doctorado en derecho y ciencia política elisangela melo reghelin
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DOCTORADO EN DERECHO Y CIENCIA POLÍTICA ELISANGELA MELO REGHELIN “DELINQUÊNCIA SEXUAL GRAVE: O TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL CONTEMPORÂNEO PARA INDIVÍDUOS PERIGOSOS” MADRID 2015 1 ELISANGELA MELO REGHELIN “DELINQUÊNCIA SEXUAL GRAVE: O TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL CONTEMPORÂNEO PARA INDIVÍDUOS PERIGOSOS” DIRECTOR DE TESIS: Prof. Dr. Dr. h.c. mult. MANUEL CANCIO MELIÁ Estudio realizado bajo la dirección del Prof. Dr. Dr. h.c. mult. D. Manuel Cancio Meliá que presenta la licenciada en Derecho y Mestre en Ciencias Criminales (PUCRS), Fellow at Universidad de California, Berkeley (UCB) y Profesora de Derecho Penal (UNISINOS), Dª Elisangela Melo Reghelin para la obtención del grado de Doctora en Derecho por la Univesidad Autónoma de Madrid. 2 Dedico este trabalho ao meu avô Pedro Chaves de Mello (in memoriam), cuja sabedoria, humildade e simplicidade contagiaram-me, desde sempre. 3 AGRADECIMENTOS A meus pais, Elisabete e João Luiz, exemplos de bondade, amor e esperança, e à minha irmã e parceira de todas as horas, Michele, pela garra, coragem e fé na vida. A meu amor, Renato Portanova Junior, pelo companheirismo e paciência em todos os momentos, especialmente os de cansaço e angústia, e pelas muitas tapiocas e taças de vinho nas madrugadas de estudo. A meu orientador, Professor Catedrático Doutor Manuel Cancio Meliá, que tão bem me acolheu na prestigiada Universidad Autónoma de Madrid, por sua amizade, imensa sabedoria e humildade como ser humano, a par de sua brilhante cultura jurídica, sendo considerado um dos mais prestigiados penalistas contemporâneos. Ao amigo e Professor Doutor André Luís Callegari, Professor da UNISINOS – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a quem serei eternamente grata pela confiança e por me ter possibilitado o contato com o Doutor Manuel Cancio Meliá. Ao amigo e Coordenador do curso de Direito da UNISINOS, Professor Doutor Miguel Tedesco Wedy, pelo constante apoio, bem como a meus colegas professores e a meus alunos, pela alegria de cada sala de aula. Ao amigo e Diretor, Delegado de Polícia Mario Wagner, da Polícia Civil gaúcha, que sempre me incentivou a concretizar este projeto, dentre tantos outros, por sua sabedoria, sensibilidade e por sua inestimável amizade. Por fim, mas antes de tudo, agradeço a Deus, por esta maravilhosa e indescritível experiência na aventura do conhecimento. 4 “De nuestros miedos nacen nuestros corajes y en nuestras dudas viven nuestras certezas. Los sueños anuncian otra realidad posible y los delirios otra razón. En los extravios nos esperan hallazgos, porque es preciso perderse para volver a encontrarse." Eduardo Galeano 5 RESUMO Versa a presente pesquisa sobre o estudo do tratamento jurídico-penal contemporâneo e suas tendências em relação, não apenas ao indivíduo inimputável, mas principalmente, diante daquele considerado imputável e perigoso, autor de delito sexual grave. Contextualizase o tema político-criminalmente analisando-se o controle social formal, bem como o chamado Direito Penal meramente simbólico, levando-se em conta fatores históricos e modernos como o Direito Penal do Autor e o Direito Penal do Inimigo, além de fenômenos midiáticos, os quais acabam interferindo sobre a formação da opinião pública, fomentando a sensação de insegurança e influindo na estabilidade normativa. Também o presente estudo classifica o delito sexual de natureza grave, embora a partir do ordenamento espanhol, considerando critérios definidores como violência e vulnerabilidade da vítima. O critério serve, igualmente, como forma de selecionar autores de delitos que necessitem ser submetidos a instrumentos mais gravosos, desmistificando-se a concepção rasa de que todos os delinquentes sexuais compõem um grupo homogêneo e de mesma perigosidade criminal. Ao revés, verifica-se que a partir do correto diagnóstico existe probabilidade razoável de êxito quanto aos tratamentos jurídico e terapêutico. O diagnóstico de perigosidade, cada vez mais importante para os ordenamentos internacionais, assim como o prognóstico de reincidência, são pesquisados através de inúmeros métodos, sendo os mecanismos atuariais os mais destacados no campo científico. Como resultado destas apurações, verifica-se que o princípio da culpabilidade, apto a limitar o jus puniendi estatal na dosimetria da pena, torna-se insuficiente diante da perigosidade do indivíduo imputável, restando ao princípio da proporcionalidade assumir o seu papel. Diante disto, revigoram-se as discussões sobre monismo e dualismo, principalmente sobre a crise deste, proporcionando-se debates altamente qualificados no sentido de um dualismo flexível e vicarial, de modo a evitarem-se soluções fraudulentas que mesclem, desrespeitosamente, os institutos de medidas e penas, de Direito Civil e de Direito Penal, em nome de um eterno combate à delinquência sexual, porém descomprometido com resultados efetivos e respeitosos com o Direito Penal próprio de um Estado Democrático de Direito. Assim, em certos casos, existe uma intercambialidade funcional legítima por parte de institutos que podem ser empregados como engrenagens para uma liberdade, tanto a partir da pena, quanto da medida de segurança, como ocorre com o tratamento hormonal antiandrógeno, com o monitoramento eletrônico, com os registros públicos e com as notificações à comunidade, desde que comprometidos com a legalidade e com os princípios constitucionais e democráticos vigentes. A própria liberdade vigiada póspenitenciária espanhola é, por excelência, exemplo de uma intercambialidade funcional, posto que atua como complemento da pena, voltada ao imputável, assumindo seu caráter como medida de segurança, o que não a impede de ser aperfeiçoada. Já no tocante aos três instrumentos privativos de liberdade extraídos do Direito Comparado, a saber, a pena relativamente indeterminada portuguesa, a internação compulsória norte-americana e a Custódia de Segurança alemã, não se duvida de uma intercambialidade entendida como autêntica fraude de etiquetas, eis que não assumem, com autenticidade, rótulo que seja compatível com suas verdadeiras funções, execução e conteúdos, necessitando total reformulação. Neste sentido, é possível afirmar desde já, como solução a ser descortinada ao longo do trabalho, a aplicação de um sistema dualista flexível como condição de possibilidade de resposta ao problema apontado. Palavras-chaves: Delinquência sexual. Direito Penal de Autor. Direito Penal do Inimigo. Perigosidade. Reincidência. Inocuização. Reintegração social. Culpabilidade. Proporcionalidade. Imputabilidade. Medida de segurança. Pena relativamente indeterminada. 6 Internação compulsória. Custódia de Segurança. Castração. Tratamento hormonal antiandrógeno. Registros públicos. Notificações à comunidade. Monitoramento eletrônico. Liberdade vigiada. Dualismo flexível. 7 RESUMEN La presente investigación tiene como objeto el estudio del tratamiento jurídico-penal contemporáneo y de las tendencias existentes en esta área en relación no sólo a los autores inimputables en general, sino sobre todo a los imputables peligrosos, que son autores de delitos sexuales graves. Contextualiza la problemática político-criminal mediante el análisis del control social formal (jurídico-penal), así como del llamado Derecho Penal puramente simbólico, considerando los factores históricos y contemporáneos al respecto en el tratamiento penal, como son el llamado Derecho Penal de Autor y el Derecho Penal del Enemigo, además de fenómenos relacionados con los medios de comunicación, los cuales, en última instancia, interfieren en la formación de la opinión pública, promoviendo una sensación de inseguridad e influyendo en la estabilidad normativa. Más allá de esto, la presente investigación también propone una definición de “delito sexual grave”, tomando como referencia la legislación española, teniendo en cuenta criterios como la violencia y la vulnerabilidad de la víctima. Esta definición ha de servir como una forma de selección de autores de delitos que deben ser sometidos a los instrumentos penales y de aseguramiento más intensos, desmitificando la noción superficial de que todos los delincuentes sexuales integran un grupo homogéneo que presentaría un mismo grado de peligrosidad criminal. Muy al contrario: existen probabilidades razonables de éxito en cuanto a los tratamientos legales y terapéuticos, y son alcanzables partiendo desde un diagnóstico de peligrosidad correcto. El diagnóstico de peligrosidad y el pronóstico de reincidencia son cada vez más importantes para diversos ordenamientos jurídicos, siendo investigados a través de numerosos métodos, especialmente, mecanismos actuariales, que son los más destacados en el campo científico de las ciencias sociales empíricas. Como resultado, el principio de culpabilidad, capaz de limitar el jus puniendi estatal, se vuelve insuficiente ante la peligrosidad, haciendo que el principio de proporcionalidad asuma el papel principal. Teniendo en cuenta estos factores, se han revisado las discusiones sobre el monismo y el dualismo de las consecuencias jurídicas en materia penal, especialmente en el marco de esta crisis, que ofrece discusiones altamente calificadas hacia un dualismo flexible y vicarial, en orden a evitar soluciones fraudulentas que enmascaran medidas y penas, Derecho Civil y Derecho Penal, en nombre de una lucha eterna contra la delincuencia sexual llevada a cabo sin sujeción ni respeto a los elementos esenciales de un Estado democrático de Derecho. En éste ámbito hemos de llegar a la conclusión de que, en ciertos casos, hay una intercambiabilidad funcional legítima entre instituciones jurídicas que sirven como engranaje para la libertad, sea por vía de pena o de medida de seguridad, como, por ejemplo, el tratamiento hormonal antiandrógeno, la vigilancia electrónica, los registros públicos y las notificaciones a la comunidad, a condición de que la legalidad y los principios constitucionales y democráticos sean respetados. La libertad vigilada pospenitenciaria española es el ejemplo más importante de una intercambiabilidad funcional, ya que actúa como complemento de la pena, aplicable a los imputables, asumiendo su rol de medida de seguridad, lo que no impide que sea perfeccionada. Ya en relación a los tres instrumentos privativos de libertad extraídos del Derecho comparado, a saber, la pena relativamente indeterminada portuguesa, el internamiento coactivo norteamericano y la custodia de seguridad alemana, sin duda, son casos de auténticos fraudes de etiquetas, pues no presentan, en realidad, denominaciones o definiciones compatibles con sus funciones, sistema de ejecución y contenidos reales, requiriendo por esta razón una revisión general.Así es posible decir que una condicion de posibilidad de solución al problema planteado sea la aplicación de um sistema dualista flexible, como será analizado. 8 Palabras clave: Delincuencia sexual. Derecho Penal de autor. Derecho Penal del enemigo. Peligrosidad, Reincidencia. Inocuización. Reinserción social. Culpabilidad. Proporcionalidad. Imputabilidad. Medida de seguridad. Pena relativamente indeterminada. Internamiento coactivo. Custodia de seguridad. Castración. Tratamiento hormonal antiandrógeno. Registros públicos. Notificaciones de la comunidad. Vigilancia electrónica. Libertad vigilada. Dualismo flexible. 9 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACCSP Archivos de Criminología, Criminalística y Seguridad Privada ADPCP Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales AFDUDC Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidade da Coruña AGP Archives of General Psyquiatry AJB American Journal of Bioethics AJCL American Journal of Criminal Law AMC Análisis y Modificación de Conducta ANZJP Australian and New Zealand Journal of Psychiatry AP The American Prospect AP Actualidad Penal APJ Anuario de Psicología Jurídica ASB Archives of Sexual Behavior ASLJ Arizona State Law Journal AVB Aggression and Violent Behavior BFD Boletim da Faculdade de Direito Stvdia Ivridica, da Faculdade de Direito de Coimbra BI Bioethical Inquiry BOCG Boletín Oficial de las Cortes Generales Boston U Law Rev Boston University Law Review BS GLIPGö Boletín Semestral do GLIPGö - Grupo Latinoamericano de Investigación Penal BSL Behavioral Sciences and the Law Bull Am Acad Psychiary Bulletin of the American Academy of Psychiatry and Law C&D Crime & Delinquency C & PP Criminology & Public Policy CASWJ Child and Adolescent Social Work Journal CCP Comentarios al Código Penal Ccrim Critical Criminology CDJ Cuadernos de Derecho Judicial CJB Criminal Justice and Behavior 10 CJPR Criminal Justice Police Review CJR Criminal Justice Review CJS Criminal Justice Studies CLAN Criminal Lawyers Association Newsletter CLP Criminal Law and Philosophy CP Código Penal CPC Cuadernos de Política Criminal CPJML Cuadernos Penales José María Lidón CPP Criminology and Public Policy CT Corrections Today DB Deviant Behavior DI Diario Información DOXA DOXA: Cuadernos de Filosofía del Derecho EDJ Estudios de Derecho Judicial EDP Estudios de Derecho Penal FSR Federal Sentencing Reporter GEO JIL Georgetown Journal of International Law HC Houston Chronicle HJCJ The Howard Journal of Criminal Justice IHT International Herald Tribune IJLP International Journal of Law and Psychiatry IJOTCCrim International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology ILR Iowa Law Review InDret InDret: Revista para el Análisis del Derecho Int. J. Offender Ther. International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology IRLCT International Review of Law Computers& Technology J Aggress Maltreat Journal of Aggression, Maltreatment & Trauma Trauma J Am Acad Psychiatry Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law Law J Bioeth Inq Journal of Bioethical Inquiry 11 J Child Sex Abus Journal of Child Sexual Abuse J Interpers Violence Journal of Interpersonal Violence J Korean Med Sci Journal of Korean Medical Science J Law Soc Journal of Law and Society J. crim. law criminol. The Journal of Criminal Law & Criminology JAMT Journal of Aggression, Maltreatment & Trauma JAP Journal of Adult Protection JCCJ Journal of Contemporary Criminal Justice JCSA Journal of Child Sexual Abuse JD Revista Jueces para la Democracia JDLC Journal of Delinquency Law and Criminology JEC Journal of Experimental Criminology JFPP Journal of Forensic Psychiatry & Psychology JFPP Journal of Forensic Psychiatry & Psychology JFV Journal of Family Violence JH & SP Journal of Health & Social Policy JHBL Journal of Health and Biomedical Law JIL Journal of International Law JIV Journal of Interpersonal Violence JLM The Journal of Legal Medicine JLS Journal of Law and Society JMH Journal of Medical Humanit JOR Journal of Offender Rehabilitation JPEL Journal Planning & Environmental Law JPL Journal of Psychiatry & Law JRCD Journal of Research in Crime and Delinquency La. L. Review Louisiana Law Review LHB Law and Human Behavior LLP La Ley Penal McClatchy – TBN McClatchy - Tribune Business News MJIL Melbourne Journal of International Law MLR Minnesota Law Review MP Memento Práctico (ed. Francis Lefebvre) 12 MR Monthly Review MschrKrim Monatsschrift für Kriminologie und Strafrechtsreform NML News Media and the Law OLR Oregon Law Review P&S Psicologia & Sociedade PB Psychological Bulletin PCLF Psicopatología Clínica Legal y Forense PCLF Psicopatología Clínica Legal y Forense Pcrim Política Criminal PHM Psychology, Health & Medicine PJ Prison Journal PLLTRPS Public Law and Legal Theory Research Paper Series PP Pensamiento Psicológico PPPL Psychology, Public Policy, and Law PPR Police Practice and Research PPsc Papeles del Psicólogo Practice Practice: Social Work in Action PS Psychiatric Services PS & J Public Safety & Justice QG Questione Giustizia RAD Revista Aranzadi Doctrinal RBCC Revista Brasileira de Ciências Criminais RC Reprodução e Climatério RDP Revista de Derecho Penal RDPC Revista de Derecho Penal y Criminología RdPP Revista de Derecho y Proceso Penal Aranzadi RECPC Revista Electrónica de Ciencias Penales y Criminología REIC Revista Española de Investigación Criminológica Rev. DP Revista de Direito Penal (Rio de Janeiro) RGDP Revista General de Derecho Penal RJ Online Restorative Justice Online RJCV Revista Jurídica de la Comunidad Valenciana RP Revista Penal 13 RPC Revista de Política Criminal RPCC Revista Portuguesa de Ciências Criminais RPJ Revista del Poder Judicial SAC Sexual Addiction and Compulsivity Salon Salon SLPR Stanford Law & Police Review SMU Law Rev Southern Methodist University Law Review SNOB Special Needs Offenders Bulletin SOT Sexual Offender Treatment SR Sex Roles Sspectrum Sociological Spectrum SSR Seguridad en la Sociedad de Riesgo: un debate abierto (revista) TC Tratado de Criminología Tcrim Theoretical Criminology TDP Tratado de Derecho Penal VAW Violence Against Women VLR Virginia Law Review WLR Widener Law Review 14 SUMÁRIO §1 INTRODUCCIÓN ............................................................................................................. 25 §2 O CONTEXTO POLÍTICO-CRIMINAL CONTEMPORÂNEO E A DELINQUÊNCIA SEXUAL GRAVE: UMA APROXIMAÇÃO AO TEMA .................. 34 I Apresentação .......................................................................................................... 34 II A contextualização político-criminal do problema face ao Direito Penal como mecanismo de controle social formal ....................................................................... 36 A. Da compreensão histórica aos dias atuais ........................................................... 36 B. O “Direito Penal puramente simbólico”: decorrência do Direito Penal de Autor, embrionário do Direito Penal do Inimigo ................................................................... 37 1. O processo midiático simbólico ...................................................................................... 38 2. O tratamento político-parlamentar da matéria................................................................ 41 a. Em geral ...................................................................................................................... 41 b. Especificamente em matéria de delinquência sexual na Espanha .......................... 47 3. Ressurgimento do Direito Penal de Autor? .................................................................... 49 a. Breve histórico e conceituação .................................................................................. 49 b. A crítica à concepção de Direito Penal de Autor ..................................................... 52 4. A tendência ao Direito Penal do Inimigo como consequência contemporânea ........... 55 C. O controle social (formal) sobre o delinquente sexual e o discurso penal de emergência ..................................................................................................................... 63 1. O controle social como condição básica irrenunciável da ordem social ...................... 63 2. A pena: proteção ao bem jurídico ou fonte de estabilidade normativa? ....................... 67 III O conceito de crime sexual grave para fins desta investigação ......................... 74 A. Antecedentes legais .................................................................................................. 74 B. Critérios adotados .................................................................................................... 78 C. Análise dos delitos sexuais em espécie .................................................................... 84 1. Agressões sexuais, artigos 178, 179 e 180, todos do CP ............................................... 84 2. Abusos sexuais, artigos 181 e 182, ambos do CP .......................................................... 89 3. Abuso sexual a menores de dezesseis anos, artigo 183, do CP..................................... 94 15 4. Assédio sexual, artigo 184 do CP ................................................................................... 98 5. Exibicionismo e provocação sexual: artigos 185 e 186, ambos do CP ...................... 101 6. Da prostituição, exploração sexual e corrupção de menores - artigos 187 a 189 bis, todos do CP ......................................................................................................................... 102 §3 O TRATAMENTO PENAL DA PERIGOSIDADE PARA AUTORES DE DELITOS SEXUAIS GRAVES ............................................................................................................. 121 I Apresentação ........................................................................................................ 121 II “Bad or Mad”? O princípio da culpabilidade e o “livre arbítrio” diante de suas próprias insuficiências ............................................................................................ 125 A. A importância da análise do livre arbítrio através de um exemplo concreto: ilustração do tema ....................................................................................................... 125 B. A crise do conceito de culpabilidade diante da complexa noção de livre arbítrio e de sua indemonstrabilidade........................................................................................ 126 1. A indemonstrabilidade do chamado “livre arbítrio” e suas significações .................. 126 2. Imputabilidade e possibilidade de motivação como limitações ao “livre arbítrio” ... 127 3 A autodeterminação de fidelidade ao ordenamento jurídico como equivalente funcional à ideia do livre arbítrio em Jakobs..................................................................................... 134 C. Posicionamento adotado neste trabalho diante do princípio da culpabilidade: o conceito de liberdade no sentido jurídico-penal ....................................................... 136 D. A culpabilidade como princípio reitor do Direito Penal e o resguardo da dignidade humana no caso da delinquência sexual .................................................. 141 III A perigosidade criminal e o princípio da proporcionalidade: prognóstico, crises conceituais e possibilidades .................................................................................... 145 A. Transição necessária: do princípio da culpabilidade ao princípio da proporcionalidade tendo a perigosidade como eixo central do debate .................... 145 B. Perigosidade criminal e loucura: de noções criminológicas históricas à inocuização do sujeito face à ausência de “segurança cognitiva” ............................ 147 C. Diagnósticos de perigosidade e Prognósticos de Reincidência: dos Mecanismos de Gestão Atuarial de Riscos (Risk Assessment) às possibilidades reais de tratamento do autor de delito sexual grave .................................................................................. 151 1. Avaliação clínica ou mecanismos atuariais (risk assessment)? .................................. 151 2. Argumentos contrários ao atuarialismo ........................................................................ 156 3. Argumentos favoráveis aos mecanismos de Risk Assessment .................................... 158 16 4. A reincidência em delinquência sexual, metodologias de pesquisa e alguns mitos .. 162 a. Estatísticas a respeito de reincidência em delinquência sexual ............................. 162 b. Vítimas e pesquisas de vitimização: dados relevantes........................................... 164 c. Delinquentes sexuais e estererótipos ....................................................................... 165 d. As limitações das pesquisas em matéria de reincidência nos delitos sexuais ...... 169 5 Três ilustrações envolvendo o “estado-da-arte” no emprego de avaliações atuariais e sua importância prática ...................................................................................................... 175 a. Psychopathy Checklist Revised (PCL-R) aplicado na Oak Ridge Maximum Security Psychiatric Facility ....................................................................................... 175 b. Estudos realizados pela Universidade de Munich, Alemanha, sobre o modelo atuarial na administração da Justiça ............................................................................ 177 c. Prognoses de reincidência em agressores sexuais na Cataluña ............................. 179 d Excurso: Considerações relevantes acerca do “estado-da-arte” sobre o tratamento médico e psicológico de delinquentes sexuais graves, especialmente na Espanha, e sobre sua eficácia.......................................................................................................... 183 6 Limites ao princípio da culpabilidade no tratamento jurídico-penal do indivíduo imputável perigoso e a função do princípio da proprocionalidade ................................. 192 a. Da culpabilidade à proporcionalidade: a redefinição de espaços principiológicos192 b. Crítica ao princípio da proporcionalidade em sua concepção legal vigente ........ 198 § 4 A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO RESPOSTA À PERIGOSIDADE EM DELITOS SEXUAIS GRAVES: DO MODELO PADRÃO À INTERCAMBIALIDADE FUNCIONAL ........................................................................................................................ 203 I Apresentação ........................................................................................................ 203 II Dos sistemas monista e dualista clássicos às medidas de segurança em seu formato tradicional: conceito, natureza jurídica, pressupostos e execução ......... 205 A. Considerações iniciais históricas: Sistemas Monista e Dualista .......................... 205 1. Sistema Monista ............................................................................................................. 205 2. Sistema Dualista e Vicariedade na Execução............................................................... 210 B. A Medida de Segurança tradicional: conceito, natureza jurídica, pressupostos e execução ....................................................................................................................... 213 1. Conceito e natureza jurídica da medida de segurança ................................................. 213 2. Pressupostos de aplicação: uma leitura a partir dos princípios aplicáveis .................. 216 a. Atendimento ao disposto pelo princípio da legalidade e interpretação do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa voltado ao caso em estudo ................ 216 b. Avaliação quanto à (in)imputabilidade no caso concreto e não como categorização prévia de indivíduos ..................................................................................................... 218 17 c. O caráter jurisdicional das medidas, como imposição constitucional .................. 218 d. A pós-delitividade: requisito legitimador e tríplice garantia ................................. 219 e. Prognóstico (futuro) de perigosidade como exigência legal ................................. 220 3 A execução da medida de segurança tradicional (aplicável apenas a inimputáveis e a semi-imputáveis) e sua incidência em relação a autores de delitos sexuais graves ....... 221 a. Considerações gerais acerca da medida para o inimputável e para o semiimputável ...................................................................................................................... 221 b. A execução da medida privativa de liberdade e suas espécies.............................. 224 c. A execução da medida não privativa de liberdade e suas espécies ....................... 230 d. Espaço de jogo para o julgador durante a execução da medida e suas causas de extinção ......................................................................................................................... 236 e. Excurso: A controversa questão da duração máxima das medidas de segurança 241 III. Novidades em medidas de segurança: do modelo tradicional à intercambialidade funcional ................................................................................... 248 A. A insuficiência das medidas de segurança tradicionais diante da perigosidade do imputável ..................................................................................................................... 248 B. A intercambialidade funcional como tendência internacional de resposta ao problema e seus dilemas ............................................................................................. 253 1. Delineamentos gerais: a intercambialidade funcional e sua (i)legitimidade .............. 253 2. A intercambialidade funcional e as medidas complementares à pena ........................ 255 3. Compatibilização de uma proposta de intercambialidade funcional entre penas e medidas à luz do Estado Democrático de Direito: a via dualista flexível ...................... 262 IV Conjunto propositivo de critérios verificadores de legitimidade aplicáveis aos institutos privativos e não privativos de liberdade ................................................ 266 §5 INSTITUTOS DE DIREITO COMPARADO PRIVATIVOS DE LIBERDADE PARADIGMÁTICOS DE INTERCAMBIALIDADE FUNCIONAL DESTINADOS AO AUTOR DE DELITO SEXUAL GRAVE .......................................................................... 274 I. Apresentação ....................................................................................................... 274 II. A Pena Relativamente Indeterminada portuguesa (PRI) ................................. 275 A. Considerações gerais e alguns aspectos históricos e constitucionais acerca da PRI .. 275 1. O enquadramento do tema à luz do Direito Constitucional português ....................... 275 2 Categorias e pressupostos da PRI .................................................................................. 279 a. O delinquente por tendência grave .......................................................................... 279 18 b. O delinquente por tendência menos grave.............................................................. 279 B. A colocação em liberdade do sujeito e os problemas decorrentes quanto à controversa natureza jurídica do instituto ................................................................ 280 C. PRI e intercambialidade funcional: pena pela culpa agravada ou medida de segurança disfarçada? ................................................................................................ 281 D. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 284 III O modelo de Civil Commitment nos Estados Unidos ........................................ 287 A. Aspectos gerais e análise do instituto: de sua origem à contemporaneidade ..... 287 B. Modelos existentes de Civil Commitment nos EE.UU. e suas características peculiares ..................................................................................................................... 291 1. Dos três exemplos como ponto de partida, às quatro legislações modelares ............. 291 2. O estatuto histórico de Illinois – 1938 .......................................................................... 292 3. O estatuto histórico de Minnesota: do PPA - Psychopathic Personality Act de 1939 ao modelo atual........................................................................................................................ 294 4. O estatuto de segunda geração de Civil Commitment: Sexually Violent Predators Act, Estado de Washington, 1990 ............................................................................................. 298 5. O modelo contemporâneo do estado da Florida........................................................... 303 C. Casos emblemáticos que envolveram o instituto do Civil Commitment .............. 306 1. O caso Kansas x Crane, em 2002 .................................................................................. 306 2. O caso Comstock e a recente legislação federal Adam Walsh Child Protection and Safety Act (AWA), 2006 .................................................................................................... 308 D. O Civil Commitment e seus problemas pragmáticos atuais ................................. 314 a. O alto custo e a falta de vagas nas unidades destinadas à internação civil compulsória .................................................................................................................. 314 b. Critérios para o recrutamento e seleção dos internos e a problemática colocação dos mesmos em liberdade ............................................................................................ 316 c. Excurso: O estado da arte das ciências médicas e “psi” ........................................ 318 E. Intercambialidade funcional: uma leitura da internação civil a partir do caso Hendricks ..................................................................................................................... 321 F. A posição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos acerca do Civil Commitment ou preventive detention .......................................................................... 330 1. O caso de Civil Commitment ou preventive detention envolvendo Alemanha e Estados Unidos, na visão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos - TEDH .......................... 330 19 2. O caso da Austrália - Dangerous Prisoners Sexual Offenders Act DPSOA - 2003... 331 G. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 338 IV. A Custódia de Segurança alemã: mais um modelo paradigmático de intercambialidade funcional ................................................................................... 342 A. Aspectos gerais do instituto e suas questões controvertidas ................................ 342 1. De questões históricas aos dias atuais: breves anotações ............................................ 342 2. Execução da custódia:dos pressupostos ao prazo máximo de duração ...................... 344 B. Casos concretos atuais e ilustrativos, e suas considerações jurídicas ................. 348 1. O caso de M. e a Sentença de 17 de dezembro de 2009, do TEDH. .......................... 348 2. O caso de Albert Haidn e a Sentença de 13 de janeiro de 2011, do TEDH ............... 352 C. A Sicherungsvewahrung na visão das agências internacionais ...................... 357 1. A análise dos casos concretos pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos TEDH ................................................................................................................................. 357 2. Algumas considerações feitas pelo Conselho Europeu de Direitos Humanos, a respeito da Custódia de Segurança alemã ....................................................................................... 360 3. Algumas considerações feitas acerca da tentativa frustrada de inserção da Custódia de Segurança no ordenamento espanhol ................................................................................ 363 D. A intercambialidade funcional da custódia e a fraude de etiquetas ................... 367 1. Das vantagens da pena associadas às vantagens da medida ........................................ 367 2. As propostas para a legitimação da Custódia de Segurança, pela própria Alemanha 372 E. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 376 §6. A COLOCAÇÃO EM LIBERDADE DO AUTOR (IMPUTÁVEL) DE DELITO SEXUAL GRAVE ................................................................................................................ 381 I. Apresentação ....................................................................................................... 381 II. Outpatient Civil Commitment e o Erwin Act, desde Washington D.C., 1964 ..... 382 A. Contextualização .................................................................................................... 382 B. O programa no estado norte-americano do Texas ............................................... 386 1. Origem e procedimentos ................................................................................................ 386 20 2. A experiência do Texas como representativa de intercambialidade funcional para autores imputáveis de delitos sexuais graves.................................................................... 389 C. Experiências correlatas norte-americanas em outros estados ............................ 391 D. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 393 E. Centros de Terapia Social: breve semelhança ..................................................... 394 III. A “Castração Física” e o Tratamento Hormonal Antiandrógeno (THA) como forma de antecipação da liberdade ........................................................................ 396 A. Contextualização .................................................................................................... 396 B. Pinceladas históricas a respeito da castração em geral ....................................... 397 C. Considerações acerca da castração física ............................................................. 398 D. Tratamento Hormonal Antiandrógeno (THA) ..................................................... 404 1. Contextualização ............................................................................................................ 404 2. O tratamento médico ...................................................................................................... 405 3. Visitando os referidos procedimentos, no cenário contemporâneo internacional...... 410 a. Nos Estados Unidos ................................................................................................. 410 b. No contexto europeu ................................................................................................ 415 c. Na Ásia: o caso da Coreia do Sul ............................................................................ 415 d. Na América do Sul: o caso brasileiro ..................................................................... 416 E. Acerca do consentimento informado para os procedimentos .............................. 419 1. Considerações jurídicas gerais ...................................................................................... 419 2. O consentimento informado na Espanha ...................................................................... 424 3. O consentimento informado e a experiência da Cataluña ........................................... 430 F. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 432 IV. Notificações à Comunidade e Registros Públicos de autores de delitos sexuais (graves?) .................................................................................................................. 435 A. Contextualização .................................................................................................... 435 B. O panorama das políticas SORN nos Estados Unidos, como tendência ............. 438 C. Os registros e as notificações no imaginário coletivo: reações ambivalentes ..... 444 D. A estigmatização como efeito colateral ao indivíduo e a seus familiares ............ 448 21 E. Falhas no sistema de notificações e de registros públicos .................................... 453 F. A efetividade dos registros públicos e das notificações à comunidade ................ 455 1. Efetividade no combate à reincidência em delitos sexuais (graves) ........................... 455 2. Excurso: A efetividade do sistema voltada aos adolescentes infratores ..................... 463 G. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 467 V. O monitoramento eletrônico criminal e suas idiossincrasias: adotá-lo ou não na vigilância do delinquente sexual em liberdade? .................................................... 471 A. Contextualização .................................................................................................... 471 B. Controle eletrônico: violação a direitos fundamentais? ...................................... 476 C. Possibilidades tecnológicas de controle aplicáveis ao delinquente sexual .......... 477 D. Breves recortes acerca do monitoramento eletrônico no âmbito comparado .... 480 E. Considerações jurídicas acerca do atual emprego do monitoramento eletrônico no âmbito criminal espanhol ...................................................................................... 485 F. Experiências concretas realizadas na Espanha .................................................... 491 G. Análise da efetividade do monitoramento eletrônico face aos resultados apresentados ................................................................................................................ 493 H. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 500 VI. A medida de liberdade vigiada pós-penitenciária espanhola e sua execução . 502 A. Contextualização .................................................................................................... 502 B. De breves recortes históricos até o momento atual .............................................. 504 C. Sobre a liberdade vigiada pós-penitenciária para autores de delitos sexuais graves imputáveis e perigosos: considerações acerca de seus pressupostos e sua aplicação ...................................................................................................................... 510 D. O conteúdo das “medidas dentro da medida” aplicável a autores de delitos sexuais graves .............................................................................................................. 517 1. Considerações gerais ...................................................................................................... 