Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara

Transcrição

Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara
Os quilombolas e a Base de
lançamento de foguetes
de Alcântara
República Federativa do Brasil
Presidente - Luiz Inácio Lula da Silva
Vice-Presidente - José Alencar Gomes da Silva
Ministério do Meio Ambiente - MMA
Ministra - Marina Silva
Secretário Executivo - Claudio Langone
TAL Ambiental - Fabrício Amilívia Barreto (coordenador)
Secretária de Coordenação da Amazônia - Muriel Saragoussi
Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Basil - Nazaré Soares (coordenadora)
Secretário de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável - Gilney Amorim Viana
Diretor de Agroextrativismo - Jorg Zimmermann
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS
Ministro - Patrus Ananias de Sousa
Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA
Ministro - Miguel Soldatelli Rossetto
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR
Ministra - Matilde Ribeiro
Edições Ibama
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
Centro Nacional de Informação, Tecnologias Ambientais e Editoração
SCEN - Trecho 2 - Bloco B
Cep: 70818-900 - Brasília-DF
Telefone: (61) 3316-1065
Fax: (61) 3316-1189
E-mail: [email protected]
Brasília
2006
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Os quilombolas e a Base de
lançamento de foguetes
de Alcântara
laudo antropológico
Volume 1
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Brasília, 2006
Grupo Executivo Interministerial para o Desenvolvimento Sustentável de Alcântara
Coordenador: Adelmar de Miranda Torres (Casa Civil da Presidência da República)
Carlos Eduardo Trindade Santos (SEPPIR)
Isabella Fagundes Braga Ferreira (MMA)
Milton Nascimento (MDS)
Mozar Artur Dietrich (MDA)
Paulo César Spyer Resende (MMA)
Thelma Santos de Melo (MMA)
Zorilda Gomes de Araújo (MDS)
______________________________
Coordenação Editorial:
Projeto de Apoio ao Monitoramento e Análise (AMA) do Programa Piloto
para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (vinculado à Secretaria de
Coordenação da Amazônia do Ministério do Meio Ambiente) e TAL Ambiental
Coordenadora do Projeto AMA – Onice Dall’Oglio
Coordenadora Adjunta do TAL Ambiental – Fernanda Costa Corezola
Cooperação Técnica Alemã – Petra Ascher (GTZ)
Responsável por esta edição – Kelerson Semerene Costa
Editoração: Edições Ibama
Projeto Gráfico e Diagramação: Carlos José e Paulo Luna
Capa: Denys Márcio
Normalização Bibliográfica: Helionídia C. Oliveira
Fotos: Alfredo Wagner Berno de Almeida (exceto naquelas em que outro autor estiver indicado)
Digitalização das fotos e preparação do mapa: Design [Casa 8]
Direitos reservados ao autor
Distribuição dirigida
Tiragem: 2.000 exemplares
Catalogação na Fonte
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
A447q
Almeida, Alfredo Wagner Berno de.
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara:
laudo antropológico / Alfredo Wagner Berno de Almeida. – Brasília:
MMA, 2006.
2 v. : il.; 24cm
Bibliografia
ISBN 85-7300-198-4
1. Grupo étnico. 2. Quilombo. 3. Antropologia. 4. Alcântara (cidade).
I. Ministério do Meio Ambiente. II. Secretaria de Coordenação da Amazônia.
III. Secretaria de Políticas para o Desenvolvimento Sustentável. IV. Título.
CDU 39 (812.1)
Conceitos emitidos e informações prestadas nesta publicação são de inteira responsabilidade do autor
Apresentação
Sr. Pedro Sá
A presente obra reflete a luta travada pelas comunidades remanescentes de
quilombos do município de Alcântara, estado do Maranhão, por seus direitos ao território
e à autodeterminação étnico-racial. Trata-se do resultado de uma perícia antropológica
encomendada pelo Ministério Público Federal para subsidiar ação civil pública ambiental e
étnica em prol do reconhecimento dos direitos destas comunidades.
A publicação desta peça acadêmico-jurídica traz ao público a batalha determinada
e contínua, ainda na contemporaneidade, de várias comunidades que ousaram, nos anos 80,
ainda em plena ditadura militar, questionar a lógica arbitrária e intervencionista da instalação
de um grande projeto desenvolvimentista de caráter tecnológico e militar em seus territórios,
o Centro de Lançamento de Alcântara - CLA.
Os oito mil e setecentos hectares já desocupados para instalação da primeira
fase do Programa Nacional de Atividades Espaciais, onde está o CLA, correspondem a
parte significativa das terras tradicionais das comunidades quilombolas do município de
Alcântara. Dali foram retiradas 32 comunidades, realocadas em sete agrovilas, num formato
que tem comprometido a lógica tradicional a partir da qual estruturam suas relações sociais,
produtivas e ambientais e, por conseqüência, as relações entre as comunidades realocadas e
as demais, com as quais mantêm laços de parentesco e forte relação de interdependência.
A mobilização social dessas comunidades tem na perícia antropológica um
de seus principais trunfos, símbolo da conquista do direito à justiça, ao território tradicional,
à visibilidade pública de sua realidade e de suas visões de mundo. A saga das comunidades
negras rurais de Alcântara traduz, num outro espectro, a luta de várias minorias e movimentos
sociais para transpor as fronteiras das injustiças e desigualdades que assolavam e, em alguns
casos, ainda assolam o país, impondo aos seus protagonistas um isolamento da realidade
nacional. Essas minorias e movimentos sociais começam a ter destaque a partir dos anos
90, quando o Brasil passa a experimentar os frutos de um novo Estado de direito, advindo
da Constituição Cidadã de 1988 e do fortalecimento das instituições democráticas.
Nos anos 90, e em especial com a chegada do século XXI, o caso de Alcântara
ganha novos matizes. Além da acolhida de suas reivindicações pelo Ministério Público
Federal, obtendo seu reconhecimento étnico-racial e, apesar de faltar ainda a regularização
fundiária do seu território, essas comunidades apelaram para a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, em 2003, contra o Estado Brasileiro, por crime de genocídio étnicoracial.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva herda, portanto, um quadro
dramático no município de Alcântara, exacerbado pela aparente contradição entre
desenvolvimento tecnológico e desenvolvimento das comunidades locais. No campo das
políticas públicas estratégicas, para o desenvolvimento tecnológico e para a segurança
nacional, persiste e é reforçada a relevância da continuidade do Programa Nacional de
Atividades Espaciais. Por outro lado, orientado pelas diretrizes de defesa dos direitos
humanos e de inclusão social, há a determinação de reconhecer o direito das comunidades
tradicionais, representadas neste caso pelos quilombolas de Alcântara.
Buscando equacionar o problema e encontrar soluções, em 27 de agosto de
2004, o Governo Federal instituiu, por decreto, o Grupo Executivo Interministerial para o
Desenvolvimento Sustentável de Alcântara. Seu objetivo central é "articular, viabilizar, propor,
acompanhar ações para o desenvolvimento sustentável de Alcântara, visando eficiente
condução do programa nacional de atividades espaciais e o desenvolvimento das
comunidades locais, respeitando suas particularidades étnicas e sócio-culturais, em especial,
a questão quilombola".
Participam do GEI vários ministérios, entre os quais o Ministério do Meio
Ambiente - MMA, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SEPPIR, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome - MDS e o Ministério
de Desenvolvimento Agrário - MDA, que apresentam ações de várias ordens, sobretudo
aquelas referentes ao desenvolvimento sustentável, à segurança alimentar e nutricional, à
regularização fundiária, ao empoderamento das comunidades quilombolas e à valorização
dos seus conhecimentos.
É nesse contexto que se insere a publicação conjunta deste laudo antropológico
de autoria do professor Alfredo Wagner Berno de Almeida: uma ação que cumpre o papel
de lançar a pedra fundamental do reconhecimento dos direitos constitucionais destas
comunidades, trazendo à luz do conhecimento sua história, seus costumes, sua cultura, suas
práticas produtivas e suas relações com a natureza.
Brasília, dezembro de 2005.
Marina Silva
Ministra do Meio Ambiente
Patrus Ananias de Sousa
Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
Miguel Rossetto
Ministro do Desenvolvimento Agrário
Matilde Ribeiro
Ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
Agradecimentos
Teria sido impossível produzir este laudo no prazo formalmente definido
se não fosse a dedicação de mais de uma centena de pessoas, que não se importaram em
passar horas dando entrevistas, discutindo, participando de oficinas de elaboração de
mapas, levando-me para visitar ruínas, antigos esconderijos e terrenos de cultivo e de
extração vegetal. Quero agradecer a todos eles e aos demais moradores dos povoados
mencionados neste laudo antropológico. O Sr. Samuel Moraes, então presidente do
Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, STTR, prestou uma contribuição
inestimável, acompanhando todas as etapas do trabalho de campo. Infelizmente, muitos
dos que contribuíram encontram-se enfermos, como o Sr. Benedito Basson, ou faleceram,
como o Sr. João Canela de Pau, o Sr. Manuelão, de Santa Maria, e Dona Estela com seus
115 anos. Agradeço também aos pesquisadores que me ajudaram a coligir os dados e aos
advogados da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos, SMDH, que a
todo momento se mostraram solícitos a prestar esclarecimentos: Dr. Domingos Dutra e
Dr. Luiz Antonio Pedrosa.
O autor
Tabelas, gráficos e quadros
demonstrativos
Povoados onde foram assinaladas ruínas de "casarões" e/ou moendas .......................... 65
Alcântara , 1861 - senhores de engenho de açúcar .................................................................. 68
Povoados onde foram assinaladas ruínas de "engenhos" e
"casas-grandes" ou "casarões" ................................................................................................
66
"Senhores de engenhos", "Fazendeiros e escravos": Alcântara, 1860-61 ......................... 75
Terra de Santo, Terra de Santa e Terra de Santíssimo ........................................................
81
Registro de cartas de datas e sesmarias (1777-1816) ............................................................... 107
Registro de demarcação de sesmarias (1816) ............................................................................ 108
Quilombos em Alcântara (1701-1788) ........................................................................................ 119
Quilombos em Alcântara (1800-1886) ........................................................................................ 126
Registro de terras segundo declaração do possuidor - Alcântara,
(1854-1857): Registros paroquiais ................................................................................................. 132
Territórios de parentesco ................................................................................................................. 151
Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriada
para instalação da base de lançamento de foguetes ................................................................. 159
Povoados referidos às comunidades que se localizam fora da área desapropriada
para instalação da base de lançamento de foguetes ............................................................... 162
Cemitérios ............................................................................................................................................172
Calendário de festas religiosas ....................................................................................................... 174
Delegaciais sindicais .......................................................................................................................... 178
Siglas e Abreviaturas
ABA
ACONERUQ
AEB
ADCT
AN
APEM
CCN-MA
Cf.
CLA
CNPACNRQ
COBAE
COLONE
CONAQ
CONTAG
DEPED
DSG
EMFA
FCP
FETAEMA
FUNASA
GICLA
G.N.
GPS
IBAMA
IBGE
IHGB
IHGEB
INCRA
INFRAERO
IPEI
ITERMA
Associação Brasileira de Antropologia
Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão
Agência Espacial Brasileira
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
Arquivo Nacional
Arquivo Público do Estado do Maranhão
Centro de Cultura Negra do Maranhão
Conforme
Centro de Lançamento de Alcântara
Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas
Comissão Brasileira de Atividades Espaciais
Companhia de Colonização do Nordeste
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento - Ministério da Aeronática
Diretoria do Serviço Geográfico - Ministério do Exército
Estado Maior das Forças Armadas
Fundação Cultural Palmares
Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão
Fundação Nacional de Saúde
Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara
Grifo nosso
Global Position System (Sistema de Posicionamento Global)
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária
Instituto de Pesquisas Econômico-Sociais e Informática
Instituto de Terras do Estado do Maranhão
MAER
MCT
MEAF
MECB
MinC
MIRAD
MMA
MOMTRA
MONAPE
MOPEMA
MPP
N. E
PVN
SMDH
SUCAM
SUDENE
STTR
TC
TP
TPo
TS
TSa
TSi
TSia
UFMA
UFRJ
UnB
UNESCO
VLS
Ministério da Aeronáutica
Ministério da Ciência e Tecnologia
Ministério Extraordinário de Assuntos Fundiários
Missão Espacial Completa Brasileira
Ministério da Cultura
Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário
Ministério do Meio Ambiente
Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais
Movimento Nacional dos Pescadores
Movimento dos Pescadores do Maranhão
Mestrado em Políticas Públicas
Nota do Editor
Projeto Vida de Negro
Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos
Superintendência de Campanhas de Saúde Pública - Ministério da Saúde
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste
Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
Terra de Caboclo
Terra de Preto
Terra da Pobreza
Terra de Santo
Terra de Santa
Terra de Santíssimo
Terra de Santíssima
Universidade Federal do Maranhão
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Universidade de Brasília
Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
Veículo Lançador de Satélite
Sumário geral
VOLUME 1
INTRODUÇÃO..................................................................................................
19
O OBJETO DA PERÍCIA E OS PROCEDIMENTOS DE OBTENÇÃO
DE INFORMAÇÕES .........................................................................................
27
Os arquivos como discurso de legitimação ................................................................ 35
Os mediadores e o discurso da mobilização .............................................................. 39
PROCESSO DE TERRITORIALIZAÇÃO DAS COMUNIDADES REMANESCENTES
DE QUILOMBOS .............................................................................................
43
Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual
dos conflitos .............................................................................................. 47
Área decretada e territorialidades específicas .............................................................. 53
Muralhas e Paredões: as ruínas das casas-grandes e dos engenhos como
fator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos ...... 59
Os quilombos e a luta simbólica pelas ruínas .............................................................
O mapeamento das ruínas ...............................................................................................
A fuga dos senhores de engenho e a recusa da tutela ..............................................
As ruínas e o tempo livre ............................................................................................
A datação da fuga e das ruínas ...................................................................................
A datação das ruínas das fazendas das ordens religiosas .......................................
Companhia de Jesus ...............................................................................................
Ordem dos Carmelitas Descalços .......................................................................
Ordem de Nossa Senhora das Mercês ...............................................................
Irmandade do Santíssimo Sacramento ...............................................................
Territorialidades específicas .........................................................................................
As diferenças culturais e as premissas étnicas ...........................................................
61
63
70
72
74
76
76
78
78
79
80
82
O domínio "original": as "terras de índio" como "terras de preto" ............. 87
As "terras de preto" e as "terras de caboclo": a construção do território pelos
fatores estigmatizantes .................................................................................................. 91
Da capitania de Cumã às sesmarias: a formação das fazendas ............................ 95
A "modificação da fisionomia étnica" ........................................................................... 100
Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio da
Companhia Geral do Comércio ........................................................................................ 103
A derrocada da economia algodoeira............................................................................ 108
Os quilombos em Alcântara ............................................................................................. 115
Os quilombos e a governação pombalina .................................................................... 117
A consolidação dos quilombos no decorrer do século XIX .................................. 123
Os territórios de parentesco ............................................................................................. 141
As doações de terras ............................................................................................................. 141
As terras da pobreza ............................................................................................................. 143
As compras de terras ............................................................................................................. 144
Os territórios de parentesco ............................................................................................... 149
O território das comunidades remanescentes de quilombos ............................... 153
A interseção dos planos de organização social .......................................................... 165
A interdependência econômica e ecológica dos povoados........................................ 165
As "circunscrições" religiosas ............................................................................................. 170
Os cemitérios e as tensões sociais em face da interdição de uso, pelo
CLA, do antigo cemitério de Peru e Marudá .......................................................... 171
A festas religiosas ............................................................................................................. 173
As instâncias políticas de mediação. ................................................................................. 176
NOTAS ................................................................................................................................................ 181
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 201
ANEXO ............................................................................................................................................... 207
"Terras das comunidades remanescentes de quilombos - territorialidade, uso dos recursos
naturais, sítios históricos e conflitos sociais" (mapa e memorial descritivo)
VOLUME 2
RESPOSTAS AOS QUESITOS
Quesito 1 ...................................................................................................................................... 17
Quesito 2 ...................................................................................................................................... 25
Quesito 3 ...................................................................................................................................... 73
Quesito 4 ...................................................................................................................................... 81
Quesito 5 ...................................................................................................................................... 87
Quesito 6 ...................................................................................................................................... 89
Quesito 7 ...................................................................................................................................... 93
Quesito 8 ...................................................................................................................................... 95
Quesito 9 ...................................................................................................................................... 97
Quesito 10 ................................................................................................................................... 99
Quesito 11 ....................................................................................................................................... 101
NOTAS ................................................................................................................................................ 103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 109
ANEXOS ............................................................................................................................................... 115
Fontes documentais e arquivísticas: transcrição de documentos que registram, direta
ou indiretamente, quilombos em Alcântara (1702-1886)
Certidão referente à terra da pobreza
Registro fotográfico
Calendário agrícola e extrativo
Introdução
O povoado de São João de Cortes
O laudo antropológico a seguir apresentado foi produzido por determinação
da Procuradoria Geral da República consoante os termos da Portaria nº 007, de 07 de
julho de 1999, do Ministério Público Federal no Maranhão. Foi instaurado o Inquérito Civil
Público nº 08.109.000324/99-28 com o objetivo de apurar possíveis irregularidades
verificadas na implantação da Base de Lançamento de Foguetes de Alcântara. Ao considerar
que as ações de deslocamento compulsório denominadas de "remanejamento" afetam "as
comunidades negras rurais, remanescentes de quilombos", essa Portaria preconiza
providências no sentido de "verificar a existência de estudos relativos às comunidades que
se encontram nas áreas destinadas ao Centro de Lançamento de Alcântara, máxime no
tocante ao componente étnico". Após audiências públicas realizadas em Alcântara e São
Luís que assinalaram inconsistências no EIA-Rima, sobretudo aquelas relativas às relações
antrópicas e à recusa em incorporar fatores étnicos, e mediante a possibilidade de novos
remanejamentos, o Ministério Público Federal autorizou perícia antropológica no interesse
da instrução do inquérito civil público. A partir de indicação de antropólogo pela Associação
Brasileira de Antropologia, ABA, então presidida pelo Dr. Ruben George Oliven, o
Procurador da República no Maranhão, Dr. Nicolao Dino de Castro e Costa Neto, assim
se manifestou em Despacho de 12 de abril de 2002: "Tendo em vista a indicação do
Professor Alfredo Wagner Berno de Almeida, conforme solicitação às fls.440, nomeio-o
para proceder à perícia antropológica, no interesse da instrução do inquérito civil público".
No mesmo Despacho, o mencionado Procurador delineou os onze quesitos a serem
desenvolvidos pelo perito.
Cabe registrar que a Procuradoria Geral da República, desde antes da
mencionada Portaria, já acompanhava de maneira direta o desenrolar dos conflitos sociais
em Alcântara através da Dra. Deborah Macedo Duprat de Brito Pereira. Importa sublinhar
também que os aspectos ambientais do projeto de expansão do Centro de Lançamento de
Alcântara são objeto de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, tombada
sob o nº 1999.37.00.007382-0, a qual tem curso perante a 3ª Vara da Seção Judiciária do
Maranhão, “remanescendo para análise suas implicações sobre as seculares comunidades
quilombolas de Alcântara”.
No que concerne à execução da perícia ora apresentada, quero informar ainda
que os trabalhos de pesquisa e a elaboração dos argumentos para responder aos quesitos
que a orientaram foram produzidos no prazo previsto, entre abril e julho de 2002, e entregues
à Procuradoria Geral da República em setembro do mesmo ano.
O trabalho de campo pericial, envolvendo consultas a fontes secundárias,
produção de mapas e obtenção de dados in loco, se estendeu de 05 de abril a 11 de junho. As
visitas aos povoados ocorreram entre 12 de abril e 02 de maio e entre 07 e 09 de junho de
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
2002. Foram visitados 53 povoados e obtidas informações sobre duas centenas deles. Em
17 deles, tive como assistente de pesquisa Patrícia Portela Nunes, doutoranda do Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, que além de permanecer por uma semana em Canelatiua e lá retornar
várias vezes no decorrer de junho e julho, produziu para fins da perícia um relatório sobre
os impactos sociais da implantação da base de lançamentos no processo de ocupação do
perímetro urbano de Alcântara, focalizando a migração de membros das comunidades
remanescentes de quilombos. Em nove deles, fui acompanhado por Aniceto Cantanhede
Filho, mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, que já havia produzido,
em 1997 e 1998, relatórios preliminares de identificação sobre os povoados de Samucangaua,
Iririzal, Ladeira e São Raimundo. Em outros oito povoados, fui acompanhado por Cynthia
Carvalho Martins e Silvianete Matos Carvalho, mestras em Políticas Públicas pela Universidade
Federal do Maranhão, que já haviam produzido, em 1997 e 1998, relatórios preliminares de
identificação relativos aos povoados de Itapuaua e Ladeira. Cynthia C. Martins produziu
também, em 1994, monografia de conclusão do curso de ciências sociais focalizando a
agrovila de Cajueiro. No levantamento de dados sobre as desapropriações realizadas pelo
Innstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra, no município, casos de Ibituba
e Portugal, e na elaboração de séries estatísticas sobre a produção agrícola de Alcântara, nas
últimas décadas, contei com a colaboração do economista Wilson de Barros Bello Filho,
mestre em Políticas Públicas, que produziu, em 1999, comentários críticos ao EIA-Rima do
CLA.*
***
Este laudo antropológico foi subdividido, para efeitos de ordem de exposição,
em duas partes: a primeira atendo-se à relação entre os princípios elementares de investigação
científica e os procedimentos necessários à produção das chamadas provas periciais; e a
segunda consistindo numa resposta aplicada e mais direta aos quesitos propriamente ditos,
formulados pelos procuradores. Numa parte, reuni os trabalhos de pesquisa que
fundamentam e subsidiam as conclusões; na outra, tomei esse esforço analítico como
pressuposto imediato para as argumentações respondentes. A razão desta distinção, embora
formal, concerne ao entendimento da perícia enquanto uma forma particular de produção
de conhecimento, inclusive para que o antropólogo não esteja tão-somente reconhecendo
"problemas oficiais" tal como colocados pelo campo jurídico, através da demanda intrínseca
a processos e inquéritos sob responsabilidade de operadores do direito. Ademais, o lugar
de onde é produzida a perícia expressa um modo peculiar de ligação entre teoria e
intervenção, evitando uma relação mecânica entre instrumentos teóricos de sentido universal
* Em sua versão original, o laudo antropológico consta de três volumes. O terceiro volume, onde se encontram os
"Anexos", reúne um vasto repertório de documentos, entre os quais se incluem fotos, estudos produzidos
especialmente para apoio à perícia e a transcrição das numerosas fontes documentais dos séculos XVIII e XIX que
fudamentaram parte da pesquisa. O material que compõe a presente edição, em dois volumes, difere da versão
original apenas por uma seleção dos anexos, procedida pelo autor, publicando-se tão-somente aqueles considerados
essenciais para o público mais amplo ao qual ela se destina. (n.e)
22
Alfredo Wagner Berno de Almeida
e problemas concretos referidos a realidades localizadas. Os conceitos teóricos, não podendo
ser aplicados mecanicamente, demandam aproximações sucessivas e estratégias de pesquisa
próprias coadunadas com cada situação examinada. No presente caso, considerei apropriado,
sem qualquer pretensão de realizar uma etnografia, descrever as condições de obtenção
dos dados, os critérios de seleção dos entrevistados e demais escolhas metodológicas efetuadas
durante o trabalho de campo pericial.
Um discernimento preliminar, entre a região onde ocorre a investigação e o
"problema" em pauta, se impõe, posto que a perícia não se reduz a um "estudo de área" e
tampouco se restringe aos seus contornos geográficos, mais se tratando de um argumento
de autoridade científica mediante uma questão específica. Tal argumento pode esclarecer
ou dirimir dúvidas a partir do exame detido de um determinado "problema", qual seja, no
presente caso, a identificação étnica, tendo como referência empírica as comunidades
remanescentes de quilombos do município de Alcântara, estado do Maranhão.
Enquanto "problema" localizado, concernente a agentes sociais determinados
com seus sistemas de representação, compreendendo categorias classificatórias e respectivas
condições de existência coletiva, a identificação mostra-se indissociável do processo de
territorialização das mencionadas comunidades e dos elementos identitários de que se acham
investidos seus integrantes. Pode-se adiantar que a situação social designada como comunidade
não se constitui espontaneamente e tampouco pode ser interpretada como "natural", já que
se estrutura segundo diferentes planos de organização social e consoante ações conjuntas de
produtores diretos que historicamente lograram autonomia em face do domínio das grandes
plantações. Através dos povoados distribuídos pelo que hoje corresponde ao município de
Alcântara, elas se tornam empiricamente observáveis. O laudo, nessa ordem, já exprimiria a
necessidade de reconhecimento jurídico-formal dessas comunidades para fins de titulação
definitiva das terras que lhes correspondem, preconizada pelo artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, ADCT, da Constituição Federal de 1998*, como
resposta a uma controvérsia. A iniciativa por si só torna evidente uma situação de antagonismo
de interesses, que contrapõe as referidas comunidades às medidas oficiais que afetam seu
modo de fazer e viver. Essas medidas concernem à implantação da base de lançamento de
foguetes pelo Ministério da Aeronáutica, que tem como ato inicial, datado de 1980, a
desapropriação por utilidade pública de uma área de 52.000 hectares, ampliada posteriormente
para 62.000 hectares, ou seja, que compreende mais da metade da superfície do município
de Alcântara1. A multiplicidade de órgãos governamentais envolvidos (Ministério da Ciência
e Tecnologia, MCT; Ministério da Cultura/Fundação Cultural Palmares, MinC-FCP; Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Iphan; Ministério do Meio Ambiente/Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, MMA-Ibama; Ministério
do Desenvolvimento Agrário/Incra e Governo do Maranhão) exprime a relevância
oficialmente atribuída ao "problema".
Com base nessa premissa relacional é que fui balizando os procedimentos
inerentes à perícia, com execução de trabalho de campo e verificações in loco nos povoados,
* “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade
definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (Constituição Federal, ADCT, art. 68) (n.e)
23
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
utilizando técnicas de observação direta e de história oral e mapeando interesses em pauta,
de igual modo que compulsando fontes documentais e arquivísticas.
A imperatividade do aprofundamento das questões me levou, inclusive, a
acionar assistentes técnicos, tanto para avaliar os impactos da implantação do CLA e dos
deslocamentos compulsórios sobre a economia agrícola das unidades familiares desses
povoados – organizada em torno da produção de gêneros alimentícios e notadamente da
mandioca e do arroz – quanto para examinar as novas tendências migratórias no município,
caracterizadas pela intensa pressão demográfica sobre a estrutura urbana da sede municipal.
Instituída a equipe, percorremos os povoados da área desapropriada, elegendo
como pontos de observação: a área de influência de São João de Cortes, ao norte, e aquela
centralizada por Canelatiua, e por Brito, na denominada "área de segurança da base", que
corresponde a 30.000 hectares, ou seja, quase a metade da área desapropriada*. No limite
da "área de segurança", elegemos Santa Maria e, descendo na direção sul, alcançamos as
agrovilas, tomando como referência Só Assim, Peru, Espera e Cajueiro. A noroeste do
município, principiamos por Itapuaua com ramificações para as margens do rio Periaçu, de
um lado, e alcançando Esperança e povoados que ladeiam a Baia de Cumã, de outro. Na
estrada, que liga o noroeste à rodovia MA-106, os povoados de Engenho, Flórida, Forquilha
e Vai com Deus, fazendo de Peroba de Cima um ponto de apoio. Deste ponto, dobrando
no sentido leste, atingimos Peroba do Meio e Peroba de Baixo. Retornando à estrada e nos
dirigindo ao sentido oposto, alcançamos Ladeira, Samucangaua e Iririzal já nas nascentes
do Periaçu e adjacências. Daí, retomando novamente a estrada, visitamos Pavão e depois
São Raimundo I, Mocajubal e Centro da Vovó.
A partir de Baixa Grande, percorremos povoados cujas terras confrontam
com a área desapropriada para instalação da Base. Fomos ganhando o sentido sul, visitando
os povoados logo abaixo do limite da área desapropriada, que consiste na própria rodovia
MA-106. Castelo e Santo Inácio foram assim alcançados. Retomando a rodovia,
privilegiamos os povoados que a margeiam até o cruzamento para Cujupe e daí nos
dividimos, tanto seguindo para o extremo sul do município já na área de influência de
Itamatatiua, quanto virando no sentido leste, abrangendo São Mauricio, Arenhengaua e
demais povoados circunvizinhos. Detivemo-nos, a partir do próprio resultado da análise
das informações que orientaram nossos itinerários, nas áreas desapropriadas por interesse
social para fins de reforma agrária pelo MDA-Incra, em 1994 e 1996, denominadas Portugal
e Ibituba, localizadas ao sul do município, e naquelas em torno de Itamatatiua e de São
Raimundo II, onde o Iterma procede, desde 1997, ao reconhecimento de comunidades
remanescentes de quilombo. Embora tenhamos percorrido além do igarapé Tiquara e do
local Pedra Grande, para efeitos de pesquisa exploratória, em verdade nos detivemos de
fato em São Raimundo, apontado desde as entrevistas realizadas nos povoados a noroeste
e nos demais a seguir como limite de uma complexa rede de relações sociais e de intercâmbio
de bens e serviços interpovoados. Nesses percursos sucessivos, visitamos 53 povoados,
entrevistamos 70 pessoas, contatamos pessoas de mais de uma centena de povoados e
coletamos, enfim, informações sobre quase duas centenas deles.
* A consultar, neste volume, o mapa “Alcântara: terras das comunidades remanescentes de quilombos - territorialidade,
uso dos recursos naturais, sítios históricos e conflitos sociais”. (n.e)
24
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Para além dessas visitas, vale acrescentar que, no decorrer do trabalho de
campo realizado em abril e maio, a estação chuvosa não trouxe somente dificuldades. Pelo
contrário, esse tempo mostrou-se bastante adequado para a consecução de entrevistas mais
detidas e recapituladas e também para a realização de reuniões amplas nos povoados. As
atividades de perícia coincidiram com a segunda capina do arroz, que não exige toda a
força de trabalho das unidades familiares, e, por outro lado, coincidiram também com as
farinhadas, que é como designam o conjunto das atividades finais de transformação e
beneficiamento da mandioca. Isso facilitou enormemente a ampliação dos contatos, uma
vez que muitas famílias encontravam-se, nas denominadas casas de forno, trabalhando
sob forma de cooperação simples, desmanchando juntas a mandioca e produzindo a farinha
e demais derivados; enquanto que outras encontravam-se retirando o carvão das caieiras e
empilhando os cestos na beira da rodovia para serem transportados para o porto. O
repertório fotográfico em anexo permite uma visão ampla dessas atividades. Também nos
empenhamos, juntamente com assistentes técnicos com competência em agronomia e
agrimensura, em produzir bases cartográficas que facultassem uma delimitação das extensões
controladas efetivamente pelas citadas comunidades e que, por pelo menos dois séculos,
têm assegurado a sua reprodução física e social. Buscamos superar as imprecisões e equívocos
verificados nos mapas disponíveis, em especial as cartas da Diretoria do Serviço Geográfico
do Ministério do Exército, DSG-ME*, que apresentam povoados plotados erroneamente,
e acrescentar elementos de conhecimento da área indicados pelos próprios entrevistados, a
saber: recursos naturais estratégicos para os povoados, incluindo-se os juçarais, os babaçuais,
os mangues e os igarapés; locais de fabricação de redes de pesca, embarcações, tipitis e
adobe; povoados localizados na "área de segurança" e ameaçados de deslocamento
compulsório; povoados já deslocados pela base de lançamento e as agrovilas; povoados
com energia elétrica e com estabelecimentos de ensino; e ainda a localização de diferentes
tipos de ruínas (engenhos, casas-grandes, sumidouros) e dos antigos quilombos. De certo
modo, essa modalidade de trabalho de campo pericial consistiu num meio de conferir
visibilidade a situações que permanecem socialmente invisíveis, não obstante as contínuas
referências oficiais à abolição da escravatura. Como corolário dessa etapa, a equipe técnica
fez uso de GPS para amarrar pontos e produzir um memorial descritivo correspondente
ao território das comunidades remanescentes de quilombo.
Os trabalhos de levantamento de fontes secundárias, incluindo-se os mapas
compulsados, ocorreram em São Luís, no Arquivo Público do Estado do Maranhão, na
Biblioteca Pública Benedito Leite, nas bibliotecas do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatísitica, IBGE, e da antiga Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, Sudene,
nas sedes do Incra e do Instituto de Terras do Estado do Maranhão, Iterma, e nos arquivos
do Projeto Vida de Negro da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos,
SMDH, e do Centro de Cultura Negra. Aconteceram também no Rio de Janeiro – na
Biblioteca Nacional, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e no Arquivo Nacional.
Em Alcântara, os levantamentos ocorreram no Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras
* O autor reporta-se, com freqüência, a fatos anteriores à criação do Ministério da Defesa, que, a partir de 1999, passou a
reunir a Marinha, o Exército e a Aeronáutica, forças antes representadas por seus respectivos ministérios. (n.e)
25
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Rurais, STTR, no escritório da antiga Superintendência de Campanhas de Saúde Pública –
Sucam, incorporada pela Fundação Nacional de Saúde, Funasa – e nos dois cartórios,
valendo-me de informações já levantadas anteriormente pelo doutorando em Direito da
Universidade Federal do Paraná Joaquim Shiraishi Neto.
A coleta de copiosa documentação alusiva a sesmarias, entre 1777 e 1816, aos
"registros paroquiais", entre 1854 e 1857, e a imóveis rurais demarcados a partir de 1891,
ateve-se ao fato de as obras de referência da história regional sempre indicarem implicitamente
uma dicotomia entre formalização da propriedade e ocupação efetiva das terras. Foram
detectadas inúmeras informações concernentes a uma certa autonomia dos povoados de
produzir e viver livremente em diferentes situações históricas, sendo que uns desde pelo
menos 1760, quando da expulsão dos jesuítas de Alcântara; outros, desde a derrocada da
economia algodoeira, entre 1812 e 1819; e outros, ainda, desde a falência dos engenhos de
açúcar imediatamente após 1870. Tais registros corroboraram genealogias e narrativas de
reconstituição histórica propiciadas pelos entrevistados. O conjunto dessas informações
permite assinalar que Alcântara usufrui de uma situação singular, posto que vastas extensões
territoriais, da superfície atual do município, ficaram praticamente dois séculos sem uma
presença efetiva dos "senhores" e sem maiores pressões sobre a terra, que não fossem
tentativas pontuais de aforamento. Com os atos desapropriatórios para instalação da base
de lançamentos, em 1980, as tensões sociais afloraram. Da mesma maneira, assistiu-se ao
advento de uma identidade étnica mantida sob invisibilidade social com suas respectivas
territorialidades cognominadas terras de preto, terras de caboclo e terras de santo, até
então reconhecidas apenas no plano local, mas não necessariamente registradas. Ao considerar
que a noção de etnicidade abrange também uma interação com uma certa maneira de
produzir e de relacionar-se com a natureza, identificamos essas territorialidades verificando
que agrupam uma vasta rede de povoados e convergem para um território étnico
determinado, cujos contornos foram objeto do trabalho de delimitação consistindo num
dos resultados finais da perícia.
26
O objeto da perícia e os
procedimentos de obtenção de
informações
Moradores de Santo Inácio
No decorrer do trabalho de campo, realizado no âmbito desta perícia
antropológica, quando visitava os povoados1– que representam as principais unidades de
agrupamento dos agentes sociais observados – e apresentava o objetivo da pesquisa, em
torno da identificação das comunidades remanescentes de quilombo, invariavelmente me
sugeriam, quaisquer que fossem os interlocutores, contatar os que detinham a autoridade de
reconstituir a história do lugar. Antes mesmo que qualquer interrogação pudesse ser feita,
adiantavam-se nessa indicação. Mediante essa maneira de proceder, a minha primeira
impressão foi que, por um lado, os informantes estabeleciam uma relação necessária entre
fato histórico e identidade coletiva, expressa num plano comunitário pelas suas demandas
junto aos órgãos competentes de reconhecimento oficial como remanescentes de quilombo,
enquanto, por outro, individualizavam o portador de uma forma de saber que eu supunha
mais difuso e de sentido coletivo. Nesse sentido, a situação de conflito em face da instalação
da base de lançamento de foguetes leva à história. O passado é acionado como argumento
e arquivo contrapondo-se às pretensões dos decretos desapropriatórios. A fala dos
entrevistados deixa entrever que os anos não são medidos da mesma maneira pelas partes
em confronto, porque são vividos de modo desigual. Há, em decorrência, uma politização
da história que traz o passado para o presente através de uma atitude que leva à história do
grupo, enquanto fundamento das pretensões de direito, e que leva o pesquisador justamente
àqueles que dela podem falar. No primeiro momento do trabalho de campo, vi-me
conduzido, desse modo, não necessariamente aos lugares institucionais dos mediadores ou
lideranças de natureza política ou econômica, que inclusive haviam me introduzido na área,
mas a pessoas mais idosas, sejam homens ou mulheres, referidas a uma posição social
singular. Tal posição não reflete um confronto entre gerontocracia e mediação política,
sindical ou religiosa, porquanto não estão em jogo quaisquer disputas por instrumentos
diretos de mediação. É bem verdade que os idosos, que usufruem de aposentadorias,
atualmente são vistos num patamar superior de possibilidades econômicas, com papel de
destaque, seja na manutenção de seus grupos familiares, devido aos percebimentos mensais
regulares, seja no âmbito da própria entidade sindical dos trabalhadores rurais2, em virtude
de suas contribuições sindicais voluntárias. Embora não tenham qualquer obrigatoriedade
legal em recolhê-las, cerca de 900 aposentados têm contribuído generosa e espontaneamente
para o STTR de Alcântara. Trata-se de um número significativo, uma vez que, conforme os
dados do Censo Demográfico de 2000 do IBGE, a população residente do município de
Alcântara corresponde a 21.291 habitantes, sendo que 73,3% encontram-se na área rural
distribuídos por mais de duas centenas e meia de povoados, e os que se encontram numa
faixa etária igual ou superior a 60 anos correspondem a 1.833 habitantes, ou seja, pouco
mais de 8,0% da população residente.
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Os aposentados são vistos nos povoados segundo uma interpretação positiva
ao injetarem permanentemente recursos para o consumo básico e garantirem a provisão
de bens essenciais, mesmo nos períodos mais críticos, intermédios entre uma colheita e
outra. Suas remunerações não são apropriadas individualmente. Os entrevistados ponderam
que a quantia recebida pelos aposentados, mesmo quando não são mais cabeça de família
e nem administram a unidade de trabalho familiar, é utilizada nas despesas domésticas e
serve para ajudar filhos e demais parentes. O volume de recursos das unidades familiares,
tradicionalmente concentrado no período das colheitas de arroz e de mandioca para o
preparo da farinha e variando em conformidade com as fases dos ciclos agrícola e extrativo
e com as intempéries climáticas, passa a ter nas aposentadorias, percebidas mensalmente,
uma receita regular com distribuição temporalmente mais curta, significando um fator de
fortalecimento constante de sua renda monetária. Situação análoga foi verificada com as
unidades familiares que vivem principalmente da pesca3. Ainda que afastados do processo
de produção, os aposentados representam, portanto, um arrimo tanto para as famílias que
têm na agricultura sua atividade principal, quanto para aquelas que se concentram mais na
pesca e no extrativismo. Tal função econômica dos idosos, embora seja mais recente, perpetua
a posição de relevância tradicionalmente assumida por eles, consistindo ademais numa
fonte do tipo de autoridade efetiva que atualmente detêm.
O fato de terem idade avançada e essa condição econômica de destaque não
se revelam, no entanto, suficientes para lhes assegurar a aludida competência, qual seja, a
indicação de narradores da história do grupo. A singularidade mencionada tanto concerne
ao fato de tais pessoas acharem-se dispostas numa linha de descendência direta, por
consangüinidade ou afinidade, de ancestrais que são apontados como tendo assegurado o
livre acesso dos grupos familiares à terra, quanto ao fato de possuírem responsabilidades
simbolicamente definidas em face de antigas famílias de proprietários ou diante de divindades
(santos, santas) e instituições pias e religiosas (irmandades, ordens), que igualmente são
representadas como tendo facultado o acesso à terra.
O critério de ancianidade não funciona, pois, isoladamente, aparecendo sempre
combinado com fatores genealógicos e de patronagem. Sobre a noção de genealogia, cabe
salientar que a convergência para um informante dos registros de conexão da trajetória do
conjunto das unidades familiares em face dos recursos básicos pode transcender às relações
de consangüinidade entre elas. Em outras palavras, pode-se dizer que há pessoas consideradas
localmente como unidas por relações de parentesco, como foi possível constatar no decorrer
do trabalho de campo, embora não se verifique entre elas, estrito senso, qualquer laço de
consangüinidade ou vínculo genealógico real. Mesmo que não haja formas legais de reconhecer
o contrato que as aproxima, há rituais de coesão social que ultrapassam uma simples rede
de parentesco e amizade, fortalecendo uma idéia de comunidade apoiada em critérios
político-organizativos, que, inclusive, constrói socialmente o seu território.
No que tange ao conceito de patronagem, recorri ao sentido que lhe confere
G. Foster de uma relação contratual, informal e assimétrica, entre "pessoas" de status e
poder diferentes, que trocam bens e serviços distintos. Essas trocas podem ser simbólicas
e estabelecidas entre moradores de um mesmo povoado ou entre estes e não-moradores,
incluindo divindades (santos, santas) e seres sobrenaturais (Foster,1967:221)4.
Os fatores genealógicos e de patronagem, assim conceituados, atualizam-se
na perspectiva dos informantes através de doações, aquisições, heranças, autorizações
30
Alfredo Wagner Berno de Almeida
informais de livre uso, aforamento, ocupações e conflitos com antagonistas históricos que
pretendiam usurpar seus domínios efetivos. Tais meios asseguraram centenariamente a
transmissão da terra, com suas denominações específicas referidas a cada situação, e de um
sistema de uso comum dos recursos fundamentais à reprodução física e social do conjunto
de famílias.
O que mais realça as narrativas sobre esses meios, quando contrastados com a
documentação oficial, concerne ao fato de os registros cartoriais serem formalmente
centralizados na "pessoa" – seja um sesmeiro, uma divindade ou um adquirente, a partir de
1850 – e não nas terras, isto é, no imóvel rural (Shiraishi,1999:04) e naqueles de posição
subordinada (escravos e alforriados) que efetivamente o controlam5. Além disso, no plano de
identificação da "pessoa", faz-se mister considerar que são por demais conhecidas as dificuldades
de registros documentais sobre idade, etnia e famílias de escravos6. Mesmo após a Lei de
Terras de 1850 e as exigências de registro paroquial, perdura o problema. Os termos da
relação entre a condição de escravo e aquela de proprietário de terra, ainda que se admitindo
a possibilidade de pecúlio pelo escravo, mostram-se excludentes, como sublinha Perdigão
Malheiro em 1864 ( Malheiro, 1976: 63, 96). O mesmo não sucederia com escravos alforriados,
cujas ocorrências de aquisição não conseguimos, entretanto, detectar em Alcântara7. Levando
em conta essas impossibilidades, as lacunas acima assinaladas e a ressalva feita por Shiraishi,
acresce a importância da história oral e das técnicas de entrevistas abertas acionadas no trabalho
de campo, posto que somente elas podem facultar o acesso às genealogias das famílias escravas
que de fato possuíam controle sobre os recursos naturais, a seu sistema de apropriação desses
recursos e às extensões de terra correspondentes.
As narrativas, em decorrência, facultam a compreensão antropológica das
relações com a natureza, do sistema de sucessão legítima e dos elementos identitários e de
representação da vida social, incluindo-se as categorias de autodefinição coletivas, que foram
historicamente construídas, tais como pretos e caboclos, os atributos respectivos que tanto
as diferenciam quanto as aproximam, e as territorialidades que lhes são referidas.
As regras de uso comum, que disciplinam a apropriação dos recursos, são
indissociáveis dessas formas de domínio e teriam sido historicamente instituídas, objetivando
também superar os limites do ecossistema local8, que se tornou mais fragilizado a partir da
ação predatória e da devastação das matas pelas grandes plantações de algodão e cana-deaçúcar, na segunda metade do século XVIII e no início do século XIX. Autoridades do
período colonial, como o engenheiro militar B. Pereira do Lago e o grande proprietário de
terras e "economista" R. Gaioso, sublinham solos exauridos, terrenos arenosos e áreas
inteiramente devastadas em Alcântara (Pereira do Lago,1872:388). Do prisma das figuras
ancestrais citadas nas entrevistas, a manutenção de uma sustentabilidade elementar à
reprodução coadunada com solos fracos tornou-se tributária de práticas de preservação
de recursos naturais e de direitos comuns sobre pastagens, praias, mangues, apicuns, cocais,
juçarais e aglomerados de mangueiras, indicadores das antigas benfeitorias das fazendas.
Peixes, frutos silvestres, óleos vegetais (de carrapato, de babaçu) e diferentes ervas com
propriedades medicinais passaram a compor uma pauta de produtos de autoconsumo das
unidades familiares, impondo a preservação de espécies várias, impedindo a devastação e
quebrando a monotonia dos grandes plantios de algodão e de cana. Em razão disso é que
a caça, a pesca e a coleta de produtos florestais – inclusive para fabricação de óleos vegetais
31
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
e resinas –, tanto quanto a retirada de palha das reservas e a escolha do local de plantio,
prosseguem passando por um crivo ecológico e de responsabilidade comunitária. Nessa
ordem, a natureza pode ser entendida como produto de um repertório de práticas
centenárias de uso comum, encetadas em Alcântara por unidades de trabalho familiar
organizadas em povoados a partir da desagregação das fazendas.
O pano de fundo dessa interpretação reflete uma maneira de entender esse tipo
de sucessão de bens por várias gerações como uma transmissão de direitos e como adstrito
a um princípio de preservação ambiental. As práticas agrícolas e extrativas, mantendo uma
relação relativamente equilibrada com recursos escassos e com um ecossistema frágil, durante
dois séculos consecutivos, reforçaram a necessidade de manter em reserva áreas com cobertura
florestal permanente, de conservar as palmáceas nos terrenos mais baixos e de efetuar um
rodízio das terras cultivadas, com intervalos de descanso sempre superiores a três anos ou
capoeiras de curta duração. A recomendação principal para as terras cultivadas é que não
sejam colocadas próximas às nascentes ou margens de rios e igarapés. Já as reservas ou áreas
mais preservadas recebem nos povoados de Flórida, Forquilha e Peroba de Cima a
denominação de ponta de mato (Linhares,1999:60). Em São Raimundo e Itaperaí, registrei
a expressão uma bola de mato, cuja finalidade consiste em suprir necessidades comuns às
famílias em momentos de extrema precisão. Quanto às áreas de conservação ou sujeitas a
regras de manejo, que asseguram uma produção permanente, localizamos entre Peroba de
Cima e Peroba de Baixo duas áreas criteriosamente conservadas, separadas por uma campina,
que são as chamadas baixas ou zonas de várzeas onde predominam juçarais. Os moradores
desses povoados não proibem ninguém de tirar a juçara, mas há uma regra de uso que não
pode ser violada: só podem coletar a juçara madura e interditam que seja coletada ainda
verde. Os referidos moradores proíbem também a derrubada da juçareira. Regras de uso
similares, com proibição de cortar o cacho de coco e de extrair o coco verde, foram
verificadas nas áreas de ocorrência de babaçuais, que se distribuem por praticamente todo
o município de Alcântara.
Em Baixa Grande, a expressão "Terras de Seu Pedro" foi registrada por L.
Galvão como sendo utilizada para designar tais áreas reservadas (Galvão, 1998:13). Neste
último caso, além de herdeiro, o Sr. Pedro detém poderes9 para negociações com o Ministério
da Aeronáutica, respondendo formalmente pelas terras do povoado, localizadas límitrofes
à área pretendida pela base militar. As chamadas terras de herdeiros aqui referidas
acabam se confundindo parcialmente com um determinado imóvel rural cadastrado.
Podem ser destacadas, a propósito dessas práticas preservacionistas e de conservação
dos recursos naturais, aquelas que, implicitamente, deixam entrever uma preocupação
e um certo controle da pressão demográfica sobre o estoque de recursos disponíveis.
A despeito de essas práticas observadas não poderem ser convertidas em norma, podese adiantar que há situações em que a força de trabalho familiar ultrapassaria o potencial
dos terrenos de cultivo disponíveis ao grupo. Mediante fatos dessa ordem, o próprio
grupo familiar é levado a estimular a saída de alguns de seus membros para centros
urbanos e regiões de fronteira agrícola, vinculando-os à receita familiar pelo trabalho
assalariado e acionando-os eventualmente em etapas do processo de trabalho agrícola,
que requerem uma maior concentração de atividades, tais como as colheitas de arroz e
de mandioca. Outro componente dessa estratégia familiar e comunitária implica na
32
Alfredo Wagner Berno de Almeida
mudança geográfica do local de residência e de cultivo do próprio grupo doméstico
ou mesmo do próprio conjunto de famílias que constituem o núcleo central do povoado.
Escassez de recursos essenciais nas proximidades do povoado, maior distância entre
terrenos de cultivo e locais de moradia e brigas de famílias também concorrem para
tanto. Isso explica por que certos povoados são abandonados e novos núcleos residenciais
vão sendo criados. Aru, por exemplo, em 1854 constituia-se no povoado central de
uma rede de povoados e, em 2002, a última família que nele permanecera estava se
mudando para outro povoado. Situação semelhante foi observada, no decorrer do
trabalho de campo, com respeito a São Lourenço. Não se trata propriamente de uma
itinerância, uma vez que as mudanças geográficas ocorrem dentro dos limites de uma
mesma territorialidade específica ou de uma mesma região socialmente delimitada,
como veremos adiante.
Impõe-se uma distinção entre essa prática, que denota uma dinâmica dos
povoados em relação ao potencial dos recursos naturais, e os impactos sociais
provocados pela implantação da base. Apropriando-se de grande extensão de terra,
deslocando compulsoriamente povoados inteiros para agrovilas, comprimindo-os em
áreas tradicionalmente ocupadas por outros povoados e restringindo o estoque de
recursos naturais ao alcance das demais famílias, a implantação da base militar provocou
uma migração forçada e uma catástrofe natural. Ao localizar as agrovilas junto às
nascentes dos cursos d'água, os responsáveis pela implantação da base comprometeram
rios e igarapés. O exemplo mais flagrante concerne ao rio do Pepital, que abastece a
sede municipal, cuja redução do volume d'água mostra-se drástica. Quanto à migração
forçada, foi registrada no trabalho de campo a célere ocupação de áreas da periferia
da sede municipal por famílias procedentes de povoados com sua reprodução física
comprometida. No perímetro urbano de Alcântara, acentuam-se tensões sociais,
envolvendo centenas de famílias das comunidades remanescentes de quilombos e as
delimitações preconizadas pelo zoneamento definido pela Lei Municipal nº 224, de 10
de outubro de 1997. Essas tensões envolvem também o Iphan. Foi possível constatar,
inclusive, uma interpenetração entre as ruínas do casario assobradado e terrenos de
plantio de mandioca e fruteiras, reatualizando no perímetro urbano relações de trabalho
e de uso comum de terrenos vagos características dos povoados10.
A história oral, ao registrar o reconhecimento social desse costume11 de
apropriação, permanente e comum, do conjunto de recursos naturais imprescindíveis
à existência das comunidades remanescentes de quilombo e do elenco de medidas
transmissíveis, que disciplinam o seu uso, concorre para definir e consolidar direitos.
Na mesma direção podem ser entendidas as iniciativas dos entrevistados de
acrescentarem comprovantes à sua narrativa, recorrendo a croquis, plantas e bases
cartográficas. Em pelo menos três contatos, os entrevistados nos exibiram mapas,
elaborados por agrimensores, assinalando as áreas de seus respectivos povoados –
quais sejam, Arenhengaua, Canelatiua e Santo Inácio – e de povoados circundantes.
Em quatro outros povoados, como São Raimundo, Itapuaua, Baixa Grande e São
João de Cortes, apenas mencionaram que possuíam os documentos sem, no entanto,
exibí-los. Em Ladeira, Iririzal e Samucangaua, a discussão ocorreu em cima de um
esboço de mapa desenhado com carvão no piso de chão batido da chamada tribuna,
33
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
que é a edificação que serve para a realização das reuniões. Em quase todos eles,
indicaram-nos os marcos de pedra, denominados de pedras de rumo, que delimitam,
desde a segunda metade do século XVIII, antigas concessões de terras a sesmeiros e
que hoje correspondem aproximadamente às áreas que são reconhecidas como
concernentes aos povoados.
Os próprios mediadores, porta-vozes das demandas do grupo, embora
muitas vezes também portassem mapas e documentos das áreas referidas e dispusessem
de informações sobre a cadeia dominial – que, inclusive, subsidiam as reivindicações –
e bem soubessem narrar as condições de apropriação dos recursos naturais, declinavam
em favor desses mais velhos e passavam a ouvir atentamente os seus relatos 12.
Valorizavam tais narrativas, procurando coaduná-las com as reivindicações. Seus
depoimentos, nesse sentido, secundaram aqueles.
Os arquivos como discurso de legitimação
Foram realizadas, no decorrer das visitas aos povoados, entrevistas e conversas
informais com 31 pessoas numa faixa etária igual ou superior a 60 anos, correspondendo a 26
homens e cinco mulheres. Elas distribuem-se por 25 povoados. Dezessete entre elas têm mais
de 70 anos. Dez situam-se acima de 75 anos. Os entrevistados invariavelmente se autodefinem
como pretos e assim são representados por aqueles com quem interagem socialmente, além
de terem nessa categoria uma manifestação de identidade coletiva refletida na designação da
territorialidade correspondente, ou seja, terra de preto.
A relação com esses agentes sociais13, que detêm a autoridade da memória
coletiva, requer maneiras estandardizadas de agir, que denotam respeito profundo aos anciãos,
como saudar com deferência ou pedir a benção. Expressam, de igual modo, formas de
afinidade, compreendendo dezenas de afilhados14 e de conhecidos que guardam certa
fidelidade à amizade recíproca entre seus antecessores, numa vasta rede de relações sociais
evidenciando, também, que os povoados de Alcântara podem ser interpretados como se
estruturando enquanto "entidades afetivas" (Prado, 1974:64) com hierarquias dadas pelo
parentesco e pelo compadrio, como já chamava a atenção R. Prado, em observação
etnográfica de 1972. Tais maneiras de agir vão, entretanto, além dessas reverências.
Registramos pessoas solicitando dos entrevistados autorização para a retirada de madeira e
de palha das reservas ou para utilizar um terreno para plantio, porquanto seriam eles,
simbolicamente, os responsáveis pela administração do estoque de recursos disponíveis ao
uso comum de um grupo de famílias ou de um povoado como um todo. São relações
ritualizadas ainda que se possa dizer que sua eficácia hoje é relativa, em virtude sobretudo
da ação desapropriatória15 de 1980. Tal instrumento jurídico, que passou as terras para o
controle formal do Estado com finalidade de implantação da base de lançamento de
foguetes, desautorizou16 a ação reguladora desses agentes sociais. Foi possível constatar,
entretanto, que tal autoridade está sendo reativada num contexto dramático e conflitivo em
que percebem riscos de usurpação de seus domínios e de deslegitimação de seu modo
específico de produzir, de fazer e de viver. A função do narrador, que relata a legitimidade
34
Alfredo Wagner Berno de Almeida
das vias de acesso à terra e aos recursos básicos e a dinâmica de construção da territorialidade
pelo grupo como um todo, torna-se vital numa situação de tensão social e conflito. Descrevêla para quem realiza a perícia, que é um instrumento científico que contribui para responder
a questionamentos sobre expectativas de direitos, significa um ato demonstrativo de
afirmação de diferenças culturais, que os agentes sociais pretendem sejam reconhecidas
juridicamente. O reverenciamento ao narrador, nesse contexto, significaria também uma
forma ritual de o grupo destacar a maneira de acessar o seu arquivo ou conhecimentos
acumulados sobre a trajetória do conjunto de famílias que estruturam o povoado.
A descendência evidencia, ademais, um tempo histórico e um processo de
produção permanente, comprovado pela distribuição das atividades econômicas das famílias
em terrenos não-contíguos, distribuídos ao longo de uma extensa área, e pela residência
duradoura. O ato de me levarem à casa das pessoas indicadas já representava, pois, uma
evidência comprobatória acerca da ancianidade do lugar, porquanto propiciava o acesso
direto às fontes de referência constitutivas dos arquivos do grupo focalizado, dando uma
existência física à história. Tanto a descendência, símbolo de um passado distante, quanto a
residência, que no presente expressa uma idéia de continuidade, estão relacionadas de modo
complexo à ecologia, ao conhecimento profundo do ecossistema e ao controle permanente
de bens econômicos que traduzem as condições de possibilidade da reprodução física e
social. Considerando esta relação entre tempo e espaço, não é difícil perceber a lógica da
seleção de quem deveria falar antes que qualquer outro.
Encontrei-me, portanto, diante de uma certa divisão do trabalho de
reconstituição histórica que transcendia aos esquemas práticos dos mediadores e de lideranças
sindicais, religiosas e políticas, os quais sintetizam o projeto coletivo do grupo e atuam em
função de suas necessidades frente ao Estado e aos demais poderes instituídos. A
demonstração, pelos entrevistados, de um certo conhecimento factual, intrínseco ao grupo,
de uma extensa nominata de ancestrais, de uma extrema familiaridade com o meio biológico,
descrevendo caracteres genéricos da flora e da fauna locais, de um repertório de informações
sobre a piscosidade dos igarapés e dos meios lingüísticos para descrever confrontantes e
lindeiros, utilizando um conjunto de termos próprios da documentação cartorial de registro
de terras dos séculos XVIII e XIX17, consiste em etapa preliminar de uma confrontação
maior. Ao elegerem para narrar os que detêm esse saber genuíno e são dotados de uma
competência e de uma habilidade legítimas, que nem sempre se restringem a acontecimentos
diretamente úteis, os agentes sociais afirmam um ponto de vista criteriosamente articulado
e bastante denso, desautorizando outras possíveis versões. A história oral do grupo,
transmitida de maneira detalhada e geograficamente precisa pelos responsáveis em preservar
a memória coletiva, expressa, desse modo, uma modalidade afirmativa de interlocução,
como se a própria perícia estivesse enredada numa polêmica e pudesse assim ir dirimindo
elementos possíveis de dúvidas.
A seleção desses entrevistados pelos agentes sociais, eles mesmos,
exprime por si só um ato de delegação que, em certa medida, contém uma percepção
de direitos coletivos e uma expectativa de que a perícia tenha como resultante o
esclarecimento. Quem é instado a falar o faz com a autoridade de um "documento
vivo" e de referências cartográficas irretorquíveis em oposição aberta às pretensões
de antagonistas que porventura pretendam seus domínios territoriais, suas terras e
35
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
demais recursos básicos. As entrevistas, nesse sentido, podem ser assemelhadas a um
discurso de legitimação, sancionado, seja pelos mediadores, seja pelo próprio grupo.
Através dessa modalidade discursiva, colocam suas tradições, seus elementos
identitários e suas formas de controle e de uso dos recursos naturais em consonância
com as disposições jurídicas, refutando implicitamente qualquer interpretação contrária.
Nas narrativas dos entrevistados, após asseverarem que essas terras pertenciam
originalmente aos índios, retrocedem a um número determinado de gerações, condicionado
sempre por aquele ancestral ou pelo grupo de parentes que facultou o livre acesso aos
recursos naturais. O quadro genealógico dos antepassados tem sua origem na geração ou
na pessoa que assegurou o controle da terra, de maneira autônoma, para o grupo doméstico.
A narrativa memorialística, mesmo variando o número de gerações citadas pelos diferentes
entrevistados, retrocede até a situação em que ocorre o mencionado acesso à terra. A regra
de descendência, que filia o entrevistado àquele ancestral ou grupo de parentes, provê tanto
direitos permanentes quanto obrigações concernentes à garantia de reprodução dos recursos
essenciais ao grupo. São esses os fundamentos dos laços solidários que consolidam a coesão
social na organização dos povoados e na interligação que historicamente passam a manter
entre si.
As entrevistas podem propiciar informações que, ao pesquisador, não é
possível checar inteiramente, como genealogias de famílias escravas e atos de divindades,
mas, enquanto representações significantes para os entrevistados, não constituem verdade
ou mentira, sendo tão-somente o que vivem, acreditam e enfatizam como dando sentido à
sua organização social. Podem ser lidos dessa maneira os acontecimentos pertinentes às
divindades. A menção explícita aos santos, às santas e às irmandades é igualmente posterior
à referência aos índios, circunscrevendo os atos de sucessão das famílias responsáveis pela
manutenção do sacro patrimônio e suas respectivas relações contratuais com as divindades.
A divindade é registrada formalmente como proprietária do imóvel, como
seria o caso de Nossa Senhora do Livramento18. De igual modo sucede com a Irmandade
do Santíssimo Sacramento19. Santa Teresa, por sua vez, é representada como uma santa
viva, que inclusive teria uma irmã igualmente santa, que caminha à vista de muitos,
percorrendo seus domínios, assim como São João Batista e Nossa Senhora do Livramento
em suas respectivas terras. Uma vez encontrados nos campos, rios e matos, são sempre
recolhidos pelos fiéis e levados às suas respectivas capelas em forma de imagem. As portas
dos templos são cerradas para evitar que saiam outra vez. Ocorre, entretanto, que
invariavelmente escapam, sem que se saiba como e para onde. Quando as capelas são
abertas, eles já se foram. "Nada consegue detê-los", de acordo com as assertivas dos
entrevistados. Nas terras de Santa Teresa, registra-se ainda uma variação: existem três imagens
de tamanho diferente, mas apenas uma delas é apontada como santa viva e milagrosa, que
já foi levada várias vezes para Alcântara e sempre escapa de lá, retornando para sua capela
em Itamatatiua. Para Lopes, referindo-se a N. S. do Livramento, seriam "imagens migradoras
como referem os folcloristas" (Lopes, 1957:302). Do ponto de vista da presente
interpretação, seriam relações próprias de contratos diádicos firmados para legitimar o uso
continuado de recursos. Santos e santas são representados como fiscalizando seus patrimônios.
Santa Teresa é vista percorrendo os campos e olhando os terrenos de plantio e seus rebanhos
ao sul do município de Alcântara. Do prisma de quem narra, ela estaria cumprindo as
36
Alfredo Wagner Berno de Almeida
expectativas de sua posição assimétrica numa relação contratual efetiva. E tanto assim é que
um dos entrevistados relata que presenciou a conversa de uma senhora com a imagem da
santa, tratando-a por "Sinhá" (H.M. 26/04/2002 ENT. 25)*. De modo similar, São João
Batista era visto com uma vara de pesca na beira de lagos e igarapés a noroeste do município
mas, consoante os entrevistados, ele teria sido levado para outras terras e substituído na
igreja de São João de Cortes por uma simples imagem que, como tal, se mantém imóvel20.
Esses episódios de antropomorfismo ou que atribuem às divindades comportamentos
característicos de seres humanos não transformam exatamente os santos em "patrões",
uma vez que, historicamente, o ato de fugir para as terras sob proteção divina significou
uma via de acesso à liberdade e à consolidação dos quilombos em Alcântara. Os registros
de sucessivas ocorrências de quilombos nessas terras, entre 1837 e 1868, bem ilustram sua
diferença em face da severidade dos mecanismos escravistas dos engenhos. Para além dos
registros de terras e das narrativas míticas, está-se diante de contratos firmados entre as
divindades e os moradores das áreas, que são operacionalizados através de um corpo
administrativo de funcionários religiosos, denominados encarregados da terra ou ainda
encarregados da santa, que zelam pela capela, organizam os rituais religiosos e coletam
donativos, designados localmente como jóia, caso das terras de Santa Teresa, em
Itamatatiua21. Tais funcionários integram também as chamadas comissões, como no caso
do patrimônio de São João Batista, em São João de Cortes, como arrecadadores e
administradores de um fundo cerimonial para realização periódica das festas e demais
rituais religiosos.
Para dar conta dessas variações, os agentes sociais reconstituem as vias de
acesso aos recursos naturais e a consolidação de seu domínio com um repertório de
expressões e categorias peculiares que se distinguem das disposições jurídico-formais de
propriedade e de titulação privada, evidenciando territorialidades específicas que contrastam
com a estrutura agrária de Alcântara, tal como oficialmente descrita, e lhe conferem
particularidades. Há uma contradição flagrante entre a difusão e a persistência dessas
categorias na vida social dos povoados e a noção comumente difundida de que agora
trata-se de "terras da base". A colisão de classificações evidencia a profundeza dos
antagonismos e possibilita uma interpretação do conflito a partir de formas diferenciadas
de representação da terra, que evidenciam, por um lado, uma noção geográfica e mercantil,
enquanto bem físico passível de indenização, e que manifestam, do lado oposto, um processo
de construção de territorialidades, resultante da mobilização de comunidades estruturadas
socialmente em povoados. Para efeito de apresentação e síntese do significado dessas
categorias, pode-se adiantar, grosso modo, que: no contexto da descendência e dos atributos
pelos quais se auto-representam e são vistos, os entrevistados mencionam as denominadas
terras de preto e terras de caboclo; no contrato com as divindades, referem-se às terras
de santo, terras de santa, terras de santíssimo, terras de santíssima, terras santistas
e designações aproximadas como irmandade; no contexto de regras de sucessão e
transmissão de patrimônio, falam de terras de herdeiros e terras de parentes.
* Entre parênteses, a forma padrão de referência às entrevistas realizadas durante a perícia, da qual constam: iniciais do
entrevistado, data e número de ordem. (n.e)
37
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Consoante os termos documentais de registros do período colonial, falam de
datas e sesmarias. De acordo com termo de doação específico, firmado em cartório,
referem-se a terras da pobreza. Nos registros paroquiais, encontramos menção a terras de
irmandades religiosas e das próprias divindades. No contexto de transferência de imóveis
rurais adquiridos e registrados em cartório, mesmo que sem formais de partilha efetivados,
falam também de terras de herdeiros. Sobre as terras devolutas municipais, mencionam
as chamadas terras da Câmara. Perpassando todos os diferentes planos formais e
informais, da identidade coletiva e dos contratos diádicos, falam de terra de índios,
quando tratam da referência original ao domínio das áreas, e de terra comum, no que
tange à relação antrópica e às regras de uso dos recursos naturais. Estas duas últimas
designações perpassam todas as outras situações mencionadas. Quanto aos denominados
brancos, as narrativas memorialísticas jamais falam em terras ou recursos naturais, senão
com referência a um passado remoto, cingindo-se a mencionar tão-somente as ruínas do
que teriam sido suas moradias, classificadas como taperas de branco.
Adiantando na análise das interrelações, pode-se asseverar que tais
territorialidades específicas se interpenetram simbolicamente, consoante o tipo de critério
que possibilita sua delimitação em diferentes planos organizativos, fazendo, por exemplo,
com que as intituladas terras de preto ou as terras de caboclos se imbriquem com as
terras de santo e com as chamadas terras de herdeiros sem se imbricarem necessariamente
entre si. Nessa ordem, elas não seriam redutíveis a uma noção de terra, enquanto recurso
básico, ou a uma distinção de domínio, quer dizer, entre posse e propriedade. Em verdade,
constituem territórios construídos historicamente e legitimados por um sistema de relações
sociais intrínseco a cada uma das situações em jogo.
A multiplicidade das formas de propriedade e de apossamento e a
complexidade das relações entre elas, que concernem a tais territorialidades, por si sós
contrariam a homogeneização oficialmente imposta pelo aparato administrativo do Estado.
Através das estatísticas cadastrais do Incra, que utilizam a categoria "imóvel rural", e do
censo agropecuário do IBGE, que utiliza a categoria "estabelecimento", tem-se a síntese
da classificação oficial adotada pelo Estado em termos de estrutura fundiária. A
propriedade privada e a posse, com suas variações, enquadrariam qualquer modalidade de
domínio e de uso da terra. Os procedimentos censitários e de cadastramento elidem o
fator étnico, excetuando-se os casos de tutela, tal como sucede com os povos indígenas, e
reprimem toda diferenciação no interesse da uniformidade. As situações peculiares
empiricamente constatadas têm que se conformar necessariamente à padronização instituída
ou correm o risco de não existirem enquanto realidades censitárias e cadastrais, isto é, não
terem existência legal.
