batista (1) Companhia deJesus A Noroeste do município de Alcântara São João de Cortes como povoado principal Terra da Santa Santa Tereza (2) Ordem do Carmo Ao Sul do município de Alcântara adentrando o município de Bequimão, tendo como povoado principal Itamatatiua numa rede que compreende mais de 30 povoados. Irmandade do Santíssimo Sacramento(3) Santana dos Caboclos, Samucangaua, Flórida Terra de Santíssimo Terra de Santíssima Instituição pia ou religiosa Povoados - Nossa Senhora do Livramento (4) - Ilha do Livramento Terra da Santa Sant'Ana (5) Ordem das Mercês Barroso, Balandro, Juraraitá e mais uma dezena de povoados no município de Bequimão, fazendo limites com Terra de Santa Teresa - Santa Rita (6) Ordem das Mercês À Leste do município de Alcântara. Mamuna - São Lourenço Companhia de Jesus Antiga Fazenda Pericumã. (7) NOTAS: (1) As benfeitorias dos jesuítas em São João de Cortes ficaram desde 1760 sob o controle dos índios. Os entrevistados asseveram que os índios doaram a terra a São João Batista. (Cf. M.L. 20-04-2002. ENT. 22-2). (2) Cf. Convento Nossa Senhora do Carmo. Tamatatiua. Registro Paroquial expedido em 1857, Livro 01, folha 56. Localizado no Arquivo Público do Maranhão. (3) Cf. Irmandade do Santíssimo Sacramento. Registro Paroquial expedido em 30 de Junho de 1856, Livro 20, folha 20. Localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão. (4) Cf. Registro Paroquial expedido em 1º de Março de 1856, Livro 20, folha 10. Localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão. (5) O Convento Nossa Senhora das Mercês possuía duas fazendas em Alcântara, a mais conhecida é esta de Sant'Ana, limítrofe com a de Santa Teresa, da Ordem dos Carmelitas Descalços. (6) Cf. J.M.S, em 15-04-2002. ENT. 08. Informação obtida através de entrevista. Como não foram registradas menções explícitas durante o trabalho de campo pericial, não posso assegurar que essa área corresponda, não obstante posição geográfica similar, a "meia légua de terras nas costas da baía de Alcântara comprada pelos mercedários na qual tiveram eles uma olaria e hoje acham-se abandonadas". Cf. Relação dos bens de raiz que possui a Ordem Mercedária desta Província do Maranhão, 05 de outubro de 1870, firmada por Frei Caetano de Santa Rita Serejo. (7) Fazenda da Companhia de Jesus, que foi confiscada em 1760, cuja localização está referida a Guimarães. Não se confunde com o povoado de São Lourenço, localizado em Alcântara , próximo à estrada real que conduzia a Guimarães e, daí, ao Pará. 81 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Em suma, pode-se afirmar que uma datação das ruínas dispersas pelo município de Alcântara poderia ser estimada entre quase um século e meio, considerando o malogro dos engenhos, e dois séculos e meio, tomando como referência a expulsão dos jesuítas. As datas antecedem à abolição formal da escravatura, em até 129 anos, e assinalam uma característica econômica intrínseca a regiões periféricas, que mesmo com grandes plantações não lograram transformarem-se em complexos agrárioindustriais como no caso da costa nordestina, em que se constituíram as usinas de açúcar. Em Alcântara, ao contrário do Nordeste, com a desagregação das fazendas, prevalece um sistema econômico de pequenos produtores que incorporam a terra ao processo produtivo mediante o trabalho familiar e cuja trajetória, em termos históricos, remonta ao princípio de autonomia e às premissas étnicas dos quilombos. Esses marcos temporais, ora fixados, datam concomitantemente a desagregação das fazendas e a ancianidade das comunidades remanescentes de quilombo, que se acham imbricadas nesta arqueologia das grandes plantações. As diferenças culturais e as premissas étnicas A despeito das relações de proximidade, inclusive geográfica, entre os povoados onde se estruturam as comunidades remanescentes de quilombo e as ruínas, percebem-se também situações de afastamento que marcam profundas diferenças e denotam assimetrias. Os povoados se constituem em terreno próprio, à meia distância das ruínas. Algumas ruínas encontram-se mais próximas das áreas de plantio ou localizadas no caminho que leva às denominadas roças, de que seriam exemplos: Timbu, Esperança, São Maurício e Gerijó. Os moradores dos povoados não aproveitam paredes, muros, pedras ou qualquer fragmento das ruínas para erigirem suas habitações. Aos olhos dos moradores, eles parecem envoltos em estigmas. Evitam construí-las excessivamente próximas das chamadas taperas de branco e dos paredões por considerarem as ruínas como um lugar desolado onde seres sobrenaturais se manifestam visivelmente. Através de ruídos estranhos, como o arrastar de correntes, sons de açoites, choro aflitivo de crianças e imagens fantasmagóricas, eles apareceriam nas horas de pouca luz e, principalmente, à noite. São considerados espíritos dos que já faleceram, que retornam para "atentar". Os moradores utilizam o termo visagens para designá-los e os consideram como podendo fazer o mal. Laís Mourão, que estudou mais detidamente esses fenômenos, na região entre Bequimão e Alcântara, considera que essas visagens, também chamadas vagantes ou assombrações, são atribuídas a espíritos ou "gente que morre e não vai pra bom lugar porque não presta, deixou alguma falta ou pecado para pagar". (Mourão Sá, 1974:21). Nesse contexto, sempre associado às violências praticadas contra escravos, registrei repetidas referências a Ana Jansen que, nas narrativas populares do Maranhão, representa o símbolo dos maus tratos e das crueldades senhoriais contra escravos28. Considerei-as, porquanto os contos populares são também documentos históricos (Darnton, 1996:26) e constituem matéria-prima de investigações antropológicas. 82 Alfredo Wagner Berno de Almeida As taperas de branco constituem um domínio de transgressões onde as visagens atentariam as pessoas para praticarem atos que violem as regras de convívio social, tais como: matar, roubar, destruir. Próximo a elas estaria o chamado sumidouro, do qual os entrevistados não apreciam falar. Trata-se de um instrumento de justiça privada, ao qual são referidas crônicas de horrores. Citam, entre outros, um que havia em Cujupe, outro na sede do município em Alcântara, ao lado da Prefeitura, e ainda outros em Esperança29 e no Engenho São Maurício. Quando os mencionam, fazem uso de meias-palavras, quase baixando o tom de voz e deixando nos desvãos das entrelinhas possíveis explicações aduzidas pelos interlocutores. U. – "Do outro lado lá tem o resto do sumidouro. Matava, malandro tá lá. Essas casas tudinho tinha sumidouro na antiguidade, todo tinha sumidouro. A. – E o que era este sumidouro? U. – É um paredão medonho, feito quase um buraco com tampão, que a boca tem essa cava, tá vendo? (Faz um gesto de concha com as mãos). A. – E lá no fundo é água? U. – É não senhor, é seco. A. – Mas havia alguma coisa lá no fundo? U. – Não, só apodrece alguma coisa não é. Aí levava até lá,quando chegava um tempo tirava a boca, tirava aqueles ossos e botava fogo. É assim que era." (U.A. S.- 19/ 04/2002 - ENT.18) As visagens fazem com que todas essas estórias sejam revividas. Trazem-nas com seus horrores e inquietações.Todas as características atribuídas à figura do diabo, num plano mais global (Mourão, 1974), estariam ali manifestas, inclusive aquelas que acenam com riqueza fácil. Sim, todas as ruínas acham-se também envoltas em estórias de tesouros enterrados, buracos feitos ao pé de grandes árvores, potes cheios de ouro a serem descobertos, algibeiras com moedas reluzentes, caixas de jóias enfiadas nos paredões, arcas e baús repletos de prata, escondidos sob o piso. Em outros termos, tudo aquilo que teria sido obtido de modo escuso e que os brancos teriam esquecido de levar na pressa da partida. O esquecimento já é narrado como uma espécie de punição. Os entrevistados pontuam que o meio de recordar os atos sigilosos e de descobrir os esconderijos vem através de uma forma inesperada, involuntária como a revelação em sonho. Quem se empenha em querer descobrir de maneira intencional não logra êxito, dizem ainda os entrevistados. O merecimento é inerente à qualidade da pessoa e não às habilidades e à sofisticação dos instrumentos para escavar e desvendar esconderijos. Nessas narrativas, quem quer e procura não acha: "Tinha dois paus de arqueiro em frente assim da porta, que a porta era esta (risca com o pataxo uma figura no chão batido da casa, indicandome a posição relativa da porta). Tinha mesmo dois paus de arqueiro, não tem mais. E bem encostado da parede tinha um do lado de fora, e tava lá, aquele pé de árvore, que eu não sei como foi aquilo ele botou 83 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 uma raiz e passou para dentro da sala velha do engenho e a raiz era de muita grossura. Eu fui lá, olhei, observei. Então aquilo foi pra dentro da casa, pra dentro da sala, mas só que dentro da sala tinha uma mangueira dessa grossura maior. Tinha não, tem. E a raiz entrava, tem uma raiz que indicava, aquela raiz. Debaixo daquela raiz tinha um cofre que tinha muito ouro, muito ouro. Essa notícia vem de longe." (V. 18/04/2002 - ENT.14) "...eles entraram assim para dentro do paredão, meteram o facão assim, comprido. Ele pegou numa pedra no fundo. Eles bateram o facão assim, aquilo falava... eles ficaram com medo e vieram embora, nunca mais foram lá. Aí ficou passando esta informação. O C. disse: Que nada! Isto tem ouro, ouro se tira com máquina, a máquina vai levando tudo. Foi e derrubou pedaço do muro que tinha. Nada. Mas não era para ele." (M. 18/04/2002 - ENT.14.1) Os episódios narrados, aparentemente seriam mais um capítulo da contradição entre os escravos e os senhores. No entanto, no universo das representações religiosas dos membros dessas comunidades remanescentes de quilombo, diferentemente de um prisma cristão ou de uma mera oposição entre o bem e o mal, entre o positivo e o negativo, entre a ambição por riqueza e o desprendimento, entre a virtude e o pecado, haveria uma ambigüidade nessas categorias, na qual as situações e pessoas só são definidas como boas ou más contextualmente, existindo uma reversibilidade entre o bem e o mal (Mourão, 1974). As ruínas, desse modo, mostram-se sujeitas a representações diametralmente opostas, mas que não são vividas como contraditórias pelos membros das comunidades em questão. A suposta incoerência só seria construída por intermédio de uma posição etnocêntrica, de quem se encontra fora da dinâmica desse processo de transformação social. Os moradores dos povoados temem os lugares visagentos, mas convivem com eles, posto que fazem parte de seu sistema de representações religiosas e, por extensão, de sua cultura e de seu patrimônio imaterial. Sob essa dimensão das ambigüidades e suas variações, conforme os contextos, haveria um outro ponto de convergência entre as ruínas e os lugares onde se escondiam os escravos fugidos em Alcântara, que recebem localmente a designação de toca e correspondem inteiramente ao significado de quilombo. As representações mágicas permitem associar situações que tanto relativizam quanto podem estreitar os vínculos entre os opostos simétricos. Está em jogo, mais uma vez, a mencionada reversibilidade: "Belém era do Sr.Marçal, lá que os escravos se escondiam. A toca era o lugar dos que fugiam e era o lugar dos encantados também. Lá eu não passava depois de seis horas. Muita gente dizia que aparecia um prato cheio de ouro. Era uma mina de ouro dos escravos, hoje são os paredões. No rio de Bonos Ares muita gente viu cavalo de ouro, cachorro cheio de ouro..." (J.S.-23/04/2002-ENT.26) 84 Alfredo Wagner Berno de Almeida As narrativas míticas dos quilombos e das ruínas mantêm aproximações que não são apenas simbólicas e religiosas, uma vez que podem ser traduzidas em medidas delimitadoras de espaços simultaneamente históricos e sagrados, de todo modo essenciais para a construção de uma identidade étnica. Nada há de estranho, por conseguinte, no fato de as comunidades se mobilizarem para que as ruínas não sejam destruídas. Em verdade, as ruínas enfeixam um conjunto de símbolos diferenciados. Nesse contexto, que compreende os elementos relativos à identidade, as comunidades atuam para defender a preservação das ruínas e inibir os transgressores que, destruindo-as, destroem também um componente da memória do grupo. "...bem ali é São Maurício que é a terra que domina todas estas terras aqui, que estas terras são tudo nominada a fazenda São Maurício. Mas lá até casa de engenho lá era usina São Maurício. Bem ali, pouco tempo depois passou a estrada, desmancharam o paredão, levaram pedras para construir casa em Bequimão, mas tinha ruínas lá até dez anos atrás aí no São Maurício e aqui na Cajuiba, outro povoado logo depois,mais pra dentro...também era casa de fazenda,lá ainda tem ruína, os pedregulhos ainda estão lá."(G.X. 19/04/2002 - ENT.16) "...chegou na hora tinha justamente um paredão também que eu acho que era uma coisa assim antigo, onde tinha essas coisas assim, e justamente aqui gente tirou, vendeu as pedras antigas, esbandalhou."(R.P.19/04/2002 - ENT- 19) Sobretudo, nas últimas duas décadas, diante das tensões e conflitos com a implantação da base de lançamento de foguetes, os moradores dos povoados têm passado a perceber as ruínas como provas indubitáveis da ancianidade de sua presença. Falam abertamente das depredações, citando os infratores30. Esboçam uma defesa oral em face da forte pressão dos comerciantes de pedras para a construção civil e dos demais predadores, que pode ser indicativa de um corolário dessa forma de percepção histórica, que está ganhando corpo no contexto dos antagonismos que ameaçam sua reprodução física e social. Mostram-se como artífices de uma forma de defesa das ruínas que explicita um fator de etnicidade ou o sentimento positivo de pertencimento a um patrimônio cultural determinado, que está sendo socialmente reconstruído e conservado por eles. A dispersão das ruínas pelo município de Alcântara faz com que estejam referidas a mais de uma centena de povoados, constituindo-se num dos planos de interrelações entre eles. Nos dois quadros demonstrativos apresentados, são citados nominalmente 45 povoados como diretamente referidos às ruínas. Como os povoados se sucedem a pequenas distâncias, por vezes inferiores a dois quilômetros uns dos outros, e o itinerário para os locais de plantio e de coleta do babaçu distam um pouco mais, levando-os a transitarem pelos caminhos e trilhas que ladeiam as ruínas, tem-se que o número mais que duplica. Nesse sentido, o papel das antigas sedes de fazendas como centralizador ou ponto de convergência de percursos e vias de comunicação resulta por ser reeditado de alguma forma pela posição geográfica das ruínas e dos povoados formados em seu entorno. Elas 85 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 significam, ademais, uma similaridade de condição que aproxima os povoados e que lhes confere uma certa unidade, sobretudo quando mais de duas dezenas deles acham-se referidos às mesmíssimas ruínas, como no caso de São Maurício ou de Gerijó ou de Mutiti. Nessa ordem, elas concorrem para sedimentar a noção de territorialidade, apoiada em características vividas como comuns, senão iguais, ou que pelo menos os distinguem da mesma forma de seus antagonistas históricos. A série de ruínas propicia essa representação mais ampla, que transcende os limites de um povoado ou da comunidade local, dispondo as comunidades remanescentes de quilombo, todas elas, num quadro mais abrangente e de intensa solidariedade, semelhante a uma rede de relações sociais, que configura um aspecto fundamental do processo de territorialização. Os discursos e práticas relativos às ruínas concernem, sob esse aspecto, a uma situação de conflito social em que os moradores dos diferentes povoados afirmam de modo uníssono seu ideal de autonomia no processo produtivo, sua condição de ter o tempo livre em oposição a quaisquer atos coercitivos e sua negação dos instrumentos escravistas. Devido ao fato de sempre serem classificados como descendentes de escravos, vêem-se compelidos a uma reexplicação contínua de sua condição e a uma relação estreita com o passado e com os acontecimentos a ele referidos. A própria perícia consiste em mais uma dessas indagações com pretensão classificatória, que suscitam esse tipo de modalidade discursiva, conforme já foi assinalado anteriormente. O que importa focalizar aqui é que o sentimento mais difuso de controle sobre o que restou dos antagonistas históricos, como fato da vida cotidiana, ou seja, a existência física das ruínas, é também uma forma de presencialidade do passado que agrupa todas as diferentes comunidades em jogo. Através dela, as comunidades remanescentes de quilombo são induzidas permanentemente a marcar diferenças diante de seus antagonistas e a mobilizarem-se conjuntamente, reiterando suas premissas étnicas ou de grupo organizativo, que perpassam diferentes domínios da vida social, sejam econômicos, religiosos ou políticos. Em suma, pode-se asseverar que tais acontecimentos, que resultam nessas ruínas, e as novas formas de apropriação coletiva que simultaneamente as têm redefinido, constituem a pré-história do processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos em Alcântara. 86 O domínio "original" as terras de índio como terras de preto Do que já foi sublinhado, cabe reiterar que a característica fundamental dos pequenos produtores agrícolas, que habitam e cultivam na área declarada de utilidade pública para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara e no seu entorno, é que incorporam a terra ao processo produtivo mediante o trabalho familiar e se auto-representam de maneira distintiva. A especificidade dessa condição reside no fato de que, além da propriedade ou posse familiar, registram-se formas de apropriação comum da terra e dos recursos hídricos e florestais. A terra é representada como um recurso aberto, acessível em princípio a todas as unidades familiares, mas como um bem limitado, cujo uso comum é controlado nos planos organizativos de cada comunidade e nas interrelações entre elas. O trabalho, por sua vez, é visto como necessariamente livre, sem estar sujeito a qualquer instrumento de coerção. O acesso aos recursos é disciplinado por princípios de cunho preservacionista que, reconhecendo a fragilidade do ecossistema e a relativa escassez dos recursos, orientam o trabalho familiar nas etapas dos ciclos agrícolas e extrativos. Constatase em todos os povoados visitados a prevalência de regras de rotatividade na utilização das terras agriculturáveis. Os terrenos de cultivo são utilizados com no mínimo três anos de intervalo e sua reutilização, num novo ciclo agrícola, pode não ser feita pela mesma unidade familiar. Essas terras agriculturáveis, bem como os igarapés, os manguezais, os babaçuais, os juçarais, as pastagens naturais e as frutas silvestres, que ladeiam o cordão arenoso das praias, são vistos por eles como bens não sujeitos à apropriação individual em caráter permanente e a sua ocupação e coleta obedecem a um conjunto de regras, consoante um patrimônio cultural determinado que prevê formas peculiares de utilização. Assim, desbastam os cocais, evitando destruí-los, ao procederem à queima dos restos vegetais nos terrenos preparados para plantio, do mesmo modo que evitam colocar tais plantios junto às margens dos igarapés e dos demais cursos d'água. Utilizam parcimoniosamente as reservas de mato dos povoados, inibindo o desperdício e permitindo a retirada de madeira para construção de embarcações e de casas e a retiradas de palha para cobri-las, bem como de mastros para festas religiosas e de variadas ervas e plantas arbustivas com propriedades medicinais e para uso cerimonial ou em rituais de cura. Por meio da cooperação simples entre as unidades familiares, limpam regularmente as trilhas e caminhos que ligam os povoados uns aos outros, limpam os chamados sítios ou centros de povoados, assim como os poços e aguadas próximos. Conforme já foi assinalado, essas formas de uso combinam a apropriação privada com o usufruto comum dos recursos naturais. As benfeitorias produtos do trabalho familiar, como as edificações para moradia, os pomares e os diferentes cultivos, agrupados Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 sob a designação de roça, são apropriados e pertencem às unidades familiares que os produziram. As transações mercantis envolvem apenas os produtos do trabalho agrícola, do extrativismo, da caça, da pesca, da criação de gado para abate e das peças de artesanato feitas com palha (cofos, abanos, piaçabas, meaçabas, cestos, tipitis), madeira (para esteio das casas), barro (utensílios de cerâmica) e fios de algodão (redes), além do carvão produzido com os restos vegetais dos terrenos de plantio. Os estoques de terras, correspondentes aos povoados, são mantidos indivisos e de uso comum, baseados no consenso sobre os limites e direitos do conjunto de famílias e de cada uma delas individualmente. Tais características têm seus fundamentos mais nas interrelações do que propriamente na formação histórica das territorialidades específicas, que compreendem as chamadas terras de preto, as terras de caboclo, as terras de santo e demais variações anteriormente citadas. Não obstante as diferentes trajetórias, segundo as quais se constituíram, destaca-se o uso comum como uma invariante que vai passando por transformações consoante as relações que os agentes sociais referidos a tais territorialidades vão estabelecendo entre si, entre suas comunidades e destas com as igrejas e com o Estado. Semelhantes trajetórias, cujos primórdios são múltiplos e temporalmente distintos, podem ser descritas a partir da desagregação dos empreendimentos das ordens religiosas, entre 1758 e 1821, das fazendas de algodão, entre 1778 e 1819, dos engenhos de açúcar, entre 1870-1882, e dos conflitos sociais dela derivados. Todas elas foram convergindo, pelo conflito constante com os chamados brancos e pelas interligações estreitas que foram se estabelecendo entre os povoados tributários de cada uma delas, para um mesmo território étnico. Tal convergência se deu de modo desigual e vário. Todavia, diluiu, em certa medida, a força contrastante dos traços distintivos de uns em relação aos outros. Enquanto as chamadas terras de santo possuem uma periodicidade bem circunscrita, as denominadas terras de preto se dispersam por vários períodos se formando antes e durante a desagregação sucessiva dos empreendimentos das ordens religiosas, das fazendas de algodão e dos engenhos de açúcar. Essas territorialidades convergentes não se agregam por adição nem constituem um território pela soma das extensões geográficas que porventura lhes correspondam. Elas se interpenetram em diferentes planos da vida social – religioso, econômico, políticoorganizativo – e os recursos naturais que lhes são referentes podem pertencer simultaneamente a mais de uma delas. As territorialidades recebem a denominação e são conhecidas pela auto-atribuição dos agentes sociais que lhes são diretamente referidos, no que concerne, por exemplo, às categorias pretos e caboclos. As representações que os agentes sociais dão a si mesmos expressam seu pertencimento simultâneo a um grupo e a uma territorialidade específica. A expressão terra de preto refere-se ao mesmo tempo a uma forma de produzir, a um espaço social e político e a uma identidade étnica. As situações sociais, objeto desta perícia, oferecem uma diversidade suficientemente grande de territorialidades específicas em que a identidade étnica se encontra adequadamente circunscrita. Nesse sentido, elas transcendem ao recurso básico, a terra, e não se configuram necessariamente enquanto "territorialidades vizinhas", uma vez que se distinguem e se entrelaçam simultaneamente, não se constituindo cada uma delas num todo auto-suficiente. Os planos sociais interpenetrantes consistem numa condição essencial de sua persistência. Em virtude disso, essas territorialidades não podem ser reduzidas à maneira usual e 88 Alfredo Wagner Berno de Almeida individualizante de pensarmos um imóvel rural e seus confrontantes, ou seja, não se restringem a um problema agrário. Por outro lado, o território étnico para o qual confluem pode ser estritamente delimitado e há uma representação espacial através da qual os agentes sociais marcam suas fronteiras físicas. A construção social do território étnico pressupõe interrelações entre os povoados concernentes a essas territorialidades específicas, descrevendo uma dinâmica de relações sociais que recusa desde o ponto de origem o isolamento ou a insularidade como forma de manter a persistência das fronteiras. Os depoimentos coletados no decorrer dos trabalhos de perícia permitem observar, antes de tudo, que o domínio "original" das terras está associado a relações sociais e históricas e a uma identidade étnica construída de maneira plural, que transcende a qualquer traço racial e que se expressa num plano organizativo1. Para os instrumentos mais recentes de investigação antropológica, a identificação de grupos étnicos não implica em relacionar caracteres biológicos predominantes transmitidos por via hereditária, tampouco implica em verificar quais seriam os meios linguísticos intrínsecos, ou em procurar obstinadamente sinais e diferenças físicas ou, ainda, em catalogar auto-evidências históricas. Ao contrário, trata-se de perceber como interagem socialmente e se organizam para manter as fronteiras que os distinguem enquanto grupo. Nesse caso de Alcântara, a manutenção de fronteiras étnicas por mais de dois séculos indica a afirmação de diferenças culturais persistentes e de elementos de identidade étnica e regional bastante consolidados. Através da organização e do conflito, os agentes sociais constróem o seu pertencimento à rede de relações que estrutura o povoado, elegendo os vínculos com antecessores de autoridade irrefutável, que lhes asseguram legitimidade e dos quais todos acreditam e se vêem de fato como descendentes. Em segundo lugar, a noção de dominialidade e de controle da terra que adotam implica em admitir os recursos como concomitantemente abertos e limitados, sem serem propriedade individual num sentido estrito. A aquisição da terra, como justificativa de garantir o uso aberto, é representada de maneira positiva sob a designação terra de herdeiros, e reforça laços de coesão social e políticoorganizativos como soa ser em Baixa Grande, em São Raimundo, em Itapuaua e em Santo Inácio. As lideranças, referidas a estas situações sociais, não se restringem aos limites dos povoado, transcendendo-os na defesa de um território determinado. Em contrapartida, a aquisição de terra, como justificativa de uso individual, e os mecanismos repressivos da força de trabalho, que justificariam a individualização dos pretensos "donos da terra", são vistos como ilegítimos e constituindo usurpação de direitos que, a qualquer tempo, impõem instrumentos de subordinação do trabalho, vividos como "escravidão" e que acarretam as "tocas" e os "esconderijos", que podem ser lidos como resistência, mas também como a imposição da invisibilidade social dos quilombos. "Alcântara sempre eu dizia que era terra dos índios, aí nós tivemos este conhecimento, diz que tinha sido encontrado documento de que as terras era dos negros e não foi vendida para ninguém, só que de lá pra cá os ricos criaram, apareceram donos os ricos. Você não viu aquela luta do Frechal. Defenderam aquela pedra, tava escrito em cima; terra de preto. Os índios e os negros... diga. E o negro vem da família dos índios, não é isto?"(I.O.16/04/2002 - ENT.12 ) 89 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 "As terras de Alcântara era de preto e por prova que Alcântara era terra de índio, quer dizer, não existia dono de terra, dono de terra cresceu que os ricos foram reconhecendo, achando que eles eram os poderosos, aí foram comprando e os pobres foram entrando na taca. Aí a princesa Isabel fez aquela libertação e hoje ainda tem pessoas que não reconhece que ele está liberto no Brasil e ele está sempre se escondendo, não é?" (I.O. 16/4/2002 - ENT.12) Os entrevistados não dissociam pretos e índios, no contexto de legitimação do domínio da terra e em oposição àqueles que são definidos como usurpando seus territórios. Utilizam essa forma complexa de classificação étnica para afirmar o livre acesso aos recursos básicos e se distinguirem de potenciais antagonistas, que são sempre caracterizados como brancos e fazendo uso de instrumentos de castigos corporais, como a citada taca2. A categoria terra de preto, configurada como terra de índio, é vivida pelos entrevistados como um direito originário, que prescinde de reconhecimento, porquanto seria um ato redundante declarar o que já existe. Ao traçarem uma linha transversal de parentesco, em que descendem de um tronco comum, isto é, a "família dos índios", os entrevistados representam sua posição diante dos empreendimentos do CLA, como um direito preexistente. O que se transmite de geração a geração é o poder de uso dos recursos naturais, numa situação em que a dominialidade é auto-evidente. Afinal, a sua territorialidade de referência primeira, sendo a mesma dos índios, considerados seus ascendentes, ultrapassa quaisquer tentativas precisas de datação. É apresentada como imemorial, já que se encontravam ali quando os colonizadores aportaram. Delineiam, pois, duas características de sua condição: a sua temporalidade é aparentemente atemporal, posto que imemorial, enquanto sua espacialidade é social e extremamente dinâmica acompanhando a potencialidade dos recursos naturais disponíveis às práticas de uso comum. O fato de se verem como descendentes dos índios e assim se apresentarem manifesta também a vigência do princípio de que nessa descendência não se partilha a terra, mas se transmite o direito de usá-la permanentemente, segundo as normas acatadas pelos diferentes grupos. A terra é, pois, um legado comum e quem o recebe assume o compromisso de assim mantê-lo, fazendo com que seja revestido com a categoria de sua própria auto-atribuição. Por isso é que onde aparentemente se imagina uma separação, em verdade há uma junção que é o princípio que organiza a diferença entre as territorialidades e os respectivos agentes sociais. A atualidade dessa forma de classificação revela o fundamento histórico de uma expectativa de direito e a persistência de uma identidade étnica específica, tanto quanto expressa um sentido diametralmente oposto às disposições coloniais da "governação" pombalina. A documentação histórica oficial, até a metade do século XVIII, evidencia que os índios recebiam, no período colonial, a designação de negros e também assim se auto-designavam. Entretanto, isso veio a ser expressamente proibido pelo Directorio3 pombalino, cujo artigo décimo estabelece uma separação formal entre essas duas designações mencionadas. Senão, vejamos: "Entre os lastimosos princípios, e perniciosos abusos, de que tem resultado nos Índios o abatimento ponderado, é sem dúvida um deles a injusta e escandalosa introdução de lhes chamarem Negros; querendo 90 Alfredo Wagner Berno de Almeida talvez, com a infâmia, e vileza deste nome persuadir-lhes, que a natureza os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se imagina a respeito dos Pretos da Costa da África.; E porque, além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios este abominável abufo, seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar isentos de toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo emprego honorífico. Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma chame Negros aos Índios, nem que eles mesmo usem entre si deste nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles, que lhes não compete a vileza do mesmo nome, possam conceber aquelas nobres idéias, que naturalmente infundem aos homens a estimação e a honra." (Directorio...,1758:5-6) (g.n.). A estratégia pombalina de separar nominalmente índios e pretos foi efetivamente contrariada no tempo por um processo de resistência que parece ter conseguido eficácia justamente nas práticas de agrupamento e de aproximação, tanto quanto na designação das territorialidades. Mantendo a recusa à dissociação, os entrevistados expressam uma convergência, em termos de identidade étnica. As diferentes vias de acesso à terra são aproximadas na narrativa dos entrevistados, delineando a pluralidade de situações coextensiva à construção social do território. São elas que não permitem distinguir com exatidão as chamadas terras de índio daquelas nomeadas como terras de preto, ou estas das denominadas terras de santo, ou ainda, como no caso de São João de Cortes, entre as primeiras e as últimas. Consoante as narrativas, os índios em São João de Cortes teriam ido embora e transmitido suas terras para o santo protetor do povoado, São João Batista, que por sua vez abrigava os escravos fugidos. As narrativas míticas entrelaçam o que a legislação colonial queria separar pela força e manifestam o quanto hoje esse entrelaçamento é indissociável da construção do território das comunidades remanescentes de quilombo. As formas intrínsecas de classificação das territorialidades, produzidas a partir da própria autodefinição dos agentes sociais, que se apresentam como pretos, contradizem a classificação externa imposta pelas autoridades coloniais, que chamavam a si o poder de definir o que os outros deveriam ser. As terras de preto e as terras de cabloclo: a construção do território pelos fatores estigmatizantes Outra dissociação produzida no período pombalino concerne ao Alvará de Lei de 04 de abril de 1755, antes da própria criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, que visando uma estratégia de povoamento da colônia declara que os vassalos do rei de Portugal "que casassem com as índias desta (colônia), não ficariam com infâmia alguma, muito pelo contrário, o mesmo aplicando às portuguesas que casassem com índios, proibindo-se que tais vassalos ou seus descendentes fossem tratados com o nome de ‘cabouclos’ " . (Falcon, 1982:397) (g.n.) 91 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Essa interpretação favorável aos índios teve como corolário a conhecida "Lei das Liberdades dos Indios", de 06 de junho de 1755, que aboliu a escravatura indígena, na mesma data em que foi intensificada, pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, a formação de fazendas a partir de doações régias e de incentivos para introdução de escravos africanos. Com essas medidas, Pombal possibilitou condições para que posteriormente fossem expedidos registros de cartas de datas e de sesmarias em nome dos índios4. Ao fazê-lo, privilegiou os índios e instituiu, ao mesmo tempo, legalmente, uma visão estimagtizante dos pretos5 e dos caboclos, fazendo constar da documentação, de maneira explícita, os atributos definidores dessas denominações, todoseles ignominiosos, a saber : "vileza", "infâmia" e desonra. Na lógica dos administradores coloniais, importava separar uns dos outros com objetivos de povoamento, ou de enfraquecer as ordens religiosas, ou de reorganizar a força de trabalho necessária para implantação dos grandes estabelecimentos agrícolas de produtos tropicais. Com a célere desagregação das fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, resultando na formação daquelas territorialidades e de seus respectivos povoados, as dissociações instituídas por Pombal ficaram, entretanto, no papel. As chamadas terras de índio tornaram-se uma referência de origem para todos os povoados, porquanto somente elas usufruíam de reconhecimento formal naquela derradeira quadra do período colonial. Enquanto as fazendas tiveram duração efêmera em Alcântara, as categorias estigmatizadas, quais sejam pretos e caboclos, aí se cristalizaram, sendo assumidas abertamente na denominação das territorialidades específicas, que foram sendo historicamente construídas. Invertendo o sinal negativo, que oficialmente as contrapunha ao Estado e que as destituía de qualquer direito, passaram a assumir num sentido afirmativo as denominações estigmatizadas, batizando com elas suas próprias territorialidades. O que era considerado "infâmia", desonra e "vileza" pelas autoridades coloniais, tornou-se atributo de autodefinição dos agentes sociais e de seu território. No processo de territorialização em pauta, essa é uma característica determinante das chamadas terras de preto e das denominadas terras de caboclo, que não se encontravam amparadas por qualquer instrumento jurídico-formal, diferentemente das intituladas terras de índio, terras de santo, terras da pobreza e daquelas das irmandades religiosas. As duas modalidades aqui destacadas, para efeito de explicação, tanto significaram uma modalidade de negação das fazendas, por intermédio de uma autonomia produtiva intrínseca aos processos de aquilombamento, quanto a afirmação étnica de uma identidade. A persistência dessas categorias de autodefinição em confronto manifesto com as determinações régias, mais que uma luta simbólica, expressa uma resistência que se mantém atualizada em Alcântara, onde foram localizados, durante o trabalho de campo pericial, mais de cem povoados, interagindo social e economicamente, cobertos por essas mesmas designações. Por outro lado, observa-se, nos estudos que privilegiaram o fenômeno da caboclização (Wagley,1953 e Galvão,1957), uma leitura do cotidiano da vida social dos povoados da antiga região do Grão-Pará e Maranhão segundo uma dicotomia preto/ caboclo como vetor que orienta distinções auto-evidentes, amparadas em critérios raciais e na cor da pele. Certamente que tal oposição pode ser verificada empiricamente, é verossímil, ou seja, é o que parece não contrariar a verdade. A investigação científica, no entanto, para 92 Alfredo Wagner Berno de Almeida além dos fenômenos aparentes, não faz dessa dicotomização um padrão de explicação das relações sociais subjacentes ao processo de territorialização, tratando-a no contexto de choques de interesses mais amplos. O trabalho pericial, sem tornar objetivas as auto-evidências, permitiu verificar que em Alcântara há planos de oposição que deixaram de ser diferenciais no tempo. Num primeiro momento, a designação caboclo sugere uma aproximação com a definição considerada legítima, ou seja, branco e, por conseguinte, um afastamento de tudo que possa reforçar ligações e analogias com escravos6. A própria denominação centenária dos povoados delimitava espaços socialmente distintos, tais como Santana dos Caboclos,localizado nas chamadas terras de santíssima, e Santana dos Pretos, na ilha do Cajual, em terras de antigo engenho. Tais divisões eram vividas muitas vezes como posições excludentes, como nos relatos dos entrevistados em que os caboclos de Peroba de Cima não autorizavam que os pretos de Ladeira e de Samucangaua entrassem nas suas festas para dançar ou nos casos em que os caboclos do Cujupe não permitiam que suas filhas casassem com os pretos dos povoados vizinhos. Cantanhede destaca que, para os moradores de Ladeira, aqueles de Terra Mole, Peroba e Prainha são classificados como "família de caboco" (Cantanhede, 1998:7) (sic) em oposição a Aririzal (Iririrzal), Baixa Grande, Samucangaua e Ladeira, que são vistos como "família de preto". A despeito dessas divisões em duas metades, que por vezes perpassavam os povoados por dentro, como em Oitiua e em São João de Cortes, verifica-se um sentido afirmativo, quando os relatos confirmam que uns e outros sempre se mantiveram interligados, valendo-se dos recursos naturais comuns e de práticas de cooperação simples no processo produtivo e na circulação de produtos agrícolas e extrativos. Isso é tanto mais verdadeiro quando se compulsa a documentação relativa a foreiros em terras das antigas ordens religiosas e percebe-se que as categorias preto e caboclo funcionavam quase transitivamente no processo de produção e nas relações contratuais com as divindades. Em ambas situações, verificam-se famílias cujos filhos foram dedicados à santa pelo batismo. Pela madrinha, todos se tornavam "parentes" ou se ligavam por afinidade, reforçando a idéia dos povoados enquanto "entidades afetivas" (Prado, 1974:64). A trajetória dos chamados caboclos era a mesma descrita pelos chamados pretos, que insistiam em manter uma autonomia no processo produtivo, mobilizando-se para não ficarem subordinados aos chamados brancos. A expressão "índios alforriados vadios", registrada entre 1751 e 1759, na correspondência do governador e capitão-geral do GrãoPará e Maranhão para Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro Marquês de Pombal, aproximava-os igualmente como à margem da disciplina do trabalho e numa situação correlata ao aquilombamento. A dimensão organizativa, que articulava todos esses agentes sociais, intrafamiliarmente e entre famílias, inibiu as divisões e impeliu as metades, em face dos antagonismos continuados com o Estado, para uma convergência em um só grupo social. Desse modo, a perseguição aos quilombos entre 1834 e 1878 não parece ter logrado desorganizar o sistema de trocas estabelecido entre caboclos e pretos, entre quilombolas e comerciantes ou entre moradores das denominadas terras de santo, dos patrimônios das irmandades e dos quilombos. Os instrumentos repressivos das fazendas de algodãoestavam debilitados em demasia para fazer vigir as dissociações, que desde seu nascedouro dependiam de mecanismos de coerção. No seio da sociedade escravista, 93 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 moldou-se uma organização social distinta, segmentada e com partes diferenciadas, mas mantidas de maneira indissociável naquelas territorialidades mencionadas. O grau de contrastividade entre elas atenuou-se ante a pressão de um antagonista maior, os chamados brancos, cujo sentido indica posição dominante que, além de exprimir discriminações sobre pretos e caboclos, sempre buscava pela força das armas recuperar uma posição de mando que tinha sido irremediavelmente perdida no plano econômico. A ausência dos senhores seguramente fortaleceu isso, do mesmo modo que gravou como adágio na memória local o dito tornado sentença: "os brancos foram embora e não voltaram nunca mais"(A.M. 18/04/2002 ENT.15). Não terem voltado a Alcântara jamais, é o que se constata quase dois séculos e meio depois das decisões pombalinas. Esses embates, conflitos e ameaças de eterno retorno marcam as tensões do processo de territorialização em curso. A autonomia de decisão sobre o que produzir, como, onde e quando, lançando mão de que recursos naturais, aproxima pretos e caboclos, fixa um estilo de vida que tem na denominada roça sua viga mestra e chega a absorver os prepostos dos proprietários absenteístas. Produzir e reproduzir esse sistema, mantendo uma vida social há pelo menos dez gerações nas terras das ordens religiosas, ou sete nas antigas fazendas de algodão, ou quase cinco gerações nos antigos engenhos de açúcar, sem subordinação a terceiros, significa a consolidação, em datas diferentes, daquelas diversas territorialidades mencionadas e, por extensão, do território das comunidades remanescentes de quilombo. Como resultante de mobilizações sucessivas, cada uma de suas partes foi se constituindo e abrigando a outra, como no caso das terras de índios tornadas terras de santo, segundo doações míticas, que, por sua vez, acolhiam escravos fugidos, servindolhes de degrau na construção de um patamar de autonomia e de trabalho livre designado como terras de preto. O grau de distinção entre elas parece tender a diminuir quando os chamados caboclos, de povoados como Janã, Peroba de Baixo e Murari, entre outros, aparecem atingidos pelos mesmos dispositivos jurídicos que afetam os demais agentes sociais: deslocamentos compulsórios, indenizações e "transferências e assentamentos". A ação do Estado nivela e homogeneiza os diferentes agrupamentos sociais ao submetê-los em conjunto. A imposição da área decretada para instalação da base de lançamento de foguetes resulta, nesse sentido, por aproximar o que o regimento colonial insistia em separar. Os denominados caboclos, hoje, tanto são aproximados quanto se aproximam da categoria preto, nutrindo inclusive comentários jocosos, tal como registrado em Peroba de Cima, onde um entrevistado ponderava que todos são descendentes de escravos sim, mas agora "todo mundo está querendo ser preto" (V.R. 14/04/2002 - ENT.5.1). Há vantagens simbólicas aparentes, sobretudo porquanto no caso dos chamados caboclos não se registra uma categoria de existência coletiva traduzida por um movimento social dos caboclos, diferentemente do caso dos pretos, que usufruem inclusive da categoria negro para simbolizar uma ação política maior. As relações de estreitamento entre essas categorias de auto-atribuição manifestam-se no âmbito político-organizativo e nas mobilizações étnicas que, invertendo os atributos estigmatizantes, defendem uma certa maneira de existir socialmente. Sob esse aspecto é que elas convergem para um mesmo território. A interlocucão entre as categorias 94 Alfredo Wagner Berno de Almeida remete a diferentes planos de abstração, que não representam obstáculos intransponíveis para uma aproximação entre elas. Certamente que essa aproximação se dá, no momento atual, sob uma ação circunstancialmente hegemônica dos chamados pretos. O próprio peso relativo das denominadas terras de preto traduz, no momento atual, essa hegemonia. Pode-se acrescentar, por outro lado, que a categoria de representação trabalhadores rurais, que desde 1980 sintetiza o elenco de situações representadas, sinaliza para outras categorias circunstancialmente mais amplas e de mobilização mais imediata, como seria o caso dos "atingidos pela base da Aeronáutica" – que agrupa indistintamente todos os grupos sociais afetados pelos impactos derivados da implantação do CLA – e de quilombola, que expressa os fatores étnicos. O advento de uma categoria organizativa como quilombola designa, inclusive, uma entidade de representação articulada regional (Aconeruq) e nacionalmente (CNPACNRQ)7 em torno do pleito de reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo. A emergência dessas categorias de mobilização não é excludente, tanto que, a despeito de seu advento, o STTR de Alcântara mantém a condução da pauta reivindicatória e dos atos de afirmação étnica. O processo de territorialização revela uma dinâmica intrincada, sob encadeamento, que estabelece uma totalidade socialmente instituída, congregando uma diversidade de situações devidamente articuladas e uma multiplicidade de formas de representação. Em virtude disso é que se pode falar em diferenciações culturais e numa composição heterogênea do território de remanescentes de quilombo sem negar o caráter sistêmico da interligação entre os povoados. Por mais de dois séculos, portanto, a manutenção de fronteiras étnicas indica diferenças culturais persistentes em face dos instrumentos de dominação dos brancos, relativizando os sinais diacríticos e as desigualdades aparentes que distinguem os povoados entre si. Essa dinâmica de afirmação étnica, relativizando diferenças auto-evidentes e congregando representações plurais, consiste num fator essencial da construção do território das comunidades remanescentes de quilombo. Da capitania de Cumã às sesmarias: a formação das fazendas Antes mesmo das grandes transformações empreendidas pelo regime pombalino, entre 1755 e 1758, a Coroa portuguesa promulgou uma medida específica concernente a Alcântara. Por meio da Carta Régia de 1º de julho de 1754, determinou que retornassem à administração real as terras da capitania de Cumã, que haviam sido doadas originalmente ao donatário Antonio Coelho de Carvalho8, em 1624, e confirmadas respectivamente em 1639 e 1646. Um dos centros de poder dessa capitania localizava-se em Alcântara, cujo reconhecimento oficial como vila data de 22 de dezembro de 1648, sob a invocação do Apóstolo São Matias. A vila contava então com 300 moradores e já estavam erguidos os primeiros engenhos de cana-de-açúcar com moendas de madeira movidas à tração animal. Essas terras, em 1754, já haviam sido transmitidas a pelo menos três gerações da família Coelho de Carvalho, em linha masculina, e oficialmente reconhecidas. Com a extinção da doação, elas reverteram ao poder real e foi acordada uma permuta com a família dos donatários, que recebeu terras em Portugal. 