Marcha da Insensatez: Autismo, PhDismo e - Erudito FEA-USP

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Marcha da Insensatez: Autismo, PhDismo e - Erudito FEA-USP
Marcha da Insensatez: Autismo, PhDismo e Produtivismo
Paulo de Tarso P. L. Soares
Prof. Dr. FEA/USP
A nota do curso de pós-graduação em economia da FEA/USP foi rebaixada de seis para
cinco, pela Comissão de Avaliação dos Cursos de Pós-Graduação da CAPES (1). Os briosos
alunos que estão conduzindo o Informação Assimétrica pediram-me para comentar,
inclusive as repercussões internas desse rebaixamento. A mensagem que vou tentar passar
para seus leitores é a seguinte: 1) que fenômenos tais como autismo, PhDismo,
produtivismo e marcha da insensatez são as causas imediatas da redução da nota do curso
do IPE; 2) uma redução que, em última instância, não tem determinação acadêmica mas,
política e ideológica; 3) que estamos frente a uma ótima oportunidade para o
EAE/FEA/USP retomar seu caminho plural.
A American Economic Association, no final dos anos 1980, criou uma Comissão (2) para
investigar as causas da perda de prestígio, nos EUA, dos doutores (PhD) em economia.
Quem ler o Relatório Final dessa Comissão (3) vai saber que os programas de doutoramento
em economia estavam gerando “sábios idiotas”, doutores em economia capazes de
solucionar os mais sofisticados problemas matemáticos mas incapazes de solucionar
problemas elementares de economia. A destreza no instrumental tornou-se um fim em si
mesmo. A legitimação acadêmica não se dá mais pela excelência na solução dos problemas
econômicos mas, pela destreza no manejo do instrumental econométrico. O principal
mercado de trabalho para esse PhD em economia não estava nas empresas ou no setor
público mas, estava na proliferação das escolas de administração. A remuneração do PhD
em economia (4) vinha caindo ao longo do tempo.
Uma política que conduz a resultados contraproducentes pode ser qualificada de insensata
(5)
quando atende simultaneamente a três critérios: 1) ser percebida no seu próprio tempo e
não retrospectivamente; 2) ter disponível um curso viável de ação alternativa, e ; 3) ser
(1) Presidida, então, por uma professora do próprio EAE/FEA/USP que lá chegou com o decidido apoio da
comunidade acadêmica dos economistas, em especial da ANPEC.
(2) Essa comissão foi chefiada por Anne O. Krueger, Duke University e teve W. Lee Hansen, University of
Wisconsin, como secretário-executivo. Dela faziam parte uma pleiade de notáveis professores tais como:
Kenneth J. Arrow, Stanford University; Olivier Jean Blanchard, M.I.T.; Alan S. Blinder, Princeton
University; Claudia Goldin, Harvard University; Edward E. Leamer, UCLA; Robert Lucas, University of
Chicago; John Panzar, Northwestern University; Rudolph G. Penner, Urban Institute; T. Paul Schultz,
Yale University; Joseph E. Stiglitz, Stanford University and Lawrence H. Summers, Harvard University.
(3) COGEE – Report of the Commission on Graduate Education in Economics, Journal of Economic
Literature, vol. XXIX, Nashville: American Economic Association, setembro de 1991
(4) Interessante registrar que os resultados da pesquisa realizada por essa Comissão estão em estreita
concordância com a teoria econômica convencional: a redução na remuneração ocorre em simultâneo com
a redução da utilidade desse PhD para as empresas e para o governo; no jargão economês, a queda da
remuneração ocorre em função da redução da produtividade física marginal.
(5) Ver TUCHMAN, Barbara W. – Marcha da Insensatez: de Tróia ao Vietnã, 5ª ed., Rio de Janeiro: José
Olimpio Editora, 1999.
uma política de grupo e não de um governante isolado. O mostrado no parágrafo anterior
configura a marcha da insensatez? Ele também se parece com uma polarização
privilegiada do mundo dos pensamentos, das representações e dos sentimentos pessoais,
com perda da relação com os dados e as exigências do mundo circundante, configuradora
de um autismo? É correto dizer que a marcha da insensatez descreve o resultado do
comportamento autista? As repostas parecem ser, todas, positivas.