Em Alcântara, há formas de apropriação dos recursos da natureza que não
são individualizadas – como no caso de "imóvel rural", baseado na noção de propriedade
privada – e nem estão apoiadas na noção de unidade de exploração, independente da
dominialidade, tal como o IBGE define "estabelecimento". Combinando-se essas formas
intrínsecas com a mencionada elisão do fator étnico, resulta que são mantidas sob uma
invisibilidade social, não obstante serem legítimas e efetivas. As múltiplas formas de
apropriação e uso da natureza, designando territorialidades específicas, convergem
para o processo de construção do território étnico das comunidades remanescentes
38
Alfredo Wagner Berno de Almeida
de quilombos. Além de requererem novos procedimentos de classificação oficial,
elas consistem numa conquista efetiva, historicamente consolidada, que não pode
mais ser ignorada técnica e juridicamente e por si mesma perfila-se em face do
conflito em jogo.
Pode-se asseverar, portanto, que quem fala, nas entrevistas, já faz da narrativa
um argumento. Está-se diante de uma fala que enuncia uma percepção de diferenças culturais
em face da representação e uso dos recursos da natureza e que, de maneira implícita,
demanda reconhecimento formal como remanescente de quilombos.
Ao considerar que nos trabalhos de perícia há características de identificação
que não podem ser conhecidas discursivamente e demandam atos de pesquisa e de
observação in loco, pode-se dizer também que foram tornados argumentos os próprios
roteiros e itinerários de visitas quase imperceptivelmente impostos ao perito. Transcendendo
às narrativas, cabe observar que, nos povoados visitados, sempre me instavam a caminhar
até seus terrenos de cultivo e até os escombros ruiniformes que são designados indistintamente
como muralhas e paredões ou, quando há referências mais específicas, como engenhos
e, ainda, quando há referencias explícitas a moradias ou antigas sedes de fazendas, como
taperas de branco e sítio velho. Incentivaram-me também a percorrer as linhas delineadas
pelos marcos de pedra enterrados nas extremidades das áreas, que remontam ao período
colonial e são chamados pedras de rumo. Ainda que localizados muitas vezes em lugares
distantes e encapoeirados, que demandavam mais de hora de caminhada por trilhas não
necessariamente livres de matos, como no caso dos limites entre São Raimundo, Cajiba e
Timbotiua22, havia insistência para tanto. Mostrando-me as letras, que afirmavam serem as
iniciais do nome dos povoados limítrofes, e os sinais gráficos gravados na face superior das
pedras de rumo, era como se estivessem me apresentando a territórios específicos de
delimitação indiscutível com as evidências letradas próprias dos registros escritos, que
simbolizaram a dominação colonial sobre sociedades ágrafas.
Os mediadores e o discurso da mobilização
Os contatos mais detidos e entrevistas com lideranças de povoados e
mediadores que exercem o trabalho de delegação, incluindo-se representantes de entidades
de representação e movimentos23, compreenderam 31 pessoas e um número pelo menos
cinco vezes superior se totalizarmos os que participaram de reuniões ocorridas no decorrer
do trabalho de campo. Outros contatos detidos foram realizados com associações voluntárias
da sociedade civil, entidades confessionais e entidades de apoio24, que atualmente integram
as mobilizações pelo reconhecimento dos direitos dos remanescentes de quilombos.
Não constitui, por conseguinte, qualquer redundância reiterar que os trabalhos
relativos à perícia foram realizados numa situação de antagonismos latentes e que as narrativas
dos entrevistados, quaisquer que sejam, refletem de modo explícito a agudez desses conflitos.
Eles vivem a ameaça constante de perder bens essenciais. Consideram que suas características
culturais mais antigas e contrastantes mostram-se abaladas por circunstâncias recentes, externas
à sua dinâmica histórica. Referem-se mais diretamente à implantação da base de foguetes
do Centro de Lançamento de Alcântara que, desde 1980, vem limitando drasticamente a
39
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
sua sobrevivência física, sobretudo ao desapropriar extensa área, ao deslocar
compulsoriamente povoados centenários, afetando a reprodução das famílias, como ocorreu
em 1987, e ao ameaçar deslocar outros. Ressentem-se de uma total indefinição quanto ao
futuro. Evidenciam isso ao sublinhar que os responsáveis pela implantação do CLA, nesses
22 anos, desde a decretação da área, jamais lhes apresentaram publicamente um cronograma
de execução das atividades previstas referentes a deslocamentos de famílias, para que possam
ter conhecimento das operações de que são objeto. Em certa medida, externam uma
percepção crítica quanto à maneira de serem tratados como se não existissem enquanto
sujeitos ou como se fossem "coisa", associando a ação do CLA, nesse contexto, a uma
espécie de volta a um passado remoto que intitulam "tempo de escravidão" ou "antes
dos brancos irem embora". Interdições à pesca e à coleta e ao livre deslocamento pelas
praias e caminhos, agora controlados pela base militar, reforçam esse sentimento. O
estado permanente de precariedade e de incerteza sobre o futuro próximo e quanto aos
locais de moradia, de cultivo e da realização de atividades extrativas, vivido há mais de
duas décadas, abala as condições elementares de reprodução social. A sensação oprimida
de não controlar o presente produz uma incapacidade de fazer planos e de segui-los. O
pânico e o medo diante de uma ordem superior que poderá, a qualquer momento, determinar
o deslocamento geográfico não se sabe para onde inibe a ação dos que administram os
recursos naturais disponíveis aos grupos familiares que constituem os povoados. A honra e
a dignidade dos chefes de família acham-se seriamente afetadas diante da insegurança
continuada. Acontecimentos dessa ordem, que serão analisados adiante, levaram os
entrevistados a ativar a memória de maneira seletiva, além de provocar impactos sobre sua
percepção de si mesmos diante dos direitos coletivos instituídos juridicamente para assegurar
a persistência de diferenças culturais e étnicas.
Em virtude disso é que se pode destacar previamente que o conflito social em
Alcântara institui uma forma de presencialidade do passado, levando os procedimentos de
trabalho de campo relativos ao laudo pericial a discutirem fatos de uma memória oculta e
historicamente reprimida25. Esse tipo de memória é provocada por uma situação limite
que, ao colocar em jogo a sobrevivência do grupo, acaba tornando transparentes
acontecimentos, representações e elementos identitários que tradicionalmente eram mantidos
segundo uma invisibilidade social. O conflito social cria condições de possibilidade para
que venha à tona o ideal de autonomia e de trabalho livre, por conta própria. Constata-se
a emergência de novas formas organizativas e de uma mobilização constante de resistência
dos entrevistados a formas de imobilização da força de trabalho, a deslocamentos
compulsórios e a outras medidas repressoras que reatualizam cotidianamente práticas de
um regime escravista. Nesse contexto é que representam como submissão e que é vivida
como rebaixamento moral a situação dos que foram deslocados para as agrovilas e que
foram desprovidos dos meios de se manterem por conta própria. Em contrapartida,
ganham visibilidade antigas práticas clandestinas, ocultas, que permitem mapear Alcântara
pelas traços contrastantes em face de um sistema escravista que ainda na vigência da
administração colonial não conseguiu manter imobilizada de maneira plena a força de
trabalho. Multiplicam-se marcas evidentes dessa resistência, dispersas em designações do
cotidiano que reativam a memória coletiva. Designam, por exemplo, como mocambo26,
consoante a toponímia local, um lago localizado próximo ao povoado de Peru, ou um
40
Alfredo Wagner Berno de Almeida
outeiro em Castelo, ou um grupo de casas no antigo Jarucaia ou, ainda, os denominados
palheiros, edificações cobertas e revestidas nas laterais somente com folhas de pindova,
como foi possível observar em Rio do Pau. Podem ser ressaltadas também as referências
constantes a locais de refúgio, em trechos de capoeiras mais densas, onde há menções a
velhas trilhas de escravos, como em Esperança e Itapuaua. E as menções a lugares onde
pernoitavam escondidos ou onde diziam haver ossadas de gado roubado, pedaços de tiras
de couro esgarçadas ou ainda onde diziam haver restos de ostras acumulados, que seriam
vestígios do comer às escondidas, como em Brito, Itapera e Itapuaua. Embora não tenha
havido menções explícitas a terrenos de cultivo nesses lugares, sempre enfatizam que havia
muita farinha e que nas farinhadas se comia à vontade. Uma das qualidades de mandioca
mais plantada é denominada "Joana Forra". O nome, reverenciando uma escrava liberta,
evidencia autonomia e o fato de que a origem da espécie nada tem a ver com a grande
plantação. Há ainda um povoado cujo nome encerra este sentido simbólico: "Fora Cativeiro".
Utilizam o termo cativeiro para designar o regime de trabalho forçado no período colonial
e hoje. Todos esses locativos constituem de maneira idealizada lugares de liberdade que
exprimem um viver livre e por conta própria, seja no processo de produção, seja na esfera
do consumo, fora do alcance da ação coercitiva de outrem. Entre eles, importa destacar os
que são conhecidos localmente como toca, que é um sinônimo de esconderijo27.
São freqüentes também casos referidos à fuga ou pegação, que é como
nomeiam as formas de recrutamento obrigatório para prestar serviços guerreiros ou militares.
Narram casos das andanças na beira-campo de Santo Antonio e Almas do "bandido" que,
fugindo da prisão, buscava vingança e "matava feitores", lembrado pelos mais velhos como
"negro Tito"28. Relatam situações passadas em que todos os homens dos povoados
permaneciam escondidos nas matas ou em que adolescentes ficavam escondidos sob as
saias das mães para não serem levados29. Para onde seriam levados, nunca se sabe ao certo,
mas os entrevistados sempre fazem menção a guerras e as especificações circunscrevem-se,
no mais das vezes, à mencionada "guerra paraguaia". Esses depoimentos foram coletados
em São Raimundo II, Canelatiua, São João de Cortes e Baixa Grande. Enquanto narrativas,
para além da questão da fidedignidade dos fatos, podem ser lidas como míticas ou como
relatos simbólicos da recriação constante da sua condição de "libertos". Elas privilegiam,
nesse sentido, atos de resistência a medidas de constrangimento, as quais sempre parecem
pretender reinstaurar o que classificam de "tempo da escravidão". Tais atos são vividos
como elementares para revigorar a coesão entre os grupos familiares e manter os planos
organizativos que estruturam socialmente os povoados.
Transcendendo a um mero léxico, tem-se um repertório de ações que negam
disposições impositivas, capazes de cercear seus movimentos ou ainda de subordiná-los
pela força bruta. Essas ações, embora à margem do ordenamento jurídico colonial, não
são vividas necessariamente como transgressões. Ao contrário, são narradas como legítimas
e tanto mais pelos mediadores do grupo – líderes sindicais, representantes de povoados,
mandatários municipais, militantes do Movimento Negro – cujos depoimentos de
reinterpretação dessa ordem de fatos são relevantes30. Além disso, aquelas práticas de
resistência resultam por convergir para uma categoria construída simultaneamente: tanto a
partir de um critério político-organizativo, que contesta a subordinação com a afirmação
de uma identidade étnica, quanto de uma autonomia no processo produtivo e na esfera de
consumo. A combinação de ambas corresponde à noção ressemantizada de quilombo31.
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
O significado de quilombo compreende um processo de trabalho autônomo,
que por atos deliberados recusa a submissão forçada a terceiros, e as respectivas práticas de
uso comum dos recursos e de livre comercialização de sua produção agrícola e extrativa.
Compreende formas de cooperação simples e práticas de reciprocidade positivas entre as
unidades familiares que se agrupam sob uma mesma identidade diante dos mesmos antagonistas.
Tem-se, aqui, uma afirmação, simultaneamente étnica e econômica, de produzir para circuitos
de mercado e de reverter domínios fundiários reconhecidos pela legislação colonial, em virtude
de os grandes proprietários terem perdido o seu poder de coerção, como no caso de Alcântara,
e buscado acordos verbais prometendo alforria e terras, ante a incapacidade de saldarem suas
dívidas com comerciantes e de proverem os recursos para a "escravaria" se alimentar e produzir.
Nesse sentido, vale repetir: não importa tanto se o quilombo acha-se localizado distante ou
próximo das casas-grandes ou os demais aspectos formais da definição do período colonial,
mais valendo o grau de autonomia que os membros das comunidades remanescentes de
quilombos historicamente adquiriram e a territorialidade específica que socialmente construíram
em sucessivos atos de resistência, que resultaram numa identidade coletiva consolidada e na
garantia da persistência de suas fronteiras.
A transição do léxico de rotina e de ações de resistência atomizadas e
individuais para uma identidade que expressa uma existência coletiva não é simples, e só
se mostra factível, no caso analisado, mediante uma mobilização étnica, entendendo-se o
grupo étnico como tipo organizacional (Barth, 2000:11), isto é, o grupo passa a ser visto
como uma forma de organização social. Enquanto há grupos que não se mobilizam
em torno de seu pertencimento étnico que sugere auto-evidente, há outros que,
diante da invisibilidade social prevalecente, como no caso de Alcântara, têm que
construí-lo. A vicissitude dessa construção implica em se fazer conhecido em face dos
outros de uma maneira distinta, através de atos que expressem uma existência coletiva.
As formas de organização e as estratégias de mobilização continuada contra circunstanciais
antagonistas significam instrumentos que tornam factível esta passagem. Detectá-las e
descrevê-las torna-se uma condição essencial na identificação das comunidades
remanescentes de quilombos e consiste justamente no objeto desta perícia.
A partir dessas narrativas, relativas aos arquivos e aos mediadores, das
observações diretas realizadas no decorrer do trabalho de campo e ainda da consulta às fontes
documentais32 e arquivísticas, passarei a seguir à análise do processo de territorialização, deslocando
o foco da pesquisa da constituição interna do grupo e de sua história para as fronteiras étnicas e
sua persistência através de conflitos e de constantes mobilizações (Barth; 2000:27).
42
Processo de
territorialização das
comunidades remanescentes
de quilombos
Moradias
O processo de territorialização ora em pauta não pode ser pensado consoante
um desenvolvimento linear, evolutivo e contínuo, incorporando gradativamente novas áreas
e sempre tendendo a fortalecer, de modo ascencional, uma determinada identidade étnica
ou regional. Somente uma interpretação historicista e acrítica poderia estabelecer uma
continuidade e um sentido uniforme na formação desses territórios de quilombos. Não se
trata, pois, de privilegiar uma reconstituição histórica sem fim em busca de precursores
originais, traçando a partir daí as recorrências e as tendências constantes até alcançar as
referidas comunidades. Ao contrário, conforme se pode perceber no caso de Alcântara,
com apoio em copiosas referências bibliográficas,1 prevalecem descontinuidades. Assim,
desde 1755, com a "abolição da escravatura indígena", a criação da Companhia Geral do
Grão-Pará e Maranhão e o confisco das fazendas da Companhia de Jesus2, até 1888, com
a "abolição da escravatura pela Lei Áurea", e daí até a Constituição de 1988, esse processo
apresenta-se marcado por rupturas e intermitências, delineando uma diversidade de situações
com temporalidades distintas. Tais situações mostram-se bastante heterogêneas e
condicionadas por transformações políticas e econômicas relativas aos mecanismos
repressores da força de trabalho tanto no período colonial, quanto no republicano. Dos
conflitos a que estão referidas, resulta uma diversidade de formas de apropriação da terra,
cada uma com sua especificidade, cada uma com suas características peculiares. O
conhecimento concreto dessas situações concretas consiste numa via de acesso às vicissitudes
do processo de territorialização, evitando simplificações e reducionismos. Para distinguí-las
de modo mais detido, designei-as como territorialidades específicas, mantendo seus traços
intrínsecos. Correspondem a elas as denominadas terras de preto, terras de caboclos e
terras de santo, tal como representadas pelos agentes sociais, isto é, pelos sujeitos
responsáveis pelo seu advento. Com suas respectivas variações, elas convergem
diferenciadamente para a formação de um território étnico, que é a expressão maior, em
Alcântara, do processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos,
evidenciando sua extrema complexidade.
Mediante esse enfoque, não há qualquer consistência na suposição de que a
autonomia produtiva, característica dos quilombos, foi aumentando, aumentando e
incorporando extensões cada vez maiores ou que o tempo livre para os escravos
trabalharem por conta própria, dentro das fazendas, a partir da queda do preço do
algodão, foi dilatando, dilatando até que passassem a trabalhar somente para si mesmos
em virtude da ausência dos senhores ou pelo seu completo abandono das terras. A
dinâmica da construção da territorialidade mostra-se, sobretudo, relacional e disruptiva,
caracterizada por antagonismos que tanto fazem avançar rapidamente a citada autonomia,
quanto geram refluxos e contramarchas. Enquanto processo social, tal dinâmica não pode
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
ser reduzida a um mero componente fundiário ou a um elemento da estrutura agrária,
embora esteja referida a conflitos que se manifestam nas relações com os meios de produção.
Ainda que não se restrinja à terra, ela a tem como referência empírica, objeto de conflitos
abertos e de diferentes modalidades de apropriação que podem, em dado momento,
constituir particularidades. As clivagens decorrentes dessa dinâmica representam, inclusive,
marcos significantes para os membros daquelas comunidades, os quais se mobilizam
coletivamente ao perceberem a movimentação de seus antagonistas históricos e,
coextensivamente, as alterações porque passam os instrumentos de imobilização da força
de trabalho a as demais medidas que impedem seu livre acesso aos recursos naturais. Esses
instrumentos, característicos de sociedades autoritárias fundadas em princípios escravistas,
permanecem sendo constantemente redefinidos e reativados, principalmente através de
dispositivos jurídicos e de atos que perpetuam o monopólio da terra e formas de
endividamento com propósito de imobilizar a força de trabalho. Uma ilustração disso seria
a retomada sucessiva de aparatos de dominação circunstancialmente debilitados através de
novos instrumentos repressivos instituídos pela legislação provincial do Maranhão diante
dos quilombos, em 1835, antes da guerra da Balaiada; em 1839-1841, durante a Balaiada;
em 1847, com as medidas modernizadoras de reorganização dos engenhos de açúcar; em
1867, sob a pressão da Guerra do Paraguai, e em 1878, com as discussões públicas sobre
a exportação de escravos das províncias do Norte e Nordeste para o Sul do Império.
Após a campanha abolicionista, os atos efetivos, objetivando instituir aforamentos e
"cobranças de renda", em fins do século XIX e meados do século XX, bem ilustram a
regularidade de adoção de mecanismos repressivos da força de trabalho. Todos esses
momentos críticos expressam antagonismos sociais profundos e um quadro de tensões
que não foi e nem poderia ser suprimido por uma disposição jurídico-formal.
De igual modo podem ser pensados os conflitos sociais decorrentes das ações
desapropriatórias de 1980 e 1991 que recolocam a questão do estatuto jurídico das terras
do município de Alcântara e, de maneira contrastante, trazem a público a discussão sobre o
território das comunidades remanescentes de quilombo, fundada no que preconiza a
Constituição Federal, promulgada em outubro de 1988, notadamente no Art. 68 do ADCT.
Mesmo considerando que a noção de território não se atém necessariamente a um sentido
geográfico e nem corresponde de maneira estrita ao sentido jurídico de propriedade de
terras, descortina-se um novo significado dessas situações focalizadas, que manifesta a
relevância dos fatores étnicos no sistema de relações sociais que concerne à estrutura agrária.
O referido processo de territorialização, nessa ordem, torna-se mais factível
de ser analisado pelas rupturas, como aquelas resultantes da desagregação das fazendas de
algodão, desde fins do século XVIII, simbolizadas pelas ruínas das casas-grandes e engenhos.
Pode ser analisado, também, pela intensidade dos conflitos, mediante o reposicionamento
das forças de dominação escravistas, no decorrer do século XIX, com a tentativa
"modernizadora" dos engenhos, e mais recentemente, em 1980, com o início da implantação
de um grande projeto governamental. Na análise a seguir apresentada, incluiremos ainda os
atos de mobilização e de afirmação étnica dos membros das comunidades remanescentes
de quilombos com as respectivas respostas dos aparatos de poder. Incluiremos,
principalmente, os fatos significantes na própria forma de eles representarem os meandros
dessa construção social do território.
46
Territorialidades específicas,
estrutura agrária e situação
atual dos conflitos
Consoante estudos anteriormente realizados, pode-se asseverar, para efeitos
de introdução, que o conhecimento da estrutura agrária de Alcântara aponta para
particularidades históricas e de natureza étnica que a distinguem de outras regiões da Amazônia
e do Nordeste.
O intenso movimento de concessão de terras em Alcântara com grandes
estabelecimentos agrícolas, apoiados no trabalho escravo e na monocultura de algodão,
beneficiados por vantagens financeiras e mercantis propiciadas pela Companhia Geral
do Grão-Pará e Maranhão, a partir de 1755, teve duração efêmera. As concessões de
sesmarias foram articuladas com a desativação das capitanias e com o confisco das terras
de ordens religiosas e a expulsão dos jesuítas, ampliando os estabelecimentos de agricultura
tropical. Embora essas medidas pombalinas tivessem dinamizado o processo produtivo
e colocado os produtos do Maranhão e, notadamente, de Alcântara – que era considerada,
em 1760, a vila mais próspera da região – no mercado internacional, seus resultados não
foram duradouros. Diferentemente da costa nordestina, em que as grandes plantações
de açúcar mantiveram-se, durante o período colonial, como o centro dominante mais
estável da economia brasileira (Velho,1976:115), em Alcântara ocorreu um abrupto declínio
dos estabelecimentos agrícolas dedicados ao cultivo do algodão a partir da extinção da
Companhia Geral, em 1778, e do fim de seu monopólio comercial. A alta dos preços no
último quartel do século XVIII, propiciada pela expansão da indústria têxtil britânica e
pela independência das colônias inglesas que vieram a formar os Estados Unidos, mesmo
tendo gerado divisas e caracterizado um período de "prosperidade no Maranhão"
(Furtado, 1975:90), não foi suficiente para assegurar um desenvolvimento constante
daqueles empreendimentos agrícolas. Enquanto no Nordeste os estabelecimentos
açucareiros incorporaram tecnologia e se transformaram em plantations1 não obstante a
tendência secular a uma decadência gradativa – em virtude, sobretudo, da competição,
na segunda metade do século XVII, das plantações das Antilhas –, em Alcântara os
estabelecimentos agrícolas não lograram estabilidade nem desenvolveram uma parte
industrial para beneficiamento do algodão, e desagregaram-se vertiginosamente. Após os
efeitos da guerra de independência, entre 1776 e 1778, os Estados Unidos organizaram
sua economia de plantations no Sul, passando a produzir algodão em maior quantidade,
com fibra de qualidade superior, e a controlar o mercado mundial do produto no início
do século XIX. A queda de preço do algodão, resultante dessa reorganização do mercado,
chegou ao fundo do poço em 1819 e acentuou o endividamento dos fazendeiros junto
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
às casas comerciais portuguesas e inglesas de São Luís2, apressando o abandono das
fazendas em Alcântara.
As limitações ecológicas, de solos frágeis e arenosos, e o uso predatório dos
recursos naturais com queimada das matas para plantio de algodão e de cana-de- açúcar,
durante mais de quarenta anos consecutivos, numa área não superior a 120 mil hectares,
também teriam contribuído para o célere declínio da economia algodoeira. A devastação
dessa área foi registrada a partir de observação direta feita pelo coronel engenheiro Pereira
do Lago, em janeiro de 1820, quando de sua passagem pela estrada do Pirau-açu (Periaçu),
que alcançava o Grão-Pará, passando pelas fazendas entre a cidade de Alcântara e o porto
de São João de Cortes (Pereira do Lago, 1872:388). A expansão das fazendas de algodão
teria se defrontado com limites insuperáveis, ocasionando uma derrocada em Alcântara
profundamente devastadora e distinta daquela do Vale do Itapecuru, que tanto no período
da Guerra de Secessão norte-americana (1860-1865), quanto no final do século XIX,
conheceu inclusive uma reativação do plantio de algodão consolidado até a década de
1950-60 pelas indústrias têxteis de Codó, Caxias e Coroatá.
Em conformidade com a formulação teórica de Wolf e Mintz, pode-se
asseverar que em Alcântara não teriam ocorrido plantations, mas tão-somente fazendas.
Ademais, ocorreu uma absoluta desagregação dessas fazendas, que, pelas exigências régias
de confirmação, não eram propriamente propriedades privadas, senão concessões de
sesmarias realizadas pela Casa Real. Num tempo historicamente curto, elas simplesmente
deixaram de existir. Não houve qualquer transição para trabalho assalariado, nem tampouco
ocorreu um desmembramento dos grandes estabelecimentos com a formação de um
campesinato parcelar individualizado em pequenas glebas, que posteriormente foram
reconhecidas como propriedade privada.
O processo de desagregação dessas fazendas de algodão levou inicialmente
ao advento de uma pequena agricultura subordinada, correspondente a uma situação
incipiente e intermediária entre escravo e camponês ou ainda a um "protocampesinato
escravo", caso se considere a interpretação de Mintz, relativa às plantations de sociedades
caribenhas (Haiti, Cuba, Santa Lucia, São Vicente)3, como fenômeno aproximável. A
desorganização da produção algodoeira em Alcântara foi, entretanto, de tal ordem e
tão completo foi o abandono das fazendas pelos senhores – vendendo telhas, baldrames
de casas-grandes destruídas, desmontando meios de trabalho e demais benfeitorias –,
que tão logo resultou só em ruínas, como se poderá constatar no tópico desta perícia
intitulado "Muralhas e paredões: as ruínas das casas grandes e dos engenhos como
fator de identificação das comunidades remanescentes de quilombos". Semelhante
desmonte viabilizou o surgimento de uma camada de pequenos produtores agrícolas
com autonomia no processo produtivo, desenvolvendo práticas de uso comum de
recursos naturais bastante exauridos, e relativamente livres da dominação senhorial. A
autoridade senhorial nessas fazendas tornou-se mais simbólica, tal como já sucedera
com o senhorio eclesiástico nas terras da Companhia de Jesus, desde 1760, e das demais
ordens religiosas (carmelitas, mercedários), a partir de 1821. Ela se manifestava, seja
através de prepostos e das tentativas jurídico-formais de validar as cartas de datas e de
sesmarias, entre 1777 e 1816, ou de reconfirmá-las, entre 1854 e 1857, consoante as
exigências da Lei de Terras nº 601, de 18 de setembro de 1850; seja através de termos
de doação aos escravos ou do simples abandono das fazendas.
48
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Escravos, cuja aquisição havia sido facilitada pela Companhia Geral de
Comércio, índios desaldeados e que se mantinham livres nas antigas fazendas das ordens
religiosas, ex-escravos e alforriados e também escravos fugidos compunham essa camada
de pequenos produtores agrícolas em formação. O elemento mais contrastante nesse
processo de completa derrocada é a debilidade econômica dos sesmeiros em manter, de
maneira plena, uma produção permanente e sua incapacidade de acionar mecanismos de
repressão da força de trabalho capazes de inibir os desdobramentos daquela autonomia.
Quer dizer, não há registros de tentativas de reorganização da produção e nem há, tampouco,
informações de que tenham conseguido mobilizar efetivos militares suficientes para reverter
tal quadro. Sublinhe-se que esses acontecimentos coincidem com um período histórico
atribulado que se inicia com conflitos políticos em Portugal, que levaram a família real a
deslocar-se para a colônia, culminando com as lutas pela independência em 1822 e 1823.
Coincidem, de igual modo, com o colapso do mercantilismo e do monopólio das grandes
companhias de comércio, mediante a prevalência dos princípios liberais que inspiraram a
decisão real de abertura dos portos, em 1808, e de tratados de comércio e amizade com a
Inglaterra, em 1810.
A partir desse início do século XIX, os registros administrativos sobre
quilombos na região de Alcântara, cujas primeiras ocorrências datam desde o início do
século XVIII, aumentam significativamente. As articulações entre os quilombolas e os
escravos das fazendas arruinadas tornam-se mais orgânicas e consolidadas, tornandose quase impossível distinguí-los com exatidão. Tal como os escravos, os quilombos
também passam a ser designados pelas fazendas nas quais se manifestam, tornando
indubitável que sua localização geográfica não se encontrava fora dos limites físicos
dos grandes estabelecimentos de agricultura tropical. Em decorrência, as campanhas
armadas contra os quilombos são parcialmente reeditadas e se voltam também para
essas fazendas em desagregação, conforme noticia o coronel Pereira do Lago, em
1820, ao mencionar o "quilombo dos pretos de Viveiro" e aquele "da Fazenda das
Mercês"(Pereira do Lago, 2001:28). Os registros constatam que os quilombos mantêm
uma produção regular e contatos sistemáticos com comerciantes, concorrendo para o
abastecimento de farinha e arroz das fazendas de gado da beira-campo, dos núcleos
urbanos regionais e da capital São Luís. Transcendendo àquela situação de
"protocampesinato escravo", constata-se que, tanto dentro quanto fora dos domínios
físicos das fazendas de algodão e de cana-de-açúcar, esses produtores autônomos foram
se consolidando enquanto um campesinato, trabalhando a terra com suas unidades
familiares e vendendo livremente sua produção agrícola nos circuitos de mercado
relativos aos gêneros básicos, coletando especiarias da floresta, extraindo amêndoas de
coco babaçu e dedicando-se à pesca marítima e nos rios e igarapés. O instituto das
Cartas Régias não resistiu, em Alcântara, a essa trajetória ascendente dos grupos sociais
estruturados em povoados que, para além de uma simples figura jurídica de
apossamento, consolidaram direitos étnicos através da emergência das territorialidades
específicas, tais como as intituladas terras de preto, terras de caboclo e terras de
santo. Essa dinâmica de estabilização e de autonomia resultou por fortalecer uma
identidade própria, articulando atividades agrícolas e extrativas, e por favorecer uma
delimitação bastante sólida das territorialidades específicas de acordo com a forma de
49
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
desintegração de cada uma das fazendas, seja de algodão ou de cana-de-açúcar, seja de
sesmeiros ou de ordens religiosas. São essas delimitações que vigem hoje, passados
dois séculos. Isso, não obstante acentuados conflitos, em virtude sobretudo das medidas
repressivas adotadas pelo governo provincial a partir de 1835, quando detém o governo
da província um membro da "aristocracia alcantarense"(Viveiros, 1975:109) referido
às fazendas da beira-campo, no Tubarão, Antônio Pedro da Costa Ferreira, Barão de
Pindaré. Através da Lei nº 5, de 23 de abril de 1835, instituiu um corpo de polícia rural
voltado para a vigilância do campo, "onde se açoitavam os escravos que fugiam do
domínio de seus senhores, e os malfeitores que depredavam os gados"(Leal,
1873:254,255). Por intermédio da Lei nº 21, de 17 de junho de 1836, criou ademais o
corpo de polícia da província. Os efeitos dessas medidas se fizeram sentir em Alcântara
apenas episodicamente, em 1837-38, no caso dos quilombos de Itamatatiua, antiga
fazenda da Ordem do Carmo. Com a guerra da Balaiada, entre 1839 e 1841, os efetivos
militares foram concentrados nos Vales do Itapecuru e do Parnaíba e o aparato
repressivo foi inteiramente redefinido na província do Maranhão.
Após a guerra, objetivando reinstaurar a disciplina do trabalho nas fazendas,
novas medidas foram instituídas pela legislação provincial. Quando da tentativa oficial,
também malograda, de implantação de engenhos de açúcar no Maranhão e principalmente
em Alcântara – que começou em 1847, no governo de outro membro da "aristocracia
alcantarense" (Viveiros, 1975:109), o senador Joaquim Franco de Sá, genro do Barão de
Pindaré –, foi promulgada uma lei específica para combater os quilombos: a Lei nº 236, de
20 de agosto de 1847, conforme se poderá observar adiante no tópico dedicado aos
quilombos em Alcântara. As iniciativas subsequentes e episódicas, que sempre intentaram
instituir o aforamento, só lograram êxito, imobilizando a força de trabalho, por curtos
períodos de tempo sem conseguirem afetar profundamente a autonomia conquistada por
escravos e ex-escravos nas terras das antigas sesmarias. A um malogro econômico sucederam
outros, tal como a falência dos engenhos de açúcar, resultando numa nova campanha
militar contra os quilombos. Foi encetada no início de 1878 pelo vice-presidente da província,
Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú, também da nobreza alcantarense, proprietário
do maior engenho da província, o Engenho Gerijó, e ex-secretário de governo do
mencionado senador Franco de Sá. Embora estivesse debilitada a autoridade senhorial,
pelos repetidos insucessos econômicos, foi empreendida uma ação militar ampla que levou
à destruição do quilombo do Limoeiro, tornando-o uma presa de guerra para instalação
das colônias agrícolas com famílias cearenses, que foram trazidas pelos vapores imperiais
para o Maranhão em virtude da grande seca que afetou o Nordeste em 1877. Às ruínas das
fazendas de algodão acrescentavam-se, portanto, aquelas dos engenhos.
Abriu-se um novo capítulo de abandono das fazendas, de vendas de
equipamentos e bens móveis, de doações de terras a escravos e de instituição do aforamento.
Os senhores de engenho remanescentes haviam se tornado absenteístas, residindo fora de
suas terras e mantendo com elas uma relação intermediada por prepostos, escolhidos entre as
próprias famílias de escravos, principalmente entre os escravos domésticos. Essa ausência
acabou se tornando permanente, como já ocorrera com os fazendeiros de algodão no início
do século XIX, as benfeitorias se aluíram e não há registros de retornos efetivos ao controle
das antigas fazendas, senão numa única situação4.
50
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Semelhante derrocada econômica, que desde 1850 já fazia de Alcântara uma
cidade em abandono, propiciou condições para que se tornasse estável uma vasta rede
social, com mais de duas centenas de povoados, que foram sendo erigidos sobre essas
ruínas das fazendas, numa extensão em torno de 150.000 hectares, abrangendo, durante o
período imperial, pelo menos três freguesias (São João de Cortes, Apóstolo São Matias e
Santo Antonio e Almas)5 e criando um complexo sistema de trocas e de solidariedade,
marcado por formas de ajuda mútua e reciprocidade positiva entre diferentes grupos
familiares. Para definir esse sistema, os entrevistados usualmente definem sua forma de
utilização dos recursos naturais como "em comum". A relação com o ecossistema,
preservando cocais, juçarais, manguezais e terras agriculturáveis, disciplinando o uso de
instrumentos de pesca e mantendo reservas de matas para extração de madeira (bacurijuba,
paparaúba) para construções de casas, embarcações e benfeitorias, tornou-se gradativamente
mais equilibrada, além de atentamente acompanhada por determinadas famílias e/ou pessoas,
cuja autoridade para tanto era reconhecida no plano comunitário.
A autonomia de decisão no que produzir, como e onde, lançando mão de
que recursos naturais, aproxima tanto os denominados índios e pretos, quanto os chamados
caboclos, fixando um padrão cultural apoiado num repertório de práticas correspondente
ao que designam de roça. Essa designação polissêmica, mais que uma referência aos tratos
culturais ou, num sentido restrito, ao plantio de mandioca e, ainda, a uma divisão sexual e
etária do trabalho, expressa uma certa maneira de viver e de ser. Mais que um modelo de
relação antrópica com recursos escassos, a denominada roça compreende um estilo de
vida que vai desde a definição do lugar dos povoados, passando pela escolha dos terrenos
agriculturáveis, e dos locais de coleta, de caça e de pesca, até os rituais de passagem que
asseguram a coesão social em festas religiosas (tambor de crioula, procissões e demais
cerimônias), em bailes ("radiolas de reggae"), em funerais e batizados. Essa designação
expressa, ademais, uma representação particular do tempo, como pode ser visto no tópico
sobre os ciclos produtivos, traduzida por intrincados calendários agrícolas e extrativos, e
uma noção de espaço muito peculiar orientando o uso simultâneo, para cada unidade
familiar, de diversas áreas de cultivo não necessariamente contíguas. A composição da
unidade de trabalho para realização desses mencionados tratos culturais é absolutamente
familiar e articulada por fora das exigências intrínsecas ao processo de produção. Ela é
pré-definida no plano das relações de parentesco e de afinidade, refletindo a própria
composição da família e suas interações mais diretas, consubstanciando a idéia do povoado
como uma vigorosa rede social de serviços mútuos e recíprocos. Pode-se asseverar que a
chamada roça trata-se de uma referência essencial que sedimenta as relações
intrafamiliares e entre os diferentes grupos familiares, além de assegurar um caráter
sistêmico à interligação entre os povoados. Ela consiste, além disso, num traço invariante
e no símbolo exponencial da conquista de autonomia e, em decorrência, da identidade que
lhe corresponde. Não há unidade familiar que não se estruture a partir das atividades essenciais
a ela referidas, seja assegurando o autoconsumo ou obtendo, a partir da colocação da
produção no mercado, a receita imprescindível para atender às necessidades básicas e de
reprodução social. Essa reprodução evidencia que o fim econômico estaria além da produção
de valores de uso, dependendo da inserção familiar e comunitária nos sistemas de troca no
conjunto de comunidades semelhantes. Os agentes sociais avaliam capacidades pessoais e
51
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
se reconhecem uns aos outros a partir dessas atividades referidas direta ou indiretamente à
chamada roça. Nesse sentido é que se pode asseverar que a etnicidade entra também em
interação com uma certa maneira de produzir, de se relacionar com os recursos naturais, de
agir segundo uma temporalidade própria, de delimitar grupos sociais interagindo com
outros e estabelecendo os fundamentos de uma ação coletiva.
Um dos resultados da persistência desses elementos de identidade étnica
tem sido a certeza da viabilidade, já quase bi-centenária, dessa pequena agricultura autônoma,
baseada num sistema de uso comum, numa área onde a grande exploração, além de
falir, acarretou o rápido esgotamento do solo e o uso predatório dos recursos. Essas
instituições sociais peculiares, que compõem o sistema de uso comum dos recursos6,
ligando os grupos aos circuitos de mercados e rompendo com qualquer noção de
isolamento, mostram-se informais e de certo modo invisíveis em termos jurídicos. A
despeito de qualquer tipo de reconhecimento formal, consolidaram efetivamente diferentes
domínios com seus respectivos planos organizativos de relações sociais, cada um deles
agrupando inúmeros povoados, designados localmente, consoante o contexto, como
terras de santo, terras da santa, terras de santíssimo, terras de santíssima, terras
santistas, terras de caboclo e terras de preto, compreendendo as antigas terras de
instituições pias e religiosas, as antigas sesmarias e posses centenárias. Por constituírem
territorialidades específicas, suas fronteiras não correspondem exatamente à fixidez dos
limites físicos das fazendas, ou seja, não se esgotam necessariamente na correspondência
ao perímetro de imóveis rurais. Observa-se uma interpenetração entre elas com as
denominadas terras de preto se atualizando e sobrepondo-se às terras de santo, do
mesmo modo que as chamadas terras de caboclo se dispõem em face das terras de
santíssimo. Enquanto territorialidades específicas, cujos planos organizativos se
interseccionam de maneira articulada, elas convergem para a estruturação de um território
étnico, distinguindo-se da noção estrita de terra, considerada como recurso básico
fisicamente delimitado, conforme se pode constatar adiante no tópico que enfoca a
interligação entre os povoados. Assim, pode-se afirmar que as denominações adotadas
para nomear essas territorialidades específicas, mais que meros termos ou expressões,
consistem em categorias classificatórias que apontam para as características intrínsecas e
plurais da identidade étnica dos agentes sociais em questão. Eles se autodenominam e são
denominados por aqueles com os quais interagem, consoante a situação específica, como
pretos e/ou caboclos. Não se observam diferenças sensíveis entre as categorias
reivindicadas por eles próprios e aquelas que lhes são atribuídas por outros. Pretos e
caboclos consistiriam em categorias de pertencimento referidas a comunidades etnicamente
distintas que foram aproximadas, por oposição aos denominados índios, pelas
classificações estigmatizantes do período pombalino, e distinguiram-se posteriormente
em oposições sucessivas, mostrando-se aproximáveis agora, numa situação dramática de
conflito em que se confrontam com a implantação da base. Remetem, pois, antes de
tudo, a "comunidades dinâmicas" que se organizam temporalmente de modo variável,
assegurando a todo custo sua reprodução social em contraposição a antagonistas
circunstancialmente mais poderosos. Esse fator de dinamismo explica a gama de
possibilidades de interpenetração entre as diversas territorialidades específicas mencionadas,
afastando as interpretações oficiosas de que bastam a si próprias e podem ser consideradas
como "isolados negros" ou "isolados caboclos".
52
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Na medida em que esses agentes sociais se investem de identidades étnicas
para categorizarem-se a si mesmos e às terras que historicamente ocupam, mobilizando-se
coletivamente para fins de interação e manutenção dos recursos necessários para sua
reprodução física e social, eles compõem grupos étnicos no sentido organizacional7, que
transitam entre diferentes modalidades de domínio e de planos organizativos, construindo
coletiva e socialmente o seu território.
Área decretada e territorialidades específicas
Durante quase dois séculos, esse sistema e as respectivas territorialidades
específicas não conheceram maiores pressões de novos grupos interessados nas terras.
As ocorrências de antagonismos e tensões sociais foram sempre localizadas e de curta
duração. As iniciativas de colonização do governo estadual, em 1975-76, insistindo no
desmembramento das territorialidades específicas consideradas como terras devolutas e
disponíveis, e as tentativas de grilagem, em 1978-79, das terras de Santa Teresa foram
episódicas e se esgotaram na própria circunstância. O cercamento de áreas localizadas nas
terras da santa, nos confrontantes municipais de Alcântara e Bequimão, foi o estopim
para intensas mobilizações, que provocaram a destruição pelos moradores dos povoados
de vários quilômetros de cercas de arame farpado ilegalmente construídas.
Cabe sublinhar aqui que jamais houve uma pressão constante e em bloco
afetando com igual intensidade e concomitantemente as diversas territorialidades mencionadas
e os respectivos povoados que as compõem. Isso, até que, em setembro de 1980, o governo
do Maranhão procedeu à desapropriação por utilidade pública de 52.000 hectares, através
do Decreto nº 7.320, objetivando a implantação de uma base de lançamento de foguetes
no município de Alcântara8. A medida abrangeu quase 46% da superfície municipal, atingindo
mais de 2.000 famílias distribuídas por mais de uma centena daqueles povoados já referidos.
A partir daí, num curtíssimo período de tempo, foram intensificadas as formas de intervenção
governamental na área e aceleradas as ações fundiárias, sem quaisquer estudos prévios relativos
às particularidades da estrutura agrária ou à identificação étnica das famílias atingidas. Em
1982, foi firmado Protocolo de Cooperação entre o Ministério da Aeronáutica, o estado
do Maranhão e o município de Alcântara, objetivando a implantação do Centro de
Lançamento de Alcântara. Na divisão de responsabilidades, coube ao estado do Maranhão
o deslocamento das "populações da área" compreendida pelo decreto desapropriatório.
Em suma, o resultado mais evidente é que uma situação conflitiva e tensões latentes e
cotidianas persistem na região afetada, após 22 anos do decreto desapropriatório.
Para sumariar esse período mais recente, no que tange principalmente a fatos
pertinentes à relação entre estrutura agrária e o processo de territorialização das comunidades
remanescentes de quilombo, importa sublinhar que, em junho de 1983, sob a coordenação do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Alcântara, as famílias atingidas reivindicaram do Ministério
da Aeronáutica, responsável pela implantação da base, através de abaixo-assinado, o seguinte:
"terra boa e suficiente, acesso à praia, permanecerem juntas, água suficiente,
lugar para pasto de animais, não dependência de agrovilas, casa própria,
títulos definitivos de terra, escola primária completa, posto de saúde com
53
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
representante do povoado, casa de forno, luz elétrica, mudas na quantidade
suficiente para substituir as fruteiras, igreja, cemitério, tribuna, campo de
futebol e assistência técnica".
No mês seguinte, foi assinado um Acordo em que as autoridades militares9 se
comprometeram a observar tais reivindicações. Segundo os entrevistados, o Acordo não foi
cumprido, instaurando um clima de desconfiança. A região se tornou, a partir daí, uma zona
crítica de tensão social e conflito, constituindo-se em objeto de ação da Coordenadoria de
Conflitos Agrários do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, Mirad-Incra,
em março de 1985, quando as famílias afetadas pela base bloquearam a rodovia que dá
acesso ao CLA, impedindo o acesso de ministros de Estado – do Estado Maior das Forças
Armadas, EMFA, da Aeronáutica e do Mirad – que visitavam a área10. Em outubro de 1985,
a referida Coordenadoria realizou um primeiro levantamento, focalizando uma caracterização
sociológica, em que chamava a atenção para as chamadas terras de preto, para a modalidade
de uso comum dos recursos e para os problemas agrários da região. Os resultados levados
ao ministro do Mirad e comunicados aos demais ministérios pertinentes, através de uma
seqüência de reuniões, não foram acatados pelo EMFA e pelo Ministério da Aeronáutica. As
instituições militares responsáveis diretas pela implantação do centro de lançamento de foguetes
chamaram a si a responsabilidade pelas medidas de reassentamento das famílias afetadas. Ao
desprezarem as vicissitudes do processo centenário de territorialização, consideraram estar
lidando com um campesinato parcelar e suas glebas individualizadas. Induzidas ao erro, as
medidas oficiais subseqüentes foram adotadas nesse sentido. Em 18 de abril de 1986, o
Decreto nº 72.571, da Presidência da República, reduziu o módulo rural de Alcântara de 35
para 15 hectares apenas na área relativa à base, permanecendo o restante do município com
a fração mínima de parcelamento já instituída. Em 1987, foram compulsoriamente deslocadas
de 23 povoados11 centenários 312 famílias, e agrupadas em sete agrovilas, agravando a crise
com indenizações não pagas após dez anos, direitos de posse desrespeitados e criação de
agrovilas com lotes para cultivo de dimensão inferior aos critérios técnicos definidores dos
módulos rurais para a região. Quase onze anos depois do primeiro decreto, em 08 de agosto
de 1991, um novo decreto da Presidência da República ampliou a área da base, passando-a
para 62.000 hectares.
A área decretada, reforçada pelos deslocamentos compulsórios e pela divisão
de lotes das agrovilas, instaura uma certa dissociação, que se manifesta através da colisão
entre as medidas que tornam a terra individualizada e transferível versus o sistema de uso
comum dos recursos que suporta as territorialidades específicas, com seus princípios de
indivisibilidade das terras e da manutenção de limites fixos e intransferíveis. A separação
imposta pelos deslocamentos menospreza a persistência histórica das fronteiras que
mantêm as territorialidades, refletindo sobre a posição de cada um dos diferentes agentes
sociais na organização social das denominadas terras de preto, das terras de santo e
suas variações, das terras de caboclo e das terras da pobreza. A área decretada, ao
separar o que sustenta a unidade dos diferentes elementos identitários e ao contrapor-se
à lógica do processo produtivo, quebra com os povoados, enquanto organização social
apoiada em relações de reciprocidade, e com suas hierarquias, enquanto territórios de
parentesco, terminando por instituir outros critérios de autoridade local e por colidir
com os princípios formadores do território étnico. Das formas de resistência a essa
54
Alfredo Wagner Berno de Almeida
intervenção é que foram emergindo critérios político-organizativos e uma percepção
aguçada de direitos étnicos concernentes às comunidades remanescentes de quilombo.
No plano da economia, ou mais exatamente da agricultura familiar, os
impactos se fizeram sentir com o declínio abrupto da produção de farinha, com o rápido
esgotamento dos solos nos lotes delimitados para as famílias deslocadas para as agrovilas
e com uma intensa migração de famílias para a sede municipal e para a capital São Luís.
Cotejando-se os dados estatísticos dos Censos Agropecuários de 1985 e de 1996, constatase que nesses onze anos a lavoura temporária no município de Alcântara sofreu uma
redução de 45% da área destinada ao cultivo de seus dois principais produtos, o arroz e
a mandioca. Consoante o estudo elaborado para este laudo pericial pelo economista
Wilson de Barros Bello Filho:
"Este fato revela-se particularmente relevante quando se constata,
tomando por referência o valor da produção registrado no Censo
Agropecuário de 1996, que estes dois produtos são responsáveis por
cerca de 80% da lavoura temporária do Município, o que corresponde
a mais de 40% de toda a lavoura alcantarense (lavoura temporária
mais lavoura permanente)." (Barros Bello, 2002:01)
No caso da mandioca, o Censo de 1996 registra uma produção de apenas
4.907 toneladas, contra 8.139 toneladas em 1985, o que corresponde a uma queda de 40%
na produção. Ainda com Barros Bello:
"A redução e estagnação da produção de mandioca em Alcântara
revelam-se particularmente preocupantes quando, além da significância
do produto na lavoura do Município, se considera também que,
segundo a Contagem da População de 1996, 74% dos seus habitantes
(14.050 pessoas) vivem na zona rural."(Barros Bello, 2002:01)
Em 1997, sem que fosse realizada qualquer avaliação dos resultados de seu
"Plano de Reassentamento" e a despeito de a base não ter sequer licenciamento ambiental,
foram anunciados pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária, Infraero12, novos
deslocamentos de famílias13. Nesse mesmo ano, foi aprovado pela Câmara Municipal e
sancionado pelo prefeito o "Plano de Preservação da Cidade de Alcântara", através da Lei
nº 224, de 10 de outubro de 1997, com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, definindo usos e ocupações do perímetro urbano. A delimitação de zonas de
"preservação rigorosa" defronta-se com a expansão da ocupação provocada pelo
crescimento da migração dos povoados para a sede do município, gerando tensões entre
os ocupantes e o Iphan. Ainda nesse ano, a Fundação Cultural Palmares, atendendo ao
pleito das famílias atingidas, autorizara os levantamentos preliminares para identificação das
comunidades remanescentes de quilombo, consoante o Art. 68 do ADCT. Em 1998, o
Mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão divulgou os primeiros
resultados dos mencionados levantamentos que assinalaram 26 povoados compreendidos
por essas comunidades e alertavam para dezenas de outros povoados em situação similar.
A este tempo, já havia explícita recusa das famílias atingidas em aceitar novos deslocamentos.
55
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Entre 11 e 14 de maio de 1999, foram realizadas na Câmara Municipal de
Alcântara discussões públicas com ampla participação de autoridades, associações voluntárias
da sociedade civil e atingidos, alertando para os riscos dos deslocamentos compulsórios
e para seus impactos sociais14. Esse evento, denominado "Seminário Alcântara: A Base
Espacial e os Impasses Sociais", foi uma iniciativa do STTR de facultar aos representantes
dos povoados acessos aos direitos elementares sobre suas terras, sobre suas práticas de
uso dos recursos e sobre suas formas de organização social contempladas inclusive pelo
Art. 68 do ADCT. É apontado em inúmeras entrevistas dos mediadores como um
divisor de águas, que marcou a retomada da mobilização dos agentes sociais afetados
não mais como trabalhadores rurais, mas também como remanescentes de quilombo
que ocupam efetivamente as terras correspondentes às territorialidades específicas. Os
elementos de identidade étnica até então mantidos em estado latente, sob certa invisibilidade
social e desprezados pela ação fundiária oficial, tornaram-se públicos, denotando que os
remanescentes de quilombos manifestavam-se segundo uma existência coletiva. A condução
formal das mobilizações pelo STTR não foi vista como contradizendo a afirmação pública
e coletiva das comunidades remanescentes de quilombos. Nos meandros da ação sindical,
estaria implícita uma distinção entre identidade e ocupação, que não é vivida como
contraditória ou como incongruência, uma vez que ambas são referidas praticamente às
mesmas pessoas, sendo a primeira concernente aos quilombolas e a outra aos trabalhadores
rurais. Um dos resultados mais imediatos da emergência dessa nova forma de mobilização
foi a recusa conjunta dos povoados de receberem visitas dos técnicos do CLA para
operacionalizar medidas de deslocamento. A equipe técnica encarregada dos trabalhos
de "transferência e assentamento", que realizou visitas aos povoados no decorrer de
1998, era composta de dois veterinários, uma pedagoga e dois técnicos agrícolas, ou seja,
critérios de competência e saber considerados insuficientes e inadequados pelas operações
diretivas de reassentamento elaboradas por agências multilaterais e universalmente acatadas.
Em decorrência, os povoados de Mamuna, Brito, Itapera, Baracatatiua e Caiuaua não
aceitaram os termos da propalada "transferência" e os povoados de Itapuaua, Murari,
Esperança e Cajitiua recusaram que os recursos naturais sob seu controle, considerados
escassos para o atual contingente demográfico, servissem de área de destino ou de
assentamento para as centenas de famílias com deslocamento compulsório previsto.
No final desse mesmo maio, a empresa Kohän-Saagoyen Consultoria &
Sistemas apresentou, por solicitação da Infraero, um Relatório de Impacto Ambiental do
Centro de Lançamento de Alcântara. Várias entidades e associações voluntárias da
sociedade civil questionaram os resultados, porquanto a área era tratada praticamente
como vazio demográfico15.
Em 07 de junho de 1999, a Portaria nº 007 do Ministério Público Federal
instaurou Inquérito Civil Público para o fim de apurar possíveis irregularidades verificadas
na implantação do CLA. Ao considerar que as ações de remanejamento afetam "as
comunidades negras rurais, remanescentes de quilombo", essa Portaria preconiza providências
no sentido de "verificar a existência de estudos relativos às comunidades que se encontram
nas áreas destinadas ao CLA, máxime no tocante ao componente étnico".
Foram agendadas para fim de julho as primeiras audiências públicas a serem
realizadas em Alcântara e São Luís. O Ministério Público Estadual, o Iphan e o MPP56
Alfredo Wagner Berno de Almeida
UFMA assinalaram, entretanto, inconsistências no EIA/Rima, sobretudo aquelas relativas
às relações antrópicas e à recusa em incorporar os fatores étnicos. O Ibama agendou, então,
para 18 e 19 de novembro, as novas datas para as audiências públicas. No dia 10 de
novembro, no entanto, foi ajuizada Ação Civil Pública pela Procuradoria Geral da República,
atendendo ao pleito de entidades como o STTR de Alcântara e a Federação dos
Trabalhadores na Agriculutra no Estado do Maranhão, Fetaema, objetivando suspender o
processo de licenciamento ambiental do projeto do CLA. Em seguida, uma liminar expedida
por Juiz Federal da Seção Judiciária do Maranhão suspendeu as audiências públicas já
agendadas. Em dezembro, uma reunião da Infraero com os representantes dos povoados
dos atingidos pelo CLA concluiu pela realização de novas pesquisas para caracterizar as
comunidades remanescentes de quilombos16.
Os antagonismos em pauta foram ganhando novos contornos e o grau de
contrastividade étnica parece estar aumentando com os desdobramentos do conflito. O
processo de territorialização, mantido sob uma invisibilidade jurídico-formal, tornou-se
público em polêmicas que se sucedem, ressaltando os elementos de identidade étnica em
jogo e envolvendo a aplicação do Art. 68 do ADCT. A identidade de remanescentes de
quilombos passou a caracterizar a interlocução com os organismos governamentais,
demonstrando outras dimensões assumidas pelo conflito.
Em 16 de agosto de 2001, tendo o Centro de Justiça Global como peticionário
principal, foi encaminhada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sediada em
Washington, D.C., EUA, denúncia de "desestruturação sociocultural e violação ao direito
de propriedade e ao direito à terra" de comunidades remanescentes de quilombos, atribuindo
responsabilidades aos Estados brasileiro e norte-americano signatários do Acordo de
Salvaguarda Tecnológica17, que prevê o uso do CLA, firmado entre estes dois países em 18
de abril de 2000 e ora em tramitação no Congresso Nacional para fins de apreciação e
posterior votação em plenário. Os peticionários, referidos às comunidades de Samucangaua,
Iririzal, Só Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha, entre outras, se apresentam
nessa petição como referidos a "um mesmo território étnico". Nessa mesma data, em que
apresentaram denúncia contra o Estado brasileiro, encaminharam também outra petição
baseada nos mesmos fatos contra o governo dos Estados Unidos da América18.
Ao adensamento dos conflitos sociais em Alcântara, acrescente-se uma
intensificação das intervenções na estrutura fundiária, provocando em uma década
transformações que têm afetado radicalmente a estabilidade que aquelas mencionadas
territorialidades específicas lograram alcançar em quase dois séculos de existência.
Num breve retrospecto dessas ações fundiárias oficiais da última década, podese adiantar que quase 66% do município de Alcântara foram alcançados por elas. Além da
ação desapropriatória por utilidade pública, de 1991, compreendendo 62.000 hectares,
registram-se duas ações de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária:
a primeira, decretada em 10 de junho de 1996, incidindo sobre o imóvel denominado
Portugal e abrangendo 2.025 hectares; e a outra, decretada em 20 de janeiro de 1994,
compreendendo os imóveis denominados Bituba, Chapada, São Francisco, Santa Maria e
Perimirim, com área de 4.111,6080 hectares 19. O Incra procedeu a levantamentos numa
terceira área correspondente ao que denomina de Gleba Santo Inácio, com 1.534 hectares,
mas o processo deixou de tramitar e teria sido arquivado.
57
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Vale acrescentar ainda as duas áreas sob atuação direta do Iterma, desde 1996,
para fins de regularização enquanto comunidades remanescentes de quilombos: uma, na
região de Itamatatiua, abarcando pelo menos 5.191 hectares, e a segunda em São Raimundo,
correspondente a 547,42 hectares20. Cabe mencionar, finalmente, as ações discriminatórias
em curso. Considerando que a superfície de Alcântara equivale a aproximadamente 1.114
km2, tem-se o percentual acima mencionado.
A intensificação de sucessivas intervenções na estrutura fundiária, num breve
período de tempo, faz com que os fatores étnicos, elididos historicamente nas intervenções
governamentais, comecem a ser ressaltados na imediaticidade das tensões e dos conflitos
diante da ação do Estado. A memória de uma situação comum, ligada a territorialidades
bem delimitadas e a certas tradições e modos de vida simbolizados pela alusão freqüente às
chamadas roças, surge reatualizada nos atos afirmativos de elementos identitários que
persistem por longo tempo na consciência coletiva. A etnicidade se expressa também pelo
conjunto de estratégias voltadas para a manutenção do território, incluindo-se a defesa do
estoque de recursos naturais imprescindíveis para a reprodução física e social das comunidades
remanescentes de quilombos. Expressa-se ainda pela recusa explícita dos deslocamentos
compulsórios, que prenunciam uma desestruturação das comunidades e desse sistema de
uso comum secularmente engendrado, porquanto referidos a recursos escassos que uma
vez afetados inviabilizam a mencionada reprodução física e social.
A perícia antropológica ora apresentada foi produzida no bojo desse conflito
manifesto e deriva de providências decorrentes das medidas adotadas pela Procuradoria
Geral da República a partir da Portaria nº 007, focalizando o processo de territorialização
que consubstancia a citada mobilização étnica e suas vicissitudes.
58
Muralhas e paredões
As ruínas das casas-grandes e dos engenhos
como fator de identificação das comunidades
remanescentes de quilombos
"Estão os paredões mesmo lá. Quando os brancos foram embora
deixaram os paredões. Não puderam levar. Eu acho que outra coisa não
tem mais e os pretos velhos ficaram trabalhando pelas terras, espalhados
pelos matos." (L.A. 20/04/2002-ENT. 21-referência a Camarajó)
O que se observa de mais peculiar e aparentemente mais paradoxal no
processo de territorialização ora examinado é que a análise explicativa da afirmação
das características das comunidades remanescentes de quilombo passa pelo seu
contrário, através da arqueologia das fazendas de algodão e dos engenhos. Tomada
a M. Foucault, essa modalidade de descrição arqueológica (Foucault, 1972:167)
reinterpreta os métodos usuais de investigação científica, deslocando a análise para o
que ficou à margem da história político-administrativa, para o que foi considerado
residual e para o que contrariou disposições jurídico-formais. Para tanto, relativiza o
peso das fontes documentais e arquivísticas oficiais e recusa uma interpretação
historicista que se desenvolva linearmente do passado para o presente, explicando-o.
Refuta, nesse sentido, a monotonia da historiografia oficial e os esquemas
interpretativos dos comentadores regionais, que consagraram a opulência das casasgrandes e dos engenhos de Alcântara, perpetuando-a, através da monumentalidade
das ruínas, para além das contingências de sua existência efetiva. Consoante essa
descrição arqueológica, as ruínas dessas fazendas podem ser lidas sociologicamente
como resultado da contradição entre quilombo – enquanto processo de trabalho e
de moradia absolutamente autônomo, livre de qualquer submissão e sustentado
fundamentalmente por unidades de trabalho familiar que cultivam principalmente
gêneros alimentícios – e a economia escravista de agricultura tropical, com grandes
estabelecimentos apoiados no trabalho escravo, no monopólio da terra e na
monocultura. Nos seus desdobramentos, essa abordagem privilegia uma análise crítica
das representações, discursos e práticas produzidas por membros das comunidades
remanescentes de quilombo, bem como possibilita uma reinterpretação de seu campo
de relações simbólicas. Está-se diante de uma aparente inversão, que focaliza
empiricamente as ruínas das fazendas como concorrendo de maneira positiva para a
coesão social dessas mencionadas comunidades, cuja trajetória histórica consiste
justamente na negação da economia escravista, seu oposto simétrico. Diferentemente
de outras regiões, a noção de monumento1 aqui é inteiramente revista e não se atém
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
ao que seriam as ruínas de possíveis edificações relativas aos próprios quilombos,
porquanto são outras as ruínas que estão em jogo. Isso certamente consiste numa
especificidade da situação de Alcântara, na qual a noção de monumento escapa das
auto-evidências, que envolvem o patrimônio material, e, desdizendo-as de maneira
radical, estabelece uma conexão algo invertida entre as ruínas dos grandes estabelecimentos
agrícolas e a consolidação das comunidades remanescentes de quilombo. A ênfase nessa
conexão ultrapassa os procedimentos usuais de perícias que giram em torno de "provas
materiais" e "evidências", direcionando as observações para os aspectos relacionais. Ultrapassa
também a forma de colocação dos problemas pela abordagem historicista, para a qual
pareceria um absurdo considerar "ruínas de casas-grandes" como elemento do processo
de consolidação das comunidades remanescentes de quilombo, já que uma suposta "alteração
da seqüência dos fatos objetivos" conspurcaria o sentido histórico-monumental das ruínas.
Ora, na situação examinada, está-se diante de uma contradição mais aparente que real.
Assim, a relação privilegiada nesta perícia, através da descrição arqueológica, recoloca os
termos do problema e parte do tempo presente em que tais comunidades fixam, inclusive,
estratégias para preservar o que aparentemente seria o resíduo do patrimônio material
edificado originalmente por seus antagonistas históricos.
Em outras palavras, pode-se asseverar que um dos componentes da gênese
do processo social de construção da identidade quilombola em Alcântara estaria nas ruínas
das casas-grandes e dos engenhos. Essas ruínas das benfeitorias das fazendas, bem como as
terras e o próprio nome das famílias dos antigos senhores ou da "aristocracia rural", como
define Lopes (1957:18), ou ainda da "aristocracia alcantarense"2, como classificaria Viveiros
(1975:109), permanecem hoje sob controle absoluto de descendentes de famílias de escravos.
Araújo, Araújo Cerveira, Sá, Ribeiro, Cerveira, Coelho, Viegas, Morais, Ferreira, Diniz,
Serejo e Silva, antes de designarem a nobreza3 e os sesmeiros, tal como consagrados na
documentação do período colonial, designam hoje as famílias dos povoados de descendentes
de escravos que se consolidaram com a derrocada econômica e a desagregação dos diferentes
estabelecimentos rurais4 (algodão, cana-de-açúcar, gado). A onomástica dos moradores
dos povoados revela que os antigos senhores de escravos tiveram seus nomes de família
arrebatados pelos seus ex-escravos. Os patronímios aristocráticos, tal como as terras e as
ruínas, foram conquistados pelos moradores dos povoados nessa situação conflitiva de
desagregação das fazendas, em que se afirmaram antes como unidades de mobilização do
que como unidades afetivas. Nesses agrupamentos, estruturaram-se relações de parentesco,
de afinidade, de amizade e de vizinhança, em torno da distribuição e do uso comum dos
recursos, resultando em vínculos solidários coextensivos à formação do povoado, enquanto
uma comunidade potencialmente política que transcende, em certa medida, o grupo local
de descendência de três ou quatro gerações.
De igual modo, as antigas denominações das fazendas, registradas inclusive
nas expedições e solicitações de confirmação de datas de sesmarias, nos registros
paroquiais, após a Lei de Terras no 601, de 18 de setembro de 1850, e na documentação
cartorial, correspondem, no momento atual, tão-somente àqueles povoados. As
comunidades remanescentes de quilombo aí constituídas compreendem territórios de
parentesco5, intrínsecamente articulados, que foram erigidos nessa dinâmica de múltiplas
conquistas: das terras, dos nomes de família, das denominações das fazendas e dos
60
Alfredo Wagner Berno de Almeida
símbolos ruiniformes do que outrora estava sob o poder dos senhores de escravos, de
plantações e de engenhos. Os pertencimentos familiares conquistados e a construção de
relações solidárias em terras de livre acesso funcionaram como fatores de consolidação
do ideal de autonomia subjacente à identidade quilombola. As terras das antigas fazendas,
suas denominações, os nomes de família dos antigos senhores de escravos e as ruínas
convergem, cada um a seu modo, para o processo de territorialização étnica.
Os quilombos e a luta simbólica pelas ruínas
A dicotomização entre a civilização e os selvagens ou entre os denominados
brancos e os chamados negros6, considerando indissociável a relação entre raça e cultura,
tão cara ao pensamento colonialista e justificada através das ideologias do racismo e do
progresso material das metrópoles, foi deslocada nesse processo e perdeu sua força explicativa
no tempo. A tendência continuamente expansionista, inerente à idéia de civilização dos
colonizadores – manifesta principalmente pelas inovações tecnológicas em engenhos
(hidráulicos, a vapor), nas máquinas de descaroçamento de algodão e nas máquinas de
descascar o arroz – foi abrupta e duramente interrompida em Alcântara. As técnicas de
produção em larga escala, que inovavam os empreendimentos monocultores, e que vinham
acompanhadas do conhecimento botânico das novas espécies e da capacidade de transferir
sementes7, não foram aplicadas em toda sua extensão e profundidade. A descontinuidade,
em fins do século XVIII e início do XIX, atribuída à extinção da Companhia Geral do
Grão-Pará e Maranhão e à flutuação dos preços do algodão, acarretou a derrocada dos
grandes estabelecimentos agrários e criou condições objetivas para a emergência de uma
economia camponesa. A expansão dessa economia de base familiar foi interpretada como
"decadência" e "regressão" pelos comentadores regionais, já que invertia a tendência
expansionista dominante. O evolucionismo implícito nessa interpretação enfoca as ruínas
de Alcântara como símbolos do que chamam de "idade de ouro do Maranhão" (Almeida,
1983:61-70). Assim, de acordo com a explicação evolucionista, enquanto a ideologia do
progresso assinalava os primeiros passos em direção a uma economia de transição para o
trabalho assalariado, em Alcântara teria ocorrido uma "regressão". A emergência das
territorialidades específicas antes citadas com a consolidação das comunidades remanescentes
de quilombo seria vista, desse prisma, como produto de uma involução.
As próprias narrativas míticas dos entrevistados, no decorrer dos trabalhos
de perícia, invertem, entretanto, os termos daquela dicotomização ao acionarem, de maneira
positiva, como fator de legitimidade de seu modo de viver e produzir, essas mesmas ruínas
dos engenhos e casas-grandes e os demais destroços das fazendas abandonadas. Trata-se
de uma disputa pelos elementos simbólicos, que quebra o corte simplificador da coleta de
vestígios da cultura material. O poder de se apropriar das vantagens simbólicas associadas
à posse das ruínas legitima o oposto simétrico das grandes plantações monocultoras baseadas
no trabalho escravo, isto é, as comunidades remanescentes de quilombos, cuja forma de
utilização da terra baseada em unidades familiares autônomas, livres e praticando um sistema
de uso comum dos recursos naturais, passa a articular os diversos povoados. Antes de
serem um vestígio do passado ou uma forma de retorno a uma economia natural, tais
61
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
características passam a representar no presente uma perspectiva de futuro com liberdade
de decidir não apenas sobre o processo produtivo, mas também sobre seu destino. A
posse das ruínas, pelos remanescentes quilombolas, torna-as um marco distintivo da
autonomia de seus povoados, porque representa a evidência de que as fazendas não têm
mais "condições de possibilidade" (Bourdieu, 1992) de efetivamente existirem8, ao mesmo
tempo que comprova a rede de relações dos quilombolas que aí decidiram ficar. A
forma esqueletal do que foram as edificações elementares das fazendas, publicamente exposta
e constatável por uma arqueologia de superfície, sem qualquer necessidade de escavação,
concorre para atestar isso. Lado a lado com a vida cotidiana dos povoados, essas ossaturas
das fazendas certificam o longo tempo de existência deles. A datação das ruínas aqui
equivale ao reconhecimento da "idade" das comunidades remanescentes de quilombo e
consiste no correspondente ideal de sua certidão de nascimento. Torna-se quase impossível
distinguí-los temporalmente. Nas próprias narrativas dos entrevistados, a referência mais
recuada concerne ao tempo em que, segundo eles, "os brancos foram embora". A identidade
quilombola se afirma nesse processo de negação do seu antagonista histórico e as ruínas
tornam-se auto-explicativas em face das fazendas que não mais existem no município de
Alcântara.