517 2. Bloco I: Medidas de controle e vigilância mais direcionadas à proteção da coletividade ou de vítimas potenciais: letras “a” até “d” ...................................................................... 519 3. Bloco II: Medidas de proteção a vítimas concretas: letras “e” e “f” ........................... 520 22 4. Bloco III: Proibições que pretendem evitar situações ou fatores criminógenos: letras “g” até “i”............................................................................................................................ 522 5. Bloco IV: Regras de conduta que pretendem influir positivamente na pessoa submetida à medida: letras “j” e “k” ................................................................................. 524 E. O tratamento jurídico do descumprimento (ou “quebrantamiento”) da liberdade vigiada.......................................................................................................................... 527 F. A problemática situação de uma eventual medida de liberdade vigiada póspenitenciária mais gravosa do que a anterior fase da execução penal .................... 529 G. O acompanhamento da execução da medida de liberdade vigiada póspenitenciária ................................................................................................................ 531 H. Breves notas sobre a liberdade vigiada pós-penitenciária acerca dos intentos de mudança legislativa, no Anteprojeto e no Projeto de Lei de Reforma .................... 533 I. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento ........................................................................................................... 536 §7 POR UN DERECHO PENAL APLICABLE A AUTORES DE DELITOS SEXUALES GRAVES IMPUTABLES: POSICIONAMIENTOS FINALES ................ 540 I. Contextualización .............................................................................................................. 540 II. Respecto a los capítulos propedéuticos números 2, 3 y 4 ............................................. 540 III. Respecto a los capítulos 5 y 6 ........................................................................................ 549 A. En cuanto a los institutos privativos de libertad (capítulo 5) .............................. 550 1. Pena Relativamente Indeterminada portuguesa ........................................................... 550 2. Civil Commiment norteamericano................................................................................. 550 3. Custodia de Seguridad alemana .................................................................................... 553 B. En cuanto a los institutos no privativos de libertad (capítulo 6) ......................... 557 1. Outpatient Civil Commitment........................................................................................ 559 2. Castración Física y Tratamiento Hormonal Antiandrógeno (THA) ........................... 560 3. Registros Públicos y Notificaciones a la Comunidad .................................................. 563 4. Control Electrónico ........................................................................................................ 566 5. Libertad Vigilada española ............................................................................................ 568 CONCLUSIONES POR EMENTAS .................................................................................. 573 23 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 583 24 §1 INTRODUCCIÓN “…no hay un tratamiento frío, desapasionado, de un problema de gestión de riesgos sociales, sino una verdadera hoguera de sentimientos (azuzados el no) colectivos hacia ellos, los agresores, los enemigos.” Cancio Meliá1 1. El alcance de la criminalización en las sociedades contemporáneas occidentales, principalmente en la última mitad del siglo, pasa por una profunda transformación. Por una parte, la ampliación desmedida de tipos penales, por otra, su intensificación. Dicho expansionismo u “overcriminalization”,2 según refieren los norteamericanos, merece ser tratado con cautela ante el concepto material de delito más moderno, secularizado, dependiente de la existencia de un daño social, pues solamente la pena necesaria y socialmente útil podrá ser justa. Dicho criterio de legitimidad, es decir, el principio de la lesividad, del cual se parte, trae consigo los principios de la intervención mínima y de la proporcionalidad, ya que el daño social debe demostrar determinada intensidad y cantidad que justifiquen la criminalización. Respecto a la delincuencia sexual, vigora la misma línea de razonamiento. Con los cambios culturales ocurridos, especialmente en el mundo occidental, en los últimos cincuenta años, se amplió y se intensificó el debate y la consecuente tipificación de conductas de esta naturaleza, principalmente tratándose de delitos graves. Ante esto, hay que preguntarse cuál es la función del Derecho Penal ante los delincuentes sexuales, actualmente. Para algunos, ellos merecen una respuesta penal; para otros, el apelo es por el exterminio. Así, los fines de la pena quedan seriamente envueltos y amenazados en esta problemática. ¿Penas más duras y largas serían más eficaces? ¿Se debe castigar por el hecho o por la conducción de vida? ¿Penas más “pesadas” intimidarían nuevos delitos en esta materia? ¿Cómo debe actuar el Estado respecto a la reinserción social de esos sujetos? ¿Se debe admitir la inocuización como finalidad en el sistema de penas actual? Tratándose de finalidades de las penas, no se puede negar que el Derecho Penal deba transmitir su mensaje sobre valores y representaciones simbólicas y valorativas a la sociedad, señalando y confirmando la vigencia de un catálogo de bienes que deben ser respetados. Ese aspecto (que es una de las finalidades de la pena como prevención general positiva) es real e instrumental. Sin embargo, el problema es cuando no hay bien jurídico protegido, o sea, 1 2 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 77. SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal.; CANCIO MELIÁ/PÉREZ MANZANO, Lección 3 en: LASCURAIN SANCHEZ (coord.), Introducción al derecho penal2, 2015. pp.1-5. (en prensa); HUSAK, Overcriminalization: the limits of criminal law. 25 cuando las normas poseen efecto meramente simbólico. Para aquellos que defienden la primacía de la prevención general positiva como responsable por la cohesión social en torno de ciertos valores, hay que recordar que ella debe ser limitada, si no significará meramente venganza social (hay que poner atención a la necesidad coactiva o compulsiva de castigo por parte de la sociedad, para que mantenga sus propias represiones). Y el Derecho Penal, como mecanismo de control social formal, debe ser la ultima ratio por su gravedad, y no la prima ratio, según el principio de la intervención mínima. La prevención general positiva trata de la preservación de la conciencia social de la norma como finalidad de la pena, encuanto la retribución y la “resocialización”, para los defensores de esta corriente, serían solamente consecuencias o fines secundarios, cuyos límites se encuentran en los derechos de los condenados. Sin embargo, es en nombre de esta “cohesión social”, justamente en la era de un neopunitivismo exacerbado, que esta finalidad “resocializadora” está casi desfigurada. No es por otra razón que los Estados Unidos poseen la mayor población carcelaria del mundo, además de “políticas de seguridad” muy duras, independientemente de la condición de (in)imputabilidad del sujeto infractor. Basta con recordar que hasta recientemente, enfermos mentales y menores podían ser condenados a la muerte en aquel país. 2. En cuanto a la legislación, esta refleja la dificultad en mantener el equilibrio entre seguridad e inseguridad (y la mayor inseguridad resulta de la falta de límites al poder estatal). La seguridad requiere un poder, pero un poder limitado. Las medidas y sanciones deben ser compatibles con los principios propios de los sistemas democráticos, una vez que estos derechos son los que constituyen la base de estos sistemas. Es en esta tensión permanente que se debe buscar un equilibrio mínimamente necesario para alcanzar el máximo de seguridad social con el máximo respeto a los derechos y garantías fundamentales. Las reglas de imputación no pueden desvincularse de un determinado contenido valorativo, o sea, de una determinada concepción de ser humano, de sociedad y de Estado. El ser humano posee garantías consideradas intangibles en relación a todos, y cualquier violación es siempre un atentado a la dignidad. Y es exactamente la dignidad humana el argumento decisivo de índole constitucional, contrario, por ejemplo, al Derecho Penal del Enemigo. Sin embargo, cada vez más nuestra cultura cívica se vuelve menos tolerante y menos inclusiva, con menor confianza en las personas. De un proceso de larga duración de expansión de libertades individuales, de reducción de los constreñimientos sociales y culturales, el control va recobrando su 26 importancia en prácticamente todas las áreas de la vida social. A propósito, Garland3 comenta el deseo de control absoluto, tenso, fuente angustiante intensamente arraigada de la actual cultura de la conciencia del delito, de la mercantilización de la seguridad, del ambiente diseñado para hacer la gestión del espacio y para dividir las personas. Controles especiales, situacionales, de management, sistémicos, sociales, autocontroles, en fin, la imposición de regímenes cada vez más severos de control. 3. También vale recordar que la hermenéutica penal se funda en la Constitución, haciéndose la lectura de la norma infraconstitucional a la luz de la norma constitucional, de acuerdo con el propalado “Princípio da Supremacia Imanente”, que rige nuestro sistema jurídico. Sin embargo, principios acaban siendo agredidos cuando la prevención general se sobrepone al principio de la culpabilidad y a la prevención especial, sin escalas, al Derecho Penal de Autor y instrumentalizándose el individuo punido. Más importante que la conducta, se buscan modos de conducción de vida para juzgar. Vale recordar cómo este Derecho Penal del autor ya fue utilizado, por ejemplo, por la Escuela de Kiel, en la Alemania nazista, al considerar la peligrosidad por el modo de conducta o de vida en general, o por el modo como se comportaba el individuo, por sus actitudes internas, sus valores, su forma de pensar, y no tanto por el comportamiento o actitudes “realmente” delictivas. Una norma penal, para que exista, no puede ser solamente legal, sino que debe ser legítima, o sea, debe presentar contenido de política criminal, sin lo cual el Derecho Penal podrá ser utilizado como una herramienta vacía y de efectos criminógenos, perjudicando, además, el propio principio de la dignidad humana. El hecho de ser difícil no invalida la asertiva. De ahí que respecto a varios ordenamientos destacadamente el norteamericano, hay una necesidad permanente de recordar que el juicio de validez sobre una norma no es solamente el análisis de sus requisitos formales, sino de sus contenidos sustanciales, como se analizará. En Alemania, respecto al tema de las custodias de seguridad para delincuentes sexuales, no es otro el mensaje del Tribunal Europeo de Derechos Humanos. No hay duda de que el vocabulario de la Teoría del Derecho, en el decir de Ferrajoli4, debe ser enriquecido: vigencia es solamente la validez formal, pero validez significa también la validez material. Ni la validez, ni la eficacia de una norma pueden ser deducidas de su vigencia. Validez y vigencia hasta coinciden en los Estados absolutistas, que poseen el principio de la mera legalidad como único criterio rector acerca de la producción normativa. Al revés, dichos conceptos no coinciden en los Estados modernos de 3 4 GARLAND, La cultura del control, p. 315. FERRAJOLI, Direito e razão, p. 292. 27 Derecho, dotados de normas acerca de la producción normativa que vinculan la validez de las leyes al respecto a las condiciones sustanciales o de contenido, entre ellas los derechos fundamentales previstos no solamente en la Constitución de cada país, sino también en tratados internacionales, que exigen cumplimiento. 4. En cuanto al tipo de delincuencia en este trabajo estudiada, se verifica que el principal eje rector debe ser la dignidad sexual, concepto este que comprende la libertad y la indemnidad sexuales, y no la moral sexual, como bien jurídico que tutelar. Como ejemplos de eso, véase que hasta 1969, en Alemania, el acto homosexual consentido entre hombres adultos fue punible, y los contactos homosexuales mediante pago fueron criminalizados hasta 1973. La propia prostitución es un buen ejemplo de este cambio en la comprensión del tema, y según Gallego Soler5, con base en la jurisprudencia por él recogida, es “el mantenimiento de relaciones sexuales inicialmente libres por precio (STS 25-3-97), o equivalente (sexo por droga, sexo por recargo del móvil, por ejemplo), siempre que exista una mínima habitualidad (STS 22-10-01)”, que ya no es considerada, por lo tanto, delictiva, desde el Código Penal de 1995 en el ordenamiento español. Evidentemente, dicho concepto de prostitución no envuelve la explotación sexual, esta sí tipificada, tanto de adultos vulnerables, como de niños. Véase que la explotación sexual, aun según la LO 1/2015, tiene el objetivo de proteger las víctimas, aunque sean adultas, de la llamada “prostitución no-autónoma”, principalmente en aquellos casos de mayor vulnerabilidad, como en el caso de mujeres inmigrantes sometidas la múltiples presiones de todo tipo6. Ante lo expuesto, esta relación debe estar sincronizada con la legislación, para que la legitimidad no sea una derivación simple y pura de la legalidad: sería peligroso si el Derecho produjese y reprodujese su propio mundo y su propia legitimidad, no habiendo relación del sistema jurídico con el sistema político o con el proceso de formación democrática de la legislación que se realiza en la esfera pública. Jakobs, sobre eso, enseña que el Derecho Penal obtiene su legitimación material a partir de la necesidad de garantizar la vigencia de las expectativas normativas (aquellas de las que depende la propia configuración o identidad de la sociedad).7 Sin embargo, a pesar del razonamiento dogmáticamente perfecto, nos preocupa la necesidad de un diálogo permanente entre esa misma dogmática y la política criminal de nuestro tiempo, con todas las dificultades y los desafíos que eso pueda significar. 5 GALLEGO SOLER, en: CORCOY BIDASOLO/MIR PUIG, Comentarios al CP, p. 444. CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, 2015. (en prensa). n. 9519. 7 PEÑARANDA RAMOS/SUÁREZ GONZÁLEZ/CANCIO MELIÁ, Um novo sistema do direito penal: considerações sobre a teoria de Günther Jacobs. 6 28 5. La presente investigación tiene el fin de analizar varios aspectos importantes relacionados a la delincuencia sexual grave teniendo, como eje central, la discusión de lo que es la intercambialidad funcional en el caso del imputable peligroso, o sea, la posibilidad de cambio de instrumentos punitivos, sean ellos medidas de seguridad o penas, sean ellos de Derecho Civil o de Derecho Penal, como respuesta al delito sexual grave, a la luz de principios constitucionales y de respecto a la dignidad humana. Así, en algunos casos tendremos auténtica fraude de etiquetas, en la verdadera expresión de Kohlrausch,8 con la utilización de rótulos vacíos, populistas o demagógicos como en el caso de la pena relativamente indeterminada portuguesa, de la custodia de seguridad alemana y de la internación civil compulsoria norteamericana para delincuentes sexuales; en otros, sin embargo, se podrá afirmar que la denominación no es siempre equivocada y hay la posibilidad de emplear los instrumentos, ya sea como medida o pena, siempre y cuando sea mediante algunos ajustes que destacaremos en su momento, como es el caso del tratamiento hormonal antiandrógeno, de la vigilancia electrónica y de los registros públicos o notificaciones a la comunidad. Los Outpatient Civil Programs, a su vez, acompañan el razonamiento y las críticas que serán demostrados en relación a las internaciones compulsorias y a la libertad vigilada, esta última que será presentada al final, ganando destaque como modelo adoptado por España y que está según un modelo dualista de penas y medidas para imputables peligrosos, aunque pueda ser perfeccionado con un sistema flexibilizado según las necesidades concretas y peligrosidad individualmente consideradas. También algunas ideas extraídas de otros institutos o instrumentos servirán como sugerencias para el perfeccionamiento del modelo de la libertad vigilada. 6. La propuesta de estudio de algunos instrumentos de Derecho Comparado fue el motivador para esta investigación, debido al interés inicial en comparar tendencias en relación al tema, las cuales, en el fondo, poseen como raíz común la preocupación contemporánea en presentar alternativas al tratamiento jurídico del imputable peligroso autor de delitos sexuales, pese a la gran dificultad en compatibilizar dichos delineamientos, que tiene el fin de la seguridad pública, con los derechos y garantías fundamentales del imputado. Según el Derecho Penal moderno, nos parece que lo más difícil aún sea encontrar, pues, el límite que justifique la imposición de un mal o de un dolor, y encontrar sus parámetros más adecuados. 8 KOHLRAUSCH, E. Sicherungshaft..., 1924, p. 33, refiriendo, por primera vez, la conocida expresión “Etikettenschwindel”, sobre la acumulacion de pena y medida. Citado por SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 32. 29 Dentro de este razonamiento, y de modo decreciente, el capítulo séptimo contendrá un pequeño bosquejo de las ideas principales con una propuesta más elaborada para cada instrumento estudiado, de modo conjunto, resultando en una propuesta más amplia sobre los instrumentos que pueden ser adoptados y perfeccionados para el tratamiento jurídico-penal más adecuado al delincuente autor de delito sexual grave, imputable y peligroso. Los capítulos quinto y sexto, que son los principales, tendrán foco en los instrumentos privativos y no privativos de libertad aplicables como tendencia, a la luz de un Derecho Comparado, con todas las dificultades que esto presupone. Se informa que dicha subdivisión ocurre en razón de la libertad, con o sin su privación, puesto que se trata del bien jurídico delimitador de aquella distinción, de naturaleza universal, sin que hubiese el riesgo de cualquier confusión a partir de la denominación del instrumento, la cual, como ya se ha referido, muchas veces, queda sometida a un cambio de etiquetas. 7. Como los capítulos quinto y sexto tratan de instrumentos actuales de enfrentamiento de la problemática del imputable peligroso autor de delito sexual grave, el capítulo cuarto, al contrario, demostrará cómo las medidas de seguridad, en sus aspectos más tradicionales y ortodoxos, no poseen aptitud para dar una respuesta adecuada al conjunto “culpabilidad + peligrosidad” del imputable, y tienem una vinculación importante con el concepto de proporcionalidad a la peligrosidad, pero no con la culpabilidad. Por esto, la presentación de las medidas no envolverá un análisis más detallado ya que no envuelve la discusión sobre la intercambialidad funcional, excepto en el caso de la libertad vigilada, la cual será apreciada en el capítulo sexto, ante su especialidad. Ya el estudio de los sistemas históricos, monista y dualista, es fundamental, puesto que servirá para las conclusiones en el sentido de propiciar reflexiones sobre las sugerencias que serán propuestas en cuanto a los mecanismos cuya intercambialidad funcional será verificada a través de criterios específicos en cada caso. Provienen de la inaptitud del sistema tradicional de penas y de medidas las propuestas de medidas complementarias, cuyos rótulos acaban camuflando, muchas veces, penas perpetuas o, irónicamente, benevolentes internaciones civiles, lo cual permite, por decirlo así, alguna confusión con el denominado Derecho Penal del Enemigo, tema último analizado en el capítulo segundo, según 2, II, B, 4. Incluso, como dice Cancio Meliá9, es ilusorio pensar que el llamado Derecho Penal de Ciudadanos y el Derecho Penal de Enemigos puedan coexistir, puedan compartir el mismo espacio vital dentro de un mismo ordenamiento jurídico. Lo más 9 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/POZUELO PÉREZ (coords.), Política criminal en vanguardia. inmigración clandestina, terrorismo, criminalidad organizada, pp. 322 y 324. 30 grave es la ingenuidad de creer que este solamente se aplicará, única y exclusivamente, a terroristas.10 El profesor español entiende11 que la convivencia armónica entre esos dos modelos de Derecho no es posible. Si es así, la contaminación será inevitable. Esto supondría una síntesis de un modelo de fines de la pena incompatible con un Derecho Penal propio de un Estado de Derecho. Por eso, se preocupa con esta fase actual que, si se consolida, causará el desaparecimiento del Estado de Derecho.12 8. Diciendo esto, cumple introducir los capítulos segundo y tercero, los cuales sirven como punto de partida y que integran, junto con el capítulo cuarto, lo que podríamos denominar de módulo propedéutico. Siguiendo, pues, un orden decreciente de introducción, en el capítulo tercero, serán informados conceptos de culpabilidad, libre albedrío y las modernas formas de diagnóstico de peligrosidad y de pronóstico de reincidencia, pese a que son asuntos aún bastante confundidos, demostrándose la forma más moderna de empleo de instrumentos actuariales utilizada en el caso de delincuencia sexual grave, y su complejidad. Sobre esto, el tema revela una faceta de las más contemporáneas, puesto que a ejemplo de la “Recomendación CM/Rec (2014)3”, del Comité de Ministros de Estados Miembros, relativa a los delincuentes peligrosos, adoptada según el Estatuto del Consejo Europeo, el 19 de febrero de 2014, el tratamiento, las evaluaciones de riesgo y las medidas admisibles traducen la emergencia del asunto. En esta parte del trabajo, aún, se presentarán estadísticas, lo cual tiene el objetivo de demostrar que existen muchos mitos acerca de la figura del delincuente sexual como sujeto demonizado, como enemigo, como incurable, en fin, pese a que los tratamientos para estos individuos ya estén bastante desarrollados y con resultados promisores, lo que también merecerá un apartado especial por la relevancia que posee. Además, no a todo delincuente sexual se deben imponer los instrumentos que serán abordados en este trabajo, puesto que ni todos son pasibles de aplicación para más allá de la pena privativa de libertad. Así, regístrese que para las finalidades de esta investigación, solamente interesa el autor de delito sexual grave, y en este sentido, se procura, con el capítulo segundo, definir cuáles son estos delitos y justificar la posición adoptada, conforme 2, III, C. Se ha elegido como texto legal para este análisis el texto español, por motivos que serán expuestos en el referido capítulo: resumidamente, por la importancia que España posee, históricamente, en la progresiva evolución del tratamiento jurídico de los delitos contra la dignidad sexual, 10 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ, (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 77. 11 Ibidem, p. 87. 12 Ibidem, pp. 75-80. 31 culminando con la creación del instituto de la libertad vigilada. Aún en el capítulo segundo, se contextualizará el tema, el cual envuelve una verdadera “guerra” al delincuente sexual, lo que acaba influyendo, sobremanera, en la conducción de las políticas públicas y del comportamiento de la media sensacionalista, en el comportamiento de la sociedad, en la cultura del miedo y en la formulación de las leyes. El resultado, como critica Callegari13 cuando se refiere a la forma como el Estado ha enfrentado el aumento de la criminalidad de un modo en general, es el empleo del lema de “cuanto más fuerza mejor”. Y sigue, incluso, refiriendo que “podemos constatar isso quando verificamos as alterações legislativas supressoras de direitos fundamentais, ou ainda, naquelas em que ocorre uma desproporção da pena em relação ao delito praticado” 9. La llamada “guerra a los delincuentes sexuales” es, actualmente, una realidad que ejemplifica esta situación. Además, el tipo de delito que aquí será tratado, ha generado, muchas veces, una especie de punición sin culpabilidad, no importando el rótulo (civil o penal) que se quiera atribuir al caso. Son preocupantes las modificaciones en el sistema jurídico, tanto las elaboradas por el poder legislativo, como aquellas derivadas de decisiones jurisprudenciales de las más altas cortes de algunos países. Según Yung, una guerra exige tres elementos, coincidentemente o no, todos presentes en este caso, de guerra a los delincuentes sexuales: primeramente, debe haber la creación de un mito; después, la elaboración de excepciones y, por fin, las inversiones financieras (“myth creation, exceptional-making, and marshaling of resources”).14 En este caso específico, en cuanto a los mitos, se habla del predador sexual incurable, de su demonización, del énfasis en el agresor desconocido en los casos de pedofilia y de la existencia de un grupo homogéneo de delincuentes sexuales, lo que, según se presentará, son percepciones equivocadas15, desenmascaradas por las estadísticas que serán analizadas en el capítulo tercero. En cuanto a las excepciones, se sabe que ya son varias las reglas excepcionadas, especialmente aquellas que se refieren a garantías fundamentales penales y procesales penales. El trabajo presentará elementos abundantes en este sentido, muchos ya referidos por órganos internacionales, como ya ocurre con los institutos privativos de libertad, principalmente, que serán demostrados. En lo que se refiere a las altas inversiones, se observa que gobiernos han dedicado buena parte de sus recursos a programas punitivos volcados hacia la delincuencia sexual. En este trabajo se presenta, por 13 CALLEGARI, en: STRECK/CALLEGARI et al. (orgs.), Direito penal em tempos de crise, p. 136. YUNG, JCLC v. 101 n. 3 (2011), p. 998. 15 Ibidem, p. 999. 14 32 ejemplo, el poder que tiene Adam Walsh Act Child Protection and Safety Act (AWA), 2006, como legislación federal norteamericana, en el sentido de patrocinar una doctrina de inocuización que será estudiada a lo largo de la investigación, más específicamente en 5, III, C, 2: “the programs are better funded than they ever have been”. Y sigue Yung diciendo que: “The entrance of federal government into la criminal war is la notable event because criminal justice expenses are la much higher percentage of state budgets (and are thus often unsustainable).”16 Ante estas breves consideraciones introductorias, pasamos al capítulo segundo de este trabajo, titulado “El contexto político-criminal contemporáneo y la delincuencia sexual grave: una aproximación al tema”. 16 YUNG, JCLC v. 101 n. 3 (2011), p. 998. 33 §2 O CONTEXTO POLÍTICO-CRIMINAL CONTEMPORÂNEO E DELINQUÊNCIA SEXUAL GRAVE: UMA APROXIMAÇÃO AO TEMA A “Las políticas criminales ya no buscan reducir el delito, sino el nivel de miedo.” Capdevila e Ferrer Puig17 I Apresentação Violência e criminalidade, em geral, são temas extremamente complexos. O Direito Penal e suas construções teóricas vêm sendo lidos e relidos, nos últimos anos, em conjunto com outras ciências, principalmente com as sociais e da saúde, como as neurociências, a sociologia, a filosofia, enfim, cujas influências são inegáveis no estágio da sociedade contemporânea.18 Sob certos prismas teóricos, inclusive, o Direito, de modo geral, é concebido por segmento doutrinário como sistema fechado em si mesmo ou autorreferencial, que processa autonomamente informação, cria seus mundos de significação, fixa objetivos e fins, criando a realidade, definindo e protegendo expectativas, já que, nesta perspectiva, o Direito possuiria plena autonomia como subsistema social para conferir sentido ou significado à realidade que é percebida,19 sendo quase indiferente a outros sistemas externos, já que processa, de uma maneira que nenhum outro sistema pode fazer, as expectativas normativas, inclusive nos casos em que estas são defraudadas, mantendo assim a perspectiva de resolver conflitos.20 Em relação à delinquência sexual, verifica-se que esta representa uma pequena fração da delinquência conhecida, sendo, geralmente, cometida contra mulheres e contra indivíduos considerados vulneráveis.21 Apesar desta menor incidência quando comparada à delinquência em geral, é capaz de gerar maior repercussão dada à gravidade e às consequências envolvidas, tanto para a vítima quanto ao agressor, repercutindo de modo bastante intenso na sociedade, tema que será abordado ainda neste capítulo, eis que considerados tais efeitos, sobre vítima e delinquente, dignos para a caracterização de alguns delitos considerados graves no âmbito sexual. Afora isto, o Direito Penal, principalmente, sofre hoje a pressão da cultura midiática que, muitas vezes, explora com sensacionalismo e exacerbação fatos de toda e qualquer 17 CAPDEVILA/FERRER, Tasa de reincidencia penitenciaria 2008, p. 15. Vide, por exemplo, todos os trabalhos, neste sentido, em FEIJOO SÁNCHEZ (ed.). Derecho penal de la culpabilidad y neurociencias; vide, ainda, no mesmo sentido, DEMETRIO CRESPO (dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.), Neurociencias y derecho penal. 19 FEIJOO SÁNCHEZ, en: GÓMEZ-JARA DÍEZ, Teoría de sistemas y derecho penal, pp. 488-489. 20 LUHMANN, en: GÓMEZ-JARA DÍEZ (coord.), Teoría de sistemas y derecho penal, p. 95. 21 REDONDO ILLESCAS, La violencia sexual, pp. 1-9. 18 34 natureza, invocando e emulsionando sentimentos coletivos de uma vingança atávica, reinventando certo protagonismo da vítima e apresentando soluções que são promulgadas pelos parlamentos locais como sendo de grande apelo popular, fomentando políticas criminais ancoradas deste modo, especialmente, diante do tema da delinquência sexual. O protagonismo das vítimas, cujo sofrimento é explorado pelos meios de comunicação e é rentável ao discurso político vigente, confirma o populismo penal. Assim, se entorpece o debate racional dos problemas e se desqualificam os profissionais que não compartilham dos mesmos posicionamentos.22 Como informa Callegari, “esse discurso de cunho populista tem um efeito mágico sobre a população que pugna por medidas mais duras, olvidando-se, no futuro próximo, que será a destinatária das mesmas”.23 Seria tal fenômeno o ressurgimento de um Direito Penal de Autor ou sua versão mais aperfeiçoada, denominada por certos segmentos como Direito Penal do Inimigo? Parece que sim. Convém apenas ressaltar que a sociedade contemporânea ou do risco, ao alcançar, atualmente, modificações importantes e necessárias ao Direito Penal, inclusive com alguma inevitável expansão24, não quer, com isso, dizer, que se possa confundir um Direito Penal do Risco, próprio de uma sociedade do risco, com a ideia de um Direito Penal do Inimigo. Tal relação não se justifica, pois como refere Prittwitz25, enquanto o Direito Penal do Risco descreve uma mudança no modo de entender o Direito Penal e de agir dentro dele - mudança esta resultado de uma época, estrutural e irreversível, com oportunidades e riscos - o Direito Penal do Inimigo é, em contrapartida, consequência fatal de um Direito Penal do Risco que se desenvolveu e continua a se desenvolver na direção errada. Todos estes debates necessitam um eixo comum, o qual, entendemos, envolve a questão do controle social, principalmente o formal, tendo por destaque a figura do Direito Penal e da pena ou medida de segurança, como consequências jurídicas do delito. Por fim e aprofundadas estas ligeiras considerações iniciais do capítulo segundo, passaremos a apresentar o conceito de delito sexual grave para esta investigação, deixando para os próximos capítulos a discussão sobre livre arbítrio, culpabilidade e perigosidade, além, evidentemente, das análises pertinentes às medidas de segurança como resposta, atualmente em voga, à delinquência sexual grave. 22 LANDROVE DÍAZ, El nuevo derecho penal, pp. 62 e ss. Como referem CALLEGARI/MOTTA, en: idem, Política criminal, p. 19. 24 CALLEGARI/ANDRADE, en: idem, Direito penal e globalização, p. 21. 25 PRITTWITZ, RBCC 2004, p. 32. 23 35 II A contextualização político-criminal do problema face ao Direito Penal como mecanismo de controle social formal A. Da compreensão histórica aos dias atuais 1. Sem a compreensão de um determinado modelo de Estado não se pode falar em funções do Direito Penal ou da pena26 e, consequentemente, da medida de segurança, ou seja, dos instrumentos capazes de fazer o enfrentamento das consequências jurídicas derivadas da problemática da delinquência sexual grave. Em breve retrospecto histórico, vemos que enquanto num Estado teocrático a pena representava o castigo divino, num Estado absoluto representava a submissão dos súditos numa prevenção geral sem limites. Já no Estado liberal clássico, criador do Estado de Direito e do princípio da igualdade, primava-se pelo ideal da retribuição, constituindo-se este como limite ao jus puniendi estatal (embora obrigasse a castigar, ainda quando não fosse necessário). Já na sequencia, o Estado-Social ou Intervencionista apareceu na luta contra a delinquência, mas passou a perceber que o princípio da igualdade advindo do Estado liberal precisava ser relativizado. Surgiu, então, uma preocupação com a prevenção especial, de onde advieram, por exemplo, as medidas de segurança. Tal tendência intervencionista levou, em alguns países, a experiências totalitárias, sendo então preciso criar uma fórmula de Estado Social e Democrático de Direito que garantisse contornos jurídicos precisos e alguns limites aquele poder, até porque, mesmo atualmente, o ideário coletivo prima por um Direito Penal que seja mais vingativo ou retributivo, apenas. 2. Tal cenário, contemporâneo, decorre de muitos fatores, mas para citar alguns, vejamos, por exemplo, a tendência que apresenta a sociedade em geral em se colocar no lugar da vítima, resistindo a assumir como seu certos riscos, como o próprio azar, o caso fortuito, ou até eventual responsabilidade própria. Sempre deve haver um “terceiro culpado”, característica da expansão da imputação de responsabilidade como característica cultural da sociedade contemporânea: são os chamados processos de despersonalização na imputação, no dizer de Silva Sánchez.27 Este processo de identificação social com a vítima gera importante efeito quanto à compreensão do instituto da pena, especialmente nos delitos sexuais, ao fazer que aquela seja percebida como mecanismo de apoio à vítima na elaboração do seu trauma, na sua 26 27 MIR PUIG, PG9, p. 137. SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal, p. 49. 36 reintegração e na solidariedade com o grupo social.28 A soma dos fatores tem conduzido a um crescente fascínio pelo Direito Penal, como se passará a analisar mais detalhadamente a partir da compreensão do chamado Direito Penal puramente simbólico e de suas intercorrências diante da política criminal contemporânea. Aliás, a política criminal como ciência crítica e reflexiva deve, por meio de informações empíricas, definir estratégias (planos de ação) e criar opções para que os instrumentos penais sirvam como forma de redução da violência (planos de execução), sendo a ligação entre as informações obtidas pela Criminologia e pelo Direito Penal.29 Neste sentido serão feitas, neste trabalho, críticas e propostas para o aperfeiçoamento de alguns dos principais instrumentos que são empregados diante do tratamento jurídico-penal da delinquência sexual grave. B. O “Direito Penal puramente simbólico”: decorrência do Direito Penal de Autor, embrionário do Direito Penal do Inimigo O presente título demonstra que o Direito Penal do Inimigo resulta da soma de um Direito Penal puramente simbólico (a tipificação penal como mecanismo de criação da identidade social) com o exacerbado punitivismo contemporâneo (idéia de incremento das penas como único instrumento de controle da criminalidade), como leciona Cancio Meliá,30 caso em que incidem um amplo adiantamento da punibilidade, penas bastante altas e garantias processuais relativizadas ou, até mesmo, suprimidas,31 fazendo, assim, com que a legislação ordinária se imponha sobrepujando a Constituição, corrompendo o Estado Democrático de Direito, como mencionam Callegari e Motta.32 Ademais, conforme Streck,33 existe uma resistência refratária a uma reflexão mais aprofundada acerca do papel do direito nos séculos XX e XXI. 28 SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal, p. 55. SILVA, PG3, p. 75. 30 CANCIO MELIÁ, en: JAKOBS/CANCIO MELIÁ ¿Derecho penal del enemigo? 1, pp. 57-102. Inicialmente havia dúvidas se Jakobs defendia ou apenas descrevia esse “modelo”. Hoje, no entanto, não há duvidas. Muñoz Conde afirma que Jakobs apresenta, atualmente, um discurso para além do meramente descritivo, quizás propositivo, de um Direito Penal do Inimigo. MUÑOZ CONDE, en: CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ (coords.), Derecho penal del enemigo, vol. II, pp. 339 e ss. Vide também CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, pp. 409-446. No mesmo sentido, AMBOS, en: CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ (coords.), Derecho penal del enemigo, vol. I, pp. 3 e ss. 31 CALLEGARI/DUTRA, en: CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ, (coords.), Derecho penal del enemigo, vol. I, pp. 336 e ss. 32 CALLEGARI/MOTTA, en: CALLEGARI (org.), Política criminal, p. 22. 33 STRECK, en: CALLEGARI (org.), Política criminal, p. 145. 29 37 No cenário atual a sociedade chamada “pós moderna”, “do risco”, ou da “aceleração”, experimenta crescente dificuldade de adaptação. Sem dúvida, o “11 de setembro de 2001” modificou o cenário mundial para (in)segurança e medo coletivos. Foi o estopim de um processo de passagem da chamada sociedade democrática (Demokratische Gesellschaft) para a sociedade da segurança (Sicherheitsgesellschaft), de um processo de transformação cultural caracterizado pelo abandono da cultura da liberdade (Kultur der Freiheit) e pela sedimentação gradativa da cultura do medo (Angstkultur), como diz Saavedra.34 Também a perda de referências valorativas objetivas, especialmente sob uma dimensão filosófica e ética, caracteriza o tempo presente, sendo o “medo”, como sensação subjetiva muitas vezes desproporcional a critérios objetivos, o vetor que permeia todos os campos relacionados ao tema. Também como característica do tempo presente, refere Silva Sánchez que um importante retrocesso das estruturas orgânicas de solidariedade mais tradicionais, que ele denomina como “desolidarización estructural”, tem levado a um individualismo de massa, onde “la sociedad ya no es una comunidad, sino un agregado de individuos atomizados y narcisisticamente orientados hacia una íntima gratificación de los propios deseos e intereses.”35 Como questiona Morais, falando sobre a síndrome do medo na barbárie:36 “O que esperar de tal desagregação de um projeto de sociabilidade que tinha no Direito – em uma ordem jurídica monopolizada, originária de um pacto fundante do social – um instrumento de civilização capaz de induzir uma pax civilizatória (?), com todas as limitações que marcam a prevalência de valores, desconectando direito e ética.” E neste sentido, vale analisar brevemente, mas pela importância que o tema apresenta, o papel da imprensa no sentido simbólico, como sinal próprio de uma sociedade veloz e da informação em tempo real e global, bem como o papel do parlamento e da política em geral. 1. O processo midiático simbólico 1. Quando se fala em indivíduos atomizados é relevante referir a importância dos meios de comunicação, os quais podem intensificar a sensação de insegurança e de angústia coletivas. No dizer de Silva Sánchez, tais meios, que são instrumentos de indignação e de cólera públicas, podem “acelerar la invasión de la democracia por la emoción, propagar una 34 SAAVEDRA, Veritas 2008, p. 91. SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal, p. 35. 36 MORAIS, en: CALLEGARI (org.), Política criminal, p. 77. 35 38 sensación de miedo y de victimización e introducir de nuevo […] el mecanismo del chivo expiatorio que se creía reservado para tiempos revueltos.”37 A este estado de coisas denomina-se como anomia, terreno fértil para a presente intensificação do Direito Penal, hoje presente nos mecanismos de enfrentamento à delinquência sexual, como será visto especialmente quando dos capítulos quinto e sexto. Entenda-se, então, por anomia a ausência ou desintegração das normas sociais e que pode ter três matizes: a situação existente de transgressão das normas por quem pratica ilegalidades – como é o caso do delinquente; a existência de um conflito de normas claras, que torna difícil a adequação do indivíduo aos padrões sociais; a existência de um movimento contestatório que descortina a inexistência de normas que vinculem as pessoas num contexto social. “O dilema contemporâneo, visto deste prisma parece residir exatamente na perda de referenciais da modernidade, os quais se veem constritos pela irrupção de mal-estares que parecem não se amoldarem aos modelos clássicos de interdição, para o bem e para o mal,” no dizer de Morais. 