95 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Entre 1624 e 1754, portanto, as terras de Alcântara foram transmitidas em sucessão pela família Coelho de Carvalho e confirmadas pelo poder real, perfazendo um período de 130 anos de registros de dominialidade garantidos pela administração colonial. Inclusive, em 02 de junho de 1742, foi instituído por carta de data e sesmaria firmada pelo donatário Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho o patrimônio da Câmara de Alcântara, correspondendo a uma légua de terras9. Esse neto do primeiro donatário havia requerido, então, comenda de uma das três ordens militares do reino (Cristo, Avis e Santiago). Com foro de fidalgo da Casa Real, foi agraciado com a comenda da Ordem de Cristo, pela qual pagou 300 mil réis (Nizza da Silva, 2005:86). O coronel B. Pereira do Lago, em 1820, registra a retomada dessas terras pelo poder real, cujo ato corresponde ao fim do primeiro período da cadeia dominial de uma vasta área, que abrange hoje o município de Alcântara: "Foi seu primeiro donatário o desembargador Antonio Coelho de Carvalho, a quem, segundo o alvará de 19 de março de 1624, se concederam 50 léguas de costa, desde a baía do Cuman até o Rio Pindaré, ou o que se achasse norte-sul; depois foi confirmado em 15 de março de 1639, concedendo-se-lhe mais 16 léguas e tornando tudo a ser confirmado em 10 de janeiro de 1646. Depois, pelo mesmo donatário, foi criada vila, em 22 de dezembro de 1648. Em 2 de novembro de 1722, foram as mesmas terras já com título de Capitania de Cuman, dadas a Antonio d'Albuquerque Coelho de Carvalho, que ainda passaram a seu filho Francisco d'Albuquerque Coelho de Carvalho, até que, por Carta Régia de 1 de julho de 1754, se extinguiu aquela doação, recompensou o donatário com terras em Portugal, e daquelas tomou posse, em nome da Coroa, o ouvidor Manoel Sarmento, que então era do Maranhão." (Pereira do Lago, 2001:35).10 Uma vez revertido efetivamente ao poder real, pelo ato de apossamento do governador da capitania do Maranhão Gonçalo Pereira Lobato e Souza, que se dirigiu a Alcântara em companhia do ouvidor geral (Lopes,1957:143), o estoque de terras correspondente à antiga capitania foi disponibilizado para as medidas político-administrativas da governação pombalina. Combinando os bens do Estado dinástico com recursos de empreendimento privados, tais medidas, de igual modo que nos demais domínios do Grão-Pará e do Maranhão, propiciaram a formação de grandes estabelecimentos agrícolas também designados como "fazendas" pela documentação da burocracia e dos comentadores do período colonial. A "Lei das Liberdades dos Índios", de 06 de junho de 1755, a criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, também de junho de 1755, e as orientações do Directorio, de agosto de 1758, concorreram decisivamente para tanto. As principais fontes de exploração de recursos da Coroa portuguesa, no Grão-Pará e Maranhão, até 1755 achavam-se ancoradas no extrativismo e na coleta de especiarias, que eram controladas pelos seus empreendimentos mercantis. As madeiras de lei eram destinadas às embarcações reais, consoante as cartas de sesmarias, e os demais produtos eram comercializados pelo Estado, a saber: gengibre, cravo grosso e fino, extratos vegetais e resinas para uso em tinturas. Em São João de Cortes, localizado a noroeste da vila de Alcântara, os jesuítas 96 Alfredo Wagner Berno de Almeida dedicavam-se também à produção de anil. A produção de algodão, de cana-de-açúcar e do arroz vermelho era voltada principalmente para o autoconsumo e não tinha maior expressão comercial. Ao propiciar a formação de fazendas, o regime pombalino preconizava uma apropriação individual das terras que significasse uma ocupação efetiva em larga escala, ou seja, uma produção agrícola permanente e comercializável. Um dos primeiros passos para alcançar esses objetivos consistiu na concessão de datas e sesmarias àqueles que reunissem condições para a implantação de grandes estabelecimentos de agricultura tropical voltados para o mercado mundial ou mais exatamente para a metrópole. O benefício requeria que cada sesmeiro dispusesse de no mínimo seis escravos africanos para instalar as fazendas. A diversificação da produção, o aumento do número de produtos exportados e a escolha de produtos tropicais de elevada lucratividade completavam a ação da Companhia Geral. O algodão representava o principal produto tropical, cuja procura encontrava-se em tendência ascendente em virtude do desenvolvimento da indústria têxtil inglesa11. Com as concessões de sesmarias, foram montados estabelecimentos agrícolas dedicados à monocultura do algodão, fazendo uso massivo de escravos recrutados na África, explorando grandes extensões de terras e amparados financeiramente por créditos para aquisição de escravos e por incentivos comerciais propiciados pela Companhia Geral do Grão-Pará e do Maranhão. A Companhia, que monopolizava o comércio de escravos, concedia facilidades de pagamento do valor correspondente aos escravos num prazo de dois a três anos mediante a liquidação em gêneros (Carreira, 1988:60). Além do algodão, foi também incentivado o cultivo de arroz. A introdução de sementes de arroz da Carolina difundiu o plantio de arroz de terra firme em Alcântara e o produto foi se tornando, juntamente com a farinha, um componente básico da dieta alimentar de escravos e senhores. Como veremos no capítulo referente aos quilombos, tal decisão concorreu para manter a autonomia dos quilombolas, porquanto o arroz era de ciclo curto e de beneficiamento mais simples do que a mandioca, permitindo mobilidade e deslocamentos sucessivos dos quilombolas quando das campanhas militares desferidas contra eles. O arroz nativo, de cutícula vermelha, brotava espontaneamente e de maneira abundante, mas não tinha boa aceitação nos mercados europeus (Carreira, 1988:222), não constituindo um gênero de exportação e, em virtude disso, foi substituído pelo "arroz branco" da Carolina (Barata, 1973:309). A obrigatoriedade do plantio de arroz da Carolina do Norte, então colônia britânica, foi imposta por decreto de 29 de novembro de 1772, assinado pelo governador Mello e Póvoas, no qual o regime pombalino instituía a condenação a um ano de prisão e multa para "brancos" que plantassem o arroz vermelho, dois anos de prisão para índios e dois anos de prisão com "interpoladas surras" para escravos que fizessem o mesmo12 (Marques, 1970:92). Não obstante a repressão pombalina e as restrições de mercado, o arroz nativo ainda é muito difundido no município de Alcântara, no momento atual, e corresponde à espécie que recebe localmente a designação de "milindro". O Estado dinástico, com a criação da Companhia Geral, organiza uma forte empresa mercantil, à qual se vinculam 144 acionistas, entre nobres, oficiais do exército e da armada, autoridades eclesiásticas (padres, cônegos), grandes comerciantes e os denominados "lavradores". Entre as 1.164 ações, 29 foram adquiridas por cinco comerciantes que moravam na colônia, sendo dois deles do Maranhão detendo 15 ações, a saber: Domingos Antunes Pereira e Lourenço Belfort (Carreira,1988:75). O governador da capitania do Maranhão, 97 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Gonçalo Pereira Lobato e Souza, em 15 de julho de 1957, também adquiriu duas ações. Além de se associar com interesses privados controlando a circulação de mercadorias, o Estado se posicionava como "autoridade fiscal arrecadadora de impostos" (Falcon,1982 :155), aumentando consideravelmente sua receita. O fortalecimento do Estado através de empreendimentos mercantis monopolistas e do aumento da arrecadação articula-se com as medidas adotadas contra as ordens religiosas que controlavam parte significativa do comércio do Grão-Pará e Maranhão e que também controlavam grandes extensões de terra, inclusive em Alcântara. A política pombalina considerava que uma porção considerável das terras da colônia achava-se em poder da Igreja e de ordens, mosteiros e irmandades, bem como as atividades comerciais isentas de taxas e o controle dos índios, enquanto força de trabalho. A política do Estado dinástico, com D. José I, visava impedir que esse patrimônio crescesse indefinidamente através de novas doações de terras, de aquisições de terras e de vantagens comerciais. Daí resulta, primeiro, o confisco de terras e bens da Companhia de Jesus e a subordinação aos desígnios de um Estado absolutista das demais ordens religiosas. A abolição da escravatura indígena e a instituição do Directorio devem ser interpretados como debilitando o poder do clero sobre as terras e sobre os índios, acusando-o de monopolizar a força de trabalho indígena. À época, Alcântara consistia numa região destacada na política pombalina consoante três fatores: a) era "a melhor vila de todo o estado (do Maranhão) em comércio e riqueza de seus habitantes" (Moraes, 1860:16), conforme descrição13 do Padre José de Moraes em julho de 1759; b) aí se concentravam inúmeras ordens religiosas (jesuítas, carmelitas, mercedários e irmandades) com vastas extensões de terra e intensas atividades comerciais e de beneficiamento; c) desde fins do século XVII, com a tentativa de implantação da Companhia de Comércio do Maranhão, em 1680, registravam-se em Alcântara acirradas disputas entre as ordens religiosas e os chamados "colonos", co-extensivas à chamada Revolta de Beckman (Lisboa, 1865:181). Mesmo que haja interpretações divergentes sobre a reação dos moradores quanto à partida dos jesuítas de Alcântara, em 1760, pode-se assegurar que Pombal contava com o apoio de colonos contra os clérigos. Enquanto para Viveiros os moradores ressentiram da saída dos jesuítas, na interpretação do economista Celso Furtado: "os colonos do Maranhão eram adversários tradicionais dos jesuítas na luta pela escravização dos índios. O Marquês de Pombal apoiou-os ao criar a Companhia (Geral) de Comércio do Grão Pará e Maranhão e confiscar os bens dos jesuítas expulsando-os da colônia." (Furtado, 1975:91). A mudança da política colonial de doação de capitanias e de permissão para as ordens religiosas manterem terras e os índios produzindo em estabelecimentos isentos de 98 Alfredo Wagner Berno de Almeida taxação para a concessão de datas e sesmarias, mesmo sem alterar substancialmente o regime jurídico da propriedade da terra como prerrogativa real, fortalecia o individualismo econômico ao propiciar meios de ocupação efetiva das terras, que resultando em produção comercializável favoreciam o Estado e, concomitantemente, consolidavam os sesmeiros, que passam a receber a designação de "lavradores". O historiador econômico Caio Prado Jr. sintetiza essa transformação: "Mas é no Maranhão que o progresso da cultura algodoeira é mais interessante, porque ela parte aí do nada, de uma região pobre e inexpressiva no conjunto da colônia. O algodão lhe dará vida e a transformará, em poucos decênios, numa das mais ricas e destacadas capitanias. Deveu-se isto em particular, à Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e do Maranhão, concessionária desde 1756 do monopólio deste comércio. É ela que fornecerá créditos, escravos e ferramentas aos lavradores...."( Prado Jr.1963:144) (g.n.) Com a concessão de sesmarias e com esse tipo de apoio da Companhia Geral, foram criadas condições para a formação de uma vigorosa categoria de "lavradores", termo que passou a designar na documentação colonial os fazendeiros de algodão, os senhores de engenho e os que se dedicavam à criação de gado nos campos naturais. Distinguiase da denominação "colonos", que se referia a unidades de exploração mais modestas, sem emprego de recursos vultosos, que utilizavam principalmente força de trabalho indígena e cuja produção se voltava sobretudo para a praça de mercado local. Essas unidades produtivas dos colonos caracterizavam o período pré-pombalino, sobretudo a segunda metade do século XVIII, e sobressaíram historicamente a partir de 1680, que corresponde à data de criação da Companhia de Comércio do Maranhão14. A este tempo, Alcântara era vista como "celeiro do Maranhão" e só havia um navio por ano para transporte da produção para Portugal. A partir de 1755, com a Companhia Geral passa a haver uma frota anual e embarcações regulares no comércio de escravos. A Companhia dispunha de 42 navios de vários tipos e tonelagens (Carreira, 1988:97), sendo que 27 faziam a ligação com a costa africana. O sistema de capitanias com "colonos" escravizando índios em estabelecimentos de pequena exploração, com fazendas de ordens religiosas e com as atividades comerciais controladas pelos clérigos, que caracterizava Alcântara até 1755, é transformado radicalmente pela governação pombalina. Financiando o tráfico de escravos da África, ampliando a capacidade produtiva e vinculando, através de frotas regulares, a região ao mercado europeu, o regime pombalino cria condições de possibilidade para o advento de uma camada de "lavradores". A categoria "lavradores" passa a ser sinônima de brancos, que consiste no termo utilizado pelos entrevistados, e localmente difundido e acatado, para designar os senhores de escravos e de terras. Ela designa ademais os que se beneficiaram das concessões reais e das vantagens creditícias para se consolidar politicamente, enquanto classe dirigente no Maranhão15, a despeito do endividamento e das dificuldades em administrar as fazendas. O montante de recursos acumulado por essas famílias acha-se atrelado notadamente aos resultados do preço do algodão até 1817-19. Além do algodão em rama, 99 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 o arroz descascado, o cacau, os atanados (couros e solas), o cravo, a salsa e o açúcar completavam o quadro de exportações. Para a produção de gengibre e anil, havia isenção de direitos alfandegários. Recorde-se que em 1762 havia plantações para produção de anil em São João de Cortes. Havia também nesse povoado uma fábrica que preparava o produto para a exportação (Pereira do Lago, 2001:36). Tal exportação, que se dava inclusive com produtos em consignação, propiciou elevadas receitas aos chamados "lavradores" pelo menos até 1778, quando é extinta a Companhia Geral16. Com o fim do monopólio, consoante Carreira, "as exportações decaíram bastante" (Carreira, 1988:205) e, não obstante as vantagens propiciadas à colocação do algodão no mercado europeu, em virtude da Guerra de Independência norte-americana, o endividamento dos "lavradores" se manteve crescente. A "modificação da fisionomia étnica" "Não é só economicamente que se transforma; a mudança é mais profunda. Com o algodão vieram os escravos africanos - ou vice-versa preferivelmente; modifica-se a feição étnica da região, até então composta na sua quase totalidade, salvo a minoria de colonos brancos, de índios e seus derivados mestiços. O algodão apesar de branco, tornará preto o Maranhão." (Caio Prado Jr., 1963:144) (g.n.) "A ajuda financeira (de Pombal) permitiu a importação em grande escala de mão-de-obra africana, o que modificou totalmente a fisionomia étnica da região." (Celso Furtado, 1975:91). (g.n.)17 Segundo Nunes Dias, antes da implantação da empresa pombalina "não havia escravatura africana nas capitanias do Pará e do Maranhão" (Dias, 1970:461) e, em 20 anos, entre 1757 e 1777, "mais de 25 mil escravos foram introduzidos na região" pela Companhia Geral (Dias, 1970:465). Embora essa seja uma interpretação corrente dos estudiosos, cabe relativizá-la, já que desde o fim da segunda metade do século XVII há indicações e registros de quilombos nessa região da Baixada Maranhense em que se localiza Alcântara. Os números apurados por Carreira indicam cerca de 31 mil escravos adquiridos pela Companhia Geral em Bissau-Cacheu e em Angola, não estando incluídos aqueles que integravam as tripulações dos barcos e executavam serviços regulares para a Companhia Geral, também conhecidos como "escravos grumetes". O autor busca quantificar os escravos embarcados segundo os portos da costa africana e seus respectivos destinos. Num primeiro levantamento, no que denomina de setor Bissau-Cacheu, identifica a aquisição de 22.364 escravos, sublinhando que não foram apenas esses os escravos adquiridos: "Abatidos os 1.920 (8,1% dos comprados) falecidos nos barracões e fugidos, em Bissau e em Cacheu, e os 2.216 (10,1% dos embarcados) falecidos durante a viagem, temos 18.128 chegados ao destino, acompanhados de 40 crias." (Carreira, 1988:112). 100 Alfredo Wagner Berno de Almeida Ao considerar os 20.339 escravos que foram embarcados em Bissau, Cacheu e Serra Leoa, entre 1756 e 1789, tem-se que tiveram como destino o Maranhão 10.723 escravos, isto é, 52,7% do contingente adquirido. Desse mesmo setor, foram embarcados para o Maranhão, de 1788 a 1794, um total de 5.022 escravos. Do setor de Angola-Benguela, entre 1756 e 1758, foram embarcados, com o mesmo destino, apenas 1.944 escravos (Carreira, 122). No período imediatamente posterior, tendo como portos de embarque Luanda e Benguela, foram embarcados, também para o Maranhão , 1.024 escravos, ou seja, 15,4% do total embarcado nesse setor. Consoante Carreira, o setor de Angola não teve destaque nos negócios da Companhia Geral, cuja ação foi mais concentrada em Bissau18. Conforme já foi sublinhado, não há registros contábeis sobre idade, sexo e etnias dos escravos transportados. Carreira encontrou registros mais pormenorizados de apenas 128 escravos, "todos recebidos pela Companhia, em resultados de processos de execução por dívidas" (Carreira, 127), com documentos de proveniência, que mesclam referências étnicas com dados geográficos e de classificação com base em critérios raciais. Vejamos as referências a "etnias, regiões de origem e outras designações" (Carreira, 1988:127) arroladas por Carreira: da área sul do Equador (Angola, Bantu, Benguela, Congo e Rebolo), originários do Golfo da Guiné (Minas) e procedente da área do Senegal à Serra Leoa (Bujagós ou Bijagós, Mandingas, Nalu e Papéis). Quanto aos chamados Nohé, não se conseguiu identificar a etnia correspondente. Os demais foram classificados por critérios raciais: Cafuzo, Crioulo e Mulato. Um termo classificatório que também foi registrado na documentação refere-se à designação de Moleque. Dos 128, tem-se que 26 deles apresentavam apenas indicação de sexo. Embora não se possa precisar quantos desses escravos relativos ao Maranhão tiveram Alcântara como destino, cabe frisar ainda que não há quaisquer registros dos que adentraram pelo porto clandestino de Turiaçu, que fica localizado na mesma região geográfica de Alcântara. Provavelmente, os totais referidos ao Maranhão estariam subestimados. As fontes documentais e arquivísticas que tratam dos quilombos desde 1702 sempre enfatizam que eles se expandem do Turiaçu em direção a Alcântara ou que os escravos fugidos de Alcântara procuram as matas do Turiaçu como abrigo. Um indicador de que pode ter havido subestimação refere-se aos registros oficiais de 1779 sobre escravos e alforriados relativos ao Maranhão que assinalam: 31.722 "pretos" e 18.573 "mulatos" (Goulart, 1975:155). Em 1819, Pereira do Lago assevera que a vila de Alcântara tinha "8.000 almas no inverno, porque no verão, em que todos os lavradores vão para suas fazendas, regula a população de 2.500 a 3.000 almas, e fogos, 1.223."(Pereira do Lago, 2001:35). O mesmo autor, transcrevendo dados demográficos do Maranhão, em 1821, assinala para a freguesia de São Matias d'Alcântara 12.904 almas (Pereira do Lago, 2001:88). Nesse mesmo ano, a população do Maranhão corresponde a 152.893 habitantes, sendo 84.434 escravos ou "pretos e mulatos cativos" – ou seja, em torno de 56% da população –, 25.111 "mulatos livres", 9.308 "pretos livres", 9.687 índios e apenas 23.994 "brancos", isto é, cerca de 15% do total recenseado (Pereira do Lago, 2001:86-88). Em 1774, terminara o prazo de 20 anos concedido à Companhia Geral para o tráfico de escravos africanos. Nesse ano, o transporte de escravos iniciou uma retração geral, acarretando uma redução da oferta e uma elevação do preço dos escravos que, combinado com o endividamento progressivo dos "lavradores", assinalou o enfraquecimento dos mecanismos repressivos da força de trabalho no âmbito das fazendas. 101 Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio da Companhia Geral de Comércio Em julho de 1777, quatro meses após a demissão do Marquês de Pombal e um ano antes da extinção da Companhia Geral, os sesmeiros de Alcântara iniciaram as solicitações de registro das cartas de datas e de sesmarias. A pressão contrária ao monopólio comercial aumentava e de algum modo os sesmeiros percebiam os riscos de as elevadas dívidas contraídas junto à Companhia Geral virem a ser executadas, caso não fosse concedida uma prorrogação de funcionamento para a mesma. De igual modo, com as mudanças na Casa Real desde a morte do rei D. José I, em fevereiro de 1777, e com as campanhas contra Pombal, que caracterizaram a chamada "viradeira" (Soares, 1983:222), havia a possibilidade de serem feitas novas concessões e de serem revistas outras. A formalização do domínio das terras, obtidas por concessão régia, configurava-se como uma necessidade nesse período de transição política e econômica em que o poder dos sesmeiros poderia sofrer revertério. Entre julho de 1777 e setembro de 1816, arrolei vinte e seis registros expedidos de sesmarias em Alcântara, sendo 20 deles entre 1777 e 1794 e os demais entre 1809 e 18161. Dois registros correspondentes a 1816 referem-se somente a demarcações. A lacuna entre 1795 e 1808 deve-se ao fato de não terem sido assinalados registros para Alcântara nesse intervalo, indicando uma possível limitação do próprio material disponível. Todos os 26 registros expedidos referem-se, por linha direta ou transversal, às famílias classificadas por Viveiros como compondo a "aristocracia alcantarense" (Viveiros,1975:109). Seis deles concernem a membros da família Araújo (Araújo Cerveira, Araújo Borges e Araújo), dois à família Silva (Silva Leitão, Almeida e Silva), dois à família Pinheiro, dois à família Costa Ferreira e um registro corresponde a cada uma das seguintes famílias: Viveiros, Ribeiro, Ferreira, Dias, Santos, Aroucha e Sampaio. Independente do título de nobreza ou de Carta de Brasão e Armas, tem-se uma "nobreza da terra" que se apóia em critérios de riqueza e prestígio, expressos pelo número de escravos que alegavam possuir, pela quantidade de terras que diziam deter, pelo casario assobradado que possuíam e pelas relações comerciais que mantinham com a Cia. Geral de Comércio e com comerciantes da praça de São Luís. O enobrecimento de mercadores e comerciantes assinala novos atributos de nobreza a partir de fins do século XVIII. Ao considerar que os dois registros para demarcação, datados de 1816, não possuem referência a área, tem-se 24 expedições de registro totalizando em torno de 162.000 hectares, assim distribuídos: sete deles têm seus registros correspondentes a 8.172 hectares cada um; outros sete possuem 4.356 hectares cada; há seis com 13.068 hectares cada e os três restantes apresentam, respectivamente: 2.712, 2.178 e 1.089 hectares. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Há cinco registros de sesmarias, entre 1777 e 1787, cujas terras pretendidas como "devolutas" incidem sobre áreas de quilombos, que aparecem designadas através de menção explícita a "mocambo", "enseada grande do lago dos fugidos", "lago do mocambo" e "mocambo dos negros fugidos". Eles concorrem para evidenciar que as concessões de sesmarias teriam ocorrido em áreas já ocupadas por quilombos. Para efeitos de demonstrar essa modalidade de sobreposição, passo à citação dos registros. O primeiro deles trata-se de uma solicitação de registro de terras ditas "devolutas" feita em 1788 por José Alberto da Silva Leitão ao governador e capitão-geral do estado do Maranhão Fernando Pereira Leyte de Foyos. No texto da carta de data e sesmaria, o referido Governador assinala o seguinte: "Fernando Pereira Leyte de Foyos, Comendador da Ordem de Nosso Senhor Jezus Christo do Cons.º de S. Mag.º Fidelíssima Coronel de Cavalaria de Seus Exércitos com o Governo de Castello de S. Felipe da Barra de Setúbal, Gov. e Capitão General do Estado do Maranhão Et.ª Faço Saber aos que esta minha Carta de Datta e Sesmaria Virem, q' Jozé Alberto da Silva Leytão Morador na Villa de Santo Antonio de Alcântara, Me reprezentou que elle Se achava com bastante Escravatura, Sem ter terras próprias em que os aplicasse a lavoura, e porque nas testadas de huma Sorte de terras do Capitão Manoel Ferreira dos Santos as havia devolutas: Me pedia fosse Servido conceder lhe em Nome de S. Magestade huma Legoa de terra de Comprido beira Campo do Pericumã principiando das testadas do dito Capitam Manoel Ferreira dos Santos Correndo para os Lados do mocambo com duas Leg oas de fundo, inteirando no Comprimento o q' Faltasse no fundo, ou neste o que faltasse naquelle, com todas as pontas abas, Enseadas, e logradouros que Se achasem: A que attendendo, e ao que Sobre esta matéria Responderão o Ouvidor Juiz das Sesmarias Officiais da Câmara do destricto que forão ouvidos..." (sic) (cf. Reg. de Carta de Datta e Sesmaria passada a José Alberto da Silva Leitão. São Luís do Maranhão, 15 de março de 1787). Nos livros de registros arrolados, a área atribuída ao capitão Manoel Ferreira dos Santos, denominada Sítio Aurá, não contém menção explícita à extensão em hectares. Como os dados dos registros eram autodeclaratórios, torna-se difícil precisar os limites da área em jogo, que são apenas descritos como : "uma légua de terra beira campo, com duas de fundo, na forma e parte que pede, com as confrontações que declara". O segundo registro de sesmaria com menção explícita a "fugidos" refere-se à área concedida a Ignácio de Araújo Serveira nos seguintes termos: "Joze de Telles da Silva do Conselho de S. Magestade Fidelíssima Governador e Capitão General das Capitanias do Maranhão, e Piauhy etc. Faço Saber aos que esta minha Carta /fl. 114/ de Datta, e Sesmaria Virem, que Ignácio de Araújo Serveira Capitão de Auxilliares, morador na Villa de Alcântara me reprezentou por Sua petição que 104 Alfredo Wagner Berno de Almeida Sendo hum dos mais opulentos Lavradores, e possuindo para Sima de Cem Escravos de Serviço não tinha terra Suficientes para emprego dos ditos Escravos, e por que nos Perizes da mesma Villa Suposto que em parte longiqua nas Cabeceiras da Enseada chamada Sapuja Correndo para a Enseada grande do lago dos fugidos, nas testadas das que Se concederão ao defunto Francisco Amandio Lansarote, hoje possuídas por João de Barros e Antonio de Barros, e outros havia terras devolutas, Me pedia fosse Servido conceder lhe em nome de S. Magestade, por Datta, e Sesmaria tres legoas de terra de Comprido, huma de largo principiando das testadas das Concedidas ao dito Amandio, Correndo o comprimento desta terra para o lugar em que a houver devoluta, em que Se possa inteirar das tres legoas, e huma legoa de largo para aquella parte em que tão bem Se possa inteirar, de Sorte que não havendo comprimento Suficiente de tres Legoas, Se possa inteirar na Largura, e Comprimento, o que faltar nesta, com todas as pontas, abas, e logradouros que Se comprehenderem na Medição da dita terra..." (sic) (cf. Registro de Carta de Datta e Sesmaria passada a Ignácio de Araújo Serveira. São Luís do Maranhão, 19 de maio de 1785). A localização do dito "lago dos fugidos" aparece referida aqui a Perizes. Os naturalistas Spix e Martius, quando visitaram Alcântara em 1819, detiveram suas observações nessas Campinas, que recebiam a denominação indígena de peri (plural, perizes), e as descreveram como conservando continuamente o "verdor seivoso". Assim as localizaram geograficamente: "Os perizes estendem-se de Alcântara para o norte até às Vilas de São João de Cortes e Guimarães, e circundam a baia de Cumã, daí talvez a razão por que todo o distrito é designado pelo nome de Pericumã." (Spix e Martius, 1976:250). Pelas modalidades de registro, percebe-se que há uma sinonímia entre "mocambo" e "fugidos". Tais termos são utilizados no texto como topônimos, ou seja, antes referem-se ao nome próprio de um lugar ou de um acidente geográfico que a um grupo social que esteja efetivamente ocupando as terras. A documentação fundiária da burocracia colonial cinge-se a considerar as terras como da Casa Real e utilizadas pelos concessionários por ela instituídos. Os antagonistas são invisibilizados ou só percebidos indiretamente ou nos desvãos das entrelinhas dessa documentação. O terceiro registro é uma concessão de sesmaria passada ao capitão José de Araújo Serveira "do lado dos fundos nas testadas das terras concedidas ao seu irmão, o capitão Ignácio de Araújo Serveira" (Cf. Registro de Data e Sesmaria passada ao capitão José de Araújo Serveira. São Luís do Maranhão, 26 de setembro de 1787). Em certa medida, ela reproduz o "topônimo" anteriormente mencionado. O quarto registro é de uma concessão de sesmaria ao capitão Manoel Ferreira dos Santos elaborada nos seguintes termos: "Jozé de Telles da Silva do Conselho de S. Magestade Fidelíssima Governador e Capitão General das Capitanias do Maranhão, e Piauhy etc. Faço saber aos que esta Mª. Carta de Data e Sesmaria virem que por parte do Capitão Manoel Ferreira dos Santos morador na Villa de Alcântara me representou por sua 105 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Petição que elle se ocupava em Lavoiras com huma sorte de terras, que havia comprado, e que se achavam já incapazes de dar [...] fructos e porque lhe constava, que havia terras devolutas, e incultas, pegando no centro dos Mattos do Aura, testadas do Capitão Roberto de Sá abeirando os campos do Pericumã correndo para os lagos do Mocambo, Me pedia fosse servido conceder-lhe em nome da Sua Magestade por Datta, e Sesmaria huma Legoa de terra com todas as pontas, abas Sobras Logradouros e Enseadas onde mais comodamente se podesse demarcar..." (sic) (Registro de Carta de Datta e Sesmaria passada ao Capitão Manoel Ferreira dos Santos. São Luís do Maranhão, 15 de março de 1787). O quinto registro é uma data concedida a João de Carvalho Santos, cuja descrição dos limites aglutina os termos "mocambo" e "fugidos" no mesmo topônimo, nos seguintes termos: "Dom Fernando Antonio de Noronha, Do Conselho de Sua Magestade Fidellísima Tenente Coronel de Seos Exércitos, Governador, e Capitão General das Cappitanias do Maranhão e Piauhy Ect.ª Faço Saber a todos os que esta Minha Carta de Datta e Sesmaria Virem que João de Carva -/fl. 101v/ de Carvalho Santos morador e Cazado na Villa de Alcântara, Me reprezentou que elle não tem terras Suas próprias em que possa lavrar com Seus Escravos, e porque tem noticia que para a parte dos Perizes da dita Villa, no Centro dos Mattos, nas partes, e Vizinhanças, onde foi o Mocambo dos Negros Fugidos onde ultimamente deu o Capitão do Matto Lourenço Gonçalves, junto com o Alferes Manoel Rodrigues de Oliveira, há terras devolutas..." (sic) (Registro de Carta de Data e Sesmaria concedida a João de Carvalho Santos. São Luís do Maranhão, 25 de abril de 1793). A localização deste "Mocambo dos Negros Fugidos", considerando sua posição próxima ao rio Aurá, concerne ao sudeste do atual município de Alcântara. O fato de a atuação do capitão do mato ser recente, como reza o registro, evidencia que os quilombolas ainda se encontravam naquelas terras tidas como devolutas e sem qualquer ocupação. Pode-se interpretar que a concessão de sesmarias oficialmente ignorava os conflitos que só aparecem de maneira indireta nos registros. A localização do Lago do Mocambo, por sua vez, refere-se ainda a outro lugar geográfico, qual seja, próximo ao antigo povoado de Peru, à leste do município, assinalado pela memória oral dos entrevistados como quilombo2. A denominação, combinada com os dados de história oral e com a documentação administrativa oficial, concorre para evidenciar que antes mesmo da própria criação da Companhia Geral já havia registros de quilombos na região e que foram concedidas sesmarias em áreas que alguns deles efetivamente ocupavam. A concessão de sesmarias a partir de 1755 é posterior, portanto, à incidência de quilombos na região, cujos primeiros registros burocrático-administrativos, efetuados pelo governador geral do estado do Maranhão Fernão Carrilho, datam de 1701. 106 Alfredo Wagner Berno de Almeida Registro de cartas de datas e sesmarias Munícipio: Alcântara / 1777 - 1816 Nº de Ordem Sesmeiro Denominação Data da expedição Área - (ha) Livro Folha 1 Joaquim Antonio de Launé Inambú 03.07.1777 4.356,0000 02 14 2 João Telles de Menezes Inambú 30.12.1777 4.356,0000 02 19v 3 Felipe Curvelo R. Pericumã 12.07.1779 4.356,0000 02 53 4 Ignácio de Araújo Borges Quindiua 07.07.1780 2.178,0000 02 78v 5 Francisco Ribeiro Grillo Inambú 02.08.1780 1.089,0000 02 28v 6 Manoel Ferreira dos Santos Sítio Aurá 15.05.1787 - 02 159v 7 Euginei de Aroucha Pericumã 28.06.1787 4.356,0000 02 178 8 José de Araújo Cerveira Perizes 26.09.1787 13.068,0000 02 190 9 L. Aires - 24.01.1788 13.068,0000 04 04 10 José Alberto da Silva Leitão Lago do Mocambo 26.02.1788 2.712,0000 04 06v 11 Antonio José Rodrigues de Souza Inambú 16.04.1788 4.356,0000 04 18 12 Ignácio José Pinheiro Peri-açu 26.04.1788 13.068,0000 04 18v 13 Antonio Soares de Araújo Pericumã 29.04.1788 13.068,0000 04 19v 14 Manoel Reis de Oliveira Pericumã 11.08.1790 4.356,0000 04 35v 15 João Diogo da Costa (sem efeito) Pericumã 18.08.1790 8.712,0000 04 40v 16 Alexandre José de Viveiros Pericumã 21.06.1791 13.068,0000 04 54 17 Francisco Raimundo Dias Guarapiranga 11.06.1792 13.068,0000 04 64 18 Antonio Cardoso Sampaio Pericumã 06.09.1792 4.356,0000 04 72v 19 João de Carvalho Santos Perizes 25.04.1793 8.712,0000 04 101 20 João Álvares Pinheiro Perizes 07.02.1794 8.712,0000 04 172v 21 Ignácio Gabriel de Almeida e Silva R. Mariano 13.04.1809 8.712,0000 07 08 22 Severo Antonio de A.Cerveira - 09.10.1809 8.712,0000 07 48v 23 Ana Apolônia Heduviges Pericumã 31.01.1811 8.712,0000 07 75v 24 Joaquim Antonio da C. Ferreira - 10.09.1816 8.712,0000 10 44 FONTE: Livros de Registros nºs: 02, 04, 07 e 10. Arquivo Público do Estado do Maranhão. 107 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Registro de demarcação de sesmarias Munícipio: Alcântara / 1816 Sesmeiro Denominação Data da expedição Objeto Notação Folha Severo Antonio de Araújo Cerveira Paragem Timbaúba 1816 demarcação 109,025A 01 Severo Antonio de Araújo Cerveira Guruapê 1816 demarcação 109,025B 01 FONTE: Registros de Sesmarias. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro. Compulsando o gráfico e os quadros demonstrativos, constata-se que a chamada nobreza alcantarense descendia diretamente de sesmeiros, que tiveram expedidas suas cartas na segunda metade do século XVIII. Nem todos eles são classificados, entretanto, como referidos a Alcântara. Caso o fossem, a listagem teria que ser necessariamente ampliada, incluindo pelo menos Guimarães, São Bento e Viana. Senão, vejamos: Theodoro Correa de Azevedo Coutinho, com fazenda no rio Pericumã, cuja extensão equivalia a 4.356 hectares, teve expedido seu registro de carta de sesmaria em 17 de abril de 17773. Já citado anteriormente como vendendo por consignação em navios da Companhia Geral, este sesmeiro é pai do Barão de Mearim, brigadeiro José Teodoro Correa de Azevedo (Viveiros, 1975:100). Outro exemplo: Romualdo Antonio Franco de Sá, com Fazenda Chapada ou Caatingas, localizada em Guimarães, com 8.712 hectares, tem seu registro de carta de sesmaria expedido em 02 de junho de 17934. Trata-se do pai do senador Joaquim Franco de Sá (Viveiros, 1975:109) e do avô do senador Felipe Franco de Sá (Viveiros, 1975:136). Joaquim Franco de Sá governou a província do Maranhão no período de reestruturação dos engenhos de açúcar em 1846-47 e da reorganização das campanhas militares contra os quilombos. O referido senador era genro e foi secretário de governo de outro presidente da província, o Barão de Pindaré, Antonio Pedro da Costa Ferreira, cuja família possuía fazendas em Alcântara na região do Tubarão, como o seu pai, Ascenso José da Costa Ferreira, e, em Viana, como o Comendador José Ascenso da Costa Ferreira5. Nessas terras há menção explícita a quilombos desde pelo menos 1837, data da autorização de repressão. Vale acrescentar ainda que o mencionado senador, que era do Partido Liberal, teve como secretário da presidência Carlos Fernando Ribeiro, mais tarde Barão do Grajaú e presidente da província, proprietário do Engenho Gerijó, que em 1760 fora confiscado dos jesuítas. Há registros de quilombos nessas terras desde pelo menos 1833 e até 1866, quando são mobilizadas tropas de linha para combater os quilombolas em Jarucaia6. Um outro exemplo, incluído no quadro demonstrativo, seria Alexandre José de Viveiros, com fazenda no rio Pericumã, com 13.068 hectares, que tem expedido seu registro de carta de sesmaria em 21 de junho de 1791. É pai do senador Jerônimo José de Viveiros, que fundou a Fazenda São Maurício, e avô do Barão de São Bento, Francisco Mariano de Viveiros Sobrinho (Viveiros, 1975:116). Em 1819, Pereira do Lago anota com detalhes a expansão dos quilombolas e o avanço de tropas por essa área, que ficou conhecida como de incidência do "quilombo dos Pretos de Viveiros" (Pereira do Lago, 2001:28). A derrocada da economia algodoeira O registro das sesmarias, conforme já foi sublinhado, ocorre num momento em que está findando o prazo da concessão régia à Companhia Geral e em que esta, além 108 Alfredo Wagner Berno de Almeida de encontrar-se prestes a ser extinta, acha-se sob pressão de comerciantes, que reivindicam o fim do monopólio comercial, e de "lavradores" cujas dívidas acham-se acumuladas. Em representação à rainha D. Maria I para que não persistisse por mais tempo a Companhia Geral, dois anos após a sua extinção formal, em 1780, inúmeros signatários, que se autointitulam "homens de negócios", manifestando-se a favor do livre comércio, asseveram o seguinte: "... os habitantes do Pará e Maranhão devem o que nunca poderão pagar, e a Companhia duplicou o fundo de seu capital e os acionistas, além do dobro do valor com que entraram, tem percebido mais de outro tanto; aqueles habitantes eram ricos porque não deviam quando era o comércio livre; a Companhia, que prometeu aumentar a agricultura e o Estado, o deixou destruído..." (Silva e Castro et al., 1780 apud Carreira, 1988:100) (g.n.) Viveiros assinala que, em 1819, o preço do algodão baixou repentinamente para menos da metade do preço antigo, levando à bancarrota fazendeiros, designados como "lavradores", que se davam a um "luxo desmedido" e "que compraram grandes lotes de escravos a longos prazos, os quais não puderam pagar" (Viveiros, 1954:139)7. Com o preço do algodão despencando, o endividamento dos fazendeiros tornou-se por demais acentuado. Eles, que estavam às voltas com dívidas junto às casas comerciais desde a extinção da Companhia Geral8, encontravam-se, duas décadas depois, numa situação limite. As casas comerciais inglesas e portuguesas, sediadas em São Luís, acusadas pelos denominados "lavradores" de especularem no mercado algodoeiro, acumulavam o maior montante de bens e recursos então em circulação. Para Viveiros (1954:163), eram banqueiros, que concediam empréstimos e controlavam exportações, importações e até o beneficiamento de produtos agrícolas, além de terras e escravos. Dos três maiores comerciantes portugueses no início do século XIX, citados por Viveiros, um deles possuía hum mil e quinhentos escravos, caso de José Gonçalves da Silva; o outro herdou hum mil e oitocentos escravos, caso de Simplício Dias da Silva; e o terceiro trata-se de Antonio José Meirelles, que sucedeu a Gonçalves da Silva nos empréstimos a fazendeiros (Viveiros, 1954:165-167). Alcântara, que sempre se caracterizou mais como local de produção e de proeminência de fazendeiros, teve desestruturada sua produção e as fazendas passaram por um processo de completa desagregação. Ao contrário, em São Luís, onde estavam os comerciantes, os exportadores e os financiadores das compras de escravos, consolidava-se o controle da circulação de mercadorias9. Alcântara, que no período pombalino era um centro de atividades econômicas, ou seja, uma das áreas mais destacadas da política mercantilista, tornou-se gradativamente, a partir de fins do século XVIII e início do século XIX, uma região periférica e cada vez mais marginal economicamente. Antes mesmo do advento do Império, as fazendas de Alcântara, que vinham perdendo seu dinamismo econômico desde a extinção da Companhia Geral e da retomada do mercado algodoeiro pelas grandes plantações do Sul dos Estados Unidos, entraram em desagregação. As fazendas começaram a ser abandonadas e foram passando às mãos de prepostos. A produção de algodão praticamente cessou, no decorrer 109 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 da década de 1820-30, revertendo tão somente para as necessidades familiares e artesanais; a fábrica de beneficiamento de anil, que florescia em São João de Cortes em 1762, já não mais existia e, segundo Pereira do Lago, naquela freguesia, no ano de 1820, "plantam só mandioca, porque para nada mais serve o terreno"(Pereira do Lago, 1872: 388). A agricultura de base familiar com escravos e alforriados ia se consolidando sobre as áreas das grandes plantações. De outra parte, a vila de Alcântara foi assim caracterizada por Pereira do Lago, em 1820: "As suas ruas mal calçadas, ainda que se cuidava em emendar esse defeito, assim como em fazer um chafariz; porém como as manilhas com que formam o cano são de telhas, pode em pouco arruinar-se, e faltar então a água: tem belos edifícios e, talvez dos que se chamam nobres 60, mas só em parte do inverno são habitados, porque as famílias todas residem quase sempre nas suas fazendas: há dois conventos, um do Carmo, outro das Mercês, e uma freguesia de São Matias; duas praças, a da matriz, e a do Carmo, e onze ruas. A sua população, de verão anda por 2.500 almas, e de inverno, por 8.000." (Pereira do Lago,1872:387). A este tempo, as terras não eram passíveis de compra e venda, o regulamento das sesmarias condicionava à autorização régia qualquer transferência, mesmo que por sucessão. Os atos de compra e venda incidiam sobre produtos e benfeitorias. As casasgrandes, que foram transformadas em bens móveis, já estavam sendo desmontadas, como já foi anteriormente examinado, e os sobrados na vila estavam sendo vendidos para saldar dívidas ou entregues à guarda provisória de prepostos e escravos domésticos mediante a partida dos senhores, seja para São Luís, seja para o Rio de Janeiro. As interpretações econômicas usuais, prevalecentes na historiografia regional, que explicam o Maranhão pela teoria dos ciclos econômicos ou pela dicotomia prosperidade/ decadência, são lacônicas e insuficientes quando se trata de analisar esta situação social específica de Alcântara. Os marcos adotados para explicar o Maranhão mostram-se inapropriados quando se trata de Alcântara, cuja decadência abrupta é vista, pelos comentadores regionais, sob uma ótica catastrofista de esgotamento absoluto dos recursos naturais. O menosprezo por uma análise concreta de uma situação concreta, privilegiando realidades localizadas e processos reais, mantém Alcântara à margem das interpretações econômicas consagradas, cujo corte relativo ao Maranhão não lhe corresponde exatamente enquanto padrão de explicação. Celso Furtado considera que, embora para a colônia o último quartel do século XVIII tenha sido de retração econômica, o Maranhão constituiuse numa exceção, posto que a economia algodoeira, a partir da Companhia Geral, possibilitou elevada lucratividade e intensa expansão. Nos termos de Furtado, teria ocorrido uma "falsa euforia do fim da época colonial" (Furtado, 1975:89), à exceção do Maranhão, onde teria ocorrido de fato "prosperidade"10. Em Alcântara, desde o início do século XIX a função urbana de tipo burocrático-administrativo prevalece e se mantém quando os senhores começam a abandonar sua fazendas, conservando o domínio formal das terras mas sem o controle efetivo delas. O domínio formal vai ser mantido durante todo o Império, porquanto só podiam votar e ser eleitos aqueles que tivessem títulos e terras, ou seja, mantêm-se formalmente enquanto 110 Alfredo Wagner Berno de Almeida fazendeiros e assim são reconhecidos pelo poder imperial. Os direitos políticos eram restritos e nas áreas rurais não havia possibilidade de qualquer proteção social senão através dos senhores de terras (Faoro, 1988). Havia uma tutela embutida no Estado dinástico que propiciava o controle da força de trabalho pelos fazendeiros, mesmo quando os mecanismos repressivos achavam-se debilitados. De outra parte, a terra era um recurso abundante, sob concessão e confirmação régias, e não havia praticamente transações comerciais que as envolvessem. A figura do aforamento foi sendo instituída pelos sesmeiros, quando eles detinham tão-somente o controle formal das terras, também como estratégia que adiava o acesso livre e direto de escravos e alforriados à terra. Isso se manteve mesmo quando começaram a pairar dúvidas sobre o destino das sesmarias, com alguns defendendo que fossem reduzidas, outros que revertessem à Coroa11. Essa situação se agravou com a Independência. A partir de 1822, consoante análise de J. Shiraishi, com a Resolução do Reino de n° 76, que ordena a suspensão dos atos de concessão de sesmarias, até a Lei de Terras n° 601, de 18 de setembro de 1850, que reestrutura formalmente o domínio das terras, tem-se um período classificado por juristas com a denominação de "posse das terras devolutas" (Sodero, 1990:37-48). No decorrer desses 28 anos, "o domínio das terras se realiza pelo simples ato de posse" (Shiraishi, 1998:24), abrindo um capítulo de tensões permanentes, posto que os mecanismos repressivos da força de trabalho, ao alcance dos fazendeiros, encontravam-se debilitados e os registros sobre os quilombos evidenciavam sua expansão. Um quadro de tensões se instaura nas situações em que os atos de apossamento não estariam passando necessariamente pelo controle dos antigos sesmeiros. A este tempo, já não mais havia grandes plantações em Alcântara. As grandes plantações de algodão e arroz cediam lugar aos plantios de mandioca, de arroz e ao preparo de farinha levados a cabo por famílias de escravos, parcialmente controladas pelos prepostos, de um lado, e por alforriados, índios e quilombolas, de outro. Assiste-se a uma transição de escravo para camponês, produzindo com unidades de trabalho familiar autônomas em terrenos por eles escolhidos e num tempo por eles igualmente administrado. O marco divisório de Alcântara, de 1755, que deixara as terras a noroeste para os índios e as demais para as grandes plantações, perdera a sua razão de ser perpassada de norte a sul pelas pequenas unidades de trabalho familiar que, estruturando sua vida social em povoados, iam impondo gradativamente um processo produtivo autônomo com relações diretas com os diferentes circuitos de mercado através de dezenas e dezenas de pequenos portos por onde era escoada a produção de farinha, pescado, carvão, arroz e produtos extrativos para a capital da província. As categorias instituídas pelos colonizadores, quais sejam: índios, pretos e caboclos, portadoras de atribuições estigmatizantes, foram sendo redefinidas por aqueles que, tornando-as afirmativas, passaram a se autodefinir por elas, definindo de igual modo as terras que efetivamente controlavam. Os povoados que aí foram erigidos se organizaram em torno do uso comum dos recursos naturais e dos mencionados portos, os quais facultaram condições de possibilidade para a livre comercialização dos produtos agrícolas e extrativos desde a segunda metade do século XIX e, com determinadas variações, até o momento atual. A consolidação política dos denominados "lavradores" de Alcântara baseia-se na imperatividade de fortalecimento do Estado no período imperial, que recruta membros dessa camada de "lavradores", que haviam adquirido "ilustração" e prestígio intelectual em universidades 111 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 européias e que ainda detinham formalmente as terras, habilitando-a enquanto classe dirigente. O advento político-administrativo dessa elite universitária cosmopolita e que bem separava a ação do Estado daquela da Igreja Católica contrapunha-se aos quadros intelectuais das ordens religiosas, que buscavam recuperar seu poder, sobretudo na educação e na economia. Uma resultante desse embate refere-se às medidas do governo imperial diante das ordens religiosas, investindo duramente contra elas12. Os cargos e funções, tais como: presidentes da província do Maranhão, senadores do Império, que representavam a província, e altos escalões da burocracia e dos serviços administrativos, eclesiásticos (através do Padroado) e militares serão ocupados por membros dessa camada de "lavradores", sobretudo da região de Alcântara. Entre 1834 e 1889, dela são provenientes mais de seis presidentes de província, pelo menos cinco senadores do Império13, mais de uma dezena de deputados da Assembléia Legislativa Provincial e da Assembléia Geral Legislativa, diversos oficiais militares e cavaleiros de ordens e dezenas de funcionários do aparato administrativo imperial e de instâncias intelectuais e científicas14. Dispõem de um capital intelectual acumulado que propicia os recursos de competência para a administração provincial, combinado com um capital simbólico de relações sociais que viabiliza a sedimentação de interesses através de políticas que reprimem a força de trabalho, que incentivam, em 1846-47, a instalação de engenhos de açúcar e que monopolizam formalmente a terra – por intermédio das confirmações de sesmarias e, depois, através dos registros paroquiais exigidos pela Lei de Terras de 1850. O baronato alcantarense, do período imperial, composto de quatro Barões (Mearim, Pindaré, São Bento e Grajaú), tem nessa condição original de "lavradores" e sesmeiros a fonte de sua força política durante todo o Império. Ela garante uma posição de destaque a esses políticos alcantarenses, mesmo quando a derrocada econômica já desagregara integralmente as suas fazendas em Alcântara e eles não mais tivessem grandes plantações, nem o controle absoluto das terras. Não há correspondência entre a condição jurídica de sesmeiro, legítimo e confirmado, e aquela de apropriação real dos meios de produção, mesmo que se constate que os chamados "lavradores" sempre procurassem dissociar os escravos, os alforriados e os índios dos meios de produção. A organização das estruturas do poder provincial não reflete imediata e mecanicamente as transformações no processo produtivo. O poder político, nesse sentido, não é simples expressão da estrutura econômica. Em virtude disso é que se pode asseverar que as interpretações economicistas – que analisam a dominação política na província pelas modificações técnicas nos instrumentos de trabalho ou pelas estatísticas de produção de matérias-primas para o desenvolvimento industrial – não têm força explicativa suficiente para demonstrar o poder político das famílias dos barões alcantarenses e afins, quais sejam: Azevedo Coutinho, Costa Ferreira, Franco de Sá, Viveiros, Gomes de Castro, Araújo e Ribeiro. As fazendas de Alcântara, no decorrer do século XIX, consistem no mais das vezes, em símbolos de um poder que efetivamente não mais se baseava nelas. A despeito das aparências, dos registros formais de terras e das tentativas de recuperação – como no caso dos incentivos aos engenhos de açúcar em 1846-47, que levaram Alcântara a possuir 13 engenhos nas duas décadas seguintes –, a estratégia efetiva das famílias de fazendeiros baseava-se em cargos públicos e nas vicissitudes de uma carreira política, tendo 112 Alfredo Wagner Berno de Almeida suas residências consolidadas em São Luís e no Rio de Janeiro. Pode-se resumir, portanto, que as vicissitudes dessas estruturas de poder se referem, no caso de Alcântara, a relações sociais que se caracterizam por pelo menos duas modalidades de antagonismos: uma, concernente a conflitos latentes, intrínsecos ao processo de acamponesamento de escravos no âmbito das fazendas arruinadas, sob a autoridade combalida de prepostos; outra, que se refere a conflitos abertos, manifestos, e que envolve diretamente o combate aos quilombos, que representam um processo produtivo autônomo que se consolida sobre as ruínas das fazendas e do poder senhorial. 113 Pousada São Raimundo Os quilombos em Alcântara As ações dos quilombolas em Alcântara se intensificam a partir da primeira década do século XIX. Em razão inversa à desagregação das grandes plantações de algodão e de cana-de-açúcar, os quilombos expandem seu processo produtivo e ampliam suas relações em diferentes circuitos do mercado de produtos alimentares, marcando presença nos pequenos portos e nas vias de acesso às vilas de toda a região, sobretudo Alcântara, Guimarães, Turiaçu e Viana. Há copiosa documentação administrativa colonial a respeito, bem como interpretações de historiadores do século XIX que compulsaram fontes documentais hoje inexistentes. O historiador César Marques, em 1878, sublinha quanto a essa região que: "desde 1811 principiaram a formar-se de novo alguns quilombos. (...) Organizados ahi esses quilombos, estenderam seus domínios às comarcas de Alcântara e Viana, pondo assim em risco a propriedade e segurança individual dos seus habitantes tornando inacessíveis terrenos, aliás fertilíssimos e apropriados a várias espécies de cultura." (Marques, 1878:14). A fragilidade circunstancial dos instrumentos de coerção, em virtude da derrocada econômica dos fazendeiros e de sua gradual retirada de Alcântara, favoreceu tal expansão. A desorganização das grandes plantações, sem que houvesse um produto comercial para substituí-las, acarretou uma relativa liberação da força de trabalho. Os mecanismos de controle nas mãos de prepostos evidenciavam que a autoridade absoluta dos fazendeiros principiava a atenuar-se. Os designados pelos senhores para exercerem atos como seus feitores, administradores e semelhantes, que, em Alcântara, recebem a designação de encarregados da terra, eram recrutados entre os próprios escravos mais próximos das casas-grandes, que realizavam serviços domésticos e de criadagem mais afetos à vida privada da família dos senhores1. Transcendendo a incursões guerreiras, comumente ressaltadas pelos historiadores regionais como características dos quilombolas, tem-se que os quilombos em Alcântara foram, em verdade, consolidando um sistema produtivo relativamente autônomo e estabelecendo vínculos estreitos não só com os pequenos produtores livres e índios das áreas das antigas reduções, mas também com os escravos e com a camada incipiente de foreiros das fazendas confiscadas das ordens religiosas e com os escravos que, com a retração do plantio de algodão, se voltaram para o cultivo de arroz e mandioca, para a pesca e para as atividades extrativas, sob a direção dos prepostos dos fazendeiros. De outra Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 parte, com a revogação do Directório2, em 1798, os índios, nas antigas terras das ordens religiosas, tornaram-se livres da autoridade de diretores e soldados, instituída no regime pombalino, que os faziam pagar além do dízimo o chamado "sexto", e também passaram a produzir para si e a comercializarem seus produtos diretamente. Nas fazendas de algodão, a queda vertiginosa dos preços no mercado, desorganizando as grandes plantações, levou a que os escravos fossem reorientados para os cultivos de gêneros de primeira necessidade, que nos períodos de alta do algodão eram adquiridos pelos fazendeiros nas áreas periféricas às fazendas, mais próximas de São João de Cortes, controladas pelos índios, para abastecer a escravaria. Tal reorientação tanto resolvia o problema de manutenção da força de trabalho – considerando que aos senhores competia dar a seus escravos o necessário à vida para se alimentarem e vestirem – quanto assegurava aos senhores receitas substanciais através da comercialização nas praças de mercado de São Luís dos gêneros alimentícios que lhes eram enviados pelos prepostos. Embora nenhuma lei garantisse aos escravos o pecúlio e vigisse o princípio de que o escravo nada podia adquirir para si , sendo todo o produto de seu trabalho obrigatoriamente destinado ao senhor, constata-se que, nesta situação examinada, foi facultado aos escravos tempo de trabalharem para si e para seu próprio sustento. Esse embrião de autonomia produtiva foi se consolidando nas décadas seguintes, erigindo as chamadas terras de preto e convergindo para uma situação de aquilombamento, ou seja, uma autonomia absoluta em relação aos senhores. Essa situação de aquilombamento abarca também os próprios índios que, com o afastamento dos diretores em 1798, construíram sua própria autoridade, independentemente de tutelas, sobre as chamadas terras de santo3 e terras de caboclos e estabeleceram relações sociais comunitárias e associativas (Weber, 1999:161) com escravos fugidos das fazendas, refugiados em seus domínios, e com os povoados que foram sendo formados com a derrocada das fazendas de algodão. Semelhante ação social baseia-se numa necessária aproximação de interesses e de autodefesa de áreas de algum modo delimitáveis, num momento em que os fazendeiros, seus antagonistas históricos, achavam-se circunstancialmente por demais debilitados economicamente para reprimir duramente essa forma de autonomia. O sentimento de índios e escravos de pertencerem afetiva e economicamente a territorialidades que controlavam efetivamente, viviam como suas e às quais emprestavam suas próprias auto-atribuições, num momento em que não lhes era permitido por lei ter quaisquer propriedades e pecúlios, evidencia uma afirmação étnica. Ao afirmarem implicitamente direitos pessoais e de grupos não reconhecidos legalmente como habilitados à posse e/ou propriedade, marcam uma diferença diante do ordenamento jurídico colonial e descrevem uma trajetória que colide com ele ao se erigirem como sujeitos. Recorde-se que os próprios fazendeiros, enquanto sesmeiros, usufruiam de uma concessão régia e não eram proprietários das terras estrito senso e, após a extinção do instituto das sesmarias em 1823, ficaram como "posseiros" até, pelo menos, a Lei de 18504. Está-se diante, portanto, de diferentes vertentes de construção de territorialidades, as chamadas terras de santo, terras de caboclos e terras de preto, em que comunidades aparentemente separadas em termos étnicos convergem, por intermédio de uma relação associativa abrangente, para um mesmo processo de territorialização étnica. Tal quadro histórico permite compreender por que, em Alcântara, a memória das comunidades remanescentes de quilombo não se atém a feitos militares ou a episódios de heroísmo, ou, ainda, a figuras míticas, mais se concentrando na afirmação de uma forma de existir e produzir, com base num sistema de uso comum dos recursos naturais e numa reciprocidade positiva 116 Alfredo Wagner Berno de Almeida entre as famílias de diferentes povoados. Em termos de uma datação, pode-se afirmar que semelhante sistema, nas terras das fazendas das antigas ordens religiosas, já tem mais de dois séculos e, nas demais situações sociais específicas de Alcântara, tem quase dois séculos. De certo modo, a desagregação das fazendas dos sesmeiros em meados do século XIX reproduzia condições de acamponesamento da força de trabalho imobilizada, tal como já se verificara nas antigas fazendas dos jesuítas, na segunda metade do século XVIII, e naquelas das demais ordens religiosas depois de 1821. Através do trabalho familiar, os escravos garantiam o seu sustento e propiciavam, a cada colheita, quantidades significativas de farinha e arroz aos fazendeiros então absenteístas. As chamadas casas de forno, ou edificações utilizadas para o beneficiamento da mandioca, e os portos constituíam o núcleo básico dos povoados que foram sendo formados. As casas-grandes e as benfeitorias desmontadas e vendidas já não representavam a referência principal daquelas terras de sesmarias, ainda que muitos dos chamados sítios velhos ficassem localizados nas proximidades de portos, para facilitar o escoamento da produção. A partir dos portos, os prepostos embarcavam em pequenos barcos a produção dos gêneros comercializáveis para a Praia Grande na capital São Luís, fortalecendo paradoxalmente, não necessariamente os senhores, mas um sistema produtivo cada vez mais autônomo. A paisagem descortinada por Pereira do Lago em fins de 1819 e início de 1820, na estrada e no rio Periaçu (Pirauaçu), que demandavam São João de Cortes, que ele denomina de "povoação de índios", bem ilustra a magnitude da prevalência do plantio de mandioca, já não havendo inclusive quaisquer informações essenciais sobre grandes plantações de algodão ou sobre os indigoteiros. As informações sobre as fazendas mencionadas pelo engenheiro militar Pereira do Lago cingem-se a: "De Alcântara para ir à beira do rio Turi toma-se logo a estrada do Pirauaçu até onde são 3 ½ léguas, caminho muito bom e acompanhado de três fazendas, por entre matas, que já foram queimadas, e terreno quase todo de areia. Esta estrada corre ao norte, e depois 420 noroeste. Embarcase no igarapé Pirauaçu, cuja largura varia desde 20 braças até 110, e suas cabeceiras são no Pirajaratoca, todo de mangue aos lados, e só com uma fazenda Morari, até chegar à povoação de São João de cortes, e até aqui 2 léguas. Esta povoação de índios é muito antiga, constava de 22 fogos e cousa de 90 a 100 almas (...) Plantam só mandioca, porque para mais nada serve o terreno." ( Pereira do Lago, 2001:16) (g.n.) Os quilombos e a governação pombalina A autonomia produtiva, por outro lado, foi sendo conquistada concomitantemente com a consolidação dos chamados quilombos ou mocambos. Sobre isso, cabe assinalar que os registros relativos à incidência de quilombos em Alcântara, levantados a partir da consulta a documentos burocráticos das administrações dos períodos colonial e imperial, deixam entrever que, mesmo antes e durante a governação pombalina, as ações dos quilombolas já eram registradas, embora com menor recorrência do que no decorrer 117 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 do século XIX. O termo "mocambo" é acionado nessa documentação em sinonímia com quilombo, como se poderá destacar nos excertos transcritos nos quadros adiante apresentados. No período colonial, ou mais exatamente entre 1701 e 1751, as fontes documentais e arquivísticas compulsadas compreendem basicamente a correspondência entre a Casa Real, na metrópole, e a alta hierarquia do corpo administrativo da colônia, isto é, do Estado do Grão-Pará e Maranhão, separado do Brasil desde 1621. Na interpretação de Viveiros: "Pelo que investigamos, no Maranhão, o mais antigo mucambo data do ano de 1702. Localizou-se nos sertões do Turiaçu, tendo sido destruído pelo Governador Fernão Carrilho, que lá aprisionou centro e vinte escravos, cobrando por seus senhores por peça a quantia de oito mil réis, no que foi censurado pela Coroa. No decorrer dos anos, foram surgindo mucambos em vários lugares maranhenses: Viana, Pinheiro, Alcântara, Guimarães, Maracassumé, donde não raro saíam os africanos para a pilhagem das fazendas." (Viveiros, 1954:88) A Companhia de Comércio do Maranhão (1682-84) introduzira uma quantidade de escravos africanos muitíssimo inferior ao previsto, qual seja: 500 escravos por ano, durante vinte anos. Não durou mais que dois anos e assim mesmo com resultados incompletos (Salles, 1970:30). Assim, não é difícil entender por que a composição dos quilombos, consoante os registros da administração colonial, assinala uma destacada participação de índios. Os próprios termos designativos denotam tal idéia ao designarem o quilombo como: "aldeia de escravos fugidos". Do mesmo modo, a caracterização da ação é assim registrada: "gentios do corço" (sic). A noção de corso denota ataques esporádicos e irregulares, porém rápidos e sucessivos, feitos de forma isolada ou em grandes grupos, sem objetivo de ocupação permanente, apenas fustigando ou visando o roubo de instrumentos de trabalho em ferro e de gado para tração e alimento. São essas incursões guerreiras que afetam Alcântara ainda no período em que os colonos se opunham aos empreendimentos econômicos das ordens religiosas. O termo gentios parece prevalecer nos quilombos e os chamados pretos e caboclos só vão ser mencionados quando, por razões estratégicas de povoamento, os administradores coloniais passam a favorecer o casamento com índios, proibindo que os filhos recebessem a denominação de caboclos, e, depois, passam a privilegiar os próprios índios, libertando-os da escravidão, em 1755, e mantendo formalmente nessa condição principalmente os chamados pretos. A própria área correspondente a Alcântara surge inicialmente como dentro Notas ao Quadro da página 119: (1) O jurista Perdigão Malheiro, em 1864, menciona o quilombo do Turiaçu como tendo durado cerca de 40 anos (Malheiro, 1976 : 36 ). A. César Marques, em 1872, registra como este quilombo se expandiu para Alcântara e Viana. (Marques, 1878, páginas 5-69). J. Viveiros cita este documento de 1702, que foi reproduzido pelos Anais da Biblioteca Nacional em 1948, volume 66, páginas 212-213, como referente ao quilombo mais antigo do Maranhão (Viveiros, 1954:88) mencionando como em Alcântara, Viana, Pinheiro, Guimarães as fazendas eram alcançadas pelos quilombolas saídos de Maracassumé, Turiaçu. (2) Cf. M. Carneiro de Mendonça - A Amazônia na era Pombalina : correspondência inédita do governador e capitão - General do Estado do Grão Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado 1751 - 1759. Rio de Janeiro, IHGB, 1º Tomo, 1963 pp. 303 - 304. 118 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 do raio de ação dos quilombolas que tem seu principal núcleo no Turiaçu. O documento que a consagra, e que é reconhecido pelos principais historiadores maranhenses como um marco na história dos quilombos no Maranhão, é uma carta do rei de Portugal ao governador geral do Estado do Maranhão, Fernão Carrilho, datada de 20 de março de 1702, em resposta à correspondência de 06 de maio de 1701, dando notícias de que: "no certam do Rio Turiacú que estavão humas Aldeias de escravos que se tinhão levantado a muitos anos e fugido a seus senhores." (sic) Esse documento foi lido e citado por César Marques, em 1872, e também por Viveiros, em 1954, tornando-se uma referência obrigatória da historiografia regional. Assinala que os chamados "corsos" ocorreram simultaneamente em Turiaçu, Viana e outras áreas, tal como ocorreria 165 anos depois, quando os quilombolas de São Benedito do Céu se deslocaram no sentido de Viana, destruindo fazendas. A menção a Alcântara é inteiramente complementar. O outro documento detectado é também uma carta, só que do capitão geral do Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao rei de Portugal, datada de 16 de novembro de 1752. Nela, o referido capitão geral, que era irmão do Marquês de Pombal, tenta estabelecer uma aplicação diferenciada de pena para "índios" e "pretos" capturados num mesmo quilombo, afirmando que os primeiros não deviam ser marcados como os outros. Como justificativa da pretendida distinção, trata os "pretos" como atomizados, enquanto os "índios" são representados como povo, agregando um limite, qual seja, que é "impossível castigar um povo inteiro". Quatro anos antes da "Lei das Liberdades dos Indios", já fala em libertação dos índios. A repressão seletiva no período pombalino se volta principalmente contra os chamados pretos e os caboclos. O uso do termo "cativeiro" na documentação, referido à condição de escravo, ainda hoje é de uso corrente na região, denominando situações vividas como de opressão e subordinação5. A documentação pombalina é mais voltada para medidas produtivas, alusivas à formação das fazendas, ao tráfico de escravos e à comercialização de gêneros agrícolas e extrativos. Não foi encontrado nessa documentação um registro sequer de levantes ou incursões dos quilombolas nas fazendas, embora as matas do Turiaçu sempre estejam nas entrelinhas da captura de escravos e de supostos perigos, e os portos de Cururupu e Turiaçu sejam sempre citados nas rotas de contrabando e do comércio ilegal de escravos. O movimento de escravos por esses portos não passava pelas estatísticas alfandegárias e de controle oficial (Salles, 1971:41). A concentração de interesses do Estado dinástico, através da Companhia Geral de Comércio, no transporte e na comercialização de escravos, resolvia um problema atinente aos empreendimentos agrícolas desde fins do século XVII, isto é, aumentava a oferta de escravos e facultava créditos que fortaleciam a capacidade produtiva e os instrumentos repressores ao alcance dos fazendeiros. A expansão das fazendas e o crescimento da vigilância e dos atos coercitivos podem ter inibido as incursões quilombolas. Uma terceira forma de registro de quilombos que foi detectada na documentação data do período de 1785 a 1793. Trata-se de referências explícitas a "mocambos", "enseada de preto fugidos", "lagos dos mocambos" e "ações de Capitão do Mato" que aparecem explicitamente nas cartas de datas e sesmarias que asseguram as concessões do poder real passadas aos sesmeiros: Ignácio de Araújo Cerveira, em 1785; 120 Alfredo Wagner Berno de Almeida capitão Manoel Ferreira dos Santos, em 1787; José Alberto da Silva Leitão, em 1788, e João de Carvalho Santos, em 1793. No caso da concessão passada ao capitão José de Araújo Cerveira, em 1787, a referência é implícita. Nessa documentação colonial, a ocorrência de quilombos antecede, de maneira flagrante, ao próprio registro de sesmarias. Embora apareçam nos registros oficiais como meros topônimos de acidentes naturais (lago, enseada, rio), a menção à ação repressora de capitão do mato e militares desnaturaliza-os, porquanto evidencia conflito, dotando de vida o que se supõe extinto ou não mais existente. Os registros dizem respeito ao chamado "Lago do Mocambo" e à "enseada dos negros fugidos", que corresponderiam a quilombos cujas áreas foram entregues por concessão régia a sesmeiros que dispunham de escravos e recursos e diziam que as terras eram "devolutas" e que, nelas, ocupação não havia. Trata-se, pois, de doações de sesmarias em terras ditas devolutas e supostamente sem qualquer presença humana, conforme foi citado anteriormente. Cotejamos os dados documentais com aqueles da história oral através de duas entrevistas realizadas nas periferias de Alcântara e obtivemos informações que localizam essas áreas próximo ao rio Aurá, ao sul do município de Alcântara, e próximo ao antigo povoado de Peru – que se localiza na chamada "área de segurança da base" e foi deslocado compulsoriamente pelo Centro de Lançamento de Alcântara, em 1987, para a agrovila que hoje responde pela mesma designação de Peru. O depoimento de Dona G., nascida em Marudá e atualmente residindo em Alcântara, adianta que: "G. - Tem a Lagoa do Mocambo que é da terra do Peru. A Lagoa do Mocambo era do Sítio do Peru. O Peru era junto com a nossa terra. A nossa terra faz divisão com o Peru. Era um lugar chamado Boca da Lagoa. Boca da Lagoa era a junção da nossa terra com o Peru. P. - E a Sra. tem alguma informação sobre esse Lago do Mocambo? G. - Tem o mocambo... que morava o povo do Peru mesmo. Um senhor que morreu. O nome dele era João Francisco. Eu não sei o sobrenome, né? Mas João Papudo era o apelido. Era o dono desta terra.(...) É, mas quando nós chegamos naquele Jabaquara, era uma terra que tinha tapera para todo lado, era preto mesmo. Já tinha morado gente. Tinha tapera de casa pra todo lado. É... Tinha tapera para todo lado. Tinha até um lugar que tinha uma tapera...No tempo que meu pai contava, que no tempo da guerra, no tempo da guerra, que o pessoal se escondiam mode a pegação, que os soldados que eles pegava o pessoal pra levar pra guerra." ( G. 22.04.2002 - ENT. 35) (g.n) Há uma superposição entre os chamados mocambos e os locais de refúgio nos períodos de recrutamento obrigatório para prestação de serviço militar, que compreendem as guerras da Independência, as lutas chamadas "separatistas", do início do segundo reinado, a Guerra do Paraguai e a citada I Guerra Mundial. Mesmo que essa referência histórica à I Guerra possa carecer de exatidão, tem-se uma analogia entre quilombo e "esconderijo", em circunstâncias vividas como de não-acatamento de 121 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 disposições legais e compulsórias. Senão, vejamos a entrevista de M., representante de povoado: "Existem algumas taperas no Peru, essas taperas era o lugar onde eles se escondiam na época da guerra, na primeira guerra mundial. Tinha como lugar chamado Mucambo. Vocês chegaram lá no Mucambo, no Peru, você encontra as tapera onde eles habitavam na época da guerra que eles se escondiam. O Mucambo, São Benedito, Tapera do Padre, Monte Alegre e Peru de Cima. Esse lugar você pode chegar lá que você ainda encontra alguma coisa dos pessoal mais antigo, esses escravos que vinham antes. Então, era tapera, uma como em Alcântara tem aqui hoje tem várias muralhas, só que lá não tem muralha: eles só corriam para lá nas épocas de guerra.... Lá era o esconderijo deles." ( M. P. 19.04.2002 - ENT. 11.3). (g.n) A noção de quilombo como valhacouto abrange, no texto das entrevistas realizadas, um repertório de termos que designam resistência a atos coercitivos pela fuga e refúgio e contêm simultaneamente referências ao apresamento de índios para o trabalho escravo nas fazendas, ao alistamento compulsório para prestação de serviços militares e à fuga de escravos das fazendas. Nesse sentido, torna-se indissociável de termos como pegação e toca, que foram detectados em praticamente todas as entrevistas realizadas e em todas as situações sociais registradas, tais como as chamadas terras de santo, as terras de preto, as terras de caboclo e demais territorialidades específicas. As próprias histórias dos antepassados são narradas consoante esses marcos, como frisa o Sr. J. N., 69 anos, que vive em São João de Cortes: "Bem aqui nós tamos aqui dentro de uma toca. Isso aqui era uma aldeia, os meus avós, os meus bisavós foram pegados a cachorro pra poder domesticar. Era índia a minha bisavó e no tempo da guerra do Paraguai houve aquele povo que tava pegando aquele povo por dentro do mato para exército, pra entrar pra guerra aí pra fora. Morreu tanta gente nesse navio sem ter necessidade e quando os filhos dela, com os netos dela, um dos netos se meteram de baixo da saia dela, que a saia dela era lá no pé. Se meteram embaixo da saia da velha que era pra não ir pra guerra. E sem ser eu, outras pessoas daqui podem também dizer a mesma coisa que eu estou lhe citando, porque aqui nós tudo somo uma parenteza toda. O povo se olha é tudo jeito de índio. E a parte indígena e a cidade dessa comunidade foi adoada pelos índios." (J.N. 20/04/2002 ENT.22) (g.n.) No mesmo sentido, tem-se o depoimento do Sr. E. A. , 60 anos, que exerce atividade de pesca em Brito: "Aqui a toca pra ali desse mato, desse mato grosso pra lá, que eu tô te falando, a gente encontra parte aí de mato, tem um lugar chamado Tabaquinha (Tabatinga), cansei de achar assim casca de sernambi e 122 Alfredo Wagner Berno de Almeida osso dentro daquele mato. Eles fugiam ali. Meu pai ele ainda contava que fugiu, passou seis dias dormindo no mato com medo...Acontece na vida do ser humano, rapaz, eles tinham medo, quando diziam a pegação aí todo mundo corria para se esconder no mato. Tinha criança que entrava no mato e saía de lá era pai de família, assim tem muito povoado aí só de preto, que fugia aí de Alcântara, ganhava a mata aí atrás. Então acontecia isto no município de Alcântara." (E.A. 20/04/2002 - ENT. 21.3) "Eles vinham apanhá o sernambi de noite para levar para comer com a família no mato, que quando eles fugiram dos brancos, que branco era perverso, outro não era tão perverso assim como se dizia e por isso que eles fugiam e iam fazer moradias, hoje tem muito povoado, no município de Alcântara, porque eles fugiram e os outros iam fazer suas casas no mato, quando acabou a escravatura, que foram libertos os escravos, aí esse povoado aí, cada um... ficaram independentes, ali de Canelatiua, antes do governo chegar com a base...". (E.A. 20/04/2002 - ENT.21.3) (g.n) Não importa em que tempo, se no passado ou no presente, as representações de medo e fuga se mesclam na prática dos entrevistados, reatualizando per manentemente uma for ma de resistência aos antagonistas, sejam eles os denominados brancos ou o Estado. Essas características são em tudo definidoras de quilombo. "A fuga é inerente à escravidão" (Perdigão Malheiro, 1976:34), como já dizia Perdigão Malheiro em 1864, e se é recorrente, assim se mantendo na memória dos entrevistados, é porque tanto é maior o rigor e a perversidade dos atos coercitivos que sobre eles se abatem. O medo, por sua vez, mesmo conjugado com fuga, denota pressentimento de perigo e uma visão aterradora do alcance dos instrumentos de repressão da força de trabalho, que marcaram a sociedade escravista e colonial. A consolidação dos quilombos no decorrer do século XIX Pode-se constatar uma expansão dos quilombos em Alcântara, entre 1811 e 1837, sem que contra eles tenha sido empregada uma força repressora significativa. As lutas políticas que marcaram a Independência e a adoção de dispositivos constitucionais, que inclusive extinguiram as sesmarias, se estenderam até fins da década 1820-30. Em Alcântara, os fazendeiros, com a derrocada da economia algodoeira e com sua retirada das fazendas, exerceram predominantemente o monopólio sobre determinados cargos e funções de representação política. Valendo-se da posição preponderante de Alcântara sobre a região da Baixada Ocidental, centralizaram interesses e estabeleceram articulações privilegiadas com o poder provincial, através das Juntas Governativas 6, e com a Côrte. Em 11 e 16 de agosto de 1823, consignaram atos de juramento de fidelidade e apoio à Independência e ao imperador Pedro I, em cerimônia realizada na Câmara da vila de Alcântara. Representantes de Guimarães, São Bento, Santo Antonio e Almas e Pinheiro se fizeram presentes. As famílias Franco de 123 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Sá, Viveiros, Ribeiro, Araújo, Costa Ferreira, Araújo Cerveira, Gomes de Castro ocupam cargos proeminentes (presidente da câmara, vereadores, comandante de destacamentos militares, tenente-coronel, capitão, alferes e procurador) juntamente com outras famílias que haviam sido aquinhoadas com concessões de sesmarias no século XVIII. Os próprios sesmeiros, mencionados anteriormente, aparecem como signatários dos documentos, bem como os futuros barões sagrados pelo imperador, a saber: Severo Antonio de Araújo Cerveira, Romualdo Antonio Franco de Sá, Francisco Mariano de Viveiros, Antonio Pedro Ribeiro, José Ascenso da Costa Ferreira, Antonio Pedro da Costa Ferreira, Jerônimo José de Viveiros etc., além de religiosos carmelitas e padres seculares7. O principal teatro de operações das forças militares encontrava-se na esfera política. Em Alcântara, as fazendas em abandono, administradas por prepostos, evidenciavam uma certa deserção dos fazendeiros. Até 1837, não foram encontrados documentos indicando a mobilização de tropas de linha para combater os quilombos em expansão, nem a crescente autonomia produtiva dos escravos sob a direção dos prepostos. Isso provavelmente explica por que em Alcântara, e particularmente nas duas freguesias de São Matias e São João de Cortes, não foram registradas "fugas em massa" de escravos, tal como ocorrido em outros pontos da região como Guimarães8, ou grandes rebeliões, como em Viana9. Os escravos, em Alcântara, permaneceram com suas famílias nas fazendas de algodão cultivando e garantindo sua autonomia a partir do processo produtivo. Certamente que o mesmo ocorreu em algumas áreas de Viana, Cajari e Guimarães, em engenhos de membros da denominada "aristrocracia alcantarense", que não conseguiram mantê-los sob seu controle absoluto. A desagregação de engenhos com formação de quilombos, como nos casos do Engenho Kadoz, da família Viveiros, e do Engenho Frechal, da família Coelho de Souza, bem ilustram isso. Entre 1835 e 1886, detectei registros oficiais de quilombos em todos os tipos de estabelecimentos agrícolas de Alcântara, quaisquer que fossem: antigas fazendas de ordens religiosas (Itamatatiua e povoados próximos, Mercês), fazendas de algodão (Esperança), engenhos de cana-de-açúcar (Gerijó, Mutiti, Itapiranga, São Maurício e povoados próximos) e fazendas de gado (Tubarão). Detectei registros de história oral de quilombos nessas mesmas unidades de produção e ainda em Flórida, Forquilha, Ladeira, Peroba de Cima, Itapuaua, Samucangaua, Iririzal, Peru, Brito e Itapera. Detectei também registros de quilombos em todas as territorialidades específicas: nas antigas terras de índio doadas para o santo (São João de Cortes), nas chamadas terras da santa (Itamatatiua e povoados próximos), nas denominadas terras de santíssimo (centralizadas em torno de Santana dos Caboclos e Samucangaua), nas designadas terras de caboclo (Peroba de Cima e povoados próximos) e nas chamadas terras de preto. Estas últimas são mais numerosas e abrangem quase todos os povoados da antiga freguesia de São Matias e quase toda a de São João de Cortes, considerando a interpenetração entre os planos organizativos de tais territorialidades (Geertz, 1967:257). Detectei a referência a quilombos em todas as situações caracterizadas por doação de fazendeiros, como nas denominadas terras da pobreza (Canelatiua e povoados próximos) que foram doadas explicitamente e por disposição registrada em cartório, incluindo-se também as doações informais, como seria o caso de Vai com Deus; situações caracterizadas por herança, como seria o caso de Santo Inácio e São Raimundo, situações caracterizadas por aquisição, como seria o caso de Baixa Grande, entre outras. 124 Alfredo Wagner Berno de Almeida Detectei, finalmente, a menção explícita a quilombos em documentos alusivos a todas as quatro freguesias correspondentes a Alcântara no século XIX, quais sejam: São Matias, São João de Cortes, Santo Antonio e Almas e São Bento. As principais fontes documentais e arquivísticas levantadas entre 1837 e 1886 concernem a carta de fazendeiro e ofícios de juiz de paz dirigidos a autoridades provinciais, documentos de chefes e subdelegados de polícia, além de procuração passada em cartório e denúncias de fuga de escravos e de incursões guerreiras de quilombolas. Completam tais referências interpretações documentadas de historiadores regionais, como César Marques, em 1872, e dispositivos da legislação provincial que focalizam a repressão aos quilombos. O primeiro desses dispositivos data de 1835 e trata-se da Lei n° 5, de 23 de abril, em que o presidente da província, Antonio Pedro da Costa Ferreira, natural de Alcântara e já mencionado anteriormente, busca reorganizar o aparato policial da província. Para tanto, institui um Corpo de Polícia Rural, sob as ordens diretas do juiz de paz em cada município, com destacamentos consoante à necessidade dos distritos tal como informado pelas câmaras municipais. A criação dessa força militar, recrutada nos próprios municípios conforme o Art. 13, volta-se basicamente contra os quilombos e estabelece premiações, além do soldo, para soldados e respectivos comandantes que aprisionarem escravos fugidos em cada distrito. Consoante o Art. 4º: "Quando no ataque de um quilombo concorrerem dous ou mais soldados, se repartirá por todos eles com igualdade as somas das gratificações, que se houverem de pagar pelos escravos aprehendidos." (sic) A reestruturação do aparato militar e as denúncias que começam a ser encaminhadas aos juizes de paz a partir daí evidenciam um certo grau de consolidação dos quilombos na província do Maranhão e notadamente em Alcântara. Aqui, ao contrário das demais regiões do Maranhão, as tropas de linha imperiais, preocupadas em enfrentar as tropas dos chamados Balaios, não tiveram qualquer participação maior. A partir do Vale do Itapecuru, quase toda a província estava imersa na guerra da Balaiada, entre 1839 e 1841. Foram capturados por Caxias cerca de 3.000 quilombolas dos 11.000 balaios feitos prisioneiros. Os quilombos de Alcântara ficaram relativamente à margem desses entreveros, porquanto não constituíam ameaça direta ao poder político. De igual modo, as escaramuças em Alcântara são esparsas, não se registram grandes combates nas proporções dos que, em 1855, marcaram a campanha militar no Turiaçu, ou tal os de 1866, que levaram ao aprisionamento de uma centena de quilombolas de São Benedito do Céu, quando saíam das matas do Turiaçu em direção a Viana. A despeito disso, tem-se uma regularidade de ocorrências que deixam entrever uma resistência constante e uma expansão sobre as áreas em que a cultura do algodão foi desaparecendo. A dispersão dos quilombos por toda Alcântara bem traduz esse movimento ascendente que vai tornando cada vez mais indistinta a produção deles daquela que os escravos mantêm para si nas fazendas ainda controladas parcial e precariamente pelos feitores e encarregados. As ruínas das antigas fazendas, apagando as diferenças entre domínios formais e ocupações efetivas, constituem um cenário comum para essas modalidades de acamponesamento que convergem para um mesmo processo de territorialização. O quadro das páginas seguintes arrola os registros levantados no decorrer dos trabalhos de perícia, que evidenciam como os quilombos foram focalizados pela documentação administrativa no período imperial. 