Os entrevistados sublinham, em repetidos depoimentos, que os "brancos
foram embora" e descrevem essa partida sem qualquer eufemização dos efeitos de uma
fuga. Com a deserção, entretanto, os antigos senhores perderam, de modo efetivo, mas não
simbolicamente, o monopólio da identidade regional, que foi cristalizado pelos historiadores
consagrados e perdura nos seus compêndios. Certamente que esse monopólio dificulta o
advento de outras identidades concorrentes, porque as mantém sob um tipo de invisibilidade
social, característica de sociedades escravistas, e consiste num obstáculo ao pronto
reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo. Os comentadores regionais
focalizam tão-somente as ruínas, não se detendo naqueles agentes sociais e seus grupos
familiares que há pelo menos um século e meio constituíram povoados no seu entorno e
que delas não podem mais ser dissociados. Reconhecendo, implicitamente, que a "aristocracia
rural" se foi das fazendas, os comentadores resultam por desumanizar as ruínas, como se
pessoa alguma ali tivesse ficado. Redundante dizer que o fundamento dessa interpretação
reproduz o princípio de que o escravo considerado como "coisa" deve, como tal, estar sob
o domínio de alguém, sem direito a uma existência em separado. A invisibilidade, urdida
nos fundamentos racistas dessa interpretação, nega a possibilidade de existência, seja do
indivíduo, seja do grupo; como se aqueles que se autodefinem como pretos ainda não
estivessem no uso de sua liberdade plena, a despeito de ela já estar assegurada em termos
jurídico-formais desde o final do século XIX. Prepondera, sob todos os aspectos, a ideologia
da tutela. O fato de esta liberdade já estar reconhecida pelo Estado e gerar direitos parece
não ter sido incorporado pela historiografia oficiosa regional, que dobra a cerviz ao peso
de uma tradição aristocrática e de cunho escravista. Esse esquema interpretativo se insinua
nos meandros de uma luta simbólica de todo modo constantemente repetida e de difícil
superação. Entrementes, cabe considerar, e isto é o que se constata com o trabalho de
campo pericial, que as ruínas permanecem socialmente reapropriadas, e de maneira efetiva
pelas comunidades remanescentes de quilombo. Constituem um símbolo da ancianidade
do seu ideal de autonomia, e passam a figurar, juntamente com outros elementos identitários,
62
Alfredo Wagner Berno de Almeida
alusivos às relações antrópicas, às transações comerciais e simbólicas com outros grupos
sociais e às mobilizações político-organizativas como meios de garantia da persistência das
fronteiras étnicas, que consolidaram e fazem vigir as comunidades remanescentes de quilombo
em Alcântara.
O mapeamento das ruínas
Os resultados do malogro da economia escravista de agricultura tropical
evidenciam-se, pois, na paisagem rural de Alcântara onde se agigantam ruínas velhas em
demasia, escalavradas pela ação do tempo, e não se encontra uma sede sequer das antigas
fazendas de algodão, nem das casas de vivenda assobradadas dos estabelecimentos das
ordens religiosas, nem tampouco qualquer casa-grande restaurada que seja dos engenhos
de açúcar. Das antigas sedes de fazendas e das soberbas casas de engenho restam
escombros, escavações ruiniformes e pedras lavradas com vegetação revestindo quase
tudo onde outrora se assentavam os alicerces. Parafraseando Gilberto Freyre, no prefácio
à primeira edição de Casa-Grande & Senzala, com relação a casas-grandes do Nordeste,
pode-se asseverar que também em Alcântara casas enormes edificadas para atravessar
séculos começaram a esfarelar-se de podres por abandono e todo o fausto e toda a
glória, traduzidos pela ostentação de uma arquitetura arrogante e sólida, virou monturo
(Freyre, 1992:vii). Tais ruínas recebem a designação local atribuída às casas abandonadas
e em destroços, acompanhada pela categoria que designa os "senhores", qual seja: tapera
de branco. A expressão, no sistema de representação dos entrevistados, pode ser traduzida
literalmente como: vestígio de uma dominação que já acabou e que foi transformado em
símbolo legitimador dos povoados e das terras que lhes são correspondentes9.
Dos equipamentos das engrenagens dos engenhos restam fragmentos de tachas
de ferro fundido, de moendas, de caldeiras, de rodas hidráulicas e de tanques para depósito.
Ferros torcidos, cilindros quebrados, elos de correntes, bocas de caldeiras avariadas
misturam-se a cacos de cerâmica e de louças dispersos pela superfície, junto a muros de
pedra em desmoronamento. Entrelaçados pela vegetação densa e pelos cipós rasteiros,
jazem colunas de pedras das soleiras e pedregulhos dos alicerces. Esses vestígios das
engrenagens dos engenhos e do casario assobradado recebem a denominação genérica de
"ferros". Tudo mal ajustado ao avanço da natureza, aluindo-se.
Para ilustrar de maneira precisa a dispersão desses escombros e sua distribuição
pelo município de Alcântara, procedi, no decorrer do trabalho de campo, ao seu
mapeamento. Quando visitava os povoados, os moradores sempre me instavam a caminhar
até os escombros ruiniformes, que são denominados genericamente de muralhas e paredões.
Incentivavam-me também a percorrer as linhas delineadas pelas chamadas pedras de rumo,
mostrando-me as letras gravadas na sua face superior, como se estivessem me apresentando
a territórios específicos de delimitação indiscutível. De fato, elas balizam extensões
correspondentes às antigas fazendas e estão a pelo menos mais de século e meio controladas
efetivamente por um ou mais povoados de descendentes de escravos. Em virtude disso é
que a memória de sua localização exata é atributo, hoje, dos membros das comunidades
remanescentes de quilombo, não obstante não terem necessariamente em mãos a
63
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
documentação cartorial que delineava confrontantes e lindeiros. Eles, e somente eles, são
capazes de distinguir as pedras e recitá-las de cor, na seqüência devida, tecendo as relações
com o mundo circundante. Considerando os instrumentos críticos de observação etnográfica,
pode-se aduzir que esse tipo de conhecimento, antes que geográfico ou que uma memória
da "terra do outro", expressa um sentido de pertencimento, isto é, de narrar uma delimitação
física que hoje é coextensiva à sua maneira de existir socialmente. Quanto a isso, a antropologia
reflexiva permite asseverar que os limites empíricos das comunidades podem ser isolados
em sua descrição, representando traços distintivos da identidade e da regra de unidade do
grupo ao definí-lo de fora para dentro, isto é, a partir de suas divisões (Bourdieu, 1989:
113) e das relações nas fronteiras.
Em decorrência da aplicação desse preceito teórico, a partir das visitas às
ruínas, com as anotações respectivas, e com as informações obtidas em reuniões e
assembléias ocorridas nos povoados, durante o trabalho de campo pericial, montei dois
quadros demonstrativos. Um deles arrolando os povoados onde as ruínas referem-se
principalmente às fazendas de algodão e às fazendas que possuíam moendas, seja de
ferro, seja de madeira. Constata-se uma vasta rede de povoados referidos a tais ruínas,
abrangendo tanto o noroeste do município, com Itapuaua, Esperança e adjacências,
passando pelo nordeste, como Mato Grosso e suas pressões constantes sobre os povoados
das chamadas terras da pobreza, quais sejam Canelatiua, Retiro, Bom Viver e UruMirim, até alcançar Timbotuba (Timbotiua) mais no sentido centro-sul do município, no
coração da área privilegiada em fins da década de 1840-50 para a implantação de engenhos.
Incluí nesta listagem, dentre as denominadas taperas de branco, uma de
datação mais recente, a de Janã, que foi também utilizada como entreposto de compra de
amêndoas de babaçu e como local que centralizava a cobrança de aforamentos no breve
período em que ocorreu uma parcial retomada de terras encetada por um comerciante de
Alcântara e de Bequimão, o Sr. Antonino da Silva Guimarães10, sucedido por seu genro
Marcial Ramalho Marques.
Notas ao Quadro da página 65:
(1) Para um aprofundamento, consulte-se: Linhares, L.F. do R. Terra de Preto, Terra de Santíssima: da desagregação
dos engenhos à formação do campesinato e suas novas frentes de luta. Dissertação (Mestrado) - MPP-UFMA, São Luís,
1999. p 40-42.
(2) Para maiores informações, consulte-se: Cantanhede, A. Ladeira, Iririzal e Samucangaua: relatório de identificação.
Cadernos de Prática de Pesquisa. São Luís, MPP-UFMA, 1998. p. 15.
(3) Para outros esclarecimentos, consulte-se: Carvalho, S. M. O povoado Ladeira:uma situação de terra de preto. São
Luís, UFMA-GERU, 1998. p. 14-46.
(4) Expressão também registrada comumente no Jornal da Lavoura, que circulou em São Luís (MA) nos anos de 1875
e 1876, para se referir aos estabelecimentos também chamados “engenhos de açúcar”.
64
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Povoados onde foram assinaladas ruínas
de "casarões" e/ou moendas
Povoados
Denominações
locais das ruínas
Especificações
Cujupe
“paredões de pedra”
poço, “sumidouro”
Relato de moradores de Arenhengaua,
quando da reunião em que foram
discutidos os trabalhos relativos à
perícia.
Engenho
“tapera de branco”
“peças de ferro”, “cilindros
de ferro das moendas”
Relato de moradores em reunião
realizada em Peroba de Cima e em
Ladeira.
Esperança
“tapera de branco”
“paredão”
tanque, “sumidouro”
mangueiral.
Relato de moradores de Itapuaua,
quando mencionaram os chamados
“caminhos de escravos” e as “tocas”.
Flórida
“apera de branco”
“sítio velho”
“enormes pedras delineam o
que seria o alicerce” (1)
“pedras de rumo”
Relato de moradores de Flórida que
participaram de reunião em Peroba de
Cima no início dos trabalhos no
âmbito da perícia.
Iririzal
“tapera de branco”
Alicerces, mangueiral, “restos
de paredes de pedras
existiam até alguns anos atrás”
(2)
Relato de moradores de Ladeira, que
participaram de reunião em que foram
discutidos os trabalhos relativos à
perícia.
Janã
“casa do branco”
“antigo comércio”
“a casa acabou e foi feita
uma casinha em cima da
tapera"
sempre apontada como lugar
onde morava Marcial Marques
Ramalho, genro do grande
proprietário Antonio
Guimarães. Entre Janã e Rio
Grande há pedra de rumo.
Relato de moradores de Peroba de
Cima, Itapuaua, Ladeira e Vai com
Deus.
Ladeira
“tapera de branco”
“cemitério velho”
Mangueiral (3)
Relato dos moradores de Ladeira em
reunião realizada em abril de 2002.
“cacos de pratos, pedaços de
caldeirões de ferro, poço”
Relato de moradores de Mato Grosso e
de Canelatiua em reunião realizada no
decorrer dos trabalhos de perícia, no
pequeno próprio de Canelatiua.
Mato Grosso “paredões”
Murari
“tapera de branco”
“sítio velho”
-
Tajurará
“sítio velho”
Alicerce
Timbotuba
“casa de engenho” (4)
-
Timbu
“paredões”, “muralhas”
As ruínas desmoronaram
perto do lugar onde os
moradores de “Só Assim”
faziam seus cultivos.
Quem fala sobre as
ruínas e quando
Relato de moradores de Itapuaua e de
Samucangaua em reuniões para discutir
os trabalhos relativos à perícia.
Relato de participantes de
Samucangaua na segunda reunião em
Ladeira, em 08 e 09 de junho de 2002.
Referência assinalada por moradores de
Castelo, quando foram solicitados pelos
trabalhos de perícia a procederem a uma
reconstituição histórica da área.
Relato dos moradores da agrovila de "Só
Assim" referindo-se aos locais onde
plantavam antes de serem
compulsoriamente deslocados.
65
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Povoados onde foram assinaladas ruínas
de "engenhos" e "casas-grandes" ou "casarões"
Especificações
e estado atual
Quem fala sobre a
Belém (Bethlen) "paredões de pedra"
"engenho" e "casa grande"
Relatos memorialísticos dos que
hoje vivem na Agrovila Cajueiro,
referindo-se às marcas ruiniformes
da área onde viviam plantando e
pescando.
Cajiba
(Cajuhyba)
"paredão velho"
"casa de engenho"
Referência dos moradores de Cajiba,
quando descrevem traços distintivos
do povoado.
Camarajó
"paredão"
"ruína de engenho grande
com um pé de piquizeiro"
Relatos memorialísticos dos que hoje
vivem na agrovila de Novo Peru,
referindo-se à área onde viviam antes
do deslocamento compulsório.
Castelo
"já teve paredões,
mas foram
destruídos."
"alicerces de sobrado",
"poço de pedra"
Referência dos moradores de
Castelo ao relatar as evidências de sua
antiga ocupação.
Itapiranga
"paredão"
"desmoronaram
as paredes grossas e
retiraram as pedras"
Referência dos moradores de Baixa
Grande, Mutiti e Itapiranga à predação
das ruínas por estranhos ao povoado.
Jacaré
"grande muralha"
"perto da Norcasa estão
as paredes grossas"
Referência dos moradores de Jacaré,
também mencionadas por diretores
do STR de Alcântara.
Jerijó (Jirijó)
"muralha",
"tapera de branco"
e "sítio velho"
"já tiraram muita coisa,
Referência dos moradores de Baixa
escavando e procurando
Grande, Santo Inácio, Pavão, Jarucaia
tesouros enterrados, mas
e Conceição enfatizando a violação
tem uma parte da muralha em das ruínas por pessoas alheias aos
pé", "ferros"
povoados na busca de jóias e potes
de ouro supostamente enterrados.
Marmorana
(Tapera)
"tapera de branco"
"engenho"
Referência dos moradores de São
Raimundo I e Marmorana.
Mutiti
"paredão de pedra"
e"tapera de branco"
"engenho", "alicerces",
peças de ferro,
Mangueiral(2)
Referência dos moradores de Baixa
Grande, Itapiranga, Ladeira e Mutiti,
que também narraram estórias de
"potes de ouro", "baú de jóias" e
outros "tesouros" aí enterrados.
São Maurício
"paredão"
"na construção da estrada
Referência dos moradores de São
tiraram quase tudo", "ferros"(3) Maurício, São Raimundo,
Arenhengaua.
Santa Rita
"paredão"
"derrubaram paredão
para vender as pedras"
Referência dos moradores de Santa
Rita.
Traquaí
(Novo Belém)
"muralha"
Derrubaram para vender
as pedras em Bequimão
Informação de moradores de Oitiua.
Povoados
66
Denominações
locais das ruínas
ancianidade dos povoados (1)
Alfredo Wagner Berno de Almeida
No segundo quadro, concentrei as ruínas dos engenhos e compulsei, para efeito
de verificação da fidedignidade das informações coletadas, as edições de 1858 a 1861 do
Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial editado por Belarmino de Mattos, que
apresenta uma relação de todos os 13 engenhos que então ainda existiam em Alcântara e seus
respectivos proprietários. Todos esses engenhos que foram incentivados pela política de
soerguimento das plantações de cana-de-açúcar, no decorrer do governo provincial do alcantarense
Joaquim Franco de Sá, em 1846-47, localizam-se preferencialmente na freguesia do Apóstolo
São Matias, não se constatando um sequer na freguesia de São João de Cortes. Na freguesia de
Santo Antonio e Almas, cuja área correspondente foi desmembrada definitivamente de Alcântara
em 1935 e equivale ao atual município de Bequimão, há também cinco outros engenhos, que
não foram arrolados nos quadros demonstrativos, posto que se referem à situação das fazendas
da beira-campo, que se encontram fora do município de Alcântara e que passaram por
transformações sócio-econômicas não exatamente as mesmas. Dos 54 fazendeiros arrolados
nessa freguesia, tem-se que a metade era constituída de criadores. O total da população
correspondia a 6.000 pessoas, sendo que 1/3 foram classificados como escravos. A proximidade
dos campos naturais e de áreas de maior densidade de cocais propiciou aos estabelecimentos
dessa freguesia um certo tipo de desdobramento para as atividades de pecuária extensiva,
conjugadas com aforamento e extração da amêndoa do babaçu (Almeida e Mourão, 1975:12).
Notas ao Quadro da página 66:
(1) Excertos das entrevistas realizadas durante a consecução da perícia serão acrescentados às observações diretas no
transcorrer da análise, completando com maior rigor as menções ora apresentadas.
(2) O mangueiral, também chamado de "mangal", designa um conjunto de mangueiras centenárias que caracterizavam
a sede do engenho Mutiti. O mesmo termo aparece nas entrevistas com os moradores de Ladeira realizadas por
Aniceto Cantanhede (Cantanhede, 1998:12).
(3) Os "ferros" concernem a fragmentos e vestígios de objetos e instrumentos utilizados na transformação da cana-deaçúcar: tachas esféricas de ferro fundido, tachas de ferro estanhado, rodas hidráulicas, caldeiras, cilindros etc.
67
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Alcântara, 1861
Senhores de engenhos de açúcar
Nome do proprietário
Denominação do engenho
Dr. Alexandre José de Viveiros
Comendador José Maria Correia de Souza (1)
Tenente José Mariano de Mello
Comendador Manoel João Ribeiro
Cap. Raymundo Marianno de Araújo Cerveira e sua mãe
Coronel Severo Antonio d'Araújo Cerveira Filho
Dr. Carlos Fernando Ribeiro (2)
Capitão Euzébio Antonio Marques
Dr. João Franco de Sá e Major Thomaz Ferreira Guterrez
J. Baptista Gomes de Oliveira (Cajual)
Tenente-Cel. Manoel Gonçalves de Sá
D. Rosa Estella Ribeiro
São Maurício e Santa Rita
Piahuitá
Pery-mirim
(Cajuhiba)
(Tapera)
Castello
Gerijó
Santa Filomena
(arrendatários de Bethlem)
(Cajual)
(Mutiti)
Jacaré (3)
Fonte: Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial. Ed. B. de Mattos. 1861
Notas:
(1) O referido Comendador era casado com Francisca Isabel de Viveiros, irmã do senador Jerônimo José de Viveiros
que, por sua vez, era pai do Barão de São Bento, Francisco Mariano Viveiros Sobrinho, que contraiu matrimônio com
sua prima Mariana Francisca Correia de Souza, filha do Comendador, e passou a controlar o Engenho Piabitá. Além
desse engenho, possuía também o Kadoz, localizado em Viana, mais exatamente no Quarto Distrito de São José de
Penalva, que hoje corresponde aproximadamente a Cajari, que aparece na listagem de B. de Mattos e era considerado
um dos mais completos da região da Baixada.
(2) A propriedade dos engenhos parece acompanhar a divisão político-partidária em Alcântara, que separava, de um
lado, os pertencentes ao Partido Liberal (famílias Ribeiro, Franco de Sá e Araújo) e, de outro, aqueles vinculados ao
Partido Conservador (Viveiros, Gomes de Souza e Correia de Souza).
(3) Na freguesia de Sant'Antonio e Almas, o Almanack do Maranhão de 1863, editado por Belarmino de Mattos,
assinala os seguintes engenhos: Cajuiba, que só produzia aguardente e pertencia ao Comendador Alexandre José de
Viveiros; San Vicente do Centro, do tenente José João de Macedo; Igarapé-assú, do major João Duarte Alves; Pontal,
do Comendador José Ascenço Costa Ferreira; e San'Joaquim, de Luiz Ramos de Azevedo.
68
Alfredo Wagner Berno de Almeida
As informações utilizadas para a montagem destes quadros demonstrativos
foram também plotadas na base cartográfica11 anexa a este laudo, permitindo uma visão
mais completa de sua distribuição geográfica e dos contornos de sua posição em termos
topográficos. A localização sempre próxima a rios e igarapés ampara as referências constantes
de que a cada engenho correspondia um porto e contribui para reforçar o argumento de
que as comunidades remanescentes de quilombo, que passaram a desfrutar dessa posição
geográfica, viabilizaram-se economicamente nesses dois séculos com intensas transações
comerciais, abastecendo com farinha, arroz, carvão, peixes, frutas (murici, babaçu, bacuri...)
e óleos vegetais a capital São Luís.
Procedi à consulta de viajantes, naturalistas e engenheiros que estiveram em
Alcântara nesse período e apresento suas observações. Raimundo Gaioso, em fins do século
XVIII e início do XIX, já ressalta a produção de farinha em Alcântara diante dos demais
produtos: "a sua produção consiste em arroz, algodão e muita farinha" (Gaioso, 1970:162).
Henry Koster, o viajante inglês, em 1810, quando seu veleiro fez uma longa escala em São
Luís indo para a Inglaterra, visitou Alcântara. Suas impressões sobre o Maranhão ressaltam
que "o progresso aí foi menos rápido do que o de outro centros civilizados..."(Koster apud
Mello Leitão, 1937:53) e que a terra é extremamente concentrada. O coronel engenheiro
Pereira do Lago, visitando Alcântara, em 1819, chama a atenção para o fato de São João de
Cortes produzir exclusivamente farinha (Pereira do Lago, 1872:388). Em julho de 1819, o
médico e botânico K. F. P. von Martius e o zóologo J. B. von Spix, que integravam o séquito
científico da arquiduquesa austríaca D. Leopoldina, estiveram rapidamente em Alcântara.
Visitaram fazendas de Francisco Manuel Alves Caldas e mencionaram a produção das salinas
e a exuberância da vegetação no sul de Alcântara, no porto do Carvalho. Nem uma palavra
sobre a monocultura do algodão (Spix e Martius, 1973:250-251).
Não foram incluídas nestes quadros as ruínas menores, dispersas e fragmentadas,
complementares àquelas das sedes das velhas fazendas, mas que jazem isoladas e que se
referem a: uma "boca de poço em pedra", no caso de Marudá; um "cemitério dos brancos
que foi abandonado", no caso de área próxima a Ladeira; um poço de pedra de borda
arredondada, no caso de Frade; e aos currais de bois, que são laterais aos caminhos de
boiada que, indo para a beira-campo em Santo Antonio e Almas, passavam perto de
Pavão, Baixa Grande e Itaperaí. Pereira do Lago, em 1819, menciona as estradas reais, que
cortavam Alcântara, e J. de Viveiros, em 1954, recupera criteriosamente os caminhos da
boiada e aqueles dos correios, indicando que havia uma malha de ramais que eram extensões
das fazendas, ligando-as às áreas de pastagens e aos principais portos.
No mapa elaborado para fins desta perícia, para facilitar a leitura e o
entendimento da posição geográfica, procedi à classificação das ruinarias com três
referências elementares: ruínas de casas-grandes sem registros de engenhos ou moendas,
ruínas de engenhos de açúcar e ruínas de moendas conjugadas com casas-grandes.
Realizei uma distinção entre grandes plantações de algodão e de-cana-de açúcar e,
quanto a estas, entre os engenhos e as moendas. A leitura do mapa, conjugada com os
quadros acima apresentados, propicia a percepção das áreas onde se concentram os
engenhos e de forma coextensiva os povoados que se consolidaram a partir de sua
desagregação.
69
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
A fuga dos senhores de engenho e a recusa da tutela
"Até porque além das famílias serem mesmo negras, a grande maioria
tem descendência até dos escravos, como foi uma avó que morreu
com cento e treze anos. E as terras ficaram aí, os brancos foram
embora." (G.C. 19/04/2002 - ENT.16 - referência a São Maurício).
"Justamente nós temos ali os engenhos, já existem ali só os paredões
grandes. Eu trabalho e passo por lá este paredão chama de Timbu.
Está na beira do rio, está lá. Tem dois paredões medonhos lá. Todos
dois. Este paredão foi até encancelado pelo pessoal, que tinha gente
que queria esbandalhar, tirar pedra." (I.O. 16/04/2002 - ENT.12)
Na representação dos moradores dos povoados, não se percebe qualquer
nostalgia da proteção dos antigos senhores de escravos que abandonaram a região e que são
referidos por eles como os brancos. O sentimento de autonomia, que construíram no decorrer
dos últimos dois séculos e meio, dissocia radicalmente "cativeiro" e "proteção", ao contrário
do que sempre imaginaram os legisladores do período imperial partidários de uma abolição
gradual da escravatura (Viotti da Costa, 1998) como forma iludida de proteger os libertos12.
Pelas entrevistas, é possível perceber que recusam a "tutela benéfica" dos antigos senhores e
que alguns, inclusive, traçam historicamente a trajetória familiar sem referência exponencial à
escravidão. Não se vêem como órfãos de senhores que se foram, mas como sujeitos da ação
que os tornou livres, sem qualquer manifestação de vontade de que necessariamente estivessem
presentes os senhores.
O aquilombamento das ruínas significa, nesse sentido, uma ruptura radical
com a ideologia da tutela, ressaltando um processo de autonomia. Este é expresso
economicamente pela condição de libertos, entregues a si mesmos, vivendo e trabalhando
por conta própria. Autônomos nas decisões de como, onde e o que cultivar sem a
pretendida "capacidade administrativa" de senhores e feitores. Autônomos na esfera da
circulação, transportando diretamente em barcos à vela, que denominam bianas, sua
produção para o mercado consumidor da capital, sem a intermediação de companhias
de comércio que já não mais existiam desde 1778. Aliás, o trabalho por conta própria
não consistia numa prática desconhecida daqueles escravos que mantinham terrenos de
cultivo para o sustento de suas famílias. Autônomos em termos das festas religiosas ou
sem a presença de clérigos, cujas ordens foram expulsas desde 1759-60. Mediante essa
maneira de agir e de se verem a si mesmos sob uma aura de autonomia, colocam-se,
portanto, para além de qualquer tutela, seja do Estado, seja da Igreja, seja de senhores de
engenhos.
Mesmo nas situações concernentes à doação de terras a escravos e ex-escravos,
como foi possível observar noutra parte desta perícia, em que as narrativas míticas recuperam
aparentemente o mito do "bom senhor", o ideal de autonomia e não-submissão é sempre
enfatizado. Relativizam as doações que a historiografia regional acriticamente considera um
ato de benevolência do senhor bondoso e indulgente. Com base nesse princípio, eles vão
reescrevendo, com suas narrativas memorialísticas, a ruinaria e o abandono das fazendas de
70
Alfredo Wagner Berno de Almeida
algodão e dos engenhos. Deixam entrever uma ação senhorial descontínua, contingente,
além de devastadora e predatória, quase impossível de transmitir qualquer sensação de
amparo, de reprodução simples ou de atividade produtiva permanente. São muito
difundidas também, e vão reaparecer na análise das doações de terras a ex-escravos, as
menções ao endividamento dos senhores como uma das causas do abandono das fazendas13.
Ao reiterarem que os antigos senhores "não puderam levar" os paredões e as
muralhas, os entrevistados deixam transparecer episódios que a historiografia regional, no
seu fascínio não-disfarçado pelas "ruínas que atestam a extinta opulência" (Raposo, 1944:258),
acabou por desprezar. Em verdade, de certo modo, as ruínas teriam sido produzidas por
atos deliberados resultantes dos endividamentos contraídos pelos senhores e da baixa do
preço do algodão e depois do açúcar no mercado mundial. Elas evidenciam o malogro de
uma economia escravista baseada em grandes estabelecimentos agrícolas, dedicados à
monocultura, nessa região dos trópicos. Os depoimentos alusivos a como os "brancos
foram embora" fazem referências ao destelhamento das casas-grande e à sua demolição,
com as vigas do barroteamento dos soalhos e dos baldrames e demais peças de madeira
de lei sendo levadas pelos senhores, quando de sua retirada de Alcântara. O mesmo destino
teriam tido oratórios, imagens de santos, como no caso de São João Batista14, esculturas de
mármore, louças inglesas, livros que compunham pequenas bibliotecas dos membros das
ordens religiosas e o mobiliário colonial do casario assobradado das fazendas. As narrativas
indicam também que partes das engrenagens dos engenhos, como as caldeiras e demais
utensílios complementares (rodas hidráulicas, tachas de ferro estanhado e rodas de ferro
inglesas) foram desmontadas e vendidas para o Ceará e outros estados do Nordeste.
Os entrevistados, entretanto, alertam notadamente para o que não pôde ser
materialmente levado nessa dramática retirada, cuja descrição tem conotações aproximáveis
do saque e da pilhagem. Nos depoimentos coletados, tudo se assemelha a despojos de uma
ação espoliadora que objetivava não deixar nada para trás, senão pedra sobre pedra15.
Mencionam os bens imóveis em desmoronamento, tais como: as paredes de pedra –
excedendo a um metro de largura, que se erguem sobranceiras nos outeiros e nas
pequenas elevações não alcançáveis pelos terrenos alagadiços, designadas localmente
como muralhas e paredões –, os poços de pedra lavrada, os tanques e os alicerces.
Assinalam ainda elementos paisagísticos das sedes das fazendas, que tornam
os lugares onde se erguiam mais facilmente distinguíveis. A pretensão de nobreza desses
lugares é traduzida por plantas ornamentais da família das palmas, de estipe ereto, colunar,
que chegam a atingir 40 metros, e que simbolizavam o poder senhorial na Colônia e
durante o Império. Um exemplo seria a denominada "palmeira imperial" encontrada
junto às ruínas do Engenho Gerijó:
"...ainda existe uma palmeira imperial que era a planta lá do senhor.
Acho que ela tem uns vinte ou mais de vinte metros de altura. Ainda
existe lá no Gerijó." (V. 18/04/2002-ENT.14).
Outro desses elementos característicos da paisagem que envolvem as sedes
das fazendas são os mangueirais, conhecidos localmente também como mangais, que
podem ser encontrados junto a quase todos os chamados sítios velhos e taperas de
branco do município de Alcântara (Cantanhede, 1998:12,13).
71
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Referem-se ainda os entrevistados às chamadas pedras de rumo ou marcos
de pedra de cantaria, com inscrições e/ou letras na sua face superior, delimitando os
confrontantes das datas de sesmarias a serem confirmadas ou já concedidas pelo poder
real a nobres, fidalgos, cavaleiros de ordens e "homens de posse"16. As terras correspondentes
a cada imóvel rural eram delimitadas com esses marcos ou pedras de rumo, que definiam
ângulos, limites tríplices e pertencimentos. Elas foram igualmente reapropriadas e hoje balizam
as delimitações dos povoados, podendo incluir um ou vários deles consoante a
particularidade da desagregação da referida fazenda e da formação dos laços comunitários.
Importa frisar que as pedras de rumo originalmente delimitavam terras e que nesta dinâmica
de reapropriação pelas comunidades remanescentes de quilombo passam também a servir
de referências para a construção social do território. Nesse sentido é que foi afirmado
anteriormente que o processo de territorialização abrange múltiplas territorialidades
específicas que foram se constituindo segundo temporalidades próprias e diferentes, mas
convergindo, através de intensas conexões, para um território étnico.
Os detalhes dessas descrições e a habilidade em discernir os diversos tipos de
formas ruiniformes evidenciam a força da transmissão dessa versão nativa que, num debate
ideal, se contrapõe à história oficial, recolocando o sentido efetivo das ruínas. Ao coonestarem
esse tipo de saber histórico, as comunidades de cada povoado deslegitimam, de maneira
implícita, os antigos senhores como detentores do monopólio da identidade regional e
asseveram que têm mantido ininterruptamente sob seu controle absoluto, durante quase
dois séculos, vastas extensões de terras que somente por algumas décadas tiveram sua
exploração organizada pelos denominados brancos. Nessa ordem é que a versão dos
descendentes dos ex-escravos, circunstanciando de maneira pormenorizada a "fuga" dos
senhores, paradoxalmente nos autoriza a falar em aquilombamento das ruínas das casasgrande e dos engenhos.
As ruínas e o tempo livre
"Este era o paredão. Casa-grande, sim senhor. Casa-grande do feitor, o
preto apanhava aí, não tinha direito quase nem de comer. Quando a
sineta batia, cada um com sua colher ia caçar o que comer, se perder essa
hora, só de noite, batia a sineta... Belmiro, Francisco, Antonio, Pedro cada
um com sua cuínha, pegava aí, não tinha tempo de fazer nada, só
mesmo da carroça buscar madeira, mandioca aqui neste centro..." (U.A.S.19/04/2002-ENT.18)
Mostrando-me as ruínas do Engenho São Maurício, o entrevistado
sublinha a impossibilidade do tempo livre no regime escravista. Deixa transparecer uma
percepção de que a severidade da disciplina rotineira e a intensidade das tarefas impediam os
escravos de fazer alguma coisa para si mesmos e para os seus. Essa representação da escravidão
pela noção de tempo é resultado de uma longa experiência de aprendizagem em administrar,
através de longas jornadas de trabalho, a produção de bens essenciais e a distribuição social do
que for necessário à sobrevivência e à reprodução social.
72
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Através da categoria tempo livre (Elias et Dunning, 1994:129) é possível
compreender o processo de trabalho nas comunidades remanescentes de quilombo, bem
como suas representações sobre a vida social. Além de ser interpretada de maneira positiva, a
categoria tempo livre, realçando uma posição de liberdade e independência, representa um
traço distintivo em face da subordinação escravista de épocas pretéritas. O equilíbrio entre o
trabalho por conta própria e as atividades de lazer, numa ruptura com a noção de "coisa"
imposta ao escravo, resulta por reforçar no entrevistado a sua condição de sujeito e suas
formas de existência coletiva. Como sugere Elias, uma das determinações do tempo seria
a que faz dele um "símbolo social, cujo desenvolvimento acompanha o da vida coletiva"
(Elias, 1998:31). À desintegração progressiva da autoridade dos senhores de escravos e de
seus prepostos, corresponde a emergência de uma representação do trabalho, pelos membros
das famílias de ex-escravos, desvinculada de qualquer forma de subordinação. Os ex-escravos
passam a se constituir em indivíduos que governam a si mesmos, resistindo aos que insistem
em subordiná-los. Sua liberdade repousa em sua possibilidade de controlar de maneiras
diversas o acesso aos meios de produção, os seus meios de trabalho e o tempo equilibrado
entre o trabalho para si e as formas de entretenimento. A identidade quilombola é construída
sobre esse equilíbrio, redefinindo a geografia da dominação, articulando tempo e espaço
como livres do controle de terceiros. Assim, o campo de futebol localizado em meio às
ruínas evidencia um uso social determinado, simbolizando o lazer na área da antiga casagrande. Reagrupa as pessoas de uma forma distinta daquela das atividades produtivas.
Todavia, reforça os laços de solidariedade e de coesão social da comunidade por igual.
Percebe-se uma apropriação coletiva do espaço adjacente às ruínas, antigo lugar de trabalho
compulsório, para o exercício destas atividades de entretenimento dos moradores dos
povoados. Jogo de futebol, algazarra e batuque, quebrando com a rigidez do silêncio
imposto às senzalas, rompem com os gestos comedidos e com o falar baixo de quem
estava sendo sempre vigiado. Aqui também se constata a aludida inversão: o antigo espaço
físico da casa-grande sendo incorporado ao lazer dos descendentes dos escravos e tornandose um indicativo da autonomia de decisão que socialmente construíram. A rigor, aquele
espaço físico foi transformado numa característica do processo de territorialização étnica.
Mas não se deve confundir essa noção de tempo com sequências temporais
integradas num fluxo contínuo, como se as transformações fossem temporalmente lineares.
Há outros fatores que entram em consideração. Não são somente a idade de uma ruína,
a idade de um povoado ou a duração de certos processos sociais, como esse da
territorialização das comunidades remanescentes de quilombos, que devem ser levados
em conta. A percepção dos direitos étnicos, combinada com a conquista do tempo livre,
e a disponibilidade para consolidar os elementos identitários, que autorizam a identificação
étnica e justificam os direitos derivados, seja no lazer ou no trabalho, devem ser
considerados.
Os critérios político-organizativos e de mobilização, coextensivos à identidade
étnica e às reivindicações de titulação definitiva das terras das comunidades remanescentes
de quilombo, reconhecida pelo Art. 68 do ADCT da Constituição de outubro de 1988,
atualizam-se também nesses domínios de trabalho e lazer, consubstanciando a plenitude
da condição de sujeito conquistada pelos quilombolas.
73
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
A datação da fuga e das ruínas
"...dos brancos não sobrou nada, só os ferros velhos"(U.A.S.19/04/
2002 - ENT.18)
São várias as datas e diferentes as temporalidades que registram a saída de Alcântara
dos donos dos grandes empreendimentos agrícolas e os primórdios do desmoronamento das
suas respectivas benfeitorias. O tempo mais recuado concerne às ordens religiosas. Elas tiveram
seus bens confiscados e/ou transferidos ao Estado a partir de 1759, com os jesuítas, e
completando-se em termos jurídicos em1891, com os carmelitas.
A derrocada total das fazendas de algodão, a partir dos efeitos tardios da extinção
da Companhia Geral de Comércio, em 1778, se completa em 1819, com os preços do produto
indo ao fundo do poço no mercado internacional e com o agravamento dos débitos contraídos
pelos sesmeiros junto a comerciantes, na compra de escravos.
Os engenhos de açúcar com inovações tecnológicas, que foram incentivados
pelo governo provincial em 1847, não lograram êxito. No final da década 1860-70, já
estavam praticamente falidos, restando tão somente em Alcântara moendas de pequeno
porte. Tais engenhos jamais chegaram a engenhos centrais. Usinas, com índice de
industrialização semelhante àqueles da costa nordestina, não houve. Os engenhos se
concentravam na freguesia do Apóstolo São Matias.
Os criadores de gado que usavam os campos naturais do Tubarão e de Santo
Antonio e Almas (Bequimão) sempre estiveram ligados às grandes fazendas, abastecendoas, sobretudo quando o peixe escasseava, e fornecendo os animais-de-tiro para movimentar
as moendas e engenhos ou para o transporte das cargas. Ainda há vestígios próximos a
Jarucaia dos chamados caminhos da boiada, que constituíam as vias de comunicação dos
campos com os engenhos por onde eram conduzidos os rebanhos. Em Pavão e Itaperaí,
há evidências dos denominados currais de bois, caminhos estreitos de beiradas elevadas
de ambos os lados, cujas extremidades eram fechadas com porteiras, mantendo presas as
reses até o abate. Nas áreas próximas às fazendas, conforme os entrevistados de Baixa
Grande e Itapiranga, só existem poucas manchas de um tipo de pastagem, chamada paturá,
que não comporta rebanhos. Seriam pastagens fracas, suficientes se tanto para os animais
de tração das antigas fazendas e que hoje são utilizadas pelos bois-cavalos, de cada uma das
famílias dos povoados. Com a destruição das fazendas, essa articulação entre monocultura
e pecuária perdeu sua razão econômica. O criatório extensivo dos campos da Baixada
redirecionou seus rebanhos para as feiras de gado e para o abastecimento de núcleos urbanos
e principalmente da capital. Por outro lado, a atividade pecuária foi, de certo modo, redefinida.
Vaqueiros, que eram escravos domésticos das antigas fazendas ou que haviam sido alforriados,
passaram a cuidar, nos campos naturais, tradicionalmente abertos, do gado pertencente às
famílias de escravos e ex-escravos dos povoados recém-formados. Praticavam o sistema
chamado de sorte, ficando com percentuais das crias que variavam entre um quinto e um
quarto. Todas as informações disponíveis indicam que os escravos podiam possuir um
pecúlio17. Cada animal desse "novo" rebanho pertencia, pois, a uma família de escravos18,
daquelas que permaneceram – cultivando de maneira autônoma e residindo – nos povoados
74
Alfredo Wagner Berno de Almeida
que sucederam às fazendas. Os vaqueiros prestavam um serviço às famílias como um todo
e, no final do século XIX, há registros de que vieram a adquirir terras de seus antigos
senhores, no Engenho Mutiti (cf. P.S.-15/04/2002 - ENT.10), enquanto que famílias de
comunidades remanescentes de quilombo adquiriram posteriormente terras para seu gado
na beira-campo, mais exatamente em Boa Vista (Cantanhede,1998).
Diante desse quadro, percebe-se que os mecanismos repressores da força de
trabalho, desde fins do século XVIII, estavam fragilizados por demais nas fazendas, não
obstante as tentativas dos legisladores provinciais de reativá-los. Isso, em certa medida, responde
à pergunta de por que os senhores foram embora e não levaram ou venderam seus escravos,
inclusive para saldar seus débitos. Não o podiam mais. Isso distingue Alcântara de outras
regiões do Maranhão. Milhares de escravos foram vendidos e transportados do Vale do
Itapecuru para as fazendas de café do centro-sul do país19. Deve-se destacar que nesses diferentes
momentos de abandono das fazendas e da chamada "fuga" dos senhores, os quilombos já
usufruíam de um grau de consolidação razoável em Alcântara, debalde os esforços das tropas
de linha em combatê-los, e já era bastante elevado o número de escravos, produzindo por
conta própria e fora do alcance pleno dos mecanismos de imobilização. Certamente que não
há dados estatísticos oficiais disponíveis para corroborar isso, entretanto, compulsando as
informações arroladas no Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial, de 1861 –
editado por Belarmino de Mattos, que contava com colaboradores diretos em Alcântara –,
pode-se destacar que na freguesia do Apóstolo São Matias, incluindo a cidade de Alcântara,
assinalada por Mattos com visíveis sinais de abandono, os escravos constituíam mais de 55 %
da população, perfazendo 4.500 de um total de 8.000 habitantes. Na freguesia de São João de
Cortes, de 2.800 habitantes, tem-se que 800 são arrolados como escravos.
"Senhores de Engenhos", "Fazendeiros e Escravos": Alcântara 1860-61
Município
Freguesias*
Total
Alcântara
Apóstolo São Matias
8000
São João de Cortes
3600
Total
11600
FONTE: Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial. 1861. Editor Belarmino de Mattos.
NOTAS:
( * ) As freguesias de Santo Antonio e Almas, de São Bento dos Perizes e São Vicente Ferrer de Cajapió também
pertenciam à comarca de Alcântara, mas não foram aqui incluídas por referirem-se a uma área geográfica que
transcende aos objetivos do presente trabalho de perícia.
( ** ) Não houve qualquer registro de produção no Almanack de referência. O único registro sobre a produção que
foi detectado refere-se a 20.000 arrobas de açúcar na freguesia de São Matias.
75
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Os registros de produção assinalados referem-se tão-somente ao açúcar dos
13 engenhos antes citados. Nada há sobre os 50 "fazendeiros" e as demais informações
disponíveis no mencionado Almanack enfatizam tão-somente os plantios de mandioca e
o fabrico de farinha em todo o município. Na área de Raimundo Sú, a exemplo de São
João de Cortes, "quase que cultivam exclusivamente a mandioca e exportam alguma farinha"
(Mattos, 1861:34). Quanto à cidade, registra o seguinte:
"Hoje está meio abandonada, com as casas desertas e as ruas nuas de
viandantes. Só nos dias festivos é que se lhe nota vida e animação." (Mattos,
1861:24) (g.n.)
A datação das ruínas das fazendas das ordens religiosas
No caso das ordens religiosas, há copiosa documentação em virtude de
questões judiciais entre a Igreja e o Estado desde 1759 até o fim do padroado, em 1883.
Para efeito de síntese, realizei uma reconstituição concisa sem qualquer pretensão de
estabelecer periodizações. A despeito da abundância das fontes documentais e arquivísticas,
não consegui obter maiores dados sobre a fazenda da ordem religiosa chamada Terra Santa,
cujo arrolamento de 1877 dizia tão-somente: "huma fazenda na paróquia de São Matias em
Alcântara" (P. Silva, 1922:419), consoante registro do Bispo do Maranhão D. Francisco Paula
e Silva, publicado em 1922. Sobre ela também não consegui informações locais através de
técnicas de história oral e de entrevistas provocadas.
Coligi dados, principalmente, sobre as fazendas das ordens religiosas e
irmandades e passo a descrevê-los numa sequência cronológica.
Companhia de Jesus
Os jesuítas tiveram seus bens confiscados na governação pombalina20 e
abandonaram seus estabelecimentos agrícolas em Alcântara em 17 de junho de 1760
(Viveiros, 1977:41). Nem bem tinham saído e o desmonte de suas benfeitorias foi iniciado.
Joaquim de Mello e Póvoas, governador e capitão-geral do Maranhão, propôs à metrópole,
em 1761, que da casa da Companhia de Jesus em Alcântara se procedesse ao
"aproveitamento da telha e mais alguma coisa nas obras do paço
governamental de São Luis, que ele remodelou e proveu de mobília e
algumas alfaias." (Lopes, l957:285).
Quanto às fazendas, cabe assinalar que os mordomos régios tiveram
dificuldades de vender o Engenho São Bonifácio. A Fazenda Pericumã, segundo Lopes,
“deu origem ao povoado de São Lourenço" (Lopes, 1957:286). A Fazenda Gerijó, ainda
segundo Lopes:
76
Alfredo Wagner Berno de Almeida
"foi passando de mão em mão até chegar à do dr. Carlos Fernando
Ribeiro, Barão de Grajaú, que lá instalou uma usina de açúcar das mais
adiantadas do seu tempo, mas obcecado pela política, nesta dissipou
grande parte de sua fortuna. Dia chegou em que se viu na contingência
de desmontar o belo e rico engenho para com uma parte do
maquinário montar em São Luis uma fábrica destinada a descaroçar
algodão e pilar arroz."(Lopes, 1957:286).
Numa mesma fazenda, cada ruína se ergueu sobre a anterior, encadeando
uma série de sucessivos malogros econômicos, tanto com o algodão21 e as moendas de
madeira em finais do século XVIII, quanto na produção de açúcar bruto através dos
engenhos, no último quartel do século XIX. Numa arqueologia de superfície, tem-se
reatualizados os símbolos correspondentes na diversidade do que chamam de "cacos"
(louças, cerâmicas, vidros) e "ferros" (caldeiras, rodas, tachas).
Os entrevistados de Pavão, Santo Inácio e Baixa Grande descrevem o estado
atual destas ruínas:
"No Gerijó os alicerces ainda tem, ainda existe alicerce, ainda tem o
poço, um poço muito grande também aí que entupido, mas ainda
tem uma fundura boa e ainda se encontra algum material por lá, ferro
de engenho. Pelo menos umas bocas de baixo das caldeiras que tinha,
isto aí ainda se encontra ainda por lá." (V. 18/04/2002 - ENT.14)
"...a fazenda dele era ali no Gerijó onde tem hoje as muralhas... os
marcos estão lá, os casarões acabaram." (P.F.C. 12/04/2002 - ENT.
01 - referência a Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú) (g.n.)
Em São João de Cortes, além de um colégio, os jesuítas mantinham uma
unidade de produção de anil. Obtinham uma matéria corante de cor azul violácea fornecida
pelo indigueiro, um arbusto tropical22. A fábrica tratava-se de uma manufatura onde se
produzia uma substancia corante extraída das folhas e chamada anil. Ela tinha aplicação
nas artes para tingir de azul. O azul índigo era por demais apreciado então na Europa
pela sua tonalidade forte, muito semelhante ao azul-violeta, o que facilitava sua exportação.
Os jesuítas treinaram escravos africanos e índios nas técnicas de processamento.
As benfeitorias dos jesuítas em São João de Cortes ficaram desde 1760 sob o
controle dos índios, abrigando inclusive escravos fugidos, dedicando-se principalmente à
produção de alimentos, sobretudo farinha, sob uma economia de base familiar. Os entrevistados
narram que os índios teriam doado as terras a São João Batista, que deixou livre o acesso a
quem delas necessitasse (M.L. 20/04/2002 - ENT. 22.2).
Os relatos do coronel engenheiro Pereira do Lago, visitando a região em
1819, reforçam este argumento da prevalência da pequena produção, invocando, entretanto,
as condições do solo e não exatamente as unidades de trabalho familiar:
"Esta povoação de índios é muito antiga, constava de 22 fogos e cousa de
90 a 100 almas; tem capela, mas não sacerdote, e o comandante é um
sargento. Plantam só mandioca, porque para mais nada serve o terreno."
(Pereira do Lago, 1872:388) (g.n.).
77
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Ordem dos Carmelitas Descalços
Embora franciscanos, carmelitas e mercedários tenham tido um tratamento
distinto daquele dado por Pombal à Companhia de Jesus (Mourão Sá, 1975), seus imóveis
rurais decaíram por igual século XIX adentro. O Convento da Ordem dos Carmelitas
Descalços, com suas três fazendas, incluindo-se Itamatatiua, uma olaria e muitas terras, a
partir de 1821, segundo A. Pratt, não teve mais condições materiais para manter seu
patrimônio. De acordo com a interpretação de Pratt:
"Desligada como se achava a Vigairaria Carmelitana do Maranhão do
seu tronco vital (...), sem meios para soerguer-se, só podia esperar
o seu extermínio". (Pratt, 1941:188).
Nas chamadas terras de Santa Teresa, centralizadas em Itamatatiua, onde
existe a capela da santa, foram registrados inúmeros quilombos, desde meados do século
XIX. Eles foram severamente reprimidos em 1837, mas não destruídos. As fazendas de
gado de Piracumã (Pericumã), do Tubarão e do Suassíu Cumã soçobraram lentamente e
foram desmembradas. A Ordem Carmelitana de Alcântara, em 1835, quando já não mais
controlava efetivamente suas fazendas, todas elas pontilhadas de povoados, doou seus
bens ao governo da província do Maranhão, conforme Anais da Assembléia Legislativa do
Maranhão em sessão de 23 de março de 1835.
Atendendo à determinação de Circular de D. Luís da Conceição Saraiva,
Bispo Diocesano e Visitador da Ordem Carmelitana, de 17 de novembro de 1868, o Frei
Caetano de Santa Rita Serejo procede a relatório circunstanciando os bens dos conventos e,
entre eles, o de Alcântara. Registra que o convento possuía 160 escravos e diz que as terras
da fazenda "Tamatatuba"(Itamatatiua) pouco podem produzir. Menciona as terras aforadas
e, sabedor de que nenhum religioso permanecia na área e que os escravos produziam
livremente, completa:
"Os escravos deste convento que sempre foram insubordinados e
desmoralizados, acham-se moralizados, contentes e satisfeitos".
(Serejo, apud Paula e Silva,1922:468,469).
Ordem de Nossa Senhora das Mercês
O Convento da Ordem de Nossa Senhora das Mercês e suas duas fazendas,
incluindo-se as terras de Sant'Ana23 e muito gado, viram tudo a perder durante as
primeiras décadas do século XIX. As terras onde foram erguidos o convento e a igreja
foram doadas aos mercedários pelo antigo donatário, Antonio Coelho de Carvalho. O
convento foi fechado em 1850, data do falecimento de seu último administrador. A
partir daí, os relatórios e ofícios sempre frisam que não há mais religiosos em Alcântara,
tendo sido a administração do convento entregue ao capitão João Vidal de Souza. Nas
duas fazendas havia então o registro de 84 escravos, que desenvolviam agricultura de
base familiar.
78
Alfredo Wagner Berno de Almeida
A fazenda de Sant'Ana, "com uma légua de frente e meia de fundo nos
centros de Santo Antonio e Alma", designada hoje como Terra de Sant'Ana, é limítrofe
com a fazenda Tamatatiua (Itamatatiua) ou Terras de Santa Tereza, da Ordem do
Carmo, e, de acordo com a "Relação de bens de raiz que possui a Ordem Mercedária
desta Província do Maranhão", de 05 de outubro de 1870, assinada por Frei Caetano
de S. Rita Serejo, administrador do patrimônio da Ordem, a outra fazenda trata-se de:
"Meia légua de terra nas costas da baia de Alcântara comprada pelos religiosos, na qual
tiveram eles uma olaria e hoje acham-se abandonadas". O referido administrador faz
menção a Alcântara, "cidade que a muitos anos decresce", ao "convento em ruínas" e à
igreja na qual, devido a desmoronamentos e aos reparos no teto, "não há decência precisa
para a celebração do culto divino"(sic).
No Parecer da Comissão do Convento das Mercês, datado de 12 de dezembro
de 1862 , encontra-se registrado que: "os conventos estão em estado de ruínas pelo
abandono (...) em Alcântara (...) o convento está em terra".
No que tange às fazendas, embora sem menção explícita a quilombos, como
no caso dos Carmelitas, cuja fazenda é limítrofe, os religiosos falam eufemisticamente em
"indisciplina". Assinalam o seguinte:
"As suas fazendas estão abandonadas, e nem fazem para o sustento
diário dos próprios servos, que vivem sem disciplina e alguns
miseravelmente...".24
No Ofício de 30 de setembro de 1863, da mesma Comissão, há um alerta de
que a igreja "de Alcântara está a desabar" e uma sugestão de que os escravos que estão no
Convento de São Luís sejam levados de volta às antigas fazendas. Os superiores da
Ordem, em portaria de 24 de janeiro de 1870, determinam que os escravos sejam
incorporados às fazendas da Ordem do Carmo.
Irmandade do Santíssimo Sacramento
A Irmandade do Santíssimo Sacramento teve a expedição de seu registro
paroquial, exigência da Lei de Terras de 1850, documentada no Livro de Registros no 20,
folha 18v., e datada de 30 de junho de 1856. A este tempo, os povoados dentro dessas
terras já se encontravam relativamente consolidados, muitos deles consistiam em quilombos
de escravos fugidos dos engenhos Mutiti e Itapiranga, que foram se deslocando para as
margens dos igarapés das cabeceiras do rio de São João (Periaçu). A abundância de moluscos
(caramujos, ostras e mariscos) e de diversas espécies de peixes propicia uma atividade de
pesca constante combinada com a agricultura familiar. Samucangaua, Aririzal (Iririzal), Itauaú,
Panamirim, Ladeira, Santa dos Caboclos, Flórida e Forquilha são assinaladas pelos
informantes como estando localizadas integralmente dentro dessa área, denominada terra
de santíssima, terra da santa ou terra de santíssimo25, ou sendo alcançadas parcialmente
pelos seus limites.
79
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Consoante observação de Shiraishi, construída a partir da leitura de Gaioso,
as cartas de sesmarias não implicavam necessariamente em afirmar que as terras estavam
efetivamente ocupadas e sob controle daquele que as requereu (Shiraishi, 1998b.:24). Assim,
embora estivessem de fato abandonadas e sob efetivo aquilombamento – e os relatórios,
ofícios e pareceres confirmam sobejamente isso –, as fazendas das ordens religiosas
continuam a ser objeto de inventariamento de bens e exame de comissões mais em virtude
de pendências com o governo federal26. Do mesmo modo que os detentores de antigas
cartas de datas e sesmarias ou os que adquiriram esses títulos, sem ter efetivamente o controle
das fazendas, à exceção dos engenhos beneficiados pela política de reativação das plantações
de cana do governo provincial de 1847, as ordens religiosas buscaram registrar suas terras
nos anos de 1854-57, atendendo tão-somente às disposições legais, sem ter em mira qualquer
exploração agropecuária de fato.
Territorialidade específicas
Nas terras das antigas fazendas das ordens religiosas, através de sua ocupação
efetiva por ex-escravos e quilombolas, foram construídas complexas redes de relações
sociais delimitando territorialidades específicas, que abrangem dezenas de povoados, e são
referidas tanto pelos que nelas vivem, quanto pelos circundantes, como terras de santo ou
terra santista, terras da santa, terras de santíssimo ou terras de santíssima. Essas
designações, numa referência empírica às mesmas áreas e num contexto de fatores identitários,
alusivo às auto-representações, coexistem com as denominadas terras de preto e terras
de caboclo. Antes mesmo de terem permanecido como patrimônios de ordens religiosas,
elas constituem, portanto, terras que foram de fato ocupadas por escravos, alforriados,
libertos pela lei de 1755 e escravos fugidos de fazendas, os quais, de maneira independente
ou através de aforamentos simbólicos, como afirma B. de Mattos (1861:34), aí construíram
sua autonomia social e econômica em face do poder senhorial.
Para efeito de ilustração, arrolei sete situações sociais27 hoje no município de
Alcântara assim classificadas e que permanecem de fato ocupadas, integrando o território
étnico reivindicado pelas comunidades remanescentes de quilombos.
80
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Terra de Santo, Terra de Santa e Terra de Santíssimo
Denominação
local
Divindade referida
Terra de Santo
Terra Santista
São João Batista (1)
Companhia deJesus
A Noroeste do município de Alcântara
São João de Cortes como povoado
principal
Terra da Santa
Santa Tereza (2)
Ordem do Carmo
Ao Sul do município de Alcântara
adentrando o município de Bequimão,
tendo como povoado principal Itamatatiua
numa rede que compreende mais de 30
povoados.
Irmandade do
Santíssimo
Sacramento(3)
Santana dos Caboclos, Samucangaua,
Flórida
Terra de Santíssimo
Terra de Santíssima
Instituição
pia ou religiosa
Povoados
-
Nossa Senhora do
Livramento (4)
-
Ilha do Livramento
Terra da Santa
Sant'Ana (5)
Ordem das Mercês
Barroso, Balandro, Juraraitá e mais uma dezena
de povoados no município de Bequimão,
fazendo limites com Terra de Santa Teresa
-
Santa Rita (6)
Ordem das Mercês
À Leste do município de Alcântara. Mamuna
-
São Lourenço
Companhia de Jesus
Antiga Fazenda Pericumã. (7)
NOTAS:
(1) As benfeitorias dos jesuítas em São João de Cortes ficaram desde 1760 sob o controle dos índios. Os entrevistados
asseveram que os índios doaram a terra a São João Batista. (Cf. M.L. 20-04-2002. ENT. 22-2).
(2) Cf. Convento Nossa Senhora do Carmo. Tamatatiua. Registro Paroquial expedido em 1857, Livro 01, folha 56.
Localizado no Arquivo Público do Maranhão.
(3) Cf. Irmandade do Santíssimo Sacramento. Registro Paroquial expedido em 30 de Junho de 1856, Livro 20, folha 20.
Localizado no Arquivo Público do Estado do Maranhão.
(4) Cf. Registro Paroquial expedido em 1º de Março de 1856, Livro 20, folha 10. Localizado no Arquivo Público do
Estado do Maranhão.
(5) O Convento Nossa Senhora das Mercês possuía duas fazendas em Alcântara, a mais conhecida é esta de Sant'Ana,
limítrofe com a de Santa Teresa, da Ordem dos Carmelitas Descalços.
(6) Cf. J.M.S, em 15-04-2002. ENT. 08. Informação obtida através de entrevista. Como não foram registradas menções
explícitas durante o trabalho de campo pericial, não posso assegurar que essa área corresponda, não obstante
posição geográfica similar, a "meia légua de terras nas costas da baía de Alcântara comprada pelos mercedários
na qual tiveram eles uma olaria e hoje acham-se abandonadas". Cf. Relação dos bens de raiz que possui a Ordem
Mercedária desta Província do Maranhão, 05 de outubro de 1870, firmada por Frei Caetano de Santa Rita Serejo.
(7) Fazenda da Companhia de Jesus, que foi confiscada em 1760, cuja localização está referida a Guimarães. Não se
confunde com o povoado de São Lourenço, localizado em Alcântara , próximo à estrada real que conduzia a
Guimarães e, daí, ao Pará.
81
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Em suma, pode-se afirmar que uma datação das ruínas dispersas pelo
município de Alcântara poderia ser estimada entre quase um século e meio, considerando
o malogro dos engenhos, e dois séculos e meio, tomando como referência a expulsão
dos jesuítas. As datas antecedem à abolição formal da escravatura, em até 129 anos, e
assinalam uma característica econômica intrínseca a regiões periféricas, que mesmo
com grandes plantações não lograram transformarem-se em complexos agrárioindustriais como no caso da costa nordestina, em que se constituíram as usinas de
açúcar. Em Alcântara, ao contrário do Nordeste, com a desagregação das fazendas,
prevalece um sistema econômico de pequenos produtores que incorporam a terra ao
processo produtivo mediante o trabalho familiar e cuja trajetória, em termos históricos,
remonta ao princípio de autonomia e às premissas étnicas dos quilombos. Esses marcos
temporais, ora fixados, datam concomitantemente a desagregação das fazendas e a
ancianidade das comunidades remanescentes de quilombo, que se acham imbricadas
nesta arqueologia das grandes plantações.
As diferenças culturais e as premissas étnicas
A despeito das relações de proximidade, inclusive geográfica, entre os
povoados onde se estruturam as comunidades remanescentes de quilombo e as ruínas,
percebem-se também situações de afastamento que marcam profundas diferenças e denotam
assimetrias.
Os povoados se constituem em terreno próprio, à meia distância das ruínas.
Algumas ruínas encontram-se mais próximas das áreas de plantio ou localizadas no
caminho que leva às denominadas roças, de que seriam exemplos: Timbu, Esperança,
São Maurício e Gerijó. Os moradores dos povoados não aproveitam paredes, muros,
pedras ou qualquer fragmento das ruínas para erigirem suas habitações. Aos olhos dos
moradores, eles parecem envoltos em estigmas. Evitam construí-las excessivamente
próximas das chamadas taperas de branco e dos paredões por considerarem as ruínas
como um lugar desolado onde seres sobrenaturais se manifestam visivelmente. Através
de ruídos estranhos, como o arrastar de correntes, sons de açoites, choro aflitivo de
crianças e imagens fantasmagóricas, eles apareceriam nas horas de pouca luz e,
principalmente, à noite. São considerados espíritos dos que já faleceram, que retornam
para "atentar". Os moradores utilizam o termo visagens para designá-los e os consideram
como podendo fazer o mal. Laís Mourão, que estudou mais detidamente esses fenômenos,
na região entre Bequimão e Alcântara, considera que essas visagens, também chamadas
vagantes ou assombrações, são atribuídas a espíritos ou "gente que morre e não vai
pra bom lugar porque não presta, deixou alguma falta ou pecado para pagar". (Mourão
Sá, 1974:21). Nesse contexto, sempre associado às violências praticadas contra escravos,
registrei repetidas referências a Ana Jansen que, nas narrativas populares do Maranhão,
representa o símbolo dos maus tratos e das crueldades senhoriais contra escravos28.
Considerei-as, porquanto os contos populares são também documentos históricos
(Darnton, 1996:26) e constituem matéria-prima de investigações antropológicas.
82
Alfredo Wagner Berno de Almeida
As taperas de branco constituem um domínio de transgressões onde as
visagens atentariam as pessoas para praticarem atos que violem as regras de convívio
social, tais como: matar, roubar, destruir. Próximo a elas estaria o chamado sumidouro, do
qual os entrevistados não apreciam falar. Trata-se de um instrumento de justiça privada, ao
qual são referidas crônicas de horrores. Citam, entre outros, um que havia em Cujupe,
outro na sede do município em Alcântara, ao lado da Prefeitura, e ainda outros em Esperança29
e no Engenho São Maurício. Quando os mencionam, fazem uso de meias-palavras, quase
baixando o tom de voz e deixando nos desvãos das entrelinhas possíveis explicações aduzidas
pelos interlocutores.
U. – "Do outro lado lá tem o resto do sumidouro. Matava, malandro tá lá. Essas casas
tudinho tinha sumidouro na antiguidade, todo tinha sumidouro.
A. – E o que era este sumidouro?
U. – É um paredão medonho, feito quase um buraco com tampão, que a boca tem essa
cava, tá vendo? (Faz um gesto de concha com as mãos).
A. – E lá no fundo é água?
U. – É não senhor, é seco.
A. – Mas havia alguma coisa lá no fundo?
U. – Não, só apodrece alguma coisa não é. Aí levava até lá,quando chegava um tempo
tirava a boca, tirava aqueles ossos e botava fogo. É assim que era." (U.A. S.- 19/
04/2002 - ENT.18)
As visagens fazem com que todas essas estórias sejam revividas. Trazem-nas
com seus horrores e inquietações.Todas as características atribuídas à figura do diabo, num
plano mais global (Mourão, 1974), estariam ali manifestas, inclusive aquelas que acenam com
riqueza fácil. Sim, todas as ruínas acham-se também envoltas em estórias de tesouros enterrados,
buracos feitos ao pé de grandes árvores, potes cheios de ouro a serem descobertos, algibeiras
com moedas reluzentes, caixas de jóias enfiadas nos paredões, arcas e baús repletos de prata,
escondidos sob o piso. Em outros termos, tudo aquilo que teria sido obtido de modo escuso
e que os brancos teriam esquecido de levar na pressa da partida. O esquecimento já é narrado
como uma espécie de punição.
Os entrevistados pontuam que o meio de recordar os atos sigilosos e de
descobrir os esconderijos vem através de uma forma inesperada, involuntária como a
revelação em sonho. Quem se empenha em querer descobrir de maneira intencional não
logra êxito, dizem ainda os entrevistados. O merecimento é inerente à qualidade da pessoa
e não às habilidades e à sofisticação dos instrumentos para escavar e desvendar esconderijos.
Nessas narrativas, quem quer e procura não acha:
"Tinha dois paus de arqueiro em frente assim da porta, que a porta era
esta (risca com o pataxo uma figura no chão batido da casa, indicandome a posição relativa da porta). Tinha mesmo dois paus de arqueiro,
não tem mais. E bem encostado da parede tinha um do lado de fora,
e tava lá, aquele pé de árvore, que eu não sei como foi aquilo ele botou
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
uma raiz e passou para dentro da sala velha do engenho e a raiz era de
muita grossura. Eu fui lá, olhei, observei. Então aquilo foi pra dentro
da casa, pra dentro da sala, mas só que dentro da sala tinha uma
mangueira dessa grossura maior. Tinha não, tem. E a raiz entrava,
tem uma raiz que indicava, aquela raiz. Debaixo daquela raiz tinha
um cofre que tinha muito ouro, muito ouro. Essa notícia vem de
longe." (V. 18/04/2002 - ENT.14)
"...eles entraram assim para dentro do paredão, meteram o facão assim,
comprido. Ele pegou numa pedra no fundo. Eles bateram o facão
assim, aquilo falava... eles ficaram com medo e vieram embora, nunca
mais foram lá. Aí ficou passando esta informação. O C. disse: Que
nada! Isto tem ouro, ouro se tira com máquina, a máquina vai levando
tudo.
Foi e derrubou pedaço do muro que tinha. Nada. Mas não era para
ele." (M. 18/04/2002 - ENT.14.1)
Os episódios narrados, aparentemente seriam mais um capítulo da contradição
entre os escravos e os senhores. No entanto, no universo das representações religiosas dos
membros dessas comunidades remanescentes de quilombo, diferentemente de um prisma
cristão ou de uma mera oposição entre o bem e o mal, entre o positivo e o negativo, entre
a ambição por riqueza e o desprendimento, entre a virtude e o pecado, haveria uma
ambigüidade nessas categorias, na qual as situações e pessoas só são definidas como boas
ou más contextualmente, existindo uma reversibilidade entre o bem e o mal (Mourão,
1974).
As ruínas, desse modo, mostram-se sujeitas a representações diametralmente
opostas, mas que não são vividas como contraditórias pelos membros das comunidades
em questão. A suposta incoerência só seria construída por intermédio de uma posição
etnocêntrica, de quem se encontra fora da dinâmica desse processo de transformação
social. Os moradores dos povoados temem os lugares visagentos, mas convivem com eles,
posto que fazem parte de seu sistema de representações religiosas e, por extensão, de sua
cultura e de seu patrimônio imaterial.
Sob essa dimensão das ambigüidades e suas variações, conforme os contextos,
haveria um outro ponto de convergência entre as ruínas e os lugares onde se escondiam os
escravos fugidos em Alcântara, que recebem localmente a designação de toca e correspondem
inteiramente ao significado de quilombo. As representações mágicas permitem associar
situações que tanto relativizam quanto podem estreitar os vínculos entre os opostos simétricos.