38 É a chamada crise de valores, causadora das grandes mudanças comportamentais do tempo presente. De qualquer forma, seja qual for a acepção tomada, o foco da questão será a ausência de normas sociais de referência que acarreta a ruptura dos padrões sociais de conduta, produzindo uma situação de pouca coesão social.39 O perigo das atuais fórmulas de lidar com a violência reside na dificuldade em romper o círculo vicioso da síndrome do medo na barbárie, na expressão de Morais,40 e em confundir-se a função simbólica de transmissão de valores vigentes em um determinado contexto histórico, pelo Direito Penal, com eventual atendimento a clamores sociais impregnados de reações psicossociais. Além disso, o próprio medo, como emoção primária ligada à conservação da vida, vai enriquecendo-se através de fatores cognitivos, afetivos e, principalmente, socioculturais, sendo muitas vezes potencializado por segmentos sensacionalistas da imprensa. 2. O “Direito Penal puramente simbólico” contém e transmite uma mensagem enganosa, de que se “está fazendo alguma coisa”, embora não algo útil. Persegue, assim, uma aparência de eficácia, como se fosse possível acalmar a dor e a angústia das vítimas com mais reformas penais, no dizer de Pozuelo Pérez.41 A mídia sensacionalista amplifica, ainda, as consequências do crime, especialmente do delito sexual, transformando acusados em 37 SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal, p. 39. MORAIS, en: CALLEGARI (org.), Política criminal, p. 69. 39 SHECAIRA, Criminologia, p. 215. 40 MORAIS, en: CALLEGARI (org.), Política criminal, p. 79. 41 POZUELO PÉREZ, La política criminal mediática, pp. 86-87. 38 39 “predators” e especulando, sempre, sobre a necessidade de legislações mais rigorosas e retributivas, como se já não fossem. Deste modo, transmitem a idéia de que a reincidência em matéria delitiva sexual é amplamente maior do que realmente é, fomentando o pânico da população. Em que pese as estatísticas demonstrarem que, apesar de os delinquentes sexuais apresentarem grande variabilidade em suas específicas incidências delitivas, a reincidência em delitos sexuais é relativamente baixa, e reduzido grupo destes indivíduos apresenta elevado risco de repetição criminal, como referem vários trabalhos que serão apresentados, inclusive Lussier et al.42 No entanto, cabe ressaltar que, sem dúvida, o alarme social nesta matéria sempre é maior.43 Diante disto, há que se ter muita cautela frente a notícias veiculadas com este propósito, seja pela imprensa sensacionalista ou pelo discurso político-pedagógico, o qual, geralmente, fomenta a percepção de que os problemas são, na verdade, maiores do que realmente são, especialmente, em termos de estatísticas, fomentando um ideário coletivo de pânico, ainda que os números não sejam muito expressivos, embora o grande impacto social ocasionado pela gravidade dos delitos sexuais. Quando se diz que o conteúdo do mais recente pseudo-Direito Penal é “meramente” simbólico significa dizer que o mesmo encontra-se esvaziado de conteúdo real e jurídicopenal, sendo, por isto mesmo, inconstitucional. O mero efeito simbólico serve apenas para reduzir o sentimento de insegurança, através do efeito ilusório gerado, já que é da natureza humana procurar no castigo alheio um bálsamo para seu próprio sentimento de culpa, além de funcionar também como um freio a certos impulsos delitivos.44 Por isso, o sentimento de insegurança pública não é passível de ser mensurado nem pode servir como parâmetro para o legislador, pois inúmeras vezes, o temor relaciona-se a situações nas quais, estatisticamente, o risco de vitimização é baixo. Veja-se, por enquanto, que os delitos contra a liberdade sexual representam em torno de um por cento do total dos delitos cometidos na Espanha, assim como de resto, nos países europeus, e que a taxa de reincidência move-se moderadamente, isto é, entre 10 e 15%.45 Entre 2007 e 2011 chegou a haver um decréscimo no conjunto de condenados por delitos como agressão e abuso sexual, prostituição e corrupção de menores, de 1,05% para 0,82%. Veja-se, quanto à reincidência, que dados referentes à reincidência específica em delitos contra a liberdade e indenidade sexual mostraram um índice de 10,2% e 11,04% respectivamente nos anos de 2005 e 2006; no mesmo período, a reincidência em geral 42 LUSSIER/DESLAURIERS-VARIN/RÂTEL, IJOT 2005, pp. 71-91. HASSEMER/MUÑOZ CONDE, Introducción a la criminología, pp. 375-376. 44 Parece que a figura do ‘bode expiatório” da qual se serve a teoria psicanalítica do delito e da pena para mostrar o componente irracional dos sistemas punitivos é remodelada, mesmo com fins distintos e numa linguagem mais abstrata da teoria sistêmica. BARATTA, CPC 24 (1984), p. 550. 45 ROBLES PLANAS, InDret 2007, p. 3. 43 40 ficou em 19,90% e 20,29%, respectivamente, tudo conforme o Instituto Nacional de Estatística da Espanha.46 Esta situação é bastante verificável diante das estatísticas de delitos sexuais, bem como nas situações envolvendo reincidência, como já afirmado e que será demonstrado no próximo capítulo, em 3, III, C, 4. 3. Interessante observar, a respeito do tema, que apesar da política criminal europeia mais recente demonstrar que a discussão ocorre cada vez mais longe dos espaços acadêmicos, com certa graduação da opinião pública e vigente, existem outras formas de lidar com o problema. Iniciativas como as realizadas pelo Grupo de Estudios de Política Criminal, na Espanha, destinam-se a informar e a sensibilizar a opinião pública sobre a conflitividade social que subjaz ao fenômeno criminal assim como sobre as limitações do Direito Penal como meio de resolução de conflitos sociais.47 A respeito do tema, Silva Sánchez48 lamenta que estejamos diante da dificuldade de obter autênticas informações fidedignas na atual sociedade de economia do conhecimento, caracterizada pelo excesso de informações. Na sociedade da aceleração, com ausência de referências de autoridade ou de princípios básicos, prevalece o pragmatismo do caso concreto e a busca das soluções consensuadas, sem premissas de onde se possa partir para buscar este consenso. Assim, há que se convir que não há como não sentir insegurança. Fica, assim, evidenciada a relação entre a mídia e a formação da opinião pública, bem como o peso que isto adquire no processo político e legislativo, como se passa a comentar. 2. O tratamento político-parlamentar da matéria a. Em geral 1. Conforme está sendo demonstrado, o perigo real do Direito Penal puramente simbólico são as teorias vazias e a ruptura de garantias, e em matéria de delitos sexuais, a legislação de emergência aqui estudada, especialmente quando analisarmos modelos de direito comparado nos capítulos quinto e sexto, bem como toda a legislação simbólica em geral e que informa o nosso sistema jurídico atual, sendo bons exemplos disto. Tal sistemática 46 GONZÁLEZ COLLANTES, RGDP 2014, p. 23. SÁNCHEZ LÁZARO, InDret 2008, p. 22. 48 SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal, pp. 20-23. 47 41 vem norteada pela máxima de que os fins justificam os meios, utilizando-se de um Direito Penal meramente simbólico para a produção de processos espetaculares,49 os quais estão relacionados, diretamente, ao processo legislativo parlamentar atual, como leciona Cancio Meliá,50 referindo que a denominação “Direito Penal simbólico” não faz menção a grupo definido de infrações penais, mas apresenta significado simbólico do processo de criminalização, ou seja, a importância outorgada pelo legislador a aspectos de comunicação política de curto prazo na aprovação de normas correspondentes, dizendo ainda que estes efeitos, inclusive, podem chegar a estar integrados em “estrategias mercado-técnicas de conservación del poder político, llegando hasta la génesis consciente en la población de determindas actitudes en relación con los fenómenos penales que después son ´satisfechas´ por las fuerzas políticas.” Pozuelo Pérez51 sustenta que as reformas legislativas em matéria penal na Espanha não podem seguir à margem delinquencial do país, nem sendo gestadas a partir dos editoriais de determinados meios de comunicação. Diz a autora que é necessária uma maior responsabilidade institucional dos operadores políticos para o planejamento de políticas de médio e de longo prazo, amadurecidas em processos de reflexão e valoração de todos os efeitos que virão a produzir. 2. Políticas criminais de curto prazo não apenas deixam de satisfazer aos objetivos pragmáticos desejados como geram efeitos devastadores na estrutura do Direito Penal, no dizer de Diéz Ripollés.52 O fenômeno midiático encontra-se em grande expansão, especialmente em nossa sociedade da comunicação instantânea, produzindo uma mórbida fascinação pelo acontecer social, geralmente com informações de baixa qualidade, aspirando ao entretenimento e a metas econômicas através de uma difusão cada vez mais ampla na competitiva sociedade de mercado.53 Deste modo, a imprensa acaba gerando no espectador uma sensação de medo e impotência diante de fatos dramática e morbidamente ampliados, sensação de insegurança subjetiva que não corresponde a níveis de risco objetivos. A mídia, deste modo, não apenas se limita a pulsar o estado da opinião pública, mas contribui, decisivamente, para sua configuração. A isto se chama infopollution ou contaminación informativa, característica de uma sociedade decisivamente condicionada pela hipertrofia da 49 FERRAJOLI, en: PEPINO (coord.), La riforma del diritto penale, pp. 57-69. CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, p. 422. 51 Por todos, POZUELO PÉREZ, La política criminal mediática, p. 156. 52 Por todos, DÍEZ RIPOLLÉS, La política criminal en la encrucijada, p. 192. 53 LANDROVE DÍAZ, El nuevo derecho penal, pp. 62 e ss. 50 42 informação. Diante deste fenômeno, agentes públicos discutem cada vez menos temas de alta relevância, porém sempre mais preocupados em dar prontas respostas aos clamores populares, o que explica, em grande parte, a generalizada aceleração do tempo legiferante e a progressiva irrelevância ou eliminação do debate parlamentar.54 No meio acadêmico e jurídico, não é diferente. No entanto, ainda existe segmento disposto a tal enfrentamento, pois como afirma Landrove Díaz:55 “La reconciliación del Derecho Penal con la realidad no puede, em modo alguno, superar la renuncia a ciertos principios y garantías, sobre todo cuando se trata de una ´realidad´ como la esbozada en páginas anteriores.” Hoje, o que se percebe na temática da delinquência sexual nesta área são, em muitos casos, matérias vulgares e baratas que alimentam o estereótipo do delinquente sexual “predador”, pouco ou nada apresentando quanto à estatística criminal, a qual revela não apenas se tratar de uma tipologia criminal de baixa incidência e reincidência, quando comparada a outras espécies delitivas, além do fato de que grande parte destes delinquentes pratica o crime dentro de casa ou contra vítima muito próxima. A famosa e protuberante ideia do psicopata sexual é figura excepcional, apesar das adjetivações empregadas por segmentos da imprensa sensacionalista que desejam fazer crer que todo e qualquer caso de delinquência sexual seja percebido como psicopatia. Aliás, no tocante aos chamados delinquentes com transtorno de personalidade antissocial, geralmente conhecidos como psicopatas sexuais56, muitos se transformaram em serial killers, porém mesmo tendo destacados alguns casos famosos e bastante graves, como ilustração, nem todo o delinquente sexual chega a alcançar tal patologia. Os casos citados abaixo servem para demonstrar as razões do sensacionalismo, já que, sem dúvida, se tratam de situações extremamente graves e de uma brutalidade bárbara. No entanto, o que se deseja por ora, é demonstrar que tais hipóteses são raríssimos e, face ao alarme social que desencadeiam, cria-se o mito do “monstro sexual predador”, figura esta desmentida pelas estatísticas como já mencionado. De qualquer forma, a figura do “predador” estimula o sensacionalismo, o pânico e, evidentemente, um Direito Penal puramente simbólico. Para demonstrar alguns casos que se tornaram bastante famosos, escolhemos os que seguem: Caso 1: Em Cleveland, Estados Unidos, mais de dez corpos foram encontrados na residência de Anthony Sowell, cinquenta anos de idade, condenado por estupro e libertado em 2005, após quinze anos de prisão. Dois deles foram encontrados em estado de putrefação no primeiro andar da casa. Um crânio encontrado numa caixa, enrolado em papel de jornal, 54 LANDROVE DÍAZ, El nuevo derecho penal, pp. 65-67. Ibidem, p. 71. 56 REGHELIN, Crimes sexuais violentos, 2010, passim. 55 43 pode ser referente a 11ª vítima. Foi acusado por cinco homicídios graves com estupro, seqüestros e roubos.57 Caso 2: Jeffrey Lionel Dahmer, nascido em 1960 e falecido em 1994 foi serial killer e matou dezessete homens e meninos praticando estupros, necrofilia e canibalismo. Vários cadáveres foram encontrados em bacias com ácido, além de cabeças na geladeira, além de um altar com velas e crânios humanos em seu armario. 58 Caso 3: John Wayne Gacy, nascido em 1942 e falecido em 1994, conhecido como “palhaço assassino”, foi um homicida em série norte-americano. Utilizava arsenal de instrumentos de tortura. Entregou à policía o mapa com a localização do fosso onde depositou vinte e três dos trinta e três cadáveres que ocultava. Em 1988 foi condenado a vinte e uma penas de prisão perpétua e a doze penas de morte.59 Caso 4: Frederick Walter Stephen West, nascido em 1941 e falecido em 1995. Homicida serial británico que, com sua esposa Rosemary, entre os anos de 1967 e 1987, torturaram e mataram, pelo menos, doze mulheres jovens, quase todas em sua casa em Gloucester, Inglaterra. As meninas pediam hospedagem em sua casa ou simplesmente buscavam trabalho como babysitters. O terror terminou quando mataram a sua própria filha, Heather.60 Caso 5: Nicolas Cocaign, trinta e cinco anos de idade à época dos fatos, foi condenado pela Justiça na França a trinta anos de prisão. Em 2007, o famoso "caníbal de Rouen" matou a um companheiro de cela e comeu parte de seus pulmões, tendo referido que o fez com total satisfação, além de que “la carne humana tiene un buen sabor. Es tierna como la del ciervo. Me gustó hacer lo que hice". Mencionou que não conseguiu resistir ao impulso de pular sobre a vítima, arrancar-lhe a roupa e desferir varios golpes com a tesoura, pelas costas, no pescoço e no tórax da vítima. Após, sufocou a vítima com uma sacola plástica para ter certeza de sua morte. Então, com uma colher, arrancou um pedaço do pulmão da vítima e o cozinhou com cebolas. O terceiro companheiro de cela de Cocaign, após absolvido e livre, suicidou-se ainda na prisão.61 Os chamados “serial killers” compõem uma minoria, porém causam temor, logicamente. A partir das consequências que um serial killer gera, evidentemente que acabam gerando também uma associação com a ideia de monstruosidade, ou seja, de predadores, linguagem internacional adotada pela mídia. Neste viés, complementarmente, não apenas a imprensa tem agido deste modo, mas somadas a esta o movimento das vítimas vem se aliando, sendo bastante significativo em termos de reformas penal e processual penal.62 Fatores assim têm contribuído para um abandono progressivo dos ideais de reabilitação e reinserção social, em que pese isto seja possível de ser alcançado, conforme os resultados de pesquisas que serão apresentadas no próximo capítulo, inclusive frutos de experiências 57 Vide: ANTHONY Sowell en: WIKIPÉDIA. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Anthony_Sowell>. Acesso em: 27 set. 2010. 58 Vide JEFFREY DAHMER, en: WIKIPÉDIA. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jeffrey_Dahmer>. Acesso em: 02 out. 2014. 59 Vide: JOHN Wayne Gacy, en: WIKIPÉDIA. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/John_Wayne_ Gacy>. Acesso em: 27 set. 2010. 60 Vide: FRED West, en: WIKIPÉDIA. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Fred_West>. Acesso em: 27 set. 2010. 61 Vide “CANIBAL francês temperou carne da vítima com cebola”, R7 notícias, 2010. Disponível em: <http:// noticias.r7.com/internacional/noticias/canibal-frances-temperou-carne-da-vitima-com-cebola20100623.html>. Acesso em: 14 out. 2010. 62 HASSEMER/MUÑOZ CONDE, Introducción a la criminología, p. 377. 44 concretizadas na Espanha. Desta forma, os objetivos de incapacitação e retribuição acabam sendo fortemente estimulados, como referem Quinn, Forsyth y Mullen-Quinn:63 “The system has largely abandoned efforts to change behavior […] so incapacitation and retribution have become our main strategy for crime control. […] Victim vulnerability increases societal perceptions of the dangerousness of these perpetrators as well as popular disdain for them. This strenght imbalance in a period when the rights of victims are taken very seriously adds to the disdain with which these offenders are viewed and cuts them off from the usual supporters of offender´s rights.” 3. Do abandono dos ideais reabilitadores e da atual tendência neoretributivista nascem, a todo o momento, diplomas legais prevendo “three strikes”, tolerância zero, “ticking bomb scenario” (admissibilidade da tortura em determinados casos)64, lei e ordem, segurança cidadã, terceira e quarta velocidades do Direito Penal, Direito Penal do Inimigo, as quais não vêm reduzindo o número de delitos graves, mas aumentando consideravelmente a população carcerária em muitos países.65 De todas estas formulações, aprofundaremos apenas o Direito Penal do Inimigo com algumas considerações sobre o Direito Penal de Terceira Velocidade, face ao grau de profundidade teórica que apresentam em relação às demais e pela aplicabilidade, eis que presentes em vários ordenamentos, atualmente. Isto posto, registre-se que não se pode admitir o emprego do Direito Penal a fim de encobrir-se mecanismos humanos irracionais e ocultos, como refere Luzón Peña66 quando menciona que a necessidade da sociedade em relação ao castigo como agressividade voltado contra o delinquente a fim de manter ou reestabelecer seu equilíbrio e como forma de satisfazer seus impulsos antissociais reprimidos, o que revela, exatamente, a racionalização de mecanismos irracionais que são ocultos. Por isso, embora sempre exista um conteúdo de efeito simbólico nos valores transmitidos pelo Direito Penal, aquele não pode ser mais do que um simples efeito secundário ou sua conseqüência, ou seja, não pode ser convertido na sua ratio essendi. O resultado de confusões nesta seara é que a legislação acaba, assim, marcada por este tipo de viés, na ânsia pelo combate ao delito e na busca, a qualquer preço, pela segurança pública “perfeita”. São ideias político-punitivistas que ganharam mais espaço nos últimos tempos,67 e conforme Cancio Meliá e Jakobs,68 tal clima punitivista e de ressurgimento do punitivismo veio a 63 QUINN/FORSYTH/MULLEN-QUINN, DB 2004, pp. 215-232. AMBOS, Terrorismo, tortura y derecho penal, 2009. 65 SILVA, PG3, pp. 11 e ss. 66 Por todos, LUZÓN PEÑA, CPC 1982, pp. 93-105. 67 BAUMAN, Em busca da política, p. 59. 68 JAKOBS/CANCIO MELIÁ, ¿Derecho penal del enemigo?, ideia recorrente. No mesmo sentido a obra de CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, pp. 409-446. 64 45 incrementar,69 qualitativa e quantitativamente, a criminalização, como único critério políticocriminal possível. 4. Simultaneamente, verifica-se a perda da identidade política de esquerda e de direita, além de uma invasão mútua de agendas, resultando em movimentos de corte preventivista que vêm inviabilizando o debate racional, conforme Cancio Meliá.70 Em relação à dita direita política, o mesmo autor explica que ninguém deseja ser percebido como conservador, mas sim como “progressista”, ou até mesmo como “defensista”. Neste sentido, a direita política espanhola tem descoberto que a aprovação de normas penais é uma relevante via para se adquirir matizes político “progressistas”. Do mesmo modo, prossegue o professor referido, também se tem por parte da chamada esquerda política uma mudança de atitude, já que se passa de uma linha que identificava determinadas condutas como mecanismos de repressão para a manutenção do sistema econômico-político de dominação a outra que descobre as pretensões de neocriminalização especificamente de esquerdas como delitos de discriminação, violência de gênero, enfim. A esquerda política aprendeu o quanto pode ser rentável o discurso de “lei e ordem”, antes monopolizado pela direita, “en una escalada en la que ya nadie está en disposición de discutir de verdad cuestiones de política criminal en el âmbito parlamentario y en la que la demanda indiscriminada de mayores y más efectivas penas ya no es un tabu político para nadie.”71 Reformular as irremediáveis preocupações com a segurança individual, plasmando-as na ânsia pelo combate ao crime, efetivo ou potencial e, assim, de defesa da segurança pública é um eficiente estratagema político que pode render belos frutos eleitorais,72 o que se verificará, com certa facilidade, quando da leitura dos capítulos quinto e sexto em relação a diferentes ordenamentos que tratam do tema da delinquência sexual e de seus instrumentos de 69 70 71 72 Nesta linha de raciocínio, a sociedade norte-americana, por exemplo, quadruplicou a população penitenciária em uma década. Movimentos de encarceramento em massa e uma forte campanha de criminalização da miséria levaram a população carcerária norte-americana a quase 2.500.000 pessoas. Vide FERRAJOLI, en: JD, 2006 p. 3 e ss. A sociedade espanhola duplicou a sua desde os anos 80. Vide LARRAURI PIJOAN, en: BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (coords.), Derecho penal y política transnacional, pp. 287-288. CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 70-74. Vide também CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, pp. 409-446. No mesmo sentido CALLEGARI/DUTRA, en: CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ, (coords.), Derecho penal del enemigo, vol. I, pp. 330 e ss. No mesmo sentido: SÁNCHEZ LÁZARO, InDret 2008, pp. 1-29. CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/ FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 70-74. Vide também CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, pp. 409-446. BAUMAN, Em busca da política, p. 59. No mesmo sentido: CALLEGARI/DUTRA, en: CANCIO MELIÁ/ GÓMEZ-JARA DÍEZ (coords.), Derecho penal del enemigo, pp. 325-340. 46 enfrentamento,73 especialmente na legislação norte-americana, com suas “sexual violent predators laws” e seus ideais de incapacitação, na legislação portuguesa, com a pena relativamente indeterminada, e na legislação alemã, com sua Custódia de Segurança (Sicherungsverwahrung), modelos paradigmáticos escolhidos para análise neste trabalho. b. Especificamente em matéria de delinquência sexual na Espanha 1. A legislação a respeito da temática da delinquência sexual, na Espanha, tema que será aprofundado na sequência de modo detalhado, possui caráter acentuadamente simbólico, e em vários aspectos, segue uma “…espiral de aceleradas modificaciones, de nuevas tipificaciones, en la periferia, los márgenes y el subsuelo del bien jurídico libertad sexual en la que entró ya hace tiempo. […] Una espiral de la que sólo una exhaustiva reordenación y reformulación integral parece poder salvar a las infracciones sexuales” como informa Cancio Meliá.74 O professor espanhol chama a atenção em relação à concreta forma de tipificação introduzida, envolvendo “un desorden de cualificaciones y de hipercualificaciones, actos preparatorios y tipos vaporosos” que superam, notavelmente, os limites que estabelecem a norma de harmonização europeia.75 Varias legislações e reformas penais já foram feitas nesta temática, na Espanha. São reformas políticas que, conforme Nuñez Paz, a partir da Lei Orgânica (doravante LO) 11/2003, passaram a tratar determinados delinquentes sexuais, bem como os estrangeiros e os menores infratores, como “pré-inimigos”, à época,76 e assim como os maltratadores domésticos e os reincidentes, entraram na "sala de espera" ou na primeira fase da “enemización” ou demonização, diante da expansão punitiva e do uso, primordialmente simbólico, do Direito Penal. Aliás, a demonização dos “menores”, por exemplo, só vem aumentando, como menciona Ramos Vázquez.77 Tal reforma chegou a ser denominada por Fernández Entralgo como uma “política criminal de naftalina”,78 dada à incapacidade permanente para a resolução de problemas e conflitos sociais de outro modo, funcionando 73 Sobre algumas questões relevantes envolvendo instrumentos como os previstos pelas legislações norteamericana e alemã, vide ROBLES PLANAS, InDret 2007, pp. 1-25. 74 CANCIO MELIÁ, LL 2011, pp. 1-18. 75 CANCIO MELIÁ, en: DÍAZ-MAROTO Y VILLAREJO, (Dir.), Estudios sobre las reformas del CP, pp. 379-380. 76 NÚÑEZ PAZ, en: MUÑOZ CONDE/LORENZO SALGADO/FERRÉ OLIVÉ/CORTÉS BECHIARELLI/ NUÑEZ PAZ, (dir.)/NÚÑEZ PAZ, (ed. y coord.), Un derecho penal comprometido, p. 900. 77 Por todos, RAMOS VÁZQUEZ, AFDUDC 2010, p. 679. 78 FERNÁNDEZ ENTRALGO, JD 2003, p. 2. 47 mais como uma continuada e recorrente fuga para o Direito Penal:79 ante cada problema novo, propõe-se a criação de mais uma modalidade delitiva ou o agravamento de alguma pena ou medida já existente. 2. Historicamente, deve-se registrar que a legislação penal espanhola já sofreu modificações muito relevantes. Com a LO 3/1989, por exemplo, abandonou-se um sistema de Direito Penal sexual patriarcal (delitos contra a honestidade) e migrou-se para uma regulação voltada à liberdade sexual. As LOs 11/1999, 11/2003, 15/2003 e 5/2010 introduziram novidades importantes posteriormente, consubstanciando reformas em três direções: despenalização de condutas relacionadas à moralidade sexual, novo sistema de tipificação abrangendo figuras incriminadoras mais graves (agressões e abusos sexuais), e um processo de contínuo endurecimento e ampliação do tratamento destas infrações. Já o Código vigente (2015) segue no intento de descriminalizar figuras periféricas ao bem jurídico e aumenta o âmbito de incriminação no tocante a abusos e a agressões sexuais.80 Em se tratando de um Direito Penal praticamente simbólico, Cancio Meliá igualmente critica a elaboração técnica da reforma, tanto na redação dos distintos tipos como na coordenação dos distintos elementos, dizendo que são problemas gerados por um “Parlamento que actúa sin reflexión suficiente y que tendrán que resolver los Tribunales.”81 Para evitar este tipo de fuga para o Direito Penal é necessária certa clareza quanto à sua missão, e não meramente em relação a sua função ou efeitos latentes. As funções ou efeitos latentes do Direito Penal são aqueles efeitos que o sistema de imputação acaba provocando, independentemente de sua configuração. Aparecem como efeitos necessários, como por exemplo, o etiquetamento, a seletividade e o efeito simbólico comum. Já a missão é derivada de escolhas predeterminadas, como a proteção seletiva de bens jurídicos para alguns doutrinadores, ou a estabilização da norma, para outros. 3. O risco de legislações elaboradas desta forma, para além do já demonstrado, é que existe uma ampla plasticidade do instinto sexual que muitas vezes não é suscetível de ser abolida radicalmente. Uma expressiva pressão social e legal sobre a sexualidade poderá ocasionar manifestações substitutivas que talvez venham a fomentar a aparição de outras condutas (até de maior gravidade), convertendo-se em fator criminógeno, conforme Díez 79 Para utilizar a expressão de SÁNCHEZ LÁZARO, InDret 2008, p. 21. CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, 2015. (en prensa). n. 9213. 81 CANCIO MELIÁ, en: DÍAZ-MAROTO Y VILLAREJO (dir.), Estudios sobre las reformas del Código Penal, pp. 379-380. 80 48 Ripollés.82 Isto tem sido verificado, por exemplo, nos Estados Unidos, diante de legislações que obrigam o condenado por delito sexual a registros públicos duradouros ou perpétuos, pela rede mundial de computadores e de modo aberto, gerando consequências tão gravosas sobre a vida do indivíduo e de seus familiares que, indiretamente, verifica-se a possibilidade de fomentar-se o retorno deste indivíduo à criminalidade diante da situação de exclusão social e de violência que enfrentará, muitas vezes, conforme se verificará mais amiúde no capítulo sexto. Questões como as abordadas, versando sobre o medo, a sensação de insegurança, o papel midiático e político-legislativo no contexto contemporâneo fazem pensar na possibilidade do ressurgimento do Direito Penal de Autor, como resultado. Talvez, numa versão mais recente e apurada, a própria definição de Direito Penal do Inimigo seja a consequência mais evidente, cujos riscos e perigos não são de todo desconhecidos, principalmente porque, no trato da delinquência sexual, já estão aparecendo sintomas evidentes desta corrente de pensamento, como no caso das chamadas “fraudes de etiquetas” nas custódias de segurança alemãs, conforme apontado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ou pelo instituto norte-americano do Civil Commitment, conforme discutido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, temas que serão aprofundados nos capítulos quinto e sexto. O tema da liberdade vigiada espanhola, pela relevância que adquire neste cenário contemporâneo de tensão entre os direitos de uma sociedade amedrontada versus garantias do delinquente sexual, merecerá, pela sua atualidade e polêmicas que provoca, apartado especial em 6, VI. 3. Ressurgimento do Direito Penal de Autor? a. Breve histórico e conceituação 1. Embora não seja nosso foco ou objetivo, resgatar a origem histórica do conceito de Direito Penal de Autor, em contraposição à noção de Direito Penal do Fato, o resgate é primordial no intuito de, logo após, chegar-se na apresentação, igualmente sintética porém necessária, do Direito Penal do Inimigo, hoje fortemente sustentado e seguido por importante corrente de pensamento. Resumidamente, Kant, Hegel e Hobbes apresentavam entendimentos que devem ser registrados sob um ponto de vista histórico. Kant, desde um prisma ético82 DÍEZ RIPOLLÉS, El derecho penal ante el sexo, pp. 249-250. 49 filosófico, entendia a lei como um imperativo categórico: um mandamento que representava uma ação em si mesma, sem referência a nenhum outro fim. O homem era um fim em si mesmo e, portanto, seu castigo não poderia ser útil à sociedade, caso em que estaria sendo instrumentalizado. Esta teoria trouxe um aspecto interessante para o tema: o princípio da proporcionalidade (talião), já que não se deveria impor penas maiores ou mais longas do que aquelas relacionadas à exata gravidade do delito. Por isso, a simples prática do delito (ou a infringência da lei) ensejava a punição, que era puramente retributiva. Não importava a utilidade do castigo. Assim, a justiça penal era um “imperativo categórico”, pois se a justiça desaparecesse não haveria mais razão para o homem viver. Tanto que Kant dizia: “ejecutarse antes al último asesino que se encontrase em prisión; de lo contrário, el pueblo sería cómplice en la vulneración pública de la justicia.”83 Na mesma escola retribucionista, Hegel, porém empregando maior embasamento jurídico, entendia que a pena era a negação da negação do Direito. Entendia que ela era necessária para restabelecer a vontade geral que fora agredida pelo criminoso. Para Hegel “el hecho punible es algo negativo que vulnera el Derecho en el sentido de su negación. La pena es la vulneración de la vulneración, como restablecimiento del Derecho”.84 Hobbes, teórico do contrato social e filósofo das instituições, já dizia que “o cidadão não podia eliminar, por si mesmo, seu status. Entretanto, a situação é distinta quando se trata de alta traição, pois a natureza destes crimes [...] significa uma recaída no estado de natureza... E estes devem ser castigados, não como súditos, mas como inimigos”. 85 2. Jakobs, ao sustentar um Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht) contrário a um Direito Penal do Cidadão (Bürgerstrafrecht), tema que logo será analisado em 2, II, B, 4, teria partido de uma concepção similar ao contratualismo, ao menos como figura retórica. Tanto é assim que, para o professor alemão, o inimigo não firma o contrato social, ou então, se o faz, acaba renunciando a este, em uma opção individual, voltando-se contra a sociedade, gerando sua expulsão do próprio grupo por ela, que tem o poder de determinar quem são seus membros. Essa sociedade, que geralmente reclama o cidadão como membro, a fim de castigálo com uma pena que só existe e é legítima dentro dela (e para dar-lhe a oportunidade de reintegrar-se a ela), pode expulsá-lo, em caso de rebeldia ou traição, o que seria uma recaída 83 JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 21. Apud JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 23. 85 Vide JAKOBS, en: JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Direito penal do inimigo, noções e críticas, p. 27. 84 50 no estado de natureza referido por Hobbes. Assim, o objetivo final não seria a imposição de uma pena, mas a neutralização do perigo que o inimigo representa. A metáfora, considerada historicamente como condição real de possibilidade do Direito, parece indicar uma representação social ou coletiva que representa a renúncia de parcelas de liberdades individuais em nome de uma mínima convivência possível a ser garantida pelo Estado, pois este foi criado para facilitar a convivência social, e não para destruí-la.86 No entanto, Jakobs percebe o contrato como opção individual, aproximando-se da concepção individualista de Hobbes, para quem eram inimigos aqueles contrários ao contrato social, ou seja, aqueles que manifestam condutas próprias de um estado de natureza, e que, portanto, podiam ser punidos conforme as regras deste mesmo estado de natureza, onde todos são inimigos entre si. E refere: “[...] El se colocará en tal posición, pues la exclusión en una sociedad de libertades siempre es autoexclusión: cambiando su conducta, el enemigo podría volver a convertirse en ciudadano”87. 3. A figura do homem destituído da titularidade de direitos e percebida apenas como “vida nua”, já era comentada por Agamben88. Referia-se, ainda, à tese de Carl Schmitt sobre a distinção amigo-inimigo. Vale lembrar que em abril de 1933 sobreveio a “lei para a depuração da função pública de elementos judeus”, e em 1935, as leis de Nüremberg, privando judeus alemães da nacionalidade alemã, rebaixando-os à segunda categoria; e caso tivessem relações sexuais com pessoas da “raça ariana” eram castigados pelo crime de “ultraje à raça”. Critérios eugenésicos também foram utilizados, tanto que a partir de 1933, doentes mentais, alcoólatras, homossexuais foram esterilizados em massa. O ápice desta política foram os campos de extermínio como Auschwitz, na Polônia, e Dachau, na Alemanha, para onde eram destinados os “impuros racialmente”, incluindo judeus, ciganos, poloneses, ucranianos, russos ou eslavos em geral, os quais, por sua “forma de vida” (mendicância, delinqüência habitual, vagabundagem) não mereciam mais ser tratados como os alemães, sendo, pois, submetidos a trabalhos forçados em condições desumanas, tratados como cobaias em experimentos científicos ou, diretamente, condenados à morte. Como referia Agamben, essa “vida nua” juridicamente significava um tratamento como não pessoa, ou seja, como exclusão. O campo de extermínio ou de concentração era, para Carl Schmitt, a máxima expressão do poder constituinte representada pela vontade do Führer. Mezger, naquela época, já falava da 86 REGHELIN, RBCC, 2007, pp. 271-314. JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 48. 88 AGAMBEN, Homo Sacer, pp. 217 e ss. 87 51 existência, no futuro, de dois direitos penais: um para a generalidade, outro para um grupo especial de delinquentes. No último terço do século XIX e primeiro do século XX surgiram as categorias dos chamados delinqüentes habituais, reincidentes ou por tendência, para os quais se previa a pena de prisão perpétua, ou por tempo indeterminado, afora o perdimento dos direitos civis e políticos. Esse “Direito”, posteriormente, ficou conhecido como “Direito de Autor”. Assim, desde logo, o Direito Penal de Autor seria a antítese do Direito do fato, segundo o qual a pessoa seria julgada pelo que é, não pelo que fez. O mais importante não é seria a conduta do sujeito, mas sua personalidade, características e notas pessoais, segundo García-Pablos de Molina.89 b. A crítica à concepção de Direito Penal de Autor 1. Cancio Meliá90 reconhece o perigo do conceito teórico de Direito Penal de Autor, o qual pode vir a ser empregado para finalidades ilegítimas, pois pune o indivíduo pelo que pensa, não pelo que fez. Assim, despreza-se o axioma “cogitationem ponenam nemo patitur” (o pensamento não deve ser castigado). O professor espanhol defende a reação penal conforme a critérios de proporcionalidade e de imputação, aliás, como exigido pela perspectiva de direitos humanos mais contemporânea, e neste sentido, assevera que o Direito Penal de Autor configura desrespeito ao princípio do fato e, assim, acaba vulnerando também o princípio da culpabilidade.91 Em relação à temática dos delinquentes sexuais o tema é de fundamental relevância, principalmente diante da análise de conceitos como perigosidade e prognóstico de reincidência. Confusões nesta seara costumam levar a consequências desastrosas, como nos parecem ser, por exemplo, as medidas de segurança sem prazo determinado ou as custódias de segurança alemãs, que assim como as internações tipo Civil Commitment norte-americanas, parecem mais voltadas a inocuizar pela identidade de criminoso sexual do que a buscar, efetivamente, qualquer possível reabilitação, possível, no mais das vezes, conforme será demonstrado através de inúmeras pesquisas na área da saúde e da criminologia, logo no próximo capítulo. O estudo da matéria não é novo e há mais de 89 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Introducción al derecho penal, vol. II, p. 532. CANCIO MELIÁ, en: JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Direito penal do inimigo, noções e críticas, pp. 51-81. 91 PÉREZ MANZANO/CANCIO MELIÁ, en: LASCURAIN SANCHEZ (coord.). Introducción al derecho penal2, 2015. (en prensa). 90 52 século a Europa discute a melhor forma de tratar delinquentes perigosos, bem como a legitimidade para lidar com as estratégias especialmente desenvolvidas para tanto.92 2. Tal como é concebido usualmente, o Direito Penal de Autor viola, antes de tudo, o valor da dignidade humana, que resguarda a não instrumentalização do indivíduo, ao contrário do Direito Penal do Fato, o qual se alia com o princípio da culpabilidade e com o da segurança jurídica, além do princípio da legalidade. Também se relaciona com outro valor supremo que é a liberdade, já que se avizinha do princípio da proporcionalidade, comportando análise de lesividade na conduta sancionada. Neste sentido, o Direito Penal do Fato se constitui em manifestação do princípio da culpabilidade.93 Apenas a título de curiosidade, vale referir que o Direito Penal de Autor ou a chamada “culpabilidade pela conduta de vida”, que são expressões bastante próximas em termos de significação, teriam alguma diferença em relação à chamada “culpabilidade de caráter”. Esta última teria como manifestação, por exemplo, a agravante da reincidência, já que é revelada pelo caráter do indivíduo conforme se pode observar a partir de condenações anteriores, conectando-se, assim, a ações determinadas.94 Assim, no campo específico das conseqüências jurídicas do delito não parece correto associar toda e qualquer medida de segurança, tema do quarto capítulo, ao chamado Direito Penal de Autor. A medida não é um castigo por um fato típico e antijurídico, mas sim uma resposta à perigosidade diagnosticada e prognosticada a partir do cometimento de um fato típico e antijurídico, de cunho preponderantemente preventivo-especial, sem negar algum cunho preventivo-geral, apesar do conteúdo aflitivo para quem a ela é submetido, evidentemente.95 Ao partir de um pressuposto, qual seja, um ilícito típico praticado, o qual lhe serve como requisito objetivo, garante, como regra, que o rótulo de Direito Penal de Autor mereça ser afastado, ao menos com o caráter pejorativo que geralmente lhe é atribuído. Convém referir que, em sentido minoritário, porém não menos importante, para autores como Gómez Martín, o Direito Penal de Autor apresentaria dois níveis: o nível primário e o nível amplo. O nível primário poderia ser admitido de forma legítima, já que versa sobre regras que obrigam o Juiz a considerar, especialmente para graduar a pena, para além do delito cometido, as circunstâncias pessoais do réu e, principalmente, sua perigosidade exteriorizada. E neste sentido, seu conteúdo é perfeitamente compatível com os postulados do “principio de responsabilidad por el hecho” como limite ao jus puniendi derivado do princípio 92 ROBLES PLANAS, InDret 2007, pp. 14-15. RODRÍGUEZ MOURULLO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 201. 94 Ibidem, p. 102. 95 GARCÍA GARCÍA, Marco jurídico de la enfermedad mental, p. 470. 