125 NOTA: (1) Não lancei no quadro a referência de Jerônimo de Viveiros, publicada no artigo "O Mocambo de Pinheiro" na coluna Quadros da Vida Pinheirense, do periódico Cidade de Pinheiro de 12 de Junho de 1955, a um escravo fugido do Engenho Castelo que o historiador conheceu e entrevistou. A seguir transcrevo a informação: "O mucambo de Pinheiro foi famoso, famoso não pela ferocidade dos seus atos, mas pela sua organisação. Chamou-se São Sebastião e entre os seus zumbis teve um negro inteligente - Pai Mané, que lhe imprimia moldes cooperativistas. Lá a produção agrícola era da coletividade. Todos trabalhavam nela, mas ninguém usofruia maior quinhão. Por esta maneira, a subsistência era garantida igualmente a velhos e moços. Não se dava o mesmo na pilhagem, que pertencia a quem a fizesse. Neste caso consideravam a exploração aurífera que faziam nas terras da Fazenda São José, de propriedade do Comendador José Maria Correia de Souza, de Alcântara. Era negócio privativo dos maiorais do mucambo. Ninguém sabe porque nêle tomou parte ainda moço o calhambola Silvério, escravo de uma das netas do dono de São José. A verdade é que Silvério, anos depois de ter fugido do Engenho Castelo, apareceu no Pindaré e mandou oferecer à sua senhora garrafa e meia de oiro em pó pela sua carta de liberdade. Ameaçado de prisão, tornou a desaparecer, sem realizar o negócio. Após o 13 de maio, abandonou o mucambo São Sebastião, vindo residir na vila, dizem que com alguns haveres, que os filhos desbarataram. Conhecemo-lo, há uns trinta anos, quando veio a São Luis comprar um rife e visitou-nos à rua de Santo Antonio. Estava velho e paralítico dos membros inferiores, o que certamente o impossibilitava de minerar. Não parecia ter dinheiro. O seu aspecto era de um homem amigo da verdade. Foi dêle que colhemos estes dados." Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Em 1837, mediante a denúncia do fazendeiro de Alcântara Raymundo da Conceição Lemos ao vice-presidente da província, Joaquim Franco de Sá, também fazendeiro em Alcântara, não é difícil constatar, pela recusa explícita dos soldados em procurarem os escravos fugidos, a fragilidade do aparato repressivo. Os soldados alegavam que não iriam participar da captura dos escravos fugidos devido ao fato de "terem trabalhado um ano inteiro sem terem sido (serem) pagos". Pela quantidade e dispersão dos quilombos, podese verificar que as gratificações previstas em lei não pareciam suficientes para animar a tropa, obrigando os fazendeiros a empreender a busca com milícia privada formada por seus próprios "escravos de confiança". O sentido de quilombo nesse documento é tomado como sinônimo de unidades de moradia dos escravos fugidos, reproduzindo a noção difundida pela legislação colonial10 e pelos relatos militares. O denunciante se refere a fatos ocorridos no distrito de Carvalho, onde já não se plantava mais algodão em 1819, conforme atesta o coronel Pereira do Lago, descrevendo tal distrito: "Todas estas terras pouco já servem para algodão, mas só para mandioca. Onde chamam Carvalho é um istmo de ½ légua entre o fim de dois rios, ao norte pelo do Carvalho, ao sul pelo Tucupai, de sorte que as cargas que vem do Pericumã descem por este rio, entram no do Carvalho, descarregam atravessando ½ légua e tornam a embarcar no Tucupai para chegarem a Alcântara." (Pereira do Lago, 2001:34) (g.n.) Na Fazenda de Tammata-tira (Itamatatiua), que pertencia à ordem dos carmelitas antes do período pombalino e que ainda estava arrolada entre os bens do Convento do Carmo, local das principais ocorrências, tem-se que os quilombolas ameaçam tomar o controle do encarregado das terras. Na outra fazenda de Felipe Joaquim Viegas, no Tubarão, tem-se que a incidência dos quilombos, bem próxima à sua moradia, precede ao registro das terras que teria ocorrido em 28 de maio de 1855 conforme o livro dos registros paroquiais n° 01, folha 10. Os outros povoados citados são Rio Grande e Mucajuba, onde o denunciante registrou roubo de gado e ameaças de morte a vaqueiro. Neste mesmo março de 1837, o juiz de paz reitera a denúncia dos quilombos no 5º distrito em novo documento ao vice-presidente da província e reafirma o envio dos armamentos necessários para a sua dispersão. No período da Balaiada, não se registram movimentos de tropas em Alcântara combatendo os quilombos. No ano de 1844, após o término da guerra e dentro da política do governo provincial de reintroduzir o "hábito e a disciplina de trabalho nas fazendas", os guardas campestres instituídos pela Lei Provincial n° 44 já se achavam estabelecidos na Subdelegacia de Alcântara para punir a vadiagem nos campos. Então, já havia um projeto de reinstalar em Alcântara engenhos de açúcar e comercializar a produção. A insuficiência dos guardas campestres em face da amplitude da ação quilombola leva o governo provincial a aprovar novos instrumentos repressivos. Em 1846-47, ocupando a presidência da província o alcantarense Joaquim Franco de Sá – filho do sesmeiro Romualdo Franco de Sá e genro de Antonio Pedro da Costa Ferreira, que também governara a província em 1834-35 e que instituíra a polícia rural –, define como política de governo a implantação de engenhos de açúcar na província. Antes, porém, através da Lei n° 236, de 20 de agosto de 1847, intenta 130 Alfredo Wagner Berno de Almeida reorganizar os dispositivos de repressão aos escravos fugidos. Para debelar os quilombos, através da autoridade do juiz de paz, disciplina a ação dos capitães do mato instituindo uma força repressiva com pelo menos dois capitães por distrito, sendo que cada um deles não poderia dispor de mais de cinco soldados. Nota-se um misto de força regular e milícia privada animado por uma classificação dos quilombolas aprisionados em três diferentes situações, às quais correspondem gratificações distintas: "Art. 5 - Os Capitães do Mato perceberão vinte mil reis por cada escravo que for achado em quilombo; dez mil reis pelo que andar a corso, e dois mil reis pelo que for achado nas cidades, Vilas ou povoações e até uma légua de distância das mesmas." Tais gratificações são bem mais elevadas do que aquelas instituídas pela Lei n° 5, de 23 de abril de 1835. Excedem-nas em 100% nos dois primeiros casos aventados, caso sejam tratados em separado os soldos. Além disso, o Art.9o previa que os capitães do mato deveriam receber as gratificações anunciadas e prometidas pelos senhores, enquanto o Art. 10 dispunha que os quilombos tornavam-se presa de guerra, ou seja, todos os objetos encontrados nos quilombos seriam distribuídos entre os capitães do mato e seus soldados. Em outras palavras, havia uma escassez de força de trabalho para os empreendimentos açucareiros e o tráfico de escravos, começando a enfrentar obstáculos legais, já não assegurava mais uma oferta regular, o que aumentava consideravelmente o preço dos escravos, tornando a captura de escravos fugidos um negócio alta rentabilidade. Consoante os entrevistados de Itapuaua, seus avós narravam casos em que fazendeiros chegavam a roubar escravos uns dos outros: "Disse que tinha o preto vigia, que eles tinham medo do preto, esse que vigiava... se fizesse alguma pegação, ele saía de noite ia dizer pro branco. Puxava, dizem que ele puxava uma corda assim aí vinha o branco.(...) – O caçador caçava quem? – Eles roubavam um do outro. Os brancos eles roubavam preto um do outro. Eram três irmãos, da família Araújo, na Esperança, no Mutiti e abaixo." (A.C.A.ou A.T. 21/04/2002 - ENT. 23.1) Em virtude da aludida escassez, os fazendeiros, que pretendiam estabelecer engenhos com maquinarias inglesas e norte-americanas, passavam a ter interesses mais imediatos no resultado da ação das milícias. Os quilombos são vistos, nesse momento, como depósitos de mão-de-obra. A referida lei preconiza, inclusive, a montagem de um cadastro de escravos fugidos atualizada a cada ano. Nesse contexto, a legislação provincial maranhense procede a uma revisão no conceito de quilombo, estreitando-o severamente e adequando-o às novas necessidades produtivas. Afasta-se da quantidade mínima de escravos fugidos, requerida nos dispositivos coloniais, que correspondia a cinco, reduzindo-a drasticamente para dois. Os mecanismos repressivos aumentam e o quilombo passa a ser definido pelo "escravo aquilombado", restringindo o sentido de reunião tão recorrente na documentação administrativa colonial. 131 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 "Art. 12o - Reputar-se-á escravo aquilombado, logo que esteja ao interior das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião de dois ou mais com casa ou rancho." Ao aprovar essa lei, a Assembléia Legislativa Provincial se coloca nos debates que precedem a Lei de terras de 1850 e que se desenrolam desde 1839 com participação destacada dos parlamentares alcantarenses. Entre os fazendeiros, havia grupos com interesses diferenciados: os sesmeiros que tinham suas posses confirmadas, os que não possuíam confirmação e os que se mantinham na condição de simples apossamento (Shiraishi, 1998:28). Como as listagens correspondentes aos registros de terras em Alcântara, expedidos entre 1777 e 1816, arrolam menos de 25 nomes, pode-se imaginar que a última situação compreendia um número mais elevado de fazendeiros, que não se atinham às extensões usualmente concedidas e às exigências legais do período imperial, e é nesse sentido que poderia ser lida a manifestação do senador Franco de Sá nos debates parlamentares entre 1841 e 1843, sobre o tamanho das propriedades, autodefinindo-se como representante da "classe dos posseiros" (Carvalho, 1981:39). Com a Lei de Terras de 1850 e com a organização por freguesia dos registros das terras, foram instituídos os "registros paroquiais" ou "registros do vigário" (Shiraishi, 1998:26), que consistiam em autodeclarações. Nesse contexto, aumenta significativamente o total de registros. Em três freguesias de Alcântara – São Matias, São João de Cortes e Santo Antonio e Almas – foram registrados, entre 1854 e 1857, 345 imóveis rurais, isto é, 135 registros na primeira, 25 na segunda e 185 na outra. Registro de terras segundo declaração do possuidor Alcântara (São Mathias): 1854 - 1857 132 Alfredo Wagner Berno de Almeida Registro de terras segundo declaração do possuidor Alcântara (Santo Antônio e Almas): 1854 - 1857 Registro de terras segundo declaração do possuidor Alcântara (São João de Cortes): 1855 - 1856 As informações sobre o tamanho das áreas foram freqüentemente omitidas: apenas 49 na primeira, 14 na segunda e 68 na terceira freguesia. A maioria dos que forneceram tal informação situa-se abaixo de 200 hectares e, no caso de Santo Antonio e Almas, a metade estaria abaixo dos 100 hectares e apenas seis acima de 1.000 hectares. Em São João de Cortes, apenas quatro acima de 1.000 hectares, e em São Matias, sete somente. Em suma, os que pretendiam maiores extensões não declararam o tamanho de suas áreas, cingindo-se tão somente a referências vagas. Antonio Onofre Ribeiro, irmão mais velho do Barão de Grajaú e que inclusive o havia criado (Viveiros, 1975:113), limita133 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 se a declarar o seguinte no Livro 02 , folha 12, em 02 de maio de 1856: "várias posses". Da mesma maneira procede o Comendador José Maria Correia de Souza, sogro do Barão de São Bento, em cujas terras da Fazenda S. José o historiador Viveiros assinala presença de escravos fugidos e mocambo (Viveiros, 1955). Nas denominações de pelo menos duas fazendas, o termo "preto" aparece como sufixo; "Ponta do Preto", registrada em 5 de maio de 1856, por Jerônimo José Mirubins, e "Cabeça de Preto" registrada em maio de 1856 por Carlos Felipe Coelho. No registro de Aruhu (Uruhu), na freguesia de S. João de Cortes, em 25 de maio de 1856, aparecem como proprietários: "Ignácio Antonio Dias e diversos pobres". Essa área constitui hoje uma das territorialidades específicas assinaladas respondendo pela designação de Terra da Pobreza. As fazendas Engenho Castelo e Tapera, de onde fugiam os escravos para o mocambo localizado na Esperança, próximo a Itapuaua, foram registradas, em 30 de abril de 1855, por Severo Antonio de Araújo Cerveira Filho. Obtive essa informação sobre a fuga de escravos de Castelo para Esperança entrevistando A.C.A., de 78 anos, que indicou o local do "Mucambo" também tratado por toca (A.C.A.21/04/2002 - ENT.23.1). Dessas fazendas, fugiram também escravos que foram para o quilombo de São Sebastião, em Pinheiro, conforme entrevista realizada por Viveiros com um dos quilombolas remanescentes, transcrita pelo periódico Cidade de Pinheiro de 12 de junho de 1955. Este quilombola chamado Silvério, que fora escravo de uma das netas do Comendador José Maria C. de Souza, narrou para Viveiros como se dava o processo de trabalho no quilombo. O historiador registrou, sem maiores explicações, que se dava em "moldes cooperativistas".* O Convento de Nossa Senhora do Carmo registrou as chamadas Terras de Santa Tereza, onde se localizavam inúmeros quilombos em torno de Itamatatiua, tal como registrado em 1837 pela polícia rural, como Fazenda Tamatatiua (livro 01, fl. 56, datado de 1857). A Irmandade do Santíssimo Sacramento registrou, em 30 de junho de 1856, no Livro 02, folha 19, uma terra sem denominação e sem a extensão em hectares, que corresponderia às áreas designadas terras de preto, onde se localizam os antigos quilombos que abrangiam Ladeira, Samucangaua e Iririzal. Ora, à época desse registro, Bellarmino Mattos, a partir de verificações in loco, relata o seguinte sobre Itamatatiua: "Os religiosos tem ali muitos escravos, alguns oficiais de pedreiro, carapinas, oleiros, bastante porção de terras de lavrar com matas, de muitas madeiras de lei, e nas mesmas terras tem grande número de foreiros, e algumas pessoas recebem grátis o asylo." (Mattos, 1861:34). A relação da Ordem do Carmo com os escravos considerados insubmissos já foi examinada no capítulo sobre as ruínas intitulado "Muralhas e Paredões". Em outras palavras, tais terras eram um recurso aberto com uma pluralidade de posses. As informações dos entrevistados sobre as chamadas terras de santíssima indicam que para ali se dirigiram os escravos fugidos dos engenhos Gerijó e Mutiti. As terras dos mercedários não aparecem * Trecho do artigo mencionado encontra-se transcrito na nota ao quadro "Quilombos em Alcântara: Registros burocrático-administrativos (1800-1886)". (n.e) 134 Alfredo Wagner Berno de Almeida nos registros paroquiais, mas a Fazenda das Mercês desde 1819 aparece como de incidência de quilombos, como bem o demonstra a documentação transcrita no quadro demonstrativo já exibido. B. de Mattos afirma que as terras de Sant'Ana, vizinhas a Itamatatiua, dos religiosos mercedários, também tinham foreiros (Mattos, 1861:34). Ou seja, para além da escravidão, já estava vigindo nessas terras a figura do aforamento e da posse, com documentação vária assinalando isso. A família Ribeiro – ou seja, Maria Francisca, Rita Quitéria, Carlos Pedro e outros – registrou, no decorrer de 1857, sem mencionar o número de hectares, a área denominada Jarucaia, que corresponderia ao quilombo do mesmo nome assinalado pelas tropas de linha desde os anos 1834-38. Outras áreas correspondentes às terras de preto, que compreendem os povoados de São Mauricio, Santa Rita, Arenhengaua, São Raimundo II e Santa Bárbara foram igualmente registradas. Constata-se ainda que algumas das chamadas terras de caboclo, como Cujupe e Bacuriajuba, foram registradas por clérigos, a saber, o Padre José Aureliano da Costa Leite e o Padre José Ribeiro Martins. A perspectiva de organização de um mercado de terras parece ter levado os que fizeram os registros a procederem de modo formal sem que efetivamente tivessem qualquer benfeitoria nas respectivas áreas ou sem que de fato as controlassem. A precariedade das informações autodeclaradas talvez possa reforçar isso, contribuindo para evidenciar que os quilombos precederam aos registros de propriedade, já que as sesmarias eram consideradas posses pelo direito agrário do período imperial. Ocorre, entretanto, que a propriedade da terra era pré-condição para se ter direitos políticos, como sublinha Faoro, destacando a eleição de 1886 em que os eleitores habilitados representavam apenas 0,89% da população brasileira. A cena política e a magistratura eram dominadas pelos interesses agrários. Não se pode dizer, contudo, que não havia atividade econômica nos 13 engenhos da freguesia de São Matias e nos cinco de Santo Antonio e Almas, que usufruíram de incentivos do governo Franco de Sá, em 1846-47, e mantiveram a produção até os anos 1860-70. O Barão de São Bento, Francisco Mariano Viveiros Sobrinho, aparece registrando o Mutiti, em 04 de outubro de 1855, enquanto que Manuel Gomes de Sá havia registrado outra parte dele em 14 de fevereiro do mesmo ano. A tentativa de soerguimento dos engenhos teve vida efêmera, não obstante terem sido importados equipamentos e erguidas edificações grandiosas como ainda deixam entrever as ruínas do Gerijó. Tanto o Gerijó, quanto o Mutiti, não obstante terem se tornado objeto de transações de compra e venda, tiveram quilombos e se constituem hoje em situações sociais designadas como terras de preto. A contradição entre os registros formais e o reconhecimento de fato das territorialidades específicas mencionadas permite constatar que não havia resistência através de posses individuais, nem de povoados de per si, senão de vários povoados que se interpenetravam, através de relações sociais comunitárias, constituindo as chamadas terras de santo, terras de santíssimo, terras de preto, terras de caboclo. Diferem sob este aspecto da chamada terra da pobreza, que foi instituída em cartório num ato de doação do proprietário, cuja certidão constitui um dos anexos desta perícia.* Diferem também daquelas situações que, embora designadas como terra * Esse documento pode ser consultado no Volume 2. (n.e) 135 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 de preto, foram objeto de doação ou de sucessão, formal ou informal, do grande proprietário, tais como: Santo Inácio,Vai com Deus, São Raimundo I e parte de Itapuaua. Diferem ainda daquelas situações designadas como terra de preto que foram objeto de aquisição por alforriados, como Mutiti, Baixa Grande, parte de Itapuaua. Estes últimos se valeram do mercado de terras para legitimar antigos quilombos, ou seja, compraram o título formal de terras em que já cultivavam centenariamente. Em virtude disso é que se torna temerário asseverar que quando da chamada "Abolição da escravatura", em maio de 1888, já se encontra um quadro relativamente definido no que tange à estrutura agrária. A relação dos registros paroquiais transmite assim a ilusão de ordenação fundiária e de titulação definitiva, resultando numa aparente destruição dos quilombos. Não é por acaso, portanto, que os mapas hoje elaborados pelo Centro de Lançamento de Alcântara tratam todos os povoados e territorialidades específicas como "fazendas", como se de fato o fossem ou assim o tivessem sido. A realidade da representação cartográfica endossa a precariedade dos registros autodeclarados, deficientes de informações elementares, tentando transformar em realidade as ficções sobre fazendas que já não mais existiam efetivamente em 1850. Em suma, pode-se pontuar que, objetivando a estruturação formal de um mercado de terras, com prevalência de aquisições de terras públicas em detrimento de quaisquer doações ou concessões que porventura favoreçam as pequenas posses, tem-se um estímulo à formalização das terras de fazendeiros, mesmo que não as estivessem ocupando efetivamente. O ato de formalização mostra-se coextensivo a uma ação repressiva contra pequenos ocupantes, entre 1848 e 1853, em todo o Maranhão, antecedendo ao início dos "registros paroquiais", que data de 1854. A estratégia de formalização jurídica articula-se com aquela da implantação dos engenhos de açúcar. Após as ações repressivas autorizadas por Franco de Sá, enquanto presidente da província, tem-se ações contra quilombos da freguesia de São Bento, que então pertencia a Alcântara. Os juízes de paz de Vila Nova de Pinheiro e de São Bento, em 16 de julho de 1850, solicitam reforços ao presidente da província, Honório P. de Azevedo Coutinho, nos seguintes termos: "Que se nos faz muito preciso, se nos der auxilio a fim de destruímos certos quilombos que temos em nossos distritos, tanto assim que chegam a impedirem as estradas para o trânsito dos viajantes, estes malvados são aquilombados para as margens do rio do Turi, e frequentão todo este continente..." (g.n.) Em 1853, sucedem as campanhas de destruição de quilombos autorizadas por Eduardo Olimpio Machado, também presidente da província. Elas priorizam a região de Turiaçu (Marques, 1878:11) e suas ramificações por Viana, Guimarães e Santa Helena, alcançando áreas de beira-campo, em Pinheiro, com as quais interagiam economicamente os quilombolas de Alcântara. Segundo os relatos de César Marques, após essa perseguição que foi comandada pelo capitão Guilherme Leopoldo de Freitas, e após, também, pode-se agregar, terem cessado os registros de terras, os quilombos voltaram às suas formas de ocupação efetiva e estável, assim descritas pelo próprio C. Marques: 136 Alfredo Wagner Berno de Almeida "...viviam eles estabelecidos em povoações mais ou menos regulares entretendo relações com regatões ou com a gente dos povoados, ou então vivendo isolados em ranchos situados nas clareiras dos bosques, evitando cautelosamente todo o contato com a gente de fora, e cuidando exclusivamente da agricultura." (Marques, 1878:6) (g.n.) A descrição sugere relações sociais comunitárias consolidadas e uma prática de tratos agrícolas como atividade principal dos quilombos, combinada com a comercialização da produção. O presidente da província, Lafayette Rodrigues Pereira, autorizou diligência em Alcântara contra o quilombo de Jurucaia (Jarucaia), a partir de denúncia do assassinato de Antonio Fernandes Paes "atribuído aos quilombolas", consoante o texto do documento do chefe de polícia de 11 de maio de 1866, que assim dispõe: "Em resposta ao seu ofício de 9 do corrente em que V.Sa. da parte do assassinato de Antonio Fernandes Paes, atribuído aos quilombolas de Jurucaia, tenho a dizer-lhe que nesta data expeço ordem ao Encarregados dos Armazéns de artigos bélicos para que remeta ao Delegado de Polícia do termo de Alcântara sessenta armas e dois mil cartuxos para a diligência que tem de fazer o mesmo Delegado com o fim de bater os referidos quilombolas e descobrir o assassino..." (g.n.) Em 1867, ocorreram as campanhas militares mais intensas contra os quilombos ordenadas pelo presidente da província Franklin de Menezes Dória. Além do combate ao quilombo São Benedito do Céu, várias ações foram empreendidas em todo o Maranhão, chegando ao Pericumã: "Não descuidou-se a Presidência de dar outras ordens, de prevenir certos acontecimentos, de traçar, para assim dizer, o plano do cerco, do ataque e da destruição dos quilombos. Tudo isto vemos e analysamos, por termos à nossa disposição, para maior facilidade de nossos estudos históricos, o arquivo da secretaria de governo desde a presidência do conselheiro Antonio Manuel de Campos Mello, pelas razões já mencionadas não as publicamos. Receiando que os calhambolas perseguidos fossem em suas correrias atacar, ou pelo menos asylar-se em S. Bento, S. Vicente Ferrer, Paraná, Santa Helena, Villa Nova de Pinheiro e Pericumã, para alli dirigiu suas vistas, e foi isto de proveito porque além de por os habitantes d'estas localidades em movimento afim de receberem a agressão, deu ordem para aumentar os destacamentos, e ser-lhes fornecido armamento com a competente munição e correame." (Marques,1878:16) (sic) Menezes Dória, percebendo que a ação de suas tropas não era bem recebida nos povoados e vilas porquanto elas praticavam também o alistamento compulsório para 137 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 serviços de guerra, mais conhecido localmente como pegação, foi impelido a suspender esse recrutamento em Viana, Guimarães, Santa Helena, Turiaçu, Cururupu, São Bento e S.Vicente Ferrer (Marques, 1878:17). Constata-se, nesse sentido, que nas regiões próximas a Alcântara as ações de combate aos quilombos foram realizadas concomitantemente com aquelas de recrutamento obrigatório, confirmando a relação estabelecida nas narrativas dos entrevistados que tratam segundo uma inseparabilidade a noção de quilombo daquelas de pegação e toca. As tropas de linha, quando empreendiam ação contra os quilombos, eram abastecidas com suprimentos e víveres muitas vezes saqueados de comerciantes e segmentos mais remediados dos povoados. Casos de entregas forçadas de produtos agrícolas e confisco de colheitas contribuem para a descrição da rapina promovida pelas tropas de linha. Isso, por um lado, indispunha os habitantes desses povoados com as tropas, que eram mais temidas do que os quilombolas, e, por outro, os aproximava solidariamente dos quilombos não apenas nos circuitos de troca de produtos. Marques menciona como "presos e processados os indivíduos coniventes com os calhambolas" (Marques, 1878:19), que mantinham relações comerciais com eles, que inclusive os avisavam da chegada das tropas. Esse fato reforça a interpretação de que havia um repertório vasto de relações sociais comunitárias interligando os povoados erigidos sobre as ruínas das fazendas e os quilombos. As fugas funcionavam também como uma forma de interlocução entre escravos de diferentes freguesias e termos. Localizei, nesse sentido, procurações passadas por fazendeiros como Jerônimo José de Viveiros, em 03 de dezembro de 1868, a seu bastante procurador para recuperar junto à justiça de Viana um escravo fugido e seus descendentes. Da mesma maneira, haviam relações entre os escravos dos engenhos, como Castelo e Gerijó, e os quilombos de Pinheiro (São Sebastião) e de Alcântara mesmo, como o de Jarucaia. As fronteiras de separação entre eles mostravam-se tênues mediante o absoluto abandono das fazendas após o malogro dos engenhos de açúcar reinstalados a partir de 1847. Em contrapartida, os objetivos econômicos da ação bélica de Menezes Dória aparecem em seus próprios pronunciamentos transcritos por César Marques: "que era de interesse da ordem pública, para a lavoura, para a civilização em summa, obrigar os calhambolas a voltarem à obediência e aos hábitos da vida regular, perseguindo-os nos seus próprios asylos, perdidos no interior das florestas." (apud Marques, 1878:17) (g.n.) Por contraste com essa visão imobilizadora da força de trabalho que caracteriza a sociedade colonial, tem-se o reconhecimento implícito pelo próprio historiador C. Marques – que é membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e um dos biógrafos de Franklin de M. Dória, Barão de Loreto e ministro da Guerra em 1882 – do sistema produtivo prevalecente nos quilombos: "Era poderoso e difícil de ser batido (o quilombo de São Benedito do Céu) pela sua posição nas matas do Tury-Assu, pelas comodidades de suas habitações, pelos vigias, cautelas e espécie de fortificações, e pelas suas roças em tudo variadas e em tudo abundantes. Para este estado de tranqüilidade e de trabalho muito concorreu o não serem perseguidos desde 1858." (Marques, 1878:17) (g.n) 138 Alfredo Wagner Berno de Almeida Os quilombos, considerados como lugar de roças e assim reconhecidos pelos narradores oficiais das façanhas bélicas dos que buscavam destruí-los, explicitam um conflito entre diferentes sistemas produtivos. De um lado, a produção de gêneros alimentícios baseada no trabalho familiar e em formas de cooperação simples, com as famílias praticando uma reciprocidade positiva, mantendo uma relação de uso continuado e de preservação dos recursos naturais, e referidas às praças de mercado locais; de outro lado, os grandes estabelecimentos agrícolas monocultores com uso massivo de trabalho escravo, voltados para o mercado metropolitano. Ora, em Alcântara, esse já era o quadro de contradições desde finais do século XVIII e início do século XIX que pendeu para o processo produtivo autônomo dos quilombos com a derrocada absoluta das grandes plantações de algodão que jamais foram recompostas, nem sequer numa tentativa de políticas governamentais dirigidas setorialmente, como teria sido o caso dos engenhos de açúcar em Alcântara a partir de 1847-48. Os quilombos são apresentados, todavia, também como lugar sórdido onde, pela "indisciplina", que pode ser lida como recusa ao trabalho escravo, aglutinavam-se os que transgrediam as leis: "Para estes antros, para estes abrigos, todos os dias acolhiam-se, segundo participações oficiais que temos à vista ‘os pretos, seduzidos e desvairados por falsas idéias de emancipação, insidiosamente incutidas em seus animos por miseráveis traficantes, que entretendo com eles sórdido commercio, costumam fornecer-lhes armamento e munições’ e além disto a elles se agregam desertores e outros criminosos d'esta província e da do Pará, a cujo território pertenceu o Tury-Assu até 1852..." (Marques, 1878:18) As atividades de comércio eram intensas e esses quilombos persistiram e mantiveram suas delimitações territoriais e sua identidade em virtude desse tipo de relação, mantida permanentemente nas fronteiras de seus domínios, que quebrava com qualquer idéia de isolamento e insularidade. Assim, não obstante as campanhas militares do Barão de Loreto, em 1871, em Mensagem à Assembléia Legislativa, o presidente da província, José Augusto Olímpio Gomes, informava sobre a fuga de escravos das fazendas do Turiaçu, Santa Helena e S. Bento para se reunirem aos quilombos ali existentes. Em 1876, o major Honorato Candido Ferreira Caldas, do 5o batalhão de Infantaria, realiza ação contra quilombos em Viana e São Bento. Para lá se dirigindo, realiza "uma ligeira digressão" em quilombo próximo à cidade de Alcântara, ou seja, o quilombo é pretexto para uma manobra diversionista. O relatório do referido major foi transcrito pelo Diário do Maranhão de, domingo, 11 de janeiro de 1877: "... na qualidade de major fiscal, com destino à cidade de Alcântara, onde o mesmo exm. Sr. Senador (Frederico de Almeida e Albuquerque), de acordo com o dr. Chefe de polícia, entendeu conveniente que eu fizesse uma ligeira digressão com o fim, se não bater um pequeno mocambo que lhe constava existir a pouca 139 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 distância daquela cidade, de distrair por um lado as vistas indiscretas que porventura pudessem malograr o bom êxito de minha empresa". (g.n.) O Relatório do presidente da província do Maranhão, senador Frederico de Almeida e Albuquerque, de 1876, afirma, entretanto, que, com a retirada das forças de linha do 5o Batalhão, habitantes de Pinheiro e da freguesia de Santo Antonio e Almas voltaram a solicitar apoio militar para conter as "correrias" dos quilombolas. Não se percebe qualquer menção explícita a Alcântara como objetivo de qualquer campanha militar específica. Mesmo a ação de 1878, ordenada por Carlos Fernando Ribeiro, alcantarense, presidente da província, e proprietário do engenho Gerijó, é dirigida contra o quilombo do Limoeiro, no Turiaçu (Almeida, 1883:184). Em conformidade com informações coletadas por Shiraishi, um quilombo teria se formado em áreas do próprio Gerijó: "Segundo a escrivã substituta, Maria Benita, a área denominada Ladeira pode ser aquela que está na área denominada Gerijó Velho e Gerijó Novo. Ela defende a tese de que os negros fugiram da área denominada Bacuriajuba, legado do Padre José Ribeiro Martins, e formaram um quilombo de nome ladeira na área de Gerijó Velho e Gerijó Novo." (Shiraishi, 1998b:17). As atenções oficiais parecem sempre temer um perigo que emana das matas do Turiaçu, perdendo de vista a consolidação de um sistema produtivo contrário ao escravismo naqueles domínios que formalmente imaginavam como ainda das antigas fazendas. Os mandatários provinciais, que eram reconhecidos formalmente como grandes proprietários territoriais em Alcântara, acreditavam nos seus próprios mitos, ou seja, na ilusão de que controlavam efetivamente suas fazendas. Em Alcântara, entretanto, a consolidação dos quilombos ganhara um novo impulso com a desagregação dos empreendimentos açucareiros nos anos 1860-80, que levaram inclusive à extinção do maior deles, o Engenho Gerijó. Consoante as narrativas, a este tempo, em 1861, a população da freguesia de São Matias, onde se localizava a sede municipal, era constituída de mais de 56% de escravos e de um percentual acentuado de alforriados (Mattos, 1861) e a própria cidade de Alcântara já se encontrava em estado de abandono, consoante o mesmo Bellarmino de Mattos em seu Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial de 1861: "Hoje está meio abandonada, com as casas desertas e as ruas nuas de viandantes." (Mattos, 1861:24) Os demais documentos levantados até 1886 referem-se a procurações para resgate individual de escravos ou às dificuldades de deslocar tropas para combater quilombos, com as autoridades da burocracia imperial transferindo responsabilidades de captura para os próprios fazendeiros de Santo Antonio e Almas e São Bento. O aparato repressivo oficial encontrava-se nos seus estertores e o controle efetivo da produção agrícola em Alcântara, já bem antes da abolição formal da escravatura, estava nas mãos das comunidades de quilombo erigidas sobre as ruínas das fazendas. 140 Os territórios de parentesco O processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombo em Alcântara, cabe repetir, não pode ser pensado consoante um desenvolvimento linear e cumulativo. Há descontinuidades historicamente determinadas e de sentido aparentemente paradoxal que convergem para a formação de um território étnico. As territorialidades específicas, que o constituem, foram construídas de modo diferenciado, como foi possível observar com as chamadas terras de santo, terras de preto e terras de caboclo. Da mesma maneira que as chamadas terras de santo abrangem situações sociais referidas a ordens religiosas e irmandades distintas, que foram afetadas desigualmente pelo Estado dinástico em diferentes momentos históricos – como, por exemplo, os jesuítas, em 1758, e os carmelitas e mercedários, em 1821 –, tem-se que os povoados que se agrupam nas chamadas terras de preto e as terras de caboclo também compreendem uma diversidade de situações. As diversas formas de acesso à terra, que se dispersam em face delas, concorrem para uma descrição sumária dessas diferenças. Doações de terras, aquisições, ocupações por abandono ou através de conflitos explicitam as referidas dinâmicas de autonomia e as modalidades segundo as quais se formaram os grupos sociais a elas referidos. Verifica-se, assim, que, para além das doações apontadas anteriormente como tendo sido feitas dos "índios para os santos" ou "dos índios para os pretos", há aquelas em que o fazendeiro é apontado como tendo doado formal ou informalmente terras a escravos e ex-escravos. No mesmo sentido, há casos de aquisição de terras e há distintos casos de ocupação abrangidos pela denominação terra de preto. Ademais, numa mesma forma de domínio, ou seja, numa mesma territorialidade, não se tem uma e apenas uma rede de parentesco, como se procurará expor adiante. As doações de terras Em se tratando de doação, pode-se destacar, nos relatos dos entrevistados, que são narrados como atos tanto antecedentes quanto concomitantes àquele da abolição da escravatura, de 1888. Tais narrativas, ao enfatizarem a condição de ex-escravos e de "libertos", evidenciam um grau de percepção jurídica de sua posição, já que nenhuma lei garantia ao escravo o pecúlio ou a propriedade de bens móveis ou imóveis, ou mesmo a sucessão. Para efeito de ilustração, selecionamos quatro situações relativas a doação que se referem a povoados – Santo Inácio, Vai com Deus, Itapuaua e São Raimundo II – que Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 se localizam nas denominadas terras de preto do noroeste ao sudeste do município de Alcântara, descrevendo uma diagonal. Sem qualquer pretensão de estabelecer regras de descendência unilinear, passarei a descrever as situações verificadas. Os laços de parentesco em Santo Inácio e São Raimundo II são traçados pelo lado das mulheres1, em Vai com Deus e Itapuaua pelo lado masculino. No caso das mulheres, elas são vinculadas implícita ou explicitamente às famílias dos senhores. Na situação de Santo Inácio, Laurencia, ao nascer, embora classificada pelos dispositivos coloniais como "filha natural", é filiada ao grupo de parentes, também por intermédio do pai, através de uma relação de patronagem, o que lhe provê uma série de direitos de descendência. "Santo Inácio foi uma posse de terra que foi doada pelos brancos a uma escrava Laurencia que, após a liberdade da escravatura, o branco disse que doou. Dr. Carlos doou à sua filha Laurencia. Ele coabitou com uma escrava e doou parece que foi duas, três posses de terra e a Santo Inácio foi uma das tais que era bem pertinho e a fazenda dele era ali no Gerijó, fica bem ali entre Santo Inácio e onde hoje tem as muralhas, os marcos estão lá, os casarões. A minha avó já era parece neta ou bisneta da Laurencia." (P.F.C. 12/04/2002 - ENT. 01 ) (g.n.) "Minha bisavó Régina ganhou a terra porque ela era escrava, naquela temporada antiga ela era escrava. Aí o branco, quando teve a liberdade, o branco liberou essa parte de terra para trabalhar aqui mais o marido dela. Pascoal que era o nome dele. Meus bisavós deram para minha avó, ela pra minha mãe, há muitos anos. Aí ficou no Jequitiua esta terra, ficou parada, os velhos morreram, não se incomodaram de pagar, ela ficou parada. Aí quando eu me criei bem eu paguei, paguei oitenta e seis anos eu paguei, do anual desta terra aí fiquei pagando, fui lá peguei o registro da terra trouxe, levei ao INCRA, foi para Brasília e veio o total a pagar..." (B.P.A. 19/04/2002 - ENT.17 ) (g.n.) "...O Cerveira justo doou pra filha do Francisco, que é a Glades, que mora em Brasília, mas ela não pagou nada do imposto da terra...Então ela disse que ia doar estas terras pros pretos, que justo era a gente da minha mulher e do Antonio Tó." (J.A. 21/04/2002 - ENT.23 ) (g.n.) "O marido da minha avó foi escravo no Gerijó. O nome dele era Zeferino. Quando acabou a escravatura o senhor dele, o Dr. Carlos, deu um lugar de casa a cada um. E ele escolheu o lugar e foi falar com o senhor dele que tinha posto o nome no lugar de Vai com Deus. O senhor falou para ele ir buscar a escritura da terra, mas meu avô nunca foi lá pegar e nós continuamos morando nela." (D.A.M. 08/06/2002 - ENT.34) (g.n.) Nas narrativas, cuidam de bem citar o doador das terras e do "chão das casas", acentuando que por descuido ou acontecimento acidental não se completou a legalização da doação. Também em São Raimundo I, coletamos relatos que ressaltam o direito ao chão da casa, dado a uma "filha natural" do senhor com uma escrava 142 Alfredo Wagner Berno de Almeida (M.E.A. 23/04/2002 - ENT. 27). Conjugam o mito do "bom senhor", generoso e compreensivo após a Abolição, com a legitimidade de seu domínio sobre as terras. Assim, não obstante os descuidos de não formalizarem a entrega das terras, permanecem legitimamente nelas. Os fatos narrados por si sós justificariam a doação, isto é, as terras teriam sido obtidas através de: "união natural", caso da mãe de Laurencia e seu senhor; reconhecimento pelo trabalho exercido, caso de Régina e Pacoal e Zeferino; e contrato verbal em que os ex-escravos ficam incumbidos de pagar os impostos, caso de Itapuaua. Havia uma norma da legislação colonial que não permitia aos "livres" contrair matrimônio com escravos, assim também não se cometia adultério com eles. Entretanto, o parentesco resultante do fruto desses intercursos sexuais torna-se uma expectativa de direito nas narrativas dos entrevistados. A partir deles, apropriam-se do nome dos senhores que partiram e permanecem idealmente como os detentores dos domínios. O fato de os libertos passarem a controlar efetivamente as terras e tomarem para si os nomes de família dos seus antigos senhores constituiu-se numa realidade, mesmo que os laços de sangue alegados possam ser fictícios. Por disposição legal, os escravos não possuíam família e entre eles não haveria casamento, nem parentesco, mas tão-somente o que as autoridades coloniais tratavam de "união natural". Ao se apropriarem das terras e dos nomes da aristocracia agrária alcantarense, eles manifestam uma expectativa de direito e fazem da memória um recurso de história oral para documentar genealogias inteiras que não foram necessariamente registradas. As territorialidades que lhes correspondem – além de serem denominadas com a categoria pela qual se autodefinem e são conhecidos, pretos – constituem um lugar de predomínio de nomes de famílias que seus fundadores adotaram. A genealogia dos exescravos que receberam as terras de São Raimundo II foi elaborada por Aniceto Cantanhede, que dispôs numa linha de descendência, a partir de Régina e Pascoal e sua irmã Ingrácia e Francisco, 29 descendentes diretos. As terras da pobreza Para além dessas situações, tem-se a nordeste do município uma doação registrada em cartório, referente à chamada terra da pobreza, que foi, inclusive, cartografada por oficiais da Aeronáutica, provavelmente em 1985. Conforme documento passado em 15 de janeiro de 1915 pelo escrivão Freire Lemos2, pode-se ler: "Há tempos immemoriaes que o finado Theofilo José Barros, em uma das cláusulas de seu testamento legou à gente pobre de São João de Cortes -, para nella se estabelecerem os pobres e suas familias cultivaremna, goza-la e tirarem d'ella os fructos para seu sustento e manutenção. Este trecho de terra é o em que se acham hoje situados os povoados Retiro, Canelatiua, Araray, Uru, Uru Mirim, Rio de Ignacio e Santo Antonio, com 65 casas habitadas por uma população pobre, a qual com suas famílias se ocupa no serviço de pequena lavoura; sendo alli se acham domiciliados, vindo de seus antepassados, há mais de cem (100) annos." (sic.) A expressão "tempos imemoriais" consta dessa certidão, que ao reconhecer formalmente, em 1915, que há mais de um século ali se encontram, permite que se estime 143 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 em pelo menos dois séculos a autonomia desses povoados, ou seja, desde a derrocada da economia algodoeira. A este tempo, segundo as narrativas coletadas em entrevista, os chamados brancos começam a abandonar as fazendas em Alcântara. Trata-se de um conjunto de povoados hoje apontados como na faixa de segurança da área desapropriada em 1980 para a instalação da base da Aeronáutica, e sob ameaça de deslocamento