Está em jogo, mais uma vez, a mencionada reversibilidade:
"Belém era do Sr.Marçal, lá que os escravos se escondiam. A toca era o
lugar dos que fugiam e era o lugar dos encantados também. Lá eu não
passava depois de seis horas. Muita gente dizia que aparecia um prato
cheio de ouro. Era uma mina de ouro dos escravos, hoje são os paredões.
No rio de Bonos Ares muita gente viu cavalo de ouro, cachorro cheio de
ouro..." (J.S.-23/04/2002-ENT.26)
84
Alfredo Wagner Berno de Almeida
As narrativas míticas dos quilombos e das ruínas mantêm aproximações que
não são apenas simbólicas e religiosas, uma vez que podem ser traduzidas em medidas
delimitadoras de espaços simultaneamente históricos e sagrados, de todo modo essenciais
para a construção de uma identidade étnica.
Nada há de estranho, por conseguinte, no fato de as comunidades se mobilizarem
para que as ruínas não sejam destruídas. Em verdade, as ruínas enfeixam um conjunto de
símbolos diferenciados. Nesse contexto, que compreende os elementos relativos à identidade,
as comunidades atuam para defender a preservação das ruínas e inibir os transgressores que,
destruindo-as, destroem também um componente da memória do grupo.
"...bem ali é São Maurício que é a terra que domina todas estas terras aqui,
que estas terras são tudo nominada a fazenda São Maurício. Mas lá até casa
de engenho lá era usina São Maurício. Bem ali, pouco tempo depois
passou a estrada, desmancharam o paredão, levaram pedras para construir
casa em Bequimão, mas tinha ruínas lá até dez anos atrás aí no São Maurício
e aqui na Cajuiba, outro povoado logo depois,mais pra dentro...também
era casa de fazenda,lá ainda tem ruína, os pedregulhos ainda estão lá."(G.X.
19/04/2002 - ENT.16)
"...chegou na hora tinha justamente um paredão também que eu acho
que era uma coisa assim antigo, onde tinha essas coisas assim, e
justamente aqui gente tirou, vendeu as pedras antigas,
esbandalhou."(R.P.19/04/2002 - ENT- 19)
Sobretudo, nas últimas duas décadas, diante das tensões e conflitos com a
implantação da base de lançamento de foguetes, os moradores dos povoados têm passado
a perceber as ruínas como provas indubitáveis da ancianidade de sua presença. Falam
abertamente das depredações, citando os infratores30. Esboçam uma defesa oral em face
da forte pressão dos comerciantes de pedras para a construção civil e dos demais predadores,
que pode ser indicativa de um corolário dessa forma de percepção histórica, que está
ganhando corpo no contexto dos antagonismos que ameaçam sua reprodução física e
social. Mostram-se como artífices de uma forma de defesa das ruínas que explicita um
fator de etnicidade ou o sentimento positivo de pertencimento a um patrimônio cultural
determinado, que está sendo socialmente reconstruído e conservado por eles.
A dispersão das ruínas pelo município de Alcântara faz com que estejam
referidas a mais de uma centena de povoados, constituindo-se num dos planos de interrelações
entre eles. Nos dois quadros demonstrativos apresentados, são citados nominalmente 45
povoados como diretamente referidos às ruínas. Como os povoados se sucedem a pequenas
distâncias, por vezes inferiores a dois quilômetros uns dos outros, e o itinerário para os
locais de plantio e de coleta do babaçu distam um pouco mais, levando-os a transitarem
pelos caminhos e trilhas que ladeiam as ruínas, tem-se que o número mais que duplica.
Nesse sentido, o papel das antigas sedes de fazendas como centralizador ou ponto de
convergência de percursos e vias de comunicação resulta por ser reeditado de alguma
forma pela posição geográfica das ruínas e dos povoados formados em seu entorno. Elas
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
significam, ademais, uma similaridade de condição que aproxima os povoados e que lhes
confere uma certa unidade, sobretudo quando mais de duas dezenas deles acham-se referidos
às mesmíssimas ruínas, como no caso de São Maurício ou de Gerijó ou de Mutiti. Nessa
ordem, elas concorrem para sedimentar a noção de territorialidade, apoiada em características
vividas como comuns, senão iguais, ou que pelo menos os distinguem da mesma forma de
seus antagonistas históricos. A série de ruínas propicia essa representação mais ampla, que
transcende os limites de um povoado ou da comunidade local, dispondo as comunidades
remanescentes de quilombo, todas elas, num quadro mais abrangente e de intensa
solidariedade, semelhante a uma rede de relações sociais, que configura um aspecto
fundamental do processo de territorialização.
Os discursos e práticas relativos às ruínas concernem, sob esse aspecto, a uma
situação de conflito social em que os moradores dos diferentes povoados afirmam de
modo uníssono seu ideal de autonomia no processo produtivo, sua condição de ter o
tempo livre em oposição a quaisquer atos coercitivos e sua negação dos instrumentos
escravistas. Devido ao fato de sempre serem classificados como descendentes de escravos,
vêem-se compelidos a uma reexplicação contínua de sua condição e a uma relação estreita
com o passado e com os acontecimentos a ele referidos. A própria perícia consiste em mais
uma dessas indagações com pretensão classificatória, que suscitam esse tipo de modalidade
discursiva, conforme já foi assinalado anteriormente.
O que importa focalizar aqui é que o sentimento mais difuso de controle
sobre o que restou dos antagonistas históricos, como fato da vida cotidiana, ou seja, a
existência física das ruínas, é também uma forma de presencialidade do passado que agrupa
todas as diferentes comunidades em jogo. Através dela, as comunidades remanescentes de
quilombo são induzidas permanentemente a marcar diferenças diante de seus antagonistas
e a mobilizarem-se conjuntamente, reiterando suas premissas étnicas ou de grupo organizativo,
que perpassam diferentes domínios da vida social, sejam econômicos, religiosos ou políticos.
Em suma, pode-se asseverar que tais acontecimentos, que resultam nessas
ruínas, e as novas formas de apropriação coletiva que simultaneamente as têm redefinido,
constituem a pré-história do processo de territorialização das comunidades remanescentes
de quilombos em Alcântara.
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O domínio "original"
as terras de índio como terras de preto
Do que já foi sublinhado, cabe reiterar que a característica fundamental dos
pequenos produtores agrícolas, que habitam e cultivam na área declarada de utilidade pública
para a implantação do Centro de Lançamento de Alcântara e no seu entorno, é que
incorporam a terra ao processo produtivo mediante o trabalho familiar e se auto-representam
de maneira distintiva. A especificidade dessa condição reside no fato de que, além da
propriedade ou posse familiar, registram-se formas de apropriação comum da terra e dos
recursos hídricos e florestais. A terra é representada como um recurso aberto, acessível em
princípio a todas as unidades familiares, mas como um bem limitado, cujo uso comum é
controlado nos planos organizativos de cada comunidade e nas interrelações entre elas. O
trabalho, por sua vez, é visto como necessariamente livre, sem estar sujeito a qualquer
instrumento de coerção. O acesso aos recursos é disciplinado por princípios de cunho
preservacionista que, reconhecendo a fragilidade do ecossistema e a relativa escassez dos
recursos, orientam o trabalho familiar nas etapas dos ciclos agrícolas e extrativos. Constatase em todos os povoados visitados a prevalência de regras de rotatividade na utilização das
terras agriculturáveis. Os terrenos de cultivo são utilizados com no mínimo três anos de
intervalo e sua reutilização, num novo ciclo agrícola, pode não ser feita pela mesma unidade
familiar. Essas terras agriculturáveis, bem como os igarapés, os manguezais, os babaçuais,
os juçarais, as pastagens naturais e as frutas silvestres, que ladeiam o cordão arenoso das
praias, são vistos por eles como bens não sujeitos à apropriação individual em caráter
permanente e a sua ocupação e coleta obedecem a um conjunto de regras, consoante um
patrimônio cultural determinado que prevê formas peculiares de utilização. Assim, desbastam
os cocais, evitando destruí-los, ao procederem à queima dos restos vegetais nos terrenos
preparados para plantio, do mesmo modo que evitam colocar tais plantios junto às margens
dos igarapés e dos demais cursos d'água. Utilizam parcimoniosamente as reservas de mato
dos povoados, inibindo o desperdício e permitindo a retirada de madeira para construção
de embarcações e de casas e a retiradas de palha para cobri-las, bem como de mastros para
festas religiosas e de variadas ervas e plantas arbustivas com propriedades medicinais e para
uso cerimonial ou em rituais de cura. Por meio da cooperação simples entre as unidades
familiares, limpam regularmente as trilhas e caminhos que ligam os povoados uns aos
outros, limpam os chamados sítios ou centros de povoados, assim como os poços e
aguadas próximos. Conforme já foi assinalado, essas formas de uso combinam a apropriação
privada com o usufruto comum dos recursos naturais. As benfeitorias produtos do trabalho
familiar, como as edificações para moradia, os pomares e os diferentes cultivos, agrupados
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
sob a designação de roça, são apropriados e pertencem às unidades familiares que os
produziram. As transações mercantis envolvem apenas os produtos do trabalho agrícola,
do extrativismo, da caça, da pesca, da criação de gado para abate e das peças de artesanato
feitas com palha (cofos, abanos, piaçabas, meaçabas, cestos, tipitis), madeira (para esteio
das casas), barro (utensílios de cerâmica) e fios de algodão (redes), além do carvão produzido
com os restos vegetais dos terrenos de plantio. Os estoques de terras, correspondentes aos
povoados, são mantidos indivisos e de uso comum, baseados no consenso sobre os limites
e direitos do conjunto de famílias e de cada uma delas individualmente.
Tais características têm seus fundamentos mais nas interrelações do que
propriamente na formação histórica das territorialidades específicas, que compreendem as
chamadas terras de preto, as terras de caboclo, as terras de santo e demais variações
anteriormente citadas. Não obstante as diferentes trajetórias, segundo as quais se constituíram,
destaca-se o uso comum como uma invariante que vai passando por transformações
consoante as relações que os agentes sociais referidos a tais territorialidades vão estabelecendo
entre si, entre suas comunidades e destas com as igrejas e com o Estado. Semelhantes
trajetórias, cujos primórdios são múltiplos e temporalmente distintos, podem ser descritas
a partir da desagregação dos empreendimentos das ordens religiosas, entre 1758 e 1821,
das fazendas de algodão, entre 1778 e 1819, dos engenhos de açúcar, entre 1870-1882, e
dos conflitos sociais dela derivados. Todas elas foram convergindo, pelo conflito constante
com os chamados brancos e pelas interligações estreitas que foram se estabelecendo entre
os povoados tributários de cada uma delas, para um mesmo território étnico. Tal
convergência se deu de modo desigual e vário. Todavia, diluiu, em certa medida, a força
contrastante dos traços distintivos de uns em relação aos outros. Enquanto as chamadas
terras de santo possuem uma periodicidade bem circunscrita, as denominadas terras de
preto se dispersam por vários períodos se formando antes e durante a desagregação sucessiva
dos empreendimentos das ordens religiosas, das fazendas de algodão e dos engenhos de
açúcar.
Essas territorialidades convergentes não se agregam por adição nem constituem
um território pela soma das extensões geográficas que porventura lhes correspondam. Elas
se interpenetram em diferentes planos da vida social – religioso, econômico, políticoorganizativo – e os recursos naturais que lhes são referentes podem pertencer
simultaneamente a mais de uma delas. As territorialidades recebem a denominação e são
conhecidas pela auto-atribuição dos agentes sociais que lhes são diretamente referidos, no
que concerne, por exemplo, às categorias pretos e caboclos. As representações que os
agentes sociais dão a si mesmos expressam seu pertencimento simultâneo a um grupo e a
uma territorialidade específica. A expressão terra de preto refere-se ao mesmo tempo a
uma forma de produzir, a um espaço social e político e a uma identidade étnica. As situações
sociais, objeto desta perícia, oferecem uma diversidade suficientemente grande de
territorialidades específicas em que a identidade étnica se encontra adequadamente circunscrita.
Nesse sentido, elas transcendem ao recurso básico, a terra, e não se configuram
necessariamente enquanto "territorialidades vizinhas", uma vez que se distinguem e se
entrelaçam simultaneamente, não se constituindo cada uma delas num todo auto-suficiente.
Os planos sociais interpenetrantes consistem numa condição essencial de sua persistência.
Em virtude disso, essas territorialidades não podem ser reduzidas à maneira usual e
88
Alfredo Wagner Berno de Almeida
individualizante de pensarmos um imóvel rural e seus confrontantes, ou seja, não se
restringem a um problema agrário. Por outro lado, o território étnico para o qual confluem
pode ser estritamente delimitado e há uma representação espacial através da qual os agentes
sociais marcam suas fronteiras físicas. A construção social do território étnico pressupõe
interrelações entre os povoados concernentes a essas territorialidades específicas, descrevendo
uma dinâmica de relações sociais que recusa desde o ponto de origem o isolamento ou a
insularidade como forma de manter a persistência das fronteiras.
Os depoimentos coletados no decorrer dos trabalhos de perícia permitem
observar, antes de tudo, que o domínio "original" das terras está associado a relações
sociais e históricas e a uma identidade étnica construída de maneira plural, que transcende
a qualquer traço racial e que se expressa num plano organizativo1. Para os instrumentos
mais recentes de investigação antropológica, a identificação de grupos étnicos não implica
em relacionar caracteres biológicos predominantes transmitidos por via hereditária,
tampouco implica em verificar quais seriam os meios linguísticos intrínsecos, ou em
procurar obstinadamente sinais e diferenças físicas ou, ainda, em catalogar auto-evidências
históricas. Ao contrário, trata-se de perceber como interagem socialmente e se organizam
para manter as fronteiras que os distinguem enquanto grupo. Nesse caso de Alcântara, a
manutenção de fronteiras étnicas por mais de dois séculos indica a afirmação de diferenças
culturais persistentes e de elementos de identidade étnica e regional bastante consolidados.
Através da organização e do conflito, os agentes sociais constróem o seu pertencimento
à rede de relações que estrutura o povoado, elegendo os vínculos com antecessores de
autoridade irrefutável, que lhes asseguram legitimidade e dos quais todos acreditam e se
vêem de fato como descendentes. Em segundo lugar, a noção de dominialidade e de
controle da terra que adotam implica em admitir os recursos como concomitantemente
abertos e limitados, sem serem propriedade individual num sentido estrito. A aquisição
da terra, como justificativa de garantir o uso aberto, é representada de maneira positiva
sob a designação terra de herdeiros, e reforça laços de coesão social e políticoorganizativos como soa ser em Baixa Grande, em São Raimundo, em Itapuaua e em
Santo Inácio. As lideranças, referidas a estas situações sociais, não se restringem aos limites
dos povoado, transcendendo-os na defesa de um território determinado. Em
contrapartida, a aquisição de terra, como justificativa de uso individual, e os mecanismos
repressivos da força de trabalho, que justificariam a individualização dos pretensos "donos
da terra", são vistos como ilegítimos e constituindo usurpação de direitos que, a qualquer
tempo, impõem instrumentos de subordinação do trabalho, vividos como "escravidão"
e que acarretam as "tocas" e os "esconderijos", que podem ser lidos como resistência,
mas também como a imposição da invisibilidade social dos quilombos.
"Alcântara sempre eu dizia que era terra dos índios, aí nós tivemos este
conhecimento, diz que tinha sido encontrado documento de que as terras
era dos negros e não foi vendida para ninguém, só que de lá pra cá os ricos
criaram, apareceram donos os ricos. Você não viu aquela luta do Frechal.
Defenderam aquela pedra, tava escrito em cima; terra de preto. Os índios
e os negros... diga. E o negro vem da família dos índios, não é
isto?"(I.O.16/04/2002 - ENT.12 )
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
"As terras de Alcântara era de preto e por prova que Alcântara
era terra de índio, quer dizer, não existia dono de terra, dono de
terra cresceu que os ricos foram reconhecendo, achando que eles
eram os poderosos, aí foram comprando e os pobres foram entrando
na taca. Aí a princesa Isabel fez aquela libertação e hoje ainda tem
pessoas que não reconhece que ele está liberto no Brasil e ele
está sempre se escondendo, não é?" (I.O. 16/4/2002 - ENT.12)
Os entrevistados não dissociam pretos e índios, no contexto de legitimação
do domínio da terra e em oposição àqueles que são definidos como usurpando seus
territórios. Utilizam essa forma complexa de classificação étnica para afirmar o livre
acesso aos recursos básicos e se distinguirem de potenciais antagonistas, que são sempre
caracterizados como brancos e fazendo uso de instrumentos de castigos corporais, como
a citada taca2. A categoria terra de preto, configurada como terra de índio, é vivida
pelos entrevistados como um direito originário, que prescinde de reconhecimento,
porquanto seria um ato redundante declarar o que já existe. Ao traçarem uma linha
transversal de parentesco, em que descendem de um tronco comum, isto é, a "família
dos índios", os entrevistados representam sua posição diante dos empreendimentos do
CLA, como um direito preexistente. O que se transmite de geração a geração é o poder
de uso dos recursos naturais, numa situação em que a dominialidade é auto-evidente.
Afinal, a sua territorialidade de referência primeira, sendo a mesma dos índios, considerados
seus ascendentes, ultrapassa quaisquer tentativas precisas de datação. É apresentada como
imemorial, já que se encontravam ali quando os colonizadores aportaram. Delineiam, pois,
duas características de sua condição: a sua temporalidade é aparentemente atemporal, posto
que imemorial, enquanto sua espacialidade é social e extremamente dinâmica acompanhando
a potencialidade dos recursos naturais disponíveis às práticas de uso comum. O fato de se
verem como descendentes dos índios e assim se apresentarem manifesta também a vigência
do princípio de que nessa descendência não se partilha a terra, mas se transmite o direito de
usá-la permanentemente, segundo as normas acatadas pelos diferentes grupos. A terra é, pois,
um legado comum e quem o recebe assume o compromisso de assim mantê-lo, fazendo
com que seja revestido com a categoria de sua própria auto-atribuição. Por isso é que onde
aparentemente se imagina uma separação, em verdade há uma junção que é o princípio que
organiza a diferença entre as territorialidades e os respectivos agentes sociais.
A atualidade dessa forma de classificação revela o fundamento histórico de
uma expectativa de direito e a persistência de uma identidade étnica específica, tanto quanto
expressa um sentido diametralmente oposto às disposições coloniais da "governação"
pombalina.
A documentação histórica oficial, até a metade do século XVIII, evidencia
que os índios recebiam, no período colonial, a designação de negros e também assim se
auto-designavam. Entretanto, isso veio a ser expressamente proibido pelo Directorio3
pombalino, cujo artigo décimo estabelece uma separação formal entre essas duas designações
mencionadas. Senão, vejamos:
"Entre os lastimosos princípios, e perniciosos abusos, de que tem
resultado nos Índios o abatimento ponderado, é sem dúvida um deles a
injusta e escandalosa introdução de lhes chamarem Negros; querendo
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Alfredo Wagner Berno de Almeida
talvez, com a infâmia, e vileza deste nome persuadir-lhes, que a natureza
os tinha destinado para escravos dos Brancos, como regularmente se
imagina a respeito dos Pretos da Costa da África.; E porque, além de ser
prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos Índios este abominável abufo,
seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar Negros a uns
homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar isentos de
toda, e qualquer infâmia, habilitando-os para todo emprego honorífico.
Não consentirão os Diretores daqui por diante, que pessoa alguma
chame Negros aos Índios, nem que eles mesmo usem entre si deste
nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles, que
lhes não compete a vileza do mesmo nome, possam conceber aquelas
nobres idéias, que naturalmente infundem aos homens a estimação e a
honra." (Directorio...,1758:5-6) (g.n.).
A estratégia pombalina de separar nominalmente índios e pretos foi
efetivamente contrariada no tempo por um processo de resistência que parece ter conseguido
eficácia justamente nas práticas de agrupamento e de aproximação, tanto quanto na
designação das territorialidades. Mantendo a recusa à dissociação, os entrevistados expressam
uma convergência, em termos de identidade étnica. As diferentes vias de acesso à terra são
aproximadas na narrativa dos entrevistados, delineando a pluralidade de situações coextensiva
à construção social do território. São elas que não permitem distinguir com exatidão as
chamadas terras de índio daquelas nomeadas como terras de preto, ou estas das
denominadas terras de santo, ou ainda, como no caso de São João de Cortes, entre as
primeiras e as últimas. Consoante as narrativas, os índios em São João de Cortes teriam ido
embora e transmitido suas terras para o santo protetor do povoado, São João Batista, que
por sua vez abrigava os escravos fugidos. As narrativas míticas entrelaçam o que a legislação
colonial queria separar pela força e manifestam o quanto hoje esse entrelaçamento é
indissociável da construção do território das comunidades remanescentes de quilombo.
As formas intrínsecas de classificação das territorialidades, produzidas a partir
da própria autodefinição dos agentes sociais, que se apresentam como pretos, contradizem
a classificação externa imposta pelas autoridades coloniais, que chamavam a si o poder de
definir o que os outros deveriam ser.
As terras de preto e as terras de cabloclo: a construção do território
pelos fatores estigmatizantes
Outra dissociação produzida no período pombalino concerne ao Alvará de
Lei de 04 de abril de 1755, antes da própria criação da Companhia Geral do Grão-Pará e
Maranhão, que visando uma estratégia de povoamento da colônia declara que os vassalos
do rei de Portugal
"que casassem com as índias desta (colônia), não ficariam com infâmia
alguma, muito pelo contrário, o mesmo aplicando às portuguesas que
casassem com índios, proibindo-se que tais vassalos ou seus
descendentes fossem tratados com o nome de ‘cabouclos’ " . (Falcon,
1982:397) (g.n.)
91
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Essa interpretação favorável aos índios teve como corolário a conhecida
"Lei das Liberdades dos Indios", de 06 de junho de 1755, que aboliu a escravatura
indígena, na mesma data em que foi intensificada, pela Companhia Geral do Grão-Pará
e Maranhão, a formação de fazendas a partir de doações régias e de incentivos para
introdução de escravos africanos. Com essas medidas, Pombal possibilitou condições
para que posteriormente fossem expedidos registros de cartas de datas e de sesmarias
em nome dos índios4. Ao fazê-lo, privilegiou os índios e instituiu, ao mesmo tempo,
legalmente, uma visão estimagtizante dos pretos5 e dos caboclos, fazendo constar da
documentação, de maneira explícita, os atributos definidores dessas denominações,
todoseles ignominiosos, a saber : "vileza", "infâmia" e desonra. Na lógica dos
administradores coloniais, importava separar uns dos outros com objetivos de
povoamento, ou de enfraquecer as ordens religiosas, ou de reorganizar a força de trabalho
necessária para implantação dos grandes estabelecimentos agrícolas de produtos tropicais.
Com a célere desagregação das fazendas de algodão e de cana-de-açúcar,
resultando na formação daquelas territorialidades e de seus respectivos povoados, as
dissociações instituídas por Pombal ficaram, entretanto, no papel. As chamadas terras de
índio tornaram-se uma referência de origem para todos os povoados, porquanto somente
elas usufruíam de reconhecimento formal naquela derradeira quadra do período colonial.
Enquanto as fazendas tiveram duração efêmera em Alcântara, as categorias estigmatizadas,
quais sejam pretos e caboclos, aí se cristalizaram, sendo assumidas abertamente na
denominação das territorialidades específicas, que foram sendo historicamente construídas.
Invertendo o sinal negativo, que oficialmente as contrapunha ao Estado e que as destituía de
qualquer direito, passaram a assumir num sentido afirmativo as denominações estigmatizadas,
batizando com elas suas próprias territorialidades. O que era considerado "infâmia", desonra
e "vileza" pelas autoridades coloniais, tornou-se atributo de autodefinição dos agentes sociais
e de seu território. No processo de territorialização em pauta, essa é uma característica
determinante das chamadas terras de preto e das denominadas terras de caboclo, que
não se encontravam amparadas por qualquer instrumento jurídico-formal, diferentemente
das intituladas terras de índio, terras de santo, terras da pobreza e daquelas das irmandades
religiosas. As duas modalidades aqui destacadas, para efeito de explicação, tanto significaram
uma modalidade de negação das fazendas, por intermédio de uma autonomia produtiva
intrínseca aos processos de aquilombamento, quanto a afirmação étnica de uma identidade.
A persistência dessas categorias de autodefinição em confronto manifesto com as
determinações régias, mais que uma luta simbólica, expressa uma resistência que se mantém
atualizada em Alcântara, onde foram localizados, durante o trabalho de campo pericial,
mais de cem povoados, interagindo social e economicamente, cobertos por essas mesmas
designações.
Por outro lado, observa-se, nos estudos que privilegiaram o fenômeno da
caboclização (Wagley,1953 e Galvão,1957), uma leitura do cotidiano da vida social dos
povoados da antiga região do Grão-Pará e Maranhão segundo uma dicotomia preto/
caboclo como vetor que orienta distinções auto-evidentes, amparadas em critérios raciais
e na cor da pele. Certamente que tal oposição pode ser verificada empiricamente, é verossímil,
ou seja, é o que parece não contrariar a verdade. A investigação científica, no entanto, para
92
Alfredo Wagner Berno de Almeida
além dos fenômenos aparentes, não faz dessa dicotomização um padrão de explicação das
relações sociais subjacentes ao processo de territorialização, tratando-a no contexto de choques
de interesses mais amplos.
O trabalho pericial, sem tornar objetivas as auto-evidências, permitiu verificar
que em Alcântara há planos de oposição que deixaram de ser diferenciais no tempo. Num
primeiro momento, a designação caboclo sugere uma aproximação com a definição
considerada legítima, ou seja, branco e, por conseguinte, um afastamento de tudo que
possa reforçar ligações e analogias com escravos6. A própria denominação centenária dos
povoados delimitava espaços socialmente distintos, tais como Santana dos
Caboclos,localizado nas chamadas terras de santíssima, e Santana dos Pretos, na ilha do
Cajual, em terras de antigo engenho. Tais divisões eram vividas muitas vezes como posições
excludentes, como nos relatos dos entrevistados em que os caboclos de Peroba de Cima
não autorizavam que os pretos de Ladeira e de Samucangaua entrassem nas suas festas
para dançar ou nos casos em que os caboclos do Cujupe não permitiam que suas filhas
casassem com os pretos dos povoados vizinhos. Cantanhede destaca que, para os moradores
de Ladeira, aqueles de Terra Mole, Peroba e Prainha são classificados como "família de
caboco" (Cantanhede, 1998:7) (sic) em oposição a Aririzal (Iririrzal), Baixa Grande,
Samucangaua e Ladeira, que são vistos como "família de preto". A despeito dessas divisões
em duas metades, que por vezes perpassavam os povoados por dentro, como em Oitiua e
em São João de Cortes, verifica-se um sentido afirmativo, quando os relatos confirmam
que uns e outros sempre se mantiveram interligados, valendo-se dos recursos naturais comuns
e de práticas de cooperação simples no processo produtivo e na circulação de produtos
agrícolas e extrativos. Isso é tanto mais verdadeiro quando se compulsa a documentação
relativa a foreiros em terras das antigas ordens religiosas e percebe-se que as categorias
preto e caboclo funcionavam quase transitivamente no processo de produção e nas relações
contratuais com as divindades. Em ambas situações, verificam-se famílias cujos filhos foram
dedicados à santa pelo batismo. Pela madrinha, todos se tornavam "parentes" ou se ligavam
por afinidade, reforçando a idéia dos povoados enquanto "entidades afetivas" (Prado,
1974:64). A trajetória dos chamados caboclos era a mesma descrita pelos chamados pretos,
que insistiam em manter uma autonomia no processo produtivo, mobilizando-se para não
ficarem subordinados aos chamados brancos. A expressão "índios alforriados vadios",
registrada entre 1751 e 1759, na correspondência do governador e capitão-geral do GrãoPará e Maranhão para Sebastião José de Carvalho e Mello, futuro Marquês de Pombal,
aproximava-os igualmente como à margem da disciplina do trabalho e numa situação
correlata ao aquilombamento.
A dimensão organizativa, que articulava todos esses agentes sociais,
intrafamiliarmente e entre famílias, inibiu as divisões e impeliu as metades, em face dos
antagonismos continuados com o Estado, para uma convergência em um só grupo social.
Desse modo, a perseguição aos quilombos entre 1834 e 1878 não parece ter logrado
desorganizar o sistema de trocas estabelecido entre caboclos e pretos, entre quilombolas
e comerciantes ou entre moradores das denominadas terras de santo, dos patrimônios
das irmandades e dos quilombos. Os instrumentos repressivos das fazendas de
algodãoestavam debilitados em demasia para fazer vigir as dissociações, que desde seu
nascedouro dependiam de mecanismos de coerção. No seio da sociedade escravista,
93
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
moldou-se uma organização social distinta, segmentada e com partes diferenciadas, mas
mantidas de maneira indissociável naquelas territorialidades mencionadas. O grau de
contrastividade entre elas atenuou-se ante a pressão de um antagonista maior, os chamados
brancos, cujo sentido indica posição dominante que, além de exprimir discriminações
sobre pretos e caboclos, sempre buscava pela força das armas recuperar uma posição de
mando que tinha sido irremediavelmente perdida no plano econômico. A ausência dos
senhores seguramente fortaleceu isso, do mesmo modo que gravou como adágio na
memória local o dito tornado sentença: "os brancos foram embora e não voltaram nunca
mais"(A.M. 18/04/2002 ENT.15). Não terem voltado a Alcântara jamais, é o que se constata
quase dois séculos e meio depois das decisões pombalinas.
Esses embates, conflitos e ameaças de eterno retorno marcam as tensões do
processo de territorialização em curso. A autonomia de decisão sobre o que produzir,
como, onde e quando, lançando mão de que recursos naturais, aproxima pretos e caboclos,
fixa um estilo de vida que tem na denominada roça sua viga mestra e chega a absorver os
prepostos dos proprietários absenteístas. Produzir e reproduzir esse sistema, mantendo
uma vida social há pelo menos dez gerações nas terras das ordens religiosas, ou sete nas
antigas fazendas de algodão, ou quase cinco gerações nos antigos engenhos de açúcar, sem
subordinação a terceiros, significa a consolidação, em datas diferentes, daquelas diversas
territorialidades mencionadas e, por extensão, do território das comunidades remanescentes
de quilombo. Como resultante de mobilizações sucessivas, cada uma de suas partes foi se
constituindo e abrigando a outra, como no caso das terras de índios tornadas terras de
santo, segundo doações míticas, que, por sua vez, acolhiam escravos fugidos, servindolhes de degrau na construção de um patamar de autonomia e de trabalho livre designado
como terras de preto.
O grau de distinção entre elas parece tender a diminuir quando os chamados
caboclos, de povoados como Janã, Peroba de Baixo e Murari, entre outros, aparecem
atingidos pelos mesmos dispositivos jurídicos que afetam os demais agentes sociais:
deslocamentos compulsórios, indenizações e "transferências e assentamentos". A ação do
Estado nivela e homogeneiza os diferentes agrupamentos sociais ao submetê-los em conjunto.
A imposição da área decretada para instalação da base de lançamento de foguetes resulta,
nesse sentido, por aproximar o que o regimento colonial insistia em separar. Os denominados
caboclos, hoje, tanto são aproximados quanto se aproximam da categoria preto, nutrindo
inclusive comentários jocosos, tal como registrado em Peroba de Cima, onde um entrevistado
ponderava que todos são descendentes de escravos sim, mas agora "todo mundo está
querendo ser preto" (V.R. 14/04/2002 - ENT.5.1). Há vantagens simbólicas aparentes,
sobretudo porquanto no caso dos chamados caboclos não se registra uma categoria de
existência coletiva traduzida por um movimento social dos caboclos, diferentemente do
caso dos pretos, que usufruem inclusive da categoria negro para simbolizar uma ação
política maior.
As relações de estreitamento entre essas categorias de auto-atribuição
manifestam-se no âmbito político-organizativo e nas mobilizações étnicas que, invertendo
os atributos estigmatizantes, defendem uma certa maneira de existir socialmente. Sob esse
aspecto é que elas convergem para um mesmo território. A interlocucão entre as categorias
94
Alfredo Wagner Berno de Almeida
remete a diferentes planos de abstração, que não representam obstáculos intransponíveis
para uma aproximação entre elas. Certamente que essa aproximação se dá, no momento
atual, sob uma ação circunstancialmente hegemônica dos chamados pretos. O próprio
peso relativo das denominadas terras de preto traduz, no momento atual, essa hegemonia.
Pode-se acrescentar, por outro lado, que a categoria de representação trabalhadores rurais,
que desde 1980 sintetiza o elenco de situações representadas, sinaliza para outras categorias
circunstancialmente mais amplas e de mobilização mais imediata, como seria o caso dos
"atingidos pela base da Aeronáutica" – que agrupa indistintamente todos os grupos sociais
afetados pelos impactos derivados da implantação do CLA – e de quilombola, que expressa
os fatores étnicos. O advento de uma categoria organizativa como quilombola designa,
inclusive, uma entidade de representação articulada regional (Aconeruq) e nacionalmente
(CNPACNRQ)7 em torno do pleito de reconhecimento das comunidades remanescentes
de quilombo. A emergência dessas categorias de mobilização não é excludente, tanto que, a
despeito de seu advento, o STTR de Alcântara mantém a condução da pauta reivindicatória
e dos atos de afirmação étnica.
O processo de territorialização revela uma dinâmica intrincada, sob
encadeamento, que estabelece uma totalidade socialmente instituída, congregando uma
diversidade de situações devidamente articuladas e uma multiplicidade de formas de
representação. Em virtude disso é que se pode falar em diferenciações culturais e numa
composição heterogênea do território de remanescentes de quilombo sem negar o caráter
sistêmico da interligação entre os povoados.
Por mais de dois séculos, portanto, a manutenção de fronteiras étnicas indica
diferenças culturais persistentes em face dos instrumentos de dominação dos brancos,
relativizando os sinais diacríticos e as desigualdades aparentes que distinguem os povoados
entre si. Essa dinâmica de afirmação étnica, relativizando diferenças auto-evidentes e
congregando representações plurais, consiste num fator essencial da construção do território
das comunidades remanescentes de quilombo.
Da capitania de Cumã às sesmarias: a formação das fazendas
Antes mesmo das grandes transformações empreendidas pelo regime
pombalino, entre 1755 e 1758, a Coroa portuguesa promulgou uma medida específica
concernente a Alcântara. Por meio da Carta Régia de 1º de julho de 1754, determinou que
retornassem à administração real as terras da capitania de Cumã, que haviam sido doadas
originalmente ao donatário Antonio Coelho de Carvalho8, em 1624, e confirmadas
respectivamente em 1639 e 1646. Um dos centros de poder dessa capitania localizava-se
em Alcântara, cujo reconhecimento oficial como vila data de 22 de dezembro de 1648, sob
a invocação do Apóstolo São Matias. A vila contava então com 300 moradores e já estavam
erguidos os primeiros engenhos de cana-de-açúcar com moendas de madeira movidas à
tração animal. Essas terras, em 1754, já haviam sido transmitidas a pelo menos três gerações
da família Coelho de Carvalho, em linha masculina, e oficialmente reconhecidas. Com a
extinção da doação, elas reverteram ao poder real e foi acordada uma permuta com a
família dos donatários, que recebeu terras em Portugal.
95
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Entre 1624 e 1754, portanto, as terras de Alcântara foram transmitidas em
sucessão pela família Coelho de Carvalho e confirmadas pelo poder real, perfazendo um
período de 130 anos de registros de dominialidade garantidos pela administração colonial.
Inclusive, em 02 de junho de 1742, foi instituído por carta de data e sesmaria firmada pelo
donatário Francisco de Albuquerque Coelho de Carvalho o patrimônio da Câmara de
Alcântara, correspondendo a uma légua de terras9. Esse neto do primeiro donatário havia
requerido, então, comenda de uma das três ordens militares do reino (Cristo, Avis e Santiago).
Com foro de fidalgo da Casa Real, foi agraciado com a comenda da Ordem de Cristo,
pela qual pagou 300 mil réis (Nizza da Silva, 2005:86).
O coronel B. Pereira do Lago, em 1820, registra a retomada dessas terras pelo
poder real, cujo ato corresponde ao fim do primeiro período da cadeia dominial de uma
vasta área, que abrange hoje o município de Alcântara:
"Foi seu primeiro donatário o desembargador Antonio Coelho de
Carvalho, a quem, segundo o alvará de 19 de março de 1624, se concederam
50 léguas de costa, desde a baía do Cuman até o Rio Pindaré, ou o que se
achasse norte-sul; depois foi confirmado em 15 de março de 1639,
concedendo-se-lhe mais 16 léguas e tornando tudo a ser confirmado em
10 de janeiro de 1646.
Depois, pelo mesmo donatário, foi criada vila, em 22 de dezembro de
1648. Em 2 de novembro de 1722, foram as mesmas terras já com título
de Capitania de Cuman, dadas a Antonio d'Albuquerque Coelho de
Carvalho, que ainda passaram a seu filho Francisco d'Albuquerque Coelho
de Carvalho, até que, por Carta Régia de 1 de julho de 1754, se extinguiu
aquela doação, recompensou o donatário com terras em Portugal, e
daquelas tomou posse, em nome da Coroa, o ouvidor Manoel Sarmento,
que então era do Maranhão." (Pereira do Lago, 2001:35).10
Uma vez revertido efetivamente ao poder real, pelo ato de apossamento do
governador da capitania do Maranhão Gonçalo Pereira Lobato e Souza, que se dirigiu a
Alcântara em companhia do ouvidor geral (Lopes,1957:143), o estoque de terras
correspondente à antiga capitania foi disponibilizado para as medidas político-administrativas
da governação pombalina. Combinando os bens do Estado dinástico com recursos de
empreendimento privados, tais medidas, de igual modo que nos demais domínios do
Grão-Pará e do Maranhão, propiciaram a formação de grandes estabelecimentos agrícolas
também designados como "fazendas" pela documentação da burocracia e dos comentadores
do período colonial. A "Lei das Liberdades dos Índios", de 06 de junho de 1755, a criação
da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, também de junho de 1755, e as orientações
do Directorio, de agosto de 1758, concorreram decisivamente para tanto. As principais
fontes de exploração de recursos da Coroa portuguesa, no Grão-Pará e Maranhão, até
1755 achavam-se ancoradas no extrativismo e na coleta de especiarias, que eram controladas
pelos seus empreendimentos mercantis. As madeiras de lei eram destinadas às embarcações
reais, consoante as cartas de sesmarias, e os demais produtos eram comercializados pelo
Estado, a saber: gengibre, cravo grosso e fino, extratos vegetais e resinas para uso em
tinturas. Em São João de Cortes, localizado a noroeste da vila de Alcântara, os jesuítas
96
Alfredo Wagner Berno de Almeida
dedicavam-se também à produção de anil. A produção de algodão, de cana-de-açúcar e
do arroz vermelho era voltada principalmente para o autoconsumo e não tinha maior
expressão comercial. Ao propiciar a formação de fazendas, o regime pombalino preconizava
uma apropriação individual das terras que significasse uma ocupação efetiva em larga escala,
ou seja, uma produção agrícola permanente e comercializável. Um dos primeiros passos
para alcançar esses objetivos consistiu na concessão de datas e sesmarias àqueles que reunissem
condições para a implantação de grandes estabelecimentos de agricultura tropical voltados
para o mercado mundial ou mais exatamente para a metrópole. O benefício requeria que
cada sesmeiro dispusesse de no mínimo seis escravos africanos para instalar as fazendas. A
diversificação da produção, o aumento do número de produtos exportados e a escolha de
produtos tropicais de elevada lucratividade completavam a ação da Companhia Geral. O
algodão representava o principal produto tropical, cuja procura encontrava-se em tendência
ascendente em virtude do desenvolvimento da indústria têxtil inglesa11.
Com as concessões de sesmarias, foram montados estabelecimentos
agrícolas dedicados à monocultura do algodão, fazendo uso massivo de escravos recrutados
na África, explorando grandes extensões de terras e amparados financeiramente por créditos
para aquisição de escravos e por incentivos comerciais propiciados pela Companhia Geral
do Grão-Pará e do Maranhão. A Companhia, que monopolizava o comércio de escravos,
concedia facilidades de pagamento do valor correspondente aos escravos num prazo de
dois a três anos mediante a liquidação em gêneros (Carreira, 1988:60).
Além do algodão, foi também incentivado o cultivo de arroz. A introdução
de sementes de arroz da Carolina difundiu o plantio de arroz de terra firme em Alcântara
e o produto foi se tornando, juntamente com a farinha, um componente básico da dieta
alimentar de escravos e senhores. Como veremos no capítulo referente aos quilombos, tal
decisão concorreu para manter a autonomia dos quilombolas, porquanto o arroz era de
ciclo curto e de beneficiamento mais simples do que a mandioca, permitindo mobilidade e
deslocamentos sucessivos dos quilombolas quando das campanhas militares desferidas contra
eles. O arroz nativo, de cutícula vermelha, brotava espontaneamente e de maneira abundante,
mas não tinha boa aceitação nos mercados europeus (Carreira, 1988:222), não constituindo
um gênero de exportação e, em virtude disso, foi substituído pelo "arroz branco" da
Carolina (Barata, 1973:309). A obrigatoriedade do plantio de arroz da Carolina do Norte,
então colônia britânica, foi imposta por decreto de 29 de novembro de 1772, assinado
pelo governador Mello e Póvoas, no qual o regime pombalino instituía a condenação a um
ano de prisão e multa para "brancos" que plantassem o arroz vermelho, dois anos de
prisão para índios e dois anos de prisão com "interpoladas surras" para escravos que fizessem
o mesmo12 (Marques, 1970:92). Não obstante a repressão pombalina e as restrições de
mercado, o arroz nativo ainda é muito difundido no município de Alcântara, no momento
atual, e corresponde à espécie que recebe localmente a designação de "milindro".
O Estado dinástico, com a criação da Companhia Geral, organiza uma forte
empresa mercantil, à qual se vinculam 144 acionistas, entre nobres, oficiais do exército e da
armada, autoridades eclesiásticas (padres, cônegos), grandes comerciantes e os denominados
"lavradores". Entre as 1.164 ações, 29 foram adquiridas por cinco comerciantes que moravam
na colônia, sendo dois deles do Maranhão detendo 15 ações, a saber: Domingos Antunes
Pereira e Lourenço Belfort (Carreira,1988:75). O governador da capitania do Maranhão,
97
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Gonçalo Pereira Lobato e Souza, em 15 de julho de 1957, também adquiriu duas ações.
Além de se associar com interesses privados controlando a circulação de mercadorias, o
Estado se posicionava como "autoridade fiscal arrecadadora de impostos" (Falcon,1982
:155), aumentando consideravelmente sua receita.
O fortalecimento do Estado através de empreendimentos mercantis
monopolistas e do aumento da arrecadação articula-se com as medidas adotadas contra as
ordens religiosas que controlavam parte significativa do comércio do Grão-Pará e Maranhão
e que também controlavam grandes extensões de terra, inclusive em Alcântara. A política
pombalina considerava que uma porção considerável das terras da colônia achava-se em
poder da Igreja e de ordens, mosteiros e irmandades, bem como as atividades comerciais
isentas de taxas e o controle dos índios, enquanto força de trabalho. A política do Estado
dinástico, com D. José I, visava impedir que esse patrimônio crescesse indefinidamente
através de novas doações de terras, de aquisições de terras e de vantagens comerciais. Daí
resulta, primeiro, o confisco de terras e bens da Companhia de Jesus e a subordinação aos
desígnios de um Estado absolutista das demais ordens religiosas. A abolição da escravatura
indígena e a instituição do Directorio devem ser interpretados como debilitando o poder
do clero sobre as terras e sobre os índios, acusando-o de monopolizar a força de trabalho
indígena.
À época, Alcântara consistia numa região destacada na política pombalina
consoante três fatores:
a) era "a melhor vila de todo o estado (do Maranhão) em comércio e riqueza
de seus habitantes" (Moraes, 1860:16), conforme descrição13 do Padre
José de Moraes em julho de 1759;
b) aí se concentravam inúmeras ordens religiosas (jesuítas, carmelitas,
mercedários e irmandades) com vastas extensões de terra e intensas
atividades comerciais e de beneficiamento;
c) desde fins do século XVII, com a tentativa de implantação da Companhia
de Comércio do Maranhão, em 1680, registravam-se em Alcântara acirradas
disputas entre as ordens religiosas e os chamados "colonos", co-extensivas à
chamada Revolta de Beckman (Lisboa, 1865:181). Mesmo que haja
interpretações divergentes sobre a reação dos moradores quanto à partida
dos jesuítas de Alcântara, em 1760, pode-se assegurar que Pombal contava
com o apoio de colonos contra os clérigos. Enquanto para Viveiros os
moradores ressentiram da saída dos jesuítas, na interpretação do economista
Celso Furtado:
"os colonos do Maranhão eram adversários tradicionais dos jesuítas na
luta pela escravização dos índios. O Marquês de Pombal apoiou-os ao
criar a Companhia (Geral) de Comércio do Grão Pará e Maranhão e
confiscar os bens dos jesuítas expulsando-os da colônia." (Furtado,
1975:91).
A mudança da política colonial de doação de capitanias e de permissão para as
ordens religiosas manterem terras e os índios produzindo em estabelecimentos isentos de
98
Alfredo Wagner Berno de Almeida
taxação para a concessão de datas e sesmarias, mesmo sem alterar substancialmente o regime
jurídico da propriedade da terra como prerrogativa real, fortalecia o individualismo econômico
ao propiciar meios de ocupação efetiva das terras, que resultando em produção comercializável
favoreciam o Estado e, concomitantemente, consolidavam os sesmeiros, que passam a receber
a designação de "lavradores".
O historiador econômico Caio Prado Jr. sintetiza essa transformação:
"Mas é no Maranhão que o progresso da cultura algodoeira é mais
interessante, porque ela parte aí do nada, de uma região pobre e
inexpressiva no conjunto da colônia. O algodão lhe dará vida e a
transformará, em poucos decênios, numa das mais ricas e destacadas
capitanias. Deveu-se isto em particular, à Companhia Geral do
Comércio do Grão-Pará e do Maranhão, concessionária desde 1756 do
monopólio deste comércio. É ela que fornecerá créditos, escravos e
ferramentas aos lavradores...."( Prado Jr.1963:144) (g.n.)
Com a concessão de sesmarias e com esse tipo de apoio da Companhia
Geral, foram criadas condições para a formação de uma vigorosa categoria de "lavradores",
termo que passou a designar na documentação colonial os fazendeiros de algodão, os
senhores de engenho e os que se dedicavam à criação de gado nos campos naturais. Distinguiase da denominação "colonos", que se referia a unidades de exploração mais modestas, sem
emprego de recursos vultosos, que utilizavam principalmente força de trabalho indígena e
cuja produção se voltava sobretudo para a praça de mercado local. Essas unidades produtivas
dos colonos caracterizavam o período pré-pombalino, sobretudo a segunda metade do
século XVIII, e sobressaíram historicamente a partir de 1680, que corresponde à data de
criação da Companhia de Comércio do Maranhão14. A este tempo, Alcântara era vista
como "celeiro do Maranhão" e só havia um navio por ano para transporte da produção
para Portugal. A partir de 1755, com a Companhia Geral passa a haver uma frota anual e
embarcações regulares no comércio de escravos. A Companhia dispunha de 42 navios de
vários tipos e tonelagens (Carreira, 1988:97), sendo que 27 faziam a ligação com a costa
africana.
O sistema de capitanias com "colonos" escravizando índios em
estabelecimentos de pequena exploração, com fazendas de ordens religiosas e com as
atividades comerciais controladas pelos clérigos, que caracterizava Alcântara até 1755, é
transformado radicalmente pela governação pombalina. Financiando o tráfico de escravos
da África, ampliando a capacidade produtiva e vinculando, através de frotas regulares, a
região ao mercado europeu, o regime pombalino cria condições de possibilidade para o
advento de uma camada de "lavradores".
A categoria "lavradores" passa a ser sinônima de brancos, que consiste no
termo utilizado pelos entrevistados, e localmente difundido e acatado, para designar os
senhores de escravos e de terras. Ela designa ademais os que se beneficiaram das concessões
reais e das vantagens creditícias para se consolidar politicamente, enquanto classe dirigente
no Maranhão15, a despeito do endividamento e das dificuldades em administrar as fazendas.
O montante de recursos acumulado por essas famílias acha-se atrelado
notadamente aos resultados do preço do algodão até 1817-19. Além do algodão em rama,
99
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
o arroz descascado, o cacau, os atanados (couros e solas), o cravo, a salsa e o açúcar
completavam o quadro de exportações. Para a produção de gengibre e anil, havia isenção
de direitos alfandegários. Recorde-se que em 1762 havia plantações para produção de
anil em São João de Cortes. Havia também nesse povoado uma fábrica que preparava o
produto para a exportação (Pereira do Lago, 2001:36). Tal exportação, que se dava
inclusive com produtos em consignação, propiciou elevadas receitas aos chamados
"lavradores" pelo menos até 1778, quando é extinta a Companhia Geral16. Com o fim
do monopólio, consoante Carreira, "as exportações decaíram bastante" (Carreira, 1988:205)
e, não obstante as vantagens propiciadas à colocação do algodão no mercado europeu,
em virtude da Guerra de Independência norte-americana, o endividamento dos
"lavradores" se manteve crescente.
A "modificação da fisionomia étnica"
"Não é só economicamente que se transforma; a mudança é mais
profunda. Com o algodão vieram os escravos africanos - ou vice-versa
preferivelmente; modifica-se a feição étnica da região, até então
composta na sua quase totalidade, salvo a minoria de colonos brancos,
de índios e seus derivados mestiços. O algodão apesar de branco,
tornará preto o Maranhão." (Caio Prado Jr., 1963:144) (g.n.)
"A ajuda financeira (de Pombal) permitiu a importação em grande
escala de mão-de-obra africana, o que modificou totalmente a
fisionomia étnica da região." (Celso Furtado, 1975:91). (g.n.)17
Segundo Nunes Dias, antes da implantação da empresa pombalina "não havia
escravatura africana nas capitanias do Pará e do Maranhão" (Dias, 1970:461) e, em 20 anos,
entre 1757 e 1777, "mais de 25 mil escravos foram introduzidos na região" pela Companhia
Geral (Dias, 1970:465). Embora essa seja uma interpretação corrente dos estudiosos, cabe
relativizá-la, já que desde o fim da segunda metade do século XVII há indicações e registros
de quilombos nessa região da Baixada Maranhense em que se localiza Alcântara. Os números
apurados por Carreira indicam cerca de 31 mil escravos adquiridos pela Companhia Geral
em Bissau-Cacheu e em Angola, não estando incluídos aqueles que integravam as tripulações
dos barcos e executavam serviços regulares para a Companhia Geral, também conhecidos
como "escravos grumetes". O autor busca quantificar os escravos embarcados segundo os
portos da costa africana e seus respectivos destinos. Num primeiro levantamento, no que
denomina de setor Bissau-Cacheu, identifica a aquisição de 22.364 escravos, sublinhando
que não foram apenas esses os escravos adquiridos:
"Abatidos os 1.920 (8,1% dos comprados) falecidos nos barracões e
fugidos, em Bissau e em Cacheu, e os 2.216 (10,1% dos embarcados)
falecidos durante a viagem, temos 18.128 chegados ao destino,
acompanhados de 40 crias." (Carreira, 1988:112).
100
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Ao considerar os 20.339 escravos que foram embarcados em Bissau, Cacheu
e Serra Leoa, entre 1756 e 1789, tem-se que tiveram como destino o Maranhão 10.723
escravos, isto é, 52,7% do contingente adquirido. Desse mesmo setor, foram embarcados
para o Maranhão, de 1788 a 1794, um total de 5.022 escravos. Do setor de Angola-Benguela,
entre 1756 e 1758, foram embarcados, com o mesmo destino, apenas 1.944 escravos
(Carreira, 122). No período imediatamente posterior, tendo como portos de embarque
Luanda e Benguela, foram embarcados, também para o Maranhão , 1.024 escravos, ou
seja, 15,4% do total embarcado nesse setor. Consoante Carreira, o setor de Angola não
teve destaque nos negócios da Companhia Geral, cuja ação foi mais concentrada em Bissau18.
Conforme já foi sublinhado, não há registros contábeis sobre idade, sexo e
etnias dos escravos transportados. Carreira encontrou registros mais pormenorizados de
apenas 128 escravos, "todos recebidos pela Companhia, em resultados de processos de
execução por dívidas" (Carreira, 127), com documentos de proveniência, que mesclam
referências étnicas com dados geográficos e de classificação com base em critérios raciais.
Vejamos as referências a "etnias, regiões de origem e outras designações" (Carreira, 1988:127)
arroladas por Carreira: da área sul do Equador (Angola, Bantu, Benguela, Congo e Rebolo),
originários do Golfo da Guiné (Minas) e procedente da área do Senegal à Serra Leoa
(Bujagós ou Bijagós, Mandingas, Nalu e Papéis). Quanto aos chamados Nohé, não se
conseguiu identificar a etnia correspondente. Os demais foram classificados por critérios
raciais: Cafuzo, Crioulo e Mulato. Um termo classificatório que também foi registrado na
documentação refere-se à designação de Moleque. Dos 128, tem-se que 26 deles
apresentavam apenas indicação de sexo.
Embora não se possa precisar quantos desses escravos relativos ao Maranhão
tiveram Alcântara como destino, cabe frisar ainda que não há quaisquer registros dos que
adentraram pelo porto clandestino de Turiaçu, que fica localizado na mesma região geográfica
de Alcântara. Provavelmente, os totais referidos ao Maranhão estariam subestimados. As
fontes documentais e arquivísticas que tratam dos quilombos desde 1702 sempre enfatizam
que eles se expandem do Turiaçu em direção a Alcântara ou que os escravos fugidos de
Alcântara procuram as matas do Turiaçu como abrigo. Um indicador de que pode ter
havido subestimação refere-se aos registros oficiais de 1779 sobre escravos e alforriados
relativos ao Maranhão que assinalam: 31.722 "pretos" e 18.573 "mulatos" (Goulart,
1975:155). Em 1819, Pereira do Lago assevera que a vila de Alcântara tinha "8.000 almas
no inverno, porque no verão, em que todos os lavradores vão para suas fazendas, regula
a população de 2.500 a 3.000 almas, e fogos, 1.223."(Pereira do Lago, 2001:35). O mesmo
autor, transcrevendo dados demográficos do Maranhão, em 1821, assinala para a freguesia
de São Matias d'Alcântara 12.904 almas (Pereira do Lago, 2001:88). Nesse mesmo ano, a
população do Maranhão corresponde a 152.893 habitantes, sendo 84.434 escravos ou
"pretos e mulatos cativos" – ou seja, em torno de 56% da população –, 25.111 "mulatos
livres", 9.308 "pretos livres", 9.687 índios e apenas 23.994 "brancos", isto é, cerca de 15%
do total recenseado (Pereira do Lago, 2001:86-88).
Em 1774, terminara o prazo de 20 anos concedido à Companhia Geral
para o tráfico de escravos africanos. Nesse ano, o transporte de escravos iniciou uma
retração geral, acarretando uma redução da oferta e uma elevação do preço dos escravos
que, combinado com o endividamento progressivo dos "lavradores", assinalou o
enfraquecimento dos mecanismos repressivos da força de trabalho no âmbito das fazendas.
101
Registros de cartas de datas e
sesmarias e o fim do monopólio da
Companhia Geral de Comércio
Em julho de 1777, quatro meses após a demissão do Marquês de Pombal e
um ano antes da extinção da Companhia Geral, os sesmeiros de Alcântara iniciaram as
solicitações de registro das cartas de datas e de sesmarias. A pressão contrária ao monopólio
comercial aumentava e de algum modo os sesmeiros percebiam os riscos de as elevadas
dívidas contraídas junto à Companhia Geral virem a ser executadas, caso não fosse concedida
uma prorrogação de funcionamento para a mesma. De igual modo, com as mudanças na
Casa Real desde a morte do rei D. José I, em fevereiro de 1777, e com as campanhas
contra Pombal, que caracterizaram a chamada "viradeira" (Soares, 1983:222), havia a
possibilidade de serem feitas novas concessões e de serem revistas outras. A formalização
do domínio das terras, obtidas por concessão régia, configurava-se como uma necessidade
nesse período de transição política e econômica em que o poder dos sesmeiros poderia
sofrer revertério. Entre julho de 1777 e setembro de 1816, arrolei vinte e seis registros
expedidos de sesmarias em Alcântara, sendo 20 deles entre 1777 e 1794 e os demais entre
1809 e 18161. Dois registros correspondentes a 1816 referem-se somente a demarcações. A
lacuna entre 1795 e 1808 deve-se ao fato de não terem sido assinalados registros para
Alcântara nesse intervalo, indicando uma possível limitação do próprio material disponível.
Todos os 26 registros expedidos referem-se, por linha direta ou transversal,
às famílias classificadas por Viveiros como compondo a "aristocracia alcantarense"
(Viveiros,1975:109). Seis deles concernem a membros da família Araújo (Araújo Cerveira,
Araújo Borges e Araújo), dois à família Silva (Silva Leitão, Almeida e Silva), dois à família
Pinheiro, dois à família Costa Ferreira e um registro corresponde a cada uma das seguintes
famílias: Viveiros, Ribeiro, Ferreira, Dias, Santos, Aroucha e Sampaio. Independente do
título de nobreza ou de Carta de Brasão e Armas, tem-se uma "nobreza da terra" que se
apóia em critérios de riqueza e prestígio, expressos pelo número de escravos que alegavam
possuir, pela quantidade de terras que diziam deter, pelo casario assobradado que possuíam
e pelas relações comerciais que mantinham com a Cia. Geral de Comércio e com
comerciantes da praça de São Luís. O enobrecimento de mercadores e comerciantes assinala
novos atributos de nobreza a partir de fins do século XVIII.
Ao considerar que os dois registros para demarcação, datados de 1816, não
possuem referência a área, tem-se 24 expedições de registro totalizando em torno de
162.000 hectares, assim distribuídos: sete deles têm seus registros correspondentes a 8.172
hectares cada um; outros sete possuem 4.356 hectares cada; há seis com 13.068 hectares
cada e os três restantes apresentam, respectivamente: 2.712, 2.178 e 1.089 hectares.
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Há cinco registros de sesmarias, entre 1777 e 1787, cujas terras pretendidas
como "devolutas" incidem sobre áreas de quilombos, que aparecem designadas através
de menção explícita a "mocambo", "enseada grande do lago dos fugidos", "lago do
mocambo" e "mocambo dos negros fugidos". Eles concorrem para evidenciar que as
concessões de sesmarias teriam ocorrido em áreas já ocupadas por quilombos.
Para efeitos de demonstrar essa modalidade de sobreposição, passo à citação
dos registros. O primeiro deles trata-se de uma solicitação de registro de terras ditas
"devolutas" feita em 1788 por José Alberto da Silva Leitão ao governador e capitão-geral
do estado do Maranhão Fernando Pereira Leyte de Foyos. No texto da carta de data e
sesmaria, o referido Governador assinala o seguinte:
"Fernando Pereira Leyte de Foyos, Comendador da Ordem de Nosso
Senhor Jezus Christo do Cons.º de S. Mag.º Fidelíssima Coronel de
Cavalaria de Seus Exércitos com o Governo de Castello de S. Felipe
da Barra de Setúbal, Gov. e Capitão General do Estado do Maranhão
Et.ª Faço Saber aos que esta minha Carta de Datta e Sesmaria Virem,
q' Jozé Alberto da Silva Leytão Morador na Villa de Santo Antonio
de Alcântara, Me reprezentou que elle Se achava com bastante
Escravatura, Sem ter terras próprias em que os aplicasse a lavoura, e
porque nas testadas de huma Sorte de terras do Capitão Manoel
Ferreira dos Santos as havia devolutas: Me pedia fosse Servido
conceder lhe em Nome de S. Magestade huma Legoa de terra de
Comprido beira Campo do Pericumã principiando das testadas do
dito Capitam Manoel Ferreira dos Santos Correndo para os Lados
do mocambo com duas Leg oas de fundo, inteirando no
Comprimento o q' Faltasse no fundo, ou neste o que faltasse naquelle,
com todas as pontas abas, Enseadas, e logradouros que Se achasem:
A que attendendo, e ao que Sobre esta matéria Responderão o
Ouvidor Juiz das Sesmarias Officiais da Câmara do destricto que
forão ouvidos..." (sic) (cf. Reg. de Carta de Datta e Sesmaria passada
a José Alberto da Silva Leitão. São Luís do Maranhão, 15 de março
de 1787).
Nos livros de registros arrolados, a área atribuída ao capitão Manoel Ferreira
dos Santos, denominada Sítio Aurá, não contém menção explícita à extensão em hectares.
Como os dados dos registros eram autodeclaratórios, torna-se difícil precisar os limites
da área em jogo, que são apenas descritos como : "uma légua de terra beira campo, com
duas de fundo, na forma e parte que pede, com as confrontações que declara".
O segundo registro de sesmaria com menção explícita a "fugidos" refere-se
à área concedida a Ignácio de Araújo Serveira nos seguintes termos:
"Joze de Telles da Silva do Conselho de S. Magestade Fidelíssima
Governador e Capitão General das Capitanias do Maranhão, e Piauhy
etc. Faço Saber aos que esta minha Carta /fl. 114/ de Datta, e Sesmaria
Virem, que Ignácio de Araújo Serveira Capitão de Auxilliares,
morador na Villa de Alcântara me reprezentou por Sua petição que
104
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Sendo hum dos mais opulentos Lavradores, e possuindo para Sima
de Cem Escravos de Serviço não tinha terra Suficientes para emprego
dos ditos Escravos, e por que nos Perizes da mesma Villa Suposto
que em parte longiqua nas Cabeceiras da Enseada chamada
Sapuja Correndo para a Enseada grande do lago dos fugidos,
nas testadas das que Se concederão ao defunto Francisco Amandio
Lansarote, hoje possuídas por João de Barros e Antonio de Barros,
e outros havia terras devolutas, Me pedia fosse Servido conceder lhe
em nome de S. Magestade, por Datta, e Sesmaria tres legoas de terra
de Comprido, huma de largo principiando das testadas das
Concedidas ao dito Amandio, Correndo o comprimento desta terra
para o lugar em que a houver devoluta, em que Se possa inteirar das
tres legoas, e huma legoa de largo para aquella parte em que tão bem
Se possa inteirar, de Sorte que não havendo comprimento Suficiente
de tres Legoas, Se possa inteirar na Largura, e Comprimento, o que
faltar nesta, com todas as pontas, abas, e logradouros que Se
comprehenderem na Medição da dita terra..." (sic) (cf. Registro de
Carta de Datta e Sesmaria passada a Ignácio de Araújo Serveira. São
Luís do Maranhão, 19 de maio de 1785).
A localização do dito "lago dos fugidos" aparece referida aqui a Perizes. Os
naturalistas Spix e Martius, quando visitaram Alcântara em 1819, detiveram suas observações
nessas Campinas, que recebiam a denominação indígena de peri (plural, perizes), e as
descreveram como conservando continuamente o "verdor seivoso". Assim as localizaram
geograficamente: "Os perizes estendem-se de Alcântara para o norte até às Vilas de São
João de Cortes e Guimarães, e circundam a baia de Cumã, daí talvez a razão por que todo
o distrito é designado pelo nome de Pericumã." (Spix e Martius, 1976:250).
Pelas modalidades de registro, percebe-se que há uma sinonímia entre
"mocambo" e "fugidos". Tais termos são utilizados no texto como topônimos, ou
seja, antes referem-se ao nome próprio de um lugar ou de um acidente geográfico que
a um grupo social que esteja efetivamente ocupando as terras. A documentação fundiária
da burocracia colonial cinge-se a considerar as terras como da Casa Real e utilizadas pelos
concessionários por ela instituídos. Os antagonistas são invisibilizados ou só percebidos
indiretamente ou nos desvãos das entrelinhas dessa documentação.
O terceiro registro é uma concessão de sesmaria passada ao capitão José de
Araújo Serveira "do lado dos fundos nas testadas das terras concedidas ao seu irmão, o
capitão Ignácio de Araújo Serveira" (Cf. Registro de Data e Sesmaria passada ao capitão
José de Araújo Serveira. São Luís do Maranhão, 26 de setembro de 1787). Em certa
medida, ela reproduz o "topônimo" anteriormente mencionado.
O quarto registro é de uma concessão de sesmaria ao capitão Manoel Ferreira
dos Santos elaborada nos seguintes termos:
"Jozé de Telles da Silva do Conselho de S. Magestade Fidelíssima Governador
e Capitão General das Capitanias do Maranhão, e Piauhy etc. Faço saber aos
que esta Mª. Carta de Data e Sesmaria virem que por parte do Capitão Manoel
Ferreira dos Santos morador na Villa de Alcântara me representou por sua
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Petição que elle se ocupava em Lavoiras com huma sorte de terras, que havia
comprado, e que se achavam já incapazes de dar [...] fructos e porque lhe
constava, que havia terras devolutas, e incultas, pegando no centro dos Mattos
do Aura, testadas do Capitão Roberto de Sá abeirando os campos do
Pericumã correndo para os lagos do Mocambo, Me pedia fosse servido
conceder-lhe em nome da Sua Magestade por Datta, e Sesmaria huma Legoa
de terra com todas as pontas, abas Sobras Logradouros e Enseadas onde
mais comodamente se podesse demarcar..." (sic) (Registro de Carta de Datta
e Sesmaria passada ao Capitão Manoel Ferreira dos Santos. São Luís do
Maranhão, 15 de março de 1787).
O quinto registro é uma data concedida a João de Carvalho Santos, cuja
descrição dos limites aglutina os termos "mocambo" e "fugidos" no mesmo topônimo,
nos seguintes termos:
"Dom Fernando Antonio de Noronha, Do Conselho de Sua Magestade
Fidellísima Tenente Coronel de Seos Exércitos, Governador, e Capitão
General das Cappitanias do Maranhão e Piauhy Ect.ª Faço Saber a todos os
que esta Minha Carta de Datta e Sesmaria Virem que João de Carva -/fl.
101v/ de Carvalho Santos morador e Cazado na Villa de Alcântara, Me
reprezentou que elle não tem terras Suas próprias em que possa lavrar com
Seus Escravos, e porque tem noticia que para a parte dos Perizes da dita
Villa, no Centro dos Mattos, nas partes, e Vizinhanças, onde foi o
Mocambo dos Negros Fugidos onde ultimamente deu o Capitão do
Matto Lourenço Gonçalves, junto com o Alferes Manoel Rodrigues
de Oliveira, há terras devolutas..." (sic) (Registro de Carta de Data e
Sesmaria concedida a João de Carvalho Santos. São Luís do Maranhão, 25
de abril de 1793).
A localização deste "Mocambo dos Negros Fugidos", considerando sua
posição próxima ao rio Aurá, concerne ao sudeste do atual município de Alcântara. O fato
de a atuação do capitão do mato ser recente, como reza o registro, evidencia que os
quilombolas ainda se encontravam naquelas terras tidas como devolutas e sem qualquer
ocupação. Pode-se interpretar que a concessão de sesmarias oficialmente ignorava os conflitos
que só aparecem de maneira indireta nos registros.
A localização do Lago do Mocambo, por sua vez, refere-se ainda a outro
lugar geográfico, qual seja, próximo ao antigo povoado de Peru, à leste do município,
assinalado pela memória oral dos entrevistados como quilombo2. A denominação, combinada
com os dados de história oral e com a documentação administrativa oficial, concorre para
evidenciar que antes mesmo da própria criação da Companhia Geral já havia registros de
quilombos na região e que foram concedidas sesmarias em áreas que alguns deles
efetivamente ocupavam. A concessão de sesmarias a partir de 1755 é posterior, portanto, à
incidência de quilombos na região, cujos primeiros registros burocrático-administrativos,
efetuados pelo governador geral do estado do Maranhão Fernão Carrilho, datam de 1701.