A referida Comissão constatou, também, uma redução do interesse dos estudantes
graduados nos melhores centros universitários em fazer o doutorado em economia. O PhD
em economia não é mais o norte-americano de cor branca, de origem anglo-saxônica e
religião protestante, o chamado WASP, mas o estudante de origem latina e asiática que está
tendo a chance de se aproveitar da sobra de vagas nos melhores departamentos de economia
das melhores universidades norte-americanas. O PhD em economia tornou-se a porta de
entrada para empregos de imigrantes, com menor remuneração, prestígio etc. Enganam-se,
portanto, os brasileiros, ao imaginarem que o ingresso num PhD em economia, nos EUA, é
uma demonstração de capacitação de primeiro mundo.
Concluir o PhD em economia não é um modo eficaz de legitimação social no primeiro
mundo mas, em função do secular colonialismo cultural, tem eficácia indiscutível aqui
nestas plagas. O ponto de chegada da chamada internacionalização da universidade
brasileira, ironicamente, não é o primeiro mundo mas, a América Latina.
A ideologia (6) do PhDismo chegou aqui com toda força, estimulada pelo Banco Mundial e
endossada, saudada, aclamada, plenamente pela CAPES. Um dos pilares dessa ideologia é
a crença de que o PhD é mais produtivo. Como, na luta política, os interesses privados
precisam aparecer como interesses sociais, o produtivismo faz parte de uma alegada
prestação de contas, à sociedade, do dinheiro gasto com a universidade.
A freqüência com que se fala em vinculação do sistema de avaliação de desempenho com o
sistema de recompensas só indica o enorme desconhecimento da literatura da área de
gestão. O recurso aos modelos de agente-principal e o estabelecimento de mediadas de
produtividade acadêmica não indicam expertise (7). Uma característica importante dos que
trabalham com o conhecimento científico é derivar prazer do seu ofício. O trabalho em
equipe, a integração/interação é fundamental para os que trabalham com o conhecimento
científico. A aplicação da lógica do modelo agente-principal e de recompensa individual
aos que vivem da docência e da pesquisa, por conseguinte, só demonstra a vulgarização de
um tema tão complexo e controverso. Seria melhor para o desenvolvimento científico,
neste país, que a CAPES tratasse do que sabe e não do que pensa que sabe mas, na
realidade, desconhece.
A ênfase em publicações, como a indicadora por excelência da qualidade acadêmica, é,
talvez, o melhor exemplo dessa ideologia. Ainda que o discurso seja o de reconhecer os
(6) O termo ideologia é utilizado, aqui, como um conjunto de crenças que justificam um dado estado de
dominação.
(7) Desculpem-me a ironia mas, num país dominado pelo colonialismo cultural, expressões em inglês têm
mais credibilidade
problemas, na prática, a quantidade é tratada como sinônimo de qualidade: artigos que
podem ser rapidamente produzidos, desde que haja disponibilidade de dados, medindo
coisas banais, constatando coisas óbvias, mas que utilizem técnicas sofisticadas (8), valem
mais do que um livro tratando de temas complexos e sofisticados, exigente de anos de
reflexão. As justificativas (sic) para tal vão desde as pomposas, mas frágeis de conteúdo
(tais como, o primeiro passou pelo crivo de pareceristas e o segundo ficou a critério da
editora/mercado), até as tolas (tais como, é melhor ter um critério ruim do que nenhum
critério). É “interessante” que, aqueles que têm como ofício elogiar o mercado, quando se
trata da própria avaliação, recorrem aos problemas de informação para justificarem a
avaliação pelos pares. São os próprios economistas que definem quais revistas e qual tipo
de artigo são relevantes. Os PhDs, que já assumiram o comando das revistas acadêmicas,
então, alegam problemas de espaço e limitam o tamanho dos textos que serão avaliados.
Trabalhos de maior fôlego, exigentes de mais espaço, terão de ser objeto de livros e, por
isso, terão menor avaliação na CAPES. Fecha-se, assim, o cerco da mediocridade. Esse
tipo de trabalho, antigamente, era pejorativamente chamado de “artiguinho”. Hoje, ele é o
critério de qualidade por excelência da CAPES.