93 53 da culpabilidade e com um Direito Penal do Fato. Refere o autor espanhol96: “El resultado de la combinación del Derecho Penal del hecho y el Derecho Penal de autor limitado al que ahora nos referimos seguiría siendo un Derecho Penal del hecho, ahora matizado por la consideración de determinadas circunstancias personales del reo a determinados efectos.” Em relação a um segundo nível, este denominado “amplo”, o Direito Penal de Autor seria então incompatível com o Direito Penal do Fato, correspondendo, na verdade, a sua negação, segundo Gómez Martín, conforme a acepção usual e majoritária da expressão.97 Para o mesmo autor, assim, o Direito Penal moderno ao qual se integram as medidas de segurança, é com certeza, expressão autêntica de Direito Penal do Fato, isto é, um Direito que, de modo não retributivo, sanciona ao autor do delito pelo que fez e pela qualidade de sua real disposição de cometimento de conduta descrita como delito, e não por seus pensamentos ou pré-disposições subjetivas. No caso da medida de segurança, seu fundamento é a perigosidade criminal sobre a base do pressuposto normativo de um injusto típico praticado, sem o qual não caberia aplicar a medida. O fato de que a medida seja acorde à personalidade do sujeito encontra respaldo em sua função preventiva, mas se alicerça na perigosidade criminal, pressuposto e fundamento para sua imposição.98 No mesmo sentido, Polaino Navarrete e Polaino Orts: “La medida de seguridad es una medida post-ilicitum (post injusto típico), pero su fundamento jurídico de la peligrosidad criminal no se circunscribe en modo alguno a su revelación en la realización del injusto típico, sino que, previa constancia de este presupuesto normativo constituye un pronóstico desfavorable de comportamiento futuro, sin cuya verificación es por entero carente de fundamento la imposición de una medida de seguridad, que se ha de aplicar con criterios científicos sobre la base de la actual situación de peligrosidad criminal, no para retribuir comportamientos pasados sino para prevenir la ejecución de comportamientos futuros descritos como delito por la ley penal.”99 3. O Direito Penal do autor é tema recorrente em matéria de delitos sexuais. Veja-se que a legislação penal versa sobre alguns tipos interessantes e representativos do tema. Exemplo emblemático é apresentado por Ramos Vázquez100 ao tratar do chamado “online grooming”, previsto pelo artigo 183 ter do CP espanhol, conforme recente LO 1/2015. Tal delito busca castigar em situações, inclusive, nas quais ainda não existe lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, adiantando a punição para prevenir a concretização do risco danoso ao bem jurídico. Como versão mais atualizada ou contemporânea do tema, tem-se a vertente do 96 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Introducción al derecho penal, vol. II, pp. 25-26. GÓMEZ MARTÍN, El derecho penal de autor, pp. 318-319. 98 POLAINO NAVARRETE/POLAINO-ORTS, LL 2001, p. 5. 99 Ibidem. 100 RAMOS VÁZQUEZ, LL 2011, p. 11. 97 54 Direito Penal do Inimigo, a qual passamos, brevemente, a expor, posto que pela sua densidade teórica, a julgar pela bibliografia existente, uma tese específica sobre o assunto ainda seria muito pouco, e este não é o foco da presente investigação. Entretanto, pelas consequências que o tema apresenta em matéria de delinquência sexual, até mesmo já tendo sido declarado o delinquente sexual como inimigo, o tema merece determinadas considerações. 4. A tendência ao Direito Penal do Inimigo como consequência contemporânea 1. Embora não seja nosso foco trabalhar a temática do Direito Penal do Inimigo de modo mais aprofundado, algumas considerações são muito pertinentes, posto que diretamente relacionadas à delinquência sexual. Ademais, o chamado Direito Penal do Inimigo já se encontra plenamente incorporado a várias legislações ocidentais, o que nos impõe refletir sobre o tema do delinquente sexual, percebido como inimigo, e as consequências disto. Para tanto, escolhemos o pensamento de Jakobs, por sua relevância doutrinária no cenário contemporâneo, como representativo. Jakobs referiu, pela primeira vez, em 1985, no Congresso de Penalistas Alemães, em Frankfurt am Main, a expressão “Direito Penal do Inimigo”, como forma de advertência aos perigos que este significaria, em outras palavras, um amplo adiantamento da punibilidade, criminalização a estado prévio à lesão, penas bastante altas e garantias processuais relativizadas ou, até mesmo, suprimidas,101 Em 1999, em um Congresso em Berlim, Jakobs retomou a ideia inicial.102 A orientação do Direito Penal do Inimigo, de Jakobs, após 1999, ou seja, numa segunda fase, voltou-se mais para a questão do terrorismo, por exemplo. Inimigo, aqui, significa mais um conceito pseudorreligioso do que militar. Não se trata de neutralizar um “outro” que é fonte de perigo, mas de reconhecerlhe competência normativa mediante uma atribuição de perversidade, neutralizando tal perigo. Assim, o Estado não fala com seus cidadãos, mas ameaça a seus inimigos, no dizer do próprio Jakobs, residindo aqui a conexão com a distinção feita pelo professor alemão em relação ao que ele denomina como pessoas e “não pessoas” ou inimigos.103 Uma pessoa não é apenas um ser biológico, mas uma instituição normativa. E segundo o autor alemão, toda instituição normativa apresenta uma função orientadora que, para ser cumprida, necessita apresentar um 101 CALLEGARI/DUTRA, en: CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ, (coords.), Derecho penal del enemigo, vol. I, pp. 336 e ss. 102 MUÑOZ CONDE, en: MUÑOZ CONDE/LORENZO SALGADO/FERRÉ OLIVÉ/CORTÉS BECHIARELLI/ NUÑEZ PAZ, (dir.), Un derecho penal comprometido, p. 889. 103 JAKOBS, en: JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo1 pp. 17-64. 55 seguro embasamento cognitivo, sem o qual não será confiável e, portanto, não poderá servir como orientação aos outros. Desta forma, ao invés de haver expectativas em relação a esta pessoa, aparecerá uma defesa contra um inimigo. E este é, para Feijoo Sanchez, o exato ponto crítico ou limite da teoria, já que, na visão de Jakobs, deve-se tratar o delinquente como pessoa, e nunca como objeto, desde que o mesmo possa garantir sua fidelidade ao ordenamento no futuro; caso contrário, poderá ser tratado como inimigo.104 2. A relação do Direito Penal puramente simbólico com o Direito Penal do Inimigo é facilmente verificável. Conforme Cancio Meliá,105 no caso de crimes sexuais não existe um tratamento frio, desapaixonado, mas uma verdadeira fogueira de sentimentos coletivos contra os agressores, os inimigos. Refere ainda, uma expressão muito utilizada por Jakobs, que denomina a violência empregada pelo Direito Penal do Inimigo como não sendo “muda”, mas “eloquente”. Em termos simbólicos, o denominador comum da agenda político-criminal atual é uma falsa construção de identidade social por meio da exclusão de diversas categorias de indivíduos identificados como alheios ao sistema social, ou seja, como inimigos. É que para Jakobs, no dizer de Fakhouri Gómez, o Estado se vê obrigado a exercer uma “violência muda” contra o inimigo, pois não existe comunicação com ele, já que este não forma parte da vida social.106 Diante disto, Cancio Meliá critica tanto a idéia da possibilidade de uma autoexclusão parcial do inimigo (como pode haver uma rescisão unilateral nas mãos do inimigo se a prevenção geral positiva é um mecanismo social?) quanto à idéia de um “cidadão diminuído ou parcial”, frente ao conceito de cidadania, de matiz constitucional. Por isto, preocupa-se com essa nova fase que, caso consolidada, segundo ele, causará o desaparecimento do Estado de Direito.107 Segundo o mesmo professor, o “Direito Penal do Inimigo” não constitui mera regressão a mecanismos defensivistas, mas sim “un desarrollo degenerativo en el plano simbólico-social del significado de la pena y del sistema penal”. Desta forma, diz o professor madrilenho, que acaba por transmitirem-se argumentações de identificação simbólica a novos setores de regulação com maior rapidez do que faria a argumentação racional com base em 104 FEIJOO SÁNCHEZ, en: MIR PUIG/QUERALT JIMÉNEZ/FERNÁNDEZ BAUTISTA, Constitución y principios del derecho penal, p. 168. 105 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 70-74. 106 FAKHOURI GÓMEZ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 90. 107 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 75-80. 56 riscos mensuráveis, ou seja, “el Derecho Penal del enemigo contamina com especial facilidad –como un poco de aceite industrial un medio acuático natural– el Derecho Penal ordinario.”108 3. A respeito do enquadramento do delinquente sexual na categoria “inimigo”, Jakobs não deixa dúvida:109 “[...] con el Derecho Penal del Enemigo se trata de combatir a individuos que en su actitud, por ejemplo, en el caso de delitos sexuales [...] se han apartado probablemente de manera duradera, al menos de modo decidido, del Derecho, es decir, que no ofrecen la garantia cognitiva mínima que sería necesaria para su tratamiento como personas”. É que para o professor alemão, segundo a análise de Cancio Meliá, o Direito Penal não vale mais do que a ordem social que contribui para manter e, portanto, só pode extrair sua legitimidade na última instância da existência de normas legítimas. Não se estaria tratando do Direito Penal de uma sociedade desejável, e sim do Direito Penal daquela sociedade que o sistema jurídico gerou por diferenciação. A decisão sobre o alcance dos processos de criminalização seria matéria puramente política, e não jurídico-penal.110 Deste modo, os autores de delitos sexuais, especialmente quando cometidos contra menores ou vulneráveis, de um modo geral, entram para o círculo dos inimigos a combater.111 É que aliados ao fator “legislação”, segmentos da mídia exploram, intensamente, a matéria, principalmente os crimes sexuais graves violentos, os quais possuem um apelo emocional muito forte. No dizer de Gracía Martin, não pode restar dúvida que o autor de delito sexual grave deva ser tratado como pessoa e, ao mesmo tempo, como autor de delito, porém dentro do mesmo Direito Penal. Para tanto, deve manter seu status de pessoa, de cidadão, até que possa proceder à reparação e assumir os deveres exigidos como pressupostos à existência da personalidade.112 Como afirma Ferrajoli, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, homem e cidadão constituem dois status subjetivos dos quais dependem duas classes distintas de direitos fundamentais, que são os da personalidade, que correspondem a todos os seres humanos, e os da cidadania, que correspondem, exclusivamente, aos cidadãos. Entre os direitos do homem como indivíduo, a Declaração enumera a garantia do Habeas Corpus e todas as garantias penais e processuais. Tais garantias devem ser consideradas intangíveis e 108 CANCIO MELIÁ, en: STRECK/CALLEGARI/LUISI/GIACOMOLLI/CANCIO MELIÁ, Direito Penal em tempos de crise, pp. 42-43. 109 JAKOBS, en: JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo, pp. 17-64. 110 CANCIO MELIÁ, en: CALLEGARI/GIACOMOLLI (coords.), Direito penal e funcionalismo, pp. 89-115. 111 CANCIO MELIÁ, LL 2011, p. 12. 112 GRACIA MARTÍN, RECPC 2005, p. 6. 57 dizem respeito a todos. Sua violação é sempre um atentado contra a dignidade humana.113 Refere Gracia Martín114 que “el Derecho Penal democrático y del Estado de Derecho ha de tratar a todo hombre como persona responsable, y no puede ser lícito ningún ordenamiento que establezca reglas y procedimientos de negación objetiva de la dignidad del ser humano en ningún caso.” Um ordenamento que incluísse regras incompatíveis com a dignidade do ser humano seria injusto e daria lugar a que o Estado se desvinculasse do Direito, conforme o artigo 1º, da Constituição espanhola. A justiça é um valor superior do ordenamento do Estado de Direito. Nem sequer o ser humano pode dispor de sua dignidade, pois esta é uma qualidade inseparável de seu substrato ontológico, según Gracia Martín. Um homem que, mesmo renunciando a esta sociabilidade, optasse por configurar sua vida fora e à margem da sociedade, inclusive de modo contrario à sua organização, ainda assim expressaria nisto uma decisão de liberdade ética e como forma de manter intacta sua dignidade. 4. O Direito Penal do Inimigo aparece configurado em outras vertentes doutrinárias, sob outras denominações. Diante da gravidade de situações excepcionais de conflito, denominados como “hechos de emergencia”, Silva Sánchez, por exemplo, reconhece a existência de um espaço para um Direito Penal de até três velocidades. A primeira velocidade diz respeito ao Direito Penal do Cárcere, com princípios político-criminais rígidos e clássicos, com regras de imputação e com princípios processuais bem definidos; já o Direito Penal de segunda velocidade fica reservado para os casos em que não há cárcere, mas sim penas restritivas de direitos ou de multa. Nestes, princípios e regras de imputação podem ser flexibilizados proporcionalmente à menor intensidade da sanção.115 O Direito Penal de segunda velocidade pode receber a crítica no sentido de que trata de infrações que nem mereciam estar sob a égide do Direito Penal, ou seja, deveriam ser, assim como no Direito de Intervenção, sustentado por Hassemer, repassadas ao Direito Administrativo, deixando-se o Direito Penal apenas para situações ensejadoras de respostas mais contundentes e protegidas por garantias que não poderiam ser flexibilizadas. Basicamente, a diferença entre a proposta de um Direito Penal de duas (ou três) velocidades, de Silva Sánchez, e a proposta de um Direito de Intervenção, de Hassemer, é que enquanto Silva Sánchez prega a possibilidade de 113 FERRAJOLI, Derechos y garantías, p. 98. GRACIA MARTÍN, RECPC 2005, p. 42. 115 SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal3, pp. 162-167. 114 58 flexibilização de garantias do Direito Penal, Hassemer expulsa do Direito Penal toda imputação não correspondente ao controle social do intolerável. 116 Por fim, a terceira velocidade ficaria reservada para o que se denomina, hoje, por Direito Penal do Inimigo (embora Silva Sánchez tenha recentemente rechaçado a adoção desta terminologia como sinônimo de terceira velocidade, posto que cada caso deveria ser estudado individualmente)117: infrações com penas privativas de liberdade previstas coexistindo com princípios político-criminais e regras de imputação mais flexíveis.118 No entanto, o Direito Penal de terceira velocidade, para Landrove Díaz, por exemplo, seria “el fiel trasunto del Derecho Penal del enemigo”, referido por Jakobs. Ambos vulneram o princípio da igualdade através do disfarce da legalidade formal:119 “Ni siquiera el más reprobable de los comportamientos justifica que, en um Estado de Derecho, se renuncie o apliquen de modo discriminatorio las garantías constitucionales reconocidas a todos los ciudadanos. Si el Estado de Derecho utiliza para defenderse métodos impropios de un Estado de Derecho ello supone –simplemente– la renuncia al mismo.”120 Embora o criador da expressão concorde que o modelo se assemelha à concepção de Direito Penal do Inimigo, ressalta que há alguns matizes que os distanciam, como por exemplo, a exclusão da delinquência socioeconômica da terceira velocidade, ficando nesta concentrados delitos como a delinquência patrimonial profissional, a delinquência sexual violenta ou reiterada, a criminalidade organizada, o narcotráfico, a criminalidade de Estado e o terrorismo.121 De qualquer modo, a crítica ao Direito Penal do Inimigo ou ao Direito Penal de Terceira Velocidade é bem representada pelas palavras de Ferrajoli, 122 que refere tal “uso terrorista do Direito Penal”, a uma confusão entre guerra e punição, num autêntico retorno ao estado de natureza. Ao comparar a linguagem à política internacional, diz que os novos castigos, à semelhança das denominadas guerras preventivas e infinitas, são exemplarmente infligidos aos rotulados como canalhas (em alusão aos “estados canalhas”). Diz ainda o mestre italiano que a razão jurídica do Estado de Direito não conhece amigos e inimigos, mas culpáveis e inocentes, apenas. Não se podem admitir exceções à regra até porque as regras devem ser tomadas com seriedade, e não como simples técnicas: 116 BUSATO, en: MUÑOZ CONDE/BUSATO, Crítica ao direito penal do inimigo, pp. 181-182. SILVA SÁNCHEZ, La expansión del DP3, 2011, pp. 204 y ss., 207. 118 BUSATO, Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo, p. 147. 119 LANDROVE DÍAZ, El nuevo derecho penal, pp. 43-44. 120 Ibidem, p. 44. 121 DÍEZ RIPOLLÉS, La política criminal en la encrucijada, pp. 181-182. 122 FERRAJOLI, JD 2006, p. 10. 117 59 “…no pueden plegarse a conveniencia según la ocasión. Y en la jurisdicción el fin no justifica nunca los médios, dado que los médios, o sea las reglas y las formas, son las garantías de verdad y libertad, y como tales tienen valor para los momentos difíciles tanto más que para los fáciles; mientras el fin no es el éxito sobre el enemigo en todo o caso, sino la verdad procesal obtenida sólo en el respecto de aquéllas y que padece gravemente cuando se las quebranta. Contraponer al desafio del terrorismo la alternativa del derecho y de la razón es esencial para salvaguardar no sólo los principios de garantía del correcto proceso sino también el futuro de la democracia.” 5. Em termos de crítica aos conceitos referidos, ao tratar da dignidade humana frente ao Direito Penal do Inimigo, Ferrajoli123 denomina a atual política criminal e suas relações com o Direito Penal como uma “trágica incongruencia” ou “trágica confirmación del nexo indisoluble que liga derecho y razón, legalidad y seguridad, medios y fines, formas y sustancia de los instrumentos, incluso coercitivos, de tutela de los débiles frente a la ley del más fuerte.” Por estas questões, Baratta igualmente critica o pensamento de Jakobs dizendo que para este, o indivíduo não pode ser entendido como sujeito autônomo, moralmente responsável por seus atos, sendo apenas um “subsistema sicofísico, convertido en el centro de adscripción de responsabilidad sólo con base en una capacidad que le es atribuida conforma a criterios puramente normativos y funcionales”.124 Na mesma visão crítica de Baratta em relação ao posicionamento de Jakobs, o indivíduo restaria como um “mensajero de una respuesta penal simbólica, que se realiza a su costa, aunque excluido de su condición de destinatario y fin de una política de verdadeira reintegración social”. A doutrina majoritária, conforme refere Gracia Martín,125 tem rechaçado este Direito Penal do Inimigo, tanto como discurso teórico-doutrinário, como posicionamento de caráter político-criminal. Refere o citado autor: “En realidad, ese llamado Derecho Penal del Enemigo sería uno que se apartaria de los fines ordinarios del Derecho Penal, es decir, de la reafirmación del ordenamiento jurídico o de la norma infringida conforme a la ideología de la llamada actualmente prevención general positiva, de la prevención general de intimidación y de la prevención especial rehabilitadora o de reinserción social. Se trataría más bien de una legislación de lucha o de guerra contra el enemigo cuyo único fin sería su exclusión e inocuización.” No campo processual-penal, diz Gracia Martín126 que são reduzidas, consideravelmente, as exigências de licitude e de admissibilidade da prova, são introduzidas medidas amplas de intervenção sobre as comunicações, de investigação secreta ou clandestina e se reinterpreta, restritivamente, o princípio Nemo tenetur se ipsum accusare. No plano teórico defende-se, até mesmo, a licitude da tortura e alguns institutos de direito penitenciário 123 FERRAJOLI, JD 2006, p. 10. BARATTA, CPC 1984, pp. 549 e ss. 125 Veja-se por todos, GRACIA MARTÍN, RECPC 2005, pp. 2 e 8. 126 Ibidem, p. 11. 124 60 (a exemplo de requisitos para benefícios penitenciários, liberdade condicional, enfim) que são típicos exemplos da concepção de um Direito Penal de Inimigo. 127 Conforme Streck,128 há uma contaminação do Direito Penal e Processual Penal pelas “leis de exceção, de supressão de garantias, tudo em nome de uma suposta segurança do cidadão,” sobrepondo-se a legislação ordinária ao texto da Constituição, quando deveria ocorrer o oposto. Isto tem acontecido no mundo todo e inúmeros instrumentos aplicáveis aos delinquentes sexuais têm sido propostos e aplaudidos, ainda que se tenha que “flexibilizar” aquelas garantias mais tradicionais, agora consideradas muito rígidas.129 Entretanto, inúmeras críticas têm sido encaminhadas por órgãos jurídicos de ponta, como a Suprema Corte dos Estados Unidos ou mesmo o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em relação aos institutos do Civil Commitment, em 5, III, e à Custódia de Segurança alemã, em 5, IV, como se verá em detalhes. Em autênticas fraudes de etiquetas, o primeiro instituto recusa a denominação “penal” a fim de evitar as exigências próprias de um sistema de garantias, e o segundo, ao contrário, adota a terminologia de “medida de segurança,” embora, na prática, o instrumento seja estritamente retributivo. Diz Silva Sánchez, a respeito do instituto norte-americano, que este conduziria a uma especial equiparação entre sujeitos imputáveis perigosos e sujeitos inimputáveis perigosos.130 A propósito, na Espanha, a doutrina Parot, como ficou conhecida a tese defendida pelo Tribunal Supremo, é um marco representativo a ilustrar esta discussão, bem como a demonstrar o resultado da pressão exercidos pelo governo através da própria imprensa.131 O Tribunal Supremo, na sentença n. 197/2006, de 28 de fevereiro, fortemente arraigada em sentimentos de alarme social jurídica, decidiu, no caso Henri Parot,132 condenado por delitos de terrorismo, que o cálculo sobre benefícios penitenciários deveria ser feito sobre o volume total da condenação, e não sobre o limite de 30 anos, período máximo de cumprimento de pena de privação de liberdade, já contrariando a doutrina e a jurisprudência dominantes à época. O Tribunal Constitucional teve oportunidade de declarar a inconstitucionalidade da decisão, mas não o fez. Em 10 de julho de 2013, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no caso de Del Río Prada, acusada por terrorismo, decidiu contrariamente ao Tribunal Supremo espanhol e, em recurso ofertado pela Espanha, em 127 AMBOS, Terrorismo, tortura y derecho penal, 2009. STRECK, BFD v. 80 (2004), pp. 303 e ss. 129 SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal, p. 41. 130 SILVA SÁNCHEZ, en: ARROYO ZAPATERO/BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, (Dirs.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos (in memoriam), vol. I, p. 702. 131 LA PRENSA derechista se moviliza por la 'doctrina Parot'. El Periódico, Barcelona, 21 oct. 2013. Disponível em: <http://www.elperiodico.com/es/noticias/politica/prensa-derechista-moviliza-favor-doctrina-parot-2767689>. Acesso em: 28 ago. 2015. 132 RÍOS MARTÍN, InDret, jul. 2014, pp. 1-42. 128 61 julgamento da Grande Sala do TEDH, em 21 de outubro daquele ano, dos dezessete magistrados, quinze entenderam que a sentença do TS violava o artigo 7º (direito à liberdade) da CEDH, os dezessete entenderam que a manutenção da prisão da demandante era ilegal e vulnerava o artigo 5.1, da mesma (princípio da legalidade), e ainda dezesseis consideraram que a Espanha deveria colocar Del Río Prada em liberdade o mais breve possível, devendo a decisão ser alcançada não apenas à requerente, mas a todas as pessoas na mesma situação, inclusive a alguns delinquentes sexuais conhecidos na Espanha como Pedro Luis Gallego (“el violador del ascensor”)133, Miguel Ricart Tarrega 134 e Antonio García Carbonell135. A decisão se tornou um cânone internacional, servindo como parâmetro para todos os países membros da UE e com projeção a todos os continentes, “constituyendo una de nuestras señas de identidad cultural y de civilización común europea. Separarse de ella no solo implica una infracción de obligaciones jurídicas internacionales, tambien distanciarse de Europa en el sentido de su civilización.”136 Isto posto, verifica-se que, conforme Cancio Meliá137 já afirmou, não é possível a convivência harmônica entre um modelo de Direito Penal de Cidadãos com um Direito Penal para Inimigos. A ser assim, a contaminação, cujos sinais já estamos verificando em nossos ordenamentos, será inevitável. Isto suporia uma síntese de um modelo de fim da pena que é incompatível com um Direito Penal como aquilo que agora se identifica em nosso sistema como próprio de um Estado de Direito. Já para Jakobs, tal convivência simultânea não apresentaria maiores problemas, pois tal incompatibilidade seria apenas conceitual, eis que não existe um mundo ideal.138 Jakobs diz que tanto um “Direito Penal do Cidadão” como o “do Inimigo” são modelos ideais, que não existem no plano real em sua completude. O Direito Penal do Inimigo, assim, estaria situado, na verdade, em uma zona intermediária, mista, o que carrega uma série de imprecisões de ambos os modelos puros.139 133 PEDRO Luis Gallego, el mecánico de ascensores que violó en ellos a 18 jóvenes y mató a dos. Lainformacion.com, 13 nov. 2013. Disponível em: <http://noticias.la informacion.com/espana/pedro-luisgallego-el-mecanico-de-ascensores-que-violo-en-ellos-a-18-jovenes-y-mato-ados_LfKZaGExHqAJ4mpRAQG343/>. Acesso em: 28 ago. 2015. 134 MIGUEL Ricart Tárrega. El País, 18 nov. 2014. Disponível em: <http://ccaa.elpais.com/tag/miguel_ ricart_tarrega/a/.>. Acesso em: 28 ago. 2015. 135 RODRÍGUEZ, El País, 10 ene 2015. Disponível em: <http://ccaa.elpais.com/ccaa/2015/01/10/ catalunya/1420928325_579078.html>. Acesso em: 28 ago. 2015. 136 A respeito da doutrina Parot em relação aos casos citados, vide GONZÁLEZ COLLANTES, RGDP 2014, pp. 15-20. 137 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 87. 138 FAKHOURI GÓMEZ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 90. 139 JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 44. 62 C. O controle social (formal) sobre o delinquente sexual e o discurso penal de emergência 1. O controle social como condição básica irrenunciável da ordem social 1. O controle social, especialmente o formal, é exercido pelas instâncias de poder ligadas ao Estado, dada à pertinência com o tema e com o papel do Direito Penal, afinal, “o sentido de castigo da retribuição, a idéia de cura expressada na ressocialização, a ameaça coercitiva e a motivação à norma são impressões provocadas como efeito da atuação no sentido de preservação do controle social”, no dizer de Busato.140 Como já afirmado, o Direito Penal possui natureza simbólica ao transmitir determinados valores e, sem dúvida, sua condição comunicativa é fundamental para a organização e coesão coletivas, já que a estabilização do ordenamento é essencial para a convivência social. No entanto, há que se preservar limites éticos frente a consciências individuais. O controle social é condição básica irrenunciável para a vida em sociedade. Com ele, são garantidas normas e expectativas de conduta. As expectativas conseguem regular o medo ao sedimentar um recorte mais delimitado das amplas possibilidades existentes no mundo. Elas são estruturas mais ou menos consistentes que forçam a aceitação dos riscos, apesar de estarem sujeitas a desapontamentos. Como essas frustrações poderiam levar a um nível insustentável de tensões e problemas de orientação, o sistema social apresenta duas possibilidades contrárias de reação a desapontamentos de expectativas: existe a alternativa de modificação da expectativa desapontada, adaptando-se à realidade decepcionante, ou então sustentar a expectativa, e seguir a vida protestando contra a realidade decepcionante. Dependendo de qual dessas orientações predomina, pode-se falar de expectativas cognitivas ou normativas, respectivamente.141 O indivíduo imbuído de uma expectativa normativa persiste na expectativa apesar do desapontamento que a realidade lhe impõe. As expectativas normativas são também chamadas de expectativas contrafáticas, pois resistem aos fatos que lhes desapontam.142 Pode-se então entender a pena como confirmação da configuração da sociedade e sua missão preventiva é, portanto, manter a norma como esquema de orientação, e 140 BUSATO, Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo, pp .477-478. JAKOBS, en: JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Direito penal do inimigo, noções e críticas, pp. 33 e ss. 142 SHECAIRA, Criminologia, p. 235. 141 63 quem confia na norma deve ser confirmado em sua confiança. Assim, a função do Direito se aplicaria como “estabilización contrafática de expectativas de comportamiento”, e as normas jurídicas seriam então “expectativas de comportamiento contrafaticamente estabilizadas”. O mecanismo especializado em manter expectativas, não obstante a frustração, é o Direito, portanto. Deste modo, a sociedade elege comportamentos que não tolera e impõe penas, demonstrando a vigência social da norma. Tanto uma norma cumprida quanto uma norma descumprida (contrafática) cumpre a função de garantir a segurança das expectativas sociais. A sanção aplicada ao criminoso confirma a norma. A não ser assim, a vigência da norma fica erosionada, tanto no lado do autor como da vítima, caindo em descrédito. Daí que as normas precisam de “cimentación cognitiva” para que possam oferecer orientação. Diz Jakobs que, da mesma forma, ninguém confiaria em deixar os filhos pequenos aos cuidados de um pedófilo, pois “la expectativa normativa de que la conducta será conforme a deber carece de cimentación cognitiva cuando es defraudada de modo repetido, es decir, notorio.” Para ele, nem sempre essas pessoas poderão ser consideradas como inimigas, já que podem não agir desta forma duradoura, mas poderão, sim, ser denominadas como “inimigas parciais”.143 2. O Direito se explica, então, por sua função social e não como mero correlato necessário da convivência entre consciências individuais livres e plenamente dadas previamente a essa convivência organizada. Isto ocorre tanto em sociedades democráticas quanto em sociedades totalitárias. A configuração jurídico-penal que cada sistema adota depende das coordenadas sociais particulares determinantes em cada sociedade, pois o Direito Penal protege sempre a identidade básica da mesma, sua função normativa é que lhe atribui significado como sistema social. Entretanto, a configuração de cada núcleo social não depende do Direito Penal. Assim, o sistema jurídico-penal é parte deste controle social estando dotado de elevado grau de formalização e com particular intensidade.144 A propósito, não convém confundir tal elevado grau de formalização com morosidade e excessos burocráticos, pois não se podem confundir formalismos despidos de significados com significados revestidos de formalismos. A democracia não é a vontade da maioria, pois existe uma esfera constitucionalmente subtraída à vontade da maioria. Assim, não pode buscar a segurança “efetiva” a qualquer preço, pois não tem a incumbência de realizar as pretensões 143 JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 206. 144 HASSEMER, Fundamentos del derecho penal, pp. 390 e ss. 64 estatais à custa dos indivíduos.145 No entanto, pela frequência com que isto sucede, fala-se na própria crise do Direito Penal, referindo Tavares que “de un Derecho Penal orientado hacia la persona se pasa a un Derecho Penal orientado hacia el Estado. Tal vez en este paso se pueda encontrar el germen de la crisis del Derecho Penal actual.”146 A condição normal para a normalização do sistema penal legal é que o Estado possa exercitar um controle efetivo sobre o sistema paralelo, para impedir a continuidade da guerra e permitir que os conflitos sociais e políticos se demonstrem em forma não violenta. A normalidade do sistema penal é uma consequência da validez ideal e do respeito efetivo do pacto social e, por conseguinte, da vigência da Constituição. Refere, neste sentido, Baratta, que “a paz é, entretanto, condição necessária do pacto social, mas não suficiente; as outras condições necessárias se encontram na eficácia das normas que regulam a organização e a divisão dos poderes do Estado e garantem os direitos fundamentais dos cidadãos”.147 Sem dúvida, portanto, que o dilema atual é o conflito entre os direitos do indivíduo que cometeu o crime e os direitos de uma sociedade que vive amedrontada148, porque numa sociedade cujas falhas são estruturais, equilibrar a balança entre tais grandezas é tarefa bastante complexa. A dúvida conduz à resposta proferida por Ferrajoli: “la certeza perseguida por el Derecho Penal mínimo está en que ningún inocente sea castigado a costa de la incertidumbre de que también algún culpable pueda resultar impune.”149 3. Em relação à delinquência sexual, tudo isto se reflete como evidente à medida que o discurso por uma necessidade absoluta de segurança acaba convertendo o modelo de controle social do intolerável em um modelo intolerável de controle social, como diz Busato.150 Nisto consiste o discurso chamado “de emergência”, de busca de soluções em curto prazo, o qual consiste em degeneração do próprio Direito, buscando-o transformar em um Direito Penal mágico, com efeitos devastadores na estrutura da racionalidade do Direito Penal, como informa Díez Ripollés,151 o qual afirma ainda que as ideias de segurança, certeza e garantias foram sacrificadas pelo ideal de liberdade da modernidade. Landrove Díaz leciona que se invoca a todo o tempo a emergência para legitimar o exercício ilimitado do poder punitivo e se reciclam elementos do autoritarismo do passado e seus embates antiliberais: “precisamente 145 FERRAJOLI, QG 1996, pp. 527-539. TAVARES, en: BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (coords.), Derecho penal y política transnacional, p. 307. 147 BARATTA, Criminología y sistema penal, pp. 176-177. 148 MUÑOZ CONDE, Direito penal e controle social, p. 109. 149 FERRAJOLI, Direito e razão, p. 319. 150 BUSATO, Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo, p. 133. 151 Por todos, DÍEZ RIPOLLÉS, en: BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (coords.), Derecho penal y política transnacional, p. 275. 146 65 por ello, están en juego el propio Estado de Derecho y los espacios de libertad ciudadana, conquista irrenunciable de las sociedades realmente democráticas.”152 Agora é preciso trocar parte desta liberdade (Freiheit) por uma idéia simples de segurança que não mais representa os termos daquela (Sicherheit) perdida. O controle social está largamente associado à questão da contextualização político-criminal contemporânea, posto que em nome do medo, mecanismos de Direito Penal puramente simbólico são desenvolvidos visando alcançar uma segurança inatingível, colocando em risco direitos e garantias fundamentais. Neste sentido, afirma Zedner153 que nunca se viu tamanho investimento na indústria da segurança privada, individual, comunitária, empresarial, enfim, onde as novas tecnologias têm lugar garantido. No mesmo sentido, e associado à temática do controle social, Garland154 lembra-se de meados da década de 70, quando o tema da ressocialização iniciou seu descenso a partir das falhas constatadas no sistema carcerário norte-americano e das discussões sobre o devido processo no ambito penitenciário, quando então se diminuiu muito a credibilidade dos estudiosos que tratavam deste sistema a partir da crença de que nada funcionava (“nothing works”)155. A partir daí apenas se intensificaram todas as formas de controle no sistema criminal (quanto à liberações antecipadas, probation, por exemplo), social de um modo geral (management, controles sistêmicos, autocontroles, regimes mais severos de controle e controle mais intenso dos regimes institucionais) e a mercantilização da segurança, fazendo uma transformação da nossa cultura cívica, de um período de largas garantias individuais para um recobrar de controles em, praticamente, todas as áreas da vida social. A crença em um Direito Penal cada vez mais duro, inclusive como resultado de uma ansiedade angustiante e profundamente arraigada da atual “cultura de consciência do delito”, tem sido fonte de problemas intermináveis. Evidentemente, o controle social é fundamental e disto não se tem dúvida. Porém, o mecanismo de controle social formal chamado Direito Penal, o qual tem na pena seu maior símbolo de força, só é admissível em um Estado social e democrático de Direito, sob o manto do princípio da intervenção mínima, o qual se traduz por acudir com a pena aos ataques mais intoleráveis aos bens jurídicos indispensáveis para o desenvolvimento pessoal do indivíduo na sociedade. E isto torna o bem jurídico um referencial indispensável para a legitimidade das consequências jurídicas do delito.156 Neste sentido, abre-se, de imediato, para a argumentação 152 LANDROVE DÍAZ, El nuevo derecho penal, p. 27. ZEDNER, TCrim 2007, p. 262. 154 Por todos, GARLAND, La cultura del control, pp. 252 e 315. 155 GONZÁLEZ COLLANTES, RGDP 2014, p. 5. 156 BUSATO, Reflexões sobre o sistema penal do nosso tempo, pp. 480-481. 153 66 doutrinária a respeito das finalidades de um controle social que possui, na pena, mecanismo tendente à proteção a bens jurídicos, caso em que a intervenção punitiva somente se justificaria em relação a condutas transcendentes para os demais e que afete as esferas de liberdade alheias, como preleciona Callegari.157 Neste sentido, operaria uma dupla influência, tanto direcionada ao legislador no momento de criação da norma penal, que deve tutelar um bem jurídico, quanto ao magistrado, que deve declarar atípica a conduta que não lesiona nem coloca em risco algum bem jurídico. Neste último caso, valoroso recordar que se aplicam os corolários do mesmo princípio, quais sejam, a intervenção mínima e o caráter subsidiário do Direito Penal, já que nem sempre o bem jurídico necessita da proteção via Direito Penal. 4. Por outro lado, a visão funcionalista sistêmica discorda do exposto, por entender que, resumida e superficialmente, a pena deve servir para lograr a estabilidade do ordenamento mediante a busca pela sua fidelidade ao mesmo tempo. São duas posições respeitáveis. Nenhuma teoria pode ser considerada completamente pura e isolada das demais. Na verdade, sem adentrar o mérito por não ser nosso foco, faz-se necessária uma abordagem ainda que breve sobre a discussão neste momento, já que na sequência, passaremos a nos dedicar, com maior profundidade, à medida de segurança, outra consequência jurídica do delito e que, ao lado da pena, compõe os mecanismos de controle social mais importantes do Direito Penal. Isto posto, há que se dizer, ainda, que entendemos que o bem jurídico é referencial, sem que, com isto, a relevância da busca incessante, inclusive através da pena como mecanismo de controle social, pela estabilidade normativa, essencial ao convívio coletivo, seja abandonada. Passemos, rapidamente, a uma breve exposição sobre ambas as posições já que embasadoras de questões estratégicas quanto ao alcance da resposta penal, especialmente diante de indivíduos imputáveis perigosos. 2. A pena: proteção ao bem jurídico ou fonte de estabilidade normativa? 1. O Direito Penal é instrumento funcional de configuração social, mas a serviço, por sua vez, dos próprios valores da sociedade e do modelo de Estado no qual se insere. Se esses 157 CALLEGARI, en: STRECK/CALLEGARI/LUISI/GIACOMOLLI/CANCIO MELIÁ, Direito penal em tempos de crise, p. 146. 67 valores são contestáveis, o será também o Direito Penal em que se manifestem, conforme Mir Puig. Nossa sociedade admite os valores de um Estado Social e Democrático de Direito, tal e como se consagra na Constituição, e que a teoria do Direito Penal deve tratar de explicar suas funções a partir de tais valores. Assim, segundo a concepção de Mir Puig, ainda que consideremos a pena como um castigo, ela deverá servir à função preventiva de defesa de bens jurídicos.158 De qualquer modo, verifica-se que Mir Puig apresenta um posicionamento segundo o funcionalismo valorativo, assim como o de Roxin, ou seja, inclui uma perspectiva crítica sobre o sistema, e não puramente normativo-positivista, como faz Jakobs.159 Jakobs, ao contrário, embora numa concepção de matiz funcionalista, não justifica a pena como proteção ao bem jurídico, que “se ha convertido en un auténtico Proteo, que en las propias manos que creen sujetarlo, se transforma en seguida en algo distinto.”160 O próprio Jakobs qualificou sua concepção como “funcional”, pois nela a prestação do Direito consiste em garantir a identidade normativa, ou seja, a própria constituição da sociedade. Para ele, o critério é justamente considerar a sociedade como sendo um conjunto ou sistema de elementos em equilíbrio e que atribuem internamente ao Direito penal a função de contribuir para a manutenção ou para a reprodução de dita ordem. As teses de corte funcionalista surgiram da tentativa de usar, em análise social, noções desenvolvidas inicialmente nas áreas das ciências biológicas, conforme fizeram os pioneiros Herbert Spencer, na Inglaterra e Durkheim, na França.161 No início da década de 80 surgiram as ideias de autopoiese e de sistemas autorreferenciais, conceitos provenientes da biologia e atribuídos aos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana. Até então o que se tinha era o modelo de Parsons, juntamente com modelos tomados da cibernética e da teoria de sistemas. O ponto em comum das teorías de corte estrutural-funcionalista consiste em que deslocam o centro de atenção para o sistema social. Atualmente, penalistas como Jakobs constroem concepções a partir, não apenas da tradição filosófica que remonta Hegel e, ainda, a uma corrente jurídico-penal de pensamento que recorre quase todo os séculos XIX e XX, como já demonstrado, mas também do pensamento do sociólogo alemão Niklas Luhmann, em sua Teoria dos Sistemas, inspirada nas ideias mencionadas, embora não seja esta última a única nem a principal fonte de inspiração do professor alemão, como declara Penãranda Ramos.162 2. É paradigmática a proposta de Jakobs em tentar construir uma teoria da pena e do delito em termos de funcionalidade para a manutenção do sistema social.163 O funcionalismo equivaleria à orientação a fins sociais, opondo-se a concepções ontologicistas, como era a de Welzel, o qual ambicionava influir na consciência ética e social do cidadão, em sua atitude interna frente ao delito, ampliando, de forma ilegítima no dizer de Mir Puig, o âmbito de 158 MIR PUIG, Derecho penal: PG9, p. 96. MIR PUIG, en: SILVA SÁNCHEZ/SCHÜNEMANN/FIGUEIREDO DIAS (coords.), Fundamentos de un sistema europeo de derecho penal, pp. 28 e ss. 160 JAKOBS, Derecho penal: PG2, pp. 47-48. 