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Alfredo Wagner Berno de Almeida
Registro de cartas de datas e sesmarias
Munícipio: Alcântara / 1777 - 1816
Nº de
Ordem
Sesmeiro
Denominação
Data da
expedição
Área - (ha)
Livro
Folha
1
Joaquim Antonio de Launé
Inambú
03.07.1777
4.356,0000
02
14
2
João Telles de Menezes
Inambú
30.12.1777
4.356,0000
02
19v
3
Felipe Curvelo
R. Pericumã
12.07.1779
4.356,0000
02
53
4
Ignácio de Araújo Borges
Quindiua
07.07.1780
2.178,0000
02
78v
5
Francisco Ribeiro Grillo
Inambú
02.08.1780
1.089,0000
02
28v
6
Manoel Ferreira dos Santos
Sítio Aurá
15.05.1787
-
02
159v
7
Euginei de Aroucha
Pericumã
28.06.1787
4.356,0000
02
178
8
José de Araújo Cerveira
Perizes
26.09.1787
13.068,0000
02
190
9
L. Aires
-
24.01.1788
13.068,0000
04
04
10
José Alberto da Silva Leitão
Lago do Mocambo
26.02.1788
2.712,0000
04
06v
11
Antonio José Rodrigues de Souza
Inambú
16.04.1788
4.356,0000
04
18
12
Ignácio José Pinheiro
Peri-açu
26.04.1788
13.068,0000
04
18v
13
Antonio Soares de Araújo
Pericumã
29.04.1788
13.068,0000
04
19v
14
Manoel Reis de Oliveira
Pericumã
11.08.1790
4.356,0000
04
35v
15
João Diogo da Costa (sem efeito)
Pericumã
18.08.1790
8.712,0000
04
40v
16
Alexandre José de Viveiros
Pericumã
21.06.1791
13.068,0000
04
54
17
Francisco Raimundo Dias
Guarapiranga
11.06.1792
13.068,0000
04
64
18
Antonio Cardoso Sampaio
Pericumã
06.09.1792
4.356,0000
04
72v
19
João de Carvalho Santos
Perizes
25.04.1793
8.712,0000
04
101
20
João Álvares Pinheiro
Perizes
07.02.1794
8.712,0000
04
172v
21
Ignácio Gabriel de Almeida e Silva
R. Mariano
13.04.1809
8.712,0000
07
08
22
Severo Antonio de A.Cerveira
-
09.10.1809
8.712,0000
07
48v
23
Ana Apolônia Heduviges
Pericumã
31.01.1811
8.712,0000
07
75v
24
Joaquim Antonio da C. Ferreira
-
10.09.1816
8.712,0000
10
44
FONTE: Livros de Registros nºs: 02, 04, 07 e 10. Arquivo Público do Estado do Maranhão.
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Registro de demarcação de sesmarias
Munícipio: Alcântara / 1816
Sesmeiro
Denominação
Data da
expedição
Objeto
Notação
Folha
Severo Antonio de Araújo Cerveira
Paragem Timbaúba
1816
demarcação
109,025A
01
Severo Antonio de Araújo Cerveira
Guruapê
1816
demarcação
109,025B
01
FONTE: Registros de Sesmarias. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
Compulsando o gráfico e os quadros demonstrativos, constata-se que a chamada
nobreza alcantarense descendia diretamente de sesmeiros, que tiveram expedidas suas cartas na
segunda metade do século XVIII. Nem todos eles são classificados, entretanto, como referidos
a Alcântara. Caso o fossem, a listagem teria que ser necessariamente ampliada, incluindo pelo
menos Guimarães, São Bento e Viana. Senão, vejamos: Theodoro Correa de Azevedo Coutinho,
com fazenda no rio Pericumã, cuja extensão equivalia a 4.356 hectares, teve expedido seu registro
de carta de sesmaria em 17 de abril de 17773. Já citado anteriormente como vendendo por
consignação em navios da Companhia Geral, este sesmeiro é pai do Barão de Mearim, brigadeiro
José Teodoro Correa de Azevedo (Viveiros, 1975:100). Outro exemplo: Romualdo Antonio
Franco de Sá, com Fazenda Chapada ou Caatingas, localizada em Guimarães, com 8.712 hectares,
tem seu registro de carta de sesmaria expedido em 02 de junho de 17934. Trata-se do pai do
senador Joaquim Franco de Sá (Viveiros, 1975:109) e do avô do senador Felipe Franco de Sá
(Viveiros, 1975:136). Joaquim Franco de Sá governou a província do Maranhão no período de
reestruturação dos engenhos de açúcar em 1846-47 e da reorganização das campanhas militares
contra os quilombos. O referido senador era genro e foi secretário de governo de outro presidente
da província, o Barão de Pindaré, Antonio Pedro da Costa Ferreira, cuja família possuía fazendas
em Alcântara na região do Tubarão, como o seu pai, Ascenso José da Costa Ferreira, e, em
Viana, como o Comendador José Ascenso da Costa Ferreira5. Nessas terras há menção explícita
a quilombos desde pelo menos 1837, data da autorização de repressão. Vale acrescentar ainda
que o mencionado senador, que era do Partido Liberal, teve como secretário da presidência
Carlos Fernando Ribeiro, mais tarde Barão do Grajaú e presidente da província, proprietário do
Engenho Gerijó, que em 1760 fora confiscado dos jesuítas. Há registros de quilombos nessas
terras desde pelo menos 1833 e até 1866, quando são mobilizadas tropas de linha para combater
os quilombolas em Jarucaia6.
Um outro exemplo, incluído no quadro demonstrativo, seria Alexandre José
de Viveiros, com fazenda no rio Pericumã, com 13.068 hectares, que tem expedido seu
registro de carta de sesmaria em 21 de junho de 1791. É pai do senador Jerônimo José de
Viveiros, que fundou a Fazenda São Maurício, e avô do Barão de São Bento, Francisco
Mariano de Viveiros Sobrinho (Viveiros, 1975:116). Em 1819, Pereira do Lago anota com
detalhes a expansão dos quilombolas e o avanço de tropas por essa área, que ficou conhecida
como de incidência do "quilombo dos Pretos de Viveiros" (Pereira do Lago, 2001:28).
A derrocada da economia algodoeira
O registro das sesmarias, conforme já foi sublinhado, ocorre num momento
em que está findando o prazo da concessão régia à Companhia Geral e em que esta, além
108
Alfredo Wagner Berno de Almeida
de encontrar-se prestes a ser extinta, acha-se sob pressão de comerciantes, que reivindicam
o fim do monopólio comercial, e de "lavradores" cujas dívidas acham-se acumuladas. Em
representação à rainha D. Maria I para que não persistisse por mais tempo a Companhia
Geral, dois anos após a sua extinção formal, em 1780, inúmeros signatários, que se autointitulam "homens de negócios", manifestando-se a favor do livre comércio, asseveram o
seguinte:
"... os habitantes do Pará e Maranhão devem o que nunca poderão
pagar, e a Companhia duplicou o fundo de seu capital e os acionistas,
além do dobro do valor com que entraram, tem percebido mais de outro
tanto; aqueles habitantes eram ricos porque não deviam quando era o
comércio livre; a Companhia, que prometeu aumentar a agricultura e o
Estado, o deixou destruído..." (Silva e Castro et al., 1780 apud Carreira,
1988:100) (g.n.)
Viveiros assinala que, em 1819, o preço do algodão baixou repentinamente
para menos da metade do preço antigo, levando à bancarrota fazendeiros, designados
como "lavradores", que se davam a um "luxo desmedido" e "que compraram grandes
lotes de escravos a longos prazos, os quais não puderam pagar" (Viveiros, 1954:139)7.
Com o preço do algodão despencando, o endividamento dos fazendeiros tornou-se por
demais acentuado. Eles, que estavam às voltas com dívidas junto às casas comerciais desde a
extinção da Companhia Geral8, encontravam-se, duas décadas depois, numa situação limite.
As casas comerciais inglesas e portuguesas, sediadas em São Luís, acusadas
pelos denominados "lavradores" de especularem no mercado algodoeiro, acumulavam o
maior montante de bens e recursos então em circulação. Para Viveiros (1954:163), eram
banqueiros, que concediam empréstimos e controlavam exportações, importações e até o
beneficiamento de produtos agrícolas, além de terras e escravos. Dos três maiores
comerciantes portugueses no início do século XIX, citados por Viveiros, um deles possuía
hum mil e quinhentos escravos, caso de José Gonçalves da Silva; o outro herdou hum mil
e oitocentos escravos, caso de Simplício Dias da Silva; e o terceiro trata-se de Antonio José
Meirelles, que sucedeu a Gonçalves da Silva nos empréstimos a fazendeiros (Viveiros,
1954:165-167).
Alcântara, que sempre se caracterizou mais como local de produção e de
proeminência de fazendeiros, teve desestruturada sua produção e as fazendas passaram
por um processo de completa desagregação. Ao contrário, em São Luís, onde estavam os
comerciantes, os exportadores e os financiadores das compras de escravos, consolidava-se
o controle da circulação de mercadorias9.
Alcântara, que no período pombalino era um centro de atividades econômicas,
ou seja, uma das áreas mais destacadas da política mercantilista, tornou-se gradativamente,
a partir de fins do século XVIII e início do século XIX, uma região periférica e cada vez
mais marginal economicamente. Antes mesmo do advento do Império, as fazendas de
Alcântara, que vinham perdendo seu dinamismo econômico desde a extinção da Companhia
Geral e da retomada do mercado algodoeiro pelas grandes plantações do Sul dos Estados
Unidos, entraram em desagregação. As fazendas começaram a ser abandonadas e foram
passando às mãos de prepostos. A produção de algodão praticamente cessou, no decorrer
109
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
da década de 1820-30, revertendo tão somente para as necessidades familiares e artesanais;
a fábrica de beneficiamento de anil, que florescia em São João de Cortes em 1762, já não
mais existia e, segundo Pereira do Lago, naquela freguesia, no ano de 1820, "plantam só
mandioca, porque para nada mais serve o terreno"(Pereira do Lago, 1872: 388). A agricultura
de base familiar com escravos e alforriados ia se consolidando sobre as áreas das grandes
plantações. De outra parte, a vila de Alcântara foi assim caracterizada por Pereira do Lago,
em 1820:
"As suas ruas mal calçadas, ainda que se cuidava em emendar esse defeito,
assim como em fazer um chafariz; porém como as manilhas com que
formam o cano são de telhas, pode em pouco arruinar-se, e faltar então
a água: tem belos edifícios e, talvez dos que se chamam nobres 60, mas
só em parte do inverno são habitados, porque as famílias todas residem
quase sempre nas suas fazendas: há dois conventos, um do Carmo,
outro das Mercês, e uma freguesia de São Matias; duas praças, a da
matriz, e a do Carmo, e onze ruas. A sua população, de verão anda por
2.500 almas, e de inverno, por 8.000." (Pereira do Lago,1872:387).
A este tempo, as terras não eram passíveis de compra e venda, o regulamento
das sesmarias condicionava à autorização régia qualquer transferência, mesmo que por
sucessão. Os atos de compra e venda incidiam sobre produtos e benfeitorias. As casasgrandes, que foram transformadas em bens móveis, já estavam sendo desmontadas,
como já foi anteriormente examinado, e os sobrados na vila estavam sendo vendidos
para saldar dívidas ou entregues à guarda provisória de prepostos e escravos domésticos
mediante a partida dos senhores, seja para São Luís, seja para o Rio de Janeiro.
As interpretações econômicas usuais, prevalecentes na historiografia regional,
que explicam o Maranhão pela teoria dos ciclos econômicos ou pela dicotomia prosperidade/
decadência, são lacônicas e insuficientes quando se trata de analisar esta situação social
específica de Alcântara. Os marcos adotados para explicar o Maranhão mostram-se
inapropriados quando se trata de Alcântara, cuja decadência abrupta é vista, pelos
comentadores regionais, sob uma ótica catastrofista de esgotamento absoluto dos recursos
naturais. O menosprezo por uma análise concreta de uma situação concreta, privilegiando
realidades localizadas e processos reais, mantém Alcântara à margem das interpretações
econômicas consagradas, cujo corte relativo ao Maranhão não lhe corresponde exatamente
enquanto padrão de explicação. Celso Furtado considera que, embora para a colônia o
último quartel do século XVIII tenha sido de retração econômica, o Maranhão constituiuse numa exceção, posto que a economia algodoeira, a partir da Companhia Geral, possibilitou
elevada lucratividade e intensa expansão. Nos termos de Furtado, teria ocorrido uma "falsa
euforia do fim da época colonial" (Furtado, 1975:89), à exceção do Maranhão, onde teria
ocorrido de fato "prosperidade"10.
Em Alcântara, desde o início do século XIX a função urbana de tipo
burocrático-administrativo prevalece e se mantém quando os senhores começam a abandonar
sua fazendas, conservando o domínio formal das terras mas sem o controle efetivo delas.
O domínio formal vai ser mantido durante todo o Império, porquanto só podiam votar e
ser eleitos aqueles que tivessem títulos e terras, ou seja, mantêm-se formalmente enquanto
110
Alfredo Wagner Berno de Almeida
fazendeiros e assim são reconhecidos pelo poder imperial. Os direitos políticos eram restritos
e nas áreas rurais não havia possibilidade de qualquer proteção social senão através dos
senhores de terras (Faoro, 1988). Havia uma tutela embutida no Estado dinástico que
propiciava o controle da força de trabalho pelos fazendeiros, mesmo quando os mecanismos
repressivos achavam-se debilitados. De outra parte, a terra era um recurso abundante, sob
concessão e confirmação régias, e não havia praticamente transações comerciais que as
envolvessem. A figura do aforamento foi sendo instituída pelos sesmeiros, quando eles
detinham tão-somente o controle formal das terras, também como estratégia que adiava o
acesso livre e direto de escravos e alforriados à terra. Isso se manteve mesmo quando
começaram a pairar dúvidas sobre o destino das sesmarias, com alguns defendendo que
fossem reduzidas, outros que revertessem à Coroa11. Essa situação se agravou com a
Independência.
A partir de 1822, consoante análise de J. Shiraishi, com a Resolução do Reino de
n° 76, que ordena a suspensão dos atos de concessão de sesmarias, até a Lei de Terras n° 601,
de 18 de setembro de 1850, que reestrutura formalmente o domínio das terras, tem-se um
período classificado por juristas com a denominação de "posse das terras devolutas" (Sodero,
1990:37-48). No decorrer desses 28 anos, "o domínio das terras se realiza pelo simples ato de
posse" (Shiraishi, 1998:24), abrindo um capítulo de tensões permanentes, posto que os
mecanismos repressivos da força de trabalho, ao alcance dos fazendeiros, encontravam-se
debilitados e os registros sobre os quilombos evidenciavam sua expansão. Um quadro de
tensões se instaura nas situações em que os atos de apossamento não estariam passando
necessariamente pelo controle dos antigos sesmeiros. A este tempo, já não mais havia grandes
plantações em Alcântara. As grandes plantações de algodão e arroz cediam lugar aos plantios
de mandioca, de arroz e ao preparo de farinha levados a cabo por famílias de escravos,
parcialmente controladas pelos prepostos, de um lado, e por alforriados, índios e quilombolas,
de outro. Assiste-se a uma transição de escravo para camponês, produzindo com unidades de
trabalho familiar autônomas em terrenos por eles escolhidos e num tempo por eles igualmente
administrado. O marco divisório de Alcântara, de 1755, que deixara as terras a noroeste para
os índios e as demais para as grandes plantações, perdera a sua razão de ser perpassada de
norte a sul pelas pequenas unidades de trabalho familiar que, estruturando sua vida social em
povoados, iam impondo gradativamente um processo produtivo autônomo com relações
diretas com os diferentes circuitos de mercado através de dezenas e dezenas de pequenos
portos por onde era escoada a produção de farinha, pescado, carvão, arroz e produtos
extrativos para a capital da província. As categorias instituídas pelos colonizadores, quais sejam:
índios, pretos e caboclos, portadoras de atribuições estigmatizantes, foram sendo redefinidas
por aqueles que, tornando-as afirmativas, passaram a se autodefinir por elas, definindo de
igual modo as terras que efetivamente controlavam. Os povoados que aí foram erigidos se
organizaram em torno do uso comum dos recursos naturais e dos mencionados portos, os
quais facultaram condições de possibilidade para a livre comercialização dos produtos agrícolas
e extrativos desde a segunda metade do século XIX e, com determinadas variações, até o
momento atual.
A consolidação política dos denominados "lavradores" de Alcântara baseia-se na
imperatividade de fortalecimento do Estado no período imperial, que recruta membros dessa
camada de "lavradores", que haviam adquirido "ilustração" e prestígio intelectual em universidades
111
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
européias e que ainda detinham formalmente as terras, habilitando-a enquanto classe dirigente.
O advento político-administrativo dessa elite universitária cosmopolita e que bem separava a
ação do Estado daquela da Igreja Católica contrapunha-se aos quadros intelectuais das ordens
religiosas, que buscavam recuperar seu poder, sobretudo na educação e na economia. Uma
resultante desse embate refere-se às medidas do governo imperial diante das ordens religiosas,
investindo duramente contra elas12.
Os cargos e funções, tais como: presidentes da província do Maranhão,
senadores do Império, que representavam a província, e altos escalões da burocracia e dos
serviços administrativos, eclesiásticos (através do Padroado) e militares serão ocupados
por membros dessa camada de "lavradores", sobretudo da região de Alcântara. Entre
1834 e 1889, dela são provenientes mais de seis presidentes de província, pelo menos cinco
senadores do Império13, mais de uma dezena de deputados da Assembléia Legislativa
Provincial e da Assembléia Geral Legislativa, diversos oficiais militares e cavaleiros de ordens
e dezenas de funcionários do aparato administrativo imperial e de instâncias intelectuais e
científicas14. Dispõem de um capital intelectual acumulado que propicia os recursos de
competência para a administração provincial, combinado com um capital simbólico de
relações sociais que viabiliza a sedimentação de interesses através de políticas que reprimem
a força de trabalho, que incentivam, em 1846-47, a instalação de engenhos de açúcar e que
monopolizam formalmente a terra – por intermédio das confirmações de sesmarias e,
depois, através dos registros paroquiais exigidos pela Lei de Terras de 1850. O baronato
alcantarense, do período imperial, composto de quatro Barões (Mearim, Pindaré, São Bento
e Grajaú), tem nessa condição original de "lavradores" e sesmeiros a fonte de sua força
política durante todo o Império. Ela garante uma posição de destaque a esses políticos
alcantarenses, mesmo quando a derrocada econômica já desagregara integralmente as suas
fazendas em Alcântara e eles não mais tivessem grandes plantações, nem o controle absoluto
das terras.
Não há correspondência entre a condição jurídica de sesmeiro, legítimo e
confirmado, e aquela de apropriação real dos meios de produção, mesmo que se constate
que os chamados "lavradores" sempre procurassem dissociar os escravos, os alforriados e
os índios dos meios de produção. A organização das estruturas do poder provincial não
reflete imediata e mecanicamente as transformações no processo produtivo. O poder político,
nesse sentido, não é simples expressão da estrutura econômica. Em virtude disso é que se
pode asseverar que as interpretações economicistas – que analisam a dominação política na
província pelas modificações técnicas nos instrumentos de trabalho ou pelas estatísticas de
produção de matérias-primas para o desenvolvimento industrial – não têm força explicativa
suficiente para demonstrar o poder político das famílias dos barões alcantarenses e afins,
quais sejam: Azevedo Coutinho, Costa Ferreira, Franco de Sá, Viveiros, Gomes de Castro,
Araújo e Ribeiro.
As fazendas de Alcântara, no decorrer do século XIX, consistem no mais
das vezes, em símbolos de um poder que efetivamente não mais se baseava nelas. A
despeito das aparências, dos registros formais de terras e das tentativas de recuperação –
como no caso dos incentivos aos engenhos de açúcar em 1846-47, que levaram Alcântara
a possuir 13 engenhos nas duas décadas seguintes –, a estratégia efetiva das famílias de
fazendeiros baseava-se em cargos públicos e nas vicissitudes de uma carreira política, tendo
112
Alfredo Wagner Berno de Almeida
suas residências consolidadas em São Luís e no Rio de Janeiro. Pode-se resumir, portanto,
que as vicissitudes dessas estruturas de poder se referem, no caso de Alcântara, a relações
sociais que se caracterizam por pelo menos duas modalidades de antagonismos: uma,
concernente a conflitos latentes, intrínsecos ao processo de acamponesamento de escravos
no âmbito das fazendas arruinadas, sob a autoridade combalida de prepostos; outra, que se
refere a conflitos abertos, manifestos, e que envolve diretamente o combate aos quilombos,
que representam um processo produtivo autônomo que se consolida sobre as ruínas das
fazendas e do poder senhorial.
113
Pousada São Raimundo
Os quilombos em Alcântara
As ações dos quilombolas em Alcântara se intensificam a partir da primeira
década do século XIX. Em razão inversa à desagregação das grandes plantações de algodão
e de cana-de-açúcar, os quilombos expandem seu processo produtivo e ampliam suas
relações em diferentes circuitos do mercado de produtos alimentares, marcando presença
nos pequenos portos e nas vias de acesso às vilas de toda a região, sobretudo Alcântara,
Guimarães, Turiaçu e Viana. Há copiosa documentação administrativa colonial a respeito,
bem como interpretações de historiadores do século XIX que compulsaram fontes
documentais hoje inexistentes. O historiador César Marques, em 1878, sublinha quanto a
essa região que:
"desde 1811 principiaram a formar-se de novo alguns quilombos. (...)
Organizados ahi esses quilombos, estenderam seus domínios às comarcas
de Alcântara e Viana, pondo assim em risco a propriedade e segurança
individual dos seus habitantes tornando inacessíveis terrenos, aliás
fertilíssimos e apropriados a várias espécies de cultura." (Marques, 1878:14).
A fragilidade circunstancial dos instrumentos de coerção, em virtude da
derrocada econômica dos fazendeiros e de sua gradual retirada de Alcântara, favoreceu tal
expansão. A desorganização das grandes plantações, sem que houvesse um produto comercial
para substituí-las, acarretou uma relativa liberação da força de trabalho. Os mecanismos de
controle nas mãos de prepostos evidenciavam que a autoridade absoluta dos fazendeiros
principiava a atenuar-se. Os designados pelos senhores para exercerem atos como seus
feitores, administradores e semelhantes, que, em Alcântara, recebem a designação de
encarregados da terra, eram recrutados entre os próprios escravos mais próximos das
casas-grandes, que realizavam serviços domésticos e de criadagem mais afetos à vida privada
da família dos senhores1.
Transcendendo a incursões guerreiras, comumente ressaltadas pelos
historiadores regionais como características dos quilombolas, tem-se que os quilombos em
Alcântara foram, em verdade, consolidando um sistema produtivo relativamente autônomo
e estabelecendo vínculos estreitos não só com os pequenos produtores livres e índios das
áreas das antigas reduções, mas também com os escravos e com a camada incipiente de
foreiros das fazendas confiscadas das ordens religiosas e com os escravos que, com a
retração do plantio de algodão, se voltaram para o cultivo de arroz e mandioca, para a
pesca e para as atividades extrativas, sob a direção dos prepostos dos fazendeiros. De outra
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
parte, com a revogação do Directório2, em 1798, os índios, nas antigas terras das ordens
religiosas, tornaram-se livres da autoridade de diretores e soldados, instituída no regime
pombalino, que os faziam pagar além do dízimo o chamado "sexto", e também passaram
a produzir para si e a comercializarem seus produtos diretamente. Nas fazendas de algodão,
a queda vertiginosa dos preços no mercado, desorganizando as grandes plantações, levou a
que os escravos fossem reorientados para os cultivos de gêneros de primeira necessidade,
que nos períodos de alta do algodão eram adquiridos pelos fazendeiros nas áreas periféricas
às fazendas, mais próximas de São João de Cortes, controladas pelos índios, para abastecer
a escravaria. Tal reorientação tanto resolvia o problema de manutenção da força de trabalho
– considerando que aos senhores competia dar a seus escravos o necessário à vida para se
alimentarem e vestirem – quanto assegurava aos senhores receitas substanciais através da
comercialização nas praças de mercado de São Luís dos gêneros alimentícios que lhes eram
enviados pelos prepostos. Embora nenhuma lei garantisse aos escravos o pecúlio e vigisse
o princípio de que o escravo nada podia adquirir para si , sendo todo o produto de seu
trabalho obrigatoriamente destinado ao senhor, constata-se que, nesta situação examinada,
foi facultado aos escravos tempo de trabalharem para si e para seu próprio sustento. Esse
embrião de autonomia produtiva foi se consolidando nas décadas seguintes, erigindo as
chamadas terras de preto e convergindo para uma situação de aquilombamento, ou seja,
uma autonomia absoluta em relação aos senhores. Essa situação de aquilombamento abarca
também os próprios índios que, com o afastamento dos diretores em 1798, construíram
sua própria autoridade, independentemente de tutelas, sobre as chamadas terras de santo3
e terras de caboclos e estabeleceram relações sociais comunitárias e associativas (Weber,
1999:161) com escravos fugidos das fazendas, refugiados em seus domínios, e com os
povoados que foram sendo formados com a derrocada das fazendas de algodão. Semelhante
ação social baseia-se numa necessária aproximação de interesses e de autodefesa de áreas
de algum modo delimitáveis, num momento em que os fazendeiros, seus antagonistas
históricos, achavam-se circunstancialmente por demais debilitados economicamente para
reprimir duramente essa forma de autonomia. O sentimento de índios e escravos de
pertencerem afetiva e economicamente a territorialidades que controlavam efetivamente,
viviam como suas e às quais emprestavam suas próprias auto-atribuições, num momento em
que não lhes era permitido por lei ter quaisquer propriedades e pecúlios, evidencia uma
afirmação étnica. Ao afirmarem implicitamente direitos pessoais e de grupos não reconhecidos
legalmente como habilitados à posse e/ou propriedade, marcam uma diferença diante do
ordenamento jurídico colonial e descrevem uma trajetória que colide com ele ao se erigirem
como sujeitos. Recorde-se que os próprios fazendeiros, enquanto sesmeiros, usufruiam de
uma concessão régia e não eram proprietários das terras estrito senso e, após a extinção do
instituto das sesmarias em 1823, ficaram como "posseiros" até, pelo menos, a Lei de 18504.
Está-se diante, portanto, de diferentes vertentes de construção de
territorialidades, as chamadas terras de santo, terras de caboclos e terras de preto, em
que comunidades aparentemente separadas em termos étnicos convergem, por intermédio
de uma relação associativa abrangente, para um mesmo processo de territorialização étnica.
Tal quadro histórico permite compreender por que, em Alcântara, a memória das comunidades
remanescentes de quilombo não se atém a feitos militares ou a episódios de heroísmo, ou,
ainda, a figuras míticas, mais se concentrando na afirmação de uma forma de existir e produzir,
com base num sistema de uso comum dos recursos naturais e numa reciprocidade positiva
116
Alfredo Wagner Berno de Almeida
entre as famílias de diferentes povoados. Em termos de uma datação, pode-se afirmar que
semelhante sistema, nas terras das fazendas das antigas ordens religiosas, já tem mais de dois
séculos e, nas demais situações sociais específicas de Alcântara, tem quase dois séculos.
De certo modo, a desagregação das fazendas dos sesmeiros em meados do
século XIX reproduzia condições de acamponesamento da força de trabalho imobilizada,
tal como já se verificara nas antigas fazendas dos jesuítas, na segunda metade do século
XVIII, e naquelas das demais ordens religiosas depois de 1821. Através do trabalho familiar,
os escravos garantiam o seu sustento e propiciavam, a cada colheita, quantidades significativas
de farinha e arroz aos fazendeiros então absenteístas. As chamadas casas de forno, ou
edificações utilizadas para o beneficiamento da mandioca, e os portos constituíam o núcleo
básico dos povoados que foram sendo formados. As casas-grandes e as benfeitorias
desmontadas e vendidas já não representavam a referência principal daquelas terras de
sesmarias, ainda que muitos dos chamados sítios velhos ficassem localizados nas
proximidades de portos, para facilitar o escoamento da produção. A partir dos portos, os
prepostos embarcavam em pequenos barcos a produção dos gêneros comercializáveis
para a Praia Grande na capital São Luís, fortalecendo paradoxalmente, não necessariamente
os senhores, mas um sistema produtivo cada vez mais autônomo.
A paisagem descortinada por Pereira do Lago em fins de 1819 e início de
1820, na estrada e no rio Periaçu (Pirauaçu), que demandavam São João de Cortes, que
ele denomina de "povoação de índios", bem ilustra a magnitude da prevalência do
plantio de mandioca, já não havendo inclusive quaisquer informações essenciais sobre
grandes plantações de algodão ou sobre os indigoteiros. As informações sobre as
fazendas mencionadas pelo engenheiro militar Pereira do Lago cingem-se a:
"De Alcântara para ir à beira do rio Turi toma-se logo a estrada do Pirauaçu
até onde são 3 ½ léguas, caminho muito bom e acompanhado de três
fazendas, por entre matas, que já foram queimadas, e terreno quase
todo de areia. Esta estrada corre ao norte, e depois 420 noroeste. Embarcase no igarapé Pirauaçu, cuja largura varia desde 20 braças até 110, e suas cabeceiras
são no Pirajaratoca, todo de mangue aos lados, e só com uma fazenda
Morari, até chegar à povoação de São João de cortes, e até aqui 2 léguas.
Esta povoação de índios é muito antiga, constava de 22 fogos e cousa de
90 a 100 almas (...) Plantam só mandioca, porque para mais nada
serve o terreno." ( Pereira do Lago, 2001:16) (g.n.)
Os quilombos e a governação pombalina
A autonomia produtiva, por outro lado, foi sendo conquistada
concomitantemente com a consolidação dos chamados quilombos ou mocambos. Sobre
isso, cabe assinalar que os registros relativos à incidência de quilombos em Alcântara,
levantados a partir da consulta a documentos burocráticos das administrações dos períodos
colonial e imperial, deixam entrever que, mesmo antes e durante a governação pombalina, as
ações dos quilombolas já eram registradas, embora com menor recorrência do que no decorrer
117
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
do século XIX. O termo "mocambo" é acionado nessa documentação em sinonímia com
quilombo, como se poderá destacar nos excertos transcritos nos quadros adiante apresentados.
No período colonial, ou mais exatamente entre 1701 e 1751, as fontes
documentais e arquivísticas compulsadas compreendem basicamente a correspondência
entre a Casa Real, na metrópole, e a alta hierarquia do corpo administrativo da colônia, isto
é, do Estado do Grão-Pará e Maranhão, separado do Brasil desde 1621.
Na interpretação de Viveiros:
"Pelo que investigamos, no Maranhão, o mais antigo mucambo data do
ano de 1702. Localizou-se nos sertões do Turiaçu, tendo sido destruído
pelo Governador Fernão Carrilho, que lá aprisionou centro e vinte escravos,
cobrando por seus senhores por peça a quantia de oito mil réis, no que foi
censurado pela Coroa. No decorrer dos anos, foram surgindo mucambos
em vários lugares maranhenses: Viana, Pinheiro, Alcântara, Guimarães,
Maracassumé, donde não raro saíam os africanos para a pilhagem das
fazendas." (Viveiros, 1954:88)
A Companhia de Comércio do Maranhão (1682-84) introduzira uma
quantidade de escravos africanos muitíssimo inferior ao previsto, qual seja: 500 escravos
por ano, durante vinte anos. Não durou mais que dois anos e assim mesmo com resultados
incompletos (Salles, 1970:30). Assim, não é difícil entender por que a composição dos
quilombos, consoante os registros da administração colonial, assinala uma destacada
participação de índios. Os próprios termos designativos denotam tal idéia ao designarem o
quilombo como: "aldeia de escravos fugidos". Do mesmo modo, a caracterização da ação
é assim registrada: "gentios do corço" (sic). A noção de corso denota ataques esporádicos
e irregulares, porém rápidos e sucessivos, feitos de forma isolada ou em grandes grupos,
sem objetivo de ocupação permanente, apenas fustigando ou visando o roubo de
instrumentos de trabalho em ferro e de gado para tração e alimento. São essas incursões
guerreiras que afetam Alcântara ainda no período em que os colonos se opunham aos
empreendimentos econômicos das ordens religiosas. O termo gentios parece prevalecer
nos quilombos e os chamados pretos e caboclos só vão ser mencionados quando, por
razões estratégicas de povoamento, os administradores coloniais passam a favorecer o
casamento com índios, proibindo que os filhos recebessem a denominação de caboclos, e,
depois, passam a privilegiar os próprios índios, libertando-os da escravidão, em 1755, e
mantendo formalmente nessa condição principalmente os chamados pretos.
A própria área correspondente a Alcântara surge inicialmente como dentro
Notas ao Quadro da página 119:
(1) O jurista Perdigão Malheiro, em 1864, menciona o quilombo do Turiaçu como tendo durado cerca de 40 anos
(Malheiro, 1976 : 36 ). A. César Marques, em 1872, registra como este quilombo se expandiu para Alcântara e Viana.
(Marques, 1878, páginas 5-69). J. Viveiros cita este documento de 1702, que foi reproduzido pelos Anais da Biblioteca
Nacional em 1948, volume 66, páginas 212-213, como referente ao quilombo mais antigo do Maranhão (Viveiros,
1954:88) mencionando como em Alcântara, Viana, Pinheiro, Guimarães as fazendas eram alcançadas pelos quilombolas
saídos de Maracassumé, Turiaçu.
(2) Cf. M. Carneiro de Mendonça - A Amazônia na era Pombalina : correspondência inédita do governador e capitão
- General do Estado do Grão Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado 1751 - 1759. Rio de Janeiro,
IHGB, 1º Tomo, 1963 pp. 303 - 304.
118
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
do raio de ação dos quilombolas que tem seu principal núcleo no Turiaçu. O documento
que a consagra, e que é reconhecido pelos principais historiadores maranhenses como um
marco na história dos quilombos no Maranhão, é uma carta do rei de Portugal ao governador
geral do Estado do Maranhão, Fernão Carrilho, datada de 20 de março de 1702, em
resposta à correspondência de 06 de maio de 1701, dando notícias de que: "no certam do
Rio Turiacú que estavão humas Aldeias de escravos que se tinhão levantado a muitos anos
e fugido a seus senhores." (sic)
Esse documento foi lido e citado por César Marques, em 1872, e também
por Viveiros, em 1954, tornando-se uma referência obrigatória da historiografia regional.
Assinala que os chamados "corsos" ocorreram simultaneamente em Turiaçu, Viana e
outras áreas, tal como ocorreria 165 anos depois, quando os quilombolas de São
Benedito do Céu se deslocaram no sentido de Viana, destruindo fazendas. A menção a
Alcântara é inteiramente complementar.
O outro documento detectado é também uma carta, só que do capitão geral
do Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao rei de Portugal, datada
de 16 de novembro de 1752. Nela, o referido capitão geral, que era irmão do Marquês de
Pombal, tenta estabelecer uma aplicação diferenciada de pena para "índios" e "pretos"
capturados num mesmo quilombo, afirmando que os primeiros não deviam ser marcados
como os outros. Como justificativa da pretendida distinção, trata os "pretos" como
atomizados, enquanto os "índios" são representados como povo, agregando um limite,
qual seja, que é "impossível castigar um povo inteiro". Quatro anos antes da "Lei das
Liberdades dos Indios", já fala em libertação dos índios. A repressão seletiva no período
pombalino se volta principalmente contra os chamados pretos e os caboclos.
O uso do termo "cativeiro" na documentação, referido à condição de escravo,
ainda hoje é de uso corrente na região, denominando situações vividas como de opressão
e subordinação5.
A documentação pombalina é mais voltada para medidas produtivas, alusivas
à formação das fazendas, ao tráfico de escravos e à comercialização de gêneros agrícolas e
extrativos. Não foi encontrado nessa documentação um registro sequer de levantes ou
incursões dos quilombolas nas fazendas, embora as matas do Turiaçu sempre estejam nas
entrelinhas da captura de escravos e de supostos perigos, e os portos de Cururupu e Turiaçu
sejam sempre citados nas rotas de contrabando e do comércio ilegal de escravos. O
movimento de escravos por esses portos não passava pelas estatísticas alfandegárias e de
controle oficial (Salles, 1971:41). A concentração de interesses do Estado dinástico, através
da Companhia Geral de Comércio, no transporte e na comercialização de escravos, resolvia
um problema atinente aos empreendimentos agrícolas desde fins do século XVII, isto é,
aumentava a oferta de escravos e facultava créditos que fortaleciam a capacidade produtiva
e os instrumentos repressores ao alcance dos fazendeiros. A expansão das fazendas e o
crescimento da vigilância e dos atos coercitivos podem ter inibido as incursões quilombolas.
Uma terceira forma de registro de quilombos que foi detectada na
documentação data do período de 1785 a 1793. Trata-se de referências explícitas a
"mocambos", "enseada de preto fugidos", "lagos dos mocambos" e "ações de Capitão do
Mato" que aparecem explicitamente nas cartas de datas e sesmarias que asseguram as
concessões do poder real passadas aos sesmeiros: Ignácio de Araújo Cerveira, em 1785;
120
Alfredo Wagner Berno de Almeida
capitão Manoel Ferreira dos Santos, em 1787; José Alberto da Silva Leitão, em 1788, e João
de Carvalho Santos, em 1793. No caso da concessão passada ao capitão José de Araújo
Cerveira, em 1787, a referência é implícita. Nessa documentação colonial, a ocorrência de
quilombos antecede, de maneira flagrante, ao próprio registro de sesmarias. Embora
apareçam nos registros oficiais como meros topônimos de acidentes naturais (lago, enseada,
rio), a menção à ação repressora de capitão do mato e militares desnaturaliza-os, porquanto
evidencia conflito, dotando de vida o que se supõe extinto ou não mais existente. Os
registros dizem respeito ao chamado "Lago do Mocambo" e à "enseada dos negros
fugidos", que corresponderiam a quilombos cujas áreas foram entregues por concessão
régia a sesmeiros que dispunham de escravos e recursos e diziam que as terras eram
"devolutas" e que, nelas, ocupação não havia. Trata-se, pois, de doações de sesmarias em
terras ditas devolutas e supostamente sem qualquer presença humana, conforme foi citado
anteriormente.
Cotejamos os dados documentais com aqueles da história oral através de
duas entrevistas realizadas nas periferias de Alcântara e obtivemos informações que localizam
essas áreas próximo ao rio Aurá, ao sul do município de Alcântara, e próximo ao antigo
povoado de Peru – que se localiza na chamada "área de segurança da base" e foi deslocado
compulsoriamente pelo Centro de Lançamento de Alcântara, em 1987, para a agrovila que
hoje responde pela mesma designação de Peru.
O depoimento de Dona G., nascida em Marudá e atualmente residindo em
Alcântara, adianta que:
"G. - Tem a Lagoa do Mocambo que é da terra do Peru. A Lagoa do
Mocambo era do Sítio do Peru. O Peru era junto com a nossa terra.
A nossa terra faz divisão com o Peru. Era um lugar chamado Boca
da Lagoa. Boca da Lagoa era a junção da nossa terra com o Peru.
P. - E a Sra. tem alguma informação sobre esse Lago do Mocambo?
G. - Tem o mocambo... que morava o povo do Peru mesmo. Um
senhor que morreu. O nome dele era João Francisco. Eu não sei o
sobrenome, né? Mas João Papudo era o apelido. Era o dono desta
terra.(...)
É, mas quando nós chegamos naquele Jabaquara, era uma terra que
tinha tapera para todo lado, era preto mesmo. Já tinha morado gente.
Tinha tapera de casa pra todo lado. É... Tinha tapera para todo lado.
Tinha até um lugar que tinha uma tapera...No tempo que meu pai
contava, que no tempo da guerra, no tempo da guerra, que o pessoal
se escondiam mode a pegação, que os soldados que eles pegava o
pessoal pra levar pra guerra." ( G. 22.04.2002 - ENT. 35) (g.n)
Há uma superposição entre os chamados mocambos e os locais de refúgio
nos períodos de recrutamento obrigatório para prestação de serviço militar, que
compreendem as guerras da Independência, as lutas chamadas "separatistas", do início
do segundo reinado, a Guerra do Paraguai e a citada I Guerra Mundial. Mesmo que essa
referência histórica à I Guerra possa carecer de exatidão, tem-se uma analogia entre
quilombo e "esconderijo", em circunstâncias vividas como de não-acatamento de
121
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
disposições legais e compulsórias. Senão, vejamos a entrevista de M., representante de
povoado:
"Existem algumas taperas no Peru, essas taperas era o lugar onde eles se
escondiam na época da guerra, na primeira guerra mundial. Tinha como
lugar chamado Mucambo. Vocês chegaram lá no Mucambo, no Peru, você
encontra as tapera onde eles habitavam na época da guerra que eles se
escondiam. O Mucambo, São Benedito, Tapera do Padre, Monte Alegre e
Peru de Cima. Esse lugar você pode chegar lá que você ainda encontra
alguma coisa dos pessoal mais antigo, esses escravos que vinham antes.
Então, era tapera, uma como em Alcântara tem aqui hoje tem várias muralhas,
só que lá não tem muralha: eles só corriam para lá nas épocas de guerra.... Lá
era o esconderijo deles." ( M. P. 19.04.2002 - ENT. 11.3). (g.n)
A noção de quilombo como valhacouto abrange, no texto das entrevistas
realizadas, um repertório de termos que designam resistência a atos coercitivos pela
fuga e refúgio e contêm simultaneamente referências ao apresamento de índios para o
trabalho escravo nas fazendas, ao alistamento compulsório para prestação de serviços
militares e à fuga de escravos das fazendas. Nesse sentido, torna-se indissociável de
termos como pegação e toca, que foram detectados em praticamente todas as
entrevistas realizadas e em todas as situações sociais registradas, tais como as chamadas
terras de santo, as terras de preto, as terras de caboclo e demais territorialidades
específicas.
As próprias histórias dos antepassados são narradas consoante esses
marcos, como frisa o Sr. J. N., 69 anos, que vive em São João de Cortes:
"Bem aqui nós tamos aqui dentro de uma toca. Isso aqui era uma
aldeia, os meus avós, os meus bisavós foram pegados a cachorro
pra poder domesticar. Era índia a minha bisavó e no tempo da
guerra do Paraguai houve aquele povo que tava pegando aquele povo
por dentro do mato para exército, pra entrar pra guerra aí pra fora.
Morreu tanta gente nesse navio sem ter necessidade e quando os filhos
dela, com os netos dela, um dos netos se meteram de baixo da saia
dela, que a saia dela era lá no pé. Se meteram embaixo da saia da velha
que era pra não ir pra guerra. E sem ser eu, outras pessoas daqui
podem também dizer a mesma coisa que eu estou lhe citando, porque
aqui nós tudo somo uma parenteza toda. O povo se olha é tudo jeito
de índio. E a parte indígena e a cidade dessa comunidade foi adoada
pelos índios." (J.N. 20/04/2002 ENT.22) (g.n.)
No mesmo sentido, tem-se o depoimento do Sr. E. A. , 60 anos, que exerce
atividade de pesca em Brito:
"Aqui a toca pra ali desse mato, desse mato grosso pra lá, que eu tô
te falando, a gente encontra parte aí de mato, tem um lugar chamado
Tabaquinha (Tabatinga), cansei de achar assim casca de sernambi e
122
Alfredo Wagner Berno de Almeida
osso dentro daquele mato. Eles fugiam ali. Meu pai ele ainda contava
que fugiu, passou seis dias dormindo no mato com medo...Acontece
na vida do ser humano, rapaz, eles tinham medo, quando diziam a
pegação aí todo mundo corria para se esconder no mato. Tinha
criança que entrava no mato e saía de lá era pai de família, assim tem
muito povoado aí só de preto, que fugia aí de Alcântara, ganhava a
mata aí atrás. Então acontecia isto no município de Alcântara." (E.A.
20/04/2002 - ENT. 21.3)
"Eles vinham apanhá o sernambi de noite para levar para comer
com a família no mato, que quando eles fugiram dos brancos, que
branco era perverso, outro não era tão perverso assim como se dizia
e por isso que eles fugiam e iam fazer moradias, hoje tem muito
povoado, no município de Alcântara, porque eles fugiram e os outros
iam fazer suas casas no mato, quando acabou a escravatura, que
foram libertos os escravos, aí esse povoado aí, cada um... ficaram
independentes, ali de Canelatiua, antes do governo chegar com a
base...". (E.A. 20/04/2002 - ENT.21.3) (g.n)
Não importa em que tempo, se no passado ou no presente, as
representações de medo e fuga se mesclam na prática dos entrevistados, reatualizando
per manentemente uma for ma de resistência aos antagonistas, sejam eles os
denominados brancos ou o Estado. Essas características são em tudo definidoras de
quilombo. "A fuga é inerente à escravidão" (Perdigão Malheiro, 1976:34), como já
dizia Perdigão Malheiro em 1864, e se é recorrente, assim se mantendo na memória
dos entrevistados, é porque tanto é maior o rigor e a perversidade dos atos coercitivos
que sobre eles se abatem. O medo, por sua vez, mesmo conjugado com fuga, denota
pressentimento de perigo e uma visão aterradora do alcance dos instrumentos de
repressão da força de trabalho, que marcaram a sociedade escravista e colonial.
A consolidação dos quilombos no decorrer do século XIX
Pode-se constatar uma expansão dos quilombos em Alcântara, entre 1811
e 1837, sem que contra eles tenha sido empregada uma força repressora significativa.
As lutas políticas que marcaram a Independência e a adoção de dispositivos
constitucionais, que inclusive extinguiram as sesmarias, se estenderam até fins da década
1820-30. Em Alcântara, os fazendeiros, com a derrocada da economia algodoeira e
com sua retirada das fazendas, exerceram predominantemente o monopólio sobre
determinados cargos e funções de representação política. Valendo-se da posição
preponderante de Alcântara sobre a região da Baixada Ocidental, centralizaram
interesses e estabeleceram articulações privilegiadas com o poder provincial, através
das Juntas Governativas 6, e com a Côrte. Em 11 e 16 de agosto de 1823, consignaram
atos de juramento de fidelidade e apoio à Independência e ao imperador Pedro I,
em cerimônia realizada na Câmara da vila de Alcântara. Representantes de Guimarães,
São Bento, Santo Antonio e Almas e Pinheiro se fizeram presentes. As famílias Franco de
123
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Sá, Viveiros, Ribeiro, Araújo, Costa Ferreira, Araújo Cerveira, Gomes de Castro ocupam
cargos proeminentes (presidente da câmara, vereadores, comandante de destacamentos
militares, tenente-coronel, capitão, alferes e procurador) juntamente com outras famílias
que haviam sido aquinhoadas com concessões de sesmarias no século XVIII. Os próprios
sesmeiros, mencionados anteriormente, aparecem como signatários dos documentos, bem
como os futuros barões sagrados pelo imperador, a saber: Severo Antonio de Araújo
Cerveira, Romualdo Antonio Franco de Sá, Francisco Mariano de Viveiros, Antonio Pedro
Ribeiro, José Ascenso da Costa Ferreira, Antonio Pedro da Costa Ferreira, Jerônimo José
de Viveiros etc., além de religiosos carmelitas e padres seculares7. O principal teatro de
operações das forças militares encontrava-se na esfera política. Em Alcântara, as fazendas
em abandono, administradas por prepostos, evidenciavam uma certa deserção dos
fazendeiros. Até 1837, não foram encontrados documentos indicando a mobilização de
tropas de linha para combater os quilombos em expansão, nem a crescente autonomia
produtiva dos escravos sob a direção dos prepostos. Isso provavelmente explica por que em
Alcântara, e particularmente nas duas freguesias de São Matias e São João de Cortes, não
foram registradas "fugas em massa" de escravos, tal como ocorrido em outros pontos da
região como Guimarães8, ou grandes rebeliões, como em Viana9. Os escravos, em Alcântara,
permaneceram com suas famílias nas fazendas de algodão cultivando e garantindo sua
autonomia a partir do processo produtivo. Certamente que o mesmo ocorreu em algumas
áreas de Viana, Cajari e Guimarães, em engenhos de membros da denominada "aristrocracia
alcantarense", que não conseguiram mantê-los sob seu controle absoluto. A desagregação de
engenhos com formação de quilombos, como nos casos do Engenho Kadoz, da família
Viveiros, e do Engenho Frechal, da família Coelho de Souza, bem ilustram isso.
Entre 1835 e 1886, detectei registros oficiais de quilombos em todos os tipos
de estabelecimentos agrícolas de Alcântara, quaisquer que fossem: antigas fazendas de ordens
religiosas (Itamatatiua e povoados próximos, Mercês), fazendas de algodão (Esperança),
engenhos de cana-de-açúcar (Gerijó, Mutiti, Itapiranga, São Maurício e povoados próximos)
e fazendas de gado (Tubarão). Detectei registros de história oral de quilombos nessas mesmas
unidades de produção e ainda em Flórida, Forquilha, Ladeira, Peroba de Cima, Itapuaua,
Samucangaua, Iririzal, Peru, Brito e Itapera. Detectei também registros de quilombos em
todas as territorialidades específicas: nas antigas terras de índio doadas para o santo (São
João de Cortes), nas chamadas terras da santa (Itamatatiua e povoados próximos), nas
denominadas terras de santíssimo (centralizadas em torno de Santana dos Caboclos e
Samucangaua), nas designadas terras de caboclo (Peroba de Cima e povoados próximos)
e nas chamadas terras de preto. Estas últimas são mais numerosas e abrangem quase
todos os povoados da antiga freguesia de São Matias e quase toda a de São João de Cortes,
considerando a interpenetração entre os planos organizativos de tais territorialidades (Geertz,
1967:257). Detectei a referência a quilombos em todas as situações caracterizadas por doação
de fazendeiros, como nas denominadas terras da pobreza (Canelatiua e povoados
próximos) que foram doadas explicitamente e por disposição registrada em cartório,
incluindo-se também as doações informais, como seria o caso de Vai com Deus; situações
caracterizadas por herança, como seria o caso de Santo Inácio e São Raimundo, situações
caracterizadas por aquisição, como seria o caso de Baixa Grande, entre outras.
124
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Detectei, finalmente, a menção explícita a quilombos em documentos alusivos
a todas as quatro freguesias correspondentes a Alcântara no século XIX, quais sejam: São
Matias, São João de Cortes, Santo Antonio e Almas e São Bento.
As principais fontes documentais e arquivísticas levantadas entre 1837 e 1886
concernem a carta de fazendeiro e ofícios de juiz de paz dirigidos a autoridades provinciais,
documentos de chefes e subdelegados de polícia, além de procuração passada em cartório
e denúncias de fuga de escravos e de incursões guerreiras de quilombolas. Completam tais
referências interpretações documentadas de historiadores regionais, como César Marques,
em 1872, e dispositivos da legislação provincial que focalizam a repressão aos quilombos.
O primeiro desses dispositivos data de 1835 e trata-se da Lei n° 5, de 23 de abril, em
que o presidente da província, Antonio Pedro da Costa Ferreira, natural de Alcântara e já mencionado
anteriormente, busca reorganizar o aparato policial da província. Para tanto, institui um Corpo de
Polícia Rural, sob as ordens diretas do juiz de paz em cada município, com destacamentos consoante
à necessidade dos distritos tal como informado pelas câmaras municipais. A criação dessa força
militar, recrutada nos próprios municípios conforme o Art. 13, volta-se basicamente contra os
quilombos e estabelece premiações, além do soldo, para soldados e respectivos comandantes que
aprisionarem escravos fugidos em cada distrito. Consoante o Art. 4º:
"Quando no ataque de um quilombo concorrerem dous ou mais
soldados, se repartirá por todos eles com igualdade as somas das gratificações,
que se houverem de pagar pelos escravos aprehendidos." (sic)
A reestruturação do aparato militar e as denúncias que começam a ser
encaminhadas aos juizes de paz a partir daí evidenciam um certo grau de consolidação dos
quilombos na província do Maranhão e notadamente em Alcântara. Aqui, ao contrário das
demais regiões do Maranhão, as tropas de linha imperiais, preocupadas em enfrentar as
tropas dos chamados Balaios, não tiveram qualquer participação maior. A partir do Vale
do Itapecuru, quase toda a província estava imersa na guerra da Balaiada, entre 1839 e
1841. Foram capturados por Caxias cerca de 3.000 quilombolas dos 11.000 balaios feitos
prisioneiros. Os quilombos de Alcântara ficaram relativamente à margem desses entreveros,
porquanto não constituíam ameaça direta ao poder político. De igual modo, as escaramuças
em Alcântara são esparsas, não se registram grandes combates nas proporções dos que, em
1855, marcaram a campanha militar no Turiaçu, ou tal os de 1866, que levaram ao
aprisionamento de uma centena de quilombolas de São Benedito do Céu, quando saíam
das matas do Turiaçu em direção a Viana. A despeito disso, tem-se uma regularidade de
ocorrências que deixam entrever uma resistência constante e uma expansão sobre as áreas
em que a cultura do algodão foi desaparecendo. A dispersão dos quilombos por toda
Alcântara bem traduz esse movimento ascendente que vai tornando cada vez mais indistinta
a produção deles daquela que os escravos mantêm para si nas fazendas ainda controladas
parcial e precariamente pelos feitores e encarregados. As ruínas das antigas fazendas, apagando
as diferenças entre domínios formais e ocupações efetivas, constituem um cenário comum
para essas modalidades de acamponesamento que convergem para um mesmo processo
de territorialização. O quadro das páginas seguintes arrola os registros levantados no decorrer
dos trabalhos de perícia, que evidenciam como os quilombos foram focalizados pela
documentação administrativa no período imperial.
125
NOTA:
(1) Não lancei no quadro a referência de Jerônimo de Viveiros, publicada no artigo "O Mocambo de Pinheiro" na coluna Quadros da Vida Pinheirense, do periódico Cidade de
Pinheiro de 12 de Junho de 1955, a um escravo fugido do Engenho Castelo que o historiador conheceu e entrevistou.
A seguir transcrevo a informação: "O mucambo de Pinheiro foi famoso, famoso não pela ferocidade dos seus atos, mas pela sua organisação. Chamou-se São Sebastião e entre os
seus zumbis teve um negro inteligente - Pai Mané, que lhe imprimia moldes cooperativistas. Lá a produção agrícola era da coletividade. Todos trabalhavam nela, mas ninguém
usofruia maior quinhão. Por esta maneira, a subsistência era garantida igualmente a velhos e moços. Não se dava o mesmo na pilhagem, que pertencia a quem a fizesse. Neste caso
consideravam a exploração aurífera que faziam nas terras da Fazenda São José, de propriedade do Comendador José Maria Correia de Souza, de Alcântara. Era negócio privativo
dos maiorais do mucambo. Ninguém sabe porque nêle tomou parte ainda moço o calhambola Silvério, escravo de uma das netas do dono de São José. A verdade é que Silvério,
anos depois de ter fugido do Engenho Castelo, apareceu no Pindaré e mandou oferecer à sua senhora garrafa e meia de oiro em pó pela sua carta de liberdade. Ameaçado de prisão,
tornou a desaparecer, sem realizar o negócio. Após o 13 de maio, abandonou o mucambo São Sebastião, vindo residir na vila, dizem que com alguns haveres, que os filhos
desbarataram. Conhecemo-lo, há uns trinta anos, quando veio a São Luis comprar um rife e visitou-nos à rua de Santo Antonio. Estava velho e paralítico dos membros inferiores,
o que certamente o impossibilitava de minerar. Não parecia ter dinheiro. O seu aspecto era de um homem amigo da verdade. Foi dêle que colhemos estes dados."
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Em 1837, mediante a denúncia do fazendeiro de Alcântara Raymundo da
Conceição Lemos ao vice-presidente da província, Joaquim Franco de Sá, também fazendeiro
em Alcântara, não é difícil constatar, pela recusa explícita dos soldados em procurarem os
escravos fugidos, a fragilidade do aparato repressivo. Os soldados alegavam que não iriam
participar da captura dos escravos fugidos devido ao fato de "terem trabalhado um ano
inteiro sem terem sido (serem) pagos". Pela quantidade e dispersão dos quilombos, podese verificar que as gratificações previstas em lei não pareciam suficientes para animar a
tropa, obrigando os fazendeiros a empreender a busca com milícia privada formada por
seus próprios "escravos de confiança". O sentido de quilombo nesse documento é tomado
como sinônimo de unidades de moradia dos escravos fugidos, reproduzindo a noção
difundida pela legislação colonial10 e pelos relatos militares. O denunciante se refere a fatos
ocorridos no distrito de Carvalho, onde já não se plantava mais algodão em 1819, conforme
atesta o coronel Pereira do Lago, descrevendo tal distrito:
"Todas estas terras pouco já servem para algodão, mas só para
mandioca. Onde chamam Carvalho é um istmo de ½ légua entre o fim
de dois rios, ao norte pelo do Carvalho, ao sul pelo Tucupai, de sorte
que as cargas que vem do Pericumã descem por este rio, entram no do
Carvalho, descarregam atravessando ½ légua e tornam a embarcar no
Tucupai para chegarem a Alcântara." (Pereira do Lago, 2001:34) (g.n.)
Na Fazenda de Tammata-tira (Itamatatiua), que pertencia à ordem dos
carmelitas antes do período pombalino e que ainda estava arrolada entre os bens do
Convento do Carmo, local das principais ocorrências, tem-se que os quilombolas ameaçam
tomar o controle do encarregado das terras. Na outra fazenda de Felipe Joaquim Viegas,
no Tubarão, tem-se que a incidência dos quilombos, bem próxima à sua moradia, precede
ao registro das terras que teria ocorrido em 28 de maio de 1855 conforme o livro dos
registros paroquiais n° 01, folha 10. Os outros povoados citados são Rio Grande e Mucajuba,
onde o denunciante registrou roubo de gado e ameaças de morte a vaqueiro.
Neste mesmo março de 1837, o juiz de paz reitera a denúncia dos quilombos
no 5º distrito em novo documento ao vice-presidente da província e reafirma o envio dos
armamentos necessários para a sua dispersão.
No período da Balaiada, não se registram movimentos de tropas em Alcântara
combatendo os quilombos. No ano de 1844, após o término da guerra e dentro da política
do governo provincial de reintroduzir o "hábito e a disciplina de trabalho nas fazendas", os
guardas campestres instituídos pela Lei Provincial n° 44 já se achavam estabelecidos na
Subdelegacia de Alcântara para punir a vadiagem nos campos. Então, já havia um projeto
de reinstalar em Alcântara engenhos de açúcar e comercializar a produção. A insuficiência
dos guardas campestres em face da amplitude da ação quilombola leva o governo provincial
a aprovar novos instrumentos repressivos. Em 1846-47, ocupando a presidência da província
o alcantarense Joaquim Franco de Sá – filho do sesmeiro Romualdo Franco de Sá e genro
de Antonio Pedro da Costa Ferreira, que também governara a província em 1834-35 e que
instituíra a polícia rural –, define como política de governo a implantação de engenhos de
açúcar na província. Antes, porém, através da Lei n° 236, de 20 de agosto de 1847, intenta
130
Alfredo Wagner Berno de Almeida
reorganizar os dispositivos de repressão aos escravos fugidos. Para debelar os quilombos,
através da autoridade do juiz de paz, disciplina a ação dos capitães do mato instituindo uma
força repressiva com pelo menos dois capitães por distrito, sendo que cada um deles não
poderia dispor de mais de cinco soldados. Nota-se um misto de força regular e milícia
privada animado por uma classificação dos quilombolas aprisionados em três diferentes
situações, às quais correspondem gratificações distintas:
"Art. 5 - Os Capitães do Mato perceberão vinte mil reis por cada escravo
que for achado em quilombo; dez mil reis pelo que andar a corso, e dois
mil reis pelo que for achado nas cidades, Vilas ou povoações e até uma
légua de distância das mesmas."
Tais gratificações são bem mais elevadas do que aquelas instituídas pela Lei n°
5, de 23 de abril de 1835. Excedem-nas em 100% nos dois primeiros casos aventados, caso
sejam tratados em separado os soldos. Além disso, o Art.9o previa que os capitães do mato
deveriam receber as gratificações anunciadas e prometidas pelos senhores, enquanto o Art.
10 dispunha que os quilombos tornavam-se presa de guerra, ou seja, todos os objetos
encontrados nos quilombos seriam distribuídos entre os capitães do mato e seus soldados.
Em outras palavras, havia uma escassez de força de trabalho para os empreendimentos
açucareiros e o tráfico de escravos, começando a enfrentar obstáculos legais, já não assegurava
mais uma oferta regular, o que aumentava consideravelmente o preço dos escravos, tornando
a captura de escravos fugidos um negócio alta rentabilidade. Consoante os entrevistados de
Itapuaua, seus avós narravam casos em que fazendeiros chegavam a roubar escravos uns
dos outros:
"Disse que tinha o preto vigia, que eles tinham medo do preto, esse que
vigiava... se fizesse alguma pegação, ele saía de noite ia dizer pro
branco. Puxava, dizem que ele puxava uma corda assim aí vinha o branco.(...)
– O caçador caçava quem?
– Eles roubavam um do outro. Os brancos eles roubavam preto um do
outro. Eram três irmãos, da família Araújo, na Esperança, no Mutiti e
abaixo." (A.C.A.ou A.T. 21/04/2002 - ENT. 23.1)
Em virtude da aludida escassez, os fazendeiros, que pretendiam estabelecer
engenhos com maquinarias inglesas e norte-americanas, passavam a ter interesses mais
imediatos no resultado da ação das milícias. Os quilombos são vistos, nesse momento,
como depósitos de mão-de-obra. A referida lei preconiza, inclusive, a montagem de um
cadastro de escravos fugidos atualizada a cada ano.
Nesse contexto, a legislação provincial maranhense procede a uma revisão
no conceito de quilombo, estreitando-o severamente e adequando-o às novas
necessidades produtivas. Afasta-se da quantidade mínima de escravos fugidos, requerida
nos dispositivos coloniais, que correspondia a cinco, reduzindo-a drasticamente para
dois. Os mecanismos repressivos aumentam e o quilombo passa a ser definido pelo
"escravo aquilombado", restringindo o sentido de reunião tão recorrente na
documentação administrativa colonial.
131
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
"Art. 12o - Reputar-se-á escravo aquilombado, logo que esteja ao interior
das matas, vizinho ou distante de qualquer estabelecimento, em reunião
de dois ou mais com casa ou rancho."
Ao aprovar essa lei, a Assembléia Legislativa Provincial se coloca nos debates
que precedem a Lei de terras de 1850 e que se desenrolam desde 1839 com participação
destacada dos parlamentares alcantarenses. Entre os fazendeiros, havia grupos com interesses
diferenciados: os sesmeiros que tinham suas posses confirmadas, os que não possuíam
confirmação e os que se mantinham na condição de simples apossamento (Shiraishi, 1998:28).
Como as listagens correspondentes aos registros de terras em Alcântara, expedidos entre
1777 e 1816, arrolam menos de 25 nomes, pode-se imaginar que a última situação
compreendia um número mais elevado de fazendeiros, que não se atinham às extensões
usualmente concedidas e às exigências legais do período imperial, e é nesse sentido que
poderia ser lida a manifestação do senador Franco de Sá nos debates parlamentares entre
1841 e 1843, sobre o tamanho das propriedades, autodefinindo-se como representante da
"classe dos posseiros" (Carvalho, 1981:39).
Com a Lei de Terras de 1850 e com a organização por freguesia dos registros
das terras, foram instituídos os "registros paroquiais" ou "registros do vigário" (Shiraishi,
1998:26), que consistiam em autodeclarações. Nesse contexto, aumenta significativamente o
total de registros. Em três freguesias de Alcântara – São Matias, São João de Cortes e Santo
Antonio e Almas – foram registrados, entre 1854 e 1857, 345 imóveis rurais, isto é, 135
registros na primeira, 25 na segunda e 185 na outra.
Registro de terras segundo declaração do possuidor
Alcântara (São Mathias): 1854 - 1857
132
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Registro de terras segundo declaração do possuidor
Alcântara (Santo Antônio e Almas): 1854 - 1857
Registro de terras segundo declaração do possuidor
Alcântara (São João de Cortes): 1855 - 1856
As informações sobre o tamanho das áreas foram freqüentemente omitidas:
apenas 49 na primeira, 14 na segunda e 68 na terceira freguesia. A maioria dos que
forneceram tal informação situa-se abaixo de 200 hectares e, no caso de Santo Antonio
e Almas, a metade estaria abaixo dos 100 hectares e apenas seis acima de 1.000 hectares.
Em São João de Cortes, apenas quatro acima de 1.000 hectares, e em São Matias, sete
somente. Em suma, os que pretendiam maiores extensões não declararam o tamanho de
suas áreas, cingindo-se tão somente a referências vagas. Antonio Onofre Ribeiro, irmão
mais velho do Barão de Grajaú e que inclusive o havia criado (Viveiros, 1975:113), limita133
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
se a declarar o seguinte no Livro 02 , folha 12, em 02 de maio de 1856: "várias posses".
Da mesma maneira procede o Comendador José Maria Correia de Souza, sogro do
Barão de São Bento, em cujas terras da Fazenda S. José o historiador Viveiros assinala
presença de escravos fugidos e mocambo (Viveiros, 1955). Nas denominações de pelo
menos duas fazendas, o termo "preto" aparece como sufixo; "Ponta do Preto", registrada
em 5 de maio de 1856, por Jerônimo José Mirubins, e "Cabeça de Preto" registrada em
maio de 1856 por Carlos Felipe Coelho. No registro de Aruhu (Uruhu), na freguesia de
S. João de Cortes, em 25 de maio de 1856, aparecem como proprietários: "Ignácio
Antonio Dias e diversos pobres". Essa área constitui hoje uma das territorialidades
específicas assinaladas respondendo pela designação de Terra da Pobreza. As fazendas
Engenho Castelo e Tapera, de onde fugiam os escravos para o mocambo localizado na
Esperança, próximo a Itapuaua, foram registradas, em 30 de abril de 1855, por Severo
Antonio de Araújo Cerveira Filho. Obtive essa informação sobre a fuga de escravos de
Castelo para Esperança entrevistando A.C.A., de 78 anos, que indicou o local do
"Mucambo" também tratado por toca (A.C.A.21/04/2002 - ENT.23.1). Dessas fazendas,
fugiram também escravos que foram para o quilombo de São Sebastião, em Pinheiro,
conforme entrevista realizada por Viveiros com um dos quilombolas remanescentes,
transcrita pelo periódico Cidade de Pinheiro de 12 de junho de 1955. Este quilombola
chamado Silvério, que fora escravo de uma das netas do Comendador José Maria C. de
Souza, narrou para Viveiros como se dava o processo de trabalho no quilombo. O
historiador registrou, sem maiores explicações, que se dava em "moldes cooperativistas".*
O Convento de Nossa Senhora do Carmo registrou as chamadas Terras
de Santa Tereza, onde se localizavam inúmeros quilombos em torno de Itamatatiua,
tal como registrado em 1837 pela polícia rural, como Fazenda Tamatatiua (livro 01, fl.
56, datado de 1857). A Irmandade do Santíssimo Sacramento registrou, em 30 de
junho de 1856, no Livro 02, folha 19, uma terra sem denominação e sem a extensão
em hectares, que corresponderia às áreas designadas terras de preto, onde se localizam
os antigos quilombos que abrangiam Ladeira, Samucangaua e Iririzal. Ora, à época
desse registro, Bellarmino Mattos, a partir de verificações in loco, relata o seguinte sobre
Itamatatiua:
"Os religiosos tem ali muitos escravos, alguns oficiais de pedreiro,
carapinas, oleiros, bastante porção de terras de lavrar com matas, de muitas
madeiras de lei, e nas mesmas terras tem grande número de foreiros,
e algumas pessoas recebem grátis o asylo." (Mattos, 1861:34).
A relação da Ordem do Carmo com os escravos considerados insubmissos
já foi examinada no capítulo sobre as ruínas intitulado "Muralhas e Paredões". Em outras
palavras, tais terras eram um recurso aberto com uma pluralidade de posses. As informações
dos entrevistados sobre as chamadas terras de santíssima indicam que para ali se dirigiram
os escravos fugidos dos engenhos Gerijó e Mutiti. As terras dos mercedários não aparecem
* Trecho do artigo mencionado encontra-se transcrito na nota ao quadro "Quilombos em Alcântara: Registros
burocrático-administrativos (1800-1886)". (n.e)
134
Alfredo Wagner Berno de Almeida
nos registros paroquiais, mas a Fazenda das Mercês desde 1819 aparece como de incidência
de quilombos, como bem o demonstra a documentação transcrita no quadro demonstrativo
já exibido. B. de Mattos afirma que as terras de Sant'Ana, vizinhas a Itamatatiua, dos religiosos
mercedários, também tinham foreiros (Mattos, 1861:34). Ou seja, para além da escravidão,
já estava vigindo nessas terras a figura do aforamento e da posse, com documentação vária
assinalando isso.