compulsório desde 1997. As chamadas terras da pobreza são subdivididas em quatro áreas que têm como limite: a oeste, a antiga Fazenda Mato Grosso; ao sul, as terras dos povoados de Brito e Itapera, limitado este pelo igarapé de Canelatiua; a leste, o oceano, e ao norte, pelo povoado de Retiro, alcança também o mar. As compras de terras As aquisições também são arroladas nesses meios de obtenção de terras. Vaqueiros, pequenos comerciantes e ex-escravos aparecem como adquirindo as terras que hoje integram os povoados de Baixa Grande, Mutiti, Esperança e parte de Itapuaua. Os seus descendentes diretos apresentam-se e são vistos localmente como herdeiros. Mesmo sem formal de partilha, mantêm-se nas terras segundo um sistema de uso comum dos recursos naturais. No caso de Peroba de Baixo, também os Gusmão se apresentam e são representados como herdeiros. Em Conceição e Mutiti, D. Raimunda Gregória de Sá (Mundica), que reside no povoado de Conceição, diz "ser a única herdeira e neta de um dos proprietários" (C. Galvão, 1998:16). Em Baixa Grande, a descendência é traçada pelo lado masculino. Todos se referem a Eloy Antonio Sá, pai do Sr. Pedro Nascimento Sá, atual liderança e herdeiro, com 86 anos, como antepassado comum. Em Itapuaua, também: o avô de seu Antonio Tó, herdeiro com 78 anos, era escravo que prestava serviços na casa-grande da Esperança. Ele "embalava e abanava os senhores" (Carvalho Martins, 1998:14) e se casou com uma mulher assinalada nas entrevistas como "cabocla" de Santana, ou seja, das terras de santíssimo, que não era escrava. Consoante as entrevistas, o matrimônio teria ocorrido após a abolição e eles adquiriram uma porção de terras, deixando-a depois aos filhos. O capítulo dessas aquisições, a partir de fins do século XIX, inscreve-se num quadro mais geral delineado por Viveiros ao analisar os efeitos da abolição da escravatura. A abundância de terras no mercado forçava a baixa dos preços e registrava que terras de Alcântara, já sob o controle efetivo dos ex-escravos, estavam agora mudando de mãos no plano jurídico-formal. "Das fazendas afastavam-se os senhores com a mesma ansiedade que os ex-escravos deixavam os ranchos do seu cativeiro. (...) Poucos ficaram, uns enfrentando a crise para sucumbirem mais adiante, como o dono do engenho Tijuca; outros assistindo estóicamente a derrocada de sua fortuna, como o proprietário do engenho Aracanga que nem desencaixotou os aparelhos chegados da França. A maioria desertou da luta, aceitando os 10% sobre o valor da propriedade, que lhe oferecia o vendeiro da encruzilhada ou o negociante da povoação." (Viveiros, 1954:558) 144 Alfredo Wagner Berno de Almeida Na sua interpretação concernente aos efeitos da abolição da escravatura no Maranhão, o historiador Viveiros utiliza metáforas que expressam uma hiperbolização do acontecimento, tais como "hecatombe" e "catástrofe". Ao ressaltar a execução das hipotecas das fazendas e o êxodo dos ex-escravos, afirma que: "cerca de 70% dos engenhos de cana e 30% das fazendas algodoeiras fecharam as portas." (Viveiros, 1954:557) Ora, semelhante quadro em Alcântara antecedera à abolição em pelo menos vinte anos. Entrementes, agora se observava que também se interessavam pelas terras grandes comerciantes, cujo objetivo primeiro era reintroduzir o aforamento, exigir a obrigatoriedade de venda dos produtos agrícolas e extrativos nas suas casas comerciais e de prepostos (quitandas, vendas e barracas) e implantar uma pecuária extensiva. Uma pressão sobre as terras correspondentes àquelas territorialidades mencionadas se fez imediatamente sentir, instaurando um clima de tensão e conflitos. No período republicano, a partir do Decreto nº 451B, de 31 de maio de 1890, que estabeleceu novos critérios de registro e transmissão de imóveis, e do Art. 64 da Constituição de 24 de fevereiro de 1891, que destinou as terras devolutas à administração dos governos estaduais, os entrevistados recordam de conflitos a partir das demarcações. Quando as terras doadas, ocupadas e adquiridas começaram a ser demarcadas para registro, teriam surgido, na versão dos entrevistados, pretensos proprietários das terras. Os domínios autodeclarados nos registros paroquiais após a Lei de Terras de 1850 não correspondiam aos limites das terras efetivamente ocupadas pelos chamados pretos, pobres e caboclos. A tentativa de materializar pontos de imóveis rurais que apenas existiam na imaginação dos que só fizeram declará-los entre 1854-57 resultou em antagonismos. Em Santo Inácio, apareceram nove pretensos donos das terras, querendo usurpar as comunidades remanescentes de quilombo. Um pretenso dono de tudo, no caso da demarcação de Mato Grosso, queria englobar as chamadas terras da pobreza. Esta última demarcação, a única sobre a qual detectei documentos cartoriais, foi embargada no início do século XX: "Místicas à terra da ‘Pobreza’ jazem as denominadas de ‘Mato Grosso’ outrora de um Fernão Troça, já há muito falecido e hoje divididas em 5 quinhões, dos quais é Esterlino Azevedo possuidor de um por compra feita a Dr. Urraca Prado. Ora, como fica acima dito a ‘Terra da Pobreza’ é efetivamente habitada por gente pobre, secularmente, desde os seus maiores, sem que até há pouco tivessem sido perturbados em sua posse. Desde, porém que Virgílio Esterlino de Azevedo se estabeleceu nas terras do ‘Mato Grosso’ que começou de fazer àquelles pacífico vizinhos exigências dezarrazoadas e impertinentes as quais lhe não assiste a menor partícula de direito; e ultimamente tem tido estulta verleidade de proihibir que o protestante roce na terra que ocupa desde que nasceu sendo que já conta 52 anos de idade. E como não haja logrado sua pretensão, tem contractado um agrimensor para demarcar extra-judicialmente as terras de ‘Mato Grosso’, como si todas estas lhe pertencessem. Como, porém o protestante tem a certeza de que, com este insidioso procedimento, o protestante não visa se não esbulhá-lo e a muitos moradores da ‘Terra da Pobreza’, de sua posse mansa, pacífica e nunca contestada; e outrossim, por que não concorda e sabe que nenhum morador acima referido concorda com essa demarcação extrajudicial, vem perante V. Exa. contra 145 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 ella protestar, e pelos prejuízos que d'ahi possa advir." (sic.) (Protesto registrado em cartório contra demarcação extrajudicial. Alcântara, 15 de janeiro de 1915) No caso de Santo Inácio, de acordo com os entrevistados, houve também resistência à demarcação: "As pessoas compravam um sítio... e desse sítio ele botava o rumo ele mesmo e tirava uma parte para ele. Aí vinha no cartório, amizade e tal e tal, e pessoal não ligava para isto, quando menos esperava tava com um pedaço registrado. Foi a origem que quando se demarcou Santo Inácio, tava com nove donos, que não eram herdeiros de Laurencia." (P.F.C. 12/ 04/2002 - ENT.01) Percebe-se uma disputa constante pelas terras e atos de apossamento ilegítimos, como no caso de Santo Inácio, forçando as comunidades remanescentes de quilombo a pagarem foro nas próprias áreas que lhes foram doadas e onde se mantinham autonomamente, em termos produtivos, bem antes da abolição da escravatura. Atos similares foram observados quanto aos povoados de Só Assim, Peru, Itapuaua e Arenhengaua: "Não, as terras de Alcântara não pagavam foro na época, de lá pra cá veio criando esses donos e já do meu conhecimento para cá, onde eu tô lhe explicando, já tinha dono só que antes não tinha." (I. 16/04/2002 - ENT. 12) "As terras ficaram aí. Os branco foram embora. Olha, depois de um certo tempo, quando Nojosa chegou aqui, começou a ser dono. Compravam com o Souza e esse pessoal começaram a dividir terra e começaram a cobrar foro. – Mas antes não pagavam? – Não tinha antes. Começou a ter depois, aí depois para cá já tinha a velha Alena tinha uma parte... Compravam. Era assim. O Otávio comprou do João de Souza, do Isidoro Souza... e foram negociando. Agora de quem Isidoro adquiriu não sei, porque antes, é as histórias a gente sabe aqui do Rio do Cujupe, até fazer limite com a terra da senhora de Santana, era de Santa Teresa, aí depois surgiu um somente de dono por dentro que quase Itamatatiua fica sem ter terra. – O limite da terra de Santa Teresa aqui (apontando o mapa) seria onde? – Seria o rio do Cujupe aqui, aí pegando para cá e a terra vai até fazer limite com as terras de Santana, em Bequimão. Mas depois disto surgiu este monte de dono, esse monte de confusão toda que a gente não sabe distinguir." (G.X. 19/04/2002 ENT.16 ) Na assertiva de G., tanto Arenhengaua quanto São Maurício originariamente estariam dentro das terras de Santa Teresa. Mas foram incorporados pelos engenhos nos anos 1850-60. Os engenhos, entretanto, na década seguinte já estavam arruinados e as famílias escravas usufruíam das terras sem recolherem aforamento. Com as vendas de terras, houve tentativas de demarcação que geraram conflitos em Arenhengaua e também em São 146 Alfredo Wagner Berno de Almeida Raimundo II, onde várias famílias acabaram se deslocando da área com receio do agravamento dos entreveros (B.P.A. 19/04/2002 - ENT. 17). O processo de territorialização assinala, portanto, conflitos nas primeiras décadas do regime republicano com fortes pressões sobre as terras das comunidades, que embaralharam certos limites tradicionais, mas que não chegaram a desestruturar, entretanto, o sistema de uso comum e de interligação entre os povoados e as relações sociais comunitárias entre eles. Tampouco foram afetadas as relações entre os denominados herdeiros e os demais moradores dos povoados em que foram registradas aquisições ou em que houve transmissões por sucessão a partir da doação originária. "Os herdeiros, naquela época, não cobrava foro de quem trabalhava lá no Santo Inácio. Tudo era comum. Comum eram os foreiros, por exemplo, que não eram herdeiros. Os herdeiros não cobravam nada dos que trabalhavam lá."(P.F.C. 12/04/2002 - ENT.01). (g.n) Essas relações protegiam os que pertenciam ao povoado e simultaneamente os distinguiam daqueles de áreas circundantes: "A forma de produzir era comum. Era comum assim entre os moradores de lá. Agora, quando tinha alguém que chegava, estranho, dos povoados vizinhos, que a área que pertencia e que estava no domínio dos que diziam ser donos, eles cobravam uma gratificação... de farinha, mas era irrisório."(P.C.F. 12/04/2002 - ENT. 01). (g.n) De maneira semelhante, constata-se, em São Raimundo II: "Não, nunca ninguém pagou foro aqui. (...) Não, aqui esse morador aqui nenhum paga foro, nunca ninguém pagou, trabalhamos aqui. Nunca ninguém recebeu um paneiro de farinha, um de milho, de foro. Nem herdeiro, nem ninguém." ( B.P.A. 19/04/2002 - ENT.17) A tentativa mais proeminente de reinstalar uma subordinação através do aforamento só logrou êxito por algumas décadas, desfazendo-se inteiramente depois. Foi encetada pelo comerciante que adquiriu maiores extensões de terra em Alcântara no período posterior à escravidão e até 1941, Antoninho (Antonino) da Silva Guimarães3 (Viveiros, 1975:142), que possuía "casas de comércio" na cidade de Alcântara, em Raimundo Su e em Santo Antonio e Almas (Bequimão). Além de forte presença econômica adquirindo terras e sobrados, concorreu para que, no plano político, se destacassem os Ramalho, em Alcântara e Bequimão. Datam de 25 de setembro de 1905 e de 15 de maio de 1934 os registros de compra de partes da área "Santa Rita" adquiridas por Antonino Guimarães de Antonio Pedro de Araújo Cerveira (Shiraishi, 1998:10). Adquiriu também nesta primeira década do século XX a Fazenda Arequipá, com engenho de açúcar, localizada na beira-campo, em Bequimão. O genro de Antonino, Marcial Ramalho Marques, casado com sua filha Ana Guimarães, adquiriu também as terras de Janã. Em 1941, os dois netos de Antonino 147 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Guimarães, filhos de Marcial e Ana, adquiriram Flórida e Caranguejo. A filha de Antonino adquiriu, posteriormente, Gerijó Velho e Gerijó Novo4. Prevalecia o sistema de aforamento nessas áreas e a obrigatoriedade da venda do coco babaçu nas "quitandas" dos prepostos dos proprietários que se espalhavam pelos diferentes povoados. Em 1934, as terras do Ariquipá, que haviam sido passadas a uma sociedade intitulada "Marques, Ramalho e Cia.", formada por Agostinho Ramalho Marques, irmão de Marcial, e Raimundo Magalhães Ramalho (Nhônhô Ramalho), foram transmitidas para o segundo. O genro de Antonino Guimarães tornou-se prefeito de Alcântara e Nhônhô Ramalho, prefeito de Bequimão. Quando faleceu, em 1963, Marcial ocupava novamente o cargo de prefeito de Alcântara, e o sistema de cobrança de foro em suas terras só persistia simbolicamente. Não obstante a força da presença de Antonino Guimarães na memória dos entrevistados nessa área que correspondia à antiga freguesia de São Matias, observa-se que seu nome não foi adotado por famílias de nenhum povoado. De certa maneira, isso evidencia que suas aquisições foram posteriores à formação dos territórios de parentesco e das territorialidades, e que sua modalidade de exploração das terras não conseguiu quebrar a unidade étnica e não teve força para imprimir uma forma de organização nas comunidades que contrariasse os pressupostos do trabalho livre e da autonomia produtiva. Nesse sentido é que seu nome de família não teria sido arrebatado e tampouco tornou-se objeto de uma conquista com expectativa de direito. Embora a tentativa de instituir aforamento possa ser lida como uma contramarcha para frear o processo de territorialização apoiado na autonomia produtiva e no sistema de uso comum dos recursos naturais, cabe acrescentar que ocorreu também uma mobilização étnica em sentido contrário que evitou a fragmentação dos povoados e o chamado "êxodo rural". Os laços de co-residência foram articulados com os laços de parentesco no estabelecimento de uma solidariedade revestida de princípio hierárquico. Melhor explicando: tal resistência se configurou na ação dos chamados encarregados da terra em Forquilha, Pavão, Janã, Santa Rita, São Raimundo, Ladeira, Engenho, Terra Mole, São Francisco, Rio Grande, Peroba de Cima e demais povoados. Os detentores dessa função administrativa eram simultaneamente mediadores e lideranças nos próprios povoados, preservando as reservas de mata e disciplinando o uso dos recursos, isto é, não violaram as normas elementares de convívio e, antes, as reforçaram. A tentativa de implantar o aforamento foi, portanto, pontual e não teve vigor nem força o suficiente para alterar as normas de uso comum adotadas tradicionalmente. Ao contrário, foi obrigada a reconhecer a autoridade das lideranças locais e não chegou a criar uma modalidade de administração dos recursos que as substituisse. Não constitui paradoxo, portanto, o tom nostálgico de certos depoimentos que sublinham a preservação de madeiras de lei e de uso dos igarapés, quando os encarregados da terra iam medir com cordas os terrenos e conceder as licenças de plantio. Esse tom foi constatado quando os entrevistados mencionam a perda de autoridade dos responsáveis pela preservação dos recursos estratégicos aos povoados, após a desapropriação de 1980 e os deslocamentos compulsórios realizados pelo CLA em 1987. Os primeiros impactos dessas medidas atingiram tanto os chamados encarregados da terra e encarregados da santa quanto os chamados herdeiros, bem como povoados fora da área do decreto de 1980, deixando que as terras fossem dispostas como recursos aparentemente abertos ou, em outras palavras, como diriam moradores de Pavão e São Raimundo II, como "terra de ninguém". No momento 148 Alfredo Wagner Berno de Almeida do trabalho de campo pericial, os moradores dos povoados estavam se organizando para impedir que continuasse a retirada ilegal de madeira: "Eles tiram é o pacazeiro, é todo pau. Essa aí é a madeira mais procurada o pacará. Ela é mais resistente. Tiram também a meguba, essas madeiras para poder fazer as casas. Em Pinheiro e Bequimão tão comprando as madeiras." (B.P.A. 19/04/2002 - ENT. 17) Os territórios de parentesco Os povoados enquanto unidades afetivas, como domínios reconfirmados por aquelas formas de acesso mencionadas (doação, aquisição, ocupação, sucessão), deixam entrever que o sistema de parentesco pode ser traduzido em termos de representações espaciais. Os nomes de família, legitimamente conquistados junto com a terra, distribuemse pelas territorialidades específicas e pelos povoados tal como as famílias aristocráticas distribuíram-se pelas sesmarias, sem que as territorialidades, todavia, se limitem necessariamente aos marcos divisórios das sesmarias. Os nomes Sá, Araújo Sá, Araújo Cerveira, Morais, Ribeiro, Silva, Gusmão, Serejo, Gonzaga, Costa e Diniz são indicativos de pertencimento a povoados, mas não se restringem a povoados de uma única territorialidade. Acham-se dispersos entre elas. Os Sá e os Araújo tanto podem ser encontrados nas chamadas terras da santa quanto nas terras de preto. Os Araújo podem ser encontrados também nas terras de santíssimo. Os Morais tanto podem ser encontrados nas chamadas terras de caboclos quanto nas terras de preto. Os Ribeiro tanto estão nas chamadas terras da pobreza quanto nas terras de preto. Os nomes de família perpassam as distintas territorialidades chamando a atenção para laços de solidariedade que explicitam que a ocupação não se deu apenas com a permanência dos escravos nas fazendas, mas através das relações que foram estabelecendo com aqueles que escaparam ao controle dos mecanismos repressores da força de trabalho. Nesse sentido é que foi possível observar o uso de expressões como a "irmandade dos Sá" ou a "irmandade dos Araújo". Assim, considerando os povoados das chamadas terras de santíssima, como Samucangaua e Santana dos Caboclos ou Forquilha, tem-se que os vínculos entre eles podem ser mais frágeis do que aqueles entre Samucangaua e Ladeira, apontado como antigo quilombo, ou entre Forquilha e Peroba de Cima. Redes de parentesco foram sendo erigidas e os próprios quilombolas se apropriaram dos nomes adotados por aqueles com quem mantinham laços de solidariedade permanentes, seja em Jarucaia, seja em Esperança e Itapuaua. Os grupos baseados no parentesco e na afinidade aproximaram os que ficaram subjugados no âmbito das grandes plantações e engenhos e aqueles que se mantiveram fora do controle senhorial. A clivagem entre "famílias de preto" e "famílias de caboclo" tem uma força distintiva, em contextos de regras de residência, que se dilui em homogeneidade relativa em situações de uso dos recursos naturais e de sua conservação, em situações de conflito e, inclusive, em situações de entretenimento e de devoção (festas religiosas, jogos de futebol, "reggae"). Sob esse aspecto, pode-se asseverar que se está frente a um entrelaçamento entre os povoados e entre as distintas territorialidades que, a despeito dos diferentes nomes de família e suas respectivas redes de relações sociais, consolidam uma forma identitária e de pertencimento a um mesmo território étnico. 149 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 No caso das agrovilas implantadas pelo CLA, já não parece ser possível, em virtude da limitação dos recursos disponíveis às famílias deslocadas, a manutenção de regra de residência duolocal ou norma, segundo a qual noivo e noiva devem permanecer em seus locais originais, mantendo aí residências. Os lotes oficialmente destinados às famílias, com apenas 16 hectares, mal permitem a reprodução simples. Tem-se o enfraquecimento dos grupos familiares que permanecem nas agrovilas, cujos filhos e filhas contraem matrimônios em outros povoados onde passam a residir. Um dos exemplos seria a relação entre as famílias de pescadores de Brito e aquelas das agrovilas como Só Assim e Peru, onde passaram a vender o pescado5. As relações no sistema de parentesco aqui só podem ser devidamente entendidas se relacionadas às condições de acesso aos recursos naturais e às estratégias de sobrevivência adotadas pelos grupos em face da situação de escassez resultante do Plano de Reassentamento do CLA. Para fins de ilustração, passarei a expor um quadro sintético focalizando alguns desses entrelaçamentos anotados no decorrer do trabalho de campo pericial. 150 Indicação do limite sul da Terra dos quilombos O território das comunidades remanescentes de quilombos As territorialidades específicas verificadas em Alcântara, que atendem pela designação de terras de preto, terras de santo, terras de santíssima, terras de caboclo e terras da pobreza, são de diferentes ordens e mostram-se extremamente diversificadas, conforme sublinhado anteriormente, abarcando uma multiplicidade de povoados, cujos agentes sociais afirmam seu pertencimento pela adoção de categorias de auto-atribuição tais como: pretos, caboclos e pobres. Os povoados, mesmo quando contíguos, podem ser diferentemente organizados1. Aspectos formais, tais como as relações de consangüinidade ou referências recorrentes a um mesmo antepassado, podem ser essenciais num povoado e ter significado marginal noutros2. Tal diversidade impele as territorialidades para um sentido plural e extremamente diverso. Os elementos de descrição e a observação etnográfica não podem, estrito senso, homogeneizar situações dessa ordem com o risco de perder as peculiaridades de cada uma delas. O grau de coesão que caracteriza cada uma delas pode, entretanto, ser passível de aproximação sem afetar o rigor da análise. Isso porque tal coesão não se esgota numa atividade econômica comum para atender às necessidades coletivas e sempre compreende fatores de parentesco, de afinidade e de solidariedade política, que organizam a interação entre os agentes sociais e concorrem de igual modo para garantir o ideal de autonomia que historicamente as torna distintivas. As análises dos "territórios de parentesco", empiricamente assinalados, e das ruínas dos engenhos e casas-grandes, como fatores de manutenção de fronteiras e de construção social das territorialidades, permitiram a descrição de diferentes modalidades de persistência, como grupos étnicos, das comunidades observadas, de acordo com as proposições teóricas de F. Barth. Ao asseverarmos, pois, que as mencionadas territorialidades convergem para um território étnico de algum modo delimitável, apoiamo-nos novamente nesses pressupostos teóricos: "Em primeiro lugar enfatizamos o fato de que os grupos étnicos são categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos próprios atores; consequentemente tem como característica organizar as interações entre as pessoas." (Barth, 2000:27) A investigação pormenorizada de realidades empiricamente observáveis explica a demarche dos trabalhos de pesquisa inerentes a esta perícia, que evitou recorrer a uma tipologia de grupos e relações étnicas, como acentua Barth, para dar ênfase a processos reais de territorialização que asseguram a etnicidade dos grupos ora examinados. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 A partir dessas premissas, quando sublinhamos que os povoados das comunidades remanescentes de quilombo em Alcântara apresentam grande variação, mas têm seus fundamentos num conjunto de componentes essenciais que disciplinam o sistema de relações sociais, estamos tentando responder a indagações no sentido de qual tipo de "unidade territorial" estaria em jogo. Para tanto, recorremos ainda aos estudos de C. Geertz, num complexo de pequenas vilas na Indonésia (Bali), que indicam que a mais apropriada formulação sistemática para essa modalidade de estrutura, que apresenta múltiplos povoados em rede, seria conceituá-la em termos de interseção de planos de organização social teoricamente separáveis (Geertz, 1967: 259-263). Com base nesse instrumento de investigação, foi possível verificar que cada família tem seu povoado de pertencimento, tem sua comunidade de referência, acata regras de cooperação simples e de uso comum dos recursos, entende como bem privado apenas o produto de seu trabalho, representa os recursos naturais como não passíveis de apropriação individual em caráter permanente e não se vê num povoado isolado, vivendo e praticando através de elementos identitários e de intercâmbio vário o alargamento do território, pelas fronteiras interpovoados que não se fecham jamais no sentido absoluto. É através da situação social designada pelos moradores dos povoados como comunidade, que os povoados observados se estruturam, pois, segundo esses diferentes planos de organização social. Entrelaçados por uma unidade sociológica, tais planos foram levados em conta para se compreender também a lógica de distribuição de bens e serviços, assim como de uso dos recursos naturais entre os diferentes povoados. Abrangem, pois, tanto fatores econômicos quanto políticos, embora não correspondam necessariamente a um plano de organização formal com associações constituídas legalmente ou reconhecidas em cartório. As relações prevalecentes são quaseinstitucionais e remetem para uma rede de povoados, implicando numa divisão de trabalho e serviços e num intercâmbio continuado entre os povoados. Por intermédio delas é que se consolida um sistema de trocas equilibradas entre, por exemplo, povoados mais próximos ao mar e a igarapés maiores – que se dedicam principalmente à pesca e que praticam a comercialização da produção através de seus inúmeros portos e têm na agricultura uma atividade complementar – e povoados considerados "mais centrais", distantes da beira e do porto, que se dedicam principalmente aos tratos agrícolas. Na própria organização social intrínseca aos povoados, verifica-se uma certa inseparabilidade entre a condição de pescador e aquela de lavrar e roçar. De toda maneira, a unidade familiar é também a unidade de trabalho, seja na pesca, seja na agricultura, seja no extrativismo, fazendo uso de tecnologias elementares e de instrumentos artesanais, bem como de práticas de cooperação simples definidas por critérios de parentesco, afinidade e vizinhança. Com base nessa descrição, pode-se adiantar que não constituem "comunidades primitivas" ou comunidades constituídas "espontaneamente", que ignoram as trocas mercantis e bastam a si próprias com uma circulação restrita a produtos domésticos e, portanto, com predomínio do valor de uso. Ao contrário, trata-se de comunidades que têm seus fundamentos nas crises do mercantilismo e do próprio desenvolvimento capitalista, cuja expressão mais perceptível seria a desagregação das grandes plantações algodoeiras e de cana-de-açúcar referidas ao mercado mundial. Em decorrência, a reciprocidade positiva, como troca equilibrada de bens, serviços e solidariedade política interpovoados, reflete um sistema econômico singular que, conjugado com a afirmação de uma identidade coletiva – traduzida por uma multiplicidade de designações correlatas, tais como: terras de preto, terras de santo, terras da santa, terras 154 Alfredo Wagner Berno de Almeida de santíssima, terras de santíssimo, terras santistas, terras de caboclo, terras da pobreza e outras denominações variantes –, configura um território étnico. Mais que considerar essas expressões denominativamente, importa aprofundar o sentido específico que adquirem na vida social e na construção da própria identidade dos agentes sociais que lhes são referidos3. As chamadas terras de santo se sobrepõem, se interpenetram e se fundem com as terras de caboclos e com as terras de preto, mas as chamadas terras de caboclo não se justapõem necessariamente às terras de preto e vice-versa4. Como verificamos anteriormente, as diferenças e as similitudes, que aproximam e distanciam os significados e a vigência dessas expressões, funcionam como um princípio operativo, que disciplina as relações sociais comunitárias que fundamentam esse território étnico. A idéia de remanescente de quilombos passa, aqui, por esses diferentes planos de organização social que, entrelaçados, delineiam uma territorialidade própria, cuja persistência no tempo pressupõe mobilização de cada conjunto de famílias vizinhas, de cada grupo de parentes e de cada comunidade solidariamente estruturada, mediante ameaças de destruição de sua forma de viver e de agir livremente. Mesmo que em cada um dos povoados sejam acatados os limites tradicionais, valendo-se inclusive das pedras de rumo, verificamos uma interpenetração de domínios, em contextos de escassez extremada, em que um supre suas necessidades com os recursos de outros e vice-versa. Há um consentimento mútuo para tanto. Os limites físicos não significam recursos naturais fechados, como ocorre no caso da noção de propriedade privada de imóveis rurais, e remetem para uma interpenetração bastante complexa sobre a qual se estrutura a noção de territorialidade. Os marcos delimitadores das terras de cada povoado podem ser livremente transpassados pelos membros de outros povoados, embora o uso efetivo e continuado de recursos naturais, dentro desses limites, esteja condicionado ao assentimento daqueles que ali têm morada e cultivo habituais e se autodefinem e são vistos como pertencendo à comunidade, que administra sua reprodução física e social a partir daqueles recursos. A condição de pertencimento a este povoado ou àquele outro confere autoridade incontestável na administração e uso continuado dos recursos naturais respectivos. O trabalho científico de verificar a articulação entre essas regras de pertencimento associadas ao direito de uso, através de uma consulta aos diretamente interessados, foi o mais amplo possível, buscando se chegar a um contorno abrangente e inclusivo, capaz de abarcar o conjunto de povoados e não apenas delimitar alguns entre eles, à molde de um problemático arquipélago com pseudo-ilhas. Esse procedimento não é, portanto, de simples execução como possa parecer à primeira vista. Antes, aponta para um mosaico complexíssimo de planos cruzados e sobrepostos, além de interações de toda ordem, seja no plano religioso, no plano sindical ou naquele da interdependência ecológica entre os povoados. O princípio das múltiplas conexões entre mais de uma centena de povoados, numa quase península, que se manteve por quase dois séculos à margem do foco de ação das políticas de Estado, é que viabiliza as condições materiais de existência desses povoados e em virtude do qual eles constituem uma comunidade dinâmica ou um todo organizado. Tais conexões constituem o fundamento da autonomia de que usufruem e da não-subordinação a terceiros em termos das decisões sobre onde construir sua habitação, onde plantar ou pescar ou quando e a quem vender a produção. O intercâmbio constante entre os povoados inscreve-se, pois, entre as necessidades essenciais dessa comunidade dinâmica, que abarca uma diversidade de modos de vida em grupo, transcendendo àquela idéia de comunidade definida por 155 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 critérios de isolamento demográfico e geográfico. Mesmo que as territorialidades referidas e os respectivos povoados variem quanto ao tamanho, à composição, à atividade econômica principal e aos laços com diferentes circuitos de mercado, destaque-se que seus moradores participam de um mesmo padrão de relação diante dos recursos naturais e de acontecimentos da vida religiosa e política. Variam, por exemplo, os santos padroeiros e as festas religiosas de povoado para povoado. Porém, cada festejo congrega participantes de povoados distintos, que contribuem para a consecução das sequências rituais e dos fundos cerimoniais necessários. Para uma compreensão mais acurada, atente-se para o caso de Itapuaua: seus moradores, em termos de referência política, falam em "região da Peroba"; enquanto recinto cemiterial, enterram seus mortos em Santana dos Caboclos, cujo campo santo centraliza também outros povoados, tais como Perizinho, Peroba de Cima, Forquilha, Flórida, Esperança e Peroba de Baixo; em termos de construção de embarcações para pesca, os moradores mencionam São João de Cortes; para a aquisição de tipiti , instrumento artesanal de palha utilizado para espremer a massa da mandioca, mencionam São Raimundo. Itapuaua, por sua vez, possui delegacia sindical, congregando interesses associativos, reivindicatórios e dos aposentados, além de servir como porto para quase uma dezena de povoados, ou seja, ponto de acesso à circulação de bens ou de acesso a praças de mercado. Seus moradores, que têm na família Araújo preponderância, em termos de parentesco, vinculam-se àqueles de povoados próximos, compondo o que classificam como "uma ruma de parentes só" (J.A. 21/04/2002 - ENT.23). Apresentam-se como descendentes de índios e de escravos, numa denominada terra de preto composta através de atos de aquisição e ocupação, assinalada como vizinha das chamadas terras de santíssimo. Segundo as narrativas, uma parte do povoado foi adquirida pelas famílias dos antigos escravos, que prestavam serviços domésticos na casagrande dos sesmeiros. A outra parte foi fruto de doação informal da herdeira dos chamados brancos, que lá nunca residiu. Em suas terras e nas circunvizinhas, há vários lugares assinalados como tocas e referências a mocambos, que expressam uma forma de ocupação quilombola efetiva, cuja alegada doação, feita oralmente, só teria servido para referendar. Ademais, mantém laços econômicos e afetivos regulares com aquelas famílias que, com a migração, se deslocaram para bairros da Camboa e da Liberdade, na capital São Luís, também designada pelos entrevistados como "a cidade". Durante o trabalho de campo pericial, inventariamos, segundo critérios elaborados a partir da representação dos próprios informantes, os povoados que compõem a área identificada, pertencente e sob controle efetivo das comunidades remanescentes de quilombo. Cabe reiterar que os trabalhos de campo não incluíram Itamatatiua, ao sul do município de Alcântara, onde o Iterma realiza, desde 1997, atividades para reconhecimento da área enquanto comunidades remanescentes de quilombos, nem a ilha do Cajual, onde se localiza Santana dos Pretos. Caso fossem incluídos, o número de povoados em pauta aumentaria de pelo menos um terço. Detivemo-nos na área desapropriada por interesse social para reforma agrária, pelo MDA-Incra, em Ibituba (Gleba Ibituba) e em São Raimundo II, onde o Iterma também realizou ações fundiárias. A inclusão de São Raimundo se atém à própria interação econômica e política que mantém com os demais povoados arrolados. Atém-se também à representação espacial manifesta pelos entrevistados e concernente às cabeceiras do igarapé Tiquara, que desce, no sentido leste, para o rio Aura e a baía de São Marcos, e àquelas do igarapé Pratitá, que desce, no sentido oeste, para o rio Raimundo Su e para a baía de Cumã. 156 Alfredo Wagner Berno de Almeida Não foi possível, dadas as condições que nortearam o trabalho pericial, realizar um recenseamento com critérios antropológicos. O próprio trabalho cartográfico foi realizado de maneira limitada no cotejo com os mapas oficiais e com os dados da Funasa. A verificação in loco ficou prejudicada em alguns casos, como na repetição das designações de povoados. Há quatro deles nomeados como São Francisco, três como São Benedito, Boa Vista e São Raimundo e pelo menos dois como Macajubal, Ladeira, Mamona, Rio Grande, Santa Rita, Tacaua, Vila Nova, Rio Verde, Cajueiro, Guanda, Cujupe, Caicaua, Baixa Grande e Tiquaras. Os dados censitários apresentados foram produzidos no âmbito da Funasa e, por atenderem a finalidades dos denominados "distritos sanitários", aqui foram utilizados mais para efeitos de ilustração e de uma primeira aproximação. Totalizam 139 povoados aos quais correspondem, de acordo com dados da Funasa, cerca de 12.000 habitantes. Considerando as diferenças de tamanho e composição entre eles, verifica-se que, em termos de habitantes, variam de três – povoados de Cajituba, Capoteiro, Piquiá, Primirim, Santa Helena, Taturoca, Vila Maranhense e Trapucara (Trapucaia) – a 958 habitantes, caso do povoado de Oitiua. Em termos de edificações ou "prédios", variam de um a 350. As oito inclusões como povoados, que registram três habitantes, dispõem de apenas um "prédio" cada uma. Os denominados "prédios" compreendem edificações, ocupadas ou não, qualquer que fosse o material empregado em sua construção e o fim a que se destinasse: residências, escolas, postos de saúde e ambulatórios, bem como as chamadas tribunas, local de reuniões e eventos comunitários, as casas de forno, e locais de serviços e atividades diversas. Essa informação nos leva a relativizar tais inclusões, focalizando os povoados segundo uma hierarquia em que uns usufruem de uma posição de centralidade enquanto outros gravitariam em torno deles, constituindo uma área de influência. Nesse sentido, importa frisar que, numa ordem de grandeza, por número de prédios e de habitantes, tem-se num primeiro patamar aqueles povoados com no mínimo 48 e até 350 edificações, aos quais correspondem no mínimo 131 e até 958 habitantes. Nessa classificação, há uma certa dispersão geográfica, com uma distribuição de povoados relativamente equilibrada, abrangendo desde povoados ao norte, nordeste e noroeste, tais como São João de Cortes, Ponta d'Areia, Canelatiua e Santana dos Caboclos; povoado a oeste, como Prainha; povoados ao sul da área delimitada, como Oitiua, a sudoeste, e Arenhengaua, a sudeste; e ainda Manival, Samucangaua e a agrovila Novo Peru. Os principais núcleos de pesca e portos para embarque da produção pesqueira do município encontram-se entre estes maiores povoados, a saber: Oitiua, Ponta d'Areia, Prainha e São João de Cortes. Em se tratando da agrovila Novo Peru, há uma outra disposição hierárquica que a interseção de planos permite vislumbrar e que diz respeito a como os próprios agentes sociais representam a suas condições materiais de existência. Com os deslocamentos compulsórios, promovidos pelo Ministério da Aeronáutica, em 1986 e 1987, os 23 povoados5 atingidos foram retirados de sua rede de relações e apartados das territorialidades específicas e do estoque de recursos que proviam os meios básicos de interdependência ecológica, de acesso a recursos para a reprodução física e de circulação de serviços e produtos. As sete agrovilas (Marudá, Ponta Seca, Só Assim, Cajueiro, Espera, Peru e Pepital) nesse contexto, não obstante as edificações de alvenaria, a cobertura de telhas, a eletrificação, os poços artesianos e os projetos governamentais de crédito e custeio, são percebidas como em desvantagem e vividas como num patamar de certo modo inferior. Os critérios extraídos das entrevistas assinalam o seguinte quanto às agrovilas: não têm 157 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 portos próprios, nem têm proximidade das águas piscosas, os lotes destinados às famílias são de extensão insuficiente, em terras frágeis e não comportam a capacidade produtiva das unidades familiares. Sem documentos das casas e dos respectivos lotes, os moradores das agrovilas vivem e são vistos como se fossem locatários, sob uma insegurança constante. Ademais, são regidos por disposições administrativas, que afetam diretamente o padrão de sucessão das famílias ao inviabilizarem a possibilidade de que os filhos casados possam erguer suas habitações próximas à dos pais. Em meio a tais condições, as agrovilas vivem sob o signo da escassez e é recorrente nas entrevistas a idealização da abundância e fartura do passado. A própria posição dos outros povoados, que não foram deslocados compulsoriamente e se mantém junto ao mar na própria faixa definida pelo Ministério da Aeronáutica como de segurança – como Brito, Itapera, Baracatatiua e Mamona –, também é vista como positiva e mais vantajosa pelos moradores das agrovilas. As fruteiras silvestres do cordão arenoso, como os muricizais, e a facilidade de realizarem diretamente as atividades de pesca nutrem essa representação da fartura prevalecente nesses outros povoados. A partir das agrovilas, o acesso à praia pelos moradores para realizarem pescaria só pode ser efetuado sob controle administrativo do CLA, que distribui crachás para os que exercem essa atividade e os monitora com uma guarita disposta na entrada da área, registrando o movimento de cada pescador. Destaque-se que na área desapropriada foram registrados mais de 90 povoados, considerando-se os dados da Funasa e os levantamentos para efeito de elaboração dos mapas produzidos no âmbito do trabalho de campo pericial. Observe-se também que, nessa área, apenas as agrovilas e mais uns poucos povoados, como Oitiua, Rio Grande e Baixa Grande, nos limites da área, usufruem de energia elétrica. Em São João de Cortes, um dos mais populosos povoados do município, que possui pequeno estaleiro de construção de barcos e exporta grandes volumes de pescado, a iluminação é a óleo diesel. Para fins de exposição, apresentamos a seguir dois quadros, agrupando no primeiro deles os povoados que se localizam na área desapropriada por utilidade pública para instalação da base de lançamento de Alcântara e, no outro, aqueles que se situam fora de seus limites. Tomamos como referência os dados da Funasa, porquanto aqueles do Censo Demográfico de 2000, elaborados pelo IBGE, assinalam tão-somente 21.291 habitantes em Alcântara, sendo 5.665 na zona urbana e 15.626 na área rural, e destacam apenas São João de Cortes com 2.909 habitantes, sendo 503 no núcleo urbano e 2.406 na área rural. Não apresentam os resultados censitários correspondentes aos demais povoados. Foram levantados, portanto, consoante a base comunitária da Funasa, 139 povoados referidos às comunidades remanescentes de quilombos, sendo 90 localizados na área desapropriada por utilidade pública para a instalação da base de lançamento de foguetes e 49 deles situados fora dos limites daquela área. Esses povoados totalizam 12.941 habitantes, ou seja, 83% da população rural do município, e compreendem uma área aproximada de 85.537,3601 hectares, englobando a área desapropriada por utilidade pública para instalação da base e outra extensão mais ao sul desta referida área desapropriada, até alcançar as terras de Ibituba que foram objeto de desapropriação para fins de reforma agrária pelo Incra. A seguir, apresentamos a relação deles com informações extraídas do cadastro da Funasa. 