161 SHECAIRA, Criminologia, p. 214. 162 PEÑARANDA RAMOS, DOXA 2000, p. 302. 163 Ibidem, p. 291. 159 68 incidência do Direito Penal.164 Igualmente Jakobs, no dizer de Peñaranda Ramos, 165 descarta a ambição de Welzel face a seus elementos psicologicizantes, posto que para ele, a pena deve ser percebida, hoje, como processo de comunicação, como garante da função orientadora das normas jurídicas. Por isto, para Jakobs, nem mesmo a prevenção geral positiva ocupa a posição central quando se discutem as finalidades das penas, como defendia anteriormente; hoje, entende que a pena representa a confirmação da identidade normativa da sociedade, numa visão retributivo-funcional, no dizer de Silva Sánchez.166 Assim, a pena se movimentaria à margem do mundo empírico, não tendo qualquer finalidade, pois ela seria a própria consequência desta finalidade. A pena, ao reafirmar a norma, produz um efeito lógico (não empírico) de integração social, já que a norma é depositária de uma expectativa social. O problema é que tal concepção não explica o porquê da necessidade de infligir dor se a pena serve, apenas, para “comunicar” a norma. E é inegável que a pena causa, efetivamente, um mal ao réu. Assim, Jakobs passou a trabalhar com a ideia de funções manifestas e funções latentes da pena. A primeira envolve aspectos puramente comunicativos, dirigidos às “pessoas dentro do Direito.” As funções latentes se dirigem aos indivíduos “subjacentes”. A dor seria o suporte da comunicação de reafirmação da norma, assim como a lesão de bem jurídico foi o suporte da negação do Direito diante do delito que aconteceu. O indivíduo seria o suporte sensível da pessoa na comunicação racional. Como diz Silva Sánchez,167 pessoa real ou sensível não se constitui apenas de aspectos comunicacionais. Neste “Direito Real”, ao contrário do “Direito Abstrato”, existe o medo pelas vítimas potenciais, e a dor, própria da pena. Hoje, a pena não deveria mais ser vista como um mal, em seu aspecto naturalístico, assim como o delito não importa enquanto lesão ao bem jurídico. A pena representa a obrigatoridade de suportar uma violação de seus direitos ou bens jurídicos. Porém, sempre foi compreendida como sinônimo de imposição de um mal, de dor. Logicamente que hoje, tal “dor” deve ser compreendida em seu sentido comunicativo ou simbólico, como refere GómezJara Díez:168 “el dolor sólo forma parte del concepto de la pena en la medida que la comunicación sobre el dolor –no el dolor en sí– sea considerado, normativamente, como relevante, lo cual, por supuesto, va variando con la evolución de la sociedad.” Talvez isto explique porque a tendência é que a dor física na execução da pena venha desempenhando um papel cada vez menor, inclusive na questão do tratamento do delinqüente sexual, onde 164 MIR PUIG, ADPCP 1986, p. 51. PEÑARANDA RAMOS, DOXA 2000, p. 303. 166 SILVA SÁNCHEZ, InDret 2006, p. 2, por todos, SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Del derecho abstracto al derecho "real", 2006. 167 SILVA SÁNCHEZ, InDret 2006, pp. 3 e ss. 168 GÓMEZ-JARA DÍEZ, InDret 2008, p. 16. 165 69 medicações substituíram muitos dos inconvenientes da castração física, por exemplo, conforme analisaremos em 6, III. Foucault169 já falava na atual forma de privar de todos os direitos sem fazer sofrer, impor penas isentas de dor, uma “penalidade incorpórea” para não mais tocar o corpo do condenado, ou atingir nele algo que não é o corpo, propriamente. A supressão do espetáculo do suplício extingue o domínio sobre o corpo; a supressão do espetáculo corresponde à “anulação da dor”. Na verdade, a dor que acompanha a pena, atualmente, deve ser entendida como significado ou constructo comunicativo apto a contribuir normativamente para a autocompreensão da sociedade moderna ou, melhor dito, de seu próprio sistema jurídico, aumentando as probabilidades de êxito da comunicação, ou seja, possui significado comunicativo distinto desde o ponto de vista normativo quando comparada a outras sanções.170 Mas não se confunda a terminologia “Direito Penal simbólico” com um simbolismo capaz de afastar a real capacidade de fazer sofrer, própria do Direito Penal, em qualquer de suas formas. Que não se duvide da capacidade do Direito Penal impor castigos reais e, com isto, causar danos reais, a fim de obter efeitos bem mais do que simbólicos, como refere Cancio Meliá,171 os fenômenos de caráter simbólico integram o “entramado del Derecho Penal, de manera que en realidad es incorrecto el discurso del Derecho Penal simbólico como fenómeno extraño al Derecho Penal.” No mesmo sentido, Peñaranda Ramos, quando critica o esquecimento de que a pena, na verdade, é um mal que se aplica ao infrator não apenas como reafirmação da vigência da norma, mas também como dever de suportar os custos da infração cometida. Isto é por demais evidente e não pode deixar de ser discutido, segundo o professor espanhol, afinal se apenas a função comunicacional da pena fosse relevante, outras sanções, ao invés das penais, não seriam suficientes?172 3. A pena não deve servir para impressionar o condenado nem a terceiros, mas sim para estimular a confiança nas normas pela coletividade, exercitando ainda a aceitação das consequências nos casos de infração. Neste sentido se vislumbra o caráter de prevenção geral propugnado por Jakobs ao buscar proteger as condições de interação social, bem como de expectativas e de orientações estáveis, as quais, a vida social, não pode prescindir.173 A pena cede, assim, lugar para que a norma siga servindo como modelo de orientação idôneo para os 169 FOUCAULT, Vigiar e punir18, pp. 14-15. GÓMEZ-JARA DÍEZ, InDret 2008, p. 17. 171 CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, p. 414. 172 PEÑARANDA RAMOS, DOXA 2000, pp. 313-314. 173 JAKOBS apud MIR PUIG, ADPCP 1986, p. 54. 170 70 contatos sociais,174 afinal, uma infração normativa é uma desautorização da norma, a qual cede passo a um conflito social na medida em que coloca em dúvida a norma como modelo. A determinação exata de quando concorre uma contradição à norma é problema da teoria da imputação, especialmente no tocante à imputação de comportamento típico e ilícito:175 “La pena debe garantizar la seguridad de las expectativas en los contactos sociales, posibilitando la existencia de la propia sociedad. El modelo no facilita una justificación de por qué ha de procederse así, sino que más bien presupone que el orden social bien vale el coste que se le impone al infractor de la norma.” Por estas razões, Peñaranda Ramos entende que Jakobs apresenta três aspectos importantes em relação à missão da pena, pela ordem: a pena serve para confirmar a confiança na vigência das normas; serve também para orientar o exercício de fidelidade ao Direito e, por fim, mediante a sua execução, exercita a aceitação das suas conseqüências. A pena, assim, dirige-se mais à autoconfirmação da sociedade, do que, até mesmo, ao fortalecimento da fidelidade em relação ao Direito (que hoje Jakobs já reconhece como efeito desejável, da pena, porém, não sendo sua missão primordial).176 É que a pena, como símbolo mais importante da vigência do ordenamento, significa, dentro de um sistema jurídico que é autorreferencial, a confirmação daquele ordenamento pela sociedade e a negação de configurações alternativas. Como diz Mir Puig referindo-se ao posicionamento de Jakobs, a pena seria positiva diante da negatividade do delito, na medida em que este supõe a infração da norma, gerando a defraudação de expectativas e conflito social, e a pena serviria para confirmar a vigência do ordenamento, negando a infração.177 Desse modo, se exercitaria a confiança da coletividade na norma e na aceitação às consequências no caso de infração. Neste sentido é que se fala de uma prevenção geral positiva ou estabilizadora ou fundamentadora. No entanto, a expressão “prevenção geral” não significa capacidade de influenciar a muitas pessoas, nem que se pretenda a intimidação geral. Aliás, sobre a teoria da intimidação, basta recordar que a mera inocuização ou mesmo a simples exclusão do sujeito do convívio social não são autênticas e genuínas finalidades almejadas pela pena nem pela medida. Tampouco há dados a respeito de quantos delitos foram evitados graças à aplicação de uma pena sobre um indivíduo. Aliás, tais “finalidades”, num Estado Democrático de Direito, poderiam ser questionadas, não cabendo a instrumentalização do indivíduo para fins de exemplaridade diante dos demais. Certamente se 174 JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 14. Ibidem, p. 13. 176 PEÑARANDA RAMOS, DOXA 2000, p. 303. 177 JAKOBS apud MIR PUIG, ADPCP 1986, p. 53. 175 71 compreende o importante efeito da intimidação geral, a contrapor sentimentos de insegurança e de impunidade, mas não pode haver o abandono da finalidade de reinserção social como primeiro e último desiderato constitucional. Jakobs, inclusive, refere que o modelo de intimidação não é apto como teoria da pena178, pois intimidar aos outros não constitui responsabilidade do condenado.179 O que pretende Jakobs é garantir a configuração da comunicação sobre o efeito da vigência da norma de forma geral. 4. Feijoo Sánchez180 comenta a posição de Jakobs referindo-a como sendo uma “abordagem bidimensional da pena”. É que, por um lado, Jakobs acabou retornando à idéia da prevenção geral positiva como fidelidade ao Direito; por outro, conferiu certo destaque funcional ao caráter retributivo da pena, como contradição comunicativa do fato delitivo, não ficando claro qual dos dois fatores desempenha protagonismo. O problema do entendimento de Jakobs, segundo Feijoo Sánchez, é que se o mesmo for verdadeiro, nas sociedades onde a tendência dominante seja a infidelidade, o recurso à dor e ao sofrimento deve ser ainda maior a fim de que possam produzir fidelidade normativa. Com isso, ficaria difícil estabelecer uma relação proporcional entre a gravidade do fato em si (lesividade social) e a pena correspondente a este mesmo fato. A respeito: 181 “[...] La teoría de la prevención general positiva de Jakobs acaba incurriendo en el mismo defecto de todas las teorías preventivo-instrumentales de la prevención general: en una sociedad de ciudadanos fácilmente corrompibles, la pena tendría que ser muy superior a la de una sociedad en la que existen de forma dominante ciudadanos que no se dejan corromper; de esta manera se evidencia como la pena pierde la necesaria proporción comunicativa con el hecho.” E conclui o professor madrilenho182 que, por isso, a gravidade da pena não deve estar orientada ao alcance da fidelidade normativa, mas a responder adequadamente à lesividade social causada pelo fato delitivo, o qual depende da gravidade do mesmo para a ordem social: “...la pena no puede más que restablecer o reparar el daño a la juridicidad producido por el hecho delictivo.” Feijoo Sánchez apresenta uma possível alternativa para além da perspectiva retributivista e preventivista tradicional (geral e especial), qual seja, a ideia de uma prevenção da “desintegração social”. Trata-se aqui de influenciar em dinâmicas sociais, e não no comportamento individual das pessoas, permitindo ressaltar como elemento essencial o 178 JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 28. JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 54. 180 FEIJOO SÁNCHEZ en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 145-149. 181 Ibidem, pp. 150-153. 182 Ibidem, pp. 155-156. 179 72 caráter simbólico, expressivo ou comunicativo da pena. Assim, o único objetivo da pena é que siga existindo certa ordem social e normativa, em outras palavras, a estabilização de normas essenciais de convivência. Deste modo, se restabelece a confiança na vigência das normas penais, como regras básicas de convivência social. Entende o professor madrilenho que num Estado de Direito tal fidelidade normativa somente pode ser compreendida como um reforço da confiança dos cidadãos na vigência do ordenamento. Refere Feijoo Sánchez183 que os delinquentes podem ser responsabilizados pela erosão da vigência da norma, mas não pelas disposições internas dos outros membros da sociedade. Assim, somente se pode impor a pena necessária para manter, comunicativamente, a vigência da norma, não para neutralizar as tendências dos demais. Acaba criticando a posição de Jakobs no sentido de que este ainda não superou tais inconvenientes, tendo permanecido a ideia de sofrimento no lugar central: “por esta razón los aspectos comunicativos tienen que ver más con su concepto funcional de retribución, mientras la prevención general positiva como prevención de la erosión general de la norma solo se puede conseguir, según Jakobs, instrumentalmente mediante el dolor que inflige la pena.” Importa apenas observar ainda, que é fundamental reforçar, comunicativamente, a vigência da norma porque a sociedade, mais do que severidade penal, quer eficácia no sistema de Justiça Penal, e a revolta é dirigida muito mais contra a impunidade do que em relação à duração das penas.184 E quanto aos que entendem que a concepção de Jakobs é meramente formalista, rebate Gómez-Jara Díez185 dizendo que a confirmação da vigência de um ordenamento jurídico confirma a pessoa e a sociedade na qual ela se insere e se desenvolve, conferindo liberdade e igualdade normativas, não fechando qualquer possibilidade de discussão, inclusive, quanto ao questionamento da vigência do ordenamento jurídico: “En efecto, a este respecto conviene recordar que, desde la perspectiva construtivista, la persona surge a partir de la comunicación normativa y que, por lo tanto, la confirmación de la vigencia normativa es la confirmación de la persona y de la sociedad en la que se desarrolla. Por tanto se trata de la confirmación de la identidad de una sociedad que afirma –scil., atribuye– la igualdad (normativa) entre las personas y su libertad (normativa). Sin embargo, podría señalarse que, en caso de producirse una sociedad que no atribuyera dichas cualidades a las personas, la pena seguiría confirmando precisamente dicha idiosincrasia.” 183 FEIJOO SÁNCHEZ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 150-153. 184 POZUELO PÉREZ, La política criminal mediática, p. 93. 185 GÓMEZ-JARA DÍEZ, en: idem, Teoría de sistemas y derecho penal, p. 465. 73 Segundo o professor espanhol,186 um sistema jurídico-penal democrático é um sistema jurídico-penal legítimo, até porque às pessoas são conferidos mecanismos próprios para o questionamento da vigência do ordenamento. Assim, a igualdade e a liberdade estão situadas dentro do plano da comunicação, ou seja, no plano social, posto que a pessoa surge graças à comunicação, bem como sua igualdade e liberdade se constituem a partir da comunicação jurídica. A confirmação do Direito é a confirmação da igualdade e da liberdade, e habilita o questionamento da vigência do ordenamento jurídico. Este é um Direito Penal moderno ao qual se atribui liberdade normativa, igualdade normativa e capacidade de questionamento normativo, e proporciona uma fundamentação com relação às razões do Direito Penal de um sistema democrático ser também um Direito Penal legítimo. Jakobs e Reyna Alfaro187 referem que o posicionamento funcionalista sistêmico vem sendo mal compreendido; declaram que o Direito Penal pode reforçar certa moral existente e reinante, mas não é seu instrumento, nem deve, a ela, servir. Assim, o raciocínio voltado à temática da delinquência sexual é bastante importante, posto que questões morais como a homossexualidade, a prostituição, o incesto, por exemplo, somente devem ser criminalizados se lesarem ou colocarem em risco de lesão o bem jurídico, pois o Direito Penal não pode servir como instrumento de autopromoção estatal, sob pena de um “Estado coactivo de terror”. Na verdade, o Direito Penal é e deve ser o cartão de visitas, altamente expressivo, da sociedade, autêntico modelo essencialmente descritivo.188 III O conceito de crime sexual grave para fins desta investigação A. Antecedentes legais 1. Apesar das modificações legais ocorridas nas recentes décadas, e já são muitas, era necessário adotar um ordenamento jurídico em especial, como ponto de partida, já que nesta investigação optou-se por trabalhar com modelos comparados. Neste sentido, apesar da já vista contextualização do tema na sociedade contemporânea, percebe-se que, igualmente na Espanha, o endurecimento das penas é uma constante, havendo, ainda, a ampliação do 186 GÓMEZ-JARA DÍEZ, en: idem, Teoría de sistemas y derecho penal, p. 466. JAKOBS/REYNA ALFARO, CPC 2003, pp. 6 e ss. 188 JAKOBS, en: idem, Bases para una teoría funcional del derecho penal, p. 23. PEÑARANDA RAMOS/ SUÁREZ GONZÁLEZ/CANCIO MELIÁ, Um novo sistema do direito penal. 187 74 catálogo quanto aos delitos sexuais, chocando-se com o princípio da intervenção mínima, de acordo com Cancio Meliá.189 De todo o modo, o modelo espanhol foi por nós escolhido tendo em vista, especialmente, certa revolução operada pela sociedade de forma muito rápida, já que há não muito tempo abandonou-se uma ditadura de longa data (em 1963) e quase que imediatamente, passou-se a um novo modelo jurídico, cultural e social, o qual, logicamente, está em permanente evolução, porém merece esta consideração e homenagem. Veja-se, por exemplo, a desaparição, na Espanha, da atenuante para o chamado uxoricídio, a qual podia ser aplicada ao varão quando este matasse a esposa que praticou adultério.190 O “amancebamiento ou escándalo público” também desapareceram, deixando-se para trás uma “moral sexual coletiva assimétrica”, com muitos prejuízos para a autodeterminação da mulher neste contexto, o qual evoluiu muito rapidamente, desde um sistema patriarcal, que foi derrubado pelo Código Penal de 1995, até o presente momento, com uma visão mais igualitária entre homens e mulheres, porém com sinais fortes de uma neocriminalização remoralizante, conforme se pode verificar pelas reformas de 1999, 2003, 2010 e até mesmo, 2015.191 Conforme Cancio Meliá,192 analisando-se o cenário ocidental, era a primeira vez, provavelmente, desde a revolução neolítica, que a mulher emergia em um novo modelo de relações, também no campo sexual, em igualdade de direitos ao homem. Apesar da grande mudança histórica, o mesmo não ocorreu no plano das relações sociais empíricas, onde até hoje, vige o modelo assimétrico, a julgar-se pelas estatísticas que comprovam o grande índice de crimes sexuais praticados por homens contra vítimas mulheres, conforme será visto em 3, II, C, 4. De qualquer modo, no âmbito criminal, importa perceber que já não há diferenciações, em razão de gênero, nas tipificações penais. Foi, assim, o início da mudança na estrutura social patriarcal que colocava as mulheres como objetos ou propriedade de seus pais e maridos. Ademais, o modelo de liberdade vigiada chama muito nossa atenção e a ele voltaremos nossas análises finais do trabalho, no capítulo sexto. Assim, mais do que justa e necessária a abordagem a partir do ordenamento espanhol. O próprio papel da mulher, principal vítima de delitos sexuais conforme ainda apontam as estatísticas, tem se revelado de uma mudança ímpar, desde o movimento feminista e a chamada “revolução sexual” com a descoberta de métodos contraceptivos como a pílula anticoncepcional, até os dias atuais, com valorosas conquistas, 189 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, pp. 804-805. CANCIO MELIÁ, en: FERNÁNDEZ TERUELO/GONZÁLEZ TASCÓN/VILLA SIEIRO (coords.), Estudios penales en homenaje al profesor Rodrigo Fabio Suárez Montes, p. 122. 191 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, 2015. (en prensa). n. 9213. 192 CANCIO MELIÁ, en: DEMETRIO CRESPO, (dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.), Neurociencias y derecho penal, pp. 539-541. 190 75 inclusive legais, em termos protetivos, por exemplo, apesar das estatísticas criminais ainda apontarem altos índices de violência de gênero e sexual contra as mesmas. Veja-se que já na década de 80, existia um consenso doutrinário para abandonar a ideia da chamada “honestidade sexual” como bem jurídico, e passou-se a tutelar a liberdade individual. Desejava-se, em outras palavras, uma laicização nesta matéria, à luz dos princípios reitores da Constituição de 1978, em detrimento dos conceitos de moral sexual dominante que tutelavam relações e expectativas familiares, matrimoniais, enfim.193 Este processo, realmente, teve início com a mudança do CP de 1973, através da reforma de 21 de junho de 1989, substituindo-se a rubrica “delitos contra la honestidad” por “delitos contra la libertad sexual”. Em 1995, o Código Penal expressamente reconheceu, na Exposição de Motivos, a liberdade sexual como bem jurídico e expressou o conceito de “indenidade sexual” como sendo “el derecho a no verse involucrado en un contexto sexual sin un consentimiento validamente prestado, sino también a la formación y desarrollo de la personalidad y sexualidad del menor.”194 Em 1999, a Lei Orgânica n. 11, de 30 de abril, substituiu a rubrica do Título VIII por “delitos contra la libertad e indemnidad sexuales”. Assim, justificou-se a ampliação ou criação de alguns tipos delitivos como abusos sexuais, exibicionismo obsceno, difusão de pornografia e corrupção de menores ou incapazes. O recente Código Penal de 2015, em sua Exposição de Motivos, confirma o acerto da decisão pelo abandono da tutela da moralidade sexual e reafirma seu compromisso com a proteção do bem jurídico secularizado: “Bajo la tutela de la honestidad de la mujer se escondía uma intolerable situación de agravio, que la regulación que se propone elimina totalmente. Podrá sorprender la novedad de las técnicas punitivas utilizadas; pero en este caso, alejarse de la tradición parece un acierto.”195 Logicamente que não se fala de uma liberdade sexual nestes casos, em relação a pessoas que carecem desta liberdade, já que carecem de autonomia para determinar seu comportamento em âmbito sexual. A liberdade sexual corresponde àquela vertente da liberdade humana que lhe permite decidir sem se sujeitar a condicionantes externos, como, quando e com quem prefere manter relações sexuais, no dizer de García Rivas196. Assim, no caso de crianças e adolescentes, não se pretende proteger uma liberdade sexual que ainda não existe, mas sua futura liberdade, a normal evolução e desenvolvimento de sua personalidade 193 MORALES PRATS/GARCÍA ALBERO, en: QUINTERO OLIVARES (dir.)/MORALES PRATS (coord.), Comentarios a la parte especial del derecho penal9, p. 309. 194 MONGE FERNÁNDEZ, en: POLAINO NAVARRETE (dir.), Lecciones de derecho penal – PE, Tomo 1. pp. 185 e seguintes. 195 EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA LEI ORGANICA 1/2015. ESPANA, CP: actualizado con las reformas de 2015. 196 GARCÍA RIVAS, en: ÁLVAREZ GARCÍA, Derecho penal español: PE, p. 586. 76 para que, quando adulto, decida livremente sobre sua liberdade sexual. No caso do incapaz ou pessoa com deficiência mental relevante que impeça o discernimento para a prática de atos sexuais, o objetivo é evitar que seja utilizado como objeto sexual de terceiros que, mediante abuso, visem à satisfação de seus desejos sexuais próprios. Como referem Morales Prats y García Albero197 se trata, em geral, de um objeto de tutela inserido na esfera de proteção pessoal, cujo conteúdo essencial são as faculdades de determinação sexual “actual o in fieri (por ejemplo, con relación a menores) como valor en suma de una sociedad pluralista y tolerante.” Por tudo isso, diz-se que, nestes casos, os tipos penais orientam-se à preservação das condições básicas para que no futuro, tais indivíduos possam alcançar o livre desenvolvimento da sua personalidade na esfera sexual, preservando-os de traumas impostos por terceiros. Referem, ainda, Morales Prats e García Albero, a proteção de uma “liberdade sexual potencial o in fieri”, em outras palavras, é o bem estar psíquico enquanto condição necessária para o adequado e normal processo de formação sexual, razão pela qual é indiferente, para efeitos penais, o consentimento eventualmente prestado por tais vítimas neste tipo de conduta (797/2007, de 1 de octubre [La Ley 165810/2007]).198 Tanto a liberdade quanto à indenidade sexuais devem ser entendidas, pois, como bens jurídicos autônomos, mas que devem ser situados num contexto valorativo de regras que disciplinem o comportamento sexual das pessoas em suas relações com outras pessoas. Tal contexto valorativo se denominaria por “moral sexual”199 no sentido de ser a parte da ordem moral social que agrupa as manifestações do instinto sexual das pessoas dentro de alguns limites. Assim, tal “moral sexual” não deve ser considerada como bem jurídico tutelado, sob pena de se arriscar um Estado pluralista e democrático à arbitrariedade e ao totalitarismo. Porém, a ideia da “moral sexual” deverá ser considerada como componente normativo-cultural, situando-o num contexto de Estado de Direito democrático. Extremamente relevante foi a histórica conquista que separou a antiga moral sexual da concepção atual de dignidade sexual como bens jurídicos protegidos, em que pesem alguns delitos ainda conterem resquícios do conceito passado. Igualmente, moral não se confunde com culpabilidade ou censurabilidade.200 2. De todos os modos, era importante mencionar a inovação ocorrida em relação à discussão do bem jurídico tutelado neste tipo de delinquência, em que pese haver divergência 197 MORALES PRATS/GARCÍA ALBERO, en: QUINTERO OLIVARES (dir.)/MORALES PRATS (coord.), Comentarios a la parte especial del derecho penal9, pp. 309-310. 198 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, pp. 852-853. 199 MUÑOZ CONDE, PE19, p. 234. 200 KREBS, Teoria jurídica do delito, pp. 35-36. 77 quanto à real importância da distinção entre liberdade e indenidade sexual, razão pela qual não iremos aprofundar a temática. Aliás, Cancio Meliá até mesmo critica esta distinção feita no âmbito político, denominando o bem jurídico, nestas hipóteses, como “fragmentado”, pois como refere,201 a discussão político-criminal deveria estar mais centrada nas condutas que deveriam, realmente, ser inseridas, de modo legítimo, no âmbito penal, e para tanto, o modelo unitário ou fragmentado de bem jurídico não é decisivo. Tal decisão, por um âmbito de criminalização mais ou menos extenso, não tem maior importância nesta questão: o conceito fragmentado de bem jurídico, por si só, não representa qualquer evolução político-criminal, restando, restando assim, um panorama desolador, de caráter propagandístico.202 Dito isto, cabe então referir que apesar de todo o contexto de forte estímulo à expansão da criação de figuras típicas voltadas à delinquência sexual, neste trabalho buscou-se utilizar, como ponto de partida, a idéia dos crimes sexuais graves, eis que é a partir deles que são idealizadas políticas criminais mais duras e polêmicas como respostas penais sancionadoras, as quais serão abordadas mais adiante. B. Critérios adotados 1. Para iniciar, convém explicitar que a conceituação de “grave”, neste trabalho, diz respeito a delitos sexuais praticados, tanto com violência ou intimidação, quanto mediante abuso de crianças, adolescentes, pessoas com deficiência mental que resultem impedidas para a vida sexual, ou que estejam, permanente ou temporariamente, incapazes de oferecer resistência, todas estas que denominaremos, doravante, como “vulneráveis”, embora para a sociedade em geral e para segmentos sensacionalistas midiáticos muitas outras condutas sexuais coubessem sob o mesmo rótulo. Aliás, em tempos de carência de racionalidade, prolifera o Direito Penal simbólico, segundo o qual o legislador adota posturas próximas ao populismo,203 como já demonstrado. Neste sentido, alguns delitos que, para o conceito deste trabalho, não são considerados graves, são assim rotulados para fins de especulação pela imprensa ou mesmo ensejando a aplicação de legislações populistas ou meramente demagógicas, temas de outros apartados, como 2, II, B. Não é por outro motivo que em alguns estados norte-americanos, por exemplo, um adolescente que urinar em local aberto ao público poderá ser etiquetado como delinquente sexual e assim ser condenado a ser 201 CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, pp. 290-291. CANCIO MELIÁ, en: LL 2013, p. 7. 203 SÁNCHEZ LÁZARO, InDret 2008, p. 16. 202 78 catalogado, por muitos anos, em sites oficiais de registros de criminosos sexuais, abertos ao público. Vários critérios podem ser adotados no momento de definir o que seja delito sexual grave. Para esta investigação, o conceito de gravidade não será apenas aquele conferido pela lei, no caso, pelo Código Penal, mas fundamentalmente, levar-se-á em conta o critério do bem jurídico protegido, como forma de delimitação da nossa escolha, quanto à agressão ou risco de agressão, diretamente à liberdade sexual ou mesmo à indenidade sexual da vítima, em que pese, em alguns casos, a pena prevista restar fora dos padrões que o próprio CP considera como graves. É que embora o Código Penal apresente alguns conceitos a partir dos quais podemos inferir o que seja considerado como delito sexual grave, é certo que tais conceitos, por vezes, revelam-se insuficientes desde uma perspectiva mais abrangente, que envolve aspectos culturais, sociais, sanitários, de políticas públicas, enfim, para lidar com esta temática. Mas como o critério legal é insuficiente, já que nem sempre a pena apresentada se coaduna com a gravidade que vislumbramos no caso concreto, desenvolvemos alguns critérios específicos e objetivos para tal definição. 2. Optou-se por fazer uma leitura a partir da ideia de proteção a bens jurídicos, mas não se reduziu o debate a isto, pois se analisou cada tipo penal com considerações que vão além, delimitando, conforme alguns critérios objetivamente adotados quais aqueles que julgamos como sendo realmente graves, independentemente da previsão de pena que receberam do legislador. Como refere Corcoy Bidasolo,204 a concepção de bem jurídico, por si mesma, não soluciona os problemas do Direito Penal, embora seja bastante relevante, como dissemos anteriormente. Porém há que se avançar, como diz a professora espanhola, no sentido de retomar uma série de limites que possam, a par com o bem jurídico tutelado, restringir a intervenção penal de modo coerente com o Estado Democrático de Direito, estabelecendo-se uma série de delimitadores como os da subsidiariedade, ultima ratio e fragmentariedade, mais necessários do que nunca. Assim, para aperfeiçoar-se o conceito, não apenas se parte da ideia de bem jurídico (liberdade ou indenidade sexuais), mas agregam-se, ainda, outros critérios, como a presença da violência ou intimidação, ou então, de vulnerabilidade da vítima. Ressalte-se que o conceito de violência compreende o exercício da força física; a intimidação é a ameaça de um mal grave e imediato, idôneo para dobrar a vontade de uma pessoa. Não basta a intimidação em si mesma, mas exige-se que seja 204 CORCOY BIDASOLO, en: MIR PUIG/CORCOY BIDASOLO/HORTAL IBARRA (coords.). Constitución y sistema penal, p. 160. 79 provocada pelo sujeito ativo, para os fins de tipificação penal. Já a resistência da vítima não é mais exigida, como antigamente, quando havia que ser provada a sua “honestidade”. Hoje, evidentemente, basta a vontade contrária do sujeito passivo, já que a sua resistência não é um elemento do tipo.205 Porém, trata-se de uma vontade ou consentimento que deve existir do início ao final do ato sexual, de modo contínuo, sob pena de caracterizar o crime. Atentar contra a liberdade sexual de alguém não significa, necessariamente, agredir sexualmente a vítima. Sentença do Tribunal Supremo (Sala de lo Penal,206 ponente Joaquín Gimenez García, em 16 de maio de 2007) declarou que toda a relação sexual consentida é um continuum desde o princípio até o final, razão pela qual a vontade comum, em plano de igualdade, de ambas as partes, deve ser mantida. No caso concreto, diante da mudança de comportamento do acusado, que ficou agressivo, a vítima resolveu fugir, assustada, momento em que o agora agressor a puxou violentamente e introduziu os dedos na vagina da vítima à força, não havendo, pois vestígios de lesões na área genital da vítima. Mesmo assim, foi mantida a condenação do agressor face ao artigo 178, CP, em seu tipo básico de agressões sexuais. 3. Não se compreende, neste nosso conceito proposto, que qualquer conduta de cunho sexual possa ser considerada apta a lesionar ou a colocar em risco a dignidade sexual, mas tão somente aquelas que, concretamente, possam produzir este tipo de perigo, no mínimo. Por esta razão delitos previstos pelo Código Penal como, por exemplo, assédio sexual ou mesmo a difusão de material pornográfico infantil não correspondem aos critérios propostos, embora mereçam ser tipificados penalmente. Assim, já é possível perceber que a mera repercussão social, conforme já trabalhado diante do Direito Penal puramente simbólico, não nos preocupa neste enfoque. Por perigo de lesão ao bem jurídico compreenda-se aqui a possibilidade real de consequências à saúde, física e psíquica, da vítima, o que é bastante relevante, já sendo objeto de discussões muito sérias nos tribunais. Sobre as consequências para a vítima, veja-se, por exemplo, a questão do dano psicológico,207 o qual se refere, por um lado, às lesões psíquicas agudas produzidas por um delito violento que, em alguns casos, podem ser mitigadas com o tempo, apoio social ou tratamento psicológico adequado, e por outro, às sequelas emocionais que persistem de forma crônica como consequência do evento sofrido e que interferem, negativamente, na vida cotidiana da vítima. Os danos psicológicos também alcançam as vítimas indiretas, ou seja, familiares e amigos da vítima direta, os quais, muitas vezes, 205 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, pp. 808-809. STS 3436/2007. Sentencia Tribunal Supremo. Sala de lo Penal. Ponente: Joaquín Gimenez García. Madrid, 16 de maio de 2007. 207 ECHEBURÚA/CORRAL/AMOR, Psicothema 2002, p. 139. 206 80 precisam readaptar-se a uma nova vida também. Em alguns casos é diagnosticado o transtorno de estresse pós-traumático, o qual, pela relevância que possui, já conta até mesmo com Escala de Gravidade de Sintomas208, com dezessete itens, baseados no DSM, a fim de mensurar o quadro clínico e assim, melhorar indicações de tratamento para vítimas de transtorno de estresse pós-traumático. Este tipo de crime gera consequências muito peculiares para a mulher, especialmente, as quais incluem possibilidade de gravidez, risco de contágio por doenças sexualmente transmissíveis como a AIDS, além do constrangimento diante da sociedade, nos processos de vitimização secundário e terciário, eis que os órgãos públicos nem sempre lhe alcançam o melhor atendimento. Faz-se necessário, por exemplo, e com a máxima brevidade possível, o atendimento policial, o atendimento de saúde (incluindo a profilaxia, o controle das DSTs/AIDS, com o monitoramento da toxicidade dos antirretrovirais, a imunização da hepatite B e sorologias para hepatites B, C e sífilis, afora a prevenção da gravidez indesejada e do aborto legalmente autorizado. Afora isto, e como consequências do transtorno de estresse pós-traumático, verificam-se, na fase aguda, características como: “[...] desorganização, emoções variadas como angústia, medo, ansiedade, degradação, humilhação, vergonha, culpa, autocensura e, até mesmo, uma forma mascarada de domínio e controle da situação, que não reflete o sofrimento pelo qual está passando. Já numa fase intermediária, a mulher costuma negar o estupro e retornar às atividades habituais. Por último, a terceira fase, quando então, nos próximos meses ou até mesmo, anos, a mulher pode desenvolver problemas vaginais ou distúrbios menstruais, depressão, fobias, repulsa e aversão pelo sexo masculino, diminuição ou perda da facilidade orgástica.”209 Existe, ainda, como consequência, a possibilidade do consumo de álcool e outras drogas, efeitos que podem ser duradouros podendo chegar a muitos anos. Podem ocorrer problemas dermatológicos, de aprendizagem ou de comportamento, afora ganhos de peso, desleixo pessoal, baixa autoestima sentindo-se suja, enfim, uma sensação de solidão, vergonha e culpa que, não raro, leva ao desejo de ser invisível, de morrer. 210 Homicídios, suicídios, transmissão de HIV podendo levar à morte, são consequências letais da epidemia. Esta forma de violência sexual contra a mulher, especialmente o estupro, atinge também os familiares desta vítima, comprometendo o tecido social. Em que pese os homens poderem sofrer sequelas graves de violência sexual, não há indicação que seja algo similar ao apresentado. Isto se deve ao fato de que a violência sexual contra a mulher retrata a violência de gênero, indissociavelmente ligada à posição que é dada a elas ao longo da história, o que 208 ECHEBURÚA/CORRAL/JAVIER AMOR/ZUBIZARRETA/SARASUA, AMC 1997, pp. 1-24. SUDÁRIO/ALMEIDA/JORGE, P & S 2005, pp. 80-85. Neste sentido, pp. 42 e ss. 210 SOUZA/DREZETT/MEIRELLES/RAMOS, RC 2013, pp. 98-103. 209 81 interfere na compreensão da dinâmica psíquica que o estupro envolve, como suas marcas e consequências psicológicas.211 Ainda, trata-se de consequência a um tipo especial de violência que proporciona efeitos mais agudos e persistentes no tempo.212 Atualmente, já se discute nos tribunais este tipo de consequência consubstanciada no estresse pós-traumático derivado da violência sexual. Decisão emblemática envolveu sérios debates pelo irresignado Ministério Público, contra sentença judicial proferida pela Sección Tercera de la Audiencia Provincial de Zaragoza, n. 95/2006, de 18 de dezembro daquele ano. A situação envolvia o caso de uma mulher que era vítima de agressões físicas, psicológicas e sexuais por parte de seu marido há muitos anos, bem como estava cansada de ver seus filhos serem maltratados e agredidos pelo pai. Certa ocasião, ao chegar em casa, o marido exigiu que a mesma tivesse relação sexual com ele, havendo penetração bucal e anal. A mesma, com medo das agressões, consentiu, pois sabia que após o ato, ele dormiria e não a agrediria. No entanto, o homem, ao despertar, a agrediu e a humilhou diante dos filhos, os quais foram também espancados. Desesperada, a mulher procurou ajuda e o denunciou, finalmente. O Juiz considerou a inexistência de delito sexual em razão do consentimento. O Ministério Público se insurgiu, alegando que aquele fora viciado. O Tribunal Supremo, em decisão histórica, referiu que não se pode generalizar ou banalizar o ato de consentir, que para existir, pressupõe igualdade e respeito entre as partes para o ato sexual; no caso concreto, era evidente a situação de domínio e superioridade do homem ao lado da submissão e sentimento de inferioridade da mulher, tendo concluído que, em caso de intimidação não se fala em consentimento, sendo necessário ser rigoroso nesta análise.213 Já é, também, pauta de discussão pelos tribunais a possibilidade de cumulatividade entre o delito sexual cometido e o delito de lesões psíquicas, como na hipótese do estresse pós-traumático. O Tribunal Supremo,214 no entanto, através de sua Sala Segunda, não admitiu a tese como regra, pois considera as lesões psíquicas inerentes ao tipo penal, sendo possível, no entanto, indenização a título de responsabilidade civil. Já em outra oportunidade, no caso de um homicídio em que o delinquente obrigou a genitora a presenciar o assassinato brutal do próprio filho, o Tribunal entendeu pelo concurso de crimes com as lesões psíquicas. Neste diapasão, a doutrina também se manifesta. Veja-se que, segundo Colina Oquendo, a consumação do crime em tela ocorre com as lesões produzidas pela violência abarcadas 211 SOUZA/DREZETT/MEIRELLES/RAMOS, RC 2013, pp. 98-103. HERRERO ALONSO/GARRIDO MARTÍN, Psicothema 2014 p. 113. 213 O caso é relatado em DOLZ LAGO, LL 2008, pp. 1-10. 214 Tribunal Supremo 7 de novembro de 2003. Vide também, a respeito, CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 806. 212 82 dentro do conteúdo de ilicitude próprio do ‘acceso carnal’ violento, como por exemplo, hematomas ou lesões próprias na área genital, não ocasionadas deliberadamente. Em havendo lesões deliberadas e adicionais como forma de vencer a resistência da vítima, mas com entidade substancial autônoma, procede aplicar o disposto pelo artigo 77, CP, sancionando-se a ambas em separado, já que o desvalor do resultado produzido supera o desvalor do delito mais grave: “el delito de violación requiere el empleo de violencia, pero no exige la causación de lesiones corporales, de modo que el ataque a la salud y a la integridad corporal protegidos por el tipo de lesiones no es elemento indispensable del delito contra la libertad sexual”.215 Mesmo diante da primeira hipótese referida, o entendimento do Tribunal no sentido de que as lesões psíquicas são inerentes ao crime sexual apenas reforça nosso posicionamento no sentido de realçar o conceito de “gravidade” de determinados delitos sexuais face à importância das futuras sequelas para a vítima. 