A família Ribeiro – ou seja, Maria Francisca, Rita Quitéria, Carlos Pedro e
outros – registrou, no decorrer de 1857, sem mencionar o número de hectares, a área
denominada Jarucaia, que corresponderia ao quilombo do mesmo nome assinalado pelas
tropas de linha desde os anos 1834-38. Outras áreas correspondentes às terras de preto,
que compreendem os povoados de São Mauricio, Santa Rita, Arenhengaua, São Raimundo
II e Santa Bárbara foram igualmente registradas. Constata-se ainda que algumas das chamadas
terras de caboclo, como Cujupe e Bacuriajuba, foram registradas por clérigos, a saber, o
Padre José Aureliano da Costa Leite e o Padre José Ribeiro Martins. A perspectiva de
organização de um mercado de terras parece ter levado os que fizeram os registros a
procederem de modo formal sem que efetivamente tivessem qualquer benfeitoria nas
respectivas áreas ou sem que de fato as controlassem. A precariedade das informações
autodeclaradas talvez possa reforçar isso, contribuindo para evidenciar que os quilombos
precederam aos registros de propriedade, já que as sesmarias eram consideradas posses
pelo direito agrário do período imperial. Ocorre, entretanto, que a propriedade da terra era
pré-condição para se ter direitos políticos, como sublinha Faoro, destacando a eleição de
1886 em que os eleitores habilitados representavam apenas 0,89% da população brasileira.
A cena política e a magistratura eram dominadas pelos interesses agrários.
Não se pode dizer, contudo, que não havia atividade econômica nos 13
engenhos da freguesia de São Matias e nos cinco de Santo Antonio e Almas, que usufruíram
de incentivos do governo Franco de Sá, em 1846-47, e mantiveram a produção até os
anos 1860-70. O Barão de São Bento, Francisco Mariano Viveiros Sobrinho, aparece
registrando o Mutiti, em 04 de outubro de 1855, enquanto que Manuel Gomes de Sá
havia registrado outra parte dele em 14 de fevereiro do mesmo ano. A tentativa de
soerguimento dos engenhos teve vida efêmera, não obstante terem sido importados
equipamentos e erguidas edificações grandiosas como ainda deixam entrever as ruínas
do Gerijó. Tanto o Gerijó, quanto o Mutiti, não obstante terem se tornado objeto de
transações de compra e venda, tiveram quilombos e se constituem hoje em situações
sociais designadas como terras de preto. A contradição entre os registros formais e o
reconhecimento de fato das territorialidades específicas mencionadas permite constatar
que não havia resistência através de posses individuais, nem de povoados de per si, senão
de vários povoados que se interpenetravam, através de relações sociais comunitárias,
constituindo as chamadas terras de santo, terras de santíssimo, terras de preto, terras
de caboclo. Diferem sob este aspecto da chamada terra da pobreza, que foi instituída
em cartório num ato de doação do proprietário, cuja certidão constitui um dos anexos
desta perícia.* Diferem também daquelas situações que, embora designadas como terra
* Esse documento pode ser consultado no Volume 2. (n.e)
135
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
de preto, foram objeto de doação ou de sucessão, formal ou informal, do grande
proprietário, tais como: Santo Inácio,Vai com Deus, São Raimundo I e parte de Itapuaua.
Diferem ainda daquelas situações designadas como terra de preto que foram objeto de
aquisição por alforriados, como Mutiti, Baixa Grande, parte de Itapuaua. Estes últimos
se valeram do mercado de terras para legitimar antigos quilombos, ou seja, compraram
o título formal de terras em que já cultivavam centenariamente. Em virtude disso é que se
torna temerário asseverar que quando da chamada "Abolição da escravatura", em maio
de 1888, já se encontra um quadro relativamente definido no que tange à estrutura agrária.
A relação dos registros paroquiais transmite assim a ilusão de ordenação fundiária e de
titulação definitiva, resultando numa aparente destruição dos quilombos. Não é por acaso,
portanto, que os mapas hoje elaborados pelo Centro de Lançamento de Alcântara tratam
todos os povoados e territorialidades específicas como "fazendas", como se de fato o
fossem ou assim o tivessem sido. A realidade da representação cartográfica endossa a
precariedade dos registros autodeclarados, deficientes de informações elementares,
tentando transformar em realidade as ficções sobre fazendas que já não mais existiam
efetivamente em 1850.
Em suma, pode-se pontuar que, objetivando a estruturação formal de um
mercado de terras, com prevalência de aquisições de terras públicas em detrimento de
quaisquer doações ou concessões que porventura favoreçam as pequenas posses, tem-se
um estímulo à formalização das terras de fazendeiros, mesmo que não as estivessem
ocupando efetivamente. O ato de formalização mostra-se coextensivo a uma ação repressiva
contra pequenos ocupantes, entre 1848 e 1853, em todo o Maranhão, antecedendo ao
início dos "registros paroquiais", que data de 1854. A estratégia de formalização jurídica
articula-se com aquela da implantação dos engenhos de açúcar. Após as ações repressivas
autorizadas por Franco de Sá, enquanto presidente da província, tem-se ações contra
quilombos da freguesia de São Bento, que então pertencia a Alcântara. Os juízes de paz de
Vila Nova de Pinheiro e de São Bento, em 16 de julho de 1850, solicitam reforços ao
presidente da província, Honório P. de Azevedo Coutinho, nos seguintes termos:
"Que se nos faz muito preciso, se nos der auxilio a fim de destruímos
certos quilombos que temos em nossos distritos, tanto assim que chegam
a impedirem as estradas para o trânsito dos viajantes, estes malvados são
aquilombados para as margens do rio do Turi, e frequentão todo este
continente..." (g.n.)
Em 1853, sucedem as campanhas de destruição de quilombos autorizadas
por Eduardo Olimpio Machado, também presidente da província. Elas priorizam a região
de Turiaçu (Marques, 1878:11) e suas ramificações por Viana, Guimarães e Santa Helena,
alcançando áreas de beira-campo, em Pinheiro, com as quais interagiam economicamente
os quilombolas de Alcântara.
Segundo os relatos de César Marques, após essa perseguição que foi
comandada pelo capitão Guilherme Leopoldo de Freitas, e após, também, pode-se agregar,
terem cessado os registros de terras, os quilombos voltaram às suas formas de ocupação
efetiva e estável, assim descritas pelo próprio C. Marques:
136
Alfredo Wagner Berno de Almeida
"...viviam eles estabelecidos em povoações mais ou menos regulares
entretendo relações com regatões ou com a gente dos povoados, ou
então vivendo isolados em ranchos situados nas clareiras dos bosques,
evitando cautelosamente todo o contato com a gente de fora, e cuidando
exclusivamente da agricultura." (Marques, 1878:6) (g.n.)
A descrição sugere relações sociais comunitárias consolidadas e uma prática
de tratos agrícolas como atividade principal dos quilombos, combinada com a
comercialização da produção.
O presidente da província, Lafayette Rodrigues Pereira, autorizou diligência
em Alcântara contra o quilombo de Jurucaia (Jarucaia), a partir de denúncia do assassinato
de Antonio Fernandes Paes "atribuído aos quilombolas", consoante o texto do documento
do chefe de polícia de 11 de maio de 1866, que assim dispõe:
"Em resposta ao seu ofício de 9 do corrente em que V.Sa. da parte do
assassinato de Antonio Fernandes Paes, atribuído aos quilombolas
de Jurucaia, tenho a dizer-lhe que nesta data expeço ordem ao
Encarregados dos Armazéns de artigos bélicos para que remeta ao
Delegado de Polícia do termo de Alcântara sessenta armas e dois mil
cartuxos para a diligência que tem de fazer o mesmo Delegado com o
fim de bater os referidos quilombolas e descobrir o assassino..." (g.n.)
Em 1867, ocorreram as campanhas militares mais intensas contra os quilombos
ordenadas pelo presidente da província Franklin de Menezes Dória. Além do combate ao
quilombo São Benedito do Céu, várias ações foram empreendidas em todo o Maranhão,
chegando ao Pericumã:
"Não descuidou-se a Presidência de dar outras ordens, de prevenir certos
acontecimentos, de traçar, para assim dizer, o plano do cerco, do ataque e
da destruição dos quilombos.
Tudo isto vemos e analysamos, por termos à nossa disposição, para
maior facilidade de nossos estudos históricos, o arquivo da secretaria de
governo desde a presidência do conselheiro Antonio Manuel de Campos
Mello, pelas razões já mencionadas não as publicamos.
Receiando que os calhambolas perseguidos fossem em suas correrias
atacar, ou pelo menos asylar-se em S. Bento, S. Vicente Ferrer, Paraná,
Santa Helena, Villa Nova de Pinheiro e Pericumã, para alli dirigiu suas
vistas, e foi isto de proveito porque além de por os habitantes d'estas
localidades em movimento afim de receberem a agressão, deu ordem para
aumentar os destacamentos, e ser-lhes fornecido armamento com a
competente munição e correame." (Marques,1878:16) (sic)
Menezes Dória, percebendo que a ação de suas tropas não era bem recebida
nos povoados e vilas porquanto elas praticavam também o alistamento compulsório para
137
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
serviços de guerra, mais conhecido localmente como pegação, foi impelido a suspender
esse recrutamento em Viana, Guimarães, Santa Helena, Turiaçu, Cururupu, São Bento e
S.Vicente Ferrer (Marques, 1878:17). Constata-se, nesse sentido, que nas regiões próximas a
Alcântara as ações de combate aos quilombos foram realizadas concomitantemente com
aquelas de recrutamento obrigatório, confirmando a relação estabelecida nas narrativas dos
entrevistados que tratam segundo uma inseparabilidade a noção de quilombo daquelas de
pegação e toca. As tropas de linha, quando empreendiam ação contra os quilombos,
eram abastecidas com suprimentos e víveres muitas vezes saqueados de comerciantes e
segmentos mais remediados dos povoados. Casos de entregas forçadas de produtos agrícolas
e confisco de colheitas contribuem para a descrição da rapina promovida pelas tropas de
linha. Isso, por um lado, indispunha os habitantes desses povoados com as tropas, que
eram mais temidas do que os quilombolas, e, por outro, os aproximava solidariamente dos
quilombos não apenas nos circuitos de troca de produtos. Marques menciona como "presos
e processados os indivíduos coniventes com os calhambolas" (Marques, 1878:19), que
mantinham relações comerciais com eles, que inclusive os avisavam da chegada das tropas.
Esse fato reforça a interpretação de que havia um repertório vasto de relações sociais
comunitárias interligando os povoados erigidos sobre as ruínas das fazendas e os quilombos.
As fugas funcionavam também como uma forma de interlocução entre escravos de
diferentes freguesias e termos. Localizei, nesse sentido, procurações passadas por fazendeiros
como Jerônimo José de Viveiros, em 03 de dezembro de 1868, a seu bastante procurador
para recuperar junto à justiça de Viana um escravo fugido e seus descendentes. Da mesma
maneira, haviam relações entre os escravos dos engenhos, como Castelo e Gerijó, e os
quilombos de Pinheiro (São Sebastião) e de Alcântara mesmo, como o de Jarucaia. As
fronteiras de separação entre eles mostravam-se tênues mediante o absoluto abandono das
fazendas após o malogro dos engenhos de açúcar reinstalados a partir de 1847.
Em contrapartida, os objetivos econômicos da ação bélica de Menezes Dória
aparecem em seus próprios pronunciamentos transcritos por César Marques:
"que era de interesse da ordem pública, para a lavoura, para a civilização
em summa, obrigar os calhambolas a voltarem à obediência e
aos hábitos da vida regular, perseguindo-os nos seus próprios asylos,
perdidos no interior das florestas." (apud Marques, 1878:17) (g.n.)
Por contraste com essa visão imobilizadora da força de trabalho que caracteriza
a sociedade colonial, tem-se o reconhecimento implícito pelo próprio historiador C. Marques
– que é membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e um dos biógrafos de
Franklin de M. Dória, Barão de Loreto e ministro da Guerra em 1882 – do sistema produtivo
prevalecente nos quilombos:
"Era poderoso e difícil de ser batido (o quilombo de São Benedito do
Céu) pela sua posição nas matas do Tury-Assu, pelas comodidades de
suas habitações, pelos vigias, cautelas e espécie de fortificações, e pelas
suas roças em tudo variadas e em tudo abundantes.
Para este estado de tranqüilidade e de trabalho muito concorreu o não
serem perseguidos desde 1858." (Marques, 1878:17) (g.n)
138
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Os quilombos, considerados como lugar de roças e assim reconhecidos pelos
narradores oficiais das façanhas bélicas dos que buscavam destruí-los, explicitam um conflito
entre diferentes sistemas produtivos. De um lado, a produção de gêneros alimentícios baseada
no trabalho familiar e em formas de cooperação simples, com as famílias praticando uma
reciprocidade positiva, mantendo uma relação de uso continuado e de preservação dos
recursos naturais, e referidas às praças de mercado locais; de outro lado, os grandes
estabelecimentos agrícolas monocultores com uso massivo de trabalho escravo, voltados
para o mercado metropolitano. Ora, em Alcântara, esse já era o quadro de contradições
desde finais do século XVIII e início do século XIX que pendeu para o processo produtivo
autônomo dos quilombos com a derrocada absoluta das grandes plantações de algodão
que jamais foram recompostas, nem sequer numa tentativa de políticas governamentais
dirigidas setorialmente, como teria sido o caso dos engenhos de açúcar em Alcântara a
partir de 1847-48.
Os quilombos são apresentados, todavia, também como lugar sórdido onde,
pela "indisciplina", que pode ser lida como recusa ao trabalho escravo, aglutinavam-se os
que transgrediam as leis:
"Para estes antros, para estes abrigos, todos os dias acolhiam-se, segundo
participações oficiais que temos à vista ‘os pretos, seduzidos e desvairados
por falsas idéias de emancipação, insidiosamente incutidas em seus
animos por miseráveis traficantes, que entretendo com eles sórdido
commercio, costumam fornecer-lhes armamento e munições’ e além
disto a elles se agregam desertores e outros criminosos d'esta província
e da do Pará, a cujo território pertenceu o Tury-Assu até 1852..." (Marques,
1878:18)
As atividades de comércio eram intensas e esses quilombos persistiram e
mantiveram suas delimitações territoriais e sua identidade em virtude desse tipo de
relação, mantida permanentemente nas fronteiras de seus domínios, que quebrava com
qualquer idéia de isolamento e insularidade.
Assim, não obstante as campanhas militares do Barão de Loreto, em 1871,
em Mensagem à Assembléia Legislativa, o presidente da província, José Augusto Olímpio
Gomes, informava sobre a fuga de escravos das fazendas do Turiaçu, Santa Helena e S.
Bento para se reunirem aos quilombos ali existentes. Em 1876, o major Honorato Candido
Ferreira Caldas, do 5o batalhão de Infantaria, realiza ação contra quilombos em Viana e
São Bento. Para lá se dirigindo, realiza "uma ligeira digressão" em quilombo próximo à
cidade de Alcântara, ou seja, o quilombo é pretexto para uma manobra diversionista. O
relatório do referido major foi transcrito pelo Diário do Maranhão de, domingo, 11 de
janeiro de 1877:
"... na qualidade de major fiscal, com destino à cidade de Alcântara,
onde o mesmo exm. Sr. Senador (Frederico de Almeida e
Albuquerque), de acordo com o dr. Chefe de polícia, entendeu
conveniente que eu fizesse uma ligeira digressão com o fim, se não
bater um pequeno mocambo que lhe constava existir a pouca
139
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
distância daquela cidade, de distrair por um lado as vistas
indiscretas que porventura pudessem malograr o bom êxito de
minha empresa". (g.n.)
O Relatório do presidente da província do Maranhão, senador Frederico
de Almeida e Albuquerque, de 1876, afirma, entretanto, que, com a retirada das forças de
linha do 5o Batalhão, habitantes de Pinheiro e da freguesia de Santo Antonio e Almas
voltaram a solicitar apoio militar para conter as "correrias" dos quilombolas. Não se
percebe qualquer menção explícita a Alcântara como objetivo de qualquer campanha
militar específica. Mesmo a ação de 1878, ordenada por Carlos Fernando Ribeiro,
alcantarense, presidente da província, e proprietário do engenho Gerijó, é dirigida contra
o quilombo do Limoeiro, no Turiaçu (Almeida, 1883:184). Em conformidade com
informações coletadas por Shiraishi, um quilombo teria se formado em áreas do próprio
Gerijó:
"Segundo a escrivã substituta, Maria Benita, a área denominada Ladeira
pode ser aquela que está na área denominada Gerijó Velho e Gerijó
Novo. Ela defende a tese de que os negros fugiram da área denominada
Bacuriajuba, legado do Padre José Ribeiro Martins, e formaram um
quilombo de nome ladeira na área de Gerijó Velho e Gerijó Novo."
(Shiraishi, 1998b:17).
As atenções oficiais parecem sempre temer um perigo que emana das matas
do Turiaçu, perdendo de vista a consolidação de um sistema produtivo contrário ao
escravismo naqueles domínios que formalmente imaginavam como ainda das antigas
fazendas. Os mandatários provinciais, que eram reconhecidos formalmente como grandes
proprietários territoriais em Alcântara, acreditavam nos seus próprios mitos, ou seja, na
ilusão de que controlavam efetivamente suas fazendas. Em Alcântara, entretanto, a
consolidação dos quilombos ganhara um novo impulso com a desagregação dos
empreendimentos açucareiros nos anos 1860-80, que levaram inclusive à extinção do
maior deles, o Engenho Gerijó. Consoante as narrativas, a este tempo, em 1861, a
população da freguesia de São Matias, onde se localizava a sede municipal, era constituída
de mais de 56% de escravos e de um percentual acentuado de alforriados (Mattos, 1861)
e a própria cidade de Alcântara já se encontrava em estado de abandono, consoante o
mesmo Bellarmino de Mattos em seu Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial
de 1861: "Hoje está meio abandonada, com as casas desertas e as ruas nuas de viandantes."
(Mattos, 1861:24)
Os demais documentos levantados até 1886 referem-se a procurações
para resgate individual de escravos ou às dificuldades de deslocar tropas para combater
quilombos, com as autoridades da burocracia imperial transferindo responsabilidades
de captura para os próprios fazendeiros de Santo Antonio e Almas e São Bento. O
aparato repressivo oficial encontrava-se nos seus estertores e o controle efetivo da
produção agrícola em Alcântara, já bem antes da abolição formal da escravatura, estava
nas mãos das comunidades de quilombo erigidas sobre as ruínas das fazendas.
140
Os territórios de parentesco
O processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombo
em Alcântara, cabe repetir, não pode ser pensado consoante um desenvolvimento linear e
cumulativo. Há descontinuidades historicamente determinadas e de sentido aparentemente
paradoxal que convergem para a formação de um território étnico. As territorialidades
específicas, que o constituem, foram construídas de modo diferenciado, como foi possível
observar com as chamadas terras de santo, terras de preto e terras de caboclo. Da
mesma maneira que as chamadas terras de santo abrangem situações sociais referidas a
ordens religiosas e irmandades distintas, que foram afetadas desigualmente pelo Estado
dinástico em diferentes momentos históricos – como, por exemplo, os jesuítas, em 1758, e
os carmelitas e mercedários, em 1821 –, tem-se que os povoados que se agrupam nas
chamadas terras de preto e as terras de caboclo também compreendem uma diversidade
de situações. As diversas formas de acesso à terra, que se dispersam em face delas, concorrem
para uma descrição sumária dessas diferenças. Doações de terras, aquisições, ocupações
por abandono ou através de conflitos explicitam as referidas dinâmicas de autonomia e as
modalidades segundo as quais se formaram os grupos sociais a elas referidos.
Verifica-se, assim, que, para além das doações apontadas anteriormente como
tendo sido feitas dos "índios para os santos" ou "dos índios para os pretos", há aquelas em
que o fazendeiro é apontado como tendo doado formal ou informalmente terras a escravos
e ex-escravos. No mesmo sentido, há casos de aquisição de terras e há distintos casos de
ocupação abrangidos pela denominação terra de preto. Ademais, numa mesma forma de
domínio, ou seja, numa mesma territorialidade, não se tem uma e apenas uma rede de
parentesco, como se procurará expor adiante.
As doações de terras
Em se tratando de doação, pode-se destacar, nos relatos dos entrevistados,
que são narrados como atos tanto antecedentes quanto concomitantes àquele da abolição
da escravatura, de 1888. Tais narrativas, ao enfatizarem a condição de ex-escravos e de "libertos",
evidenciam um grau de percepção jurídica de sua posição, já que nenhuma lei garantia ao
escravo o pecúlio ou a propriedade de bens móveis ou imóveis, ou mesmo a sucessão.
Para efeito de ilustração, selecionamos quatro situações relativas a doação que
se referem a povoados – Santo Inácio, Vai com Deus, Itapuaua e São Raimundo II – que
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
se localizam nas denominadas terras de preto do noroeste ao sudeste do município de
Alcântara, descrevendo uma diagonal. Sem qualquer pretensão de estabelecer regras de
descendência unilinear, passarei a descrever as situações verificadas. Os laços de parentesco
em Santo Inácio e São Raimundo II são traçados pelo lado das mulheres1, em Vai com
Deus e Itapuaua pelo lado masculino. No caso das mulheres, elas são vinculadas implícita
ou explicitamente às famílias dos senhores. Na situação de Santo Inácio, Laurencia, ao
nascer, embora classificada pelos dispositivos coloniais como "filha natural", é filiada ao
grupo de parentes, também por intermédio do pai, através de uma relação de patronagem,
o que lhe provê uma série de direitos de descendência.
"Santo Inácio foi uma posse de terra que foi doada pelos brancos a
uma escrava Laurencia que, após a liberdade da escravatura, o branco
disse que doou. Dr. Carlos doou à sua filha Laurencia. Ele
coabitou com uma escrava e doou parece que foi duas, três posses
de terra e a Santo Inácio foi uma das tais que era bem pertinho e a
fazenda dele era ali no Gerijó, fica bem ali entre Santo Inácio e onde
hoje tem as muralhas, os marcos estão lá, os casarões.
A minha avó já era parece neta ou bisneta da Laurencia." (P.F.C. 12/04/2002
- ENT. 01 ) (g.n.)
"Minha bisavó Régina ganhou a terra porque ela era escrava, naquela
temporada antiga ela era escrava. Aí o branco, quando teve a liberdade,
o branco liberou essa parte de terra para trabalhar aqui mais o
marido dela. Pascoal que era o nome dele.
Meus bisavós deram para minha avó, ela pra minha mãe, há muitos
anos. Aí ficou no Jequitiua esta terra, ficou parada, os velhos morreram,
não se incomodaram de pagar, ela ficou parada. Aí quando eu me criei
bem eu paguei, paguei oitenta e seis anos eu paguei, do anual desta
terra aí fiquei pagando, fui lá peguei o registro da terra trouxe, levei ao
INCRA, foi para Brasília e veio o total a pagar..." (B.P.A. 19/04/2002
- ENT.17 ) (g.n.)
"...O Cerveira justo doou pra filha do Francisco, que é a Glades, que
mora em Brasília, mas ela não pagou nada do imposto da terra...Então
ela disse que ia doar estas terras pros pretos, que justo era a gente da
minha mulher e do Antonio Tó." (J.A. 21/04/2002 - ENT.23 ) (g.n.)
"O marido da minha avó foi escravo no Gerijó. O nome dele era Zeferino.
Quando acabou a escravatura o senhor dele, o Dr. Carlos, deu um lugar
de casa a cada um. E ele escolheu o lugar e foi falar com o senhor dele que
tinha posto o nome no lugar de Vai com Deus. O senhor falou para ele
ir buscar a escritura da terra, mas meu avô nunca foi lá pegar e nós
continuamos morando nela." (D.A.M. 08/06/2002 - ENT.34) (g.n.)
Nas narrativas, cuidam de bem citar o doador das terras e do "chão das
casas", acentuando que por descuido ou acontecimento acidental não se completou a
legalização da doação. Também em São Raimundo I, coletamos relatos que ressaltam
o direito ao chão da casa, dado a uma "filha natural" do senhor com uma escrava
142
Alfredo Wagner Berno de Almeida
(M.E.A. 23/04/2002 - ENT. 27). Conjugam o mito do "bom senhor", generoso e
compreensivo após a Abolição, com a legitimidade de seu domínio sobre as terras.
Assim, não obstante os descuidos de não formalizarem a entrega das terras,
permanecem legitimamente nelas. Os fatos narrados por si sós justificariam a doação, isto
é, as terras teriam sido obtidas através de: "união natural", caso da mãe de Laurencia e seu
senhor; reconhecimento pelo trabalho exercido, caso de Régina e Pacoal e Zeferino; e
contrato verbal em que os ex-escravos ficam incumbidos de pagar os impostos, caso de
Itapuaua. Havia uma norma da legislação colonial que não permitia aos "livres" contrair
matrimônio com escravos, assim também não se cometia adultério com eles. Entretanto, o
parentesco resultante do fruto desses intercursos sexuais torna-se uma expectativa de direito
nas narrativas dos entrevistados. A partir deles, apropriam-se do nome dos senhores que
partiram e permanecem idealmente como os detentores dos domínios. O fato de os libertos
passarem a controlar efetivamente as terras e tomarem para si os nomes de família dos seus
antigos senhores constituiu-se numa realidade, mesmo que os laços de sangue alegados
possam ser fictícios. Por disposição legal, os escravos não possuíam família e entre eles não
haveria casamento, nem parentesco, mas tão-somente o que as autoridades coloniais tratavam
de "união natural". Ao se apropriarem das terras e dos nomes da aristocracia agrária
alcantarense, eles manifestam uma expectativa de direito e fazem da memória um recurso
de história oral para documentar genealogias inteiras que não foram necessariamente
registradas. As territorialidades que lhes correspondem – além de serem denominadas com
a categoria pela qual se autodefinem e são conhecidos, pretos – constituem um lugar de
predomínio de nomes de famílias que seus fundadores adotaram. A genealogia dos exescravos que receberam as terras de São Raimundo II foi elaborada por Aniceto Cantanhede,
que dispôs numa linha de descendência, a partir de Régina e Pascoal e sua irmã Ingrácia e
Francisco, 29 descendentes diretos.
As terras da pobreza
Para além dessas situações, tem-se a nordeste do município uma doação
registrada em cartório, referente à chamada terra da pobreza, que foi, inclusive, cartografada
por oficiais da Aeronáutica, provavelmente em 1985. Conforme documento passado em
15 de janeiro de 1915 pelo escrivão Freire Lemos2, pode-se ler:
"Há tempos immemoriaes que o finado Theofilo José Barros, em uma
das cláusulas de seu testamento legou à gente pobre de São João de
Cortes -, para nella se estabelecerem os pobres e suas familias cultivaremna, goza-la e tirarem d'ella os fructos para seu sustento e manutenção.
Este trecho de terra é o em que se acham hoje situados os povoados Retiro, Canelatiua, Araray, Uru, Uru Mirim, Rio de Ignacio e Santo Antonio,
com 65 casas habitadas por uma população pobre, a qual com suas famílias
se ocupa no serviço de pequena lavoura; sendo alli se acham domiciliados,
vindo de seus antepassados, há mais de cem (100) annos." (sic.)
A expressão "tempos imemoriais" consta dessa certidão, que ao reconhecer
formalmente, em 1915, que há mais de um século ali se encontram, permite que se estime
143
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
em pelo menos dois séculos a autonomia desses povoados, ou seja, desde a derrocada da
economia algodoeira. A este tempo, segundo as narrativas coletadas em entrevista, os
chamados brancos começam a abandonar as fazendas em Alcântara. Trata-se de um conjunto
de povoados hoje apontados como na faixa de segurança da área desapropriada em 1980
para a instalação da base da Aeronáutica, e sob ameaça de deslocamento compulsório
desde 1997. As chamadas terras da pobreza são subdivididas em quatro áreas que têm
como limite: a oeste, a antiga Fazenda Mato Grosso; ao sul, as terras dos povoados de
Brito e Itapera, limitado este pelo igarapé de Canelatiua; a leste, o oceano, e ao norte, pelo
povoado de Retiro, alcança também o mar.
As compras de terras
As aquisições também são arroladas nesses meios de obtenção de terras.
Vaqueiros, pequenos comerciantes e ex-escravos aparecem como adquirindo as terras que
hoje integram os povoados de Baixa Grande, Mutiti, Esperança e parte de Itapuaua. Os
seus descendentes diretos apresentam-se e são vistos localmente como herdeiros. Mesmo
sem formal de partilha, mantêm-se nas terras segundo um sistema de uso comum dos
recursos naturais. No caso de Peroba de Baixo, também os Gusmão se apresentam e são
representados como herdeiros. Em Conceição e Mutiti, D. Raimunda Gregória de Sá
(Mundica), que reside no povoado de Conceição, diz "ser a única herdeira e neta de um dos
proprietários" (C. Galvão, 1998:16).
Em Baixa Grande, a descendência é traçada pelo lado masculino. Todos se
referem a Eloy Antonio Sá, pai do Sr. Pedro Nascimento Sá, atual liderança e herdeiro,
com 86 anos, como antepassado comum. Em Itapuaua, também: o avô de seu Antonio
Tó, herdeiro com 78 anos, era escravo que prestava serviços na casa-grande da Esperança.
Ele "embalava e abanava os senhores" (Carvalho Martins, 1998:14) e se casou com uma
mulher assinalada nas entrevistas como "cabocla" de Santana, ou seja, das terras de
santíssimo, que não era escrava. Consoante as entrevistas, o matrimônio teria ocorrido
após a abolição e eles adquiriram uma porção de terras, deixando-a depois aos filhos.
O capítulo dessas aquisições, a partir de fins do século XIX, inscreve-se num
quadro mais geral delineado por Viveiros ao analisar os efeitos da abolição da escravatura.
A abundância de terras no mercado forçava a baixa dos preços e registrava que terras de
Alcântara, já sob o controle efetivo dos ex-escravos, estavam agora mudando de mãos no
plano jurídico-formal.
"Das fazendas afastavam-se os senhores com a mesma ansiedade que os
ex-escravos deixavam os ranchos do seu cativeiro. (...) Poucos ficaram,
uns enfrentando a crise para sucumbirem mais adiante, como o dono do
engenho Tijuca; outros assistindo estóicamente a derrocada de sua fortuna,
como o proprietário do engenho Aracanga que nem desencaixotou os
aparelhos chegados da França.
A maioria desertou da luta, aceitando os 10% sobre o valor da
propriedade, que lhe oferecia o vendeiro da encruzilhada ou o
negociante da povoação." (Viveiros, 1954:558)
144
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Na sua interpretação concernente aos efeitos da abolição da escravatura no
Maranhão, o historiador Viveiros utiliza metáforas que expressam uma hiperbolização do
acontecimento, tais como "hecatombe" e "catástrofe". Ao ressaltar a execução das hipotecas
das fazendas e o êxodo dos ex-escravos, afirma que: "cerca de 70% dos engenhos de cana
e 30% das fazendas algodoeiras fecharam as portas." (Viveiros, 1954:557)
Ora, semelhante quadro em Alcântara antecedera à abolição em pelo menos
vinte anos. Entrementes, agora se observava que também se interessavam pelas terras grandes
comerciantes, cujo objetivo primeiro era reintroduzir o aforamento, exigir a obrigatoriedade
de venda dos produtos agrícolas e extrativos nas suas casas comerciais e de prepostos
(quitandas, vendas e barracas) e implantar uma pecuária extensiva. Uma pressão sobre as
terras correspondentes àquelas territorialidades mencionadas se fez imediatamente sentir,
instaurando um clima de tensão e conflitos.
No período republicano, a partir do Decreto nº 451B, de 31 de maio de
1890, que estabeleceu novos critérios de registro e transmissão de imóveis, e do Art. 64 da
Constituição de 24 de fevereiro de 1891, que destinou as terras devolutas à administração
dos governos estaduais, os entrevistados recordam de conflitos a partir das demarcações.
Quando as terras doadas, ocupadas e adquiridas começaram a ser demarcadas para registro,
teriam surgido, na versão dos entrevistados, pretensos proprietários das terras. Os domínios
autodeclarados nos registros paroquiais após a Lei de Terras de 1850 não correspondiam
aos limites das terras efetivamente ocupadas pelos chamados pretos, pobres e caboclos.
A tentativa de materializar pontos de imóveis rurais que apenas existiam na imaginação dos
que só fizeram declará-los entre 1854-57 resultou em antagonismos. Em Santo Inácio,
apareceram nove pretensos donos das terras, querendo usurpar as comunidades
remanescentes de quilombo. Um pretenso dono de tudo, no caso da demarcação de Mato
Grosso, queria englobar as chamadas terras da pobreza. Esta última demarcação, a única
sobre a qual detectei documentos cartoriais, foi embargada no início do século XX:
"Místicas à terra da ‘Pobreza’ jazem as denominadas de ‘Mato Grosso’
outrora de um Fernão Troça, já há muito falecido e hoje divididas em 5
quinhões, dos quais é Esterlino Azevedo possuidor de um por compra
feita a Dr. Urraca Prado. Ora, como fica acima dito a ‘Terra da Pobreza’ é
efetivamente habitada por gente pobre, secularmente, desde os seus
maiores, sem que até há pouco tivessem sido perturbados em sua posse.
Desde, porém que Virgílio Esterlino de Azevedo se estabeleceu nas terras
do ‘Mato Grosso’ que começou de fazer àquelles pacífico vizinhos
exigências dezarrazoadas e impertinentes as quais lhe não assiste a menor
partícula de direito; e ultimamente tem tido estulta verleidade de proihibir
que o protestante roce na terra que ocupa desde que nasceu sendo que já
conta 52 anos de idade. E como não haja logrado sua pretensão, tem
contractado um agrimensor para demarcar extra-judicialmente as terras
de ‘Mato Grosso’, como si todas estas lhe pertencessem. Como, porém
o protestante tem a certeza de que, com este insidioso procedimento, o
protestante não visa se não esbulhá-lo e a muitos moradores da ‘Terra
da Pobreza’, de sua posse mansa, pacífica e nunca contestada; e outrossim,
por que não concorda e sabe que nenhum morador acima referido
concorda com essa demarcação extrajudicial, vem perante V. Exa. contra
145
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
ella protestar, e pelos prejuízos que d'ahi possa advir." (sic.)
(Protesto registrado em cartório contra demarcação extrajudicial.
Alcântara, 15 de janeiro de 1915)
No caso de Santo Inácio, de acordo com os entrevistados, houve também
resistência à demarcação:
"As pessoas compravam um sítio... e desse sítio ele botava o rumo ele
mesmo e tirava uma parte para ele. Aí vinha no cartório, amizade e tal e tal,
e pessoal não ligava para isto, quando menos esperava tava com um
pedaço registrado. Foi a origem que quando se demarcou Santo Inácio,
tava com nove donos, que não eram herdeiros de Laurencia." (P.F.C. 12/
04/2002 - ENT.01)
Percebe-se uma disputa constante pelas terras e atos de apossamento ilegítimos,
como no caso de Santo Inácio, forçando as comunidades remanescentes de quilombo a pagarem
foro nas próprias áreas que lhes foram doadas e onde se mantinham autonomamente, em
termos produtivos, bem antes da abolição da escravatura. Atos similares foram observados
quanto aos povoados de Só Assim, Peru, Itapuaua e Arenhengaua:
"Não, as terras de Alcântara não pagavam foro na época, de lá pra cá veio
criando esses donos e já do meu conhecimento para cá, onde eu tô lhe
explicando, já tinha dono só que antes não tinha." (I. 16/04/2002 - ENT. 12)
"As terras ficaram aí. Os branco foram embora. Olha, depois de um certo
tempo, quando Nojosa chegou aqui, começou a ser dono. Compravam
com o Souza e esse pessoal começaram a dividir terra e começaram a
cobrar foro.
– Mas antes não pagavam?
– Não tinha antes. Começou a ter depois, aí depois para cá já tinha a velha
Alena tinha uma parte... Compravam. Era assim. O Otávio comprou do
João de Souza, do Isidoro Souza... e foram negociando. Agora de quem
Isidoro adquiriu não sei, porque antes, é as histórias a gente sabe aqui do
Rio do Cujupe, até fazer limite com a terra da senhora de Santana, era de
Santa Teresa, aí depois surgiu um somente de dono por dentro que quase
Itamatatiua fica sem ter terra.
– O limite da terra de Santa Teresa aqui (apontando o mapa) seria onde?
– Seria o rio do Cujupe aqui, aí pegando para cá e a terra vai até fazer limite
com as terras de Santana, em Bequimão. Mas depois disto surgiu este
monte de dono, esse monte de confusão toda que a gente não sabe
distinguir." (G.X. 19/04/2002 ENT.16 )
Na assertiva de G., tanto Arenhengaua quanto São Maurício originariamente
estariam dentro das terras de Santa Teresa. Mas foram incorporados pelos engenhos nos
anos 1850-60. Os engenhos, entretanto, na década seguinte já estavam arruinados e as famílias
escravas usufruíam das terras sem recolherem aforamento. Com as vendas de terras, houve
tentativas de demarcação que geraram conflitos em Arenhengaua e também em São
146
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Raimundo II, onde várias famílias acabaram se deslocando da área com receio do
agravamento dos entreveros (B.P.A. 19/04/2002 - ENT. 17). O processo de territorialização
assinala, portanto, conflitos nas primeiras décadas do regime republicano com fortes pressões
sobre as terras das comunidades, que embaralharam certos limites tradicionais, mas que
não chegaram a desestruturar, entretanto, o sistema de uso comum e de interligação entre
os povoados e as relações sociais comunitárias entre eles. Tampouco foram afetadas as
relações entre os denominados herdeiros e os demais moradores dos povoados em que
foram registradas aquisições ou em que houve transmissões por sucessão a partir da doação
originária.
"Os herdeiros, naquela época, não cobrava foro de quem trabalhava lá no
Santo Inácio. Tudo era comum. Comum eram os foreiros, por exemplo,
que não eram herdeiros. Os herdeiros não cobravam nada dos que
trabalhavam lá."(P.F.C. 12/04/2002 - ENT.01). (g.n)
Essas relações protegiam os que pertenciam ao povoado e simultaneamente
os distinguiam daqueles de áreas circundantes:
"A forma de produzir era comum. Era comum assim entre os
moradores de lá. Agora, quando tinha alguém que chegava, estranho,
dos povoados vizinhos, que a área que pertencia e que estava no domínio
dos que diziam ser donos, eles cobravam uma gratificação... de farinha,
mas era irrisório."(P.C.F. 12/04/2002 - ENT. 01). (g.n)
De maneira semelhante, constata-se, em São Raimundo II:
"Não, nunca ninguém pagou foro aqui. (...) Não, aqui esse morador aqui
nenhum paga foro, nunca ninguém pagou, trabalhamos aqui. Nunca
ninguém recebeu um paneiro de farinha, um de milho, de foro. Nem
herdeiro, nem ninguém." ( B.P.A. 19/04/2002 - ENT.17)
A tentativa mais proeminente de reinstalar uma subordinação através do
aforamento só logrou êxito por algumas décadas, desfazendo-se inteiramente depois. Foi
encetada pelo comerciante que adquiriu maiores extensões de terra em Alcântara no período
posterior à escravidão e até 1941, Antoninho (Antonino) da Silva Guimarães3 (Viveiros,
1975:142), que possuía "casas de comércio" na cidade de Alcântara, em Raimundo Su e em
Santo Antonio e Almas (Bequimão). Além de forte presença econômica adquirindo terras
e sobrados, concorreu para que, no plano político, se destacassem os Ramalho, em Alcântara
e Bequimão. Datam de 25 de setembro de 1905 e de 15 de maio de 1934 os registros de
compra de partes da área "Santa Rita" adquiridas por Antonino Guimarães de Antonio
Pedro de Araújo Cerveira (Shiraishi, 1998:10). Adquiriu também nesta primeira década do
século XX a Fazenda Arequipá, com engenho de açúcar, localizada na beira-campo, em
Bequimão. O genro de Antonino, Marcial Ramalho Marques, casado com sua filha Ana
Guimarães, adquiriu também as terras de Janã. Em 1941, os dois netos de Antonino
147
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Guimarães, filhos de Marcial e Ana, adquiriram Flórida e Caranguejo. A filha de Antonino
adquiriu, posteriormente, Gerijó Velho e Gerijó Novo4. Prevalecia o sistema de aforamento
nessas áreas e a obrigatoriedade da venda do coco babaçu nas "quitandas" dos prepostos
dos proprietários que se espalhavam pelos diferentes povoados. Em 1934, as terras do
Ariquipá, que haviam sido passadas a uma sociedade intitulada "Marques, Ramalho e Cia.",
formada por Agostinho Ramalho Marques, irmão de Marcial, e Raimundo Magalhães
Ramalho (Nhônhô Ramalho), foram transmitidas para o segundo. O genro de Antonino
Guimarães tornou-se prefeito de Alcântara e Nhônhô Ramalho, prefeito de Bequimão.
Quando faleceu, em 1963, Marcial ocupava novamente o cargo de prefeito de Alcântara, e
o sistema de cobrança de foro em suas terras só persistia simbolicamente.
Não obstante a força da presença de Antonino Guimarães na memória dos
entrevistados nessa área que correspondia à antiga freguesia de São Matias, observa-se que
seu nome não foi adotado por famílias de nenhum povoado. De certa maneira, isso evidencia
que suas aquisições foram posteriores à formação dos territórios de parentesco e das
territorialidades, e que sua modalidade de exploração das terras não conseguiu quebrar a
unidade étnica e não teve força para imprimir uma forma de organização nas comunidades
que contrariasse os pressupostos do trabalho livre e da autonomia produtiva. Nesse sentido
é que seu nome de família não teria sido arrebatado e tampouco tornou-se objeto de uma
conquista com expectativa de direito. Embora a tentativa de instituir aforamento possa ser
lida como uma contramarcha para frear o processo de territorialização apoiado na autonomia
produtiva e no sistema de uso comum dos recursos naturais, cabe acrescentar que ocorreu
também uma mobilização étnica em sentido contrário que evitou a fragmentação dos
povoados e o chamado "êxodo rural". Os laços de co-residência foram articulados com
os laços de parentesco no estabelecimento de uma solidariedade revestida de princípio
hierárquico. Melhor explicando: tal resistência se configurou na ação dos chamados
encarregados da terra em Forquilha, Pavão, Janã, Santa Rita, São Raimundo, Ladeira,
Engenho, Terra Mole, São Francisco, Rio Grande, Peroba de Cima e demais povoados. Os
detentores dessa função administrativa eram simultaneamente mediadores e lideranças nos
próprios povoados, preservando as reservas de mata e disciplinando o uso dos recursos,
isto é, não violaram as normas elementares de convívio e, antes, as reforçaram.
A tentativa de implantar o aforamento foi, portanto, pontual e não teve vigor
nem força o suficiente para alterar as normas de uso comum adotadas tradicionalmente.
Ao contrário, foi obrigada a reconhecer a autoridade das lideranças locais e não chegou a
criar uma modalidade de administração dos recursos que as substituisse. Não constitui
paradoxo, portanto, o tom nostálgico de certos depoimentos que sublinham a preservação
de madeiras de lei e de uso dos igarapés, quando os encarregados da terra iam medir
com cordas os terrenos e conceder as licenças de plantio. Esse tom foi constatado quando
os entrevistados mencionam a perda de autoridade dos responsáveis pela preservação dos
recursos estratégicos aos povoados, após a desapropriação de 1980 e os deslocamentos
compulsórios realizados pelo CLA em 1987. Os primeiros impactos dessas medidas atingiram
tanto os chamados encarregados da terra e encarregados da santa quanto os chamados
herdeiros, bem como povoados fora da área do decreto de 1980, deixando que as terras
fossem dispostas como recursos aparentemente abertos ou, em outras palavras, como
diriam moradores de Pavão e São Raimundo II, como "terra de ninguém". No momento
148
Alfredo Wagner Berno de Almeida
do trabalho de campo pericial, os moradores dos povoados estavam se organizando para
impedir que continuasse a retirada ilegal de madeira:
"Eles tiram é o pacazeiro, é todo pau. Essa aí é a madeira mais procurada
o pacará. Ela é mais resistente. Tiram também a meguba, essas madeiras
para poder fazer as casas. Em Pinheiro e Bequimão tão comprando as
madeiras." (B.P.A. 19/04/2002 - ENT. 17)
Os territórios de parentesco
Os povoados enquanto unidades afetivas, como domínios reconfirmados
por aquelas formas de acesso mencionadas (doação, aquisição, ocupação, sucessão), deixam
entrever que o sistema de parentesco pode ser traduzido em termos de representações
espaciais. Os nomes de família, legitimamente conquistados junto com a terra, distribuemse pelas territorialidades específicas e pelos povoados tal como as famílias aristocráticas
distribuíram-se pelas sesmarias, sem que as territorialidades, todavia, se limitem
necessariamente aos marcos divisórios das sesmarias. Os nomes Sá, Araújo Sá, Araújo
Cerveira, Morais, Ribeiro, Silva, Gusmão, Serejo, Gonzaga, Costa e Diniz são indicativos
de pertencimento a povoados, mas não se restringem a povoados de uma única
territorialidade. Acham-se dispersos entre elas. Os Sá e os Araújo tanto podem ser
encontrados nas chamadas terras da santa quanto nas terras de preto. Os Araújo podem
ser encontrados também nas terras de santíssimo. Os Morais tanto podem ser encontrados
nas chamadas terras de caboclos quanto nas terras de preto. Os Ribeiro tanto estão nas
chamadas terras da pobreza quanto nas terras de preto. Os nomes de família perpassam as
distintas territorialidades chamando a atenção para laços de solidariedade que explicitam que
a ocupação não se deu apenas com a permanência dos escravos nas fazendas, mas através das
relações que foram estabelecendo com aqueles que escaparam ao controle dos mecanismos
repressores da força de trabalho. Nesse sentido é que foi possível observar o uso de expressões
como a "irmandade dos Sá" ou a "irmandade dos Araújo". Assim, considerando os povoados
das chamadas terras de santíssima, como Samucangaua e Santana dos Caboclos ou
Forquilha, tem-se que os vínculos entre eles podem ser mais frágeis do que aqueles entre
Samucangaua e Ladeira, apontado como antigo quilombo, ou entre Forquilha e Peroba de
Cima. Redes de parentesco foram sendo erigidas e os próprios quilombolas se apropriaram
dos nomes adotados por aqueles com quem mantinham laços de solidariedade permanentes,
seja em Jarucaia, seja em Esperança e Itapuaua. Os grupos baseados no parentesco e na
afinidade aproximaram os que ficaram subjugados no âmbito das grandes plantações e
engenhos e aqueles que se mantiveram fora do controle senhorial. A clivagem entre "famílias
de preto" e "famílias de caboclo" tem uma força distintiva, em contextos de regras de
residência, que se dilui em homogeneidade relativa em situações de uso dos recursos naturais
e de sua conservação, em situações de conflito e, inclusive, em situações de entretenimento e
de devoção (festas religiosas, jogos de futebol, "reggae"). Sob esse aspecto, pode-se asseverar
que se está frente a um entrelaçamento entre os povoados e entre as distintas territorialidades
que, a despeito dos diferentes nomes de família e suas respectivas redes de relações sociais,
consolidam uma forma identitária e de pertencimento a um mesmo território étnico.
149
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
No caso das agrovilas implantadas pelo CLA, já não parece ser possível, em
virtude da limitação dos recursos disponíveis às famílias deslocadas, a manutenção de regra
de residência duolocal ou norma, segundo a qual noivo e noiva devem permanecer em seus
locais originais, mantendo aí residências. Os lotes oficialmente destinados às famílias, com
apenas 16 hectares, mal permitem a reprodução simples. Tem-se o enfraquecimento dos
grupos familiares que permanecem nas agrovilas, cujos filhos e filhas contraem matrimônios
em outros povoados onde passam a residir. Um dos exemplos seria a relação entre as famílias
de pescadores de Brito e aquelas das agrovilas como Só Assim e Peru, onde passaram a
vender o pescado5. As relações no sistema de parentesco aqui só podem ser devidamente
entendidas se relacionadas às condições de acesso aos recursos naturais e às estratégias de
sobrevivência adotadas pelos grupos em face da situação de escassez resultante do Plano de
Reassentamento do CLA.
Para fins de ilustração, passarei a expor um quadro sintético focalizando alguns
desses entrelaçamentos anotados no decorrer do trabalho de campo pericial.
150
Indicação do limite sul da Terra dos quilombos
O território das comunidades
remanescentes de quilombos
As territorialidades específicas verificadas em Alcântara, que atendem pela
designação de terras de preto, terras de santo, terras de santíssima, terras de caboclo e terras
da pobreza, são de diferentes ordens e mostram-se extremamente diversificadas, conforme
sublinhado anteriormente, abarcando uma multiplicidade de povoados, cujos agentes sociais
afirmam seu pertencimento pela adoção de categorias de auto-atribuição tais como: pretos,
caboclos e pobres. Os povoados, mesmo quando contíguos, podem ser diferentemente
organizados1. Aspectos formais, tais como as relações de consangüinidade ou referências
recorrentes a um mesmo antepassado, podem ser essenciais num povoado e ter significado
marginal noutros2. Tal diversidade impele as territorialidades para um sentido plural e
extremamente diverso. Os elementos de descrição e a observação etnográfica não podem,
estrito senso, homogeneizar situações dessa ordem com o risco de perder as peculiaridades
de cada uma delas. O grau de coesão que caracteriza cada uma delas pode, entretanto, ser
passível de aproximação sem afetar o rigor da análise. Isso porque tal coesão não se esgota
numa atividade econômica comum para atender às necessidades coletivas e sempre
compreende fatores de parentesco, de afinidade e de solidariedade política, que organizam
a interação entre os agentes sociais e concorrem de igual modo para garantir o ideal de
autonomia que historicamente as torna distintivas.
As análises dos "territórios de parentesco", empiricamente assinalados, e das
ruínas dos engenhos e casas-grandes, como fatores de manutenção de fronteiras e de
construção social das territorialidades, permitiram a descrição de diferentes modalidades
de persistência, como grupos étnicos, das comunidades observadas, de acordo com as
proposições teóricas de F. Barth. Ao asseverarmos, pois, que as mencionadas territorialidades
convergem para um território étnico de algum modo delimitável, apoiamo-nos novamente
nesses pressupostos teóricos:
"Em primeiro lugar enfatizamos o fato de que os grupos étnicos
são categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos
próprios atores; consequentemente tem como característica
organizar as interações entre as pessoas." (Barth, 2000:27)
A investigação pormenorizada de realidades empiricamente observáveis explica
a demarche dos trabalhos de pesquisa inerentes a esta perícia, que evitou recorrer a uma
tipologia de grupos e relações étnicas, como acentua Barth, para dar ênfase a processos
reais de territorialização que asseguram a etnicidade dos grupos ora examinados.
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
A partir dessas premissas, quando sublinhamos que os povoados das
comunidades remanescentes de quilombo em Alcântara apresentam grande variação, mas
têm seus fundamentos num conjunto de componentes essenciais que disciplinam o sistema
de relações sociais, estamos tentando responder a indagações no sentido de qual tipo de
"unidade territorial" estaria em jogo. Para tanto, recorremos ainda aos estudos de C. Geertz,
num complexo de pequenas vilas na Indonésia (Bali), que indicam que a mais apropriada
formulação sistemática para essa modalidade de estrutura, que apresenta múltiplos povoados
em rede, seria conceituá-la em termos de interseção de planos de organização social
teoricamente separáveis (Geertz, 1967: 259-263). Com base nesse instrumento de investigação,
foi possível verificar que cada família tem seu povoado de pertencimento, tem sua
comunidade de referência, acata regras de cooperação simples e de uso comum dos recursos,
entende como bem privado apenas o produto de seu trabalho, representa os recursos
naturais como não passíveis de apropriação individual em caráter permanente e não se vê
num povoado isolado, vivendo e praticando através de elementos identitários e de
intercâmbio vário o alargamento do território, pelas fronteiras interpovoados que não se
fecham jamais no sentido absoluto. É através da situação social designada pelos moradores
dos povoados como comunidade, que os povoados observados se estruturam, pois,
segundo esses diferentes planos de organização social. Entrelaçados por uma unidade
sociológica, tais planos foram levados em conta para se compreender também a lógica de
distribuição de bens e serviços, assim como de uso dos recursos naturais entre os diferentes
povoados. Abrangem, pois, tanto fatores econômicos quanto políticos, embora não
correspondam necessariamente a um plano de organização formal com associações
constituídas legalmente ou reconhecidas em cartório. As relações prevalecentes são quaseinstitucionais e remetem para uma rede de povoados, implicando numa divisão de trabalho
e serviços e num intercâmbio continuado entre os povoados. Por intermédio delas é que se
consolida um sistema de trocas equilibradas entre, por exemplo, povoados mais próximos
ao mar e a igarapés maiores – que se dedicam principalmente à pesca e que praticam a
comercialização da produção através de seus inúmeros portos e têm na agricultura uma
atividade complementar – e povoados considerados "mais centrais", distantes da beira e
do porto, que se dedicam principalmente aos tratos agrícolas. Na própria organização
social intrínseca aos povoados, verifica-se uma certa inseparabilidade entre a condição de
pescador e aquela de lavrar e roçar. De toda maneira, a unidade familiar é também a
unidade de trabalho, seja na pesca, seja na agricultura, seja no extrativismo, fazendo uso de
tecnologias elementares e de instrumentos artesanais, bem como de práticas de cooperação
simples definidas por critérios de parentesco, afinidade e vizinhança. Com base nessa descrição,
pode-se adiantar que não constituem "comunidades primitivas" ou comunidades constituídas
"espontaneamente", que ignoram as trocas mercantis e bastam a si próprias com uma circulação
restrita a produtos domésticos e, portanto, com predomínio do valor de uso. Ao contrário,
trata-se de comunidades que têm seus fundamentos nas crises do mercantilismo e do próprio
desenvolvimento capitalista, cuja expressão mais perceptível seria a desagregação das grandes
plantações algodoeiras e de cana-de-açúcar referidas ao mercado mundial.
Em decorrência, a reciprocidade positiva, como troca equilibrada de bens,
serviços e solidariedade política interpovoados, reflete um sistema econômico singular que,
conjugado com a afirmação de uma identidade coletiva – traduzida por uma multiplicidade
de designações correlatas, tais como: terras de preto, terras de santo, terras da santa, terras
154
Alfredo Wagner Berno de Almeida
de santíssima, terras de santíssimo, terras santistas, terras de caboclo, terras da pobreza e
outras denominações variantes –, configura um território étnico. Mais que considerar essas
expressões denominativamente, importa aprofundar o sentido específico que adquirem na
vida social e na construção da própria identidade dos agentes sociais que lhes são referidos3.
As chamadas terras de santo se sobrepõem, se interpenetram e se fundem com as terras de
caboclos e com as terras de preto, mas as chamadas terras de caboclo não se justapõem
necessariamente às terras de preto e vice-versa4. Como verificamos anteriormente, as
diferenças e as similitudes, que aproximam e distanciam os significados e a vigência dessas
expressões, funcionam como um princípio operativo, que disciplina as relações sociais
comunitárias que fundamentam esse território étnico. A idéia de remanescente de quilombos
passa, aqui, por esses diferentes planos de organização social que, entrelaçados, delineiam
uma territorialidade própria, cuja persistência no tempo pressupõe mobilização de cada
conjunto de famílias vizinhas, de cada grupo de parentes e de cada comunidade solidariamente
estruturada, mediante ameaças de destruição de sua forma de viver e de agir livremente.
Mesmo que em cada um dos povoados sejam acatados os limites tradicionais,
valendo-se inclusive das pedras de rumo, verificamos uma interpenetração de domínios,
em contextos de escassez extremada, em que um supre suas necessidades com os recursos
de outros e vice-versa. Há um consentimento mútuo para tanto. Os limites físicos não
significam recursos naturais fechados, como ocorre no caso da noção de propriedade
privada de imóveis rurais, e remetem para uma interpenetração bastante complexa sobre
a qual se estrutura a noção de territorialidade. Os marcos delimitadores das terras de cada
povoado podem ser livremente transpassados pelos membros de outros povoados, embora
o uso efetivo e continuado de recursos naturais, dentro desses limites, esteja condicionado
ao assentimento daqueles que ali têm morada e cultivo habituais e se autodefinem e são
vistos como pertencendo à comunidade, que administra sua reprodução física e social a
partir daqueles recursos. A condição de pertencimento a este povoado ou àquele outro
confere autoridade incontestável na administração e uso continuado dos recursos naturais
respectivos. O trabalho científico de verificar a articulação entre essas regras de pertencimento
associadas ao direito de uso, através de uma consulta aos diretamente interessados, foi o
mais amplo possível, buscando se chegar a um contorno abrangente e inclusivo, capaz de
abarcar o conjunto de povoados e não apenas delimitar alguns entre eles, à molde de um
problemático arquipélago com pseudo-ilhas.
Esse procedimento não é, portanto, de simples execução como possa parecer
à primeira vista. Antes, aponta para um mosaico complexíssimo de planos cruzados e
sobrepostos, além de interações de toda ordem, seja no plano religioso, no plano sindical
ou naquele da interdependência ecológica entre os povoados. O princípio das múltiplas
conexões entre mais de uma centena de povoados, numa quase península, que se manteve
por quase dois séculos à margem do foco de ação das políticas de Estado, é que viabiliza
as condições materiais de existência desses povoados e em virtude do qual eles constituem
uma comunidade dinâmica ou um todo organizado. Tais conexões constituem o
fundamento da autonomia de que usufruem e da não-subordinação a terceiros em termos
das decisões sobre onde construir sua habitação, onde plantar ou pescar ou quando e a
quem vender a produção. O intercâmbio constante entre os povoados inscreve-se, pois,
entre as necessidades essenciais dessa comunidade dinâmica, que abarca uma diversidade
de modos de vida em grupo, transcendendo àquela idéia de comunidade definida por
155
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
critérios de isolamento demográfico e geográfico. Mesmo que as territorialidades referidas
e os respectivos povoados variem quanto ao tamanho, à composição, à atividade
econômica principal e aos laços com diferentes circuitos de mercado, destaque-se que
seus moradores participam de um mesmo padrão de relação diante dos recursos naturais
e de acontecimentos da vida religiosa e política. Variam, por exemplo, os santos padroeiros
e as festas religiosas de povoado para povoado. Porém, cada festejo congrega participantes
de povoados distintos, que contribuem para a consecução das sequências rituais e dos fundos
cerimoniais necessários. Para uma compreensão mais acurada, atente-se para o caso de Itapuaua:
seus moradores, em termos de referência política, falam em "região da Peroba"; enquanto
recinto cemiterial, enterram seus mortos em Santana dos Caboclos, cujo campo santo centraliza
também outros povoados, tais como Perizinho, Peroba de Cima, Forquilha, Flórida, Esperança
e Peroba de Baixo; em termos de construção de embarcações para pesca, os moradores
mencionam São João de Cortes; para a aquisição de tipiti , instrumento artesanal de palha
utilizado para espremer a massa da mandioca, mencionam São Raimundo. Itapuaua, por sua
vez, possui delegacia sindical, congregando interesses associativos, reivindicatórios e dos
aposentados, além de servir como porto para quase uma dezena de povoados, ou seja,
ponto de acesso à circulação de bens ou de acesso a praças de mercado. Seus moradores, que
têm na família Araújo preponderância, em termos de parentesco, vinculam-se àqueles de
povoados próximos, compondo o que classificam como "uma ruma de parentes só" (J.A.
21/04/2002 - ENT.23). Apresentam-se como descendentes de índios e de escravos, numa
denominada terra de preto composta através de atos de aquisição e ocupação, assinalada
como vizinha das chamadas terras de santíssimo. Segundo as narrativas, uma parte do povoado
foi adquirida pelas famílias dos antigos escravos, que prestavam serviços domésticos na casagrande dos sesmeiros. A outra parte foi fruto de doação informal da herdeira dos chamados
brancos, que lá nunca residiu. Em suas terras e nas circunvizinhas, há vários lugares assinalados
como tocas e referências a mocambos, que expressam uma forma de ocupação quilombola
efetiva, cuja alegada doação, feita oralmente, só teria servido para referendar. Ademais, mantém
laços econômicos e afetivos regulares com aquelas famílias que, com a migração, se deslocaram
para bairros da Camboa e da Liberdade, na capital São Luís, também designada pelos
entrevistados como "a cidade".
Durante o trabalho de campo pericial, inventariamos, segundo critérios
elaborados a partir da representação dos próprios informantes, os povoados que compõem
a área identificada, pertencente e sob controle efetivo das comunidades remanescentes de
quilombo. Cabe reiterar que os trabalhos de campo não incluíram Itamatatiua, ao sul do
município de Alcântara, onde o Iterma realiza, desde 1997, atividades para reconhecimento
da área enquanto comunidades remanescentes de quilombos, nem a ilha do Cajual, onde se
localiza Santana dos Pretos. Caso fossem incluídos, o número de povoados em pauta
aumentaria de pelo menos um terço. Detivemo-nos na área desapropriada por interesse
social para reforma agrária, pelo MDA-Incra, em Ibituba (Gleba Ibituba) e em São Raimundo
II, onde o Iterma também realizou ações fundiárias. A inclusão de São Raimundo se atém
à própria interação econômica e política que mantém com os demais povoados arrolados.
Atém-se também à representação espacial manifesta pelos entrevistados e concernente às
cabeceiras do igarapé Tiquara, que desce, no sentido leste, para o rio Aura e a baía de São
Marcos, e àquelas do igarapé Pratitá, que desce, no sentido oeste, para o rio Raimundo Su
e para a baía de Cumã.
156
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Não foi possível, dadas as condições que nortearam o trabalho pericial, realizar
um recenseamento com critérios antropológicos. O próprio trabalho cartográfico foi
realizado de maneira limitada no cotejo com os mapas oficiais e com os dados da Funasa.
A verificação in loco ficou prejudicada em alguns casos, como na repetição das designações
de povoados. Há quatro deles nomeados como São Francisco, três como São Benedito,
Boa Vista e São Raimundo e pelo menos dois como Macajubal, Ladeira, Mamona, Rio
Grande, Santa Rita, Tacaua, Vila Nova, Rio Verde, Cajueiro, Guanda, Cujupe, Caicaua,
Baixa Grande e Tiquaras.
Os dados censitários apresentados foram produzidos no âmbito da Funasa e,
por atenderem a finalidades dos denominados "distritos sanitários", aqui foram utilizados
mais para efeitos de ilustração e de uma primeira aproximação. Totalizam 139 povoados
aos quais correspondem, de acordo com dados da Funasa, cerca de 12.000 habitantes.
Considerando as diferenças de tamanho e composição entre eles, verifica-se que, em termos
de habitantes, variam de três – povoados de Cajituba, Capoteiro, Piquiá, Primirim, Santa
Helena, Taturoca, Vila Maranhense e Trapucara (Trapucaia) – a 958 habitantes, caso do
povoado de Oitiua. Em termos de edificações ou "prédios", variam de um a 350. As oito
inclusões como povoados, que registram três habitantes, dispõem de apenas um "prédio"
cada uma. Os denominados "prédios" compreendem edificações, ocupadas ou não, qualquer
que fosse o material empregado em sua construção e o fim a que se destinasse: residências,
escolas, postos de saúde e ambulatórios, bem como as chamadas tribunas, local de reuniões
e eventos comunitários, as casas de forno, e locais de serviços e atividades diversas. Essa
informação nos leva a relativizar tais inclusões, focalizando os povoados segundo uma
hierarquia em que uns usufruem de uma posição de centralidade enquanto outros gravitariam
em torno deles, constituindo uma área de influência. Nesse sentido, importa frisar que,
numa ordem de grandeza, por número de prédios e de habitantes, tem-se num primeiro
patamar aqueles povoados com no mínimo 48 e até 350 edificações, aos quais correspondem
no mínimo 131 e até 958 habitantes. Nessa classificação, há uma certa dispersão geográfica,
com uma distribuição de povoados relativamente equilibrada, abrangendo desde povoados
ao norte, nordeste e noroeste, tais como São João de Cortes, Ponta d'Areia, Canelatiua e
Santana dos Caboclos; povoado a oeste, como Prainha; povoados ao sul da área delimitada,
como Oitiua, a sudoeste, e Arenhengaua, a sudeste; e ainda Manival, Samucangaua e a
agrovila Novo Peru. Os principais núcleos de pesca e portos para embarque da produção
pesqueira do município encontram-se entre estes maiores povoados, a saber: Oitiua, Ponta
d'Areia, Prainha e São João de Cortes. Em se tratando da agrovila Novo Peru, há uma
outra disposição hierárquica que a interseção de planos permite vislumbrar e que diz respeito
a como os próprios agentes sociais representam a suas condições materiais de existência.
Com os deslocamentos compulsórios, promovidos pelo Ministério da Aeronáutica, em
1986 e 1987, os 23 povoados5 atingidos foram retirados de sua rede de relações e apartados
das territorialidades específicas e do estoque de recursos que proviam os meios básicos de
interdependência ecológica, de acesso a recursos para a reprodução física e de circulação de
serviços e produtos. As sete agrovilas (Marudá, Ponta Seca, Só Assim, Cajueiro, Espera,
Peru e Pepital) nesse contexto, não obstante as edificações de alvenaria, a cobertura de
telhas, a eletrificação, os poços artesianos e os projetos governamentais de crédito e custeio,
são percebidas como em desvantagem e vividas como num patamar de certo modo inferior.
Os critérios extraídos das entrevistas assinalam o seguinte quanto às agrovilas: não têm
157
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
portos próprios, nem têm proximidade das águas piscosas, os lotes destinados às famílias
são de extensão insuficiente, em terras frágeis e não comportam a capacidade produtiva
das unidades familiares. Sem documentos das casas e dos respectivos lotes, os moradores
das agrovilas vivem e são vistos como se fossem locatários, sob uma insegurança constante.
Ademais, são regidos por disposições administrativas, que afetam diretamente o padrão de
sucessão das famílias ao inviabilizarem a possibilidade de que os filhos casados possam
erguer suas habitações próximas à dos pais. Em meio a tais condições, as agrovilas vivem
sob o signo da escassez e é recorrente nas entrevistas a idealização da abundância e fartura
do passado. A própria posição dos outros povoados, que não foram deslocados
compulsoriamente e se mantém junto ao mar na própria faixa definida pelo Ministério da
Aeronáutica como de segurança – como Brito, Itapera, Baracatatiua e Mamona –, também
é vista como positiva e mais vantajosa pelos moradores das agrovilas. As fruteiras silvestres
do cordão arenoso, como os muricizais, e a facilidade de realizarem diretamente as atividades
de pesca nutrem essa representação da fartura prevalecente nesses outros povoados. A
partir das agrovilas, o acesso à praia pelos moradores para realizarem pescaria só pode ser
efetuado sob controle administrativo do CLA, que distribui crachás para os que exercem
essa atividade e os monitora com uma guarita disposta na entrada da área, registrando o
movimento de cada pescador.
Destaque-se que na área desapropriada foram registrados mais de 90 povoados,
considerando-se os dados da Funasa e os levantamentos para efeito de elaboração dos
mapas produzidos no âmbito do trabalho de campo pericial. Observe-se também que,
nessa área, apenas as agrovilas e mais uns poucos povoados, como Oitiua, Rio Grande e
Baixa Grande, nos limites da área, usufruem de energia elétrica. Em São João de Cortes,
um dos mais populosos povoados do município, que possui pequeno estaleiro de construção
de barcos e exporta grandes volumes de pescado, a iluminação é a óleo diesel.
Para fins de exposição, apresentamos a seguir dois quadros, agrupando no
primeiro deles os povoados que se localizam na área desapropriada por utilidade pública
para instalação da base de lançamento de Alcântara e, no outro, aqueles que se situam fora
de seus limites. Tomamos como referência os dados da Funasa, porquanto aqueles do
Censo Demográfico de 2000, elaborados pelo IBGE, assinalam tão-somente 21.291
habitantes em Alcântara, sendo 5.665 na zona urbana e 15.626 na área rural, e destacam
apenas São João de Cortes com 2.909 habitantes, sendo 503 no núcleo urbano e 2.406 na
área rural. Não apresentam os resultados censitários correspondentes aos demais povoados.
Foram levantados, portanto, consoante a base comunitária da Funasa, 139
povoados referidos às comunidades remanescentes de quilombos, sendo 90 localizados na
área desapropriada por utilidade pública para a instalação da base de lançamento de foguetes
e 49 deles situados fora dos limites daquela área. Esses povoados totalizam 12.941 habitantes,
ou seja, 83% da população rural do município, e compreendem uma área aproximada de
85.537,3601 hectares, englobando a área desapropriada por utilidade pública para instalação
da base e outra extensão mais ao sul desta referida área desapropriada, até alcançar as terras
de Ibituba que foram objeto de desapropriação para fins de reforma agrária pelo Incra. A
seguir, apresentamos a relação deles com informações extraídas do cadastro da Funasa.