A CAPES, alegando combater a endogenia, penaliza os esforços dos grandes centros para
manter programas de doutoramento. Ter feito o doutorado em um centro diferente do que
se está lecionando e pesquisando, virou sinônimo de qualidade acadêmica. Se não for por
pura ignorância do significado de pluralidade, de circulação de idéias, de universalidade, o
recurso a esse critério indica a intenção de transformar os programas de pós-graduação em
meros preparadores de alunos para o doutorado nos EUA. Isso é ou não é um requinte de
submissão ideológica?
Foi com base nesses tipos de critérios, ou melhor, de ideologia, que a CAPES reduziu a
nota do curso do IPE. Os critérios da CAPES não servem para fomentar o desenvolvimento
científico mas servem muito bem para influenciar a destinação de verbas para os centros
propagadores da ideologia aqui abordada (marcha da insensatez, autismo, PhDismo,
produtivismo).
A reação do EAE foi equivocada. Ela pode ser sumariada como uma tentativa de apontar
problemas na “tecnicalidade” do cálculo da nota. O EAE foi duro nas colocações mas,
infelizmente, aceitou o plano da discussão, legitimando os critérios que deveriam ter sido
questionados. A resposta da CAPES foi arrasadora, chegou a dar um “puxão de orelhas”
no EAE, alegando indelicadeza nos termos utilizados no pedido de reconsideração da nota.
A redução da nota do curso de pós-graduação em economia, no entanto, pode acabar sendo
útil para o EAE/FEA/USP. Quem sabe o feitiço não acaba se voltando contra o feiticeiro”?
A redução da nota atingiu em cheio a um curso que vem sendo, há algum tempo,
comandado pelos PhDs (eles são os donos absolutos das matérias ali lecionadas). Os PhDs
que atuam no EAE/FEA/USP estão numa situação difícil. Se continuarem defendendo os
(8) Não se trata de negar espaço, na Academia, para esse tipo de trabalho. Trata-se sim de recusar que ele
constitua o critério de excelência acadêmico. Trata-se, principalmente, de recusar que qualquer
corrente/escola de pensamento possa ser elevada à categoria de critério de excelência acadêmica.
critérios da CAPES, ficarão sem defesa para a crítica de que o curso é mesmo de segunda
linha, porque comandado por PhDs defendidos em centros que não estão entre os “dez
mais” (top ten) nos EUA (9). Se fingirem que o problema nada tem a haver com eles, a
omissão será vista como a aceitação de uma condição subalterna, a de condutores de um
curso de pós-graduação de segunda linha. Uma vez que a CAPES disse não haver erro
técnico, só lhes resta criticar os critérios que um dia imaginaram ser-lhes úteis,
denunciando-os como equivocados e/ou mera ideologia?
Quem sabe os que dominam o pós-graduação em economia deixem de se sentir “PhDs na
FEA/USP” e passem a se sentir professores da FEA/USP? Quem sabe alguns colegas
percebem que não há muito futuro em ser satélite de PhD? Quem sabe outros colegas saem
da omissão em que vêm se mantendo? Quem sabe o EAE/FEA/USP volte a se orgulhar de
ser um centro plural, abrigando todas as correntes/escolas, cuja força está na diversidade?
Quem sabe ele volte a ser um centro que abriga e estimula o pensamento crítico para
intervir no debate sobre os problemas econômicos e sociais brasileiros? Quem sabe o
EAE/FEA/USP proponha a constituição e lidere uma frente contra a ideologia (autismo,
PhDismo, produtivismo) que, com a articulação da CAPES, estão tentando nos enredar?
Quem sabe o EAE/FEA/USP recuse seguir na marcha da insensatez?
FEA/USP, março de 2002
Publicado em Informação Assimétrica, no. 2, São Paulo: CAVC/FEA/USP, edição de abril
de 2002
(9) Até quando vamos continuar fingindo que não sabemos haver uma hierarquia entre os PhDs? Por quê
continuar fingindo que acreditamos que os PhDs das top ten respeitam os demais? Por quê fingir que não
vemos que estes guardam uma respeitosa admiração pelos PhDs das top ten?

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