158 Alfredo Wagner Berno de Almeida Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriada para instalação da base de lançamento de foguetes Nome do Povoado 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 Águas Belas Bacuriajuba (Bacurijuba) Baracatatiua Bebedouro Boa Vista III Bom Jardim Bom Viver (Bom de Ver) Brito I Cajapari Cajatiua (Cajitiva/Cajutiua) Camirim Canavieira Canelatiua Capijuba Capim Açu Capoteiro Caratatiua Cavem II Corre Fresco Engenho I Esperança Flórida Ilha da Camboa (Camboa) Iririzal Itapuaua Itauaú Janã Ladeira II Lago Macajubal I Macajubal II Mãe Eugênia Mamona I Mamona II Mangueiral Marinheiro Marmorana Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG 27 7 37 3 10 9 26 35 6 9 10 19 65 1 20 1 9 3 17 14 13 2 5 25 63 83 22 26 27 21 32 11 60 13 35 2 14 19 19 101 8 27 25 71 96 16 25 27 52 178 3 55 3 25 8 47 38 36 5 14 68 172 227 60 71 74 57 88 30 164 36 96 5 38 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 12/06/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 159 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 160 Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Mato Grosso Murari Mutiti Nova Espera Nova Ponta Seca Novo Cajueiro Novo Maruda Novo Peital (Pepital) Novo Peru Novo Só Assim Oitiua Pacuri Palmeiras Pavão Peri-Açu Perizinho Peroba de Baixo Peroba de Cima ( * ) Piquia Ponta D'areia Porto da Cinza Porto do Boi I Praia de Baixo Prainha Primirim Quiriritiua Retiro Rio Grande I Rio Grande II Rio Verde Samucangaua Santa Helena Santa Maria Santa Rita II Santana dos Caboclos São Benedito I São Francisco II São João de Cortes São Lourenço (* *) São Paulo 6 15 11 22 21 65 111 50 130 30 350 25 7 18 35 39 29 68 1 124 3 56 9 82 1 70 15 85 7 6 48 1 122 7 55 22 4 190 7 2 Habitantes/2001 16 41 30 60 57 178 304 137 356 82 958 68 19 49 96 107 79 186 3 340 8 153 25 225 3 192 41 233 19 16 131 3 334 19 151 60 11 520 19 5 Data do RG 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 Alfredo Wagner Berno de Almeida Nome do Povoado 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 São Raimundo III Tacaua I Tapicuem (Itapecuem) Taturoca Terra Mole Terra Nova Trajano Trapucara Vai com Deus Vila Maranhense Vila Nova I (Vila do Meio) Vila Nova II Vista Alegre TOTAL Nº de Prédios/2001 4 10 6 1 50 17 34 1 4 1 51 45 14 2949 Habitantes/2001 11 27 16 3 137 47 93 3 11 (***) 3 140 123 38 8398 Data do RG 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 FONTE: Ministério da Saúde/ Fundação Nacional de Saúde/ Distrito de Pinheiro, Relação de Localidades/ Município de Alcântara, 13/08/2001. NOTAS: ( * ) Num recenseamento elaborado em maio de 2002, os moradores de Peroba de Cima registraram, eles próprios, em seu povoado, 58 casas e 196 pessoas. (* *) Vários moradores de São Lourenço, no decorrer de 2001, mudaram suas casas para Rio do Pau, que fica às margens da rodovia MA-106. A família de D. Luzia, composta de quatro membros, permanece, entretanto, no local do povoado, conforme informação obtida em conversa com o Sr. Simão Reis Araújo, 62 anos, que mora perto da "marinha" em Samucangaua. (* * *) Em virtude de mortes ocorridas em 2001 e da mudança domiciliar de três pessoas, atualmente residem no povoado Vai com Deus apenas seis pessoas. (****) Procedemos a uma tentativa de recenseamento nas chamadas terras da pobreza, a partir de Canelatiua. Registramos informações demográficas sobre os seguintes povoados: Canelatiua, Bom Viver, Retiro, Uru-Mirim e Vila do Meio. Os itens relativos a edificações e número de habitantes não apresentaram grandes variações em relação ao cadastro da Funasa. Os povoados de Uru-Mirim e Vila do Meio no cadastro da Funasa aparecem agregados com Canelatiua. Aliás, quanto a Uru-Mirim, foram detectadas somente duas casas fechadas e com sinais de abandono. De acordo com informações levantadas localmente, tem-se o seguinte: "Moravam lá duas famílias. Uma senhora com um neto e um casal de velhos. Quando foi em janeiro de 2001 a senhora que morava com o neto morreu no poço, tomando banho. Era de tardinha. E lá era tão difícil de auxílio que eles resolveram mudar para mais perto da estrada. Foram para Vila do Meio e o neto para São Luís com o pai." (D.S.M. 13/04/2002 - ENT. 3.1). 161 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Além dos 49 localizados fora dos limites da área desapropriada para fins de instalação da base de lançamento de foguetes, que também integram o território das comunidades remanescentes de quilombos e constam do quadro abaixo, foram registrados 13 outros povoados, a partir dos materiais cartográficos elaborados para fins da perícia, igualmente fora da área desapropriada. Eles não aparecem no cadastro da Funasa, certamente por terem sido agregados a povoados maiores, mas podem ser separáveis tanto quanto aqueles que assinalam apenas um ou cinco "prédios", porque assim são vistos e há os que se definem como a eles pertencendo. Passaremos a seguir a enumerá-los: Bordão, Bejú-Açu, Baixo do Grilo, Caçador, Centro da Eulália, Fora Cativeiro, Iscoito, Jacroa, Maracati, Maria Preta, Santa Luzia, Segurado e São José. No caso de Iscoito, Beju-Açu e Baixo do Grilo não obtivemos maiores informações. Mantivemos os dois últimos baseado nas cartas da Diretoria do Serviço Geográfico, do Departamento de Engenharia e Comunicações do Ministério do Exército, de 1981, correspondentes à área, e no mapa do Iterma, de julho de 2001, também apoiado nas cartas da DSG-ME, mas assinalando: uma casa em Beju-Açu e cinco no Baixo do Grilo. Em se tratando de Iscoito, a informação foi obtida, sem pormenores, em reunião realizada em Peroba de Cima para elaboração dos materiais cartográficos desta perícia. Em virtude de não ter sido factível realizar um censo durante a perícia, com verificações detidas em cada situação definida como povoado, validamos tais informações disponíveis. Todos eles encontram-se assinalados no mapa produzido no decorrer do trabalho de campo pericial e que foi intitulado de "Alcântara: terra das comunidades remanescentes de quilombo-territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios históricos e conflitos sociais". Em suma, uma vez acrescentados àquele total de povoados pertencentes ao território das comunidades remanescentes de quilombo, temos um novo total correspondente a 152 povoados. Povoados referidos às comunidades remanescentes de quilombos que se localizam fora da área desapropriada para instalação da Base 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 162 Nome do Povoado Apicum Grande Arenhengaua Bacanga Baixa Grande I Baixa Grande II Barreiros Belém Boa Vista I Boa Vista II Boca do Rio Caicaua I Caicaua II Cajiba Nº de Prédios/2001 8 100 8 8 17 X 32 16 2 7 3 11 25 Habitantes/2001 22 274 22 22 47 38 88 44 5 19 8 30 68 Data do RG 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 Alfredo Wagner Berno de Almeida 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 Nome do Povoado Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG Cajueiro II Castelo Conceição Coqueiro Cujupe I Cujupe II Curuça I Guanda I Guanda II Iguaiba Itaperaí Itapiranga Jacaré I Jarucaia Jordoa Manival Pacatiua (Paquativa) Porto de Baixo Porto de Caboclo Raposa Rasgado Salina Santa Bárbara Santa Rita I Santo Inácio São Benedito II São Benedito III São Francisco I São Maurício São Raimundo II Tapuio Tatuoca Timbotuba Tiquaras II Traquai Vila Itaperaí 29 68 57 11 77 74 12 9 9 26 24 16 5 11 11 122 32 23 5 4 12 4 26 18 55 6 5 3 26 56 3 9 35 11 8 137 79 186 156 30 211 213 33 25 25 71 66 44 14 30 30 334 88 63 14 11 33 11 71 49 151 16 14 8 71 153 8 25 96 30 22 375 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 21/01/99 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 25/07/95 1276 3543 TOTAL FONTE: Ministério da Saúde / Fundação Nacional da Saúde / Distrito: Pinheiro Relação de Localidades / Município: Alcântara 13/08/2001. 163 Tecendo palha (Santo Inácio) A interseção dos planos de organização social "Se nós somos do quilombo, como se diz, da terra de negro, descendente de escravo, descendente de índio, se a Fazenda Esperança e Itapuaua, Santana dos Caboclos, Perizinho tudo, nós somos tudo assim como se diz como os dedos da mão. Então nós temos a Flórida, a Forquilha tudo são só uma coisa, agora, com sua separação, com seus lugares. Inclusive Santana de Caboclo está dentro da Esperança, Esperança está dentro de Itapuaua na praia viu? Perizinho tá dentro de Santana, Flórida está dentro de Santana, que é a terra de santo. E Forquilha dentro também. E Peroba está bem emendado. Como é que pode fazer uma separação de um com o outro? Acho que não." ( J.A.- Itapuaua) Ao considerar as interseções de planos organizativos e sem querer absolutizálos, pode-se dizer que cada um destes planos consiste num conjunto de instituições sociais apoiadas num princípio de afiliação, ou seja, num modo de agrupar os agentes sociais ou de separá-los uns dos outros (Geertz,1967:259-263). Destacando os principais planos de interpenetração dos povoados, decidimos descrever notadamente as interseções econômicas, ecológicas, religiosas e políticas configurando as fronteiras do território, sob diferentes prismas. Outros dados referidos a planos institucionais, como estabelecimentos de ensino e postos de saúde, não tiveram análise destacada e são citados no decorrer da investigação, ou constam do mapa básico elaborado para fins desta perícia. A interdependência ecônomica e ecológica entre os povoados Constata-se uma especialização no nível dos povoados de que deriva uma divisão de trabalho, abarcando múltiplos elos entre eles, desde a esfera da produção até aquela da circulação dos produtos agrícolas, extrativos e da pesca. Semelhante interligação compreende, pois, tanto as relações de troca, fixando equivalentes da farinha, do peixe seco e do peixe fresco, quanto a utilização de determinados recursos naturais e de meios de trabalho de uso comum. Em termos de fragilidade ambiental, as terras de Alcântara revelam o agreste de um solo cansado, fraco e arenoso que necessita de calagem e correções. Para comportar a pressão demográfica, têm sido definidas e acatadas, no âmbito dos povoados, regras de Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 uso comum dos recursos básicos1. Os povoados usufruem comunalmente das mesmas faixas de terrenos agriculturáveis, designados centros, considerados mais adequados para cultivo e onde se encontram as reservas de mata ou capoeiras mais velhas, partilhadas entre os povoados de maneira ordenada e relativamente harmônica. Os divisores das terras correspondentes a cada povoado tangem-se nesses denominados centros. Ademais, a terra não é plana, possui solo arenoso e as florestas são relativamente ralas, muitas vezes batizadas como capoeirões. A terra fica praticamente coberta pela vegetação no período chuvoso, os igarapés transbordam e os campos naturais afetados pelas marés ficam completamente inundados, dificultando a pesca e a coleta. Nas áreas que ladeiam a rodovia MA-106, além das areias quartzosas, há florestas secundárias mistas em que os cocais avançam e as palmeiras de babaçu disputam com o encapoeiramento cada faixa de terra. Apicuns, manguezais e campos inundáveis prevalecem nos povoados mais próximos ao mar, juntamente com o cordão arenoso das praias, marcado por muricizais nas bordas. As matas de galeria e as pequenas reservas madeireiras dos povoados têm sido mantidas com dificuldades, mediante regras que disciplinam tratos agrícolas, práticas extrativistas e atividades pecuárias e de pesca. Elas informam a referida divisão de trabalho: há povoados que mantêm o criatório cercado ou que amarram os chamados boi-cavalo e mantêm livres as áreas de plantio, enquanto que outros mantêm soltos os animais, cercando a extensão dos terrenos de cultivo. A altura das cercas, seu estado de conservação e os materiais que devem ser usados nelas são informalmente definidos e consensualmente acatados, dirimindo as disputas quando sucedem ocorrências de gado invadir as áreas de plantio. O entrelaçamento dos povoados pode ser exemplificado em termos desses múltiplos planos relativos ao ecossistema, à organização da distribuição e uso dos recursos básicos no processo produtivo e aos circuitos específicos de serviços e de circulação de bens essenciais ao consumo. Dessa maneira, há povoados que se dedicam principalmente à produção agrícola, abastecendo aqueles que são voltados para a pesca e vice-versa. Os moradores dos povoados de Baixa Grande e de Novo Belém realizam atividades de pesca em Oitiua. Eles não possuem artefatos que possibilitem pescar uma quantidade maior de peixes. Em decorrência, eles compram mais peixe do que pescam propriamente. Adquirem o peixe no povoado de Oitiua, trocando-o pela farinha d'água e pelo arroz que produziram. Em Oitiua, que é o povoado de maior expressão demográfica, há mais de 200 famílias que vivem basicamente da pesca e da fabricação artesanal de instrumentos relativos a ela, como: espinhel, rede, tarrafa e puçá. Os pescadores de outros povoados, como Manival e Itapuaua, reconhecem a qualidade desses instrumentos e dão preferência à sua aquisição para aumentar sua capacidade produtiva. Acrescente-se que para a aquisição de barcos de pesca todos os povoados acham-se referidos principalmente a São João de Cortes, onde há pequenos estaleiros que consomem diferentes espécies de madeiras, tais como: caju da baixa, bacuri e guamadim retirados das reservas de mato dos povoados para a construção de embarcações. O povoado de Raimundo Sú (Raimundo Sul) possui também pequenas unidades de fabricação de barcos. Os pescadores de Oitiua, situados a sudoeste do município, também incursionam eventualmente no rio Periaçu ou rio de São João, mais ao norte, onde passam dias pescando. Através deles e destas incursões esporádicas, as duas mais expressivas microbacias localizadas respectivamente ao norte e ao sul do território das comunidades remanescentes de quilombos2 tornam-se enquadráveis nas práticas de uso comum articuladas entre povoados de distintas posições geográficas. 166 Alfredo Wagner Berno de Almeida Os moradores de Manival, por seu turno, vendem peixe e camarão para Rio Grande, cujos moradores vão regularmente a Manival transportando arroz e farinha d'água para a realização das devidas trocas. Manival e Pacatiua são também procurados por moradores de inúmeros povoados, inclusive Rio Grande, como portos para embarcar carvão, madeira, madeira de mangue, frutas, aves e porcos para a capital São Luís. Pescadores de Brito, que praticam a pesca marítima, vendem peixes em povoados como Santa Maria e nas agrovilas de Peru, Marudá e Só Assim. Na pesca de rede, obtêm as taínhas e os bagres, que também são pescados com tarrafas. Com as malhadeiras mais grossas, pescam camburés e pescadas, que variam de oito a dez quilos. Transportam a produção em bicicletas, conhecidas como cargueiras, que comportam duas caixas de isopor com capacidade para 60 quilos cada uma. Verificamos que há duas bianas de moradores de Brito, chamadas de "Milena" e "Marister" – que ligam regularmente o povoado à capital São Luís, atracando no porto sob a ponte Bandeira Tribuzzi –, que transportam peixes e demais gêneros alimentícios produzidos nas regiões circunvizinhas ao povoado. Há também um barco à vela, chamado "Flor de Natal", que transporta para o mesmo destino tão-somente o carvão. Constatamos ademais que esses povoados que possuem portos e exportam os mais expressivos volumes da produção pesqueira, além de possuírem os maiores contingentes demográficos no município – como Oitiua, São João de Cortes, Prainha, Ponta D'Areia, Cujupe, Manival, que correspondem a pouco menos de 1/3 dos habitantes dos povoados arrolados – centralizam e irradiam sua influência sobre dezenas de outros que se tornam seus tributários em termos de relações de troca. Entretanto, não só a condição de porto torna um determinado povoado o centro de irradiação ou de concentração de influências e de importância econômica. Há alguns deles voltados para o beneficiamento da produção que, possuindo casas de forno, onde ocorre a transformação artesanal da mandioca em farinha, constituem um fator de atração para as demais localidades próximas. Intensificam-se essas trocas no período de preparo das chamadas roças. Nessa etapa do ciclo agrícola em que prevalecem as modalidades de ajuda mútua e intercâmbio de serviços e de força de trabalho, como a denominada troca-dia, entre grupos familiares de parentes e vizinhos, os entrevistados pontuam que a alimentação tem de ser mais forte. Como é um período que sucede à colheita, há uma relativa abundância de farinha d'água e são também fartos os resultados da pesca do camarão e do extrativismo do babaçu. As casas de forno funcionam quase de maneira ininterrupta, sem parar a ralação e a torração de farinha, e as mulheres dos pescadores concentram suas atividades em levar ao sol os camarões que já foram ao fogo. Produzem o camarão seco, que é um forte equivalente de troca. Os homens pescam e as mulheres trabalham secando o pescado, nos povoados ribeirinhos, enquanto os homens preparam o terreno para o plantio e as mulheres encofam3 a farinha d'água, nos povoados considerados mais centrais. Constata-se uma complementariedade em múltiplos aspectos, suprindo as necessidades essenciais dos grupos familiares. Tal complementariedade acha-se consolidada historicamente e apresenta uma relação de pertinência e certo equilíbrio, quando se examinam as conexões entre as diferentes etapas dos ciclos produtivos ou entre os calendários agrícolas e extrativos e entre estes e as atividades derivadas da pesca4. No que concerne à distribuição dos recursos hídricos disponíveis, pode-se destacar que tanto o uso da água potável, os chamados olhos d'água, quanto as demais utilizações são também realizadas mediante regras de uso comum. Percebe-se uma 167 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 reciprocidade positiva entre as redes sociais referidas aos povoados, com uma interdição expressa ao cercamento das fontes e nascentes, ou seja, com a proibição do uso privado de ribeiras e igarapés e demais cursos d'água. Não roçam e nem desmatam perto das aguadas de modo a não afetar a vegetação que protege as nascentes ou que ladeia os cursos d'água. A própria localização dos povoados sempre observa a regra de evitar a proximidade das nascentes e olhos d'àgua, privilegiando o curso médio de rios e igarapés5. As fontes e os chamados poços são mantidos enquanto recursos abertos. Assim, o denominado poço do frade – poço de pedra construído provavelmente em meados do século XVIII por ordem religiosa que detinha o domínio das terras –, localizado em Vista Alegre, é também utilizado por moradores de Baixa Grande e São Benedito. Para o rio Periaçu confluem moradores de dezenas de povoados e das agrovilas. Mariscos, como ostras, sururus e caranguejos são extraídos em suas margens mais próximas das cabeceiras, tendo como referência principal o povoado de Samucangaua. No curso médio e na foz prevalecem os peixes. Segundo entrevistados de Samucangaua, a escassez de víveres nas agrovilas tem forçado os moradores a uma pesca incessante e de características algo predatórias, posto que estariam extraindo prematuramente sururus e demais mariscos. Esse tipo de uso predatório, bem como aquele das redes de malha estreita, é inibido pelas comunidades ribeirinhas, porquanto coloca em risco a reprodução de peixes e mariscos. A utilização de terrenos para plantio pode variar segundo a localização dos povoados. No caso das agrovilas, a insuficiência de terras – devido a lotes inferiores à fração mínima de parcelamento agronomicamente prevista para o município – e o seu rápido esgotamento – em virtude de a rotação nos lotes ficar comprimida num intervalo de tempo que não permite o descanso do solo – têm obrigado os moradores a colocarem seus plantios em áreas que distam até oito quilômetros do local de moradia. Essa distância aumenta o esfôrço físico dos moradores e torna mais intenso o uso de animais de tração e carga, ou seja, os bois-cavalo. Em São Raimundo, Rio do Pau, Castelo, Ladeira, Pavão e Santo Inácio os terrenos de plantio são mais próximos das residências. As unidades residenciais são fixas e os terrenos de plantio variam de lugar a cada novo ciclo agrícola. As árvores frutíferas que não foram plantadas e nem constituem benfeitoria de nenhuma unidade familiar podem ter seus frutos apropriados por quaisquer pessoas, de qualquer povoado que seja. Os povoados em que houver abundância de frutos suprem os demais e não há cotas estabelecidas por pessoa ou família, como narra um morador de Peroba de Baixo: "A manga por exemplo, você está vendo muito pé de mangueira aqui, mas não tem manga. Na Peroba de Cima tem manga agora. Se eu quiser, vamos na Peroba de Cima pegar. Eu trago o tanto que eu quiser e ninguém diz para mim: – Não junta, não leva. ( A. G. 14/04/2002 ENT.4.1 ) O extrativismo também é praticado livremente. O único ato de interdição mencionado refere-se ao babaçu nos lotes das agrovilas: "coco babaçu pode pegar em qualquer lugar, ninguém proíbe. Só nas glebas das agrovilas é que com a divisão dos lotes deram de não deixar. Prenderam o coco, mas tá acabando por lá..." ( J.G. 14/04/2002 ENT. 4.2) 168 Alfredo Wagner Berno de Almeida Por outro lado, numa analogia com as práticas já mencionadas de extração de marisco, o ato de coleta é condicionado à madurez do fruto, seja para a juçara, seja para o babaçu. É interditado o corte de cachos na extração da amêndoa do babaçu. Somente podem ser coletados os que se precipitaram ao solo. Os maiores juçarais acham-se situados em São Maurício, Canelatiua, Mamona e Peru Velho e as práticas de coleta também respeitam o estado de madurez. Entre Peroba de Baixo e Peroba de Cima, existem duas "baixas" preservadas e separadas por uma campina, onde os moradores desses dois povoados extraem juçara. A interseção entre os dois povoados ocorre nessa prática conjunta de preservação e na distribuição de terrenos pra o cultivo e de extrativismo. Os moradores de Peroba de Baixo "fazem suas roças" na Peroba de Cima nos extremos com Terra Mole, Engenho, Prainha e Corre Fresco, enquanto que aqueles de Peroba de Cima ajudam a manter o juçaral. Não proíbem a coleta da juçara, mas não permitem a derrubada de palmeiras, nem que tirem a juçara verde. É a madurez que assegura a reprodução da espécie. Senão, vejamos: "O juçaral maior é aqui na Peroba de Baixo. Mas nós aqui não tiramos a juçara verdinha. Tem que esperar ficar madura...".(J.G. 14/04/2002 - ENT.4.2) Os instrumentos cilíndricos, feitos de palha e utilizados para espremer a massa da mandioca, denominados tipiti, são produzidos principalmente em São Raimundo II e daí vendidos para os outros povoados. A produção de adobe, tijolo cru que não é cozido, concentra-se nos povoados de Santa Maria, Peroba de Cima, Ponta da Areia e São João de Cortes. Essa produção artesanal tem levado à construção de casas segundo novas técnicas de levantar as paredes, que conferem à paisagem desses povoados um traço peculiar, e tem possibilitado um intercâmbio com os povoados próximos que discutem das vantagens ou não de se ter paredes de adobe. Quanto à circulação de produtos, vale acrescentar que há uma rede de empreendimentos comerciais, as denominadas quitandas ou comércios, que são vinculados direta ou indiretamente a comerciantes de cidades próximas, notadamente Bequimão e Pinheiro, e que servem indistintamente a diferentes povoados. Assim, tem-se que moradores de Vista Alegre fazem compras de produtos industrializados na quitanda de Baixa Grande, que consideram "mais sortida". Há ligeiras variações entre elas no preço pago pelos produtos agrícolas e extrativos. Antes, a amêndoa do babaçu de Baixa Grande era vendida para Pavão, Oitiua e Peroba. Hoje, os entrevistados afirmam que a produção declinou em demasia, fazendo com que a coleta se volte para o autoconsumo, principalmente para a feitura de azeite, que é como designam o óleo de babaçu para fins comestíveis. Os preceitos de não derrubar palmeiras continuam, entretanto, prevalecendo. As relações com os comerciantes, chamados quitandeiros, se concentram mais, agora, na produção de carvão, que é vendido na beira das rodovias ou na própria sede municipal, para abastecimento local, e da capital São Luis, que designam como cidade. Os compradores de carvão são dos povoados maiores e, mediante o aumento da demanda de seu uso doméstico, têm visitado seguidamente os demais povoados, sem obedecer exatamente o ciclo usual das "caieiras" de verão. Organizaram um sistema regular de transporte das cargas para a capital, onde têm um entreposto de comercialização, no que chamam de "porto livre" da Camboa. Nas trocas entre famílias de povoados diferentes, há algo mais que "coisas trocadas", há elementos de um mesmo complexo cultural, que são reforçados por esse 169 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 intercâmbio voluntário. Definindo-se os povoados por essas interrelações, pode-se afirmar ainda que o acesso aos meios de produção depende do grau de inclusão ou pertencimento à comunidade. A terra para cultivo é alocada para os membros dos povoados consoante suas necessidades simultâneas de autoconsumo e de comercialização. Os lugares (litoral, "interior" ou "centro", ribeiras dos rios) em que os povoados se formaram ou para onde se deslocaram geograficamente, consoante os critérios de relação equilibrada com os recursos naturais, podem ser pensados como ecossistemas aos quais os grupos estão adaptados. Historicamente, ocupam lugares distintos e com o uso comum resultam por reduzir ao mínimo a competição por recursos naturais relativamente escassos e por respeitar a fragilidade ambiental. Cada povoado teria pelo menos um porto de referência, uma aguada ou poço, bem como uma reserva de mata para prover necessidades eventuais de reparo e construção de casas e de embarcações e de feitura de mastros para as festas dos santos. O porto e a reserva de mata podem ser compartilhados com outros povoados, enquanto que o núcleo de habitações, também designado sítio, e os terrenos de cultivo seriam exclusivos ou prioritários no seu uso para as famílias que ali se agrupam, seja por laços de consanguinidade e afinidade, seja por sucessão ("herdeiros"), seja por vínculos religiosos sob a designação genérica de comunidade. As "circunscrições" religiosas Os integrantes das comunidades se agrupam religiosamente em fronteiras que transcendem os povoados. A manutenção de rituais religiosos rompe com os seus limites estritos, estabelece lealdades para além do parentesco e da atividade econômica conjunta, levando a que os devotos se movimentem com maior freqüência em direção a alguns povoados, que assumem uma posição de centralidade. A obrigação compartilhada de freqüentarem cerimônias religiosas, de maneira recorrente, em determinado templo, define outra forma de pertencimento à estrutura dos povoados. Igrejas, como em São João de Cortes, e as inúmeras capelas da Igreja Católica, juntamente com templos da Assembléia de Deus, que se distribuem por Oitiua, Manival, Mangueiral, Marudá, Peru, Santa Maria e Mocajubal, e da Igreja Batista, em Peroba de Cima, propiciam, através de padres e pastores, serviços religiosos regulares, com missas e cultos, para pessoas de diferentes povoados. A freqüência evidencia um grau de interrelação. De igual modo, os chamados terreiros e terreiros de mina, localizados, entre outros, em Itapiranga, Rio do Pau e Mocajubal (perto da agrovila Novo Peru), e os denominados pajés e pajoas, em Belém e Bom Viver, realizam eventualmente sessões de cura, delineando, como o fazem os demais funcionários religiosos, suas respectivas "circunscrições". Essas regiões não produzem comunidades rigidamente separáveis e é possível se entrever as mesmas pessoas presentes em missas ou em pajelanças, em povoados diferentes, referidos a qualquer uma das territorialidades já citadas: terras de santo, terras de preto e terras de caboclo. Buscam atendimento religioso a demandas que vivem como distintas, combinando o que na aparência se exclui mutuamente. As ditas "circunscrições" religiosas permitem mapear de uma outra maneira o território das comunidades remanescentes de quilombo, estabelecendo vínculos e pertencimentos de várias ordens a povoados não necessariamente contíguos. 170 Alfredo Wagner Berno de Almeida Os cemitérios e as tensões socias em face da interdição de uso, pelo CLA, do antigo cemitério de Peru e Marudá No que tange aos cemitérios, como recinto sagrado que transcende às diferenças de confissões religiosas, em que não apenas se enterram os mortos, mas onde são guardados os elementos da descrição genealógica e renovada a memória em rituais que congregam os descendentes e afins, verificamos que não há correspondência exata entre os povoados e o que chamam de "campo santo". Levantamos 19 cemitérios distribuídos desigualmente pelos 139 povoados arrolados, assinalando que diferentes povoados enterram seus mortos num mesmo recinto cemiterial. Onde estão enterrados os ancestrais de toda uma rede de povoados, mais que um "campo santo", estrito senso, consiste numa parte da história do grupo. Aqui, novamente, a geografia parece não funcionar como critério para explicar as formas de coesão social. Nem sempre enterram os mortos no cemitério geograficamente mais próximo. Depende da "escolha" feita pelas famílias. E tal seleção parece levar em conta, pelo menos nas situações verificadas, fatores de história pessoal e de parentesco mais exatamente alusivos aos antepassados. Foi possível perceber isso em trechos de entrevistas em que reivindicam o livre acesso ao "antigo" cemitério de Perú e Marudá, hoje interditado e controlado pela administração do CLA, que desde os deslocamentos compulsórios não mais autoriza enterros aí. Senão, vejamos: "ali foi enterrado meu umbigo" ( J.S. ou J.G. de Cajueiro. 23/04/2002 ENT. 26); "meus avós e pais estão ali e nem no Finados posso chegar perto deles" (M.L.S.D. de Marudá). Historiando o deslocamento compulsório, a senhora de Marudá assim se pronunciou em reunião realizada na Câmara Municipal de Alcântara: " (...) nem área para fazer cemitério deram para nós. Fizeram o cemitério dentro de minha gleba... eles enterraram o primeiro que morreu dentro da minha gleba, hoje uma parte da gleba está ocupada pelo cemitério porque todo mês morre um para enterrar lá... Tomaram da gente o cemitério velho e meu pai, minha mãe, meus avós estão enterrados lá e se for possível eu quero ser enterrada lá onde meu pai foi enterrado." (M.L.S.D. de Marudá). Pode-se asseverar que há povoados cujos mortos são enterrados em mais de um cemitério com os territórios de parentesco segmentando-os e tendo primazia nas redes de relações. A decisão de onde enterrar os mortos define pontos de convergência nessas redes, fazendo dos sepulcrários um critério de afiliação e pertencimento que suscita solidariedades mais intensamente valorizadas. Os que se mobilizam hoje mais diretamente pelo livre acesso ao cemitério controlado pela administração do CLA encontram-se referidos a mais de dez povoados do total de 21 deslocados compulsoriamente em 1986. O cemitério mostra-se indissociável da identidade pela qual os agentes sociais se definem e se posicionam, posto que simboliza o pertencimento em termos genealógicos, que faz uma pessoa ser reconhecida socialmente como parte de um grupo. Foi nesse sentido que decidimos dispor os dados, intersecionando planos comunitários, quer dizer, tanto enumerando os povoados onde se localizam os cemitérios, quanto mencionando aqueles outros povoados que ali enterram seus mortos. 171 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Cemitérios NOTAS: (1) No cemitério da sede do município, na cidade de Alcântara, são enterrados mortos de vários povoados circunvizinhos, dentre eles: agrovilas do Cajueiro, Nova Espera, Ponta Seca e Pepital e ainda Boa Vista, Trajano Mangueiral. (2) O cemitério de Itamatatiua constitui ponto de convergência de mais de uma dezena de povoados, quase todos eles localizados na área de remanescentes de quilombo, ao sul do município de Alcântara, cujo processo de reconhecimento e titulação encontra-se a cargo do Iterma a partir de convênio firmado com a SMDH, em 1998. Alguns povoados dentro da área de remanescentes de quilombo ora identificada, como São Raimundo, enterram seus mortos em Itamatatiua ou em Japeú. Essa interligação entre as diferentes áreas identificadas encontra-se analisada no texto. (3) Há povoados que aparecem referidos a mais de um cemitério, como Novo Belém e Ladeira, evidenciando que nem sempre a proximidade física entre as localidades define o local do funeral. Relações de afinidade e parentesco podem funcionar como critérios de escolha do local de sepultamento. Destaca-se, entre esses critérios, o local onde foram sepultados os antepassados. 172 Alfredo Wagner Berno de Almeida As festas religiosas As devoções aos santos padroeiros compõem um calendário de rituais religiosos que ocorrem fundamentalmente na estação mais seca, definida como verão, e que se estendem do fim das chuvas, em maio, até que novamente elas reiniciem em dezembro e janeiro. As festas de São Sebastião ocorrem invariavelmente já sob as primeiras chuvas. No decorrer da estação chuvosa, não se registram, portanto, grandes festas religiosas. Cotejando com o ciclo produtivo, importa salientar que os festejos começam quando a colheita do arroz e do milho, bem como as farinhadas, já terminaram ou ainda estão terminando. Em maio têm como referência a Festa do Divino, que desde a derrubada do mastro já mobiliza diversos povoados. É considerada a "festa da sede", em oposição a São Benedito ou "festa dos pretos", que ocorre em agosto e é vista como a festa dos povoados e dos tambores de crioula de povoados como São Mauricio, São Raimundo, Iririzal, Samucangaua, Itapuaua, Pavão, Só Assim e Agrovila do Cajueiro que se agrupam no largo da Igreja Rosário dos Pretos, na sede do município. Em junho, ocorrem as festas de São João e São Pedro em S. João de Cortes e em outros povoados. Nesse período, imediatamente após a colheita, as famílias dispõem de parte da produção para formar os fundos cerimoniais destinados a assegurar materialmente os eventos. Em outubro, os povoados mais ao sul do município se agrupam nas novenas e bailes de radiolas que animam a festa de Santa Teresa, em Itamatatiua, e em janeiro ocorrem as festas de São Sebastião, sobretudo nas fazendas de gado da beira-campo. Nas festas em todo o município, através dos grupos de tambor de crioula de São Maurício, São Raimundo II, Iririzal, Itapuaua, Pavão, Oitiua, Só Assim e agrovila Cajueiro, os povoados estreitam seus laços. A percussão é considerada, numa visão de senso comum, como uma arte própria de alguns povoados, preponderantemente das chamadas terras de preto, mas pode ser registrada nas terras de caboclos, como soa ser em Oitiua. Elaborei um quadro com as festas e os povoados respectivos tentando evidenciar a composição dessas redes de relações, que perpassam as territorialidades e simultaneamente concorrem para estruturá-las. O fato de ocorrerem em terras de santo demonstra ainda que a etnicidade aqui comporta duplos pertencimentos "pretos/ santo" e "caboclos/santo" que em verdade referem-se a um único elemento identitário indissociável da territorialidade. O território étnico, nesse sentido, transcende a uma noção estrito senso de terra, como recurso básico, e remete a interações sociais entre pessoas e famílias, entre povoados e entre redes de povoados entre si, nas quais as devoções é que definem o pertencimento às comunidades. Pode-se dizer, pois, que as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de caboclos são mais que simples terra, num sentido geográfico, e se erigem, não obstante a diversidade de situações, enquanto território cultural e etnicamente distinto. No quadro a seguir, descrevo o calendário de festas religiosas com a relação dos principais povoados que as organizam e dela participam, indicando também a territorialidade específica de referência. Constata-se que as festas perpassam, inclusive, a área ora delimitada nesta perícia, em se referindo a Itamatatiua, cujas terras foram parcialmente desapropriadas pelo Incra e a outra parte encontra-se sob ação fundiária do Iterma para efeitos de aplicação do Art. 68 do ADCT. 173 Calendário de festas religiosas FONTE: Este quadro combina anotações levantadas em documentação constante da pasta referente a Alcântara disponível à consulta na Biblioteca do IBGE, em São Luís, com verificações in loco realizadas durante o trabalho de campo. Não consegui obter maiores registros sobre festejos alusivos a Nossa Senhora do Livramento. NOTAS (1) Data móvel, variando de acordo com o Carnaval e, consequentemente, a Quaresma. (2) Cf. Ricardo Leitão in: Memória de Velhos - depoimentos. São Luís: Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, Lithograf, 1997. p. 57-58 (3) Fazem "brincadeira de boi" em Segurado, organizada pelo Sr. Jacinto. (4) Esta festa mobiliza praticamente todos os povoados das áreas dos antigos engenhos de açúcar e fazendas de algodão, detacando-se "tambozeiros" de Cajueiro, Peital (Pepital), Só Assim e Santa Cruz. Outros povoados também possuem grupos de "tambor de crioula" e participam das festividades: Samucangaua, Iririzal, São Maurício, São Raimundo, Pavão, Oitiua e Itapuaua. (5) Nestas festividades, como nas demais, constatam-se também atividades laicas e "profanas" como os bailes animados com "radiolas de reggae". Foram arroladas durante o trabalho de campo sete radiolas referidas aos seguintes povoados: Brito, duas; Peru, duas; e Rio Grande, Itapera e São João de Cortes com uma em cada um deles, respectivamente. (6) Em Canelatiua, existe a Igreja de Nossa Senhora da Conceição. (7) Desde que ocorreu um homicídio, durante os festejos, há cerca de cinco anos, não estão mais comemorando. (8) Em Baixa Grande, há alguns anos não estão comemorando mais esta data religiosa. (9) Há também outras festas mais circunscritas a um povoado, como a do "coco marajá", organizada pelo Sr. José Guri, na agrovila Cajueiro. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 As instâncias políticas de mediação Pelo critério da mobilização política, os elementos identitários parecem falar mais forte, sobretudo a partir do Art. 68 do ADCT e das informações que os agentes sociais passam a ter desse instrumento jurídico de reconhecimento de direitos coletivos, que se coaduna com seu universo de auto-atribuições. O referido artigo enuncia o reconhecimento do processo específico de territorialização das comunidades remanescentes de quilombo que compreende as denominadas terras de santo, terras de preto, terras de caboclo, terras da pobreza e demais expressões derivadas. Tal processo abrange, pois, essas territorialidades específicas e os agentes sociais a elas referidos que se autodefinem como "pretos", "caboclos" e "pobres" e que foram homogeneizados pelo tipo de intervenção do Estado em Alcântara. Tais categorias, que não cabem mais nos esquemas interpretativos, de perspectiva evolucionista, que prognosticavam uma inexorável assimilação racial, que acomodava tensões e assinalava para um "branqueamento" da população, chamam a atenção para os fatores étnicos que possibilitam um novo plano de definição das identidades, segundo as quais os agentes sociais se reconhecem enquanto grupo portador de uma cultura que transcende vínculos sindicais ou de associação formal. O advento de tais categorias, através de um critério político-organizativo, define uma situação social particular. As características culturais contrastantes, agravadas por circunstâncias recentes e externas à trajetória do grupo, como sucede com a implantação do CLA, foram impelidas a uma maior visibilidade social. As medidas oficiais adotadas pelo CLA, ao limitarem drasticamente a sobrevivência física e a reprodução social das comunidades, a partir da destruição de sua base física – ou seja, os povoados deslocados compulsoriamente e ameaçados de deslocamentos –, provocaram impactos sobre a percepção dos próprios agentes sociais de si mesmos diante dos direitos básicos instituídos juridicamente para assegurar a persistência de diferenças culturais. A consciência quilombola emergiu no decorrer desse conflito, quando a categoria trabalhadores rurais dava mostras de esgotamento e a velocidade das pressões sobre sua cultura e estilo de vida aumentaram intensamente. A vida social, sobretudo nos povoados da "faixa de segurança" ou área mais diretamente afetada, passou a organizar-se explicitamente no sentido de exigir observância não apenas do cumprimento dos dispositivos da legislação agrária, que foram subvertidos no desrespeito à fração mínima de parcelamento, mas sobretudo dos direitos étnicos. Até 1988/89, a mobilização não levava em conta a identidade étnica, tampouco os agentes sociais se autodefiniam como quilombolas e nem podiam fazê-lo, com o risco de, na sua relação com os poderes constituídos, se definirem à margem dos dispositivos legais. Autodefiniam-se como trabalhadores rurais, assim eram tratados nas suas manifestações diante dos aparatos do Estado e mantinham-se seguros na condição legítima de "herdeiros" de doações, aquisições e direitos de sucessão de seus antepassados, ou simplesmente na condição também legítima de posseiros e ocupantes. Sua posição legal atinha-se ao componente fundiário. Ainda que assim se autodefinissem, vale asseverar que jamais deixaram de existir as identidades correspondentes às territorialidades específicas, que os singularizavam em face de poderes políticos e dos demais segmentos sociais com os quais secularmente vêm interagindo, seja nos mercados rurais, seja na prestação de serviços. Aliás, essas territorialidades, que efetivamente caracterizam a estrutura agrária dessa região, 176 Alfredo Wagner Berno de Almeida permanecem invisíveis tanto para as estatísticas cadastrais do Incra, quanto para as categorias do censo agropecuário do IBGE. Esse desconhecimento deliberado, mais que uma omissão ou lacuna censitária, é um fator de confronto, que ao querer destruir não estende a possibilidade de reconhecimento formal. Trata-se de uma eliminação mais que simbólica ou involuntária, refletindo a própria forma como o poder dos grandes estabelecimentos agrícolas, de cunho escravista, foi construído juridicamente no mundo colonial, consagrando um tipo de propriedade e de imóvel rural, como absoluto, que menospreza as outras formas de propriedade culturalmente distintas e vistas como potencialmente subordinadas ou escravas, e que persiste nas disposições jurídicas hodiernas. Assim, a ênfase na identidade étnica como alternativa num contexto de total pressão externa que leva o grupo a uma situação limite, colocando em jogo sua reprodução física e social, pode levar a formas de existência coletiva, com características intrínsecas em termos organizacionais (Barth, 2000:60). O que já existia efetivamente, mas não era reconhecido como tal, encontra possibilidades para emergir. Está-se diante de uma combinação de fatores em que laços primordiais e permanentes, em termos históricos, articulam-se com expressões jurídicas contingentes, num contexto de conflito extremo, de características terminais. Tal combinação, ocorrendo num processo de territorialização já bem delineado, pode ser facilmente distinguível de qualquer abordagem de cunho instrumentalista, que pretenda interpretar o advento da identidade quilombola como uma estratégia do grupo de lançar mão de uma identidade, objetivando simplesmente obter vantagens materiais e simbólicas. Os agentes sociais no conflito com o CLA adotaram uma forma de resistência que enfatiza um determinado elemento identitário, entre os vários presentes na organização social tradicionalmente estruturada. A ênfase nos quilombos, como capaz de imprimir uma identidade étnica, mesmo que haja diferenças "culturais" aparentes entre os que habitam e cultivam nas territorialidades específicas, emana da agudez do conflito com a intervenção governamental que resultou no advento de uma forma de existência coletiva capaz de se confrontar com os antagonistas. A proeminência daqueles povoados que explicitamente acionam a denominação terras de preto concorre secundariamente para isso. São cerca de 100 povoados referidos explicitamente pelos agentes sociais que neles vivem como terras de preto, dentre os 139 arrolados, que se colocam sob esta denominação e assim são reconhecidos. Como se pode constatar nos depoimentos da parte sul da área delimitada: "Santa Rita, Curuça, Santa Bárbara, Barreiro, Bonfim e aí vai até Guaíba, já Guaíba é lá na beira do igarapé, já tá quase na costa. Lá já se olha Alcântara. Para cá mais tem acesso para ir daqui lá por terra. E é só negro toda essa região, que vai até o São Francisco onde o Leitão diz que é dele, que o Delino mora lá, toda essa área aí é negro que mora aqui dentro destes matos aí, pra chegar lá dá uma luta danada, mais chega, duas, três horas de viagem, quatro já dá pra chegar. (...) e por aí vai tendo só festa de São Benedito que é festa do preto. " ( G.X. 19/04/2002 ENT.16). "Cujupe é uma terra de caboclo, como Oitiua. Ficam nas extremas com os pretos no meio, e assim vai." (G.X. 19/04/2002 - ENT.16) 177 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Delegacias sindicais 178 Alfredo Wagner Berno de Almeida A indagação mais freqüente é para que se diga qual seria o suporte dessa escolha que leva todos os povoados a convergirem para uma mesma identidade, produto de uma mobilização coletiva contra uma forma de intervenção do Estado. Numa tentativa de resposta, vale citar: a recusa explícita a quaisquer modalidades de subordinação, expressa pelo ideal de autonomia desses povoados; o passado trágico que remete aos horrores da escravidão, sempre acionado pela história oral e pela memória social dos integrantes dos povoados, quaisquer que sejam; o temor permanente pelo que designam de cativeiro ou a posição que consideram mais degradante, humilhante e desonrosa. Ancestrais remotos sob o jugo da escravidão são sempre lembrados, porquanto viabilizaram o acesso aos recursos naturais hoje essenciais à reprodução física e social dos povoados. As narrativas de fuga e aquelas outras análogas referidas à chamada pegação ou fuga em face do recrutamento compulsório para guerras, às chamadas tocas ou esconderijos nos fundos das fazendas ou nos abrigos das terras de ordens religiosas: todas essas modalidades de escapar dos mecanismos repressores da força de trabalho parecem convergir, hoje, para o significado de quilombo ou comunidade remanescente de quilombo compreendida como negação do trabalho escravo e garantia de livre acesso aos recursos para assegurar a reprodução, e como o elemento mais afinado com o ideal de autonomia preservado historicamente pelas territorialidades específicas e seus respectivos povoados. Certamente que só sugere paradoxal à primeira vista imaginar como remanescente de quilombo um povoado onde os agentes sociais se auto-representam como descendentes de escravos, pretos, índios ou como caboclos. A noção de quilombo surge como identidade de referência dos povoados num antagonismo que envolve o acesso a bens essenciais, que tem reduzido vertiginosamente a produção de mandioca, ou seja, a capacidade de as famílias fazerem farinha, afetando hábitos alimentares e estilo de vida. Nesse sentido, a noção de quilombo não pode ser congelada historicamente, impondo aos grupos sociais uma forma de se classificarem. Ao contrário, são eles próprios que elaboram suas categorias de auto-atribuição e suas formas de relação com os poderes constituídos, recolocando os quilombos na ordem do dia das pautas oficiais e do Estado. Nessa elaboração, o significado da identidade se altera consoante as circunstâncias. Assim, no caso de Alcântara, a identidade quilombola – que historicamente era sobretudo um atributo econômico, simbolizado pela autonomia no processo produtivo – assume cada vez mais uma dimensão política, infletindo sobre as associações e sobre o próprio sindicato, que passa a conduzir as reivindicações nesse sentido, considerando o conflito não apenas agrário, mas sobretudo étnico. Desse modo, a inter-relação entre os povoados evidencia que a resistência às medidas de implantação do CLA implica em novas maneiras de se organizarem e de marcarem diferenças culturais potencialmente abafadas e socialmente invisíveis pelo peso das ações de inspiração colonialista. Os povoados que Nota ao quadro da página 178: (1) Consoante dados de 2001 levantados pelo STR de Alcântara, a entidade possui 31 delegacias sindicais com 1991 associados. Destas, sete encontram-se fora da área identificada como de comunidades remanescentes de quilombo, no âmbito deste laudo pericial, a saber: Alcântara (sede), Itamatatiua, Paraíso, Portugal, Raimundo Sul (RaimundoSú), Mocajatuba, Baiacuaua e Timbira, compreendendo, respectivamente, 492 homens e 333 mulheres, ou seja, 825 associados ou ainda cerca de 41% do total geral apresentado acima. Muitos associados vinculados à delegacia sindical da sede são dos povoados mais próximos a Alcântara. Há inúmeros outros associados que ora habitam no perímetro urbano de Alcântara e que também estão referidos a esta delegacia. 