158
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Povoados referidos às comunidades que se localizam na área desapropriada
para instalação da base de lançamento de foguetes
Nome do Povoado
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
Águas Belas
Bacuriajuba (Bacurijuba)
Baracatatiua
Bebedouro
Boa Vista III
Bom Jardim
Bom Viver (Bom de Ver)
Brito I
Cajapari
Cajatiua (Cajitiva/Cajutiua)
Camirim
Canavieira
Canelatiua
Capijuba
Capim Açu
Capoteiro
Caratatiua
Cavem II
Corre Fresco
Engenho I
Esperança
Flórida
Ilha da Camboa (Camboa)
Iririzal
Itapuaua
Itauaú
Janã
Ladeira II
Lago
Macajubal I
Macajubal II
Mãe Eugênia
Mamona I
Mamona II
Mangueiral
Marinheiro
Marmorana
Nº de Prédios/2001 Habitantes/2001 Data do RG
27
7
37
3
10
9
26
35
6
9
10
19
65
1
20
1
9
3
17
14
13
2
5
25
63
83
22
26
27
21
32
11
60
13
35
2
14
19
19
101
8
27
25
71
96
16
25
27
52
178
3
55
3
25
8
47
38
36
5
14
68
172
227
60
71
74
57
88
30
164
36
96
5
38
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
12/06/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
159
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
65
66
67
68
69
70
71
72
73
74
75
76
77
160
Nome do Povoado
Nº de Prédios/2001
Mato Grosso
Murari
Mutiti
Nova Espera
Nova Ponta Seca
Novo Cajueiro
Novo Maruda
Novo Peital (Pepital)
Novo Peru
Novo Só Assim
Oitiua
Pacuri
Palmeiras
Pavão
Peri-Açu
Perizinho
Peroba de Baixo
Peroba de Cima ( * )
Piquia
Ponta D'areia
Porto da Cinza
Porto do Boi I
Praia de Baixo
Prainha
Primirim
Quiriritiua
Retiro
Rio Grande I
Rio Grande II
Rio Verde
Samucangaua
Santa Helena
Santa Maria
Santa Rita II
Santana dos Caboclos
São Benedito I
São Francisco II
São João de Cortes
São Lourenço (* *)
São Paulo
6
15
11
22
21
65
111
50
130
30
350
25
7
18
35
39
29
68
1
124
3
56
9
82
1
70
15
85
7
6
48
1
122
7
55
22
4
190
7
2
Habitantes/2001
16
41
30
60
57
178
304
137
356
82
958
68
19
49
96
107
79
186
3
340
8
153
25
225
3
192
41
233
19
16
131
3
334
19
151
60
11
520
19
5
Data do RG
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Nome do Povoado
78
79
80
81
82
83
84
85
86
87
88
89
90
São Raimundo III
Tacaua I
Tapicuem (Itapecuem)
Taturoca
Terra Mole
Terra Nova
Trajano
Trapucara
Vai com Deus
Vila Maranhense
Vila Nova I (Vila do Meio)
Vila Nova II
Vista Alegre
TOTAL
Nº de Prédios/2001
4
10
6
1
50
17
34
1
4
1
51
45
14
2949
Habitantes/2001
11
27
16
3
137
47
93
3
11 (***)
3
140
123
38
8398
Data do RG
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
FONTE: Ministério da Saúde/ Fundação Nacional de Saúde/ Distrito de Pinheiro, Relação de Localidades/ Município
de Alcântara, 13/08/2001.
NOTAS:
( * ) Num recenseamento elaborado em maio de 2002, os moradores de Peroba de Cima registraram, eles próprios,
em seu povoado, 58 casas e 196 pessoas.
(* *) Vários moradores de São Lourenço, no decorrer de 2001, mudaram suas casas para Rio do Pau, que fica às
margens da rodovia MA-106. A família de D. Luzia, composta de quatro membros, permanece, entretanto, no local do
povoado, conforme informação obtida em conversa com o Sr. Simão Reis Araújo, 62 anos, que mora perto da
"marinha" em Samucangaua.
(* * *) Em virtude de mortes ocorridas em 2001 e da mudança domiciliar de três pessoas, atualmente residem no
povoado Vai com Deus apenas seis pessoas.
(****) Procedemos a uma tentativa de recenseamento nas chamadas terras da pobreza, a partir de Canelatiua. Registramos
informações demográficas sobre os seguintes povoados: Canelatiua, Bom Viver, Retiro, Uru-Mirim e Vila do Meio.
Os itens relativos a edificações e número de habitantes não apresentaram grandes variações em relação ao cadastro da
Funasa. Os povoados de Uru-Mirim e Vila do Meio no cadastro da Funasa aparecem agregados com Canelatiua. Aliás,
quanto a Uru-Mirim, foram detectadas somente duas casas fechadas e com sinais de abandono. De acordo com
informações levantadas localmente, tem-se o seguinte:
"Moravam lá duas famílias. Uma senhora com um neto e um casal de velhos. Quando foi em janeiro de 2001 a
senhora que morava com o neto morreu no poço, tomando banho. Era de tardinha. E lá era tão difícil de auxílio
que eles resolveram mudar para mais perto da estrada. Foram para Vila do Meio e o neto para São Luís com o pai."
(D.S.M. 13/04/2002 - ENT. 3.1).
161
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Além dos 49 localizados fora dos limites da área desapropriada para fins de
instalação da base de lançamento de foguetes, que também integram o território das
comunidades remanescentes de quilombos e constam do quadro abaixo, foram registrados
13 outros povoados, a partir dos materiais cartográficos elaborados para fins da perícia,
igualmente fora da área desapropriada. Eles não aparecem no cadastro da Funasa, certamente
por terem sido agregados a povoados maiores, mas podem ser separáveis tanto quanto
aqueles que assinalam apenas um ou cinco "prédios", porque assim são vistos e há os que se
definem como a eles pertencendo. Passaremos a seguir a enumerá-los: Bordão, Bejú-Açu,
Baixo do Grilo, Caçador, Centro da Eulália, Fora Cativeiro, Iscoito, Jacroa, Maracati, Maria
Preta, Santa Luzia, Segurado e São José. No caso de Iscoito, Beju-Açu e Baixo do Grilo
não obtivemos maiores informações. Mantivemos os dois últimos baseado nas cartas da
Diretoria do Serviço Geográfico, do Departamento de Engenharia e Comunicações do
Ministério do Exército, de 1981, correspondentes à área, e no mapa do Iterma, de julho de
2001, também apoiado nas cartas da DSG-ME, mas assinalando: uma casa em Beju-Açu e
cinco no Baixo do Grilo. Em se tratando de Iscoito, a informação foi obtida, sem
pormenores, em reunião realizada em Peroba de Cima para elaboração dos materiais
cartográficos desta perícia. Em virtude de não ter sido factível realizar um censo durante a
perícia, com verificações detidas em cada situação definida como povoado, validamos tais
informações disponíveis. Todos eles encontram-se assinalados no mapa produzido no
decorrer do trabalho de campo pericial e que foi intitulado de "Alcântara: terra das
comunidades remanescentes de quilombo-territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios
históricos e conflitos sociais". Em suma, uma vez acrescentados àquele total de povoados
pertencentes ao território das comunidades remanescentes de quilombo, temos um novo
total correspondente a 152 povoados.
Povoados referidos às comunidades remanescentes de quilombos que se
localizam fora da área desapropriada para instalação da Base
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
162
Nome do Povoado
Apicum Grande
Arenhengaua
Bacanga
Baixa Grande I
Baixa Grande II
Barreiros
Belém
Boa Vista I
Boa Vista II
Boca do Rio
Caicaua I
Caicaua II
Cajiba
Nº de Prédios/2001
8
100
8
8
17
X
32
16
2
7
3
11
25
Habitantes/2001
22
274
22
22
47
38
88
44
5
19
8
30
68
Data do RG
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
Alfredo Wagner Berno de Almeida
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
Nome do Povoado
Nº de Prédios/2001
Habitantes/2001
Data do RG
Cajueiro II
Castelo
Conceição
Coqueiro
Cujupe I
Cujupe II
Curuça I
Guanda I
Guanda II
Iguaiba
Itaperaí
Itapiranga
Jacaré I
Jarucaia
Jordoa
Manival
Pacatiua (Paquativa)
Porto de Baixo
Porto de Caboclo
Raposa
Rasgado
Salina
Santa Bárbara
Santa Rita I
Santo Inácio
São Benedito II
São Benedito III
São Francisco I
São Maurício
São Raimundo II
Tapuio
Tatuoca
Timbotuba
Tiquaras II
Traquai
Vila Itaperaí
29
68
57
11
77
74
12
9
9
26
24
16
5
11
11
122
32
23
5
4
12
4
26
18
55
6
5
3
26
56
3
9
35
11
8
137
79
186
156
30
211
213
33
25
25
71
66
44
14
30
30
334
88
63
14
11
33
11
71
49
151
16
14
8
71
153
8
25
96
30
22
375
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
21/01/99
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
25/07/95
1276
3543
TOTAL
FONTE: Ministério da Saúde / Fundação Nacional da Saúde / Distrito: Pinheiro
Relação de Localidades / Município: Alcântara 13/08/2001.
163
Tecendo palha (Santo Inácio)
A interseção dos planos de
organização social
"Se nós somos do quilombo, como se diz, da terra de negro, descendente
de escravo, descendente de índio, se a Fazenda Esperança e Itapuaua,
Santana dos Caboclos, Perizinho tudo, nós somos tudo assim como se
diz como os dedos da mão. Então nós temos a Flórida, a Forquilha tudo
são só uma coisa, agora, com sua separação, com seus lugares. Inclusive
Santana de Caboclo está dentro da Esperança, Esperança está dentro de
Itapuaua na praia viu? Perizinho tá dentro de Santana, Flórida está dentro
de Santana, que é a terra de santo. E Forquilha dentro também. E Peroba
está bem emendado. Como é que pode fazer uma separação de um com
o outro? Acho que não." ( J.A.- Itapuaua)
Ao considerar as interseções de planos organizativos e sem querer absolutizálos, pode-se dizer que cada um destes planos consiste num conjunto de instituições sociais
apoiadas num princípio de afiliação, ou seja, num modo de agrupar os agentes sociais ou
de separá-los uns dos outros (Geertz,1967:259-263). Destacando os principais planos de
interpenetração dos povoados, decidimos descrever notadamente as interseções econômicas,
ecológicas, religiosas e políticas configurando as fronteiras do território, sob diferentes
prismas. Outros dados referidos a planos institucionais, como estabelecimentos de ensino e
postos de saúde, não tiveram análise destacada e são citados no decorrer da investigação,
ou constam do mapa básico elaborado para fins desta perícia.
A interdependência ecônomica e ecológica entre os povoados
Constata-se uma especialização no nível dos povoados de que deriva uma
divisão de trabalho, abarcando múltiplos elos entre eles, desde a esfera da produção até
aquela da circulação dos produtos agrícolas, extrativos e da pesca. Semelhante interligação
compreende, pois, tanto as relações de troca, fixando equivalentes da farinha, do peixe seco
e do peixe fresco, quanto a utilização de determinados recursos naturais e de meios de
trabalho de uso comum.
Em termos de fragilidade ambiental, as terras de Alcântara revelam o agreste
de um solo cansado, fraco e arenoso que necessita de calagem e correções. Para comportar
a pressão demográfica, têm sido definidas e acatadas, no âmbito dos povoados, regras de
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
uso comum dos recursos básicos1. Os povoados usufruem comunalmente das mesmas
faixas de terrenos agriculturáveis, designados centros, considerados mais adequados para
cultivo e onde se encontram as reservas de mata ou capoeiras mais velhas, partilhadas entre
os povoados de maneira ordenada e relativamente harmônica. Os divisores das terras
correspondentes a cada povoado tangem-se nesses denominados centros. Ademais, a terra
não é plana, possui solo arenoso e as florestas são relativamente ralas, muitas vezes batizadas
como capoeirões. A terra fica praticamente coberta pela vegetação no período chuvoso, os
igarapés transbordam e os campos naturais afetados pelas marés ficam completamente
inundados, dificultando a pesca e a coleta.
Nas áreas que ladeiam a rodovia MA-106, além das areias quartzosas, há
florestas secundárias mistas em que os cocais avançam e as palmeiras de babaçu disputam
com o encapoeiramento cada faixa de terra. Apicuns, manguezais e campos inundáveis
prevalecem nos povoados mais próximos ao mar, juntamente com o cordão arenoso das
praias, marcado por muricizais nas bordas. As matas de galeria e as pequenas reservas
madeireiras dos povoados têm sido mantidas com dificuldades, mediante regras que
disciplinam tratos agrícolas, práticas extrativistas e atividades pecuárias e de pesca. Elas
informam a referida divisão de trabalho: há povoados que mantêm o criatório cercado ou
que amarram os chamados boi-cavalo e mantêm livres as áreas de plantio, enquanto que
outros mantêm soltos os animais, cercando a extensão dos terrenos de cultivo. A altura das
cercas, seu estado de conservação e os materiais que devem ser usados nelas são
informalmente definidos e consensualmente acatados, dirimindo as disputas quando sucedem
ocorrências de gado invadir as áreas de plantio.
O entrelaçamento dos povoados pode ser exemplificado em termos desses
múltiplos planos relativos ao ecossistema, à organização da distribuição e uso dos recursos
básicos no processo produtivo e aos circuitos específicos de serviços e de circulação de bens
essenciais ao consumo. Dessa maneira, há povoados que se dedicam principalmente à produção
agrícola, abastecendo aqueles que são voltados para a pesca e vice-versa. Os moradores dos
povoados de Baixa Grande e de Novo Belém realizam atividades de pesca em Oitiua. Eles não
possuem artefatos que possibilitem pescar uma quantidade maior de peixes. Em decorrência,
eles compram mais peixe do que pescam propriamente. Adquirem o peixe no povoado de
Oitiua, trocando-o pela farinha d'água e pelo arroz que produziram. Em Oitiua, que é o povoado
de maior expressão demográfica, há mais de 200 famílias que vivem basicamente da pesca e da
fabricação artesanal de instrumentos relativos a ela, como: espinhel, rede, tarrafa e puçá. Os
pescadores de outros povoados, como Manival e Itapuaua, reconhecem a qualidade desses
instrumentos e dão preferência à sua aquisição para aumentar sua capacidade produtiva.
Acrescente-se que para a aquisição de barcos de pesca todos os povoados acham-se referidos
principalmente a São João de Cortes, onde há pequenos estaleiros que consomem diferentes
espécies de madeiras, tais como: caju da baixa, bacuri e guamadim retirados das reservas de
mato dos povoados para a construção de embarcações. O povoado de Raimundo Sú (Raimundo
Sul) possui também pequenas unidades de fabricação de barcos. Os pescadores de Oitiua,
situados a sudoeste do município, também incursionam eventualmente no rio Periaçu ou rio de
São João, mais ao norte, onde passam dias pescando. Através deles e destas incursões esporádicas,
as duas mais expressivas microbacias localizadas respectivamente ao norte e ao sul do território
das comunidades remanescentes de quilombos2 tornam-se enquadráveis nas práticas de uso
comum articuladas entre povoados de distintas posições geográficas.
166
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Os moradores de Manival, por seu turno, vendem peixe e camarão para Rio
Grande, cujos moradores vão regularmente a Manival transportando arroz e farinha d'água
para a realização das devidas trocas. Manival e Pacatiua são também procurados por
moradores de inúmeros povoados, inclusive Rio Grande, como portos para embarcar
carvão, madeira, madeira de mangue, frutas, aves e porcos para a capital São Luís. Pescadores
de Brito, que praticam a pesca marítima, vendem peixes em povoados como Santa Maria
e nas agrovilas de Peru, Marudá e Só Assim. Na pesca de rede, obtêm as taínhas e os
bagres, que também são pescados com tarrafas. Com as malhadeiras mais grossas, pescam
camburés e pescadas, que variam de oito a dez quilos. Transportam a produção em bicicletas,
conhecidas como cargueiras, que comportam duas caixas de isopor com capacidade para
60 quilos cada uma. Verificamos que há duas bianas de moradores de Brito, chamadas de
"Milena" e "Marister" – que ligam regularmente o povoado à capital São Luís, atracando
no porto sob a ponte Bandeira Tribuzzi –, que transportam peixes e demais gêneros
alimentícios produzidos nas regiões circunvizinhas ao povoado. Há também um barco à
vela, chamado "Flor de Natal", que transporta para o mesmo destino tão-somente o carvão.
Constatamos ademais que esses povoados que possuem portos e exportam
os mais expressivos volumes da produção pesqueira, além de possuírem os maiores
contingentes demográficos no município – como Oitiua, São João de Cortes, Prainha,
Ponta D'Areia, Cujupe, Manival, que correspondem a pouco menos de 1/3 dos habitantes
dos povoados arrolados – centralizam e irradiam sua influência sobre dezenas de outros
que se tornam seus tributários em termos de relações de troca. Entretanto, não só a condição
de porto torna um determinado povoado o centro de irradiação ou de concentração de
influências e de importância econômica. Há alguns deles voltados para o beneficiamento da
produção que, possuindo casas de forno, onde ocorre a transformação artesanal da mandioca
em farinha, constituem um fator de atração para as demais localidades próximas.
Intensificam-se essas trocas no período de preparo das chamadas roças.
Nessa etapa do ciclo agrícola em que prevalecem as modalidades de ajuda mútua e
intercâmbio de serviços e de força de trabalho, como a denominada troca-dia, entre
grupos familiares de parentes e vizinhos, os entrevistados pontuam que a alimentação
tem de ser mais forte. Como é um período que sucede à colheita, há uma relativa
abundância de farinha d'água e são também fartos os resultados da pesca do camarão e
do extrativismo do babaçu. As casas de forno funcionam quase de maneira ininterrupta,
sem parar a ralação e a torração de farinha, e as mulheres dos pescadores concentram
suas atividades em levar ao sol os camarões que já foram ao fogo. Produzem o camarão
seco, que é um forte equivalente de troca. Os homens pescam e as mulheres trabalham
secando o pescado, nos povoados ribeirinhos, enquanto os homens preparam o terreno
para o plantio e as mulheres encofam3 a farinha d'água, nos povoados considerados mais
centrais. Constata-se uma complementariedade em múltiplos aspectos, suprindo as
necessidades essenciais dos grupos familiares. Tal complementariedade acha-se consolidada
historicamente e apresenta uma relação de pertinência e certo equilíbrio, quando se
examinam as conexões entre as diferentes etapas dos ciclos produtivos ou entre os
calendários agrícolas e extrativos e entre estes e as atividades derivadas da pesca4.
No que concerne à distribuição dos recursos hídricos disponíveis, pode-se
destacar que tanto o uso da água potável, os chamados olhos d'água, quanto as demais
utilizações são também realizadas mediante regras de uso comum. Percebe-se uma
167
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
reciprocidade positiva entre as redes sociais referidas aos povoados, com uma interdição
expressa ao cercamento das fontes e nascentes, ou seja, com a proibição do uso privado
de ribeiras e igarapés e demais cursos d'água. Não roçam e nem desmatam perto das
aguadas de modo a não afetar a vegetação que protege as nascentes ou que ladeia os
cursos d'água. A própria localização dos povoados sempre observa a regra de evitar a
proximidade das nascentes e olhos d'àgua, privilegiando o curso médio de rios e igarapés5.
As fontes e os chamados poços são mantidos enquanto recursos abertos. Assim,
o denominado poço do frade – poço de pedra construído provavelmente em meados do
século XVIII por ordem religiosa que detinha o domínio das terras –, localizado em Vista
Alegre, é também utilizado por moradores de Baixa Grande e São Benedito.
Para o rio Periaçu confluem moradores de dezenas de povoados e das agrovilas.
Mariscos, como ostras, sururus e caranguejos são extraídos em suas margens mais próximas
das cabeceiras, tendo como referência principal o povoado de Samucangaua. No curso médio
e na foz prevalecem os peixes. Segundo entrevistados de Samucangaua, a escassez de víveres
nas agrovilas tem forçado os moradores a uma pesca incessante e de características algo
predatórias, posto que estariam extraindo prematuramente sururus e demais mariscos. Esse
tipo de uso predatório, bem como aquele das redes de malha estreita, é inibido pelas
comunidades ribeirinhas, porquanto coloca em risco a reprodução de peixes e mariscos.
A utilização de terrenos para plantio pode variar segundo a localização dos
povoados. No caso das agrovilas, a insuficiência de terras – devido a lotes inferiores à
fração mínima de parcelamento agronomicamente prevista para o município – e o seu
rápido esgotamento – em virtude de a rotação nos lotes ficar comprimida num intervalo
de tempo que não permite o descanso do solo – têm obrigado os moradores a colocarem
seus plantios em áreas que distam até oito quilômetros do local de moradia. Essa distância
aumenta o esfôrço físico dos moradores e torna mais intenso o uso de animais de tração e
carga, ou seja, os bois-cavalo. Em São Raimundo, Rio do Pau, Castelo, Ladeira, Pavão e
Santo Inácio os terrenos de plantio são mais próximos das residências. As unidades
residenciais são fixas e os terrenos de plantio variam de lugar a cada novo ciclo agrícola.
As árvores frutíferas que não foram plantadas e nem constituem benfeitoria
de nenhuma unidade familiar podem ter seus frutos apropriados por quaisquer pessoas, de
qualquer povoado que seja. Os povoados em que houver abundância de frutos suprem os
demais e não há cotas estabelecidas por pessoa ou família, como narra um morador de
Peroba de Baixo:
"A manga por exemplo, você está vendo muito pé de mangueira aqui,
mas não tem manga. Na Peroba de Cima tem manga agora. Se eu quiser,
vamos na Peroba de Cima pegar. Eu trago o tanto que eu quiser e ninguém
diz para mim: – Não junta, não leva. ( A. G. 14/04/2002 ENT.4.1 )
O extrativismo também é praticado livremente. O único ato de interdição
mencionado refere-se ao babaçu nos lotes das agrovilas:
"coco babaçu pode pegar em qualquer lugar, ninguém proíbe. Só nas
glebas das agrovilas é que com a divisão dos lotes deram de não deixar.
Prenderam o coco, mas tá acabando por lá..." ( J.G. 14/04/2002 ENT. 4.2)
168
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Por outro lado, numa analogia com as práticas já mencionadas de extração de
marisco, o ato de coleta é condicionado à madurez do fruto, seja para a juçara, seja para o
babaçu. É interditado o corte de cachos na extração da amêndoa do babaçu. Somente
podem ser coletados os que se precipitaram ao solo.
Os maiores juçarais acham-se situados em São Maurício, Canelatiua, Mamona
e Peru Velho e as práticas de coleta também respeitam o estado de madurez. Entre
Peroba de Baixo e Peroba de Cima, existem duas "baixas" preservadas e separadas por
uma campina, onde os moradores desses dois povoados extraem juçara. A interseção
entre os dois povoados ocorre nessa prática conjunta de preservação e na distribuição de
terrenos pra o cultivo e de extrativismo. Os moradores de Peroba de Baixo "fazem suas
roças" na Peroba de Cima nos extremos com Terra Mole, Engenho, Prainha e Corre
Fresco, enquanto que aqueles de Peroba de Cima ajudam a manter o juçaral. Não proíbem
a coleta da juçara, mas não permitem a derrubada de palmeiras, nem que tirem a juçara
verde. É a madurez que assegura a reprodução da espécie. Senão, vejamos: "O juçaral
maior é aqui na Peroba de Baixo. Mas nós aqui não tiramos a juçara verdinha. Tem
que esperar ficar madura...".(J.G. 14/04/2002 - ENT.4.2)
Os instrumentos cilíndricos, feitos de palha e utilizados para espremer a massa
da mandioca, denominados tipiti, são produzidos principalmente em São Raimundo II e
daí vendidos para os outros povoados. A produção de adobe, tijolo cru que não é cozido,
concentra-se nos povoados de Santa Maria, Peroba de Cima, Ponta da Areia e São João de
Cortes. Essa produção artesanal tem levado à construção de casas segundo novas técnicas
de levantar as paredes, que conferem à paisagem desses povoados um traço peculiar, e tem
possibilitado um intercâmbio com os povoados próximos que discutem das vantagens ou
não de se ter paredes de adobe.
Quanto à circulação de produtos, vale acrescentar que há uma rede de
empreendimentos comerciais, as denominadas quitandas ou comércios, que são vinculados
direta ou indiretamente a comerciantes de cidades próximas, notadamente Bequimão e
Pinheiro, e que servem indistintamente a diferentes povoados. Assim, tem-se que moradores
de Vista Alegre fazem compras de produtos industrializados na quitanda de Baixa Grande,
que consideram "mais sortida". Há ligeiras variações entre elas no preço pago pelos produtos
agrícolas e extrativos.
Antes, a amêndoa do babaçu de Baixa Grande era vendida para Pavão,
Oitiua e Peroba. Hoje, os entrevistados afirmam que a produção declinou em demasia,
fazendo com que a coleta se volte para o autoconsumo, principalmente para a feitura de
azeite, que é como designam o óleo de babaçu para fins comestíveis. Os preceitos de não
derrubar palmeiras continuam, entretanto, prevalecendo. As relações com os comerciantes,
chamados quitandeiros, se concentram mais, agora, na produção de carvão, que é vendido
na beira das rodovias ou na própria sede municipal, para abastecimento local, e da capital
São Luis, que designam como cidade. Os compradores de carvão são dos povoados
maiores e, mediante o aumento da demanda de seu uso doméstico, têm visitado
seguidamente os demais povoados, sem obedecer exatamente o ciclo usual das "caieiras"
de verão. Organizaram um sistema regular de transporte das cargas para a capital, onde
têm um entreposto de comercialização, no que chamam de "porto livre" da Camboa.
Nas trocas entre famílias de povoados diferentes, há algo mais que "coisas
trocadas", há elementos de um mesmo complexo cultural, que são reforçados por esse
169
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
intercâmbio voluntário. Definindo-se os povoados por essas interrelações, pode-se
afirmar ainda que o acesso aos meios de produção depende do grau de inclusão ou
pertencimento à comunidade. A terra para cultivo é alocada para os membros dos
povoados consoante suas necessidades simultâneas de autoconsumo e de comercialização.
Os lugares (litoral, "interior" ou "centro", ribeiras dos rios) em que os povoados se
formaram ou para onde se deslocaram geograficamente, consoante os critérios de
relação equilibrada com os recursos naturais, podem ser pensados como ecossistemas
aos quais os grupos estão adaptados. Historicamente, ocupam lugares distintos e com
o uso comum resultam por reduzir ao mínimo a competição por recursos naturais
relativamente escassos e por respeitar a fragilidade ambiental. Cada povoado teria
pelo menos um porto de referência, uma aguada ou poço, bem como uma reserva de
mata para prover necessidades eventuais de reparo e construção de casas e de
embarcações e de feitura de mastros para as festas dos santos. O porto e a reserva de
mata podem ser compartilhados com outros povoados, enquanto que o núcleo de
habitações, também designado sítio, e os terrenos de cultivo seriam exclusivos ou
prioritários no seu uso para as famílias que ali se agrupam, seja por laços de
consanguinidade e afinidade, seja por sucessão ("herdeiros"), seja por vínculos religiosos
sob a designação genérica de comunidade.
As "circunscrições" religiosas
Os integrantes das comunidades se agrupam religiosamente em fronteiras que
transcendem os povoados. A manutenção de rituais religiosos rompe com os seus limites
estritos, estabelece lealdades para além do parentesco e da atividade econômica conjunta,
levando a que os devotos se movimentem com maior freqüência em direção a alguns
povoados, que assumem uma posição de centralidade. A obrigação compartilhada de
freqüentarem cerimônias religiosas, de maneira recorrente, em determinado templo, define
outra forma de pertencimento à estrutura dos povoados. Igrejas, como em São João de
Cortes, e as inúmeras capelas da Igreja Católica, juntamente com templos da Assembléia de
Deus, que se distribuem por Oitiua, Manival, Mangueiral, Marudá, Peru, Santa Maria e
Mocajubal, e da Igreja Batista, em Peroba de Cima, propiciam, através de padres e pastores,
serviços religiosos regulares, com missas e cultos, para pessoas de diferentes povoados. A
freqüência evidencia um grau de interrelação. De igual modo, os chamados terreiros e terreiros
de mina, localizados, entre outros, em Itapiranga, Rio do Pau e Mocajubal (perto da agrovila
Novo Peru), e os denominados pajés e pajoas, em Belém e Bom Viver, realizam eventualmente
sessões de cura, delineando, como o fazem os demais funcionários religiosos, suas respectivas
"circunscrições". Essas regiões não produzem comunidades rigidamente separáveis e é possível
se entrever as mesmas pessoas presentes em missas ou em pajelanças, em povoados diferentes,
referidos a qualquer uma das territorialidades já citadas: terras de santo, terras de preto e terras
de caboclo. Buscam atendimento religioso a demandas que vivem como distintas, combinando
o que na aparência se exclui mutuamente. As ditas "circunscrições" religiosas permitem mapear
de uma outra maneira o território das comunidades remanescentes de quilombo, estabelecendo
vínculos e pertencimentos de várias ordens a povoados não necessariamente contíguos.
170
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Os cemitérios e as tensões socias em face da interdição de uso, pelo
CLA, do antigo cemitério de Peru e Marudá
No que tange aos cemitérios, como recinto sagrado que transcende às
diferenças de confissões religiosas, em que não apenas se enterram os mortos, mas
onde são guardados os elementos da descrição genealógica e renovada a memória em
rituais que congregam os descendentes e afins, verificamos que não há correspondência
exata entre os povoados e o que chamam de "campo santo". Levantamos 19 cemitérios
distribuídos desigualmente pelos 139 povoados arrolados, assinalando que diferentes povoados
enterram seus mortos num mesmo recinto cemiterial. Onde estão enterrados os ancestrais de
toda uma rede de povoados, mais que um "campo santo", estrito senso, consiste numa parte
da história do grupo. Aqui, novamente, a geografia parece não funcionar como critério para
explicar as formas de coesão social. Nem sempre enterram os mortos no cemitério
geograficamente mais próximo. Depende da "escolha" feita pelas famílias. E tal seleção parece
levar em conta, pelo menos nas situações verificadas, fatores de história pessoal e de parentesco
mais exatamente alusivos aos antepassados. Foi possível perceber isso em trechos de entrevistas
em que reivindicam o livre acesso ao "antigo" cemitério de Perú e Marudá, hoje interditado e
controlado pela administração do CLA, que desde os deslocamentos compulsórios não mais
autoriza enterros aí. Senão, vejamos: "ali foi enterrado meu umbigo" ( J.S. ou J.G. de Cajueiro.
23/04/2002 ENT. 26); "meus avós e pais estão ali e nem no Finados posso chegar perto
deles" (M.L.S.D. de Marudá).
Historiando o deslocamento compulsório, a senhora de Marudá assim se
pronunciou em reunião realizada na Câmara Municipal de Alcântara:
" (...) nem área para fazer cemitério deram para nós. Fizeram o cemitério
dentro de minha gleba... eles enterraram o primeiro que morreu dentro
da minha gleba, hoje uma parte da gleba está ocupada pelo cemitério
porque todo mês morre um para enterrar lá... Tomaram da gente o
cemitério velho e meu pai, minha mãe, meus avós estão enterrados lá e se
for possível eu quero ser enterrada lá onde meu pai foi enterrado."
(M.L.S.D. de Marudá).
Pode-se asseverar que há povoados cujos mortos são enterrados em mais de
um cemitério com os territórios de parentesco segmentando-os e tendo primazia nas redes
de relações. A decisão de onde enterrar os mortos define pontos de convergência nessas
redes, fazendo dos sepulcrários um critério de afiliação e pertencimento que suscita
solidariedades mais intensamente valorizadas. Os que se mobilizam hoje mais diretamente
pelo livre acesso ao cemitério controlado pela administração do CLA encontram-se referidos
a mais de dez povoados do total de 21 deslocados compulsoriamente em 1986. O cemitério
mostra-se indissociável da identidade pela qual os agentes sociais se definem e se posicionam,
posto que simboliza o pertencimento em termos genealógicos, que faz uma pessoa ser
reconhecida socialmente como parte de um grupo. Foi nesse sentido que decidimos dispor
os dados, intersecionando planos comunitários, quer dizer, tanto enumerando os povoados
onde se localizam os cemitérios, quanto mencionando aqueles outros povoados que ali
enterram seus mortos.
171
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Cemitérios
NOTAS:
(1) No cemitério da sede do município, na cidade de Alcântara, são enterrados mortos de vários povoados circunvizinhos,
dentre eles: agrovilas do Cajueiro, Nova Espera, Ponta Seca e Pepital e ainda Boa Vista, Trajano Mangueiral.
(2) O cemitério de Itamatatiua constitui ponto de convergência de mais de uma dezena de povoados, quase todos eles
localizados na área de remanescentes de quilombo, ao sul do município de Alcântara, cujo processo de reconhecimento
e titulação encontra-se a cargo do Iterma a partir de convênio firmado com a SMDH, em 1998. Alguns povoados
dentro da área de remanescentes de quilombo ora identificada, como São Raimundo, enterram seus mortos em
Itamatatiua ou em Japeú. Essa interligação entre as diferentes áreas identificadas encontra-se analisada no texto.
(3) Há povoados que aparecem referidos a mais de um cemitério, como Novo Belém e Ladeira, evidenciando que
nem sempre a proximidade física entre as localidades define o local do funeral. Relações de afinidade e parentesco
podem funcionar como critérios de escolha do local de sepultamento. Destaca-se, entre esses critérios, o local onde
foram sepultados os antepassados.
172
Alfredo Wagner Berno de Almeida
As festas religiosas
As devoções aos santos padroeiros compõem um calendário de rituais religiosos
que ocorrem fundamentalmente na estação mais seca, definida como verão, e que se estendem
do fim das chuvas, em maio, até que novamente elas reiniciem em dezembro e janeiro. As festas
de São Sebastião ocorrem invariavelmente já sob as primeiras chuvas. No decorrer da estação
chuvosa, não se registram, portanto, grandes festas religiosas.
Cotejando com o ciclo produtivo, importa salientar que os festejos começam
quando a colheita do arroz e do milho, bem como as farinhadas, já terminaram ou ainda
estão terminando. Em maio têm como referência a Festa do Divino, que desde a derrubada
do mastro já mobiliza diversos povoados. É considerada a "festa da sede", em oposição a
São Benedito ou "festa dos pretos", que ocorre em agosto e é vista como a festa dos
povoados e dos tambores de crioula de povoados como São Mauricio, São Raimundo,
Iririzal, Samucangaua, Itapuaua, Pavão, Só Assim e Agrovila do Cajueiro que se agrupam
no largo da Igreja Rosário dos Pretos, na sede do município. Em junho, ocorrem as festas
de São João e São Pedro em S. João de Cortes e em outros povoados. Nesse período,
imediatamente após a colheita, as famílias dispõem de parte da produção para formar os
fundos cerimoniais destinados a assegurar materialmente os eventos. Em outubro, os
povoados mais ao sul do município se agrupam nas novenas e bailes de radiolas que
animam a festa de Santa Teresa, em Itamatatiua, e em janeiro ocorrem as festas de São
Sebastião, sobretudo nas fazendas de gado da beira-campo.
Nas festas em todo o município, através dos grupos de tambor de crioula de
São Maurício, São Raimundo II, Iririzal, Itapuaua, Pavão, Oitiua, Só Assim e agrovila Cajueiro,
os povoados estreitam seus laços. A percussão é considerada, numa visão de senso comum,
como uma arte própria de alguns povoados, preponderantemente das chamadas terras de
preto, mas pode ser registrada nas terras de caboclos, como soa ser em Oitiua. Elaborei
um quadro com as festas e os povoados respectivos tentando evidenciar a composição
dessas redes de relações, que perpassam as territorialidades e simultaneamente concorrem
para estruturá-las. O fato de ocorrerem em terras de santo demonstra ainda que a etnicidade
aqui comporta duplos pertencimentos "pretos/ santo" e "caboclos/santo" que em verdade
referem-se a um único elemento identitário indissociável da territorialidade. O território
étnico, nesse sentido, transcende a uma noção estrito senso de terra, como recurso básico, e
remete a interações sociais entre pessoas e famílias, entre povoados e entre redes de povoados
entre si, nas quais as devoções é que definem o pertencimento às comunidades. Pode-se
dizer, pois, que as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de caboclos são mais
que simples terra, num sentido geográfico, e se erigem, não obstante a diversidade de
situações, enquanto território cultural e etnicamente distinto.
No quadro a seguir, descrevo o calendário de festas religiosas com a relação
dos principais povoados que as organizam e dela participam, indicando também a
territorialidade específica de referência. Constata-se que as festas perpassam, inclusive, a
área ora delimitada nesta perícia, em se referindo a Itamatatiua, cujas terras foram parcialmente
desapropriadas pelo Incra e a outra parte encontra-se sob ação fundiária do Iterma para
efeitos de aplicação do Art. 68 do ADCT.
173
Calendário de festas religiosas
FONTE: Este quadro combina anotações levantadas em documentação constante da pasta referente a Alcântara disponível à consulta na Biblioteca do IBGE, em São Luís, com verificações in loco realizadas durante o
trabalho de campo. Não consegui obter maiores registros sobre festejos alusivos a Nossa Senhora do Livramento.
NOTAS
(1) Data móvel, variando de acordo com o Carnaval e, consequentemente, a Quaresma.
(2) Cf. Ricardo Leitão in: Memória de Velhos - depoimentos. São Luís: Centro de Cultura Popular Domingos Vieira Filho, Lithograf, 1997. p. 57-58
(3) Fazem "brincadeira de boi" em Segurado, organizada pelo Sr. Jacinto.
(4) Esta festa mobiliza praticamente todos os povoados das áreas dos antigos engenhos de açúcar e fazendas de algodão, detacando-se "tambozeiros" de Cajueiro, Peital (Pepital), Só Assim e Santa Cruz. Outros povoados
também possuem grupos de "tambor de crioula" e participam das festividades: Samucangaua, Iririzal, São Maurício, São Raimundo, Pavão, Oitiua e Itapuaua.
(5) Nestas festividades, como nas demais, constatam-se também atividades laicas e "profanas" como os bailes animados com "radiolas de reggae". Foram arroladas durante o trabalho de campo sete radiolas referidas aos
seguintes povoados: Brito, duas; Peru, duas; e Rio Grande, Itapera e São João de Cortes com uma em cada um deles, respectivamente.
(6) Em Canelatiua, existe a Igreja de Nossa Senhora da Conceição.
(7) Desde que ocorreu um homicídio, durante os festejos, há cerca de cinco anos, não estão mais comemorando.
(8) Em Baixa Grande, há alguns anos não estão comemorando mais esta data religiosa.
(9) Há também outras festas mais circunscritas a um povoado, como a do "coco marajá", organizada pelo Sr. José Guri, na agrovila Cajueiro.
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
As instâncias políticas de mediação
Pelo critério da mobilização política, os elementos identitários parecem falar
mais forte, sobretudo a partir do Art. 68 do ADCT e das informações que os agentes
sociais passam a ter desse instrumento jurídico de reconhecimento de direitos coletivos, que
se coaduna com seu universo de auto-atribuições. O referido artigo enuncia o reconhecimento
do processo específico de territorialização das comunidades remanescentes de quilombo
que compreende as denominadas terras de santo, terras de preto, terras de caboclo, terras
da pobreza e demais expressões derivadas. Tal processo abrange, pois, essas territorialidades
específicas e os agentes sociais a elas referidos que se autodefinem como "pretos", "caboclos"
e "pobres" e que foram homogeneizados pelo tipo de intervenção do Estado em Alcântara.
Tais categorias, que não cabem mais nos esquemas interpretativos, de perspectiva evolucionista,
que prognosticavam uma inexorável assimilação racial, que acomodava tensões e assinalava
para um "branqueamento" da população, chamam a atenção para os fatores étnicos que
possibilitam um novo plano de definição das identidades, segundo as quais os agentes
sociais se reconhecem enquanto grupo portador de uma cultura que transcende vínculos
sindicais ou de associação formal. O advento de tais categorias, através de um critério
político-organizativo, define uma situação social particular.
As características culturais contrastantes, agravadas por circunstâncias
recentes e externas à trajetória do grupo, como sucede com a implantação do CLA, foram
impelidas a uma maior visibilidade social. As medidas oficiais adotadas pelo CLA, ao
limitarem drasticamente a sobrevivência física e a reprodução social das comunidades, a
partir da destruição de sua base física – ou seja, os povoados deslocados compulsoriamente
e ameaçados de deslocamentos –, provocaram impactos sobre a percepção dos próprios
agentes sociais de si mesmos diante dos direitos básicos instituídos juridicamente para
assegurar a persistência de diferenças culturais. A consciência quilombola emergiu no decorrer
desse conflito, quando a categoria trabalhadores rurais dava mostras de esgotamento e a
velocidade das pressões sobre sua cultura e estilo de vida aumentaram intensamente. A vida
social, sobretudo nos povoados da "faixa de segurança" ou área mais diretamente afetada,
passou a organizar-se explicitamente no sentido de exigir observância não apenas do
cumprimento dos dispositivos da legislação agrária, que foram subvertidos no desrespeito
à fração mínima de parcelamento, mas sobretudo dos direitos étnicos.
Até 1988/89, a mobilização não levava em conta a identidade étnica,
tampouco os agentes sociais se autodefiniam como quilombolas e nem podiam fazê-lo,
com o risco de, na sua relação com os poderes constituídos, se definirem à margem dos
dispositivos legais. Autodefiniam-se como trabalhadores rurais, assim eram tratados nas
suas manifestações diante dos aparatos do Estado e mantinham-se seguros na condição
legítima de "herdeiros" de doações, aquisições e direitos de sucessão de seus antepassados,
ou simplesmente na condição também legítima de posseiros e ocupantes. Sua posição legal
atinha-se ao componente fundiário. Ainda que assim se autodefinissem, vale asseverar que
jamais deixaram de existir as identidades correspondentes às territorialidades específicas,
que os singularizavam em face de poderes políticos e dos demais segmentos sociais com os
quais secularmente vêm interagindo, seja nos mercados rurais, seja na prestação de serviços.
Aliás, essas territorialidades, que efetivamente caracterizam a estrutura agrária dessa região,
176
Alfredo Wagner Berno de Almeida
permanecem invisíveis tanto para as estatísticas cadastrais do Incra, quanto para as categorias
do censo agropecuário do IBGE. Esse desconhecimento deliberado, mais que uma omissão
ou lacuna censitária, é um fator de confronto, que ao querer destruir não estende a
possibilidade de reconhecimento formal. Trata-se de uma eliminação mais que simbólica
ou involuntária, refletindo a própria forma como o poder dos grandes estabelecimentos
agrícolas, de cunho escravista, foi construído juridicamente no mundo colonial, consagrando
um tipo de propriedade e de imóvel rural, como absoluto, que menospreza as outras
formas de propriedade culturalmente distintas e vistas como potencialmente subordinadas
ou escravas, e que persiste nas disposições jurídicas hodiernas.
Assim, a ênfase na identidade étnica como alternativa num contexto de total
pressão externa que leva o grupo a uma situação limite, colocando em jogo sua reprodução
física e social, pode levar a formas de existência coletiva, com características intrínsecas em
termos organizacionais (Barth, 2000:60). O que já existia efetivamente, mas não era
reconhecido como tal, encontra possibilidades para emergir. Está-se diante de uma
combinação de fatores em que laços primordiais e permanentes, em termos históricos,
articulam-se com expressões jurídicas contingentes, num contexto de conflito extremo, de
características terminais. Tal combinação, ocorrendo num processo de territorialização já
bem delineado, pode ser facilmente distinguível de qualquer abordagem de cunho
instrumentalista, que pretenda interpretar o advento da identidade quilombola como uma
estratégia do grupo de lançar mão de uma identidade, objetivando simplesmente obter
vantagens materiais e simbólicas.
Os agentes sociais no conflito com o CLA adotaram uma forma de
resistência que enfatiza um determinado elemento identitário, entre os vários presentes na
organização social tradicionalmente estruturada. A ênfase nos quilombos, como capaz
de imprimir uma identidade étnica, mesmo que haja diferenças "culturais" aparentes entre
os que habitam e cultivam nas territorialidades específicas, emana da agudez do conflito
com a intervenção governamental que resultou no advento de uma forma de existência
coletiva capaz de se confrontar com os antagonistas. A proeminência daqueles povoados
que explicitamente acionam a denominação terras de preto concorre secundariamente
para isso. São cerca de 100 povoados referidos explicitamente pelos agentes sociais que
neles vivem como terras de preto, dentre os 139 arrolados, que se colocam sob esta
denominação e assim são reconhecidos. Como se pode constatar nos depoimentos da
parte sul da área delimitada:
"Santa Rita, Curuça, Santa Bárbara, Barreiro, Bonfim e aí vai até Guaíba, já
Guaíba é lá na beira do igarapé, já tá quase na costa. Lá já se olha Alcântara.
Para cá mais tem acesso para ir daqui lá por terra. E é só negro toda essa
região, que vai até o São Francisco onde o Leitão diz que é dele, que o
Delino mora lá, toda essa área aí é negro que mora aqui dentro destes
matos aí, pra chegar lá dá uma luta danada, mais chega, duas, três horas de
viagem, quatro já dá pra chegar. (...) e por aí vai tendo só festa de São
Benedito que é festa do preto. " ( G.X. 19/04/2002 ENT.16).
"Cujupe é uma terra de caboclo, como Oitiua. Ficam nas extremas com os
pretos no meio, e assim vai." (G.X. 19/04/2002 - ENT.16)
177
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Delegacias sindicais
178
Alfredo Wagner Berno de Almeida
A indagação mais freqüente é para que se diga qual seria o suporte dessa
escolha que leva todos os povoados a convergirem para uma mesma identidade, produto
de uma mobilização coletiva contra uma forma de intervenção do Estado. Numa tentativa
de resposta, vale citar: a recusa explícita a quaisquer modalidades de subordinação, expressa
pelo ideal de autonomia desses povoados; o passado trágico que remete aos horrores da
escravidão, sempre acionado pela história oral e pela memória social dos integrantes dos
povoados, quaisquer que sejam; o temor permanente pelo que designam de cativeiro ou a
posição que consideram mais degradante, humilhante e desonrosa. Ancestrais remotos sob
o jugo da escravidão são sempre lembrados, porquanto viabilizaram o acesso aos recursos
naturais hoje essenciais à reprodução física e social dos povoados. As narrativas de fuga e
aquelas outras análogas referidas à chamada pegação ou fuga em face do recrutamento
compulsório para guerras, às chamadas tocas ou esconderijos nos fundos das fazendas ou
nos abrigos das terras de ordens religiosas: todas essas modalidades de escapar dos
mecanismos repressores da força de trabalho parecem convergir, hoje, para o significado
de quilombo ou comunidade remanescente de quilombo compreendida como negação
do trabalho escravo e garantia de livre acesso aos recursos para assegurar a reprodução, e
como o elemento mais afinado com o ideal de autonomia preservado historicamente pelas
territorialidades específicas e seus respectivos povoados. Certamente que só sugere paradoxal
à primeira vista imaginar como remanescente de quilombo um povoado onde os agentes
sociais se auto-representam como descendentes de escravos, pretos, índios ou como caboclos.
A noção de quilombo surge como identidade de referência dos povoados
num antagonismo que envolve o acesso a bens essenciais, que tem reduzido vertiginosamente
a produção de mandioca, ou seja, a capacidade de as famílias fazerem farinha, afetando
hábitos alimentares e estilo de vida. Nesse sentido, a noção de quilombo não pode ser
congelada historicamente, impondo aos grupos sociais uma forma de se classificarem. Ao
contrário, são eles próprios que elaboram suas categorias de auto-atribuição e suas formas
de relação com os poderes constituídos, recolocando os quilombos na ordem do dia das
pautas oficiais e do Estado. Nessa elaboração, o significado da identidade se altera consoante
as circunstâncias. Assim, no caso de Alcântara, a identidade quilombola – que historicamente
era sobretudo um atributo econômico, simbolizado pela autonomia no processo produtivo
– assume cada vez mais uma dimensão política, infletindo sobre as associações e sobre o
próprio sindicato, que passa a conduzir as reivindicações nesse sentido, considerando o
conflito não apenas agrário, mas sobretudo étnico. Desse modo, a inter-relação entre os
povoados evidencia que a resistência às medidas de implantação do CLA implica em novas
maneiras de se organizarem e de marcarem diferenças culturais potencialmente abafadas e
socialmente invisíveis pelo peso das ações de inspiração colonialista. Os povoados que
Nota ao quadro da página 178:
(1) Consoante dados de 2001 levantados pelo STR de Alcântara, a entidade possui 31 delegacias sindicais com 1991
associados. Destas, sete encontram-se fora da área identificada como de comunidades remanescentes de quilombo,
no âmbito deste laudo pericial, a saber: Alcântara (sede), Itamatatiua, Paraíso, Portugal, Raimundo Sul (RaimundoSú), Mocajatuba, Baiacuaua e Timbira, compreendendo, respectivamente, 492 homens e 333 mulheres, ou seja, 825
associados ou ainda cerca de 41% do total geral apresentado acima. Muitos associados vinculados à delegacia
sindical da sede são dos povoados mais próximos a Alcântara. Há inúmeros outros associados que ora habitam no
perímetro urbano de Alcântara e que também estão referidos a esta delegacia.
179
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
tinham uma interdependência econômica e ecológica, a partir dessa mobilização étnica
passam a ter também uma estreita ligação política, passando a se constituir em unidades
organizadas, compondo uma comunidade política que vincula os povoados uns aos outros.
Tal vinculação, que configura um território étnico, reforça o objetivo deste trabalho pericial,
que analisou os elementos a partir dos quais os agentes sociais focalizados estão se dizendo
quilombolas e se estruturando como comunidades remanescentes de quilombo.
180
Notas
Introdução
1 A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, produzida pelo IBGE, em 1959, atribui ao município
de Alcântara uma área de 1.114 quilômetros quadrados (IBGE, 1959:31). As Informações Básicas
sobre o Município de Alcântara, elaboradas em 1972 pelo Instituto de Pesquisas EconômicoSociais e Informática-IPEI, do Governo do Estado do Maranhão, atribuem-lhe uma área de 1.201
quilômetros quadrados (IPEI, 1972:4).
O objeto da perícia e os procedimentos de obtenção de informações
1 Conforme já foi mencionado, foram visitados 53 povoados, com a realização de entrevistas na
imediaticidade da aplicação de técnicas de observação direta, tanto no centro do povoado quanto nos
terrenos dedicados aos cultivos, às atividades extrativas e à pesca. Foram obtidas, entretanto,
informações sobre duas centenas de povoados através de técnicas de observação indireta. Elas
consistiram na realização de "oficinas de trabalho" para discutir temas específicos, como o mapeamento
social das comunidades, envolvendo representantes de diferentes povoados, e na participação em
reuniões programadas previamente pelo Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de
Alcântara, STTR, pelo Centro de Cultura Negra, pelo Projeto Vida de Negro e pela SMDH. As
informações obtidas por método indireto foram sempre confrontadas com relatos de outros
entrevistados, observando a possibilidade de divergência entre as versões, sobretudo porque as
reuniões em pauta referiam-se a questões no mais das vezes polêmicas e não exatamente produzidas
no âmbito da programação estrita do trabalho de pesquisa.
2 Os livros do STTR, que registram os aposentados a cada ano, entre 1997 e 2002, assinalam 435
nomes correspondentes a: 46 povoados, em 1997; 41 povoados, em 1998; 29 povoados, em 1999;
23 povoados, em 2000, e 65 povoados em 2001. Essas estatísticas não registram os aposentados
antes de 1997 nem tampouco os possíveis óbitos no período, dificultando qualquer operação de
soma e impondo a relativização do total obtido. As aposentadorias incluem os seguintes "benefícios":
auxílio doença, salário materno, aposentadoria por idade, pensão e "amparo previdenciário". Não
foram detectados casos de aposentadoria por invalidez.
3 Tais unidades, em Alcântara, organizam-se segundo duas expressões associativas: colônias de pesca
e movimento dos pescadores. Uma, sediada em Prainha, na área de influência do Movimento
Nacional dos Pescadores e do Movimento de Pescadores do Maranhão; e a Colônia de Pesca Z-10,
sediada na sede do município. Esta última tem 984 associados, incluindo-se os aposentados, que
também concorrem voluntariamente para o funcionamento da entidade.
4 Embora para Foster esses contratos sejam essencialmente diádicos, ligando partes contratantes
mais do que grupos e evidenciando que cada "pessoa" é o centro de sua rede de laços contratuais,
pode-se considerar que se trata de uma característica intrínseca ao povoado de Tzintzuntzan,
estudado por ele no México, onde não foram registradas organizações vigorosas compreendendo
três ou mais pessoas. Tomando-se Alcântara como referência empírica para tal conceituação,
certamente que tem que ser levada em conta a densidade dos aspectos organizativos e sua significação
na vida social.
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
5 A exceção aqui aparece referida às terras indígenas. Entretanto, trata-se de situação em que
os povos são mantidos sob tutela.
6 Compulsando os livros de "Carregação" da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (175578), "onde eram transcritas na íntegra as faturas dos gêneros, africanos e brasileiros, escravos e
outros" (Carreira, 1988:20), Carreira observa que a escrituração mercantil não fornece informações
cabais sobre: idade, sexo e etnia dos escravos. O dado relativo ao sexo pode ser aclarado em
testamentos dos senhores de escravos e, parcialmente, na nomenclatura das faturas, "mas nunca
o da idade e o da etnia" (Carreira, 1988:113). Consoante o autor: "A indicação do porto de
embarque não conduz a conclusão nenhuma, dado que a distribuição das etnias é complexa e
numa pequena faixa da costa (africana) existe um complicado emaranhado de grupos." (Carreira,
1988:113). No caso do Maranhão, de acordo com a referida escrituração, os pontos de embarque
foram Bissau, Cacheu e Serra Leoa. Compulsando os "Diários" da Companhia Geral, tem-se o
nome dos rios e pontos da costa onde eram efetuadas as negociações para obtenção de escravos,
consistindo numa aproximação ainda vaga para indicar as etnias: rios Logos, Escasserim, Casamansa
e Geba e na costa Bossis, Balantas e ilhas dos Bigajós. Na feitoria de Bissau, estavam aprisionados
nos armazéns: Mandingas, Fulas e Bigajós. Após a extinção da referida Companhia, o tráfico
continuou a orientar-se para o Maranhão e Turiaçu, por exemplo, onde foram registrados
quilombos desde o fim do século XVII e de onde foram iniciadas grandes sublevações no século
XIX, consistiu num porto clandestino sem qualquer controle alfandegário das autoridades coloniais.
7 No Cartório do Segundo Ofício, em Alcântara, os dois inventários mais recuados que encontrei
foram de 1832, de Anna Florinda Silva, e de 1872, de João José da Cunha. Neles, as indicações sobre
os escravos são vagas e registra-se a designação "crioulo(a)", acompanhando o prenome. Neles, não
há menção a doações e atos de alforria. O mesmo se verifica nos testamentos mais recentes levantados
no Cartório do Primeiro Oficio.
8 Insisti nesse argumento mesmo considerando a pertinência de uma leitura crítica dessas explicações
de "esgotamento do solo", chamando a atenção para o fato de que isso não corresponde à exaustão
absoluta da terra, mas sim à diminuição progressiva do resultado das colheitas nas terras das grandes
plantações. Essa seria uma explicação do ponto de vista senhorial, que também poderia estar atrelada
à flutuação de preços do algodão e do açúcar no mercado, mas que acaba sendo reproduzida
acriticamente pelos comentadores regionais.
9 Uma informação complementar sobre esta dupla posição usufruída pelo Sr. Pedro Nascimento Sá,
que conta 86 anos – de exercer simultaneamente uma mediação interna, resolvendo disputas sobre
os terrenos de plantio entre moradores de povoados ou concedendo permissão de pesca para
moradores de povoados vizinhos, e uma mediação junto a órgãos oficiais –, concerne ao fato de ser
sogro do presidente do STR que conduz o conjunto das negociações com as autoridades
governamentais. O Sr. Samuel Moraes é casado com a filha mais velha do segundo matrimônio do
Sr. Pedro, que é o único cartorialmente registrado.
10 Levantamento realizado por Sérvulo de Jesus de Moraes Borges, do Centro de Cultura Negra, em
abril de 2002, também corrobora esta aglomeração de famílias impelidas a sair dos povoados no
chamado Anel de Contorno, da cidade de Alcântara, incluindo o Baixão do Lobato ou Buraco
Fundo e a Vila Airton. Na capital São Luís, de igual modo, foram registradas outras tantas famílias
nos bairros de Gamboa, Vila Embratel, Vila Palmeira e Liberdade. Linhares registrou, em 1998,
na Liberdade, uma aglomeração de famílias de Florida e Forquilha. O advogado das comunidades
desapropriadas, Dr. Domingos Dutra, realizou, em 1994, um levantamento abrangendo 600
famílias dos povoados de Alcântara que tinham domicílio em São Luís.
182
Alfredo Wagner Berno de Almeida
11 Cabe a advertência de que essas práticas costumeiras não devem ser cristalizadas enquanto direito
consuetudinário, porquanto conhecem variações no tempo, condicionadas pela abundância ou escassez
dos recursos, pelas intempéries climáticas, pelo tipo de pressão de antagonistas que buscam usurpar
seus domínios tradicionais e pelas estratégias de sobrevivência que têm sido encetadas pelas unidades
familiares mediante os excedentes demográficos ou em contraposição a interesses conflitantes. A
noção de costume, aqui, não se refere a padrão de comportamento sancionado de maneira absoluta
e sempre reproduzido do mesmo modo pelos que o adotam. Ao contrário, mostra-se dinâmica e
contingente, abrangendo alterações condicionadas por fatores de diferentes ordens que redefinem
tais práticas, transformando-as, ainda que muitas vezes mantendo a mesma designação.
12 As visitas a alguns povoados coincidiram com reuniões realizadas pelo STTR de Alcântara, caso de
Peroba de Baixo e Peroba de Cima, e com oficina realizada pelo Projeto Vida de Negro/SMDH-CCN,
caso de Ladeira. Nas visitas aos povoados, fui acompanhado, no mais das vezes, pelo Presidente do
STTR, Sr. Samuel Morais. Nas caminhadas de reconhecimento dos marcos divisórios das áreas, fui
acompanhado pelos representantes dos povoados e por aqueles indicados por eles. Na delimitação do
conjunto da área, fiz-me acompanhar também de agrônomo e técnico em cartografia, como se poderá
constatar no memorial descritivo e nos mapas, em anexo, elaborados exclusivamente para fins desta
perícia.
13 Para além do total mencionado, foram utilizadas também duas entrevistas realizadas por A.
Cantanhede, em Ladeira, uma entrevista realizada por L. F. R. Linhares, no Bairro da Liberdade, em
São Luís, com antigo morador de Flórida e Forquilha. Uma última entrevista, nessa faixa etária, foi
realizada na sede do município com informante acima de 70 anos, reconhecido pelos demais
entrevistados como branco e que tem seus ancestrais no que Viveiros classifica como "aristocracia
alcantarense" (Viveiros, 1975:109). Por descendência direta, reconstituiu, sem maior esforço, quatro
gerações da genealogia da derradeira família de grandes proprietários de terra em Alcântara, simbolizada
por Antonino da Silva Guimarães (Viveiros, 1975:42). Esse entrevistado corrigiu, inclusive, a data
do falecimento de A. S. Guimarães para março de 1947, diferentemente da data de 1948, mencionada
por Lopes (1957:65).
14 Embora não tenha sido realizada uma coleta sistemática de dados nesse sentido, pode-se afirmar
que pelo menos quatro entrevistados possuem mais de trinta afilhados e são conhecidos em mais de
uma centena de povoados. Um deles, por prestar serviços relativos à cura e ser conhecido como
"doutor de ossos", recebe pacientes de municípios que distam mais de 100 km. Dois deles por terem
sido encarregados da terra, com função de arrecadar foros, e o quarto por ser o mais velho de uma
família de herdeiros, com direitos sobre a terra reconhecidos em cartório, que descende de um
vaqueiro que fazia a ligação entre os campos naturais e os povoados considerados centrais, ou seja,
que não se localizam na chamada beira-campo.
15 Cf. Decreto nº 7.820, de 12 de setembro de 1980, estado do Maranhão. Declara de utilidade, pública
para fins de desapropriação, área de terra necessária à implantação, pelo Ministério da Aeronáutica, de
um Centro Espacial no município de Alcântara, num total aproximado de 52.000 hectares.
16 Durante o trabalho de campo, verifiquei que há situações de desautorização desses protagonistas em
povoados como Pavão, onde ocorreu uma certa devastação das reservas por parte dos que acreditavam
que seriam fatalmente remanejados, a partir dos primeiros deslocamentos compulsórios realizados
pelo Centro de Lançamento de Alcântara em 1987, e acabaram migrando para a capital São Luís. Nesse
povoado, entretanto, teria ocorrido o falecimento do antigo encarregado, Sr. Domingos Araújo, sem
que sua autoridade tivesse sido transmitida a outro.
Situações de desautorização também foram registradas em entrevistas com referência a Itamatatiua,
povoado central das denominadas terras de Santa Teresa, a partir de ação fundiária inconclusa por
183
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
parte do Iterma, em 1997, que permanece provocando instabilidade na ação tradicionalmente
reguladora dos chamados encarregados da santa. O mesmo foi observado com respeito a São
Raimundo e São Maurício, a partir de interpretação feita pelo filho mais velho e herdeiro, que tem
encontrado dificuldades em fazer respeitar o veto à retirada de madeiras e, respectivamente, pelo
antigo encarregado da terra.
17 Entre esses termos e expressões, pode-se adiantar, porquanto serão retomados posteriormente,
aqueles constantes das descrições dos perímetros das áreas focalizadas, quais sejam: "pedras de
rumo", "datas", "abas de terras", "pontas e abas", "quinhão de terras", "mística" ou "fazem misco
com...", "extremas", "testadas de uma sorte de terras", "enseadas", "beiras" e "centros".
18 Cf . Registro Paroquial expedido em 01 de março de 1856, Livro 20, folha 10. Localizado no Arquivo
Público do Estado do Maranhão.
19 Cf. Registro Paroquial expedido em 30 de junho de 1856, Livro 20, folha 20. Localizado no Arquivo
Público do Estado do Maranhão.
20 Para se ter uma aproximação do tipo de acatamento e de difusão dessas narrativas, cabe esclarecer que elas
foram obtidas em entrevistas realizadas na casa de duas famílias que se apresentaram como membros da
Assembléia de Deus.
21 Para um aprofundamento sobre essa situação, consulte-se a dissertação de mestrado de Laís
Mourão (1974), que abarca as terras de Santa Teresa; as notas de campo produzidas no ano de
1972, por João Pacheco de Oliveira Filho, datadas de 6 de outubro, que descrevem os rituais e
cerimônias que compõem a festa de Santa Teresa e os episódios alusivos à Santa viva (Pacheco,
1972:1-12); e as observações de Terri Valle de Aquino feitas em Barroso, município de Bequimão,
quando da visita do cortejo das caixeiras tirando a citada jóia (Aquino, 1972:7-12). O valor da
jóia não é fixo nem é estipulado previamente e corresponde às condições de possibilidade das
famílias. Materializa a relação com o santo ou com a santa, por meio de serviços, bens ou
dinheiro. Tanto podem ofertar uma cabeça de gado quanto uma ave, um ovo ou uma certa
quantidade de arroz ou farinha ou o que apuram a partir da venda de determinados produtos.
Esses bens passam a integrar um fundo cerimonial que mantém o patrimônio da santa e que é
administrado pelos referidos funcionários religiosos.
22 Pelo fato de o trabalho de campo pericial ter se realizado no período de chuvas, ocorreram maiores
dificuldades de acesso aos marcos onde há subidas e descidas sucessivas nas trilhas. No caderno
fotográfico disposto em anexo, no Volume 2, há registros completos desses marcos com as devidas
inscrições.
23 Foram realizadas entrevistas e feitos contatos detidos com dirigentes do STTR de Alcântara, da colônia
de pescadores, do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais de Alcântara, Montra, do recémcriado Movimento dos Atingidos pela Base de Lançamento de Alcântara e da Associação das
Comunidades Negras Quilombolas, Aconeruq.
24 Foram realizadas discussões no âmbito do Projeto Vida de Negro (SMDH-CCN), na Sociedade
Maranhense de Direitos Humanos e no Centro de Cultura Negra do Maranhão e contatos com
membros da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e da Rede Nacional de Advogados Populares.
Além dessas entrevistas, foram feitos contatos com vereadores e funcionários religiosos, a saber:
freiras, clérigos e pastores.
25 Para maiores informações sobre essa expressão, consulte-se a interpretação de Almeida sobre as
narrativas míticas da "decadência do Maranhão" (Almeida, 1983:197).
184
Alfredo Wagner Berno de Almeida
26 O termo mocambo, nos dispositivos jurídicos da legislação colonial, era apresentado como sinônimo
de quilombo. Ambos designavam concomitantemente habitações e locais de refúgio de escravos
fugidos. Para uma interpretação crítica do deslocamento desta noção jurídico-formal e de sua
ressemantização, consulte-se o texto "Quilombos: sematologia face a novas identidades" (Almeida,
1996:11-19).
27 Carvalho Martins destaca essa situação no seu relatório preliminar de identificação de Itapuaua: "A
chamada toca, cujo significado pode ser assimilado à idéia de quilombo." (Carvalho Martins, 1998:10).
De igual modo, ela detectou também nos povoados a expressão "tempo da escravidão".
28 Os que fazem referência à história do "negro Tito" são principalmente aqueles cujas atividades se
referem de algum modo à baia de Cumã e à beira-campo correspondente. Não procedem a relatos
heróicos, porquanto viveram o medo e o temor quando era anunciado que o bando do "negro Tito"
estava próximo ou por ali deveria passar.
29 Há um vasto repertório de histórias sobre o significado de esconder sob as saias para evitar o
recrutamento compulsório, para burlar a vigilância de soldados e para acentuar a esperteza dos
moradores dos povoados diante da belicosidade dos chamados "brancos". Tal como as demais
histórias, que ressaltam qualidades e temores em face da ação de antagonistas mais poderosos,
são narradas em momentos de descontração e não necessariamente quando as perguntas dos
pesquisadores estavam sendo colocadas de maneira mais permanente à mesa. Pela sua extrema
variedade de versões e significados, certamente merecem um estudo à parte e uma decifração
mais detida, já que, muitas vezes, os narradores se posicionavam como contadores de histórias,
entremesclando personagens dos contos de fadas, como reis e príncipes que habitariam os
sobrados e zelariam pelos seus tesouros, com figuras da vida cotidiana dos povoados, como
pescadores, carvoeiros, mulheres levando seus filhos para o lugar das roças e, ainda, com seres
sobrenaturais. A pesquisadora Patrícia Portela coletou pacientemente inúmeras dessas histórias.
30 As disciplinas militantes valorizam esses atos, tornando-os marcos históricos de lutas e
mobilizações. O que os historiadores regionais classificam como pilhagem e saque de
fazendas é vivido, nesse contexto, como ato afirmativo, exaltado em processos de afirmação
étnica.
31 Esse conceito resulta do pressuposto de que não faz sentido aplicar, hoje, a mesma definição de
quilombo do Conselho Ultramarino, de 1740, às situações sociais ora classificadas como
comunidades remanescentes de quilombos. Não se pode congelar a definição jurídica da legislação
colonial, de finalidade nitidamente repressiva, e transportá-la mecanicamente no tempo, para que
preencha finalidade de reconhecimento oficial dos direitos dos quilombolas. A legislação colonial
coloca os quilombos numa camisa de força geográfica, como se fossem sempre isolados, localizados
em áreas remotas, longínquas, distantes dos mercados e produzindo tão-somente para subsistência.