4. Por último, mas bastante relevante, é que para a caracterização do que seja crime sexual grave neste trabalho, além do ponto de partida como sendo o bem jurídico tutelado, liberdade ou indenidade sexuais, direta e concretamente expostos à lesão ou perigo de lesão, e das condições ou gravidade para a vítima, já referidas no item anterior, consideraremos, também a gravidade do tratamento jurídico-penal a ser imposto ao autor do delito, uma vez que o rótulo poderá ensejar tratamento jurídico-penal diverso do comum, justificando, em certos casos, portanto, o emprego de algumas penas e medidas diferenciadas que serão discutidas com maior profundidade nos capítulos quarto, quinto e sexto desta investigação, ocupando a temática principal deste trabalho. Assim, e para encerrar, o fato de não elencarmos todos os delitos contra a dignidade sexual como graves não significa qualquer desprezo, mas tão somente, que de todos os previstos, alguns merecem consideração de especial gravidade, o que acarreta, em consequência, tratamento jurídico-penal diferenciado. Todos atingem, de alguma forma, direta ou indiretamente, a dignidade sexual e apresentam dignidade penal, ou seja, merecem censura penal. Entretanto, há que se diferenciar entre condutas mais ou menos gravosas, com todo o respeito que vítimas e sociedade merecem, mas com toda a cautela que a transmissão midiática enseja e que o pânico coletivo deve ser tratado, em nome dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização da pena, pois a classificação adequada acarretará maior ou menor extensão quanto à gravidade da pena e de sua execução ao infrator. O texto legal, neste sentido, não satisfaz, pois como será 215 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 793. 83 apresentado, não permite melhores distinções pela gravidade do delito, já que a diferenciação pelo critério da pena acaba sendo falha e insuficiente. É por tais razões que não se deveria tratar, de forma homogênea, a todos os taxados como delinquentes sexuais, posto que, embora um exibicionista possa tender à reincidência, seu delito de escassa lesividade não poderia ser considerado do mesmo modo que um estuprador ou abusador sexual. Daí que, desde já se adianta, medidas inocuizadoras que podem, eventualmente, justificar-se em determinados casos, jamais poderiam ser estendidas a todos. Do mesmo modo, ocorre com qualquer outra medida, como a própria liberdade vigiada espanhola, equivocadamente prevista em bloco para todos os delitos sexuais. Resumindo, pois, temos que a projeção de futuro, tanto da vítima, quando do autor do delito sexual, são definitivos ante à rotulação do delito como de especial gravidade, para os efeitos do presente trabalho. 5. Elencando, pois, objetivamente, segundo a concepção adotada neste trabalho, são considerados graves os delitos previstos pelos seguintes artigos do CP: quanto às agressões sexuais, artigos 178 e 179, podendo haver a combinação com o artigo 180; quanto aos abusos sexuais, o artigo 181.1 com o conceito referido pelo artigo 181.2; quanto aos abusos sexuais a menores de dezesseis anos de idade (adaptação realizada pela LO 1/2015, eis que anteriormente o limite etário era de treze anos de idade), o artigo 183 todo, com exceção do artigo 183 ter., posto que versa sobre aproximação através da internet ou outros meios de comunicação; quanto aos delitos envolvendo prostituição e exploração sexual, a partir da LO 1/2015 conceituada, o artigo 187 desde que haja violência ou intimidação, o artigo 188, diante de vítimas menores de idade e demais vulneráveis. Ainda, são graves os casos previstos pelos artigos 189.1 189.2, 189.3 e 189.6 Passamos a justificar nosso posicionamento. C. Análise dos delitos sexuais em espécie 1. Agressões sexuais, artigos 178, 179 e 180, todos do CP 1. As agressões sexuais previstas pelos artigos 178, 179 e 180 são todas revestidas de violência ou intimidação, razão pela qual, desde logo, consideradas graves a nosso juízo. Entende-se violência como o emprego de força física, e a intimidação, como a ameaça de mal 84 grave e imediato, idônea para submeter a vontade de uma pessoa.216 Cabem, agora, algumas considerações sobre tais tipos penais que versam sobre a agressão sexual mediante violência. Referem os citados artigos, começando pelo 178, CP: “El que atentare contra la libertad sexual de otra persona, utilizando violencia o intimidación, será castigado como responsable de agresión sexual con la pena de prisión de uno a cinco años.” Diz o artigo 179: Cuando la agresión sexual consista en acceso carnal por vía vaginal, anal o bucal, o introducción de miembros corporales u objetos por alguna de las dos primeras vías, el responsable será castigado como reo de violación con la pena de prisión de seis a 12 años. O artigo 180, que eleva a pena privativa de liberdade para 5 a 10 anos no caso do artigo 178, e de 12 a 15, no caso do artigo 179, refere: 1. Las anteriores conductas serán castigadas con las penas de prisión de cinco a diez años para las agresiones del art. 178, y de doce a quince años para las del art. 179, cuando concurra alguna de las siguientes circunstancias: 1ª) Cuando la violencia o intimidación ejercidas revistan un carácter particularmente degradante o vejatorio. 2ª) Cuando los hechos se cometan por la actuación conjunta de dos o más personas. 3ª) Cuando la víctima sea especialmente vulnerable, por razón de su edad, enfermedad, discapacidad o situación, salvo lo dispuesto en el art. 183. 4ª) Cuando, para la ejecución del delito, el responsable se haya prevalido de una relación de superioridad o parentesco, por ser ascendiente, descendiente o hermano, por naturaleza o adopción, o afines, con la víctima. 5ª) Cuando el autor haga uso de armas u otros medios igualmente peligrosos, susceptibles de producir la muerte o alguna de las lesiones previstas en los arts. 149 y 150 de este Código, sin perjuicio de la pena que pudiera corresponder por la muerte o lesiones causadas. 2. Si concurrieren dos o más de las anteriores circunstancias, las penas previstas en este artículo se impondrán en su mitad superior. Em relação à LO n. 1/2015 verifica-se que tais tipos penais (178, 179 e 180) não sofreram qualquer alteração quanto à redação. Portanto, a doutrina anteriormente publicada segue atualizada. Gómez Tomillo217 critica a redação do tipo 178 por ambiguidade, e apresenta, ainda, alguns exemplos de situações que seriam inseridas no mesmo, por falta de melhor alternativa, como por exemplo, quando a vítima é obrigada, mediante violência ou intimidação, a manter relação sexual com animais, ou então, num outro exemplo, quanto o sujeito ativo, homem ou mulher, mediante violência ou grave ameaça, constrange a vítima a penetrá-lo, ou seja, a “ser accedido” (conjunção carnal) conduta que não se encaixaria no artigo 179, conforme o autor, mas sim no artigo “de recogida”, que é o artigo 178, com pena menor, não havendo 216 217 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 808. GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP2, p. 711. 85 equiparação quanto a estas condutas. Entretanto, existem decisões no sentido de que são condutas equivalentes, e merecem, pois, o mesmo tratamento legal (penetrar e fazer-se penetrar). Pela equiparação das condutas, o entendimento da Sala de lo Penal do Tribunal Supremo espanhol: “Es equivalente acceder carnalmente a hacerse acceder’.218 A sentença em tela tratou do caso de indivíduo que foi constrangido a uma orgia sexual, sendo amarrado, algemado e seviciado. Face à reação “biológica e automática” teve uma ereção e ejaculou. Na sequência, outros indivíduos aproximaram-se da vítima, que estava amarrada e algemada, e disseram que “era a vez deles” e teriam sugerido que desejavam ser penetrados. Amedrontada, a vítima disse que o faria, momento em que, ao ser libertada, alcançou a fuga e buscou a polícia, imediatamente. A equiparação mencionada pelo Tribunal considerou apenas a “similar potencialidad lesiva para el bien jurídico protegido”, além da “entidad y características de las conductas equiparadas”. Em havendo o “acceso carnal”, sinônimo de “cópula sexual”, determinado por uma penetração mediante violência ou intimidação, “resultando responsable de la agresión quien la utiliza o la aprovecha.” Entretanto, tal entendimento, a nosso juízo, desconsidera as sequelas para a vítima, e neste sentido, parecenos haver substantiva diferença quando se trata de ter o corpo “invadido”, o que geralmente ocorre nos estupros com vítima mulher, embora possa, também, ocorrer em relação a homens, mesmo que em menor incidência, embora em ambos os casos o delito deva ser considerado grave face ao modo de execução. Por este argumento, entendemos não serem condutas equiparadas. Refere Cancio Meliá219 que “no es lo mismo ser invadido com violencia o intimidación que ser obligado a invadir a otro”, eis que os papeis ativo e passivo apresentam diferenciação em termos de lesividade. 2. Veja-se que o estupro apresenta efeitos deletérios sobre a saúde e a vida da pessoa vitimizada, sendo grave problema de saúde pública, independentemente de classe social, idade, etnia, religião, enfim, especialmente quando praticado contra a mulher, conforme estatísticas. Segundo a Organização das Nações Unidas, um quarto de todas as mulheres do mundo são estupradas, ao menos, uma vez na vida. Para a ONU, violência contra a mulher é qualquer ato que cause ou tenha a probabilidade de causar dano físico, sexual, mental ou sofrimento, incluindo as ameaças desses atos, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, 218 Vide STS 8772/2006, Tribunal Supremo, Sala de lo Penal, Madrid, Resolución n. 1295/2006. Apelacion Procedimiento Abreviado, Ponente: Miguel Colmenero Menendez de Luarca. Sentencia. No mesmo sentido o Pleno no jurisdiccional de 27 de maio de 2005 e a STS n. 472/2006, de 2 de maio do mesmo ano. Vide ainda COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 807. 219 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 813. 86 independentemente de se ocorrida na vida pública ou privada,220 devendo atingir a doze milhões de mulheres a cada ano, em todo o mundo. Somente nos Estados Unidos, cerca de 683 mil mulheres adultas são estupradas por ano, 200 mil crianças são sexualmente abusadas e a cada 6,4 minutos ocorre uma agressão sexual. 221 Do mesmo modo a Anistia Internacional coloca o tema da violência contra a mulher, na Espanha, como sendo uma das principais preocupações do órgão, ao lado de questões envolvendo imigração e terrorismo.222 O periódico El Mundo noticiou que apenas em 2013 houve um incremento de 1,4% de estupros, tendo sido registrados 1298 estupros na Espanha, mesmo período que os homicídios foram reduzidos em 17%. 223 Estima-se que este tipo de criminalidade apresente significativa subnotificação. Face à violência ou à intimidação empregados, e diante destes dados ora apresentados, somados às consequências da violência ou intimidação, já expostas, próprias do delito em tela, este deve ser considerado de especial gravidade de qualquer modo, não havendo razão para aprofundar o tema. 3. A introdução de membros outros ou objetos estaria agasalhada pelo artigo 179.224 Em havendo caráter particularmente degradante ou vexatório, aplicável, pois, as penas do artigo 180, o qual acaba sendo regra importante a contrabalançar eventuais lacunas deixadas pelo artigo 178, as quais, de todo o modo, não poderiam mesmo ser todas esgotadas pelo tipo penal. Assim, quando além da violência ou intimidação previstas pelo artigo 178, concorrerem, ainda, circunstâncias como violência ou intimidação de tipo vexatório, presença de vítima vulnerável por razão etária (exceto menor de dezesseis anos, que possui tratamento legal próprio no capítulo II bis), de incapacidade ou enfermidade, relação de superioridade do agente, emprego de armas ou meios igualmente perigosos, teremos a incidência do artigo 180. Repisa-se que razões etárias compreendem menores de idade (não os menores de dezesseis anos), e assim mesmo, merecendo sempre análise criteriosa e fundamentada do magistrado caso a caso; evidentemente, no caso de idosos pode haver também a vulnerabilidade etária. Ainda quanto à vulnerabilidade, deve-se considerar a situação pessoal da vítima, e não a situacional, até porque os crimes sexuais costumam ocorrer em locais ermos e sem a presença de testemunhas e, evidentemente, não é esta a vulnerabilidade que a lei refere. 225 Ainda 220 WORLD HEALTH ORGANIZATION. World report on violence and health, 2002. SUDÁRIO/ALMEIDA/JORGE, P & S 2005 p. 80. 222 AMNISTÍA INTERNACIONAL, 2014. 223 Aumentan las violaciones y asesinatos de mujeres en 2013 a pesar de que la criminalidad baja. ESPAÑA, Balance de la criminalidad, 2014. 224 GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP 2, p. 711. 225 Ibidem, pp. 707-774. 221 87 quanto à situação etária, esta sempre compreende uma análise criteriosa (exceto nos casos de menores de dezesseis anos), porque nem toda conduta de natureza sexual com menores de idade será delitiva. Por isto deve resultar atípica a relação sexual entre um homem de trinta anos de idade com uma menina de dezessete, posto que pode restar configurada uma iniciação sexual precoce, mas não necessariamente pervertida ou extravagante, por si só. Situação diversa envolveria menor de dezesseis anos, situação em que haveria tipicidade pela via do abuso.226 Para a configuração do artigo 178, CP, não é necessário o contato corporal direto, sendo bastante que se determine à vítima qualquer conduta sexual desta em relação a terceiro ou a si própria. Deste modo, a liberdade sexual se torna mais ampla. Do mesmo modo, mudaram algumas concepções acerca da consumação deste tipo de delito, posto que mesmo o coito pré-vulvar ou preambular já perfectibiliza o tipo, não sendo necessária a penetração no “santificado conduto feminino da reprodução”. 227 Quanto ao artigo 179, sem dúvida, configura-se como delito sexual grave. Diversamente do anterior, este já é considerado grave, inclusive, pela própria lei penal, em razão da pena prevista, superior a cinco anos de privação de liberdade. 4. Quanto ao artigo 179, CP, especificamente, há, no entanto, espaço para fortes críticas à redação do tipo,228 eis que a agressão sexual na modalidade “acceso carnal” deve se dar por via vaginal, anal ou oral, porém “la introducción de miembros corporales u objetos” só foi prevista se ocorrer via vaginal ou anal. Assim, no caso de se dar por via oral, poderá ser tipificada apenas no artigo 178, desde que haja violência ou intimidação. Cabe registrar que ‘acceso carnal’, conforme entende a Sala Segunda do Tribunal Supremo, consiste na chamada conjunctio membrorum (conjunção carnal), não havendo necessidade de penetração completa, nem de ejaculação (22 de septiembre de 1992) [La Ley 2834-JF0001] y 456/1994, de 7 de marzo [La Ley 2864/1994). No tocante ao artigo 180, as circunstâncias agravantes aqui previstas são aplicáveis ao tipo básico do artigo 178, e também às agressões sexuais específicas do artigo 179, considerando-se, claro, a proibição do bis in idem, que impede levar em conta, no momento de aplicar uma agravante, a mesma base fática já utilizada para apreciar um elemento do tipo. E como toda a 226 Aplicando entendimento similar ao que se tinha anteriormente, já que a jurisprudência colacionada refere a legislação imediatamente anterior, ou seja, o CP 1995. Por todos, COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 855. 227 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, pp. 810-813. 228 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 789. 88 agravante específica, o dolo do sujeito deve abarcar seus elementos constitutivos para a sua aplicação. Isto é extremamente importante, posto que as penas poderão chegar, com base no artigo 180, CP, aos limites do crime de homicídio do artigo 138 (quinze anos).229 5. Digno de nota, também, que o número 3 do artigo 180.1 tenha incluído a questão etária. A elevação do marco penal é consequência da necessidade de adaptar a regulação espanhola ao que preceitua a DM 2004/68/JAI (22 diciembre 2003), a qual estabelece um mínimo de pena para todas as infrações cometidas contra menores de idade, mediante “coacción, fuerza o amenaza”. O legislador, na LO n. 5/2010, havia afastado somente afastou os menores de treze anos do regime comum, através do capítulo II bis, o qual, após a redação dada pela LO 1/2015, excluiu os menores de dezesseis anos de tal grupo, já que passam a ser tutelados através do novo capítulo II bis. Dito isto, passamos à análise do crime de abuso sexual, previsto pelos artigos 181 e 182, capítulo II, do Código Penal. 2. Abusos sexuais, artigos 181 e 182, ambos do CP 1. O bem jurídico protegido nestes delitos é a indenidade sexual, e em que pese não se pretender tecer qualquer polêmica em relação a teorizações sobre o conceito, o fato é que estas vítimas, mesmo em casos onde não exista violência ou intimidação, exigem uma maior proteção diante de sua incapacidade de se defender, além, é claro, das graves sequelas que atingem sua própria dignidade humana, conforme comprovado hoje pelas diversas ciências da saúde. As hipóteses envolvendo menores de dezesseis anos estão previstas no capítulo II bis e serão tratadas posteriormente. Refere o artigo 181 CP: 1. El que, sin violencia o intimidación y sin que medie consentimiento, realizare actos que atenten contra la libertad o indemnidad sexual de otra persona, será castigado, como responsable de abuso sexual, con la pena de prisión de uno a tres años o multa de dieciocho a veinticuatro meses. 2. A los efectos del apartado anterior, se consideran abusos sexuales no consentidos los que se ejecuten sobre personas que se hallen privadas de sentido o de cuyo trastorno mental se abusare, así como los que se cometan anulando la voluntad de la víctima mediante el uso de fármacos, drogas o cualquier otra sustancia natural o química idónea a tal efecto. 3. La misma pena se impondrá cuando el consentimiento se obtenga prevaliéndose el responsable de una situación de superioridad manifiesta que coarte la libertad de la víctima. 4. En todos los casos anteriores, cuando el abuso sexual consista en acceso carnal por vía vaginal, anal o bucal, o introducción de miembros corporales u objetos por alguna de las dos primeras vías, el responsable será castigado con la pena de prisión de cuatro a diez años. 229 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 796. 89 5. Las penas señaladas en este artículo se impondrán en su mitad superior si concurriere la circunstancia 3.a o la 4.a , de las previstas en el apartado 1 del art. 180 de este Código. Verifica-se, portanto, que nada foi alterado em relação ao artigo 181 do Código Penal espanhol, através da LO 1/2015, razão pela qual será colacionada parte importante da doutrina anteriormente elaborada e que continua sendo aplicável à matéria. Acerca do capítulo II, que versa sobre o crime de abuso sexual, sua diferença fundamental com as chamadas agressões sexuais já analisadas é, justamente, a inexistência de violência ou de intimidação. Entretanto, o artigo 181 versa sobre a hipótese de vítimas vulneráveis, cuja disposição para o ato sexual é irrelevante, como no caso de vítimas privadas de sentido ou portadoras de transtornos mentais que as incapacitem a prestar tal consentimento. Aplica-se o artigo 181 quando a vítima se encontra privada de sentido, ou mediante abuso de vítima com transtorno mental, além dos casos de anulação da vontade da vítima mediante o uso de fármacos, drogas ou qualquer outra substância, natural ou química, idônea a tal finalidade. A situação da vítima privada de sentido, conforme o artigo 181.2, ocorre nos casos de coma, anestesia, narcose. No caso de transtorno mental, ainda conforme reza o mesmo artigo, é necessário que a vítima reste com sua capacidade de autodeterminação sexual prejudicada, ou seja, que venha a sofrer uma “disminución psíquica de sus facultades que la hagan prácticamente inerme a los requerimientos sexuales ajenos, al quedar de hecho anulados sus frenos inhibitorios, tanto en el saber cómo en el querer” ,230 em outras palavras, impedida de prestar consentimento livre, de maneira consciente. Quanto à parte final do artigo em comento, o legislador usou o verbo no gerúndio, referindo que também incide no crime aquele que empregar fármacos, drogas ou outras substâncias naturais ou químicas idôneas, anulando, assim, a vontade da vítima. Neste caso, surge a discussão se haveria ou não a exigência legal de relação de meio e fim. Neste sentido, conforme Gómez Tomillo,231 a conduta de quem abusar de vítima que já estava drogada não se encaixará nesta modalidade, mas na figura “de recogida” do artigo 181.1, CP, Quanto ao artigo 181.3, CP, a superioridade pode ocorrer na relação laboral, familiar, docente ou até mesmo, por diferença etária. 232 Pode ser configurada aqui a própria extensão de uma conduta de assédio sexual que culmine com a relação sexual em si, pois como diz Cancio Meliá,233 consecução do propósito sexual deixará 230 LUZÓN CUESTA, Compendio de derecho penal 18, p. 92. GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP2, pp. 724-725. 232 Ibidem, pp. 724-725. 233 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 824. 231 90 o assédio absorvido pelo delito previsto pelo artigo 181.3 ou 181.4, do CP, eis que se trata, em ambos, do mesmo bem jurídico tutelado, não havendo razão para o concurso de crimes.234 2. A hipótese prevista pelo artigo 181.3 deve ser analisada com cautela. Aprioristicamente não nos parece, por si só, merecer o rótulo de grave. Não se descarta tal possibilidade em eventual caso concreto, no entanto. Embora tipificada, não nos parece que tenha a mesma gravidade de contatos físicos não consentidos sobre zonas sexualmente significativas da vítima, sem que esta tenha tido tempo ou possibilidade de reagir e impedir o ataque, como por exemplos, beijos forçados, toques em partes íntimas desautorizadamente.235 A propósito, observe-se a existência de uma contravenção ou falta denominada “coacciones o vejaciones injustas,” prevista pelo artigo 620.2, CP (mesmo diante da LO 1/2015). O ânimo lúbrico é o delimitador entre a falta e o crime, conforme a jurisprudência tem referido, o qual deve estar presente no crime, não na falta. A pesar de todo o atentado à liberdade sexual comportar uma “vejación injusta”, o crime de abuso sexual absorve esta conduta (909/2002, de 25 de mayo [La Ley 7371/2002]. Em sentido contrário, referindo que esta decisão deve considerar, no caso concreto, a intensidade dos atos de tocamento, seu caráter fugaz e os dados objetivos de tempo e de lugar concorrentes, podendo, pois, ser a conduta considerada como falta também há decisões jurisprudenciais (1302/2000, de 17 de julio [La Ley 9957/2000], 949/2005, de 20 de julio [La Ley 13259/2005] y 832/2007, de 5 de octubre [La Ley 170359/2007].236 Em relação ao artigo 181.4 este terá sua aplicação dependente do enquadramento da conduta principal como 181.1, 181.2 ou 181.3, e a estes já tecemos as observações pertinentes. Reitera-se que o rótulo de especial gravidade deve guardar relação com o princípio da proporcionalidade. Observe-se, ainda, que o tratamento, equiparado ou não, nos casos de “acceder carnalmente” e “hacerse acceder” já foi analisado anteriormente, quando se falou do crime de agressão sexual, diante dos artigos 178 e 179 do CP (2, III, C, 1, item 1). 3. Em relação ao artigo 182, passamos a comparar as duas redações, a anterior e a nova. Com relação ao artigo 182, rezava o CP espanhol, de 1995: 234 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 823. GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP2, pp. 711-714. 236 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 812. 235 91 1. El que, interviniendo engaño, realice actos de carácter sexual con persona mayor de trece años y menor de dieciséis, será castigado con la pena de prisión de uno a dos años, o multa de doce a veinticuatro meses. 2. Cuando los actos consistan en acceso carnal por vía vaginal, anal o bucal, o introducción de miembros corporales u objetos por alguna de las dos primeras vías, la pena será de prisión de dos a seis años. La pena se impondrá en su mitad superior si concurriera la circunstancia 3ª, o la 4ª, de las previstas en el art. 180.1 de este Código. A atual redação passou a dispor: 1. 2. El que, interveniendo engaño o abusando de una posición reconocida de confianza, autoridad o influencia sobre la víctima, realice actos de carácter sexual con persona mayor de dieciséis años y menor de dieciocho, será castigado con la pena de prisión de uno a tres años. Cuando los actos consistan en accesso carnal por vía vaginal, anal o bucal, o introducción de miembros corporales u objetos por alguna de las dos primeras vías, la pena será de prisión de dos a seis años. La pena se impondrá en su mitad superior si concurriera la circunstancia 3ª, o la 4ª, de las previstas en el artículo 180.1 de este Código. O delito previsto pelo artigo 182, parágrafo primeiro, refere a modalidade genérica, equivalente àquelas contempladas no artigo 181.1; no segundo, regula abusos mais especificamente, consistindo no acesso carnal, na introdução de membros corporais ou objetos ou na penetração anal ou bucal, equivalentes aos contemplados no artigo 181.4. A respeito da tipicidade, interessante mencionar que o engano é elemento constitutivo do tipo penal determinante da obtenção do consentimento da vítima (1487/2000), de 27 de septiembre [La Ley 10640/2000]): “[…] El engaño implica la provocación de un error en la víctima sobre la trascendencia de la acción que realiza y no sobre la propia acción, que efectúa aparentemente de forma voluntaria.” 237 Por isto, o engano provoca um consentimento que é apenas aparente, na medida em que a vítima consente a respeito de uma representação falsa ou incorreta sobre a transcendência de suas ações de caráter sexual. Seja na antiga ou na mais recente redação, o artigo 182, CP apresenta uma redação extremamente criticada por boa parte da doutrina, face à possibilidade de confusão com o artigo 181, já que contém texto muito semelhante, razão pela qual vem sendo pouco aplicado, conforme refere Gómez Tomillo. O autor cita o interessante caso, e o exemplo referia-se à redação anterior da legislação, porém segue sendo válido, em que o pai iludiu a filha, esta maior de treze anos à época, a ter com ele relações sexuais, tratando o assunto como sendo algo perfeitamente normal. Refere, ainda, que a jurisprudência vinha entendendo pela aplicação dos artigos anteriores (como o 181.3 e 181.4, com penas mais altas) ao invés do artigo 182,238 o que nos faz imaginar a violação ao princípio da secularização. Evidentemente que a conduta é criminosa na medida em que o consentimento foi obtido mediante engano e que o incesto agride um tabu civilizatório. 237 238 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 813. GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP, pp. 726-727. 92 Porém, apesar disto, a conduta típica é claramente expressada pelo artigo 182, e não pelo artigo 181, cujo rótulo de especial gravidade não se aplicaria hoje, se a vítima fosse maior de dezesseis e menor de dezoito anos, saudável mentalmente e, portanto, inserida na sociedade do século XXI. A corroborar tal entendimento, veja-se que há importante diferenciação na própria pena privativa de liberdade prevista pelo legislador, a qual no artigo 181.4, resulta de 4 a 10 anos, enquanto a mesma pena, na hipótese do artigo 182.2, será de 2 a 6 anos. Por estas razões o artigo 181 configura modalidade grave à luz da conceituação ora apresentada; já o artigo 182, ora alterado, agora trata de vítimas maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, as quais, na sociedade contemporânea, embora mereçam a tutela do Estado, já não podem ser consideradas exatamente da mesma forma que uma criança ou que um doente mental com transtornos graves. Além disso, introduziu-se, junto ao “engano” a figura daquele que abusar de “una posición reconocida de confianza, autoridad o influencia sobre la vítctima.” Por esta razão, a nosso modo de entender, embora até mereça a tipificação penal, não se aplica o rótulo de mesma gravidade como se fez em relação ao artigo 181. 4. Ainda quanto ao artigo 182, há outro aspecto interessante a ser mencionado. Embora o tipo penal não refira a diferença de idade entre o sujeito ativo e o passivo, deve haver uma diferença de idade relativa entre eles, como referem Cancio Meliá239 e López240 para que a assimetria de idade impeça uma verdadeira liberdade de decisão, especialmente diante do fato de que os participantes podem possuir experiências de vida, graus de maturidade biológica e expectativas bastante diversas. Tal assimetria também pode supor um poder que vicia qualquer possibilidade de uma relação mais igualitária. A respeito, diz Cancio Meliá: “Esta nueva descripción (innecesaria en la anterior sistemática, pues ésta se limitaba a establecer la presunción iure et de iure de que ‘se consideran abusos sexuales no consentidos los que se ejecuten sobre menores de trece años’) “abre la puerta para flexibilizar la rígida frontera de edad en supuestos de relaciones sexuales entre adolescentes (puesto que el sistema de incriminación no conoce límites relativos)”.241 Logicamente, esta reflexão, embora deva prosseguir sendo feita, já não mais terá a mesma contundência com a redação dada ao tipo penal pela LO 1/2015. É que anteriormente era possível imaginar-se vítima com menos de treze ou doze anos de idade sendo abusada por adultos com trinta ou quarenta anos. Com a nova redação, a vítima 239 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (Coord.). MP, p. 820. LÓPEZ, Predicción de los abusos sexuales de menores y educación sexual, pp. 28-29. 241 CANCIO MELIÁ, en: DÍAZ-MAROTO Y VILLAREJO (dir.), Estudios sobre las reformas del CP, p. 373. 240 93 deste delito passa a ter, no mínimo, dezesseis anos, neste caso, o que já representa uma menor probabilidade de ser enganada. Porém, evidentemente, pode acontecer a situação tipificada. Ocorrência diversa seria se ambos os jovens tivessem a mesma faixa etária, por exemplo, vítima com dezessete anos, e “abusador” com dezoito anos de idade. Nesta hipótese não se poderia dizer que, necessariamente, existiria um delito contra a indenidade sexual. A respeito, considerações sobre a adoção da regra “Romeo and Juliet Law” pelo Direito Penal norte-americano, e com a reforma provocada pela LO 1/2015, ora inseridas no Direito Penal espanhol, serão comentadas a seguir, quando da análise do artigo 183 quater, no intuito de demonstrar como a mudança no comportamento sexual das presentes gerações deve ser considerado no contexto jurídico-penal de um ordenamento moderno. 3. Abuso sexual a menores de dezesseis anos, artigo 183, do CP 1. A respeito do capítulo II bis houve importante reordenação provocada pelo novo tratamento dos abusos, provocado pela LO 1/2015. Antes, as vítimas eram menores de treze anos de idade. Veja-se que a reforma alterou este limite para dezesseis anos, atendendo-se à Diretiva 2011/93/UE, que substituiu a Decisão Marco 2004/68/JAI, conforme referido pela Exposição de Motivos. Justificou-se a mudança em razão de se considerar a idade de treze anos muito inferior a dos demais países europeus, onde esta se situaria em torno de quinze ou dezesseis anos. Assim, o Comitê das Nações Unidas sugeriu a reforma no CP espanhol neste sentido, visando adequar as disposições da Convenção em relação aos direitos da infância e, assim, para melhorar a proteção que a Espanha oferece aos menores de idade, sobretudo na luta contra a prostituição infantil. O próprio texto da Exposição de Motivos do Projeto de Reforma do Código Penal espanhol já disse: “De esta manera, la realización de actos de carácter sexual con menores de dieciséis años será considerada, en todo caso, como un hecho delictivo, salvo que se trate de relaciones consentidas con una persona próxima al menor por edad y grado de desarrollo o madurez. En el caso de los menores de edad – de menos de dieciocho años - pero mayores de dieciséis años, constituirá abuso sexual la realización de actos sexuales interviniendo engaño o abusando de una posición reconocida de confianza, autoridad o influencia sobre la víctima.” 242 242 Projeto de Reforma do Código Penal espanhol, de 20 de setembro de 2013. Vide: BOCG n. 66-1 Serie A: Proyectos de ley 4 oct. (2013), p. 1. 94 Então, o legislador liberou o artigo 183 para integrar o capítulo II bis, o qual trata de abusos e agressões sexuais especificamente em relação a menores de dezesseis anos, os quais passamos a analisar. Refere o artigo 183: 1. El que realizare actos que atenten contra la indemnidad sexual de un menor de dieciséis años será castigado como responsable de abuso sexual a un menor con la pena de prisión de dos a seis años. 2. Cuando los hechos se comentan empleando violencia o intimidación el responsable será castigado por el delito de agresión sexual a un menor con la pena de cinco a diez años de prisión. Las mismas penas se impondrán cuando mediante violencia o intimidación compeliere a un menor de dieciséis años a participar en actos de naturaleza sexual con un tercero o a realizarlos sobre sí mesmo. 3. Cuando el ataque consista en acceso carnal por vía vaginal, anal o bucal, o introducción de miembros corporales u objetos por alguna de las dos primeras vías, el responsable será castigado con la pena de prisión de ocho a doce años, en el caso del apartado 1 y con la pena de doce a quince años, en el caso del apartado 2. 4. Las conductas previstas en los tres apartados anteriores serán castigadas con la pena de prisión correspondiente en su mitad superior cuando concurra alguna de las siguientes circunstancias: a) Cuando el escaso desarrollo intelectual o físico de la víctima o el hecho de tener un trastorno mental, la hubiera colocado en una situación de total indefensión y, en todo caso, cuando sea menor de cuatro años. b) Cuando los hechos se cometan por la actuación conjunta de dos o más personas. c) Cuando la violencia o intimidación ejercidas revistan un carácter particularmente degradante o vejatorio. d) Cuando, para la ejecución del delito, el responsable se haya prevalido de una relación de superioridad o parentesco, por ser ascendiente, o hermano, por naturaleza o adopción, o afines, con la víctima. e) Cuando el culpable hubiere puesto en peligro, de forma dolosa o por imprudencia grave, la vida o salud de la víctima. f) Cuando la infracción se haya cometido en el seno de una organización o de un grupo criminal que se dedicare a la realización de tales actividades. 5. En todos los casos previstos en este artículo, cuando el culpable se hubiera prevalido de su condición de autoridad, agente de ésta o funcionario público, se impondrá, además, la pena de inhabilitación absoluta de seis a doce años. Refere o artigo 183 bis.: El que, con fines sexuales, determine a un menor de dieciséis años a participar en un comportamiento de naturaleza sexual, o le haga presenciar actos de naturaleza sexual, aunque el autor no participe en ellos, será castigado con una pena de prisión de seis meses a dos años. Si le hubiera hecho presenciar abusos sexuales, aunque el autor no hubiera participado en ellos, se impondrá una pena de prisión de uno a tres años. Refere o artigo 183 ter: 1. El que a través de internet, del teléfono o de cualquier otra tecnología de la información y la comunicación contacte con un menor de dieciséis años y proponga concertar un encuentro con el mismo a fin de cometer cualquiera de los delitos descritos en los artigos 183 y 189, siempre que tal propuesta se acompañe de actos materiales encaminados al acercamiento, será castigado con la pena de uno a tres años de prisión o multa de doce a veinticuatro meses, sin perjuicio de las penas correspondientes a los delitos en su caso cometidos. Las penas se impondrán en su mitad superior cuando el acercamiento se obtenga mediante coacción, intimidación o engaño. 2. El que a través de internet, del teléfono o de cualquier otra tecnología de la información y la comunicación contacte con un menor de dieciséis años y realice actos dirigidos a embaucarle para que le facilite material pornográfico o le mustre imágenes pornográficas en las que se represente o aparezca un menor, será castigado con una pena de prisión de seis meses a dos años. 95 Refere o artigo 183 quater.: El consentimiento libre del menor de dieciséis años excluirá la responsabilidad penal por los delitos previstos en este Capítulo, cuando el autor sea una persona próxima al menor por edad y grado de desarrollo o madurez. Neste artigo 183, CP, todas as modalidades devem ser consideradas graves, diante do bem jurídico protegido, que é a indenidade sexual do vulnerável, agora sendo o menor de dezesseis anos de idade, incapaz de prestar consentimento válido para o ato sexual. Ressalvamos, no entanto, o artigo 183 ter., que trata de encontros agendados pela internet, telefone ou outro meio similar, o qual, por não envolver violência nem intimidação ao bem jurídico sexual, e por não envolver um perigo concreto, real, imediato à indenidade sexual da vítima, não apresenta idêntica natureza gravosa máxima, embora mereça, evidentemente, reprimenda penal. O mesmo se diga em relação à segunda parte, que ora tipificou a conduta popularmente conhecida como “sexting”, ou seja, o envio de material pornográfico por menores de idade. De qualquer modo, as penas previstas já são inferiores ao legalmente considerado como “penas graves”, o que corrobora nossa posição. Situações que ultrapassem o tipo penal em tela para alcançar outros, deverão seguir a gravosidade para estes previstas. O delito previsto pelo artigo 183 pode ocorrer com ou sem violência ou intimidação. Ambas as possibilidades estão previstas no tipo penal, diante da simples razão de que a incapacidade para consentir converte a vítima em incapaz para exercer o direito à liberdade sexual, e o bem jurídico afetado é sempre a indenidade sexual, no dizer de García Rivas. Observe-se, inclusive, que o próprio legislador define a conduta básica do abuso sexual como sendo um “atentado contra la indemnidad sexual del menor” (artigo 183.1 CP), embora estabeleça, um pouco depois, no artigo 183.2 CP, que haverá agressão sexual quando tal ataque se realize com violência ou intimidação.243 As mesmas reflexões se aplicam ao artigo 183 bis. No tocante ao artigo 183, destaca-se que obrigar a vítima a participar de atos sexuais com terceiro ou sobre ela própria, é crime, bem como no artigo 183 bis está prevista a conduta de fazer um menor de dezesseis anos aos presenciar atos ou abusos sexuais sobre outras pessoas. 2. Quanto à análise do artigo 183 ter., não se vislumbra a mesma gravidade máxima, posto não haver violência nem intimidação em relação ao ato sexual, nem mesmo risco concreto e direto à indenidade sexual da vítima. Caso a relação sexual venha a ocorrer, caberá 243 GARCÍA RIVAS, en: ÁLVAREZ GARCÍA, Derecho penal Español: PE (I), p. 622. 96 aplicar o delito correspondente, que será de natureza grave. O delito assinalado é inspirado na “Convención Europea sobre protección de los niños contra la explotación sexual y el abuso sexual”, de 25 de octubre de 200. Morales Prats y García Albero244 refieren a conduta conhecida como “online-grooming” ou “child-grooming” e que trata do assédio eletrônico (por telefone ou pela internet). Na verdade, esta constitui ato preparatório para a agressão, abuso ou corrupção sexual. Ainda que o elemento subjetivo revele o dolo de atingir a indenidade sexual da vítima, o fato está “lejos de la execución de éste”, como no caso de dividir um sorvete com aquela. Claro que estes atos materiais dirigidos à aproximação com a vítima, que podem ser até mesmo reservar quartos, facilitar o local do encontro ou buscar a vítima somente serão considerados delitivos se tiverem por finalidade manter relações sexuais com a mesma. Assim, caso fosse ultrapassada esta fase e houvesse a evolução para uma agressão, abuso ou corrupção de menores, teríamos o delito de agressão ou abuso sexual propriamente dito, inclusive a absorver esta “novidade”, face ao princípio da consunção, posto que também relacionado ao mesmo bem jurídico: indenidade sexual. No entanto, quando o legislador disse “sin perjuicio de las penas correspondientes a los delitos en su caso cometidos”, acabou vulnerando a proibição de dupla incriminação, pois prevê a acumulação pura e simples das sanções. Assim, esta tipificação revela violação ao princípio da lesividade “es una muestra más del Derecho Penal defensivo, supuestamente protector del menor, que ha traspasado hace tiempo, los límites del Derecho Penal democrático”, como refere García Rivas.245 Por isto, e em sentido diverso, a doutrina vem considerando o tipo penal como um “acto preparatorio especialmente incriminado”, ou uma antecipação da punição pela futura lesão ao bem jurídico, em demonstração autêntica de um Direito Penal de Inimigo, conforme visto em 2, II, B, 4. Se, efetivamente, a relação sexual vier a ocorrer será aplicado o tipo penal correspondente ao artigo 183, “tipo especial por progresión delictiva”246, a exemplo de Gómez Tomillo,247 para quem o delito é de “peligro hipotético, entendido como aquél que requiere de una acción apta para generar un riesgo frente al bien jurídico”. 3. Interessante observar, ainda, dois aspectos. O primeiro envolve a análise da questão etária, pois o tipo agora fica limitado aos dezesseis anos de idade para o caso da vítima. Sabese que tipo de comportamento (“sexting”) atinge, em maior parte, meninas entre treze e 244 MORALES PRATS/GARCÍA ALBERO, en: QUINTERO OLIVARES (dir.)/MORALES PRATS (coord.), Comentarios a la parte especial del derecho penal9, pp. 312-313. 245 GARCÍA RIVAS, en: ÁLVAREZ GARCÍA, Derecho penal Español: PE (I), p. 625. 246 GALLEGO SOLER, en: CORCOY BIDASOLO/MIR PUIG, Comentarios al CP, pp. 439-440. 247 GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP2, p. 731. 