179 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 tinham uma interdependência econômica e ecológica, a partir dessa mobilização étnica passam a ter também uma estreita ligação política, passando a se constituir em unidades organizadas, compondo uma comunidade política que vincula os povoados uns aos outros. Tal vinculação, que configura um território étnico, reforça o objetivo deste trabalho pericial, que analisou os elementos a partir dos quais os agentes sociais focalizados estão se dizendo quilombolas e se estruturando como comunidades remanescentes de quilombo. 180 Notas Introdução 1 A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, produzida pelo IBGE, em 1959, atribui ao município de Alcântara uma área de 1.114 quilômetros quadrados (IBGE, 1959:31). As Informações Básicas sobre o Município de Alcântara, elaboradas em 1972 pelo Instituto de Pesquisas EconômicoSociais e Informática-IPEI, do Governo do Estado do Maranhão, atribuem-lhe uma área de 1.201 quilômetros quadrados (IPEI, 1972:4). O objeto da perícia e os procedimentos de obtenção de informações 1 Conforme já foi mencionado, foram visitados 53 povoados, com a realização de entrevistas na imediaticidade da aplicação de técnicas de observação direta, tanto no centro do povoado quanto nos terrenos dedicados aos cultivos, às atividades extrativas e à pesca. Foram obtidas, entretanto, informações sobre duas centenas de povoados através de técnicas de observação indireta. Elas consistiram na realização de "oficinas de trabalho" para discutir temas específicos, como o mapeamento social das comunidades, envolvendo representantes de diferentes povoados, e na participação em reuniões programadas previamente pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara, STTR, pelo Centro de Cultura Negra, pelo Projeto Vida de Negro e pela SMDH. As informações obtidas por método indireto foram sempre confrontadas com relatos de outros entrevistados, observando a possibilidade de divergência entre as versões, sobretudo porque as reuniões em pauta referiam-se a questões no mais das vezes polêmicas e não exatamente produzidas no âmbito da programação estrita do trabalho de pesquisa. 2 Os livros do STTR, que registram os aposentados a cada ano, entre 1997 e 2002, assinalam 435 nomes correspondentes a: 46 povoados, em 1997; 41 povoados, em 1998; 29 povoados, em 1999; 23 povoados, em 2000, e 65 povoados em 2001. Essas estatísticas não registram os aposentados antes de 1997 nem tampouco os possíveis óbitos no período, dificultando qualquer operação de soma e impondo a relativização do total obtido. As aposentadorias incluem os seguintes "benefícios": auxílio doença, salário materno, aposentadoria por idade, pensão e "amparo previdenciário". Não foram detectados casos de aposentadoria por invalidez. 3 Tais unidades, em Alcântara, organizam-se segundo duas expressões associativas: colônias de pesca e movimento dos pescadores. Uma, sediada em Prainha, na área de influência do Movimento Nacional dos Pescadores e do Movimento de Pescadores do Maranhão; e a Colônia de Pesca Z-10, sediada na sede do município. Esta última tem 984 associados, incluindo-se os aposentados, que também concorrem voluntariamente para o funcionamento da entidade. 4 Embora para Foster esses contratos sejam essencialmente diádicos, ligando partes contratantes mais do que grupos e evidenciando que cada "pessoa" é o centro de sua rede de laços contratuais, pode-se considerar que se trata de uma característica intrínseca ao povoado de Tzintzuntzan, estudado por ele no México, onde não foram registradas organizações vigorosas compreendendo três ou mais pessoas. Tomando-se Alcântara como referência empírica para tal conceituação, certamente que tem que ser levada em conta a densidade dos aspectos organizativos e sua significação na vida social. Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 5 A exceção aqui aparece referida às terras indígenas. Entretanto, trata-se de situação em que os povos são mantidos sob tutela. 6 Compulsando os livros de "Carregação" da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (175578), "onde eram transcritas na íntegra as faturas dos gêneros, africanos e brasileiros, escravos e outros" (Carreira, 1988:20), Carreira observa que a escrituração mercantil não fornece informações cabais sobre: idade, sexo e etnia dos escravos. O dado relativo ao sexo pode ser aclarado em testamentos dos senhores de escravos e, parcialmente, na nomenclatura das faturas, "mas nunca o da idade e o da etnia" (Carreira, 1988:113). Consoante o autor: "A indicação do porto de embarque não conduz a conclusão nenhuma, dado que a distribuição das etnias é complexa e numa pequena faixa da costa (africana) existe um complicado emaranhado de grupos." (Carreira, 1988:113). No caso do Maranhão, de acordo com a referida escrituração, os pontos de embarque foram Bissau, Cacheu e Serra Leoa. Compulsando os "Diários" da Companhia Geral, tem-se o nome dos rios e pontos da costa onde eram efetuadas as negociações para obtenção de escravos, consistindo numa aproximação ainda vaga para indicar as etnias: rios Logos, Escasserim, Casamansa e Geba e na costa Bossis, Balantas e ilhas dos Bigajós. Na feitoria de Bissau, estavam aprisionados nos armazéns: Mandingas, Fulas e Bigajós. Após a extinção da referida Companhia, o tráfico continuou a orientar-se para o Maranhão e Turiaçu, por exemplo, onde foram registrados quilombos desde o fim do século XVII e de onde foram iniciadas grandes sublevações no século XIX, consistiu num porto clandestino sem qualquer controle alfandegário das autoridades coloniais. 7 No Cartório do Segundo Ofício, em Alcântara, os dois inventários mais recuados que encontrei foram de 1832, de Anna Florinda Silva, e de 1872, de João José da Cunha. Neles, as indicações sobre os escravos são vagas e registra-se a designação "crioulo(a)", acompanhando o prenome. Neles, não há menção a doações e atos de alforria. O mesmo se verifica nos testamentos mais recentes levantados no Cartório do Primeiro Oficio. 8 Insisti nesse argumento mesmo considerando a pertinência de uma leitura crítica dessas explicações de "esgotamento do solo", chamando a atenção para o fato de que isso não corresponde à exaustão absoluta da terra, mas sim à diminuição progressiva do resultado das colheitas nas terras das grandes plantações. Essa seria uma explicação do ponto de vista senhorial, que também poderia estar atrelada à flutuação de preços do algodão e do açúcar no mercado, mas que acaba sendo reproduzida acriticamente pelos comentadores regionais. 9 Uma informação complementar sobre esta dupla posição usufruída pelo Sr. Pedro Nascimento Sá, que conta 86 anos – de exercer simultaneamente uma mediação interna, resolvendo disputas sobre os terrenos de plantio entre moradores de povoados ou concedendo permissão de pesca para moradores de povoados vizinhos, e uma mediação junto a órgãos oficiais –, concerne ao fato de ser sogro do presidente do STR que conduz o conjunto das negociações com as autoridades governamentais. O Sr. Samuel Moraes é casado com a filha mais velha do segundo matrimônio do Sr. Pedro, que é o único cartorialmente registrado. 10 Levantamento realizado por Sérvulo de Jesus de Moraes Borges, do Centro de Cultura Negra, em abril de 2002, também corrobora esta aglomeração de famílias impelidas a sair dos povoados no chamado Anel de Contorno, da cidade de Alcântara, incluindo o Baixão do Lobato ou Buraco Fundo e a Vila Airton. Na capital São Luís, de igual modo, foram registradas outras tantas famílias nos bairros de Gamboa, Vila Embratel, Vila Palmeira e Liberdade. Linhares registrou, em 1998, na Liberdade, uma aglomeração de famílias de Florida e Forquilha. O advogado das comunidades desapropriadas, Dr. Domingos Dutra, realizou, em 1994, um levantamento abrangendo 600 famílias dos povoados de Alcântara que tinham domicílio em São Luís. 182 Alfredo Wagner Berno de Almeida 11 Cabe a advertência de que essas práticas costumeiras não devem ser cristalizadas enquanto direito consuetudinário, porquanto conhecem variações no tempo, condicionadas pela abundância ou escassez dos recursos, pelas intempéries climáticas, pelo tipo de pressão de antagonistas que buscam usurpar seus domínios tradicionais e pelas estratégias de sobrevivência que têm sido encetadas pelas unidades familiares mediante os excedentes demográficos ou em contraposição a interesses conflitantes. A noção de costume, aqui, não se refere a padrão de comportamento sancionado de maneira absoluta e sempre reproduzido do mesmo modo pelos que o adotam. Ao contrário, mostra-se dinâmica e contingente, abrangendo alterações condicionadas por fatores de diferentes ordens que redefinem tais práticas, transformando-as, ainda que muitas vezes mantendo a mesma designação. 12 As visitas a alguns povoados coincidiram com reuniões realizadas pelo STTR de Alcântara, caso de Peroba de Baixo e Peroba de Cima, e com oficina realizada pelo Projeto Vida de Negro/SMDH-CCN, caso de Ladeira. Nas visitas aos povoados, fui acompanhado, no mais das vezes, pelo Presidente do STTR, Sr. Samuel Morais. Nas caminhadas de reconhecimento dos marcos divisórios das áreas, fui acompanhado pelos representantes dos povoados e por aqueles indicados por eles. Na delimitação do conjunto da área, fiz-me acompanhar também de agrônomo e técnico em cartografia, como se poderá constatar no memorial descritivo e nos mapas, em anexo, elaborados exclusivamente para fins desta perícia. 13 Para além do total mencionado, foram utilizadas também duas entrevistas realizadas por A. Cantanhede, em Ladeira, uma entrevista realizada por L. F. R. Linhares, no Bairro da Liberdade, em São Luís, com antigo morador de Flórida e Forquilha. Uma última entrevista, nessa faixa etária, foi realizada na sede do município com informante acima de 70 anos, reconhecido pelos demais entrevistados como branco e que tem seus ancestrais no que Viveiros classifica como "aristocracia alcantarense" (Viveiros, 1975:109). Por descendência direta, reconstituiu, sem maior esforço, quatro gerações da genealogia da derradeira família de grandes proprietários de terra em Alcântara, simbolizada por Antonino da Silva Guimarães (Viveiros, 1975:42). Esse entrevistado corrigiu, inclusive, a data do falecimento de A. S. Guimarães para março de 1947, diferentemente da data de 1948, mencionada por Lopes (1957:65). 14 Embora não tenha sido realizada uma coleta sistemática de dados nesse sentido, pode-se afirmar que pelo menos quatro entrevistados possuem mais de trinta afilhados e são conhecidos em mais de uma centena de povoados. Um deles, por prestar serviços relativos à cura e ser conhecido como "doutor de ossos", recebe pacientes de municípios que distam mais de 100 km. Dois deles por terem sido encarregados da terra, com função de arrecadar foros, e o quarto por ser o mais velho de uma família de herdeiros, com direitos sobre a terra reconhecidos em cartório, que descende de um vaqueiro que fazia a ligação entre os campos naturais e os povoados considerados centrais, ou seja, que não se localizam na chamada beira-campo. 15 Cf. Decreto nº 7.820, de 12 de setembro de 1980, estado do Maranhão. Declara de utilidade, pública para fins de desapropriação, área de terra necessária à implantação, pelo Ministério da Aeronáutica, de um Centro Espacial no município de Alcântara, num total aproximado de 52.000 hectares. 16 Durante o trabalho de campo, verifiquei que há situações de desautorização desses protagonistas em povoados como Pavão, onde ocorreu uma certa devastação das reservas por parte dos que acreditavam que seriam fatalmente remanejados, a partir dos primeiros deslocamentos compulsórios realizados pelo Centro de Lançamento de Alcântara em 1987, e acabaram migrando para a capital São Luís. Nesse povoado, entretanto, teria ocorrido o falecimento do antigo encarregado, Sr. Domingos Araújo, sem que sua autoridade tivesse sido transmitida a outro. Situações de desautorização também foram registradas em entrevistas com referência a Itamatatiua, povoado central das denominadas terras de Santa Teresa, a partir de ação fundiária inconclusa por 183 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 parte do Iterma, em 1997, que permanece provocando instabilidade na ação tradicionalmente reguladora dos chamados encarregados da santa. O mesmo foi observado com respeito a São Raimundo e São Maurício, a partir de interpretação feita pelo filho mais velho e herdeiro, que tem encontrado dificuldades em fazer respeitar o veto à retirada de madeiras e, respectivamente, pelo antigo encarregado da terra. 17 Entre esses termos e expressões, pode-se adiantar, porquanto serão retomados posteriormente, aqueles constantes das descrições dos perímetros das áreas focalizadas, quais sejam: "pedras de rumo", "datas", "abas de terras", "pontas e abas", "quinhão de terras", "mística" ou "fazem misco com...", "extremas", "testadas de uma sorte de terras", "enseadas", "beiras" e "centros". 18 Cf . Registro Paroquial expedido em 01 de março de 1856, Livro 20, folha 10. Localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão. 19 Cf. Registro Paroquial expedido em 30 de junho de 1856, Livro 20, folha 20. Localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão. 20 Para se ter uma aproximação do tipo de acatamento e de difusão dessas narrativas, cabe esclarecer que elas foram obtidas em entrevistas realizadas na casa de duas famílias que se apresentaram como membros da Assembléia de Deus. 21 Para um aprofundamento sobre essa situação, consulte-se a dissertação de mestrado de Laís Mourão (1974), que abarca as terras de Santa Teresa; as notas de campo produzidas no ano de 1972, por João Pacheco de Oliveira Filho, datadas de 6 de outubro, que descrevem os rituais e cerimônias que compõem a festa de Santa Teresa e os episódios alusivos à Santa viva (Pacheco, 1972:1-12); e as observações de Terri Valle de Aquino feitas em Barroso, município de Bequimão, quando da visita do cortejo das caixeiras tirando a citada jóia (Aquino, 1972:7-12). O valor da jóia não é fixo nem é estipulado previamente e corresponde às condições de possibilidade das famílias. Materializa a relação com o santo ou com a santa, por meio de serviços, bens ou dinheiro. Tanto podem ofertar uma cabeça de gado quanto uma ave, um ovo ou uma certa quantidade de arroz ou farinha ou o que apuram a partir da venda de determinados produtos. Esses bens passam a integrar um fundo cerimonial que mantém o patrimônio da santa e que é administrado pelos referidos funcionários religiosos. 22 Pelo fato de o trabalho de campo pericial ter se realizado no período de chuvas, ocorreram maiores dificuldades de acesso aos marcos onde há subidas e descidas sucessivas nas trilhas. No caderno fotográfico disposto em anexo, no Volume 2, há registros completos desses marcos com as devidas inscrições. 23 Foram realizadas entrevistas e feitos contatos detidos com dirigentes do STTR de Alcântara, da colônia de pescadores, do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Alcântara, Montra, do recémcriado Movimento dos Atingidos pela Base de Lançamento de Alcântara e da Associação das Comunidades Negras Quilombolas, Aconeruq. 24 Foram realizadas discussões no âmbito do Projeto Vida de Negro (SMDH-CCN), na Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e no Centro de Cultura Negra do Maranhão e contatos com membros da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Rede Nacional de Advogados Populares. Além dessas entrevistas, foram feitos contatos com vereadores e funcionários religiosos, a saber: freiras, clérigos e pastores. 25 Para maiores informações sobre essa expressão, consulte-se a interpretação de Almeida sobre as narrativas míticas da "decadência do Maranhão" (Almeida, 1983:197). 184 Alfredo Wagner Berno de Almeida 26 O termo mocambo, nos dispositivos jurídicos da legislação colonial, era apresentado como sinônimo de quilombo. Ambos designavam concomitantemente habitações e locais de refúgio de escravos fugidos. Para uma interpretação crítica do deslocamento desta noção jurídico-formal e de sua ressemantização, consulte-se o texto "Quilombos: sematologia face a novas identidades" (Almeida, 1996:11-19). 27 Carvalho Martins destaca essa situação no seu relatório preliminar de identificação de Itapuaua: "A chamada toca, cujo significado pode ser assimilado à idéia de quilombo." (Carvalho Martins, 1998:10). De igual modo, ela detectou também nos povoados a expressão "tempo da escravidão". 28 Os que fazem referência à história do "negro Tito" são principalmente aqueles cujas atividades se referem de algum modo à baia de Cumã e à beira-campo correspondente. Não procedem a relatos heróicos, porquanto viveram o medo e o temor quando era anunciado que o bando do "negro Tito" estava próximo ou por ali deveria passar. 29 Há um vasto repertório de histórias sobre o significado de esconder sob as saias para evitar o recrutamento compulsório, para burlar a vigilância de soldados e para acentuar a esperteza dos moradores dos povoados diante da belicosidade dos chamados "brancos". Tal como as demais histórias, que ressaltam qualidades e temores em face da ação de antagonistas mais poderosos, são narradas em momentos de descontração e não necessariamente quando as perguntas dos pesquisadores estavam sendo colocadas de maneira mais permanente à mesa. Pela sua extrema variedade de versões e significados, certamente merecem um estudo à parte e uma decifração mais detida, já que, muitas vezes, os narradores se posicionavam como contadores de histórias, entremesclando personagens dos contos de fadas, como reis e príncipes que habitariam os sobrados e zelariam pelos seus tesouros, com figuras da vida cotidiana dos povoados, como pescadores, carvoeiros, mulheres levando seus filhos para o lugar das roças e, ainda, com seres sobrenaturais. A pesquisadora Patrícia Portela coletou pacientemente inúmeras dessas histórias. 30 As disciplinas militantes valorizam esses atos, tornando-os marcos históricos de lutas e mobilizações. O que os historiadores regionais classificam como pilhagem e saque de fazendas é vivido, nesse contexto, como ato afirmativo, exaltado em processos de afirmação étnica. 31 Esse conceito resulta do pressuposto de que não faz sentido aplicar, hoje, a mesma definição de quilombo do Conselho Ultramarino, de 1740, às situações sociais ora classificadas como comunidades remanescentes de quilombos. Não se pode congelar a definição jurídica da legislação colonial, de finalidade nitidamente repressiva, e transportá-la mecanicamente no tempo, para que preencha finalidade de reconhecimento oficial dos direitos dos quilombolas. A legislação colonial coloca os quilombos numa camisa de força geográfica, como se fossem sempre isolados, localizados em áreas remotas, longínquas, distantes dos mercados e produzindo tão-somente para subsistência. Considera, ademais, os quilombolas como "coisa" ou como "peças" passíveis de serem recolocadas no mercado de escravos pelos atos de captura. Os instrumentos jurídicos coloniais são de sentido eminentemente repressivo, desqualificando os quilombolas e estigmatizando-os de maneira absoluta. Em outras palavras: antes, o quilombo era para ser destruído e nessa direção eram forjados os instrumentos jurídicos; hoje, o quilombo é valorizado e o propósito legal é que seja oficialmente reconhecido. Ao contrário das noções do período colonial, nas situações sociais hoje classificadas como remanescentes de quilombos, tem-se uma afirmação econômica de produzir para diferentes circuitos de mercado, podendo o quilombo estar localizado próximo a núcleos urbanos, aliado à emergência de uma identidade coletiva com base na autodefinição dos agentes sociais em pauta, numa capacidade político-organizativa, em critérios ecológicos ou de conservação de recursos básicos por meio de modalidades de uso comum dos recursos naturais ou por outras 185 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 formas similares de manejo sobre as quais se manifestem favoráveis as comunidades. Há uma inversão dos elementos estigmatizantes, que passam a ser vividos como condição positiva. Para maiores detalhes sobre esse conceito de quilombo, que relativiza a definição do código jurídico colonial chamando a atenção para a necessidade de sua releitura, hoje, consulte-se Almeida,1996. 32 Os trabalhos relativos às fontes secundárias compreenderam, entre outros, o levantamento da documentação administrativa do período colonial, que contém referências explícitas aos quilombos na região de Alcântara, assim como as cartas de datas e de sesmarias expedidas no último quartel do século XVIII e os "registros paroquiais", efetuadas entre 1854 e 1857, conforme os ditames da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, que dispõe sobre as terras devolutas do Império, definindo sobre o preenchimento das condições legais para legislação de posses e antigas sesmarias. Para facilitar eventuais consultas, que porventura se façam necessárias, classificamos e transcrevemos tais documentos e decidimos expô-los no Volume III* desta perícia que concerne basicamente aos Anexos. (*Na presente edição, uma seleção desses documentos foi incluída no Volume 2 – n.e) Processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos 1 As atividades de pesquisa no âmbito desta perícia reiteram interpretações e constatações de investigações científicas anteriores realizadas entre 1972 e 1999. A primeira delas refere-se aos trabalhos etnográficos realizados, durante 1972 e 1973, pela equipe de antropólogos do Museu Nacional-UFRJ vinculada à Pesquisa Polidisciplinar "Prelazia de Pinheiro", que se constituíram num ponto de partida para outras pesquisas posteriores. A segunda concerne aos trabalhos executados por antropólogos, advogados e agrônomos junto à Coordenadoria de Conflitos Agrários do Mirad-Incra, em 1985 e 1986, objetivando propiciar subsídios ao Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário para apreciação das iniciativas do Estado Maior das Forças Armadas, EMFA, através do Ministério da Aeronáutica, concernentes aos pequenos produtores agrícolas afetados pela implantação do Centro de Lançamento de Alcântara. A terceira refere-se tanto aos relatórios preliminares de identificação de comunidades remanescentes de quilombos em Alcântara, produzidos em 1997-98 por equipe multidisciplinar vinculada ao Mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão, e financiados pela Fundação Cultural Palmares-Ministério da Cultura, quanto às dissertações de mestrado relativas à questão, defendidas no decorrer de 1999 e 2000 no âmbito dessa mesma instituição. 2 Cf. Lei de 06 de junho de 1755 ou "das Liberdades dos Índios", que, segundo o texto, restituiu aos "índios do Grão-Pará e Maranhão a liberdade de suas pessoas, bens e comércio". A instituição da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, também denominada na documentação pombalina de Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, ocorreu em 7 de junho de 1755 através de Alvará régio de confirmação. Três anos depois, foi aprovado o "Directorio que se deve observar nas povoações dos indios do Pará e Maranhão", firmado pelo rei D. José I e por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, e datado em Lisboa, em 17 de agosto de 1758. Os bens dos jesuítas, incluindo-se as fazendas, olarias e engenhos, foram sequestrados e sua arrecadação passou a pertencer ao Real Erário. Em junho de 1760, os jesuítas foram detidos e forçados a sair de Alcântara. Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual dos conflitos 1 O conceito de plantation aqui utilizado se opõe àquele de fazenda, enquanto diferentes tipos de organização social na agricultura. Tem como referência a distinção teórica de E. Wolf e S. Mintz, para 186 Alfredo Wagner Berno de Almeida quem a fazenda seria uma "propiedad agrícola operada por un terrateniente que dirige y una fuerza de trabajo que le está supeditada, organizada para aprovisionar un mercado de pequeña escala por medio de un capital pequeño, y donde los factores de la producción se emplean no sólo para acumulación de capital sino también para sustentar las aspiraciones del status del propietario. Y plantación será una propiedad agricola operada por propietários dirigentes (por lo general organizados en sociedad mercantil) y una fuerza de trabajo que les está supeditada, organizada para aprovisionar un mercado de gran escala por medio de un capital abundante y donde los factores de produción se emplean principalmente para fomentar la acumulación de capital sin ninguna relación con las necesidades de status de los dueños." (Wolf e Mintz, 1975:493). 2 Para Viveiros (1954:163), eles eram banqueiros, que concediam empréstimos, e controlavam exportações, importações e até o beneficiamento de produtos agrícolas, além de terras e escravos. 3 Esta interpretação enfatiza o exercício de atividades autônomas de cultivo e comercialização de possíveis excedentes por parte dos escravos, em tempo livre e em terras das fazendas que lhes eram concedidas para tanto. Consulte-se Sidney W. Mintz, "From plantations to peasantries in the Caribbean", in: Caribbean Contours. The John Hopkins Univ. Press, p. 127-153, 1985. Consulte-se, também, sobre a chamada "brecha camponesa" no sistema escravista e no Brasil, os estudos de Ciro F. S. Cardoso in: Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Ed. Brasiliense, p.31-125, 1987. 4 Essa situação referida concerne às aquisições de terras feitas, entre finais do século XIX e a primeira metade dos anos 1940-50, por Antonino da Silva Guimarães e seus descendentes, que serão examinadas posteriormente. 5 A área correspondente a essas três freguesias do município de Alcântara, no decorrer do século XIX, correspondia a aproximadamente 195 mil hectares. Obtive esse total somando a área correspondente ao atual município de Bequimão, antiga freguesia de Santo Antonio e Almas, 831,5 Km2, com aquela do atual município de Alcântara, que engloba as outras duas freguesias, ou seja, 1.114 Km2. Excluindo as povoações e fazendas da beira-campo, que continuam apoiadas principalmente na pecuária extensiva nos campos naturais, e considerando marcadamente a área das freguesias de São Matias e de São João de Cortes, obtive o total alusivo à extensão das fazendas de algodão. 6 Esse sistema não deve ser confundido com terras comunais, próprias do feudalismo, em que os homens não são dissociados do recurso básico, sendo mantidos sob a autoridade senhorial, nem com terras coletivas, que pressupõem uma intervenção externa de aparatos de poder, organizando a distribuição dos recursos e dos produtos do trabalho. Em verdade, esse sistema de uso comum distingue-se daquelas referências históricas concernentes a "sobrevivências feudais" e não significa uma involução, que o sentido da expressão "decadência de Alcântara" pode denotar. Trata-se de uma resultante das crises econômicas, próprias do mercantilismo que orientou as políticas do governo de Pombal, produzida a partir de tensões peculiares ao desenvolvimento capitalista. Constitui, por outro lado, uma modalidade de apropriação da terra que se desdobrou marginalmente ao sistema econômico dominante. Emergiu enquanto artifício da autodefesa de indígenas, escravos, alforriados e agregados, para assegurarem suas condições materiais de existência, em conjunturas de crise econômica e de desorganização de grandes estabelecimentos agrícolas. Resultou em uma forma aproximada de corporação territorial que se consolidou rapidamente numa região ainda central no final do século XVIII, quando Alcântara era visto como "Ouro Preto ao Norte" (Tristão de Athayde, 1978), que foi se tornando periférica a partir de meados do século XIX. 7 Conforme a conceituação de Barth a respeito de grupos étnicos (Barth, 2000:31). 187 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 8 Por intermédio do Aviso nº 007/GM4/C-0033, datado de 27 de agosto de 1979, o ministro da Aeronáutica comunicara ao governo do Maranhão seu interesse pela utilização de área no município de Alcântara para o projeto de lançamento de foguetes. 9 No decorrer de 1982, foi instituído o Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara, subordinado ao Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento do Ministério da Aeronáutica. 10 Para outras informações, consulte-se: "Só a decepção no final do bloqueio. Lavradores suspendem o cerco à base e começam longa caminhada para as suas roças." O Imparcial. São Luís, 22 de março de 1986. 11 A documentação do MAer fala em 21 povoados, mas não inclui dois outros que foram mencionados em entrevistas no decorrer do trabalho de campo pericial. Para maiores detalhes sobre os deslocamentos compulsórios e as agrovilas, consulte-se Carvalho Martins (1994) e Fernandes (1998). 12 A Infraero passa a atuar na implantação da base juntamente com o Ministério da Aeronáutica através do Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento, Deped, com base em Termo de Convênio com vigência de 15 anos, firmado em 01 de novembro de 1996 (cf. Diário Oficial da União, 11/11/1996, Seção 3, p. 23888). Em 2001, a Infraero já se encontrava afastada de qualquer intervenção. 13 Cf. "Relatório referente à preparação da população alvo da área de transferência e assentamento III Meta 1", Infraero-CLA, 05 de novembro de 1998. Esse documento dá sequência às medidas de deslocamentos compulsórios, distinguindo as chamadas "áreas de transferência", que perfazem 152 famílias, daquelas de "assentamento", que afetam 103 famílias, num total de 255 famílias atingidas, correspondendo a 908 pessoas. 14 Cf. Relatório do Encontro "Seminário Alcântara: A Base Espacial e os impasses sociais". Contag, Fetaema, STTR de Alcântara, 1999. 40 p. 15 Para um aprofundamento dessa discussão do EIA-Rima, consulte-se: Barbosa Pacheco, M.A. A questão ambiental como direito social. O caso do Relatório de Impacto Ambiental do Centro de Lançamento de Alcântara. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Maranhão. MPP-UFMA. 2000. p.57-105. 16 Tal decisão não foi efetivada e, até agosto de 2002, nenhuma medida foi adotada nesse sentido pelos responsáveis pela implantação do CLA. 17 Consulte-se o "Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América sobre salvaguardas tecnológicas relacionadas à participação dos Estados Unidos da América nos lançamentos a partir do Centro de Lançamento de Alcântara", datado em Brasília, 18 de abril de 2000, e firmado pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia Ronaldo Sardenberg e pelo Embaixador dos Estados Unidos da América Anthony S. Harrington. 18 Cf. Ofício nº JG-RJ 179/01, de 16 de agosto de 2001, dirigido ao embaixador Santiago A. Canton, Secretário-Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 19 Cf. Decreto de 20 de janeiro de 1994. Diário Oficial da União, 21/01/1994, p.1015, e Decreto de 10 de junho de 1996. Diário Oficial da União, de 11/06/1996. 20 Cf. "Convênio celebrado entre Seplan/MA e Iterma visando promover estudos de preservação ambiental e ações fundiárias para recuperação do patrimônio fundiário e cultural das comunidades negras rurais tradicionais remanescentes de quilombos" Todas as ações, segundo os termos do Convênio, teriam o acompanhamento sistemático do Centro de Cultura Negra, da SMDH e da Fetaema. Datado em São Luís, 11 de julho de 1996. A extensão das duas áreas citadas foi obtida a partir de consulta à base cartográfica do Iterma, concernente às ações fundiárias em Alcântara, elaborada em 2000. 188 Alfredo Wagner Berno de Almeida Muralhas e Paredões 1 As técnicas de identificação consideradas próprias à situação dos quilombos em Alcântara escapam das auto-evidências e dos procedimentos usuais de historiadores e arqueólogos em elencar provas através de elementos da cultura material. As escavações e a descoberta de inscrições guerreiras, de vestígios de muros de fortificações militares, de fragmentos de artefatos bélicos (lanças, pontas de ferro), de pedras que balizam a praça central dos quilombos e o seu formato, corresponde a outras situações históricas, como as que caracterizam, por exemplo, os trabalhos arqueológicos no caso de Nanny Town, na Jamaica. Agorsah observa que, na caracterização dos quilombos na Jamaica, pode ser traçado um amálgama ou uma mistura de povos do período pré-hispânico, africanos e povos de outras origens. Da sua reconstituição histórica das investigações arqueológicas, cabe citar o seguinte: "Archaeological research in Jamaica that deals with Maroon heritage is limited to very few reconnaissance, survey (Teulon, 1967), and minor excavation expeditions (Bonner, 1974). It was only recently that major excavations have been conducted by the Univesity of the West Indies Mona Archaeological Research Project (Agorsah, 1992b,1993 a,b). In 1967, a reconnaissance expedition led by Alan Teulon of the Survey Department made the first attempt to locate and identify the ancient site of Nanny Town and to conduct an environmental study of the area. A ruined stone wall, a stone with engraved inscriptions as well surface artifacts such as fragments of bottles and crockery, and some botanical specimens were observed and some collected." (Agorsah, 1994:164-165). (g.n.) 2 Entre as "figuras alcantarenses", resenhadas biograficamente por J.Viveiros, tem-se, a saber: quatro Barões (Mearim, São Bento, Pindaré e Grajaú); dois cavaleiros professos na Ordem de Cristo, sendo um deles membro da nobreza com Carta de Brasão dada pela rainha Dona Maria I; um arcediago e comendador; cinco senadores do Império, um oficial da Ordem da Rosa, agraciado pelo próprio imperador Pedro II; dois médicos, sendo que um deles "educou-se em Paris, em virtude de uma cláusula do testamento de seu pai" e foi condecorado por Luiz Felipe, Rei de França, em 1838 (Viveiros, 1975:111). 3 Esses nomes de família abarcam 21 entre as 24 "figuras ilustres" biografadas por Viveiros. Segundo o especialista em genealogia, suas raízes remontam à "fidalguia lusitana" (Viveiros, 1975:95). O próprio nome Viveiros, que só encontramos referido a uma única família no povoado de Itapera, viemos a detectá-lo denominando os próprios quilombos no relatório publicado em Lisboa, em 1822, pelo coronel do Real Corpo de Engenheiros Antonio Bernardino Pereira do Lago: "...os quilombos de negros fugidos eram tantos e tão grandes que, em um, no distrito de Alcântara, conhecido por quilombo dos pretos de Viveiros..." (Pereira do Lago, 2001:28). 4 Registrar estes "nomes de família" no batismo cristão e no registro civil indica uma conquista antes que uma forma de identificação imposta aos escravos e seus descendentes. Os nomes arrebatados se articulam com o advento das territorialidades específicas e contrariam os antigos registros dos nomes dos escravos. Nos testamentos compulsados, o nome dos escravos vem grafado da seguinte maneira: prenome acompanhado de locativo de origem ou da região africana de referência, ou de uma característica física que distingue o escravo, ou de um estigma ou, ainda, de um ofício (carpinteiro), ou do nome de um santo ou de um apelido. O ato de apossar-se do nome do antigo senhor é vivido como legítimo e encerra uma expectativa de direito à terra, ainda hoje. 5 Essa expressão foi inspirada em Comerford (2001:66) e se refere aqui a um padrão de ocupação que concentra residências e locais de trabalho dos que se consideram parentes, reconhecidos e valorizados como tais sem que necessariamente existam laços de consangüinidade, incluindo amigos e vizinhos, cujas relações são disciplinadas por regras de uso comum dos recursos naturais, instituídas por eles próprios ou por seus antecessores e acatadas consensualmente. 6 A denominação negro tratava-se de uma categoria abrangente que, nos dois primeiros séculos e meio de colonização, incluía os índios. Foi impositivamente reconceituada em 1759, pelo art. 10 do 189 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Diretório Pombalino, que estabeleceu uma dissociação formal entre os chamados "negros" e "índios". Nesse mesmo documento ela é utilizada em sinonímia com preto. Entretanto, os estigmas a ela referidos não são exatamente os mesmos concernentes à categoria preto, que, inclusive, foi adotada afirmativamente pelos ex-escravos e quilombolas como de autodefinição. 7 O exemplo mais conhecido concerne à introdução, pela Cia. Geral do Grão-Pará e Maranhão, de sementes de arroz da Carolina, então colônia britânica, para "substituir o arroz vermelho nativo". (Viveiros, 1975:58) 8 Em verdade, não há mais grandes imóveis rurais em Alcântara. Consoante as estatísticas cadastrais do Incra correspondentes a 1999, não haveria latifúndios por dimensão ou por exploração no município. 9 Essa designação não se aplica às edificações da sede do município, embora também em ruínas e construídas do mesmo modo: em pedra e cal e taipa, possuindo alicerces profundos, paredes grossas de até um metro e vinte centímetros de espessura e tendo mais de um pavimento. Quando os entrevistados se referem a elas, utilizam o termo sobrado, que denota a solidez de um poderio quase sem limites. Não tenho o aprofundamento necessário, nem dados suficientes para afirmar que tal termo seja designativo principalmente das habitações citadinas dos senhores rurais. Em povoados da beira-campo, da antiga freguesia de Santo Antonio e Almas, como Arequipá e Monte Palmo, registrei o termo sobrado para designar sedes de fazendas. Além disso, tudo indica que tal termo mais se refere a uma posição de poder do que a uma forma arquitetônica, uma vez que tais sedes mencionadas possuíam um e tão-somente um pavimento. 10 Janã, trata-se da antiga sede da fazenda de Marcial Ramalho Marques, que por duas vezes foi prefeito de Alcântara e era casado com Ana Guimarães, filha de Antonino da Silva Guimarães. Este era filho de Antonio Alexandre da Silva Guimarães e de Ana Conceição Araújo. Não possuía título de nobreza, mas dispunha de muitos bens e é uma das "figuras alcantarenses" listadas por Viveiros (1975:142), que detinha a propriedade dos imóveis rurais de maior extensão da antiga freguesia de São Matias, no período logo após a Abolição de 1888. Antonino Guimarães, casado com Leontina Stela Ribeiro, sobrinha de Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú (H.M. 21/04/2001- ENT.25), adquiriu o imóvel rural "Gerijó" (que incluía os povoados de Santa Maria, Ladeira, Janã, Peroba de Cima, Engenho e Pavão) de José Ribeiro de Sá Valle, mais conhecido como Bebê Sá Valle. Além disso, possuia imóveis rurais na Ilha do Cajual (Bacurizeiro), na beira-campo de Bequimão (Arequipá, Paracatiua, Conceição, Cangiqueira, Bamboral), uma ilha no Apicum de Paracatiua, uma posse nas terras de Castelo e as posses denominadas Tataboia, Tapera, matinha e Santa Rita, e também comprou, em 1893, inúmeros sobrados, inclusive os três da família Viveiros do largo central da cidade de Alcântara, que haviam sido vendidos anteriormente ao comerciante Antonio Mariano Franco de Sá. A cadeia dominial dos imóveis rurais foi reconstituída por Joaquim Shiraishi, no âmbito dos trabalhos de pré-identificação das comunidades remanescentes de quilombo em Alcântara (Shiraishi, 1998). Para maiores informações, podem ser consultados: a) "Formal de Partilha passado a requerimento de parte interessada e extraído dos autos de inventário dos bens deixados pelo falecimento de Antonino da Silva Guimarães para título e conservação de seus direitos". Datado em São Luís, 11 de julho de 1949, e lavrado pelo escrivão interino Antonio A. de Mattos Pereira, sendo escrivão João de Martins Pereira, 23p; e b) "Formal de Partilha extraído dos autos do inventário dos bens deixados pelo falecimento de Marcial Ramalho Marques." Datado de Alcântara, 17 de agosto de 1970, e subescrito pela escrevente juramentada Rosalva Brito Lopes, 38p. 11 Ver, neste volume, mapa elaborado para fins desta perícia intitulado: "Alcântara - terras das comunidades remanescentes de quilombo: territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios históricos e conflitos sociais". Junho, 2002. 190 Alfredo Wagner Berno de Almeida 12 Os fundamentos dessa interpretação jurídica, de acordo com Salmoral, tem sua inspiração no "Código Carolino, donde se estabeleció la consideración ingenua o maléfica de que los esclavos no sólo eran necesariamente útiles, sino que además vivian mejor en América, como tales esclavos, que como hombres libres en Africa. El hecho de que huyeran o se rebelaran no obedecia, por tanto, a no poder soportar su condición esclava, sino a la perversión de algunos de sus amos, que les obligaban a trabajar excesivamente, no les subministraban lo necesario para su sustento, y les maltrataban con castigos crueles. Tal perversión justificaba muchas veces sus fugas y cimarronaje, y atentaba contra los principios de la Religión, de la Humanidad y el bien del Estado." (Salmoral, 1996:161) (g.n.) 13 Sobre esse endividamento, podem ser consultados quase todos os comentadores regionais, de Garcia de Abranches, em 1822 (cf. edição de 1922:116), até Viveiros, em 1954. Fazem uma defesa dos senhores dos estabelecimentos agrícolas diante dos comerciantes de escravos e da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Os autores Mota, Silva e Mantovani reuniram e classificaram 80 testamentos do século XVIII. Uma das considerações da leitura que realizam é a seguinte: "À Companhia de Comércio devia aparentemente todo mundo." (Mota et al., 2001:27), ou seja, quase todos os inventários mencionam endividamentos junto à empresa colonial. 