Considera, ademais, os quilombolas como "coisa" ou como "peças" passíveis de serem recolocadas
no mercado de escravos pelos atos de captura. Os instrumentos jurídicos coloniais são de sentido
eminentemente repressivo, desqualificando os quilombolas e estigmatizando-os de maneira
absoluta. Em outras palavras: antes, o quilombo era para ser destruído e nessa direção eram
forjados os instrumentos jurídicos; hoje, o quilombo é valorizado e o propósito legal é que seja
oficialmente reconhecido. Ao contrário das noções do período colonial, nas situações sociais hoje
classificadas como remanescentes de quilombos, tem-se uma afirmação econômica de produzir
para diferentes circuitos de mercado, podendo o quilombo estar localizado próximo a núcleos
urbanos, aliado à emergência de uma identidade coletiva com base na autodefinição dos agentes
sociais em pauta, numa capacidade político-organizativa, em critérios ecológicos ou de conservação
de recursos básicos por meio de modalidades de uso comum dos recursos naturais ou por outras
185
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
formas similares de manejo sobre as quais se manifestem favoráveis as comunidades. Há uma
inversão dos elementos estigmatizantes, que passam a ser vividos como condição positiva. Para
maiores detalhes sobre esse conceito de quilombo, que relativiza a definição do código jurídico
colonial chamando a atenção para a necessidade de sua releitura, hoje, consulte-se Almeida,1996.
32 Os trabalhos relativos às fontes secundárias compreenderam, entre outros, o levantamento da
documentação administrativa do período colonial, que contém referências explícitas aos quilombos na
região de Alcântara, assim como as cartas de datas e de sesmarias expedidas no último quartel do século
XVIII e os "registros paroquiais", efetuadas entre 1854 e 1857, conforme os ditames da Lei nº 601, de
18 de setembro de 1850, que dispõe sobre as terras devolutas do Império, definindo sobre o
preenchimento das condições legais para legislação de posses e antigas sesmarias. Para facilitar eventuais
consultas, que porventura se façam necessárias, classificamos e transcrevemos tais documentos e
decidimos expô-los no Volume III* desta perícia que concerne basicamente aos Anexos.
(*Na presente edição, uma seleção desses documentos foi incluída no Volume 2 – n.e)
Processo de territorialização das comunidades remanescentes de quilombos
1 As atividades de pesquisa no âmbito desta perícia reiteram interpretações e constatações de investigações
científicas anteriores realizadas entre 1972 e 1999. A primeira delas refere-se aos trabalhos etnográficos
realizados, durante 1972 e 1973, pela equipe de antropólogos do Museu Nacional-UFRJ vinculada à
Pesquisa Polidisciplinar "Prelazia de Pinheiro", que se constituíram num ponto de partida para
outras pesquisas posteriores. A segunda concerne aos trabalhos executados por antropólogos,
advogados e agrônomos junto à Coordenadoria de Conflitos Agrários do Mirad-Incra, em 1985 e
1986, objetivando propiciar subsídios ao Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário
para apreciação das iniciativas do Estado Maior das Forças Armadas, EMFA, através do Ministério da
Aeronáutica, concernentes aos pequenos produtores agrícolas afetados pela implantação do Centro
de Lançamento de Alcântara. A terceira refere-se tanto aos relatórios preliminares de identificação de
comunidades remanescentes de quilombos em Alcântara, produzidos em 1997-98 por equipe
multidisciplinar vinculada ao Mestrado em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão,
e financiados pela Fundação Cultural Palmares-Ministério da Cultura, quanto às dissertações de
mestrado relativas à questão, defendidas no decorrer de 1999 e 2000 no âmbito dessa mesma
instituição.
2 Cf. Lei de 06 de junho de 1755 ou "das Liberdades dos Índios", que, segundo o texto, restituiu aos
"índios do Grão-Pará e Maranhão a liberdade de suas pessoas, bens e comércio". A instituição da
Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, também denominada na documentação pombalina de
Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, ocorreu em 7 de junho de 1755 através de
Alvará régio de confirmação. Três anos depois, foi aprovado o "Directorio que se deve observar nas
povoações dos indios do Pará e Maranhão", firmado pelo rei D. José I e por Sebastião José de
Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, e datado em Lisboa, em 17 de agosto de 1758. Os bens
dos jesuítas, incluindo-se as fazendas, olarias e engenhos, foram sequestrados e sua arrecadação
passou a pertencer ao Real Erário. Em junho de 1760, os jesuítas foram detidos e forçados a sair de
Alcântara.
Territorialidades específicas, estrutura agrária e situação atual dos conflitos
1 O conceito de plantation aqui utilizado se opõe àquele de fazenda, enquanto diferentes tipos de
organização social na agricultura. Tem como referência a distinção teórica de E. Wolf e S. Mintz, para
186
Alfredo Wagner Berno de Almeida
quem a fazenda seria uma "propiedad agrícola operada por un terrateniente que dirige y una fuerza de
trabajo que le está supeditada, organizada para aprovisionar un mercado de pequeña escala por
medio de un capital pequeño, y donde los factores de la producción se emplean no sólo para
acumulación de capital sino también para sustentar las aspiraciones del status del propietario. Y
plantación será una propiedad agricola operada por propietários dirigentes (por lo general organizados
en sociedad mercantil) y una fuerza de trabajo que les está supeditada, organizada para aprovisionar
un mercado de gran escala por medio de un capital abundante y donde los factores de produción se
emplean principalmente para fomentar la acumulación de capital sin ninguna relación con las
necesidades de status de los dueños." (Wolf e Mintz, 1975:493).
2 Para Viveiros (1954:163), eles eram banqueiros, que concediam empréstimos, e controlavam
exportações, importações e até o beneficiamento de produtos agrícolas, além de terras e escravos.
3 Esta interpretação enfatiza o exercício de atividades autônomas de cultivo e comercialização de possíveis
excedentes por parte dos escravos, em tempo livre e em terras das fazendas que lhes eram concedidas
para tanto. Consulte-se Sidney W. Mintz, "From plantations to peasantries in the Caribbean", in:
Caribbean Contours. The John Hopkins Univ. Press, p. 127-153, 1985. Consulte-se, também,
sobre a chamada "brecha camponesa" no sistema escravista e no Brasil, os estudos de Ciro F. S.
Cardoso in: Escravo ou camponês? O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Ed.
Brasiliense, p.31-125, 1987.
4 Essa situação referida concerne às aquisições de terras feitas, entre finais do século XIX e a primeira
metade dos anos 1940-50, por Antonino da Silva Guimarães e seus descendentes, que serão examinadas
posteriormente.
5 A área correspondente a essas três freguesias do município de Alcântara, no decorrer do século
XIX, correspondia a aproximadamente 195 mil hectares. Obtive esse total somando a área
correspondente ao atual município de Bequimão, antiga freguesia de Santo Antonio e Almas,
831,5 Km2, com aquela do atual município de Alcântara, que engloba as outras duas freguesias, ou
seja, 1.114 Km2. Excluindo as povoações e fazendas da beira-campo, que continuam apoiadas
principalmente na pecuária extensiva nos campos naturais, e considerando marcadamente a área
das freguesias de São Matias e de São João de Cortes, obtive o total alusivo à extensão das fazendas
de algodão.
6 Esse sistema não deve ser confundido com terras comunais, próprias do feudalismo, em que os
homens não são dissociados do recurso básico, sendo mantidos sob a autoridade senhorial, nem
com terras coletivas, que pressupõem uma intervenção externa de aparatos de poder, organizando a
distribuição dos recursos e dos produtos do trabalho. Em verdade, esse sistema de uso comum
distingue-se daquelas referências históricas concernentes a "sobrevivências feudais" e não significa
uma involução, que o sentido da expressão "decadência de Alcântara" pode denotar. Trata-se de uma
resultante das crises econômicas, próprias do mercantilismo que orientou as políticas do governo de
Pombal, produzida a partir de tensões peculiares ao desenvolvimento capitalista. Constitui, por
outro lado, uma modalidade de apropriação da terra que se desdobrou marginalmente ao sistema
econômico dominante. Emergiu enquanto artifício da autodefesa de indígenas, escravos, alforriados
e agregados, para assegurarem suas condições materiais de existência, em conjunturas de crise econômica
e de desorganização de grandes estabelecimentos agrícolas. Resultou em uma forma aproximada de
corporação territorial que se consolidou rapidamente numa região ainda central no final do século
XVIII, quando Alcântara era visto como "Ouro Preto ao Norte" (Tristão de Athayde, 1978), que foi
se tornando periférica a partir de meados do século XIX.
7 Conforme a conceituação de Barth a respeito de grupos étnicos (Barth, 2000:31).
187
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
8 Por intermédio do Aviso nº 007/GM4/C-0033, datado de 27 de agosto de 1979, o ministro da
Aeronáutica comunicara ao governo do Maranhão seu interesse pela utilização de área no município
de Alcântara para o projeto de lançamento de foguetes.
9 No decorrer de 1982, foi instituído o Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara,
subordinado ao Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento do Ministério da Aeronáutica.
10 Para outras informações, consulte-se: "Só a decepção no final do bloqueio. Lavradores suspendem o
cerco à base e começam longa caminhada para as suas roças." O Imparcial. São Luís, 22 de março de
1986.
11 A documentação do MAer fala em 21 povoados, mas não inclui dois outros que foram mencionados
em entrevistas no decorrer do trabalho de campo pericial. Para maiores detalhes sobre os deslocamentos
compulsórios e as agrovilas, consulte-se Carvalho Martins (1994) e Fernandes (1998).
12 A Infraero passa a atuar na implantação da base juntamente com o Ministério da Aeronáutica através
do Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento, Deped, com base em Termo de Convênio com
vigência de 15 anos, firmado em 01 de novembro de 1996 (cf. Diário Oficial da União, 11/11/1996,
Seção 3, p. 23888). Em 2001, a Infraero já se encontrava afastada de qualquer intervenção.
13 Cf. "Relatório referente à preparação da população alvo da área de transferência e assentamento III Meta 1", Infraero-CLA, 05 de novembro de 1998. Esse documento dá sequência às medidas de
deslocamentos compulsórios, distinguindo as chamadas "áreas de transferência", que perfazem 152
famílias, daquelas de "assentamento", que afetam 103 famílias, num total de 255 famílias atingidas,
correspondendo a 908 pessoas.
14 Cf. Relatório do Encontro "Seminário Alcântara: A Base Espacial e os impasses sociais". Contag,
Fetaema, STTR de Alcântara, 1999. 40 p.
15 Para um aprofundamento dessa discussão do EIA-Rima, consulte-se: Barbosa Pacheco, M.A. A
questão ambiental como direito social. O caso do Relatório de Impacto Ambiental do Centro de
Lançamento de Alcântara. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Maranhão. MPP-UFMA.
2000. p.57-105.
16 Tal decisão não foi efetivada e, até agosto de 2002, nenhuma medida foi adotada nesse sentido pelos
responsáveis pela implantação do CLA.
17 Consulte-se o "Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados
Unidos da América sobre salvaguardas tecnológicas relacionadas à participação dos Estados Unidos
da América nos lançamentos a partir do Centro de Lançamento de Alcântara", datado em Brasília, 18
de abril de 2000, e firmado pelo Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia Ronaldo Sardenberg e
pelo Embaixador dos Estados Unidos da América Anthony S. Harrington.
18 Cf. Ofício nº JG-RJ 179/01, de 16 de agosto de 2001, dirigido ao embaixador Santiago A. Canton,
Secretário-Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
19 Cf. Decreto de 20 de janeiro de 1994. Diário Oficial da União, 21/01/1994, p.1015, e Decreto de 10 de
junho de 1996. Diário Oficial da União, de 11/06/1996.
20 Cf. "Convênio celebrado entre Seplan/MA e Iterma visando promover estudos de preservação
ambiental e ações fundiárias para recuperação do patrimônio fundiário e cultural das comunidades
negras rurais tradicionais remanescentes de quilombos" Todas as ações, segundo os termos do
Convênio, teriam o acompanhamento sistemático do Centro de Cultura Negra, da SMDH e da
Fetaema. Datado em São Luís, 11 de julho de 1996. A extensão das duas áreas citadas foi obtida a
partir de consulta à base cartográfica do Iterma, concernente às ações fundiárias em Alcântara, elaborada
em 2000.
188
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Muralhas e Paredões
1 As técnicas de identificação consideradas próprias à situação dos quilombos em Alcântara escapam das
auto-evidências e dos procedimentos usuais de historiadores e arqueólogos em elencar provas através
de elementos da cultura material. As escavações e a descoberta de inscrições guerreiras, de vestígios de
muros de fortificações militares, de fragmentos de artefatos bélicos (lanças, pontas de ferro), de pedras
que balizam a praça central dos quilombos e o seu formato, corresponde a outras situações históricas,
como as que caracterizam, por exemplo, os trabalhos arqueológicos no caso de Nanny Town, na
Jamaica. Agorsah observa que, na caracterização dos quilombos na Jamaica, pode ser traçado um
amálgama ou uma mistura de povos do período pré-hispânico, africanos e povos de outras origens. Da
sua reconstituição histórica das investigações arqueológicas, cabe citar o seguinte: "Archaeological research
in Jamaica that deals with Maroon heritage is limited to very few reconnaissance, survey (Teulon, 1967),
and minor excavation expeditions (Bonner, 1974). It was only recently that major excavations have
been conducted by the Univesity of the West Indies Mona Archaeological Research Project (Agorsah,
1992b,1993 a,b). In 1967, a reconnaissance expedition led by Alan Teulon of the Survey Department
made the first attempt to locate and identify the ancient site of Nanny Town and to conduct an
environmental study of the area. A ruined stone wall, a stone with engraved inscriptions as well
surface artifacts such as fragments of bottles and crockery, and some botanical specimens were observed
and some collected." (Agorsah, 1994:164-165). (g.n.)
2 Entre as "figuras alcantarenses", resenhadas biograficamente por J.Viveiros, tem-se, a saber: quatro Barões
(Mearim, São Bento, Pindaré e Grajaú); dois cavaleiros professos na Ordem de Cristo, sendo um deles
membro da nobreza com Carta de Brasão dada pela rainha Dona Maria I; um arcediago e comendador;
cinco senadores do Império, um oficial da Ordem da Rosa, agraciado pelo próprio imperador Pedro II;
dois médicos, sendo que um deles "educou-se em Paris, em virtude de uma cláusula do testamento de seu
pai" e foi condecorado por Luiz Felipe, Rei de França, em 1838 (Viveiros, 1975:111).
3 Esses nomes de família abarcam 21 entre as 24 "figuras ilustres" biografadas por Viveiros. Segundo
o especialista em genealogia, suas raízes remontam à "fidalguia lusitana" (Viveiros, 1975:95). O
próprio nome Viveiros, que só encontramos referido a uma única família no povoado de Itapera,
viemos a detectá-lo denominando os próprios quilombos no relatório publicado em Lisboa, em
1822, pelo coronel do Real Corpo de Engenheiros Antonio Bernardino Pereira do Lago: "...os
quilombos de negros fugidos eram tantos e tão grandes que, em um, no distrito de Alcântara,
conhecido por quilombo dos pretos de Viveiros..." (Pereira do Lago, 2001:28).
4 Registrar estes "nomes de família" no batismo cristão e no registro civil indica uma conquista antes
que uma forma de identificação imposta aos escravos e seus descendentes. Os nomes arrebatados se
articulam com o advento das territorialidades específicas e contrariam os antigos registros dos nomes
dos escravos. Nos testamentos compulsados, o nome dos escravos vem grafado da seguinte maneira:
prenome acompanhado de locativo de origem ou da região africana de referência, ou de uma característica
física que distingue o escravo, ou de um estigma ou, ainda, de um ofício (carpinteiro), ou do nome
de um santo ou de um apelido. O ato de apossar-se do nome do antigo senhor é vivido como
legítimo e encerra uma expectativa de direito à terra, ainda hoje.
5 Essa expressão foi inspirada em Comerford (2001:66) e se refere aqui a um padrão de ocupação
que concentra residências e locais de trabalho dos que se consideram parentes, reconhecidos e
valorizados como tais sem que necessariamente existam laços de consangüinidade, incluindo
amigos e vizinhos, cujas relações são disciplinadas por regras de uso comum dos recursos
naturais, instituídas por eles próprios ou por seus antecessores e acatadas consensualmente.
6 A denominação negro tratava-se de uma categoria abrangente que, nos dois primeiros séculos e
meio de colonização, incluía os índios. Foi impositivamente reconceituada em 1759, pelo art. 10 do
189
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Diretório Pombalino, que estabeleceu uma dissociação formal entre os chamados "negros" e "índios".
Nesse mesmo documento ela é utilizada em sinonímia com preto. Entretanto, os estigmas a ela
referidos não são exatamente os mesmos concernentes à categoria preto, que, inclusive, foi adotada
afirmativamente pelos ex-escravos e quilombolas como de autodefinição.
7 O exemplo mais conhecido concerne à introdução, pela Cia. Geral do Grão-Pará e Maranhão, de
sementes de arroz da Carolina, então colônia britânica, para "substituir o arroz vermelho nativo".
(Viveiros, 1975:58)
8 Em verdade, não há mais grandes imóveis rurais em Alcântara. Consoante as estatísticas cadastrais
do Incra correspondentes a 1999, não haveria latifúndios por dimensão ou por exploração no
município.
9 Essa designação não se aplica às edificações da sede do município, embora também em ruínas e
construídas do mesmo modo: em pedra e cal e taipa, possuindo alicerces profundos, paredes grossas
de até um metro e vinte centímetros de espessura e tendo mais de um pavimento. Quando os
entrevistados se referem a elas, utilizam o termo sobrado, que denota a solidez de um poderio quase
sem limites. Não tenho o aprofundamento necessário, nem dados suficientes para afirmar que tal
termo seja designativo principalmente das habitações citadinas dos senhores rurais. Em povoados da
beira-campo, da antiga freguesia de Santo Antonio e Almas, como Arequipá e Monte Palmo, registrei o
termo sobrado para designar sedes de fazendas. Além disso, tudo indica que tal termo mais se refere a
uma posição de poder do que a uma forma arquitetônica, uma vez que tais sedes mencionadas possuíam
um e tão-somente um pavimento.
10 Janã, trata-se da antiga sede da fazenda de Marcial Ramalho Marques, que por duas vezes foi
prefeito de Alcântara e era casado com Ana Guimarães, filha de Antonino da Silva Guimarães. Este
era filho de Antonio Alexandre da Silva Guimarães e de Ana Conceição Araújo. Não possuía título
de nobreza, mas dispunha de muitos bens e é uma das "figuras alcantarenses" listadas por Viveiros
(1975:142), que detinha a propriedade dos imóveis rurais de maior extensão da antiga freguesia de
São Matias, no período logo após a Abolição de 1888. Antonino Guimarães, casado com Leontina
Stela Ribeiro, sobrinha de Carlos Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú (H.M. 21/04/2001- ENT.25),
adquiriu o imóvel rural "Gerijó" (que incluía os povoados de Santa Maria, Ladeira, Janã, Peroba de
Cima, Engenho e Pavão) de José Ribeiro de Sá Valle, mais conhecido como Bebê Sá Valle. Além
disso, possuia imóveis rurais na Ilha do Cajual (Bacurizeiro), na beira-campo de Bequimão
(Arequipá, Paracatiua, Conceição, Cangiqueira, Bamboral), uma ilha no Apicum de Paracatiua, uma
posse nas terras de Castelo e as posses denominadas Tataboia, Tapera, matinha e Santa Rita, e
também comprou, em 1893, inúmeros sobrados, inclusive os três da família Viveiros do largo
central da cidade de Alcântara, que haviam sido vendidos anteriormente ao comerciante Antonio
Mariano Franco de Sá. A cadeia dominial dos imóveis rurais foi reconstituída por Joaquim Shiraishi,
no âmbito dos trabalhos de pré-identificação das comunidades remanescentes de quilombo em
Alcântara (Shiraishi, 1998).
Para maiores informações, podem ser consultados: a) "Formal de Partilha passado a requerimento
de parte interessada e extraído dos autos de inventário dos bens deixados pelo falecimento de
Antonino da Silva Guimarães para título e conservação de seus direitos". Datado em São Luís, 11 de
julho de 1949, e lavrado pelo escrivão interino Antonio A. de Mattos Pereira, sendo escrivão João de
Martins Pereira, 23p; e b) "Formal de Partilha extraído dos autos do inventário dos bens deixados
pelo falecimento de Marcial Ramalho Marques." Datado de Alcântara, 17 de agosto de 1970, e
subescrito pela escrevente juramentada Rosalva Brito Lopes, 38p.
11 Ver, neste volume, mapa elaborado para fins desta perícia intitulado: "Alcântara - terras das
comunidades remanescentes de quilombo: territorialidade, uso dos recursos naturais, sítios históricos
e conflitos sociais". Junho, 2002.
190
Alfredo Wagner Berno de Almeida
12 Os fundamentos dessa interpretação jurídica, de acordo com Salmoral, tem sua inspiração no "Código
Carolino, donde se estabeleció la consideración ingenua o maléfica de que los esclavos no sólo eran
necesariamente útiles, sino que además vivian mejor en América, como tales esclavos, que como
hombres libres en Africa. El hecho de que huyeran o se rebelaran no obedecia, por tanto, a no poder
soportar su condición esclava, sino a la perversión de algunos de sus amos, que les obligaban a
trabajar excesivamente, no les subministraban lo necesario para su sustento, y les maltrataban con
castigos crueles. Tal perversión justificaba muchas veces sus fugas y cimarronaje, y atentaba contra
los principios de la Religión, de la Humanidad y el bien del Estado." (Salmoral, 1996:161) (g.n.)
13 Sobre esse endividamento, podem ser consultados quase todos os comentadores regionais, de
Garcia de Abranches, em 1822 (cf. edição de 1922:116), até Viveiros, em 1954. Fazem uma defesa dos
senhores dos estabelecimentos agrícolas diante dos comerciantes de escravos e da Companhia Geral
do Grão-Pará e Maranhão. Os autores Mota, Silva e Mantovani reuniram e classificaram 80 testamentos
do século XVIII. Uma das considerações da leitura que realizam é a seguinte: "À Companhia de
Comércio devia aparentemente todo mundo." (Mota et al., 2001:27), ou seja, quase todos os
inventários mencionam endividamentos junto à empresa colonial.
14 Como narra A. P., também conhecido como R.P., com respeito à imagem original de S.J. Batista, que teria sido
levada da capela de São João de Cortes, depois que os jesuítas foram expulsos e seu patrimônio confiscado.
(R.P. 20/04/2002 - ENT.22.1).
15 Numa narrativa similar a esses depoimentos coletados na perícia, observa-se que alguns comentadores
regionais fazem o que seria uma crônica da pilhagem. Chegam a registrar os seguintes termos e
expressões: “evasão dos latifundiários”, “êxodo dos proprietários” e “saque” feito pelos herdeiros
(Lima, 1998:90), ou, então, a produzir imagens literárias que pintam esse quadro dramático, como
Josué Montello em seu romance A noite sobre Alcântara (Montello, 1978:249-251). A seguir, uma
passagem de Lima a respeito:
“... tudo concorrendo para a evasão dos latifundiários, dedicados a outros assuntos, e a omissão do
poder político para conjurar a crise. Com o abatimento das fazendas e engenhos e o êxodo dos
proprietários, ficaram as casas da cidade entregues a antigos escravos, promovidos a zeladores de
confiança. Mas, sem recursos, pois os donos acharam mais interessante investir em outros bens em São
Luís ou Rio de Janeiro (...) além do que todo o acervo dos velhos sobrados foi saqueado – é bem o
termo – pela parentela dos herdeiros... Toda a cidade foi saqueada, das pedras dos vetustos muros
às alfaias das igrejas, imagens e grades de ferro, louças e cristais. Prédios desmoronaram, ruas inteiras
deixaram de existir, os sobrados se esvaziaram de tudo e de todos.” (Lima, 1998:90,91) (g.n.).
16 Uma das mais vívidas descrições da seqüência dessas pedras de rumo, abarcando 28 delas, à molde
de um memorial descritivo, foi coletada por Luiz Fernando R. Linhares no trabalho de campo para
sua dissertação de mestrado e para identificação das comunidades de Flórida e Forquilha como
remanescentes de quilombo. Com mais de 70 anos, Sr. Binga, o entrevistado que narra as delimitações,
mesmo residindo atualmente na Camboa, em São Luís, representa o "documento vivo" da
comunidade. Passo a transcrever, com a devida licença de quem a coletou, tal descrição: "A primeira
pedra de rumo fica no Rio Duarte, que divide as terras de santíssima justamente com as terras que era
dos brancos; a segunda fica na Flórida, atrás da casa de forno de Tomásia; terceira fica na Peroba, no
quintal de Moisés; quarta fica na Ladeira (perto do Janã, depois do Vai-com-Deus, lá Isídio ou
Domingos Carne de Porco, ou Domingo Xandoca sabe onde fica; quinta pedra fica no Tajurará; sexta
fica no Samucangaua, localizada no caminho chamado Corta Pescoço, perto do Quebra ovo; de lá vai
para o Porto do Rumo (perto do Deserto), onde fica a sétima pedra de rumo; de lá vem pro lugar
chamado Rio do Pamané, onde fica a oitava pedra de rumo; de lá vem fazer misco com a terra da
Cachoeira (lá era de Firmino Ribeiro, agora ele tinha os filhos Arlipe Ribeiro, Mundico Ribeiro,
Mundico Periz, Miguel Ribeiro, Hermínia Ribeiro, Isídio Ribeiro, Ilário Ribeiro, Daniel Ribeiro, José
191
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Mintiba Ribeiro, esse era tio do Beja, José Ribeiro e Leonide Ribeiro; da Cachoeira vem para a Ladeira
(9a. pedra); de lá vai pra Conceição (10a.); de lá pra Baixa Grande (11a.); de lá vem pra cá Gerijó (12a.);
de lá vai pra Santo Inácio (13a.); de lá vai prá Castelo (14a.); de lá vem pro Pavão (15a.); de lá para o
Centro de Vovó (16a.); Porto dos Bois (17a.); Quiritiua (18a.); Trespucaia (19a.); Oitiua(20a.); Cajueiro
perto de Oitiua(21a.); de lá vêm embora para o Bom Jardim (22a.); Janã (23a.); Terra Mole (24a.); Vaicom-Deus (25a.); Engenho (26a.); Peroba de Baixo (27a.); Primirim, perto da Prainha (28a.)."
(Linhares, 1999:66,67)
17 Não constitui particularidade tal pecúlio, posto que juristas como Perdigão Malheiro, em 1864, já
verificavam a sua ocorrência nas províncias de Minas Gerais e Rio de Janeiro.
18 Em Alcântara, sobretudo nas fazendas da beira-campo, há situações nas quais os escravos possuem
gado e também seriam vítimas dos "ladrões de gado". Uma correspondência de José F. da Silva Maia
Jr., datada de Santa Helena, 11 de abril de 1858, e remetida ao Sr. Redator, foi divulgada em São Luís
por A Imprensa, de 21 de abril de 1858, sobre furto de gado na região de Alcântara. Registra dois
casos, sendo um de escravo e outro de escrava, arrolados como "criadores", que também tiveram
roubadas suas cabeças de gado: "... que me explique quem será o abator (sic) e consumidor de gado
alheio - por exemplo umas vacas da Exma. Sra. D. Maria Tereza Franco de Sá, bem assim diversos
animais das fazendas do Sr. Comendador Joaquim Mariano Franco de Sá, D. Ana Diniz Ferreira de
Sá, de uma escrava do Dr. João Franco de Sá... Além desses são sofredores, e forçados contribuintes
os criadores - Manoel Pinto da Motta, Antonio Mariano Nogueira, Simoa Maria Lourinha, e um
pobre preto escravo do Comendador José Ascenso Costa Ferreira, de nome Simplício." (A
Imprensa, no 32, Ano II, 21 de abril de 1858, p.3).
19 A exportação de escravos para as lavouras cafeeiras das províncias do Sul consistia, conforme a versão
dos intérpretes oficias, num recurso de que os senhores de engenho lançavam mão para saldarem
suas dívidas e os empréstimos usurários. O elevado preço obtido pelos escravos propiciava isto. Para
maiores detalhes, consulte-se Almeida (1983:109). Para se acompanhar mais de perto o caso particular
de uma escrava, Eufrásia, do Maranhão, vendida em 1879, para Campinas (SP), para a empresa
Calhelha & Villares, que deposita na Coletoria da cidade uma quantia para promover sua liberdade e
entra com uma ação contra seu senhor, leia-se Mendonça (2001:63).
20 Enquanto as benfeitorias em Alcântara foram inteiramente destroçadas e os bens móveis dispersos,
as sedes das fazendas dos jesuítas na Ilha do Marajó (Fazenda Arari) e em outras partes do país
permanecem restauradas e com peças de madeira, santuário e mobiliário preservados. Para um
contraste mais detido e para um maior aprofundamento, consulte-se Serafim Leite (1943: 201).
21 O descaroçador de algodão entrou em cena entre 1784 e 1790, após a independência dos Estados
Unidos e com a quebra do monopólio colonial, aumentando as possibilidades de comercialização,
como afirmou E. Williams, e revigorando a economia escravista (Williams, 1975:134-139). No caso
de Alcântara, ele não chegou a ser montado e, quando surgiu em São Luís, quase um século depois
do fim do monopólio da Cia. Geral de Comércio, já era uma medida tardia, incapaz de reverter o
declínio da produção algodoeira maranhense e de ampliar as exportações.
22 O índigo do Brasil é uma planta da família das solanáceas, com ramos de ápices azulados, folhas
lanceoladas e flores em racemos curtos, nativa do Brasil. Os jesuítas desenvolveram técnicas de
processamento e obtiveram o corante, que passou a ter elevado valor comercial.
23 As terras correspondentes a essa fazenda situam-se hoje no município de Bequimão, que foi uma
freguesia de Alcântara sob o nome de Santo Antonio e Almas e passou a município em junho de 1935.
24 Cf. Parecer da Comissão do Convento das Mercês. São Luís, 12 de dezembro de 1862. E Ofício da
mesma Comissão datado de 30 de setembro de 1863. Transcritos por D. Francisco de Paula e Silva,
Bispo do Maranhão. (Paula e Silva, 1922: 458-466).
192
Alfredo Wagner Berno de Almeida
25 Para maiores esclarecimentos, veja-se Linhares (1999:66).
26 A Companhia de Jesus moveu ação contra o governo pombalino, exigindo indenização e reparo
pelos bens confiscados. Sucederam-se comissões para avaliar gado, terras e demais bens. Em 1885, a
Ordem do Carmo tentou transferir para seu convento em São Luís os derradeiros bens que se
encontravam num enorme baú em sua igreja de Alcântara. Consoante Viveiros, eram "quinze
arrobas, ou sejam 225 quilos de prata em obras de fino valor artístico" (Viveiros, 1978:22). Houve
resistência no plano municipal. A Ordem moveu uma ação para recuperar seus bens. Em 1891,
não obstante a Igreja já estar separada do Estado, o governo federal, republicano, "constituiu-se
em legítimo dono e recolheu o tesouro nos seus cofres, no Rio de Janeiro". (Viveiros, 1978:21).
27 Não foi possível estabelecer relações diretas na construção das territorialidades específicas com as três
fazendas de gado da Ordem do Carmo, quais sejam: Pericumã, Tubarão e Suassiu Cumã. Não
consegui, tampouco, detectar qualquer informação outra alusiva às terras correspondentes à Ordem
Terra Santa, assim citadas pelo Bispo do Maranhão D. Francisco Paula e Silva em relação de 1877:
"huma fazenda na paróquia de São Matias em Alcântara." (Paula e Silva, 1922:419).
28 Nos primeiros registros, não me detive na informação, porquanto refere-se a uma figura de dimensão
mítica onipresente em praticamente todo o Maranhão provincial. Tinha conhecimento de seus imóveis
rurais no Mearim, no que hoje corresponde a São Luís Gonzaga. Além disso, é vasto o raio de ação de
membros da família. Antecessores de Ana Jansen ocuparam cargo administrativo na Companhia Geral
do Grão-Pará e Maranhão ou foram dela acionistas ou, ainda, carregaram gêneros à consignação em
navios da Cia. As referências poderiam passar, pois, por vagas. Alguma vezes, entretanto, elas eram
associadas mais diretamente ao Engenho Gerijó, como se ele tivesse pertencido a Ana Jansen e fosse
palco de horrores. Não obtive qualquer informação cartorial ou em fontes arquivísticas capaz de adiantar
sobre a fidedignidade dessa versão. Verificam-se, entretanto, possíveis analogias com a esposa de Carlos
Fernando Ribeiro, Barão de Grajaú, proprietário do Gerijó, que também se chamava Ana e sobre a qual
incidiam acontecimentos denotando perversidade. Senão, vejamos: "(22) Ana Rosa Ferreira Vale Ribeiro,
irmã do ilustre maranhense José Joaquim Ferreira Vale, Visconde do Desterro. Matou a sevícias uma
criança escrava, mas não foi processada porque um seu irmão se apresentou à Justiça, confessando-se
autor do delito e foi absolvido porque ninguém em Alcântara estava convencido da culpa que nobremente
lançou sobre os ombros. Acusada mais tarde de ter morto um escravinho, respondeu a júri, em São
Luís, onde teve como incorruptível acusador o promotor público Celso de Magalhães. Leia-se acerca
deste júri célebre e do promotor o que escreveram Graça Aranha em ‘O meu próprio romance’ e
Dunshee de Abranches em ‘O Cativeiro’". (Lopes, 1957:287).
Numa outra versão, apoiada nas peças processuais e mais exatamente no termo de depoimento da
acusada, Figueiredo de Almeida transcreve o seu depoimento, onde se evidencia que não corresponde
exatamente ao nome e ao pertencimento de família mencionado por Lopes. Para um cotejo, destaquei
o seguinte trecho do depoimento: "Perguntado qual o seu nome, idade, estado, naturalidade e
filiação? Respondeu chamar-se D. Ana Rosa Viana Ribeiro, de quarenta e tantos anos, casada com Dr.
Carlos Fernando Ribeiro, natural desta Província, filha do Comendador Raimundo Gabriel Vianna
e D. Francisca Isabel Lamagnere." In: José Eulálio Figueiredo de Almeida, O crime da Baronesa.
São Luís: Lithograf, 2004, p.36-37.
“Depois do júri da esposa, o Barão de Grajaú viu o Partido Liberal subir ao poder e assumiu a
presidência da Província do Maranhão. No mesmo dia em que tomou posse demitiu Celso Magalhães
da promotoria pública..." (Lopes, 1957:287). Narrativas populares de menino-escravo, cuja morte
foi provocada pelo fato de terem lhe introduzido um garfo no ânus, causando infecção, podem ser
registradas ainda hoje em Alcântara, bem como relatos, reproduzidos também por Lopes, da jovem
mucama do Gerijó que, por ordem da baronesa, "teve os líndissimos dentes arrancados um a um, a
torquês, simplesmente porque o barão, quando ela servia a mesa ao jantar, lhes notara a perfeição"
(Lopes, 1957:287).
193
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
29 Cynthia C. Martins registrou em Itapuaua o que intitulam, em meio às ruínas da casa-grande da
Fazenda Esperança, sumidor (Carvalho Martins, 1998:11), ou seja, um buraco bem fundo onde
eram colocados os escravos que cometiam infrações consideradas passíveis de penas máximas.
30 Contribuem, assim, indiretamente para alargar a ação de tombamento do conjunto arquitetônico e
urbanístico de Alcântara, iniciada oficialmente pelo Decreto n° 26077, de 22 de dezembro de 1948,
que erigiu a cidade de Alcântara em Monumento Nacional. Essa intervenção, que se concentrou nas
igrejas e sobrados coloniais, vê-se hoje socialmente ampliada pela mobilização das comunidades
remanescentes de quilombos, cuja presença histórica no entorno das ruínas, tornando-as vívidas, foi
mantida sob absoluta invisibilidade no ato de tombamento. Para maiores detalhes, consulte-se: a) o
Livro de Tombo Histórico, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, instituído
pelo Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937, p.43 - Número de Inscrição: 254; processo n°
390/T/48. Proprietário: Municipalidade de Alcântara e outros. Caráter do Tombamento: ex-ofício,
voluntário. Data de inscrição: 29 de dezembro de 1948. b) o Livro do Tombo das Belas Artes,
igualmente instituído pelo Decreto-Lei nº 25, já citado, p.95. Número de Inscrição: 521; data da
Inscrição: 10 de outubro de 1974. c) o Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico,
também instituído pelo decreto supracitado, p.15. Número de inscrição: 77.
O domínio "original"
1 A antropologia tem adotado como instrumento de análise novos significados de etnia. Desde 1973,
pelo menos, a American Ethnological Society tem sublinhado novos procedimentos de análise da
etnicidade como identidade, consoante os Proceedings definidos nessa data em The New Ethnicity
- Perspectives from Ethnology. Esse esforço de redefinição já vem desde 1966-67, com F. Barth,
segundo o qual os grupos étnicos passam a ser entendidos como um tipo organizacional ou como
uma forma de organização social (Barth, 2000:11). De igual modo, a ciência do direito, pelas formulações
de N. Bobbio, tem chamado a atenção para os deslocamentos que sofre o conceito de etnia. Bobbio
et al. enfatizam: "Observe-se que não fizemos uso da raça como critério fundamental da definição de
etnia. Este conceito, tal como é comumente usado, não tem fundamento científico." (Bobbio et al,
1999:449).
2 Denomina-se taca a uma fasquia de madeira em forma de bordão e presa ao pulso por uma correia
de couro, empregada para castigar os escravos. Também chamada de mangual ou relho. Diferencia-se
do açoite, que tem tiras de couro.
3 Cf. Directorio, que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, instituído
por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, em 17 de agosto de 1758, e
rubricado pelo rei D. José I.
4 Localizada na cabeceira do rio Pericumã, com 8.712 hectares, foi confirmada a doação de sesmaria aos
"Indios da Povoação de Anadia", em 31 de janeiro de 1811, consoante anotação que consta do Livro
de Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias n° 10, à folha 44, disponível à consulta no Arquivo
Público do Estado do Maranhão. O copista, que transcreveu e classificou os documentos, considera
esse registro como referido a Alcântara. Não o inclui, todavia, nos quadros demonstrativos das
expedições de confirmação das sesmarias. Para um aprofundamento sobre esse processo de
territorialização, leia-se Almeida (1988), Oliveira (1998) e Paula Andrade (1999).
5 A designação pretos aparece em sinonímia com negros no documento do Directorio de 1658. Isso
difere dos comentários de Câmara Cascudo sobre o "ABC dos Negros do Maranhão", divulgado por
Leonardo Mota, em 1928: "Os escritores desses assuntos jamais tiveram contacto com legítimos ex194
Alfredo Wagner Berno de Almeida
escravos, filhos de africanos, bem lembrados do Cativeiro, como eles diziam, porque Escravidão era
aviltante. É como na África portuguesa onde Negro é indelicadeza quase insultuosa. Diz-se Preto!"
(Cascudo, 1986:51)
6 E. Galvão, em Santos e Visagens, observa que o termo caboclo "indica posição social inferior"
(Galvão, 1955:196). Cantanhede recupera a oposição entre os "ricos" (brancos) e os "pobres" (caboclos)
no sistema de representação dos moradores de Ladeira, relacionando-a com o uso comum versus a
propriedade individual da terra (Cantanhede, 1998:7-9).
7 Essa sigla hoje corresponde à Conaq, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras
Rurais Quilombolas.
8 "Entre os particulares que dispunham de cabedal para povoar e cultivar uma capitania do Norte
amazônico, estava Antonio Coelho de Carvalho, desembargador da Casa da Suplicação, que em 1627
pedia, na costa do Maranhão, cinqüenta léguas para norte da barra do rio Cumã. Contudo, como a
escolha feita por Álvaro de Souza da capitania de Caeté entrara pela de Cumã, "que lhe estava já
nomeada até o rio Tury que eram muitas léguas" em prejuízo de Antonio Coelho de Carvalho,
ficando a capitania de Cumã "mui defraudada", este pediu ao rei que lhe passasse a carta de confirmação
da ponta de Tapuitapera para o norte. Pela carta de doação, de 7 de abril de 1640, ficamos sabendo que
esse donatário era fidalgo da Casa Real, desembargador dos Agravos da Casa da Suplicação e juiz das
contadas do Reino, empregos estes que o prendiam, ao mesmo tempo que era o senhor de terras no
Norte brasileiro (ibidem, doc. 63, p. 329-33)". (Nizza da Silva, 2005: 60).
Todos os donatários de capitanias eram praticamente fidalgos da Casa Real ou militares recompensados
por prestação de serviços guerreiros. Para maiores esclarecimentos, consulte-se: Maria Beatriz Nizza
da Silva, Ser nobre na Colônia. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
9 César A. Marques transcreve literalmente essa Carta e cita documento que confirma o patrimônio da
Câmara após a decisão régia de 1754 de reverter todas as terras de Alcântara à Coroa: "Pela Portaria de
28 de outubro de 1759, o Governador Gonçalo Pereira Lobato e Souza, de conformidade com as
ordens que havia recebido, concedeu ao Senado da Câmara desta antiga Vila de Santo Antonio de
Alcântara uma légua de terra para seu patrimônio."(Marques, 1970:72) (g.n.)
10 As confirmações régias mencionadas por César Marques referem-se às seguintes datas: 15 de abril de
1644 e 06 de outubro de 1648. (Marques, 1970:66).
11 A manufatura do algodão e o monopólio dos mercados coloniais no período de 1750 a 1790 foram
estudados por E.J. Hobsbawm (1969 e 1983).
12 Para um aprofundamento sobre o cultivo de arroz pela Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão
e a introdução de novas espécies, consulte-se Viveiros (1975:58) e ainda Carney e Marin (1999:124).
13 Nunes Dias arrola o rendimento dos bens sequestrados aos jesuítas do Grão-Pará e Maranhão.
Importa destacar, no presente estudo, o caso da Fazenda "Gerijó de Tapuytapera". A maior produção
em termos do volume da quantidade produzida e de valor refere-se à farinha, embora o arroz apareça
com destaque. A produção corresponde a 75 alqueires de farinha e a 44 de arroz, em 1760, e a 102
alqueires de farinha e a 220 de arroz, no ano de 1769 (Nunes Dias, 1970:186-87).
14 Esse empreendimento teve curtíssima duração e não logrou êxito. "Na Provisão de 21 de abril de
1688 se lê que, achando-se desmantelada a maior parte dos engenhos do Estado do Maranhão
por falta de braços e do comércio do açúca..."(Marques,1970:64) (g.n.).
15 Desde 1772, ou seja, 17 anos após a criação da Companhia Geral, mais de três dezenas de filhos
desses "lavradores" começam a frequentar universidades européias, tais como a Universidade de
Coimbra, Université Libre de Bruxelles, Université de L'Etat à Gand, Faculté des Sciences
195
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Agronomiques de L'Etat à Gembloux, Université de l'Etat à Liége e Universidade de Heidelberg no
Grão-Ducado de Baden. Há dois que estudaram em universidades norte-americanas. Entre esses se
encontrava pelo menos uma dezena de filhos de "lavradores" de Alcântara, tais como: José Constantino
Gomes de Castro (vigário geral), José Mariano Correa de Azevedo Coutinho, Patrício José de Almeida
e Silva Seixas (senador), Antonio Pedro da Costa Ferreira (Barão de Pindaré, governador, senador),
Custódio Alves Serrão (diretor do Jardim Botânico, na Corte), Joaquim Franco de Sá (senador), José
da Silva Maia (presidente da província), Carlos Fernando Ribeiro (Barão de Grajaú, presidente da
província), Alexandre José de Viveiros (oficial da Ordem da Rosa), Francisco Mariano de Viveiros
Sobrinho (Barão de São Bento). Todos estudaram em Coimbra à exceção de José da Silva Maia, que
se formou na Escola de Medicina de Paris e Carlos Fernando Ribeiro que fez agronomia no Yale
College e medicina na Escola de Medicina da Filadélfia (USA). Pombal reformara a Universidade de
Coimbra, separando o direito canônico do direito costumeiro e, na jurisprudência do reino, afastou
a possibilidade de aplicação do direito canônico. Outros tantos membros dessas famílias de
"lavradores" de Alcântara, no decorrer do século XIX, estudaram na Faculdade de Direito de Recife
(Augusto Olimpio Gomes de Castro, presidente da província; José Francisco de Viveiros, vicepresidente da província; Felipe Franco de Sá, senador; Carlos Fernando Viana Ribeiro) e na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro (Luiz Alfredo Neto Guterres).
16 Teodoro Correa de Azevedo Coutinho aparece na lista dos "lavradores" que transportaram seus
gêneros à consignação nos navios da Companhia Geral, inclusive a partir de 1778. Os que assim o
fizeram após a extinção da Companhia tinham como objetivo a" liquidação ou amortização de
dívidas junto a empresa" (Carreira, 1988:284).
17 Historiadores e economistas, reproduzindo as periodizações ortodoxas da historiografia oficial,
utilizam um conceito de etnia restrito a características raciais.
18 Carreira considera os historiadores que estimaram em 100.000 os escravos transportados pela
Companhia Geral, incluindo-se os 48.000 para o Rio de Janeiro, como referidos a um período préestatístico, em que não se havia examinado com rigor a documentação contábil da referida empresa.
Registros de cartas de datas e sesmarias e o fim do monopólio da Companhia
Geral do Comércio
1 Os dois registros alusivos a demarcações foram localizados no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro,
e os demais, em São Luís, no Arquivo Público do Maranhão, que possui as cartas e uma cópia da
listagem disposta em microfilmes no Iterma. Tal listagem foi classificada por termo e por vila sem o
acuro necessário na localização de cada um dos registros. Certamente que há referências por demais
vagas de localização mas, ainda assim, pode ser feito um cotejo com dados biográficos de sesmeiros,
contribuindo para precisar a informação. Há casos de registro com grafia quase ilegível e há anotações
não convenientemente explicadas, como "sem efeito" assinalado após a denominação da sesmaria.
Um procedimento de maior acuro exigiria uma transcrição integral de cada carta ou registro, constituindo
o acervo original básico para as iniciativas de classificação.
2 Com propósito de checar a fidedignidade do registro com as informações memorialísticas e de
história oral, decidi pela transcrição integral do documento, verificando se a localização correspondia
aos relatos. Tal checagem se impôs porquanto havia muitos registros localizados nos chamados
Riacho do Mocambo, Mocambo, Rio do Mocambo e Lago do Mocambo que se referiam a outras
áreas geográficas.
3 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Livro 4, folha 54.
196
Alfredo Wagner Berno de Almeida
4 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Livro 4, folha 123.
5 Cf. Registro de Cartas de Datas e de Sesmarias. Em 23/09/1815, Livro 10, folha 25.
6 Cf. Correspondência entre o chefe de polícia e o presidente da província do Maranhão Lafayete
Rodrigues Pereira. São Luís, Palácio do Governo, 11 de maio de 1866.
7 Para outras informações, inclusive sobre a conversão dessas fortunas em moeda inglesa, consulte-se
Röhrig Assunção (2000:32-71). Pereira do Lago, em 1820, cita 54 comerciantes portugueses e quatro
estrangeiros em São Luís. Destaca Meirelles, entre os portugueses, e R. Hesketh, entre os estrangeiros.
Descreve também as condições de trabalho nos estabelecimentos fabris de São Luís: "Há diferentes
máquinas de descascar arroz, de descaroçar algodão, de fazer açúcar, de destilações e de tecer pano de
algodão, todas imperfeitas (...) e podemos dizer que a força motriz de todas é só resultante de muitos
braços escravos, parecendo aquelas fábricas mais uma masmorra d'África." (Pereira do Lago,
2001:56). (g.n.)
8 Destaque-se que os processos de cobranças de dívidas e de definição do espólio da Companhia Geral
do Comércio do Grão-Pará e Maranhão tramitaram na justiça até 1914.
9 Outras informações podem ser obtidas com a leitura de R. Gaioso, que publicou sua análise em
1813, e com a consulta ao trabalho de Barros Bello (1998), que faz uma arqueologia dos planos de
desenvolvimento do Maranhão.
10 Arruda, comentando a interpretação de Furtado, afirma que teria ocorrido uma "euforia efetiva" e que
a política pombalina contribuiu para o início da formação da economia nacional; e conclui: "O
Maranhão não é, portanto, exceção ao quadro econômico que define o perfil da colônia brasileira no
fim da época colonial, é uma de suas manifestações mais expressivas, mas seu dinamismo econômico
não é exclusivo, nem conduz à primazia entre as regiões econômicas brasileiras. "(Arruda, 1988:21).
11 Para um aprofundamento sobre essa polêmica, leiam-se os seguintes tópicos de "Apontamentos
sobre as sesmarias do Brasil" de José Bonifácio de Andrada e Silva: "1) Todos os possuidores de
terras que não tem titulo legal perderão as terras que se atribuem, exceto num espaço de 650 jeiras
(130 hectares), que se lhes deixará caso tenham feito algum estabelecimento ou sítio. 2) Todos os
sesmeiros legítimos que não tiverem começado ou feito estabelecimento nas suas sesmarias serão
obrigados a ceder à Coroa as terras, conservando 1.300 jeiras..." (Andrada e Silva, 1998:152-153).
12 Após suspender o noviciado, o governo procurava extinguir as ordens religiosas: "O intento da
Monarquia Constitucional do Brasil era ir acabando aos poucos com a vida claustral, e esperar, com
ânsia de cobiçoso heredipeta, a morte do último frade para recolher-lhe o espólio."(Lacerda de
Almeida, p.196, apud Pratt, 1941). Segundo Frei André Pratt: "Proclamada a Independência o Governo
cuidou logo de nacionalizar as ordens religiosas existentes, não permitindo que elas conservassem o
menor vínculo de sujeição às respectivas hierarquias estrangeiras." (Pratt, 1941:186). O Projeto n° 20,
aprovado sem discussão pela Câmara dos Deputados, em 1828, estabelecia que religiosos que
obedecessem a superiores residentes em Estados estrangeiros seriam expulsos para fora do Império
(Art.4º).
13 Senador Patrício José de Almeida e Silva Seixas, senador Antonio Pedro da Costa Ferreira, senador
Jeronimo José de Viveiros, senador Joaquim Franco de Sá, senador Felipe Franco de Sá.
14 O exemplo exponencial aqui seria o naturalista José Custódio Alves Serrão, que fez o curso de
Ciências Naturais na Universidade de Coimbra, em 1823. Retornou ao país e, em 1835, pesquisou as
serras de Itabaiana, em Sergipe, e foi professor de Química no Colégio Militar, diretor do Museu
(hoje Museu Nacional) e diretor do Jardim Botânico, falecendo no Rio de Janeiro, em 1873.
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Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Os quilombos em Alcântara
1 A expressão encarregados da terra foi registrada no decorrer do trabalho de campo pericial, não
tanto para referir a feitores de escravos, mas para designar os que tinham a responsabilidade de
cobrança do aforamento, de medir os terrenos de cultivo, definindo os percentuais a serem recolhidos,
de estocar a produção arrecadada e de administrar as terras em virtude da ausência, seja dos fazendeiros,
seja de membros das ordens religiosas. Em inúmeras situações, os que lideram a resistência aos
senhores são oriundos exatamente das famílias destes encarregados. O fato de exercerem uma ação
mediadora os dispunha no centro dos antagonismos que marcavam as relações escravistas nas
antigas fazendas de algodão e nos engenhos.
2 Para maiores informações sobre essa revogação, leia-se "Apontamentos para a civilização dos índios
bravos do Império do Brasil", elaborado por José Bonifácio de Andrada e Silva entre os anos de
1823 e 1829 (Andrada e Silva, 1993: 89-149).
3 Consoante entrevistas já citadas, os índios haviam doado suas terras para os santos padroeiros.
4 As discussões jurídicas sobre a condição de sesmeiros como posseiros marcaram as sessões do
Senado do Império, entre 1841 e 1843. O indício que levantamos de que os fazendeiros de Alcântara
se auto-representavam enquanto posseiros atém-se à participação do senador Franco de Sá: "Num
debate acerca do tamanho máximo para a legitimação das posses, Franco de Sá, grande proprietário
e senhor de engenho em Alcântara no Maranhão afirmara que a Lei iria prejudicar a sua ‘classe de
posseiros’ (Carvalho, 1981:39). Talvez esta assertiva confirme a hipótese de que as terras do Maranhão
seriam tomadas por posse de terras, que implicariam na ausência ou omissão de registros nos livros
do período." (Shiraishi, 1998:29).
5 No decorrer do trabalho de campo, foi registrado um povoado denominado de "Fora Cativeiro" e
devidamente localizado na base cartográfica que acompanha esta perícia. Foram também registradas
alusões à base de lançamento que a identificam com "cativeiro".
6 No Arquivo Nacional, há abundantes registros das disputas políticas que cercaram as Juntas
Governativas na Província do Maranhão.
7 Cf. Arquivo Nacional-CFC - As Câmaras Municipais e a Independência. Rio de Janeiro, Vl. I, 1973,
p. 21-27.
8 No caso de Guimarães, a ocorrência mais conhecida refere-se às fazendas do Barão de Bagé, tal como
registrado em O Progresso, n° 82, de 28 de abril de 1847, à pág. 3. Senão, vejamos: "Tendo-se
evadido das fazendas do Barão de Bagé do distrito de Guimarães duzentos escravos, o Governo
provincial expediu as convenientes ordens para que sejam capturados." (g.n.)
9 Sobre o "movimento que explodiu no mucambo de São Benedito do Céu", em 1867, considerado
a mais expressiva "rebelião" ocorrida no Maranhão, que devastou fazendas e mobilizou centenas de
soldados para reprimi-lo, consulte-se: Jerônimo Viveiros, "A revolta dos pretos" - Quadros da Vida
Pinheirense XXV, in: Cidade de Pinheiro, n° 1.676. Pinheiro (MA), 28 de agosto de 1955.
10 Nessa ordem, considerava-se juridicamente como quilombo ou mocambo "toda habitação de negros
fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem
se achem pilões neles" (Conselho Ultramarino, 1740 apud. Moura, 1994:16). Perdigão Malheiro
menciona, ademais, os seguintes dispositivos legais que instrumentalizam e asseguram a aplicação
desse dispositivo: Alvará de 3 de março de 1741 e Provisão de 6 de março do mesmo ano: "Era
reputado quilombo desde que se achavam reunidos cinco escravos." (Perdigão Malheiro, 1976:50).
198
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Os territórios de parentesco
1 Aqui se poderia incluir, ainda, o caso de Samucangaua, povoado localizado em terras de santíssimo,
que teve como primeira moradora Ismendia, que teria sido escrava no Engenho Gerijó, e da qual
todos dizem descender. Para maiores informações, consulte-se Cantanhede (1998:10).
2 Essa certidão foi transcrita e encontra-se entre os anexos da presente perícia (volume 2). Também
referido a esta territorialidade, tem-se o registro paroquial expedido em 25 de maio de 1856 em nome
de "Ignacio Antonio Dias e diversos pobres" (cf. Livro 01, fl. 10), comentado em tópico anterior.
3 Antonino da Silva Guimarães (1867-1947).
4 Essas informações podem ser aprofundadas a partir da leitura do levantamento cartorial realizado
por Joaquim Shiraishi Neto, em 1998.
5 Refiro-me mais diretamente a matrimônio entre jovens das agrovilas e dos povoados mais próximos
ao mar, onde os recursos naturais permanecem abertos e são vistos pelos moradores das agrovilas
como lugar de fartura e abundância. O matrimônio dos filhos, combinado com a nova regra de
residência, ou seja, "residir sempre fora das agrovilas", produz fatores adicionais de coesão entre os
povoados, apoiados no parentesco e na afinidade.
O território das comunidades remanescentes de quilombos
1 Um cotejo desse tipo pode ser feito entre os povoados de Flórida e Forquilha, que se dispõem em
áreas contíguas, medidas em metros, mas têm referências a territorialidades distintas, quais sejam,
terras de santíssimo e terras de preto, respectivamente, sendo estas últimas formadas a partir de
desagregação de engenho de açúcar ao qual sucederam regras de aforamento, com o já citado Antonino
Guimarães.
2 As referências empíricas aqui se voltam para a descrição de povoados cuja composição se atém a
fatores religiosos, tais como Águas Belas e Santa Maria. ( R.N.R.S. 20/01/1950 - ENT. 07).
3 Para um aprofundamento dessa relação entre territorialidade e identidade, consulte-se: A. W.B. de
Almeida. "Terras de preto, terras de santo, terras de índio-uso comum e conflito" in: , E.M. R. de
Castro e J. Hebette (orgs). Na trilha dos grandes projetos - modernização e conflito na
Amazônia. Belém: UFPA, 1989, (Cadernos do NAEA, nº 10), p. 163-196.
4 Atente-se também para a distinção verificada por A. Cantanhede nos povoados de Ladeira, Iririzal
e Samucangaua entre "família de preto" e "família de caboco" (Cantanhede, 1998:06-09).
5 Dados do MAer assinalam 21 povoados compulsoriamente deslocados em 1986 e 1987 para as sete
agrovilas. São eles: Cajueiro, Curuçá, Pepital, Barro Alto, Espera, Ponta Seca, Lage, Só Assim, Boa
Vista, Norcasa, Cavem, Peru, Santa Cruz, Jabaquara, Pedro Marinho, Titica, Santa Rosa, Pirapema,
Jenipauba, Marudá e São Raimundo. Não incluídas nos dados do MA
A interseção dos planos de organização social
1 Na elaboração deste tópico, utilizei também informações coletadas anteriormente e reunidas nos
seguintes relatórios: "A economia dos pequenos produtores agrícolas e a implantação do Centro de
Lançamento de Alcântara", elaborado com a colaboração de Célia Maria Correia e Francisco José
199
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
Lopes de Souza, datado de Brasilia, Mirad, 21/10/1985; e "Relatório de Viagem a Campo", que
elaborei em junho de 2000 a partir de visitas a povoados com técnicos do Bird.
2 Consulte-se o mapa elaborado para fins desta perícia.
3 O verbo "encofar" deriva do utensílio de palha que confeccionam para armazenar a farinha, as
galinhas e demais produtos a serem trasnportados, que chamam de cofo.
4 Para uma descrição mais completa desses calendários agrícolas e extrativos, consultem-se os anexos
no Volume 2.
5 Um dos maiores desastres ambientais na implantação das agrovilas foi dispô-las junto às nascentes,
afetando diretamente o volume d’água de rios e igarapés. O exemplo mais flagrante diz respeito ao
rio do Pepital, em cujas nascentes foi erguida a agrovila do mesmo nome. Esse rio, que abastece a
sede do município, está com seu volume d’água drasticamente reduzido e em algumas partes do seu
curso já se fala de "rio seco". A agrovila de Só Assim teria sido instalada, conforme relato de J. na
discussão sobre a situação das agrovilas, sobre cinco nascentes, comprometendo os igarapés.
200
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206
Anexo
Terras das comunidades
remanescentes de quilombos:
territorialidade, uso dos recursos naturais,
sítios históricos e conflitos sociais
Mapa e memorial descritivo
Memorial descritivo
TÍTULO:
Mapa elaborado para fins de péricia antropológica. Território das
comunidades remanescentes de quilombo.
MUNICÍPIO: Alcântara/MA
ÁREA:
85.537,3 ha
PERÍMETRO: 350.207,19 m
MARCO INICIAL: PD-01 (Ponto digitalizado)
COORDENADAS: LAT. : 2º08'44,091"- S
LONG.: 44º27"46,206" - W
ESTE: 559.732,48m
NORTE: 9.762.836,44m
DATUM:
SAD-69
MC:
-45º WGr.
Limites e Confrontações
NORTE:
LESTE:
SUL:
OESTE:
Baia do Cumã e Oceano Atlântico;
Oceano Atlântico;
Baia de São Marcos;
Rio Itapetininga.
Descrição do perímetro
Com início no marco VD-01 (Vértice Digitalizado) digitalizado na Ponta
do Murici, deste segue na direção sudeste percorrendo o limite com terras de MARINHA,
com distância de 5.851,58m, chega-se à foz do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO;
deste segue percorrendo o limite no sentido montante, pela margem direita do IGARAPÉ
SEM DENOMINAÇÃO com distância de 3.287,46m até vértice P-1 de coordenadas
E=561.803,47m, N=9.757.483,44m, deste segue percorrendo o limite no sentido jusante,
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
pela margem direita do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO, com distância de 3.606,30m
chega-se à foz; desta segue no sentido sudeste, com terras de MARINHA com distância de
4.494,38m chegas-se à foz do IGARAPÉ DO BRITO; desta segue percorrendo o limite
no sentido montante, pela margem direita do IGARAPÉ DO BRITO, com distância de
6.761,87, chega-se ao vértice P-2 de coordenadas E= 562.967,60m, N=9.754.002,14m;
deste segue percorrendo o limite no sentido jusante, pela margem direita do IGARAPÉ
DO BRITO, com distância de 5.223,48, chega-se à foz; desta segue na direção sudeste,
percorrendo o limite com terras de MARINHA, com distância de 6.362,93, chega-se à foz
do IGARAPÉ CAIUANA, desta segue percorrendo o limite no sentido montante, pela
margem direita do IGARAPÉ CAIUANA, com distância de 3.996,47m chega-se ao vértice
P-3, de coordenadas E=565.498,37m, N=9.747.288,62m; deste segue percorrendo o limite
a margem direita sentido jusante do IGARAPÉ DO CAIUANA, com distância de 5.223,48m
chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras de
MARINHA, com distância de 6.874,42m chega-se à foz do IGARAPÉ PIRAPEMA; desta
segue percorrendo o limite pela margem direita sentido montante, do IGARAPÉ
PIRAPEMA, com distância de 1.311,91m chega-se ao vértice P-4; de coordenadas
E=569.665,11m, N=9.742.933,65m; deste segue o IGARAPÉ DO PIRAPEMA na margem
direita no sentido jusante, com distância de 1.752,02m chega-se à foz; desta segue na direção
sudeste, percorrendo o limite com terras da MARINHA, com distância de 3.217,88m
chega-se à foz do IGARAPÉ PEPITAL; desta segue percorrendo a margem direita sentido
montante do IGARAPÉ PEPITAL com distância de 3.703,71m chega-se ao vértice P-5,
de coordenadas E=566.449,98m, N=9.740.046,11m; deste segue o IGARAPÉ DO
PEPITAL na margem direita no sentido jusante, com distância de 3.624,49m chega-se à
foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo, percorrendo o limite com terras de BAIA
DE SÃO MARCOS e decreto de delimitação do perímetro municipal da cidade de
ALCÂNTARA, com distância de 31.757,08m chega-se à foz do RIO SALGADO; desta
segue percorrendo a margem direita sentido montante do RIO SALGADO na margem
direita no sentido jusante, com distância de 30.238,43m, utilizado o perímetro de seus
afluentes, chega-se ao vértice P-6; de coordenadas E=546.814,41m, N=9.730.730,26m;
deste segue o RIO SALGADO na margem direita no sentido jusante, com distância de
28.997,93m, utilizando o perímetro de seus afluentes, chega-se à foz; desta segue na direção
sudeste, percorrendo o limite com terras do RIO CAJUPE, com distância de 3.048,23m
chega-se à foz do IGARAPÉ PORTO DO MEIO, desta segue percorrendo a margem
direita sentido montante, com distância de 4.107,37m chega-se ao vértice P-7, de
coordenadas E=552.016,96m, N=9.730.368,19m; deste segue percorrendo o limite pela
margem do IGARAPÉ PORTO DO MEIO sentido jusante, com distância de 4.033,87m
chega-se à foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite de terras da marinha,
com distância de 2.110,76m chega-se à foz do IGARAPÉ CURUÇÁ; desta segue
percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 4.904,10m chega-se ao
vértice P-8; de coordenadas E=551.779,62m, N=9.727.327,70m; deste segue o IGARAPÉ
CURUÇÁ na margem direita no sentido jusante, com distância de 5.193,31m chega-se à
foz; desta segue na direção sudeste, percorrendo o limite com terras da marinha, com
distância de 9.530,83m chega-se à foz do IGARAPÉ TIQUARA; desta segue percorrendo
a margem direita sentido montante, com distância de 10.996,47m chega-se ao vértice P-9,
210
Alfredo Wagner Berno de Almeida
de coordenadas E=544.239,82m, N=9.724.453,60m; deste segue percorrendo o limite
com a RODOVIA ESTADUAL, com azimute de 233º15'16" e distância de 205,51m até o
vértice P-10; deste segue com azimute de 210º48'19" e distância de 95,77m até o vértice P11; deste segue percorrendo o limite com a RODOVIA ESTADUAL MA-106, com azimute
de 189º32'03" e distância de 468,52m até o vértice P-12; deste segue com azimute de
216º39'35" e distância de 408,52m até o vértice P-13; deste segue com azimute de 184º18'28"
e distância de 360,72m até o vértice P-14; deste segue com azimute de 195º35'40" e distância
de 264,10m até o vértice P-15; deste segue com azimute de 213º24'48" e distância de
1.083,24m até o vértice P-16, de coordenadas E=, N=; deste segue percorrendo o limite
com a margem direita do IGARAPÉ DO PRATITÁ no sentido jusante, com distância de
11.238,52m chega-se à foz; desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as
margem do RIO RAIMUNDO SUL, com distância de 2.169,95m chega-se à foz do
IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO, desta segue percorrendo a margem direita sentido
montante, com distância de 1.130,07m chega-se ao vértice P-17; de coordenadas
E=540.431,67m, N=9.729.854,39m; deste segue o IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO
na margem direita no sentido jusante, com distância de 1.123,31m chega-se à foz, desta
segue na direção noroeste, percorrendo o limite com as margens do RIO RAIMUNDO
SUL, com distância de 4.304,57m chega-se à foz do IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO,
desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com distância de 1.380,24m
chegas-se ao vértice P-18; de coordenadas E=538.649,12m, N=9.732.423,03m; deste segue
o IGARAPÉ SEM DENOMINAÇÃO na margem direita no sentido jusante, com distância
de 1.447,67m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as
margens do RIO RAIMUNDO SUL, com distância de 5.724,37m chega-se à foz do
IGARAPÉ DO CARVALHO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante,
com distância de 4.160,32m chega-se ao vértice P-19; de coordenadas E=542.848,20m,
N=9.738.416,50m; deste segue o IGARAPÉ DO CARVALHO na margem direita no
sentido jusante, com distância de 3.998,43m chega-se à foz, desta segue na direção noroeste,
percorrendo o limite com as margens do RIO ITAPETINGA com distância de 13.243,58m
chega-se à foz do IGARAPÉ PEROBA, desta segue percorrendo a margem direita sentido
montante, com distância de 1.728,32m chega-se ao vértice P-20; de coordenadas
E=542.163,50m, N=9.745.468,63m; deste segue o IGARAPÉ PEROBA na margem direita
no sentido jusante, com distância de 1.739,91m chega-se à foz, desta segue na direção
nordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DO CUMÃ com distância de
1.218,92m chega-se à foz do IGARAPÉ FONTINHA, desta segue percorrendo a margem
direita sentido montante, com distância de 2.346,11m chega-se ao vértice P-21; de
coordenadas E=543.537,60m, N=9.748.410,78m; deste segue o IGARAPÉ FONTINHA
na margem direita no sentido jusante, com distância de 2.262,97m chega-se à foz, desta
segue na direção nordeste, percorrendo o limite com as margens da BAIA DE CUMÃ
com distância de 11.114,32m chega-se à foz do RIO PERI-AÇU, desta segue percorrendo
a margem direita sentido montante, com distância de 26.578,34m, utilizado e as margens
seus afluentes, chega-se ao vértice P-22; de coordenadas E=552.058,49m, N=9.744.884,44m;
deste segue o IGARAPÉ PERI-AÇU na margem direita no sentido jusante, com distância
de 28.050,96m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste, percorrendo o limite com
as margens da BAIA DE CUMÃ com distância de 9.808,40m chega-se à foz do IGARAPÉ
211
Os quilombolas e a base de lançamento de foguetes de Alcântara - Volume 1
REPARTIMENTO, desta segue percorrendo a margem direita sentido montante, com
distância de 3.365,86m chega-se ao vértice P-23; de coordenadas E=553.659,39m,
N=9.759.371,99m; deste segue o IGARAPÉ REPARTIMENTO na margem direita no
sentido jusante, com distância de 3.405,52m chega-se à foz, desta segue na direção nordeste,
percorrendo o limite com as margens da BAIA DO CUMÃ com distância de 8.584,43m
chega-se ao vértice VD-01 (Vértice Digitalizado), início da descrição deste perímetro.
Data:
JUNHO/ 2002
212
Resp. Técnico:
Vamilson Freire Fontes
Téc. em Agrimensura
CREA 3203-TD

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