97 quinze anos, sendo que apenas 18,2% das vítimas possui menos de treze anos de idade, ou seja, 81,8% ficavam desprotegidas anteriormente248, e assim, a nova redação passou a trazer maior proteção, efetivamente, a tais jovens. Em segundo lugar, como fica a aplicação do artigo 183 ter. em relação ao artigo 189.1.a? Concurso de crimes ou bis in idem? Antes, doutrinadores como Gómez Tomillo sugeriam que o artigo 183 bis (hoje 183 ter.) fosse aplicado nos casos de inexistência de consentimento da vítima. Neste caso, se ainda ocorresse a captação da imagem do menor pela internet e o material viesse a ser utilizado para fins pornográficos ou exibicionistas, as penas referentemente a ambos os artigos deveriam ser aplicadas conjuntamente, diante da cláusula concursal. Já no caso de a imagem do menor vir a ser captada diretamente, ou ainda, se a vítima fosse incapaz, então a pena seria tão somente aquela prevista pelo artigo 189.1.a .249 O assunto seguirá em debate posto que não parece haver muita clareza tampouco na nova redação, quanto ao item discutido. Por fim, veja-se que no artigo 183 quater o legislador espanhol acabou adotando aquilo que de há muito já era aplicado nos Estados Unidos e denominado como Romeo and Juliet Law. Tal regra, prevista pelo ordenamento legal de vários estados norte-americanos, define que a relação sexual consentida entre jovens com diferença de idade entre três e cinco anos, conforme o estado, não é, necessariamente, uma hipótese criminosa. Isto ocorre em razão do reconhecimento, pelo próprio legislador, mesmo num país de tendência bastante conservadora em matéria sexual, de que o comportamento dos jovens mudou muito desde a última metade do século passado, inegavelmente. Na Espanha, agora, o consentimento livre prestado por um jovem com menos de dezesseis anos poderá excluir a responsabilidade criminal do agente que tiver idade ou grau de maturidade e desenvolvimento similar à da possível vítima. 4. Assédio sexual, artigo 184 do CP 1. Com relação ao delito de assédio sexual, previsto pelo artigo 184 CP, o mesmo não apresenta natureza grave, não havendo razões para qualquer discussão desde logo, diante da ausência de violência ou intimidação diretas para o ato de natureza sexual. Refere o citado artigo: 248 249 CUGAT MAURI, LL 2014, p. 7. GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP2, p. 732. 98 1. El que solicitare favores de naturaleza sexual, para sí o para un tercero, en el ámbito de una relación laboral, docente o de prestación de servicios, continuada o habitual, y con tal comportamiento provocare a la víctima una situación objetiva y gravemente intimidatoria, hostil o humillante, será castigado, como autor de acoso sexual, con la pena de prisión de tres a cinco meses o multa de seis a 10 meses. 2. Si el culpable de acoso sexual hubiera cometido el hecho prevaliéndose de una situación de superioridad laboral, docente o jerárquica, o con el anuncio expreso o tácito de causar a la víctima un mal relacionado con las legítimas expectativas que aquélla pueda tener en el ámbito de la indicada relación, la pena será de prisión de cinco a siete meses o multa de 10 a 14 meses. 3. Cuando la víctima sea especialmente vulnerable, por razón de su edad, enfermedad o situación, la pena será de prisión de cinco a siete meses o multa de 10 a 14 meses en los supuestos previstos en el apartado 1, y de prisión de seis meses a un año en los supuestos previstos en el apartado 2 de este artículo. Na verdade, até pode ocorrer intimidação em relação à vítima, mas uma intimidação diferenciada, voltada à sua liberdade no ambiente laboral, docente, enfim, o que vem a ser constrangedor e, muitas vezes, humilhante, merecedor de reprimenda penal, como no caso do número 2 do artigo em tela. Porém, daí a equiparar-se à situação de gravidade que envolve uma agressão sexual ou um abuso sexual a menores de dezesseis anos ou demais vulneráveis, não nos parece razoável, pois o tipo penal básico, na verdade, não trata do bem jurídico liberdade sexual, aproximando-se mais da integridade moral ou da honra. Questiona-se, até mesmo, se o tema merece que os tribunais penais dele se ocupem diante de um Direito Penal presidido pelo princípio da intervenção mínima, como refere Cancio Meliá.250 Ainda assim, a LO 1/2015 manteve a mesma redação quanto ao tipo penal em análise. Embora todas as modificações socioculturais ocorridas nos últimos tempos, especialmente considerando-se o espaço conquistado pelas mulheres no campo de trabalho, o Direito Penal já contava com outras modalidades típicas para lidar com o assédio mais gravoso, parecendo, assim, o artigo 184, principalmente em seu número 1, por não prever sequer a “situação de superioridade do agente”, revela-se como uma demonstração mais simbólica e emocional do que efetiva e racional. A possibilidade de consideração de relações horizontais, conforme previsto pelo tipo, nada mais evidencia, senão confirma, verdadeira hipótese de Direito Penal meramente simbólico. Já na hipótese qualificada do número 2, encontra-se a assimetria de poder entre assediador e vítima, elemento que o tipo básico carece. Afora isto, e em caso de assédio sexual horizontal, a vítima sofre, mais do que tudo, um ataque a sua posição ou status social, o qual fica reduzido à moeda de troca sexual, mas não vê ameaçada sua liberdade sexual propriamente dita, diretamente. E quanto às figuras qualificadas do assédio, outras previsões típicas antes existentes já poderiam resolver as mesmas situações.251 250 251 CANCIO MELIÁ, LL 1996 pp. 1-18. CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 822. 99 Cabe ainda ressaltar que quando o agente alcança os favores sexuais pretendidos, cabível será a hipótese de concurso de crimes (com o artigo 181.3 ou 181.4, ambos do CP). Afora isto, nas hipóteses qualificadas (não, portanto, no artigo 184.1) podemos vislumbrar situação criminosa, eis que afetada a capacidade de tomada de decisão do indivíduo, porém não com a mesma gravidade anteriormente referida, de quem sofre a violação propriamente dita de sua liberdade sexual.252 2. Do ponto de vista político-criminal pode até parecer, prima facie, que uma diferenciação assim realizada causaria um maior efeito perante à sociedade do que a aplicação dos tipos já existentes. Entretanto, não se pode admitir que um preceito penal tenha por finalidade a prevenção geral meramente intimidatória. Como refere Cancio Meliá: “No es a través de la legislación en materia criminal como se alcanzan fines de educación social”.253 Neste sentido, delitos desta natureza precisam ser lidos e aplicados com muita cautela. No caso do assédio sexual, verifica-se que este apresenta âmbito de aplicação muito mais próximo às ameaças, ou então, aos atos preparatórios de abusos ou agressões sexuais, conforme afirma Gallego Soler, inclusive admitindo a relação entre pessoas de mesma hierarquia funcional, não exigindo qualquer verticalidade,254 como já salientado. Vale dizer que poderá haver, no caso concreto, outra conduta que configure delito mais grave como abuso ou agressão sexual, ao invés do chamado “acoso sexual”, conforme o alcance do efeito que o anúncio do mal tenha sobre a vítima, em autêntico concurso de leis penais. Assim, não é fácil dar uma solução a priori, “pues habrá que estar a la situación de cada caso concreto, ya que en la ejecución de los hechos el autor puede sobrepasar la protección establecida en el artículo 184”, conforme referem Serrano Gómez e Serrano Maíllo.255 E com isso, se em princípio não consideramos o assédio, por si só, como delito grave, para fins desta investigação, é possível vir a considerá-lo num caso assim, gravoso, caso venha a evoluir para outro tipo de crime, como uma agressão sexual, por exemplo. 252 Nosso posicionamento é inspirado en: CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 824. CANCIO MELIÁ, en: RODRÍGUEZ MOURULLO (dir.)/JORGE BARREIRO (coord.), Comentarios al Codigo Penal, 1997, p. 537. 254 GALLEGO SOLER, en: CORCOY BIDASOLO/MIR PUIG, Comentarios al CP, pp. 440-441. 255 SERRANO GÓMEZ/SERRANO MAÍLLO, en: SERRANO GÓMEZ/SERRANO MAÍLLO/SERRANO TÁRRAGA/VÁSQUEZ GONZÁLEZ, Curso de derecho penal: PE, p. 147. 253 100 5. Exibicionismo e provocação sexual: artigos 185 e 186, ambos do CP 1. Quanto aos delitos de exibicionismo e de provocação sexual, ou seja, exibição obscena diante de menores de idade ou incapazes, ou ainda, difusão, venda, exibição de material pornográfico entre menores ou incapazes, estes não apresentam caráter de delito sexual com a mesma gravidade de outros já considerados anteriormente. Referem os citados artigos: Artigo 185 El que ejecutare o hiciere ejecutar a otra persona actos de exhibición obscena ante menores de edad o incapaces, será castigado con la pena de prisión de seis meses a un año o multa de 12 a 24 meses. Artigo 186 El que, por cualquier medio directo, vendiere, difundiere o exhibiere material pornográfico entre menores de edad o incapaces, será castigado con la pena de prisión de seis meses a un año o multa de 12 a 24 meses. O próprio legislador não os considerou como sendo graves, conforme as penas previstas, não cabendo maiores discussões. A respeito, alerta Cancio Meliá sobre a necessidade de que tais condutas, para serem consideradas criminosas, sejam revestidas de idoneidade capaz de afetar negativamente aos menores ou incapazes no âmbito sexual, protegendo-se a liberdade sexual, compreendida esta em sentido estrito ou de modo mais abrangente, envolvendo o bem estar psíquico das pessoas protegidas. O que não se pode admitir é uma proteção penal da moral pública ou social, como havia nos antigos delitos de escândalo público.256 É necessário que as condutas sejam idôneas para afetar de modo negativo menores ou incapazes no âmbito sexual, independentemente do que se entenda por bem jurídico, seja a liberdade sexual, seja o bem estar psíquico da vítima. Trata-se de tipos penais que oscilam em torno de dificuldades muito grandes em termos de definição do que seja adequado ou conveniente à formação do jovem, conforme os padrões de determinada época e de determinada cultura.257 Veja-se, por exemplo, que Gallego Soler258 chega a advertir que no caso do artigo 186, deve-se levar em conta o grau de maturidade sexual do menor e, assim, a potencialidade da conduta de influir negativamente em sua normal formação sexual. 256 CANCIO MELIÁ, en: RODRÍGUEZ MOURULLO (dir.)/JORGE BARREIRO (coord.), Comentarios al CP, p. 541. 257 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 826. 258 GALLEGO SOLER, en: CORCOY BIDASOLO/ MIR PUIG, Comentarios al Codigo Penal, pp. 443- 444. 101 6. Da prostituição, exploração sexual e corrupção de menores - artigos 187 a 189 bis, todos do CP 1. Para iniciarmos algumas reflexões importantes a respeito do tema, colacionamos a nova redação do artigo 187 (anteriormente artigo 188), com suas adaptações de acordo com a LO 1/2015: 1. El que, empleando violencia, intimidación o engaño, o abusando de una situación de superioridad o de necesidad o vulnerabilidad de la víctima, determine a una persona mayor de edad a ejercer o a mantenerse en la prostitución, será castigado con las penas de prisión de dos a cinco años y multa de doce a veinticuatro meses. Se impondrá la pena de prisión de dos a cuatro años y multa de doce a veinticuatro meses a quien se lucre explotando la prostitución de otra persona, aun con el consentimiento de la misma. En todo caso se entenderá que hay explotación cuando concurra alguna de las siguientes circunstancias: a) Que la víctima se encuentre en una situación de vulnerabilidad personal o económica. b) Que se le impongan para su ejercicio condiciones gravosas, desproporcionais o abusivas. 2. Se impondrán las penas previstas en los apartados anteriores en su mitad superior, en sus respectivos casos, cuando concurra alguna de las siguientes circunstancias: a) Cuando el culpable se hubiera prevalido de su condición de autoridad, agente de ésta o funcionario público. En este caso se aplicará, además, la pena de inhabilitación absoluta, de seis a doce años. b) Cuando el culpable perteneciere a una organización o grupo criminal que se dedicare a la realización de tales actividades. c) Cuando el culpable hubiere puesto en peligro, de forma dolosa o por imprudencia grave, la vida o salud de la víctima. 3. Las penas señaladas se impondrán en sus respectivos casos sin perjuicio de las que correspondan por las agresiones o abusos sexuales cometidos sobre la persona prostituida. Veja-se que o tipo penal do artigo 187 também incluiu como objeto de proteção a vítima adulta em determinados casos, como aqueles envolvendo violência, intimidação, engano, abuso de situação de superioridade ou de necessidade ou vulnerabilidade da vítima, exigindo a finalidade de constrangê-la ao exercício da prostituição ou a, simplesmente, “manter-se” naquele estado. A partir da reforma de 2003, as condutas lucrativas explorando a prostituição também são puníveis mesmo quando houver o consentimento da vítima. A doutrina vem trabalhando, com acerto, no sentido de esclarecer que, à luz do bem jurídico tutelado, é paradoxal punir-se alguém em nome da liberdade sexual de uma mulher adulta e que deseja exercer livremente a prostituição, que não constitui conduta criminosa. A jurisprudência já apresenta decisões no sentido de que somente é criminosa a ganância que se relaciona com violência, intimidação, engano, posição de superioridade, enfim, como refere Gallego Soler.259 Tal tipo penal não 259 GALLEGO SOLER, en: CORCOY BIDASOLO/MIR PUIG, Comentarios al CP, pp. 446-447. 102 protege a moralidade ou a honestidade da vítima, mas a liberdade sexual de adultos e de menores de idade e incapazes e, assim, a dignidade pessoal daqueles que estão em risco de serem compelidos, de qualquer modo, ao exercício da prostituição, e daqueles que já a exercem, mas desejam abandonar esta espécie de mercancia do próprio corpo.260 Por isto, salutar que a LO 1/2015 tenha conceituado “exploração sexual” no próprio tipo penal do artigo 187.1. 2. Dito isto, consideramos, neste trabalho, como hipótese de delito sexual grave também a situação de vítima adulta, quando houver violência ou intimidação, apenas. Nas demais hipóteses de exploração, a conduta merece tipificação, mas não a mesma etiqueta de gravosidade, posto que ainda existe alguma liberdade quanto à decisão da pessoa que se prostituirá. Ademais, em se tratando de vítima adulta e na hipótese de consentimento, livre e consciente, não vislumbramos razão sequer para a incriminação da conduta, em respeito ao princípio da secularização. Vale salientar que os delitos relacionados à prostituição, em geral, são denominados por Cancio Meliá como “periféricos”,261 pois não configuram uma lesão direta ao bem jurídico. Aliás, muito cuidado deveria ser tomado pelo legislador neste sentido, porque a tipificação de um delito contribui para a formação do senso comum do que seja proibido ou intolerável, como ocorre no caso do assédio sexual, na figura do assediador. Ocorre que nenhuma norma pode ou deve ser criada somente com esta finalidade, a de ser um mero anúncio de boas intenções. Como diz Cancio Meliá: “[...] lo cierto es que ninguna norma – sin desconocer las repercusiones sobre las normas sociales que supone el hecho de su incriminación penal-formal – debe limitarse a ser un mero anuncio, aunque sea un anuncio de lo justo y bueno. Y por otro, y esto es lo realmente decisivo, está claro que una norma inaplicable en términos generales – como antes se ha visto – lo único que consigue es desmovilizar la reivindicación y desviar la atención de otras medidas – políticamente seguramente más costosas y menos rentables en términos de propaganda.” Tais figuras relativas à prostituição e corrupção de menores, denominadas como modernas, correspondem a novos fenômenos ou a uma mera consequência de fenômenos que já não se toleram, ao menos no discurso público, como refere Cancio Meliá.262 Isto por si só não quer dizer que não possam ser consideradas graves, como é o caso da determinação coativa à prostituição.263 O problema é que estamos diante de uma política legislativa adjetivada como “errática” por Cancio Meliá, diante da criação e do fracionamento de tantos 260 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 834. CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, p. 284. 262 Ibidem, p. 285 e ss. 263 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 825. 261 103 delitos.264 Assim, exibição obscena e difusão de pornografia, quando envolvendo menores e outros vulneráveis, não deveriam estar mescladas com temas que dizem respeito à prostituição de adultos, como continua a ocorrer mesmo após a reforma no Código Penal recentemente ocorrida. Afora isto, as incoerências reveladas, não apenas pelo legislador, mas pela sociedade, demonstram que não se tem uma intervenção administrativa eficiente para buscar eliminar a prostituição não autônoma de adultos, e que envolve, em sua maioria, mulheres imigrantes. Na verdade, como refere Cancio Meliá265, deveria o legislador espanhol, bem como a sociedade, fazer uma escolha ou entre o modelo do rechaço global da prostituição, entendendo-a como prática inaceitável, como ocorre na Suécia e na Noruega, inclusive com a criminalização da figura do cliente, ou então, definitivamente, apostar no modelo de normalização e legalização da prostituição autônoma, com a regularização administrativa da atividade, como fizeram Alemanha e Holanda. 3 Quanto aos delitos relativos à prostituição, exploração e à corrupção de menores, a situação é mais complexa, já que a redação dos tipos penais mescla diversos assuntos, o que não foi completamente resolvido pela reforma operada pela LO 1/2015. Mesmo assim, na Exposição de Motivos mais recente, constou a necessidade de separar, com maior nitidez, os comportamentos envolvendo vítimas menores de idade ou pessoas com alguma vulnerabilidade, elevando as penas nestes casos com o fim de harmonizar melhor com as legislações europeias que seguem esta tendência, inclusive introduzindo novas agravantes nos casos mais lesivos de prostituição infantil, tema cada vez mais demandado no cenário internacional. Entretanto, na análise da legislação vigente, resta-nos, por uma questão de coerência com os estudos aqui apresentados, analisar-se cada caso, diante da tendência não apenas a um expansionismo usual, mas também em relação à intensificação da proteção jurídica que se quer alcançar ao bem jurídico tutelado, o que se coaduna, aliás, com as ideias de neoretribucionismo e inocuização, verdadeiros astros deste espetáculo.266 Díez Ripollés267 chega a comentar que os delitos sexuais pertencem ao bloco de delitos da expansão securitária que, na verdade, nem corresponde tanto ao conceito de expansão, mas de intensificação no núcleo da delinquência clássica, sendo que neste, vigoram, atualmente, com preponderância, os ideais inocuizadores. Neste sentido, tratando do moderno Direito Penal que se mostra 264 CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, pp. 280-290. CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 830. 266 REGHELIN, en: IBCCrim, 2007, p. 301. Neste sentido, a respeito da inocuização e da incapacitação de delinquentes sexuais, como tendencia contemporânea, vide GONZÁLEZ COLLANTES, en: RGDP, 2014, p. 4. 267 Por todos, DÍEZ RIPOLLÉS, en: CALLEGARI (org.), Política criminal, p. 100. 265 104 como um fenômeno quantitativo, com o incremento de figuras delitivas do catálogo penal Gracia Martín critica esta exacerbação, denominando-a como uma intervenção que parece já não mais encontrar limites e onde o bem jurídico deixou de desempenhar uma função descriminalizadora para exercer papel criminalizador, numa inversão dialética da função do bem jurídico, o que é ilegítimo,268 e verifica-se tal tipo de situação bastante presente diante dos delitos relacionados à prostituição que, em si mesma, não é crime. Porém, o tema merece ser analisado em suas particularidades, posto que bastante delicado. Primeiramente, não temos dúvida que a conduta daquele que explora sexualmente crianças, adolescentes e demais vulneráveis merece o rótulo de especial gravidade nesta investigação, dadas às sequelas gravíssimas que gera na vítima, como será apresentado. Portanto, o artigo 188 (antigo artigo 187) é, por nós, considerado delito sexual grave em relação ao explorador ou “cafetão”, na linguagem popular. Refere o artigo 188: 1. El que induzca, promueva, favorezca o facilite la prostitución de un menor de edad o una persona con discapacidad necesitada de especial protección, o se lucre con ello, o explote de algun otro modo a un menor o a una persona con discapacidad para estos fines, será castigado con las penas de prisión de dos a cinco años y multa de doce a veinticuatro meses. Si la víctima fuera menor de dieciséis años, se impondrá la pena de prisión de cuatro a ocho años y multa de doce a veinticuatro meses. 2. Si los hechos descritos en el apartado anterior se cometieron con violencia o intimidación, además de las penas de multa previstas, se impondrá la pena de prisión de cinco a diez años si la víctima es menor de dieciséis, y la pena de prisión de cuatro a seis años en los demás casos. 3. Se impondrán las penas superiores en grado a las previstas en los apartados anteriores, en sus respectivos casos, cuando concurra alguna de las siguientes circunstancias: a) Cuando la víctima sea especialmente vulnerable, por razón de su edad, enfermedad, discapacidad o situación. b) Cuando, para la ejecución del delito, el responsable se haya prevalido de una relación de superioridad o parentesco, por ser ascendiente, descendiente o hermano, por naturaleza o adopción, o afines con la víctima. c) Cuando, para la ejecución del delito, el responsable se hubiera prevalido de su condición de autoridad, agente de ésta o funcionario público. En este caso se impondrá, además, una pena de inhabilitación absoluta de seis a doce años. d) Cuando el culpable hubiere puesto en peligro, de forma dolosa o por imprudencia grave, la vida o salud de la víctima. e) Cuando los hechos se hubieren cometido por la actuación conjunta de dos o más personas. f) Cuando el culpable perteneciere a una organización o asociación, incluso de carácter transitorio, que se dedicare a la realización de tales actividades. 4. El que solicite, acepte u obtenga, a cambio de una remuneración, o promesa, una relación sexual con una persona menor de edad o una persona con discapacidad necesitada de especial protección, será castigado con una pena de uno a cuatro años de prisión. Si el menor no hubiera cumplido dieciséis años de edad, se impondrá una pena de dos a seis años de prisión. 5. Las penas señaladas se impondrán en sus respectivos casos sin perjuicio de las que correspondan por las infracciones contra la libertad o indemnidad sexual cometidas sobre los menores y personas con discapacidad necesitadas de especial protección. 268 GRACIA MARTÍN, Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia, pp. 144 e ss. 105 Assim, o conceito de prostituição está contemplado com a perspectiva de futuro, pois o que configura o ilícito penal não é a prostituição em si, que é atípica, mas o fato de que o comportamento do sujeito ativo constitui uma incitação para o menor ou incapaz iniciar a atividade do comércio carnal ou para que se mantenha na atividade que já exerce, conforme já referia a Decisão Marco n. 2004/68/JAI. Estamos diante de um delito que pode, portanto, servir como veículo para esta “dedicação” à prostituição, ainda que a posteriori. Dito isto, verifica-se que não é preciso a concorrência de um ânimo especial diretamente voltado à obtenção da perversão sexual das vítimas, da sua dedicação e inclinação à prostituição; basta que da conduta do sujeito derive ou possa derivar, de modo natural, a corrupção do menor mediante uma vida sexual prematura, aviltante e degradante, o que impedirá, muito provavelmente, conforme demonstrado, o alcance da plenitude de sua personalidade (723/1997, de 19 de mayo [La Ley 6089/1997]).269 Aliás, quem se prostitui não é autor, mas vítima do delito, independentemente de sua “honestidade sexual”, tema que deve ser mantido alheio ao Direito Penal. Tampouco importa se a vítima decidiu manter-se voluntariamente na prostituição270 ou não, nas modalidades em que sofre coação, ou em geral, se menor ou incapaz, pois o bem jurídico versa sobre a proteção do menor para uma adequada educação sexual, enquanto para o incapaz, como refere Muñoz Conde, versa sobre a proibição de convertê-lo em objeto ou mercancia para satisfazer o instinto sexual de terceiros.271 Confome a nova redação, condições mais severas como a idade da vítima ser inferior a dezesseis anos, a transcorrência de violência ou intimidação, dentre outros, agravam as penas. 4. Já no tocante ao cliente ocasional, a situação difere um pouco. Anteriormente, criticava Cancio Meliá272 que a redação legal conferia a mesma pena para quem comandava um prostíbulo, explorando a prostituição de menores de idade ou de incapazes, e para o cliente ocasional. O equívoco foi corrigido com a LO 1/2015. Como se pode verificar pela leitura do artigo 188.4, as penas são diferenciadas agora. Evidentemente, a reiteração de ações de cunho sexual em troca de dinheiro, realizadas pelo sujeito ativo sobre o menor, constitui algo que favorece sua prostituição ou corrupção (1154/1994, de 4 de junio [La Ley 3430/1994]).273 Neste sentido, trata-se de delito de mera atividade, de tendência ou de resultado cortado, não sendo necessária a produção dos nefastos efeitos que o mesmo 269 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, pp. 828-829. CUGAT MAURI, en: ÁLVAREZ GARCÍA, Derecho penal Español: PE (I), p. 673. Vide ainda GALLEGO SOLER, en: CORCOY BIDASOLO/MIR PUIG, Comentarios al CP, p. 446. 271 MUÑOZ CONDE, PE19, p. 239. 272 CANCIO MELIÁ, LL 2011, p. 10. 273 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 827. 270 106 pretende evitar. Consuma-se quando o mesmo tenha alcançado aptidão, desde uma consideração razoável ex ante para provocar o efeito descrito no tipo – delito de perigo (510/2010, de 25 de mayo [La Ley 86155/2010)]. Assim, a ideia é proteger a vítima, mesmo que já iniciada na prostituição, a qual não perde, diante disto, a tutela do ordenamento jurídico frente aos comportamentos dos maiores que abusam de sua limitada capacidade de conhecimento e vontade, contribuindo a mantê-la em tal dedicação ou exercício (1207/1998, de 7 de abril de 1999 [La Ley 6859/1999]).274 Tal ideia protetiva visa alcançar à proteção da dignidade da vítima, sem qualquer sombra de dúvida. 5. Já concordávamos com Cancio Meliá anteriormente, no sentido de que as penas deveriam ser diferenciadas para aquele que explora, reiterada e habitualmente, a crianças, adolescentes e vulneráveis, do cliente ocasional. Entendemos, inclusive, que tais personagens deveriam estar separados, em tipos penais diferentes, em razão de uma melhor técnica legislativa, já que ficava, no mínimo estranho, “mesclar” no mesmo tipo penal condutas tão diferenciadas, uma envolvendo habitualidade, e outra não. Em que pese a conduta do cliente ocasional, sabendo e querendo o ato sexual com menor ou incapaz explorado, ser de extrema relevância e gravidade, o tipo penal e a pena não nos pareciam adequados, de modo que não podemos considerar a conduta com a mesma gravidade daquela do explorador sexual contumaz. Neste sentido, de certo modo, a LO 1/2015 avançou ao diferenciar as penas entre o explorador e o cliente. No entanto, alguns problemas prosseguem. Veja-se que, primeiramente, o menor com dezesseis anos ou mais pode consentir no ato sexual. Assim, se não for explorado sexualmente, a conduta poderia ser considerada atípica. No entanto, o legislador espanhol optou por vetar esta possibilidade criminalizando a conduta do cliente mesmo nestes casos, com um a quatro anos de prisão. Se o jovem vítima é menor de dezesseis anos, o caso será de uma pena maior, entre dois e seis anos de privação de liberdade. Apesar das possíveis contestações, o legislador espanhol certamente objetivou proteger a juventude de uma migração para a prostituição em idade tão precoce, desestimulando também a prática por parte dos clientes ocasionais, diferentemente da opção brasileira, por exemplo, que deixou em aberto a possibilidade do exercício da prostituição voluntária por parte dos adolescentes maiores de quatorze anos, o que é alvo de críticas internacionais. Mesmo assim, poderia se ter um tipo penal autônomo para tratar deste cliente. Com relação ao exercício da prostituição por menores de dezesseis anos em situação de exploração sexual, portanto, o cliente deveria ser 274 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, pp. 827-828. 107 responsabilizado pelo abuso ou agressão sexual propriamente ditos, e não pela exploração (crime habitual), sem regra concursal, em nosso entendimento, nos termos do artigo 183 ou 181.2, respectivamente, sendo, em qualquer destas hipóteses, considerada grave. Assim, embora não devesse receber as mesmas penas daquele que explora menores para a prostituição com a reiteração e habitualidade que o tipo exige, receberia, a nosso juízo, o rótulo de crime sexual grave. É que, a par de penas e considerações dogmáticas diferenciadas em relação ao chamado “cafetão”, sua conduta inegavelmente atinge, de modo indelével, a vida e a saúde psíquica e afetiva do menor, já seviciado, além de sua dignidade humana, inclusive, sendo esta destruída de modo lento e cruel. Assim, por exemplo, foi a opção do legislador brasileiro, apenas a título de curiosidade, quando tratou da mesma matéria, nem sequer possibilitando qualquer tese de concurso de crimes ou cláusula concursal. Neste sentido, a solução brasileira, apenas a título de ilustração, parece bastante adequada, pois no caso do cliente ocasional alcançar o ato sexual com vítima menor de quatorze anos ou vulnerável, como no caso dos doentes mentais, por exemplo, aquele deverá responder pelo crime, especificamente, de estupro de vulnerável, e não de exploração sexual, muito menos com a hipótese concursal de delitos. Entretanto, o legislador brasileiro pecou, a nosso juízo, ao considerar dentro do próprio tipo penal da exploração sexual, e ainda com as mesmas penas, a conduta do cliente ocasional que, mesmo sabendo da situação da vítima explorada, esta maior de quatorze e menor de dezoito anos, logra com ela manter o ato sexual. 6. A principal crítica que se faz em relação à regra concursal do apartado 5, do artigo 188, do CP espanhol, no dizer de Gómez Tomillo (embora aqui fazendo uma adaptação ao raciocínio do autor, que elaborou sua crítica ao antigo artigo 187, mas ainda com total aplicabilidade), é que a combinação restou extremamente excessiva. Seria compreensível uma agravação da pena face ao objetivo de lucro, principalmente em se tratando de vítimas menores, porém, a regra concursal vai além. Assim, no caso de vítima menor de dezesseis anos (conforme LO 1/2015) e sem ter havido “acceso carnal o introducción de objectos o miembros corporales” somaríamos as seguintes penas: quatro a oito anos (artigo 188) mais dois a seis anos (artigo 183), totalizando de seis a quatorze anos. Caso contrário, em havendo “acceso carnal o introducción de objectos o miembros corporales”, as penas seguintes são somadas: quatro a oito anos (artigo 188) mais oito a doze anos (artigo 183.3), totalizando doze a vinte anos. De qualquer modo, os resultados demonstram o excesso à medida em que são mais gravosos do que se houvesse uma agressão sexual cometida com violência ou 108 intimidação, “solapándose com las penas del homicidio” no primeiro caso, “y del asesinato”, no segundo.275 De acordo com Cancio Meliá,276 crítica que nos parece seguir mais atual do que nunca, o cliente que mantiver um ato isolado sexual com menor de idade ou, na linguagem do novo CP espanhol, com pessoa com “discapacidad y necesitada de especial protección”, especialmente se submetida à prostituição, deveria ser responsabilizado por crime de agressão ou abuso sexual, pois o cliente não gera o chamado “estado” de prostituição. É que o artigo 188 não cuida de favorecer um ato concreto de prostituição, mas sim, a prostituição como estado.277 Observe-se que a própria legislação, no artigo 25, passa a conceituar como “dependente de especial proteção” “aquella persona con discapacidad que, tenga o no judicialmente modificada su capacidad de obrar, requiera de asistencia o apoyo para el ejercicio de su capacidad jurídica y para la toma de decisiones respecto de su persona, de sus derechos o intereses a causa de sus deficiencias intelectuales o mentales de carácter permanente”.Como visto, inclusive, a previsão concursal do artigo 188.5, CP pode levar a consequência ainda mais drásticas, fugindo-se daquilo que se deveria adotar no caso concreto: a aplicação da sanção correspondente ao abuso sexual em si mesmo sobre o menor prostituído. Assim, entendemos que o rótulo de especial gravidade deva ser imposto ao que explora sexualmente a crianças, adolescentes e demais vulneráveis, tanto diante da gravosidade das sequelas que causa em suas vítimas, bem como diante da necessidade de especial tratamento jurídico-penal (e terapêutico) ao agente perpetrador. Quanto à conduta do “cliente ocasional” que se serve, deliberadamente, de vítimas nestas condições, estando as mesmas, ainda, em situação de exploração sexual, porém com as considerações todas já apresentadas, somente deveria adquirir relevância, a nosso juízo, quando lograsse alcançar atos de natureza libidinosa, não bastando a solicitação ou o aceite, sem a efetiva obtenção da prestação sexual. E tal figura criminosa deveria ser aquela prevista pelos delito propriamente dito de abuso ou de agressão sexual, ou então, no caso de adolescentes com mais de dezesseis anos no pólo passivo e que consentissem no ato, deliberadamente, a conduta deveria vir tipificada em figura autônoma, como forma de resguardar a adolescência, protegendo-a, porém salvaguardando conceitos de Direito Penal como a habitualidade do crime, que não se confunde com condutas de natureza ocasionais. 275 GÓMEZ TOMILLO, en: idem, Comentarios al CP2ª edición, Valladolid, 2011, p. 749. CANCIO MELIÁ, LL, 2011, p. 10. 277 CANCIO MELIÁ, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 831. 276 109 7. No que diz respeito às sequelas, há que se dizer que a dignidade penal das figuras típicas que tratam de delitos relacionados à prostituição somente se justifica quando tiver por objetivo a proteção da liberdade e da indenidade sexual, o que é inegável nos casos envolvendo menores e demais vulneráveis, como referem Serrano Gómez e Serrano Maíllo,278 necessitando uma maior e mais eficaz proteção. Quem induz, promove, favorece ou facilita a prostituição de vítima nestas condições, pratica delito grave diante da vulnerabilidade da vítima escolhida, conforme o conceito adotado neste trabalho, justamente em razão da severa danosidade que ocasiona, tanto pela degradação à dignidade sexual da mesma, quanto pela lesão ao bem jurídico inegavelmente atingido ou posto em risco, que é a indenidade sexual, consequentemente atingindo sua dignidade sexual. Inclusive, o tratamento jurídico-penal e até mesmo terapêutico que deve ser destinado a indivíduos com histórico de abuso sexual desta classe de vítimas costuma ser diferenciado, podendo configurar hipótese de pedofilia. A respeito destas sequelas existem inúmeras pesquisas. Necessário expor algumas delas a fim de justificar a adoção do conceito ao caso presente. Entretanto, saliente-se que para este tipo de pesquisa não importa a tipificação penal, até porque, em geral, não são trabalhos jurídicos, muito menos limitados a um ou a outro país. Importam, sim, as consequências geradas sobre a vítima de qualquer forma de abuso sexual, especialmente quando vulnerável. 8. É sabido que nem todo o indivíduo que foi abusado será um abusador, mas praticamente, todo o abusador foi, um dia, abusado, conforme será apresentado através de resultados de algumas pesquisas a seguir. Fomenta-se, assim, o ciclo da violência e do abuso sexual. Por esta razão, e para fundamentar este, que talvez seja o mais combativo dos argumentos, trazemos alguns outros mais particularizados. A exposição destes indivíduos vulneráveis em tenra idade, no mais das vezes como resultado de famílias destroçadas, é condição para o abuso e para a exploração, estando os dois temas interrelacionados, direta ou indiretamente. O explorador realiza atos habituais que, no conjunto, confirmam o delito que expõe a vítima ao estado de prostituição, sendo este degradante. O consentimento, por parte de vítima vulnerável não importa. Inclusive, vítimas com alguma disfunção intelectual podem ficar em situação de maior vulnerabilidade ainda, ou seja, diante de um maior risco de serem vítimas de delitos contra a liberdade e indenidade sexuais. Geralmente, são pessoas com 278 Como entende, por exemplo, SERRANO GÓMEZ/SERRANO MAÍLLO, en: SERRANO GÓMEZ/ SERRANO MAÍLLO/SERRANO TÁRRAGA/VÁSQUEZ GONZÁLEZ, Curso de derecho penal, PE, p. 154. 110 menor acesso a programas de educação sexual, com elevadas relações de dependência, vivendo em contextos de pouca intimidade derivados da necessidade de cuidado por parte dos outros, déficit nas habilidades sociais como a assertividade, desconhecimento de seus direitos, dificuldades para diferenciar o bom do ruim, menores habilidades comunicacionais. 279 Nestes casos, a liberdade da pessoa pode chegar a ser anulada, seja do ponto de vista positivo, entendida como a livre disposição de suas capacidades e potencialidades sexuais, seja do ponto de vista negativo, como o direito de não se ver envolvida em um contexto sexual alheio à sua vontade. Portanto, o consentimento deve ser personalíssimo para o ato sexual, bem como a capacidade para consentir antes e durante o ato, baseada em uma vontade livre de coação, erro ou fraude, requisitos que podem restar prejudicados em casos de pessoas com problemas desta natureza, como refere reiterada jurisprudência do Tribunal Supremo espanhol.280 Dados empíricos comprovam a relevância destes aspectos na consideração do que seja realmente grave sob uma perspectiva mais complexa, multidisciplinarmente falando, e não apenas do ponto de vista legal. Embora não especificamente em relação à exploração sexual, porém tratando das consequências do abuso sexual em crianças e jovens, tema pertinente, portanto, estudo pioneiro281 realizado em 1995, na Espanha, contando com uma mostra de 2000 sujeitos, a partir de autoinformes, resultou que 22,5% das mulheres pesquisadas e 15,2% dos homens, informaram já terem sido vítimas, em alguma ocasião, de abuso sexual infantil. Quem foi vítima de abuso sexual na infância apresenta tendência a consequências como depressão, maior propensão ao consumo de drogas, ansiedade, transtornos de personalidade, promiscuidade sexual, disfunção sexual e uma maior probabilidade, quando a vítima se torna adulta, de se transformar em abusadora sexual de outras crianças, como referem Avery, Hutchinson e Whitaker.282 De outra banda, pesquisando delinquentes sexuais cujas vítimas são crianças e adolescentes, pesquisa realizada pela University of Lousiana, Estados Unidos, demonstrou que tais indivíduos, geralmente, foram vítimas, na infância, de abusos, experiências incestuosas e apresentam disfunções psíquicas e familiares. Os tratamentos também são parecidos, tanto nos Estados Unidos como na Austrália. O mais interessante deste estudo é que algumas características são comuns, talvez universais.283 Nos Estados Unidos se constatou que adolescentes infratores que foram objeto de abusos físicos durante a infância 279 CAMBRIDGE/CARNABY, en: JAP 2000, pp. 4-16. CENDRA LÓPEZ, LL 2014, pp. 8 e ss. 281 LÓPEZ, Predicción de los abusos sexuales de menores y educación sexual, pp. 28-29. 282 AVERY/HUTCHINSON/WHITAKER, en: CASW 2002, pp. 77-90. 283 HANSER/MIRE, en: IRLCT 2008, pp. 101-114. 280 111 iniciaram suas práticas delitivas aproximadamente 1,6 ano antes que os adolescentes que não sofreram qualquer tipo de abuso. Também se constatou que estupradores que iniciaram suas práticas criminosas na juventude sofreram maior negligência quando meninos do que aqueles que iniciaram sua vida delitiva na fase adulta. A maioria dos delitos sexuais praticados, nestes casos, ocorre contra vítimas mulheres conhecidas ou da própria família. 284 Embora a maioria dos delinquentes (agressores ou abusadores sexuais) sejam homens, pesquisas recentes demonstram que as mulheres também estão praticando este tipo de crime contra crianças pequenas de ambos os sexos. Tais mulheres também foram, em sua maioria, vítimas de abuso sexual na infância. Também são características comuns, tanto na Austrália, quanto nos Estados Unidos, a vida caótica, desregrada, sem estabilidade familiar, constante mudanças de escola, brigas entre os pais, famílias desestruturadas, em relação aos delinquentes sexuais cujas vítimas são crianças e adolescentes. Nestes ambientes o incesto costuma ocorrer, embora o tema apresente escassez de dados, já que de difícil investigação. Um dos cenários mais complexos é o de abuso sexual entre irmãos (“sibling incest”), especialmente quando ambos vivem em famílias desestruturadas e apenas recorrem, um ao outro, em busca de conforto, afeto, apoio, quadro que tende a agravar-se na puberdade. Não foi encontrada diferença substancial entre o grupo de indivíduos que experimentou o incesto entre irmãos e aqueles que experimentaram o incesto de outros modos, dentro de casa: ambos apresentaram depressão, problemas de autoestima, hostilidade, punições rigorosas, físicas ou psicológicas e relações familiares bastante difíceis. Interessante a conclusão de que lares desestruturados podem colocar os irmãos em risco de incesto entre eles próprios. Situação semelhante é narrada, na criminologia, pela teoria chamada Broken Homes. Este grupo de pessoas costuma apresentar, no futuro, problemas maiores quanto à reincidência, costumam iniciar seus delitos sexuais antes dos demais jovens, geralmente apresentam maiores problemas de reincidência e históricos de abuso sexual mais traumático e severo.285 Apesar de os dados apresentados referirem o abuso sexual e não a prostituição infantil especificamente, desnecessário demonstrar a conexão entre as duas instâncias. Repisa-se: em que pese do ponto de vista legal se tratar de tipos penais diferentes, no campo multidisciplinar, o fenômeno está interrelacionado com o abuso sexual decorrente da negligência e da exposição à promiscuidade sexual, apresentando consequências nefastas sobre a vítima, as quais devem ser, portanto, evitadas, sendo a criminalização deste tipo de conduta um dos mecanismos aos quais a sociedade pode e deve recorrer. Crianças e 284 285 HANSER/MIRE, en: IRLCT 2008, p. 101-114. Ibdem, p. 101-114. 