14 Como narra A. P., também conhecido como R.P., com respeito à imagem original de S.J. Batista, que teria sido levada da capela de São João de Cortes, depois que os jesuítas foram expulsos e seu patrimônio confiscado. (R.P. 20/04/2002 - ENT.22.1). 15 Numa narrativa similar a esses depoimentos coletados na perícia, observa-se que alguns comentadores regionais fazem o que seria uma crônica da pilhagem. Chegam a registrar os seguintes termos e expressões: “evasão dos latifundiários”, “êxodo dos proprietários” e “saque” feito pelos herdeiros (Lima, 1998:90), ou, então, a produzir imagens literárias que pintam esse quadro dramático, como Josué Montello em seu romance A noite sobre Alcântara (Montello, 1978:249-251). A seguir, uma passagem de Lima a respeito: “... tudo concorrendo para a evasão dos latifundiários, dedicados a outros assuntos, e a omissão do poder político para conjurar a crise. Com o abatimento das fazendas e engenhos e o êxodo dos proprietários, ficaram as casas da cidade entregues a antigos escravos, promovidos a zeladores de confiança. Mas, sem recursos, pois os donos acharam mais interessante investir em outros bens em São Luís ou Rio de Janeiro (...) além do que todo o acervo dos velhos sobrados foi saqueado – é bem o termo – pela parentela dos herdeiros... Toda a cidade foi saqueada, das pedras dos vetustos muros às alfaias das igrejas, imagens e grades de ferro, louças e cristais. Prédios desmoronaram, ruas inteiras deixaram de existir, os sobrados se esvaziaram de tudo e de todos.” (Lima, 1998:90,91) (g.n.). 16 Uma das mais vívidas descrições da seqüência dessas pedras de rumo, abarcando 28 delas, à molde de um memorial descritivo, foi coletada por Luiz Fernando R. Linhares no trabalho de campo para sua dissertação de mestrado e para identificação das comunidades de Flórida e Forquilha como remanescentes de quilombo. Com mais de 70 anos, Sr. Binga, o entrevistado que narra as delimitações, mesmo residindo atualmente na Camboa, em São Luís, representa o "documento vivo" da comunidade. Passo a transcrever, com a devida licença de quem a coletou, tal descrição: "A primeira pedra de rumo fica no Rio Duarte, que divide as terras de santíssima justamente com as terras que era dos brancos; a segunda fica na Flórida, atrás da casa de forno de Tomásia; terceira fica na Peroba, no quintal de Moisés; quarta fica na Ladeira (perto do Janã, depois do Vai-com-Deus, lá Isídio ou Domingos Carne de Porco, ou Domingo Xandoca sabe onde fica; quinta pedra fica no Tajurará; sexta fica no Samucangaua, localizada no caminho chamado Corta Pescoço, perto do Quebra ovo; de lá vai para o Porto do Rumo (perto do Deserto), onde fica a sétima pedra de rumo; de lá vem pro lugar chamado Rio do Pamané, onde fica a oitava pedra de rumo; de lá vem fazer misco com a terra da Cachoeira (lá era de Firmino Ribeiro, agora ele tinha os filhos Arlipe Ribeiro, Mundico Ribeiro, Mundico Periz, Miguel Ribeiro, Hermínia Ribeiro, Isídio Ribeiro, Ilário Ribeiro, Daniel Ribeiro, José 191 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Mintiba Ribeiro, esse era tio do Beja, José Ribeiro e Leonide Ribeiro; da Cachoeira vem para a Ladeira (9a. pedra); de lá vai pra Conceição (10a.); de lá pra Baixa Grande (11a.); de lá vem pra cá Gerijó (12a.); de lá vai pra Santo Inácio (13a.); de lá vai prá Castelo (14a.); de lá vem pro Pavão (15a.); de lá para o Centro de Vovó (16a.); Porto dos Bois (17a.); Quiritiua (18a.); Trespucaia (19a.); Oitiua(20a.); Cajueiro perto de Oitiua(21a.); de lá vêm embora para o Bom Jardim (22a.); Janã (23a.); Terra Mole (24a.); Vaicom-Deus (25a.); Engenho (26a.); Peroba de Baixo (27a.); Primirim, perto da Prainha (28a.)." (Linhares, 1999:66,67) 17 Não constitui particularidade tal pecúlio, posto que juristas como Perdigão Malheiro, em 1864, já verificavam a sua ocorrência nas províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro. 18 Em Alcântara, sobretudo nas fazendas da beira-campo, há situações nas quais os escravos possuem gado e também seriam vítimas dos "ladrões de gado". Uma correspondência de José F. da Silva Maia Jr., datada de Santa Helena, 11 de abril de 1858, e remetida ao Sr. Redator, foi divulgada em São Luís por A Imprensa, de 21 de abril de 1858, sobre furto de gado na região de Alcântara. Registra dois casos, sendo um de escravo e outro de escrava, arrolados como "criadores", que também tiveram roubadas suas cabeças de gado: "... que me explique quem será o abator (sic) e consumidor de gado alheio - por exemplo umas vacas da Exma. Sra. D. Maria Tereza Franco de Sá, bem assim diversos animais das fazendas do Sr. Comendador Joaquim Mariano Franco de Sá, D. Ana Diniz Ferreira de Sá, de uma escrava do Dr. João Franco de Sá... Além desses são sofredores, e forçados contribuintes os criadores - Manoel Pinto da Motta, Antonio Mariano Nogueira, Simoa Maria Lourinha, e um pobre preto escravo do Comendador José Ascenso Costa Ferreira, de nome Simplício." (A Imprensa, no 32, Ano II, 21 de abril de 1858, p.3). 19 A exportação de escravos para as lavouras cafeeiras das províncias do Sul consistia, conforme a versão dos intérpretes oficias, num recurso de que os senhores de engenho lançavam mão para saldarem suas dívidas e os empréstimos usurários. O elevado preço obtido pelos escravos propiciava isto. Para maiores detalhes, consulte-se Almeida (1983:109). Para se acompanhar mais de perto o caso particular de uma escrava, Eufrásia, do Maranhão, vendida em 1879, para Campinas (SP), para a empresa Calhelha & Villares, que deposita na Coletoria da cidade uma quantia para promover sua liberdade e entra com uma ação contra seu senhor, leia-se Mendonça (2001:63). 20 Enquanto as benfeitorias em Alcântara foram inteiramente destroçadas e os bens móveis dispersos, as sedes das fazendas dos jesuítas na Ilha do Marajó (Fazenda Arari) e em outras partes do país permanecem restauradas e com peças de madeira, santuário e mobiliário preservados. Para um contraste mais detido e para um maior aprofundamento, consulte-se Serafim Leite (1943: 201). 21 O descaroçador de algodão entrou em cena entre 1784 e 1790, após a independência dos Estados Unidos e com a quebra do monopólio colonial, aumentando as possibilidades de comercialização, como afirmou E. Williams, e revigorando a economia escravista (Williams, 1975:134-139). No caso de Alcântara, ele não chegou a ser montado e, quando surgiu em São Luís, quase um século depois do fim do monopólio da Cia. Geral de Comércio, já era uma medida tardia, incapaz de reverter o declínio da produção algodoeira maranhense e de ampliar as exportações. 22 O índigo do Brasil é uma planta da família das solanáceas, com ramos de ápices azulados, folhas lanceoladas e flores em racemos curtos, nativa do Brasil. Os jesuítas desenvolveram técnicas de processamento e obtiveram o corante, que passou a ter elevado valor comercial. 23 As terras correspondentes a essa fazenda situam-se hoje no município de Bequimão, que foi uma freguesia de Alcântara sob o nome de Santo Antonio e Almas e passou a município em junho de 1935. 24 Cf. Parecer da Comissão do Convento das Mercês. São Luís, 12 de dezembro de 1862. E Ofício da mesma Comissão datado de 30 de setembro de 1863. Transcritos por D. Francisco de Paula e Silva, Bispo do Maranhão. (Paula e Silva, 1922: 458-466). 192 Alfredo Wagner Berno de Almeida 25 Para maiores esclarecimentos, veja-se Linhares (1999:66). 26 A Companhia de Jesus moveu ação contra o governo pombalino, exigindo indenização e reparo pelos bens confiscados. Sucederam-se comissões para avaliar gado, terras e demais bens. Em 1885, a Ordem do Carmo tentou transferir para seu convento em São Luís os derradeiros bens que se encontravam num enorme baú em sua igreja de Alcântara. Consoante Viveiros, eram "quinze arrobas, ou sejam 225 quilos de prata em obras de fino valor artístico" (Viveiros, 1978:22). Houve resistência no plano municipal. A Ordem moveu uma ação para recuperar seus bens. Em 1891, não obstante a Igreja já estar separada do Estado, o governo federal, republicano, "constituiu-se em legítimo dono e recolheu o tesouro nos seus cofres, no Rio de Janeiro". (Viveiros, 1978:21). 27 Não foi possível estabelecer relações diretas na construção das territorialidades específicas com as três fazendas de gado da Ordem do Carmo, quais sejam: Pericumã, Tubarão e Suassiu Cumã. Não consegui, tampouco, detectar qualquer informação outra alusiva às terras correspondentes à Ordem Terra Santa, assim citadas pelo Bispo do Maranhão D. Francisco Paula e Silva em relação de 1877: "huma fazenda na paróquia de São Matias em Alcântara." (Paula e Silva, 1922:419). 28 Nos primeiros registros, não me detive na informação, porquanto refere-se a uma figura de dimensão mítica onipresente em praticamente todo o Maranhão provincial. Tinha conhecimento de seus imóveis rurais no Mearim, no que hoje corresponde a São Luís Gonzaga. Além disso, é vasto o raio de ação de membros da família. Antecessores de Ana Jansen ocuparam cargo administrativo na Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão ou foram dela acionistas ou, ainda, carregaram gêneros à consignação em navios da Cia. As referências poderiam passar, pois, por vagas. Alguma vezes, entretanto, elas eram associadas mais diretamente ao Engenho Gerijó, como se ele tivesse pertencido a Ana Jansen e fosse palco de horrores. Não obtive qualquer informação cartorial ou em fontes arquivísticas capaz de adiantar sobre a fidedignidade dessa versão. Verificam-se, entretanto, possíveis analogias com a esposa de Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú, proprietário do Gerijó, que também se chamava Ana e sobre a qual incidiam acontecimentos denotando perversidade. Senão, vejamos: "(22) Ana Rosa Ferreira Vale Ribeiro, irmã do ilustre maranhense José Joaquim Ferreira Vale, Visconde do Desterro. Matou a sevícias uma criança escrava, mas não foi processada porque um seu irmão se apresentou à Justiça, confessando-se autor do delito e foi absolvido porque ninguém em Alcântara estava convencido da culpa que nobremente lançou sobre os ombros. Acusada mais tarde de ter morto um escravinho, respondeu a júri, em São Luís, onde teve como incorruptível acusador o promotor público Celso de Magalhães. Leia-se acerca deste júri célebre e do promotor o que escreveram Graça Aranha em ‘O meu próprio romance’ e Dunshee de Abranches em ‘O Cativeiro’". (Lopes, 1957:287). Numa outra versão, apoiada nas peças processuais e mais exatamente no termo de depoimento da acusada, Figueiredo de Almeida transcreve o seu depoimento, onde se evidencia que não corresponde exatamente ao nome e ao pertencimento de família mencionado por Lopes. Para um cotejo, destaquei o seguinte trecho do depoimento: "Perguntado qual o seu nome, idade, estado, naturalidade e filiação? Respondeu chamar-se D. Ana Rosa Viana Ribeiro, de quarenta e tantos anos, casada com Dr. Carlos Fernando Ribeiro, natural desta Província, filha do Comendador Raimundo Gabriel Vianna e D. Francisca Isabel Lamagnere." In: José Eulálio Figueiredo de Almeida, O crime da Baronesa. São Luís: Lithograf, 2004, p.36-37. “Depois do júri da esposa, o Barão de Grajaú viu o Partido Liberal subir ao poder e assumiu a presidência da Província do Maranhão. No mesmo dia em que tomou posse demitiu Celso Magalhães da promotoria pública..." (Lopes, 1957:287). Narrativas populares de menino-escravo, cuja morte foi provocada pelo fato de terem lhe introduzido um garfo no ânus, causando infecção, podem ser registradas ainda hoje em Alcântara, bem como relatos, reproduzidos também por Lopes, da jovem mucama do Gerijó que, por ordem da baronesa, "teve os líndissimos dentes arrancados um a um, a torquês, simplesmente porque o barão, quando ela servia a mesa ao jantar, lhes notara a perfeição" (Lopes, 1957:287). 193 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 29 Cynthia C. Martins registrou em Itapuaua o que intitulam, em meio às ruínas da casa-grande da Fazenda Esperança, sumidor (Carvalho Martins, 1998:11), ou seja, um buraco bem fundo onde eram colocados os escravos que cometiam infrações consideradas passíveis de penas máximas. 30 Contribuem, assim, indiretamente para alargar a ação de tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico de Alcântara, iniciada oficialmente pelo Decreto n° 26077, de 22 de dezembro de 1948, que erigiu a cidade de Alcântara em Monumento Nacional. Essa intervenção, que se concentrou nas igrejas e sobrados coloniais, vê-se hoje socialmente ampliada pela mobilização das comunidades remanescentes de quilombos, cuja presença histórica no entorno das ruínas, tornando-as vívidas, foi mantida sob absoluta invisibilidade no ato de tombamento. Para maiores detalhes, consulte-se: a) o Livro de Tombo Histórico, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, instituído pelo Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, p.43 - Número de Inscrição: 254; processo n° 390/T/48. Proprietário: Municipalidade de Alcântara e outros. Caráter do Tombamento: ex-ofício, voluntário. Data de inscrição: 29 de dezembro de 1948. b) o Livro do Tombo das Belas Artes, igualmente instituído pelo Decreto-Lei nº 25, já citado, p.95. Número de Inscrição: 521; data da Inscrição: 10 de outubro de 1974. c) o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, também instituído pelo decreto supracitado, p.15. Número de inscrição: 77. O domínio "original" 1 A antropologia tem adotado como instrumento de análise novos significados de etnia. Desde 1973, pelo menos, a American Ethnological Society tem sublinhado novos procedimentos de análise da etnicidade como identidade, consoante os Proceedings definidos nessa data em The New Ethnicity - Perspectives from Ethnology. Esse esforço de redefinição já vem desde 1966-67, com F. Barth, segundo o qual os grupos étnicos passam a ser entendidos como um tipo organizacional ou como uma forma de organização social (Barth, 2000:11). De igual modo, a ciência do direito, pelas formulações de N. Bobbio, tem chamado a atenção para os deslocamentos que sofre o conceito de etnia. Bobbio et al. enfatizam: "Observe-se que não fizemos uso da raça como critério fundamental da definição de etnia. Este conceito, tal como é comumente usado, não tem fundamento científico." (Bobbio et al, 1999:449). 2 Denomina-se taca a uma fasquia de madeira em forma de bordão e presa ao pulso por uma correia de couro, empregada para castigar os escravos. Também chamada de mangual ou relho. Diferencia-se do açoite, que tem tiras de couro. 3 Cf. Directorio, que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, instituído por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, em 17 de agosto de 1758, e rubricado pelo rei D. José I. 4 Localizada na cabeceira do rio Pericumã, com 8.712 hectares, foi confirmada a doação de sesmaria aos "Indios da Povoação de Anadia", em 31 de janeiro de 1811, consoante anotação que consta do Livro de Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias n° 10, à folha 44, disponível à consulta no Arquivo Público do Estado do Maranhão. O copista, que transcreveu e classificou os documentos, considera esse registro como referido a Alcântara. Não o inclui, todavia, nos quadros demonstrativos das expedições de confirmação das sesmarias. Para um aprofundamento sobre esse processo de territorialização, leia-se Almeida (1988), Oliveira (1998) e Paula Andrade (1999). 5 A designação pretos aparece em sinonímia com negros no documento do Directorio de 1658. Isso difere dos comentários de Câmara Cascudo sobre o "ABC dos Negros do Maranhão", divulgado por Leonardo Mota, em 1928: "Os escritores desses assuntos jamais tiveram contacto com legítimos ex194 Alfredo Wagner Berno de Almeida escravos, filhos de africanos, bem lembrados do Cativeiro, como eles diziam, porque Escravidão era aviltante. É como na África portuguesa onde Negro é indelicadeza quase insultuosa. Diz-se Preto!" (Cascudo, 1986:51) 6 E. Galvão, em Santos e Visagens, observa que o termo caboclo "indica posição social inferior" (Galvão, 1955:196). Cantanhede recupera a oposição entre os "ricos" (brancos) e os "pobres" (caboclos) no sistema de representação dos moradores de Ladeira, relacionando-a com o uso comum versus a propriedade individual da terra (Cantanhede, 1998:7-9). 7 Essa sigla hoje corresponde à Conaq, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. 8 "Entre os particulares que dispunham de cabedal para povoar e cultivar uma capitania do Norte amazônico, estava Antonio Coelho de Carvalho, desembargador da Casa da Suplicação, que em 1627 pedia, na costa do Maranhão, cinqüenta léguas para norte da barra do rio Cumã. Contudo, como a escolha feita por Álvaro de Souza da capitania de Caeté entrara pela de Cumã, "que lhe estava já nomeada até o rio Tury que eram muitas léguas" em prejuízo de Antonio Coelho de Carvalho, ficando a capitania de Cumã "mui defraudada", este pediu ao rei que lhe passasse a carta de confirmação da ponta de Tapuitapera para o norte. Pela carta de doação, de 7 de abril de 1640, ficamos sabendo que esse donatário era fidalgo da Casa Real, desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação e juiz das contadas do Reino, empregos estes que o prendiam, ao mesmo tempo que era o senhor de terras no Norte brasileiro (ibidem, doc. 63, p. 329-33)". (Nizza da Silva, 2005: 60). Todos os donatários de capitanias eram praticamente fidalgos da Casa Real ou militares recompensados por prestação de serviços guerreiros. Para maiores esclarecimentos, consulte-se: Maria Beatriz Nizza da Silva, Ser nobre na Colônia. São Paulo: Editora Unesp, 2005. 9 César A. Marques transcreve literalmente essa Carta e cita documento que confirma o patrimônio da Câmara após a decisão régia de 1754 de reverter todas as terras de Alcântara à Coroa: "Pela Portaria de 28 de outubro de 1759, o Governador Gonçalo Pereira Lobato e Souza, de conformidade com as ordens que havia recebido, concedeu ao Senado da Câmara desta antiga Vila de Santo Antonio de Alcântara uma légua de terra para seu patrimônio."(Marques, 1970:72) (g.n.) 10 As confirmações régias mencionadas por César Marques referem-se às seguintes datas: 15 de abril de 1644 e 06 de outubro de 1648. (Marques, 1970:66). 11 A manufatura do algodão e o monopólio dos mercados coloniais no período de 1750 a 1790 foram estudados por E.J. Hobsbawm (1969 e 1983). 12 Para um aprofundamento sobre o cultivo de arroz pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão e a introdução de novas espécies, consulte-se Viveiros (1975:58) e ainda Carney e Marin (1999:124). 13 Nunes Dias arrola o rendimento dos bens sequestrados aos jesuítas do Grão-Pará e Maranhão. Importa destacar, no presente estudo, o caso da Fazenda "Gerijó de Tapuytapera". A maior produção em termos do volume da quantidade produzida e de valor refere-se à farinha, embora o arroz apareça com destaque. A produção corresponde a 75 alqueires de farinha e a 44 de arroz, em 1760, e a 102 alqueires de farinha e a 220 de arroz, no ano de 1769 (Nunes Dias, 1970:186-87). 14 Esse empreendimento teve curtíssima duração e não logrou êxito. "Na Provisão de 21 de abril de 1688 se lê que, achando-se desmantelada a maior parte dos engenhos do Estado do Maranhão por falta de braços e do comércio do açúca..."(Marques,1970:64) (g.n.). 15 Desde 1772, ou seja, 17 anos após a criação da Companhia Geral, mais de três dezenas de filhos desses "lavradores" começam a frequentar universidades européias, tais como a Universidade de Coimbra, Université Libre de Bruxelles, Université de L'Etat à Gand, Faculté des Sciences 195 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Agronomiques de L'Etat à Gembloux, Université de l'Etat à Liége e Universidade de Heidelberg no Grão-Ducado de Baden. Há dois que estudaram em universidades norte-americanas. Entre esses se encontrava pelo menos uma dezena de filhos de "lavradores" de Alcântara, tais como: José Constantino Gomes de Castro (vigário geral), José Mariano Correa de Azevedo Coutinho, Patrício José de Almeida e Silva Seixas (senador), Antonio Pedro da Costa Ferreira (Barão de Pindaré, governador, senador), Custódio Alves Serrão (diretor do Jardim Botânico, na Corte), Joaquim Franco de Sá (senador), José da Silva Maia (presidente da província), Carlos Fernando Ribeiro (Barão de Grajaú, presidente da província), Alexandre José de Viveiros (oficial da Ordem da Rosa), Francisco Mariano de Viveiros Sobrinho (Barão de São Bento). Todos estudaram em Coimbra à exceção de José da Silva Maia, que se formou na Escola de Medicina de Paris e Carlos Fernando Ribeiro que fez agronomia no Yale College e medicina na Escola de Medicina da Filadélfia (USA). Pombal reformara a Universidade de Coimbra, separando o direito canônico do direito costumeiro e, na jurisprudência do reino, afastou a possibilidade de aplicação do direito canônico. Outros tantos membros dessas famílias de "lavradores" de Alcântara, no decorrer do século XIX, estudaram na Faculdade de Direito de Recife (Augusto Olimpio Gomes de Castro, presidente da província; José Francisco de Viveiros, vicepresidente da província; Felipe Franco de Sá, senador; Carlos Fernando Viana Ribeiro) e na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (Luiz Alfredo Neto Guterres). 16 Teodoro Correa de Azevedo Coutinho aparece na lista dos "lavradores" que transportaram seus gêneros à consignação nos navios da Companhia Geral, inclusive a partir de 1778. Os que assim o fizeram após a extinção da Companhia tinham como objetivo a" liquidação ou amortização de dívidas junto a empresa" (Carreira, 1988:284). 17 Historiadores e economistas, reproduzindo as periodizações ortodoxas da historiografia oficial, utilizam um conceito de etnia restrito a características raciais. 18 Carreira considera os historiadores que estimaram em 100.000 os escravos transportados pela Companhia Geral, incluindo-se os 48.000 para o Rio de Janeiro, como referidos a um período préestatístico, em que não se havia examinado com rigor a documentação contábil da referida empresa. Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio da Companhia Geral do Comércio 1 Os dois registros alusivos a demarcações foram localizados no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e os demais, em São Luís, no Arquivo Público do Maranhão, que possui as cartas e uma cópia da listagem disposta em microfilmes no Iterma. Tal listagem foi classificada por termo e por vila sem o acuro necessário na localização de cada um dos registros. Certamente que há referências por demais vagas de localização mas, ainda assim, pode ser feito um cotejo com dados biográficos de sesmeiros, contribuindo para precisar a informação. Há casos de registro com grafia quase ilegível e há anotações não convenientemente explicadas, como "sem efeito" assinalado após a denominação da sesmaria. Um procedimento de maior acuro exigiria uma transcrição integral de cada carta ou registro, constituindo o acervo original básico para as iniciativas de classificação. 2 Com propósito de checar a fidedignidade do registro com as informações memorialísticas e de história oral, decidi pela transcrição integral do documento, verificando se a localização correspondia aos relatos. Tal checagem se impôs porquanto havia muitos registros localizados nos chamados Riacho do Mocambo, Mocambo, Rio do Mocambo e Lago do Mocambo que se referiam a outras áreas geográficas. 3 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Livro 4, folha 54. 196 Alfredo Wagner Berno de Almeida 4 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Livro 4, folha 123. 5 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Em 23/09/1815, Livro 10, folha 25. 6 Cf. Correspondência entre o chefe de polícia e o presidente da província do Maranhão Lafayete Rodrigues Pereira. São Luís, Palácio do Governo, 11 de maio de 1866. 7 Para outras informações, inclusive sobre a conversão dessas fortunas em moeda inglesa, consulte-se Röhrig Assunção (2000:32-71). Pereira do Lago, em 1820, cita 54 comerciantes portugueses e quatro estrangeiros em São Luís. Destaca Meirelles, entre os portugueses, e R. Hesketh, entre os estrangeiros. Descreve também as condições de trabalho nos estabelecimentos fabris de São Luís: "Há diferentes máquinas de descascar arroz, de descaroçar algodão, de fazer açúcar, de destilações e de tecer pano de algodão, todas imperfeitas (...) e podemos dizer que a força motriz de todas é só resultante de muitos braços escravos, parecendo aquelas fábricas mais uma masmorra d'África." (Pereira do Lago, 2001:56). (g.n.) 8 Destaque-se que os processos de cobranças de dívidas e de definição do espólio da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão tramitaram na justiça até 1914. 9 Outras informações podem ser obtidas com a leitura de R. Gaioso, que publicou sua análise em 1813, e com a consulta ao trabalho de Barros Bello (1998), que faz uma arqueologia dos planos de desenvolvimento do Maranhão. 10 Arruda, comentando a interpretação de Furtado, afirma que teria ocorrido uma "euforia efetiva" e que a política pombalina contribuiu para o início da formação da economia nacional; e conclui: "O Maranhão não é, portanto, exceção ao quadro econômico que define o perfil da colônia brasileira no fim da época colonial, é uma de suas manifestações mais expressivas, mas seu dinamismo econômico não é exclusivo, nem conduz à primazia entre as regiões econômicas brasileiras. "(Arruda, 1988:21). 11 Para um aprofundamento sobre essa polêmica, leiam-se os seguintes tópicos de "Apontamentos sobre as sesmarias do Brasil" de José Bonifácio de Andrada e Silva: "1) Todos os possuidores de terras que não tem titulo legal perderão as terras que se atribuem, exceto num espaço de 650 jeiras (130 hectares), que se lhes deixará caso tenham feito algum estabelecimento ou sítio. 2) Todos os sesmeiros legítimos que não tiverem começado ou feito estabelecimento nas suas sesmarias serão obrigados a ceder à Coroa as terras, conservando 1.300 jeiras..." (Andrada e Silva, 1998:152-153). 12 Após suspender o noviciado, o governo procurava extinguir as ordens religiosas: "O intento da Monarquia Constitucional do Brasil era ir acabando aos poucos com a vida claustral, e esperar, com ânsia de cobiçoso heredipeta, a morte do último frade para recolher-lhe o espólio."(Lacerda de Almeida, p.196, apud Pratt, 1941). Segundo Frei André Pratt: "Proclamada a Independência o Governo cuidou logo de nacionalizar as ordens religiosas existentes, não permitindo que elas conservassem o menor vínculo de sujeição às respectivas hierarquias estrangeiras." (Pratt, 1941:186). O Projeto n° 20, aprovado sem discussão pela Câmara dos Deputados, em 1828, estabelecia que religiosos que obedecessem a superiores residentes em Estados estrangeiros seriam expulsos para fora do Império (Art.4º). 13 Senador Patrício José de Almeida e Silva Seixas, senador Antonio Pedro da Costa Ferreira, senador Jeronimo José de Viveiros, senador Joaquim Franco de Sá, senador Felipe Franco de Sá. 14 O exemplo exponencial aqui seria o naturalista José Custódio Alves Serrão, que fez o curso de Ciências Naturais na Universidade de Coimbra, em 1823. Retornou ao país e, em 1835, pesquisou as serras de Itabaiana, em Sergipe, e foi professor de Química no Colégio Militar, diretor do Museu (hoje Museu Nacional) e diretor do Jardim Botânico, falecendo no Rio de Janeiro, em 1873. 197 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Os quilombos em Alcântara 1 A expressão encarregados da terra foi registrada no decorrer do trabalho de campo pericial, não tanto para referir a feitores de escravos, mas para designar os que tinham a responsabilidade de cobrança do aforamento, de medir os terrenos de cultivo, definindo os percentuais a serem recolhidos, de estocar a produção arrecadada e de administrar as terras em virtude da ausência, seja dos fazendeiros, seja de membros das ordens religiosas. Em inúmeras situações, os que lideram a resistência aos senhores são oriundos exatamente das famílias destes encarregados. O fato de exercerem uma ação mediadora os dispunha no centro dos antagonismos que marcavam as relações escravistas nas antigas fazendas de algodão e nos engenhos. 2 Para maiores informações sobre essa revogação, leia-se "Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil", elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva entre os anos de 1823 e 1829 (Andrada e Silva, 1993: 89-149). 3 Consoante entrevistas já citadas, os índios haviam doado suas terras para os santos padroeiros. 4 As discussões jurídicas sobre a condição de sesmeiros como posseiros marcaram as sessões do Senado do Império, entre 1841 e 1843. O indício que levantamos de que os fazendeiros de Alcântara se auto-representavam enquanto posseiros atém-se à participação do senador Franco de Sá: "Num debate acerca do tamanho máximo para a legitimação das posses, Franco de Sá, grande proprietário e senhor de engenho em Alcântara no Maranhão afirmara que a Lei iria prejudicar a sua ‘classe de posseiros’ (Carvalho, 1981:39). Talvez esta assertiva confirme a hipótese de que as terras do Maranhão seriam tomadas por posse de terras, que implicariam na ausência ou omissão de registros nos livros do período." (Shiraishi, 1998:29). 5 No decorrer do trabalho de campo, foi registrado um povoado denominado de "Fora Cativeiro" e devidamente localizado na base cartográfica que acompanha esta perícia. Foram também registradas alusões à base de lançamento que a identificam com "cativeiro". 6 No Arquivo Nacional, há abundantes registros das disputas políticas que cercaram as Juntas Governativas na Província do Maranhão. 7 Cf. Arquivo Nacional-CFC - As Câmaras Municipais e a Independência. Rio de Janeiro, Vl. I, 1973, p. 21-27. 8 No caso de Guimarães, a ocorrência mais conhecida refere-se às fazendas do Barão de Bagé, tal como registrado em O Progresso, n° 82, de 28 de abril de 1847, à pág. 3. Senão, vejamos: "Tendo-se evadido das fazendas do Barão de Bagé do distrito de Guimarães duzentos escravos, o Governo provincial expediu as convenientes ordens para que sejam capturados." (g.n.) 9 Sobre o "movimento que explodiu no mucambo de São Benedito do Céu", em 1867, considerado a mais expressiva "rebelião" ocorrida no Maranhão, que devastou fazendas e mobilizou centenas de soldados para reprimi-lo, consulte-se: Jerônimo Viveiros, "A revolta dos pretos" - Quadros da Vida Pinheirense XXV, in: Cidade de Pinheiro, n° 1.676. Pinheiro (MA), 28 de agosto de 1955. 10 Nessa ordem, considerava-se juridicamente como quilombo ou mocambo "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles" (Conselho Ultramarino, 1740 apud. Moura, 1994:16). Perdigão Malheiro menciona, ademais, os seguintes dispositivos legais que instrumentalizam e asseguram a aplicação desse dispositivo: Alvará de 3 de março de 1741 e Provisão de 6 de março do mesmo ano: "Era reputado quilombo desde que se achavam reunidos cinco escravos." (Perdigão Malheiro, 1976:50). 198 Alfredo Wagner Berno de Almeida Os territórios de parentesco 1 Aqui se poderia incluir, ainda, o caso de Samucangaua, povoado localizado em terras de santíssimo, que teve como primeira moradora Ismendia, que teria sido escrava no Engenho Gerijó, e da qual todos dizem descender. Para maiores informações, consulte-se Cantanhede (1998:10). 2 Essa certidão foi transcrita e encontra-se entre os anexos da presente perícia (volume 2). Também referido a esta territorialidade, tem-se o registro paroquial expedido em 25 de maio de 1856 em nome de "Ignacio Antonio Dias e diversos pobres" (cf. Livro 01, fl. 10), comentado em tópico anterior. 3 Antonino da Silva Guimarães (1867-1947). 4 Essas informações podem ser aprofundadas a partir da leitura do levantamento cartorial realizado por Joaquim Shiraishi Neto, em 1998. 5 Refiro-me mais diretamente a matrimônio entre jovens das agrovilas e dos povoados mais próximos ao mar, onde os recursos naturais permanecem abertos e são vistos pelos moradores das agrovilas como lugar de fartura e abundância. O matrimônio dos filhos, combinado com a nova regra de residência, ou seja, "residir sempre fora das agrovilas", produz fatores adicionais de coesão entre os povoados, apoiados no parentesco e na afinidade. O território das comunidades remanescentes de quilombos 1 Um cotejo desse tipo pode ser feito entre os povoados de Flórida e Forquilha, que se dispõem em áreas contíguas, medidas em metros, mas têm referências a territorialidades distintas, quais sejam, terras de santíssimo e terras de preto, respectivamente, sendo estas últimas formadas a partir de desagregação de engenho de açúcar ao qual sucederam regras de aforamento, com o já citado Antonino Guimarães. 2 As referências empíricas aqui se voltam para a descrição de povoados cuja composição se atém a fatores religiosos, tais como Águas Belas e Santa Maria. ( R.N.R.S. 20/01/1950 - ENT. 07). 3 Para um aprofundamento dessa relação entre territorialidade e identidade, consulte-se: A. W.B. de Almeida. "Terras de preto, terras de santo, terras de índio-uso comum e conflito" in: , E.M. R. de Castro e J. Hebette (orgs). Na trilha dos grandes projetos - modernização e conflito na Amazônia. Belém: UFPA, 1989, (Cadernos do NAEA, nº 10), p. 163-196. 4 Atente-se também para a distinção verificada por A. Cantanhede nos povoados de Ladeira, Iririzal e Samucangaua entre "família de preto" e "família de caboco" (Cantanhede, 1998:06-09). 5 Dados do MAer assinalam 21 povoados compulsoriamente deslocados em 1986 e 1987 para as sete agrovilas. São eles: Cajueiro, Curuçá, Pepital, Barro Alto, Espera, Ponta Seca, Lage, Só Assim, Boa Vista, Norcasa, Cavem, Peru, Santa Cruz, Jabaquara, Pedro Marinho, Titica, Santa Rosa, Pirapema, Jenipauba, Marudá e São Raimundo. Não incluídas nos dados do MA A interseção dos planos de organização social 1 Na elaboração deste tópico, utilizei também informações coletadas anteriormente e reunidas nos seguintes relatórios: "A economia dos pequenos produtores agrícolas e a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara", elaborado com a colaboração de Célia Maria Correia e Francisco José 199 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 Lopes de Souza, datado de Brasilia, Mirad, 21/10/1985; e "Relatório de Viagem a Campo", que elaborei em junho de 2000 a partir de visitas a povoados com técnicos do Bird. 2 Consulte-se o mapa elaborado para fins desta perícia. 3 O verbo "encofar" deriva do utensílio de palha que confeccionam para armazenar a farinha, as galinhas e demais produtos a serem trasnportados, que chamam de cofo. 4 Para uma descrição mais completa desses calendários agrícolas e extrativos, consultem-se os anexos no Volume 2. 5 Um dos maiores desastres ambientais na implantação das agrovilas foi dispô-las junto às nascentes, afetando diretamente o volume d’água de rios e igarapés. O exemplo mais flagrante diz respeito ao rio do Pepital, em cujas nascentes foi erguida a agrovila do mesmo nome. Esse rio, que abastece a sede do município, está com seu volume d’água drasticamente reduzido e em algumas partes do seu curso já se fala de "rio seco". A agrovila de Só Assim teria sido instalada, conforme relato de J. na discussão sobre a situação das agrovilas, sobre cinco nascentes, comprometendo os igarapés. 200 Referências bibliográficas AGORSAH, E.K. Archaeology of Maroon Settlements in Jamaica. In: HERITAGE, M. Archaeological, ethnographic and historical perspectives. Jamaica: Canoe Press, 1994, p. 163-187. ALMEIDA, A.W.B. de. A ideologia da decadência - leitura antropológica a uma história da agricultura do Maranhão. São Luís: IPES, 1983. _____. Terras de preto, terras de Santo, terras de índio - uso comum e conflito. Cadernos do NAEA, Belém, UFPA-NDEA, n. 10, p. 163-196, 1989. _____. Quilombos: sematologia face a novas identidades. 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Descrição do perímetro Com início no marco VD-01 (Vértice Digitalizado) digitalizado na Ponta do Murici, deste segue na direção sudeste percorrendo o limite com terras de MARINHA, com distância de 5.851,58m, chega-se à foz do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO; deste segue percorrendo o limite no sentido montante, pela margem direita do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO com distância de 3.287,46m até vértice P-1 de coordenadas E=561.803,47m, N=9.757.483,44m, deste segue percorrendo o limite no sentido jusante, Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 pela margem direita do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO, com distância de 3.606,30m chega-se à foz; desta segue no sentido sudeste, com terras de MARINHA com distância de 4.494,38m chegas-se à foz do IGARAPÉ DO BRITO; desta segue percorrendo o limite no sentido montante, pela margem direita do IGARAPÉ DO BRITO, com distância de 6.761,87, chega-se ao vértice P-2 de coordenadas E= 562.967,60m, N=9.754.002,14m; deste segue percorrendo o limite no sentido jusante, pela margem direita do IGARAPÉ DO BRITO, com distância de 5.223,48, chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras de MARINHA, com distância de 6.362,93, chega-se à foz do IGARAPÉ CAIUANA, desta segue percorrendo o limite no sentido montante, pela margem direita do IGARAPÉ CAIUANA, com distância de 3.996,47m chega-se ao vértice P-3, de coordenadas E=565.498,37m, N=9.747.288,62m; deste segue percorrendo o limite a margem direita sentido jusante do IGARAPÉ DO CAIUANA, com distância de 5.223,48m chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras de MARINHA, com distância de 6.874,42m chega-se à foz do IGARAPÉ PIRAPEMA; desta segue percorrendo o limite pela margem direita sentido montante, do IGARAPÉ PIRAPEMA, com distância de 1.311,91m chega-se ao vértice P-4; de coordenadas E=569.665,11m, N=9.742.933,65m; deste segue o IGARAPÉ DO PIRAPEMA na margem direita no sentido jusante, com distância de 1.752,02m chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras da MARINHA, com distância de 3.217,88m chega-se à foz do IGARAPÉ PEPITAL; desta segue percorrendo a margem direita sentido montante do IGARAPÉ PEPITAL com distância de 3.703,71m chega-se ao vértice P-5, de coordenadas E=566.449,98m, N=9.740.046,11m; deste segue o IGARAPÉ DO PEPITAL na margem direita no sentido jusante, com distância de 3.624,49m chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo, percorrendo o limite com terras de BAIA DE SÃO MARCOS e decreto de delimitação do perímetro municipal da cidade de ALCÂNTARA, com distância de 31.757,08m chega-se à foz do RIO SALGADO; desta segue percorrendo a margem direita sentido montante do RIO SALGADO na margem direita no sentido jusante, com distância de 30.238,43m, utilizado o perímetro de seus afluentes, chega-se ao vértice P-6; de coordenadas E=546.814,41m, N=9.730.730,26m; deste segue o RIO SALGADO na margem direita no sentido jusante, com distância de 28.997,93m, utilizando o perímetro de seus afluentes, chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras do RIO CAJUPE, com distância de 3.048,23m chega-se à foz do IGARAPÉ PORTO DO MEIO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 4.107,37m chega-se ao vértice P-7, de coordenadas E=552.016,96m, N=9.730.368,19m; deste segue percorrendo o limite pela margem do IGARAPÉ PORTO DO MEIO sentido jusante, com distância de 4.033,87m chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite de terras da marinha, com distância de 2.110,76m chega-se à foz do IGARAPÉ CURUÇÁ; desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 4.904,10m chega-se ao vértice P-8; de coordenadas E=551.779,62m, N=9.727.327,70m; deste segue o IGARAPÉ CURUÇÁ na margem direita no sentido jusante, com distância de 5.193,31m chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras da marinha, com distância de 9.530,83m chega-se à foz do IGARAPÉ TIQUARA; desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 10.996,47m chega-se ao vértice P-9, 210 Alfredo Wagner Berno de Almeida de coordenadas E=544.239,82m, N=9.724.453,60m; deste segue percorrendo o limite com a RODOVIA ESTADUAL, com azimute de 233º15'16" e distância de 205,51m até o vértice P-10; deste segue com azimute de 210º48'19" e distância de 95,77m até o vértice P11; deste segue percorrendo o limite com a RODOVIA ESTADUAL MA-106, com azimute de 189º32'03" e distância de 468,52m até o vértice P-12; deste segue com azimute de 216º39'35" e distância de 408,52m até o vértice P-13; deste segue com azimute de 184º18'28" e distância de 360,72m até o vértice P-14; deste segue com azimute de 195º35'40" e distância de 264,10m até o vértice P-15; deste segue com azimute de 213º24'48" e distância de 1.083,24m até o vértice P-16, de coordenadas E=, N=; deste segue percorrendo o limite com a margem direita do IGARAPÉ DO PRATITÁ no sentido jusante, com distância de 11.238,52m chega-se à foz; desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margem do RIO RAIMUNDO SUL, com distância de 2.169,95m chega-se à foz do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 1.130,07m chega-se ao vértice P-17; de coordenadas E=540.431,67m, N=9.729.854,39m; deste segue o IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO na margem direita no sentido jusante, com distância de 1.123,31m chega-se à foz, desta segue na direção noroeste, percorrendo o limite com as margens do RIO RAIMUNDO SUL, com distância de 4.304,57m chega-se à foz do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 1.380,24m chegas-se ao vértice P-18; de coordenadas E=538.649,12m, N=9.732.423,03m; deste segue o IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO na margem direita no sentido jusante, com distância de 1.447,67m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margens do RIO RAIMUNDO SUL, com distância de 5.724,37m chega-se à foz do IGARAPÉ DO CARVALHO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 4.160,32m chega-se ao vértice P-19; de coordenadas E=542.848,20m, N=9.738.416,50m; deste segue o IGARAPÉ DO CARVALHO na margem direita no sentido jusante, com distância de 3.998,43m chega-se à foz, desta segue na direção noroeste, percorrendo o limite com as margens do RIO ITAPETINGA com distância de 13.243,58m chega-se à foz do IGARAPÉ PEROBA, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 1.728,32m chega-se ao vértice P-20; de coordenadas E=542.163,50m, N=9.745.468,63m; deste segue o IGARAPÉ PEROBA na margem direita no sentido jusante, com distância de 1.739,91m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DO CUMÃ com distância de 1.218,92m chega-se à foz do IGARAPÉ FONTINHA, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 2.346,11m chega-se ao vértice P-21; de coordenadas E=543.537,60m, N=9.748.410,78m; deste segue o IGARAPÉ FONTINHA na margem direita no sentido jusante, com distância de 2.262,97m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DE CUMÃ com distância de 11.114,32m chega-se à foz do RIO PERI-AÇU, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 26.578,34m, utilizado e as margens seus afluentes, chega-se ao vértice P-22; de coordenadas E=552.058,49m, N=9.744.884,44m; deste segue o IGARAPÉ PERI-AÇU na margem direita no sentido jusante, com distância de 28.050,96m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DE CUMÃ com distância de 9.808,40m chega-se à foz do IGARAPÉ 211 Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1 REPARTIMENTO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 3.365,86m chega-se ao vértice P-23; de coordenadas E=553.659,39m, N=9.759.371,99m; deste segue o IGARAPÉ REPARTIMENTO na margem direita no sentido jusante, com distância de 3.405,52m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DO CUMÃ com distância de 8.584,43m chega-se ao vértice VD-01 (Vértice Digitalizado), início da descrição deste perímetro. Data: JUNHO/ 2002 212 Resp. Técnico: Vamilson Freire Fontes Téc. em Agrimensura CREA 3203-TD