112 adolescentes possuem direito a um adequado processo de formação e desenvolvimento sexual quando possível, ou ao menos, no caso dos demais vulneráveis, proteção pura e simples. Isto corresponde a “procurar activamente su exclusión del mercado de la prostitución, dada la influencia que el precio puede ejercer sobre una voluntad inmadura, viciando su consentimiento.”286 9. Por último, então, passamos à análise quanto à gravidade do delito previsto pelo artigo 189 do CP. 1. Será castigado con la pena de prisión de uno a cinco años: a) El que captare o utilizare a menores de edad o a personas con discapacidad necesitadas de especial protección con fines o en espectáculos exhibicionistas o pornográficos, tanto públicos como privados, o para elaborar cualquier clase de material pornográfico, cualquiera que sea su soporte, o financiare cualquiera de estas actividades o se lucrare con ellas. b) El que produjere, vendiere, distribuyere, exhibiere, ofreciere o facilitare la producción, venta, difusión o exhibición por cualquier medio de pornografia infantil o en cuya elaboración hayan sido utilizadas personas con discapacidad necesitadas de especial protección, o lo poseyere para estos fines, aunque el material tuviere su origen en el extranjero o fuere desconocido. A los efectos de este Título se considera pornografia infantil o en cuya elaboración hayan sido utilizadas personas con discapacidad necesitadas de especial protección: a) Todo material que represente de manera visual a un menor o una persona con discapacidad necesitada de especial protección participando en una conducta sexualmente explícita, real o simulada. b) Toda representación de los órganos sexuales de un menor o persona con discapacidad necesitadas de especial protección con fines principalmente sexuales. c) Todo material que represente de forma visual a una persona que parezca ser un menor participando en una conducta sexualmente explícita, real o simulada, o cualquier representación de los órganos sexuales de una persona que parezca ser un menor, con fines principalmente sexuales, salvo que la persona que parezca ser un menor resulte tener en realidad dieciocho años o más en el momento de obtenerse las imágenes. d) Imágenes realistas de un menor participando en una conducta sexualmente explícita o imágenes realistas de los órganos sexuales de un menor, con fines principalmente sexuales. 2. Serán castigados con la pena de prisión de cinco a nueve años los que realicen los actos previstos en el apartado 1 de este artículo cuando concurra alguna de las circunstancias siguientes: a) Cuando se utilicen a menores de 16 años. b) Cuando los hechos revistan un carácter particularmente degradante o vejatorio. c) Cuando el material pornográfico represente a menores o a personas con discapacidad necesitadas de especial protección que sean víctimas de violencia física o sexual. d) Cuando el culpable hubiere puesto en peligro, de forma dolosa o por imprudencia grave, la vida o salud de la víctima. e) Cuando el material pornográfico fuera de notoria importancia. f) Cuando el culpable perteneciere a una organización o asociación, incluso de carácter transitorio, que se dedicare a la realización de tales actividades. g) Cuando el responsable sea ascendiente, tutor, curador, guardador, maestro o cualquier otra persona encargada, de hecho, aunque fuera provisionalmente, o de derecho, del menor o de persona con discapacidad necesitadas de especial protección, o se trate de cualquier otro miembro de su familia que conviva con él o de otra persona que haya actuado abusando de su posición reconocida de confianza o autoridad. g) Cuando concurra la agravante de reincidencia. 286 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP 4, p. 825. 113 3. Si los hechos a que se refiere la letra a del párrafo primero del apartado 1 se hubieran cometido con violencia o intimidación se impondrá la pena superior en grado a las previstas en los apartados anteriores. 4. El que asistiere a sabiendas a espectáculos exhibicionistas o pornográficos en los que participen menores de edad o personas con discapacidad necesitadas de especial protección será castigado con la pena de seis meses a dos años de prisión. 5. El que para su propio uso adquiera o posea pornografía infantil o en cuya elaboración se hubieran utilizado personas con discapacidad necesitadas de especial protección, será castigado con la pena de tres meses a un año de prisión o con multa de seis meses a dos años. La misma pena se impondrá a quien acceda a sabiendas a pornografía infantil o en cuya elaboración se hubieran utilizado personas con discapacidad necesitadas de especial protección, por medio de las tecnologías de la información y la comunicación. 6. El que tuviere bajo su potestad, tutela, guarda o acogimiento a un menor de edad o una persona con discapacidad necesitada de especial protección y que, con conocimiento de su estado de prostitución o corrupción, no haga lo posible para impedir su continuación en tal estado, o no acuda a la autoridad competente para el mismo fin si carece de medios para la custodia del menor o persona con discapacidad necesitadas de especial protección incapaz, será castigado con la pena de prisión de tres a seis meses o multa de seis a doce meses. 7. El Ministerio Fiscal promoverá las acciones pertinentes con objeto de privar de la patria potestad, tutela, guarda o acogimiento familiar, en su caso, a la persona que incurra en alguna de las conductas descritas en el apartado anterior. 8 Los jueces y tribunales ordenarán la adopción de las medidas necesarias para la retirada de las páginas web o aplicaciones de internet que contengan o difundan pornografia infantil o en cuya elaboración se hubieran utilizado personas con discapacidad necesitadas de especial protección o, en su caso, para bloquear el accesso a las mismas a los usuarios de Internet que se encuentren en territorio español. O referido tipo penal trata de delito envolvendo imagens e materiais pornográficos empregando menores ou “personas con discapacidad necesitadas de especial protección”, anteriormente denominadas como incapazes. O tipo em tela subdivide-se em diversas modalidades, envolvendo a chamada “pedofilia virtual”. Em que pese a importância e a contemporaneidade do tema, não é, como regra, neste trabalho, considerado um delito de natureza grave, já que não atinge, diretamente, o bem jurídico protegido, qual seja, a liberdade ou indenidade sexual de determinada vítima. A exceção fica por conta do artigo 189.1.a (cooptar e utilizar as vítimas), 189. 2 (hipóteses de aumento da pena), 189.3 (violência ou intimidação) e 189.6 (dever de garantidor), já que nestes caso atinge-se, diretamente, a indenidade sexual da vítima. Entretanto, o tema merece uma única, mas importante ressalva. Há que se considerar sempre o cenário atual da chamada “moralidade sexual” que, embora não seja bem jurídico tutelado, revela padrões de comportamento próprios do nosso tempo. Assim, em que pese, em tese, termos estas duas situações referidas como sendo graves, somente diante do caso concreto é que se poderá 114 confirmar qualquer conclusão neste sentido. Os hábitos e comportamento sexual dos jovens mudaram muito nas últimas décadas. Atualmente, não se pode generalizar afirmando que o fato de mostrar a um adolescente cenas de sexo pela internet pode configurar corrupção sexual, pois qualquer jovem, hoje em dia, acessa o conteúdo que quiser através da rede mundial de computadores. Obviamente, isto pode não ser adequado, mas daí a converter-se no que denominamos por “delito sexual grave” não se justifica. Em tempos de considerar-se quase tudo como “pedofilia”, há que ser fazer alguns esclarecimentos. A pedofilia existe é configura-se em diagnóstico de parafilia. Alguns casos são célebres. Veja-se: Apenas para exemplificar, veja-se o caso de José Fritzl287, 73 anos, austríaco. O homem encerrou sua filha Elisabeth, hoje com idade aproximada de 43 anos de idade, em um sótão sem janelas, por 24 anos, em Amsterdã. É pai dos sete filhos que ela teve, sendo que um outro morreu após o parto. Foi condenado à internação perpétua em instituição psiquiátrica. Outro caso que chama a atenção é o de Arcebio Alvarez Quintero 288, colombiano, 68 anos de idade, trabalhador rural. Foi acusado de estuprar sua filha durante 20 anos. Teve oito filhos com a vítima, que começou a ser abusada quando tinha apenas cinco anos de idade. Houve outras seis gestações provocadas pelos estupros, porém resultaram interrompidas. A moça de 32 anos denunciou a seu pai diante do medo de que o mesmo viesse a abusar de suas filhas-netas, bem como forma de interromper as agressões que o mesmo infligia aos filhos-netos. Na Italia289, um homem com 63 anos violentou sexualmente a filha, hoje com 40 anos de idade, chamada Laura, durante vinte e cinco anos. O irmão de Laura, hoje com 40 anos de idade, fez o mesmo com suas quatro filhas e com sua outra irmã. O brasileiro José Agostinho Obispo Pereira 290, 54 anos de idade, maranhense, estuprou suas duas filhas durante toda a vida, tendo com elas oito filhosnetos. Morreu decapitado em um motim na penitenciária de Cárcel Piedras. 10. Há que se matizar que, a expressão “pedofilia” não é jurídica. “Pedofilia” é um termo clínico utilizado para referir a preferência sexual por crianças, ou seja, desejo sexual intenso e recorrente por crianças, além de fantasias eróticas neste sentido, que duram por, no mínimo, seis meses, além de fantasias focadas em adolescentes pré-púberes, nos termos do Manual de Diagnósticos de Transtornos Mentais DSM V.291 Já conforme o CID-10,292 (Classificação Internacional de Doenças) preenche-se os requisitos para este diagnóstico o paciente com, no mínimo, dezesseis anos de idade, que apresenta preferência sexual persistente ou predominante por crianças pré-púberes, no mínimo cinco anos mais jovens. Neste caso do conceito apresentado temos o perfil do abusador primário. Já o abusador secundário ou situacional envolve o perfil do indivíduo que possui um alvo mais amplo: 287 TECEDEIRO, Diário de Notícias, 29 abr. 2008 [web site y fecha de acceso o p.]. DE VENGOECHEA, ABC online, Bogotá 29 mar. 2009. 289 PAI obrigou filha a acusar desconhecido por gravidez causada por incesto. Folha.com São Paulo, 01 abr. 2009. 290 TEIXEIRA/GARRONE, O Globo, 8 fev. 2011. 291 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014. 292 Vide Classification of Mental and Behavioral Disorders - CID 10, referido en: COHEN-ALMAGOR, en: HJCJ 2013 pp. 190-215. 288 115 geralmente, apresenta orientação sexual mais direcionada a pessoas adultas, porém, eventualmente, pode, em situações particulares de isolamento, estresse ou ira, cometer algum abuso sexual infantil.293 Tal forma de criminalidade ocorre, com larga frequência, de modo incestuoso, ou seja, dentro do lar,294 e o tema é um dos mais áridos a se trabalhar. Não será aprofundado por não ser nosso objeto de estudo. Sem dúvida, o assunto é crítico, e as agressões ou abusos sexuais a vítimas vulneráveis merecem a consideração de especial gravidade, como já afirmado e justificado. Enfim, o artigo 189 mescla outros assuntos, os quais, embora importantes, não possuem a mesma gravidade. O artigo 189 parece destoar do conjunto, tratando de outro tipo de delinquência e perturbando a unidade sistemática do capítulo,295 especialmente diante de condutas inseridas pelas reformas de 1999 e de 2003, de posse, venda e distribuição de material pornográfico infantil296 o que não foi alterado diante da reforma de 2015. Tais resultados são oriundos de alguns marcos importantes, como a Convenção das Nações Unidas sobre Direitos da Criança e do Adolescente, de 20 de novembro de 1989, a qual já determinava aos Estados a adoção de todas as medidas legislativas para a proteção de crianças e jovens contra todas as formas de exploração e abusos sexuais. Também há o Convênio de Budapeste sobre Cibercrimes, de 2001, e a Decisão Marco n. 2004/68/JAI,297 de 22 de dezembro de 2003, do Conselho da União Europeia relativa à luta contra a exploração sexual de crianças e à pornografia infantil. Já definia a pornografia infantil como sendo qualquer material que descreva ou represente, de maneira visual, o menor praticando ou participando de conduta sexualmente explícita ou, ainda, envolvendo pessoa que se assemelhe à criança praticando a conduta mencionada. Também imagens realizadas a partir de uma criança inexistente praticando ou participando de tais condutas. Veja-se que a nova redação do tipo no CP espanhol agora apresenta definição legal para “pornografia infantil”. No artigo 3.2 consta que qualquer Estado membro poderá excluir de responsabilidade penal as condutas referidas nos dois primeiros incisos da letra b) do artigo 1, quando, nos casos de produção e posse de pornografia infantil, se tenham e se produzam imagens de crianças que tenham alcançado a idade do consentimento sexual, com o consentimento dos mesmos e, exclusivamente, para uso privado. Esta repressão se revela, atualmente, porque graças a avanços tecnológicos como a internet, tais condutas proibidas são de mais fácil 293 SETO, ASB 2012, pp. 231-236. PERES, ZH 2009, p. 27. 295 MORALES PRATS/GARCÍA ALBERO, en: QUINTERO OLIVARES (dir.)/MORALES PRATS (coord.), Comentarios a la parte especial del Direito penal9, pp. 309-310. 296 Ibidem, pp. 309-310. 297 Ibidem, p. 372. 294 116 realização, pois possibilitam não apenas uma maior e melhor produção, mas sua distribuição através de novos canais de informação de forma anônima e sua recepção, em tempo real, por milhões de usuários.298 Outra novidade da recente mudança legislativa é o agravamento das penas no caso de o sujeito ativo ser membro da família ou abusador de sua posição de confiança ou autoridade. 11. Nuñez Paz299 refere o artigo 189, CP, como exemplo de demonização criminal, referindo que após uma onda de escândalos de “pedofilia cibernética” pela Europa, o legislador, atento ao mal estar social, tipificou condutas muito distantes de qualquer bem jurídico, utilizando, inclusive, expressões extremamente abertas buscando uma determinada segurança jurídica. A recente reforma operada pela LO 1/2015 anunciou dedicar especial atenção à materia, seguindo a Diretiva 2011/93/UE, que define como pornografía infantil “no sólo el material que representa a un menor o persona con discapacidad participando en una conducta sexual, sino también las imágenes realistas de menores participando en conductas sexualmente explícitas, aunque no reflejen una realidad sucedida.” Ademais, facultará a juízes e tribunais para que ordenem a adoção de medidas necessárias para a retirada das páginas web que contenham ou difundam este tipo de material ou, conforme o caso, sejam ditas páginas bloqueadas, conforme verificou-se na nova redação legal. Quanto à danosidade da conduta, é sabido que materiais pornográficos vistos na infância e adolescência são altamente prejudiciais na formação do indivíduo,300 bastando recordar Marques de Saade, o qual viveu nos tempos da Revolução Francesa e acabou condenado a ser decapitado. Ele recomendava que seu próprio exemplo não fosse seguido, já demostrando preocupação com o conteúdo violento e pornográfico de suas leituras. O interesse por sua obra começou no final do século XIX. O efeito mais perverso da literatura pornográfica ocorre ao mostrar-se a vítima sentindo prazer ao ser violentada (geralmente a vítima é mulher) e quando se mescla o delito sexual com a violência, reforçando as fantasias cognitivas relacionadas à dominação sexual, conforme Hanser e Mire: 301 “[…] because of the powerful conditioning effects that pornography can have upon youth who, due to their still forming nervous systems are even more impressionable than adults, interviewers and 298 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (Dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 850. NUÑEZ PAZ, en: MUÑOZ CONDE/LORENZO SALGADO/FERRÉ OLIVÉ/CORTÉS BECHIARELLI/ NUÑEZ PAZ (dir.), Un derecho penal comprometido, p. 901. 300 HANSER/MIRE, en: IRLCT, 2008, pp. 101-114. No mesmo sentido CLEMENTE/ESPINOSA, en: CLEMENTE/ESPINOSA (coords.), La mente, p. 173. 301 CLEMENTE/ESPINOSA, en: CLEMENTE/ESPINOSA (coords.), La mente, p. 173. 299 117 assessment specialists should question youth about their exposure to sexually explicit material in a direct but non confrontational manner.” 12. Quanto ao delito, especificamente, de posse e distribuição de material pornográfico, a jurisprudência apresenta vários casos de condenação de pessoas que descarregaram em seus computadores pessoais imagens ou vídeos envolvendo pornografia infantil. O delito de posse configura-se como sendo de perigo, antecipando as barreiras protetivas do Direito Penal. A respeito, Muñoz Conde302 tece crítica no sentido de que o legislador “invade la privacidad hasta unos niveles difícilmente compatibles con el derecho constitucional a la intimidad y criminaliza una conducta que, por inmoral que parezca, no afecta directamente el bien jurídico protegido”. São denominados, na modalidade comissiva, como “omnicomprensivos”, pois abarcam qualquer meio além da posse: difusão, venda e exibição, como diz Cancio Meliá.303 Observe-se, por fim, que a mera conduta de “assistir” a material que não é próprio ou descarregado, inclusive através de técnica conhecida como “streaming”, não configura o crime.304.305 No mesmo sentido, Ropero Carrasco afirma ser o projeto bastante populista neste sentido, indo até mesmo além do exigido pela comunidade internacional.306 Dito isto, resta claro que apesar dos efeitos perversos do conteúdo pornográfico e pedófilo, que são comprovados, a rotulação de delito sexual grave não se aplica a todas as hipóteses previstas pelo artigo 189, mas somente quando o agente faz o serviço de cooptar ou utilizar a vítima menor de idade ou vulnerável, necessitada de especial proteção, para a elaboração de materiais pornográficos ou espetáculos desta natureza, com situação agravada conforme as características do crime (vide artigo 189.2). No caso de produção, venda, distribuição, exibição, oferecimento e facilitação da produção não se vislumbra a lesão direta à indenidade, embora haja dignidade penal na tipificação, exceto se houver, por exemplo, na produção do material, o emprego direto da vítima, agredida ou abusada sexualmente por parte do agente delinquente. Porém, nestes casos, o delito de especial gravidade será o de agressões ou de abuso sexual. É que a criminalização que se justifica em todos estes tipos delitivos contra a dignidade sexual face às considerações já apontadas, diante de um Direito Penal do Fato e não de autor, leva em conta a existência de possível e viável relação entre a pornografia infantil e a criminalidade física, ou seja, de possível contato direto entre autor e vítima, cuja interação é um fenômeno 302 MUÑOZ CONDE, PE19, pp. 241-244. CANCIO MELIÁ, en: RODRÍGUEZ MOURULLO (dir.)/JORGE BARREIRO (coord.), Comentarios al CP, p. 542. 304 GÓMEZ TOMILLO, en: GÓMEZ TOMILLO, Comentarios al CP2, p. 761. 305 Ibidem, p. 761. 306 ROPERO CARRASCO, EPC v. 34 2014 pp. 225-300. 303 118 complexo.307 Casos em que tenha ocorrido violência ou intimidação à vítima, à evidência, merecem a rotulação mais grave, assim como no caso daqueles agentes que possuem o dever de garantidor. 13. Concluídas as considerações acerca da gravidade dos delitos sexuais previstos pelo ordenamento jurídico espanhol, pode-se finalizar dizendo ainda que, como condição de procedibilidade em relação aos delitos de estupro, assédio ou abuso sexuais, será necessária a denuncia de la persona agraviada, de su representante legal o querella del Ministerio Fiscal, que actuará ponderando los legítimos intereses en presencia. Cuando la víctima sea menor de edad, incapaz o una persona desvalida, bastará la denuncia del Ministerio Fiscal. En estos delitos el perdón del ofendido o del representante legal no extingue la acción penal ni la responsabilidad de esa clase (artigo 191, CP). Além disto, no artigo 192.3 CP tem-se uma disposição geral aos capítulos anteriores, na primeira parte, dizendo que, conforme o caso e fundamentadamente, o magistrado poderá aplicar a pena de privação do poder familiar ou de inabilitação especial. Porém, diante de condenado por delitos previstos pelos capítulos II bis ou V, deverá ser imposta a pena de inabilitação especial para profissão ou ofício a quem tenha contato regular e direto com menores de idade. São exemplos os casos em que agentes de saúde, professores ou conselheiros tutelares venham a praticar delitos sexuais com a vítima menor, caso em que se aplicará, a par da sanção cabível, conforme nova redação conferida pela LO 1/2015. Como se sabe pelas estatísticas apresentadas em 3, III, C, 4. a, na grande maioria dos casos a vítima conhece o abusador, razão pela qual a incidência da medida é pertinente no caso de delitos sexuais graves, especialmente contra vítimas vulneráveis. Refere o novo texto, em relação ao artigo 192.3, CP: El juez o tribunal podrá imponer razonadamente, además, la pena de privación de la patria potestad o la pena de inhabilitación especial para el ejercicio de los derechos de la patria potestad, tutela, curatela, guarda o acogimiento, por el tiempo de seis meses a seis años, y la pena de inhabilitación para empleo o cargo público o ejercicio de la profesión u oficio, por el tiempo de seis meses a seis años. A los responsables de la comisión de alguno de los delitos de los Capítulos II bis o V se les impondrá, en todo caso, y sin perjuicio de las penas que correspondan con arreglo a los artículos precedentes, una pena de inhabilitación especial para cualquier profesión u oficio, sea o no retribuido que conlleve contacto regular y directo con menores de edad por un tiempo superior entre tres y cinco años al de la duración de la privación de libertad impuesta en su caso en la sentencia, o por un tiempo de dos a diez años cuando no se hubiera impuesto una pena de prisión atendiendo 307 BOURKE/HERNANDEZ, JFV 2009 pp. 183-191. 119 proporcionalmente a la gravedad del delito, el número de los delitos cometidos y a las circunstancias que concurran en el condenado.” (grifo nosso) Não serão comentadas, por ausência de interesse direto nesta investigação, a possibilidade de imposição de pena à pessoa jurídica por crimes de natureza sexual. Feitas estas ponderações, passamos ao próximo capítulo, o qual terá por eixo central o tratamento jurídico-penal da perigosidade em relação à delinquência sexual grave. Neste ponto examinaremos mais amiúde o princípio da culpabilidade, eis que, embora seu significado atual não seja explícito, serve como fundamento e limita para a intervenção penal, tendo como pressuposto o reconhecimento do outro como sujeito autônomo, como cidadão, como pessoa responsável e como coautor de regras e normas. Assim, a própria prevenção geral tem um espaço, pois o merecimento da pena deve vir alicerçado no princípio da culpabilidade, bem como no ideário de reinserção social, já que não colide, muito pelo contrário, constitui seu correlato, à medida em que determina a solidariedade e a prestação do necessário para a integração social do delinquente.308 Deste modo, compreender-se-á, ao final do trabalho, os modelos existentes de enfrentamento da problemática ora aventada, especialmente considerando os exemplos extraídos dos ordenamentos espanhol, alemão, português e norte-americano, buscando-se estabelecer um rol de critérios legitimadores a serem empregados para impedir aquilo que Wedy309 já apontava como sendo um grande perigo à sociedade democrática, ou seja, que “as garantias passem de uma condição de estabilizadoras do sistema, para meros obstáculos,” a não ser que, ao invés de “justiça”, queiramos mesmo o “justiçamento”. 308 309 ROBLES PLANAS, InDret 2007 pp. 18-19. WEDY, Eficiência e prisões cautelares, pp. 27-29. 120 §3 O TRATAMENTO PENAL DA PERIGOSIDADE PARA AUTORES DE DELITOS SEXUAIS GRAVES “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, “cegos que veem, cegos que vendo, não veem.” Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago. I Apresentação 1. Verifica-se que uma sociedade dita pós-moderna e atormentada, permanentemente, pela sensação de insegurança, faz com que o clamor público aliado ao poder de certos segmentos midiáticos permitam o desenvolvimento de certo pânico coletivo a implorar por medidas punitivas cada vez mais drásticas, ainda quando nem sempre fossem aquelas necessárias. Na atual sociedade do risco, a modernidade reflexiva deve conviver, obrigatoriamente, com a imprevisibilidade associada às fontes desses riscos, o que acaba agravando o medo, a insegurança e o descrédito nas instâncias de proteção. A globalização econômica e a consequente globalização cultural determinaram o discurso hegemônico da pretensão de uma segurança que nunca chega. Evidentemente, disto nasce um novo olhar sobre o mesmo Direito Penal, já que novas questões criminais e criminológicas se impõem. Por outro lado, acaba nascendo certa crise para o Direito Penal e para as ciências criminais, de um modo geral. O poder do denominado Direito Penal “puramente” simbólico pode chegar a ponto de apresentar reminiscências de Direito Penal de Autor, e ensejar políticas criminais inspiradas no modelo do chamado Direito Penal do Inimigo, categoria que vem sendo aplicada ao delinquente sexual, como foi analisado anteriormente, em 2, II, B, 4, porém sem sequer uma preocupação maior em diferenciar fatos graves dos demais, o que acaba criando um grupo assinalado como homogêneo, em que psicopatas sexuais e voyeurs podem ser colocados sob o mesmo rótulo. 2. Dito isto como ponto de partida para o presente capítulo, cabe referir algumas questões conceituais referenciais. Primeiramente, optou-se, neste trabalho, pelo ordenamento jurídico espanhol como texto de fundo eis que, como já referido em 2, III, A, mudanças relevantes fizeram da Espanha um marco de conquistas históricas, sociais, culturais e jurídicas, em relativamente curto espaço de tempo, neste sentido. Ademais, embora polêmico, o instituto da liberdade vigiada, medida de segurança aplicável a autores de delitos sexuais imputáveis, porém perigosos, tema que será especialmente 121 trabalhado em 6, VI, demarcou nosso especial interesse pelo tema. Gize-se, ainda que, desde já e doravante, a expressão “medida de segurança” representará apenas a medida criminal, e não qualquer outra, como eventuais medidas sancionatórias administrativas, ou então, aquelas voltadas à criança e ao adolescente. Aliás, sobre a relevância de se tratar a medida de segurança no âmbito penal, diz Figueiredo Dias,310 em relação à concepção administrativista das medidas de segurança, que tal proposta expulsaria a teoria da medida do Direito Penal e da política criminal, “amputando esta e aquele de instrumentos sancionatórios essenciais à realização da sua função e das suas finalidades”; ademais, não se conseguiria explicar a necessária jurisdicionalização da medida de segurança, nem tão pouco a sua ligação indispensável a um ilícito-típico, “que só na constituição políticocriminal encontram a sua verdadeira razão de ser.” 3. Como ponto de partida será apresentada, a tese de que, no tocante ao princípio da culpabilidade, o mesmo não possui suficiente alcance para abranger questões relativas à perigosidade do indivíduo, caso contrário, as penas acabariam sendo superestimadas para além dos limites admissíveis num Estado de Direito, devendo-se, então, como intento para solucionar-se o problema, trazer à baila o princípio da proporcionalidade e suas discussões no campo das medidas de segurança. Mesmo assim é salutar levar em conta o princípio como forma de limitação ao jus puniendi, tendo, em primeiro lugar, a noção de proteção da dignidade, proibindo-se a retroatividade in malam partem das mesmas, investindo-se na busca pela reinserção social de todos, através do monitoramento com acompanhamento humano em liberdade, trabalhando-se para a evitação da reincidência em geral, buscandose alternativas para a necessária segurança coletiva sem o aniquilamento de garantias fundamentais. Neste âmbito, fundamental discutir-se, ainda que brevemente, algumas noções sobre a liberdade ou livre-arbítrio na tomada de decisões, sem avançar no campo filosófico, porém acompanhando algumas atualizações no campo das neurociências e da própria evolução do debate jurídico-penal a respeito. Portanto, o livre arbítrio e sua indemonstrabilidade, a relação entre a imputabilidade e a possibilidade de motivação do indivíduo como limitações ao livre arbítrio, a autodeterminação de fidelidade ao ordenamento como equivalente funcional à ideia de livre arbítrio e o posicionamento final quanto ao conceito de liberdade adotado neste trabalho serão temas de especial interesse já em 3, II. Na sequência do capítulo, em 3, III, a culpabilidade como princípio reitor do 310 FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, p. 96. 122 Direito Penal e suas limitações deixarão clara a necessidade de uma transposição ao princípio da proporcionalidade, de vital importância no caso das medidas de segurança, aptas ao tratamento jurídico-penal da perigosidade. 4. Feita a transposição do princípio da culpabilidade ao da proporcionalidade, passaremos ao tema da perigosidade e sua relação com a reincidência, abordando alguns instrumentos atuariais e processos de risk assessment, bem como tratamentos e possibilidades de êxito. Será destacada a importância do conceito de perigosidade e suas derivações desde uma perspectiva histórico-criminológica, tais quais os mecanismos que a sociedade atual desenvolve para diagnosticá-la, bem como para, assim, prognosticar riscos de eventual reincidência e, principalmente, administrar tais riscos e categorias de pessoas denominadas como “perigosas”. Os instrumentos atuariais compreendidos nos processos de risk assessment, neste sentido, são ainda bastante criticados, porém apresentam resultados importantes diante da temática dos delitos sexuais, e serão retomados especialmente quando da análise do instituto do Civil Commitment norte-americano, em 5, III, que versará sobre instrumentos envolvendo privação de liberdade de autores de delitos sexuais. A par disso, estudos sobre a reincidência quanto à delinquência sexual demonstrarão, neste capítulo, o modo como o tema vem sendo explorado: de um lado, por parte do sensacionalismo midiático, e de outro, por parte de pesquisas que investem em tratamentos reabilitadores com resultados promissores, à exceção dos indivíduos psicopatas, os quais compõem ínfima minoria em termos estatísticos, em que pese a alta repercussão e a intensa gravidade de seus atos, o que significa, claramente, um maior alarme social. Ainda, serão apresentadas características específicas em relação a vítimas e a autores de delitos sexuais, o que recusamos denominar como “perfil”, já que não haveria cientificidade em tal afirmação, até porque, como já afirmamos, é muito variável a gravidade de cada tipo de delito cometido, não sendo adequado referirmos todos os delinquentes sexuais como um grupo homogêneo. Serão também apresentados três modelos de aplicação prática deste tipo de procedimento de risk assessment, além de um breve excurso em 3, III, C, 5 d, sobre algumas considerações acerca do tratamento que vem sendo aplicado a delinquentes sexuais e sua eficácia, já que não é o objetivo principal do trabalho, porém apresenta relação importante com o tema da delinquência sexual. 5. Por opção metodológica, entendemos por bem esclarecer que penas e medidas são, simultaneamente, consequências jurídicas do delito, porém de matizes diferenciadas, 123 com características, finalidades, conteúdos, limites e garantias próprios, apesar de suas muitas semelhanças. A opção por penas e medidas sob um mesmo denominador comum, qual seja, o Direito Penal, faz com que, necessariamente, ambas devam seguir os mesmos princípios, ressalvadas, evidentemente, algumas peculiaridades para que não sejam vilipendiadas ou descaracterizadas. Isto serve para que exista, ao fim e ao cabo, um limite ao jus puniendi ao poder estatal, pois a medida é, inegavelmente, consequência jurídica e necessária do delito, até mesmo por razões de prevenção geral. Embora esta última não exerça o protagonismo em se tratando de medidas, apresenta relevância indiscutível, o que não aconteceria, ao menos da mesma forma, se as medidas estivessem fora do âmbito penal. Dentre tais princípios a serem obedecidos e de natureza comum estão o da legalidade, o da jurisdicionalidade e o da irretroatividade da lei mais prejudicial, para citar apenas alguns dentre os mais importantes. Porém, se peculiaridades não forem compreendidas a fim de diferenciar penas e medidas, teremos, cada vez mais, espaço aberto para confusões e hibridismos. Assim tem referido Antunes 311 quando diz que, de forma progressiva, o espaço da medida de segurança tem vindo a coincidir, quase exclusivamente, com o deixado pelas limitações impostas pelo princípio da culpa, “podendo recordar-se, assim e cada vez mais, pertinentemente, a expressão ‘fraude de etiquetas’, ainda que com um sentido nada distinto do habitual.” A própria pósdelitividade, exigida como indício ou sintoma comprovador de perigosidade criminal, marco objetivo da medida de segurança no campo penal, demonstra a ideia de que, mesmo o inimputável submetido à medida de segurança, deve ser protegido pelo manto deste ramo do ordenamento, e não expulso deste arcabouço dotado de especificidades, garantias penais e processuais penais especiais, razão pela qual foi colocada lado a lado dos princípios a serem trabalhados na sequência. E em termos deste arcabouço, já tendo sido apresentados os temas do presente capítulo, comecemos analisando o princípio da culpabilidade, o qual está diretamente vinculado aos instrumentos penais aplicados ao delinquente sexual imputável, analisando-se, portanto e ainda, suas insuficiências diante do tratamento jurídico-penal da perigosidade de indivíduos inimputáveis e, agora também, de alguns sujeitos imputáveis, como já ocorre na Espanha. 311 ANTUNES, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, p. 374. 124 II “Bad or Mad”? O princípio da culpabilidade e o “livre arbítrio” diante de suas próprias insuficiências A. A importância da análise do livre arbítrio através de um exemplo concreto: ilustração do tema 1. Um dos casos mais emblemáticos estudado por neurocientistas, atualmente, é mencionado por ejemplo, por Feijoo Sanchez.312 O caso foi analisado pela doutrina médica e narra a história de um professor e pai de família, com quarenta anos de idade, que começou a desenvolver especial interesse por pornografia infantil. Este homem foi sentenciado a ser submetido a Tratamento Hormonal Antiandrógeno (doravante THA), o qual não resultou em qualquer progresso, inicialmente. Foi então descoberto um tumor na região orbitofrontal, o qual lhe gerava fortes dores de cabeça, motivando uma cirurgia. Após o procedimento, o homem foi colocado em liberdade diante da ausência de perigosidade, já que não mais sentia interesse sexual por menores nem por pornografia infantil. Três meses após, o homem voltou a sentir as fortes dores de cabeça novamente e o interesse pela pornografia retornou. Descobriu-se que o tumor havia voltado a crescer. Realizada nova cirurgia, o problema foi resolvido “novamente”. Assim, técnicas de neuroimagem demonstraram que aquele homem, o qual na verdade havia sido classificado pelo Direito Penal, como “malvado”, era na verdade, um “enfermo”. 2. Será que o Direito Penal moderno, lastreado pelo princípio da culpabilidade, bem reage diante de situações como estas para classificar este tipo de indivíduo e aplicar-lhe a resposta mais adequada frente aos atos que cometeu? Esta resposta deve conter juízo de censura ou não? Há que se analisar o livre arbítrio na doença ou seria o caso de puro determinismo? Penas ou medidas seriam mais adequadas? Ou ambas, diante de residual, porém relevante, perigosidade? Diante da importância do tema, especialmente no tocante à delinquência sexual grave, o assunto vem sendo pautado em diversos ordenamentos jurídicos internacionais, onde são desenvolvidos instrumentos próprios visando solucionar problemas como o apresentado, até porque, com o desenvolvimento da medicina e das neurociências em geral, casos assim são mais frequentemente diagnosticados, demandando soluções jurídicas coerentes e modernas. 312 FEIJOO SÁNCHEZ, InDret 2011, p. 3. 125 B. A crise do conceito de culpabilidade diante da complexa noção de livre arbítrio e de sua indemonstrabilidade 1. A indemonstrabilidade do chamado “livre arbítrio” e suas significações 1. Certamente todas as indagações anteriores vêm sendo feitas, constantemente, por juristas de várias partes do mundo, principalmente diante das descobertas das ciências da saúde, especialmente das neurociências, que surpreendem a cada instante. Entretanto, não é necessário aniquilar todos os conhecimentos de Direito Penal para lidar com a novidade, porém, talvez seja importante atualizar ou, até mesmo, rever alguns conceitos jurídicos já não mais suficientes para o nosso tempo. Logicamente, existe uma interrelação entre os diversos campos do saber e, por mais que o Direito pretenda ser neutro ou isento, um total isolamento é algo impossível. Como questiona Feijoo Sanchez313, será que poderemos seguir falando de uma fundamentação da culpabilidade diante do atual conhecimento científico a respeito do funcionamento do cérebro? Veja-se que este conhecimento, até pouco tempo atrás, só nos era acessível através de uma mera experiência ou sensação subjetiva, e as concepções tradicionais da responsabilidade moral e da culpabilidade foram construídas sobre aquele conhecimento que se tinha. Diante das repercussões que o tema irá apresentar no tocante aos instrumentos que vêm sendo desenvolvidos para lidar com a temática da delinquência sexual, especialmente no caso dos processos de risk assessment, bem como no caso de tratamentos antiandrógenos (vulgarmente conhecidos como “castração química”) ou mesmo da debilidade de certos tratamentos terapêuticos comuns, passamos a apresentar, basicamente, duas formas de entender-se a culpabilidade, eis que ambas estão relacionadas à matéria. A primeira delas diz respeito à concepção tradicional, vinculada à motivabilidade e à proteção de bens jurídicos e que funciona como limite ao jus puniendi estatal. Embora suas deficiências, não pode ser completamente descartada por apresentar pressupostos importantes no trato desta matéria, como será visto agora. A outra forma diz respeito à ideia de uma autodeterminação de fidelidade ao ordenamento jurídico, apresentando um conceito de liberdade, aqui entendida 313 FEIJOO SÁNCHEZ, en: DEMETRIO CRESPO/(Dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.). Neurociencias y derecho penal, pp. 277 e ss. pp. 269-298. 126 como sinônimo de livre arbítrio. No entanto, nenhum modelo é puro ou perfeito para, sozinho, responder a todos os questionamentos. 2. Imputabilidade e possibilidade de motivação como limitações ao “livre arbítrio” 1. Conforme já analisado no segundo capítulo, o controle social é condição básica da vida social sendo missão do Estado, assegurando-se o cumprimento das expectativas de condutas e dos interesses contidos nas normas que regem a convivência, confirmando-as e estabilizando-as, em caso de sua frustração ou descumprimento, com a respectiva sanção imposta de uma determinada forma ou procedimento. A convivência do indivíduo com os demais demonstra um complexo sistema de interação e comunicação que corresponde ao que a psicologia denomina como “motivação”, de fundamental importância para que o indivíduo venha a cumprir com seus deveres no que tange ao cumprimento das regras de convívio social. Neste sentido, dizemos que as funções de normalidade motivacional e de proteção a bens jurídicos fundamentam a culpabilidade em sentido material e que o importante não é que o indivíduo possa escolher dentre vários comportamentos possíveis, o que é indemonstrável cientificamente, mas que a norma penal o motive, com seus mandatos e proibições, para que se abstenha de realizar a conduta proibida face à ameaça de uma pena.314 Tal função motivacional somente pode ser compreendida se for situada dentro do Direito Penal, num contexto de controle social mais amplo. Evidentemente, neste contexto, os fatores psíquicos e os socioculturais, bem como as descobertas científicas mais atualizadas, devem ser considerados, razão pela qual as neurociências devem interferir no sentido de qualificar o debate. Por outro lado, não pode haver eficácia motivadora numa norma penal sem que outros fatores igualmente inibitórios acompanhem aquela norma, ou seja, fatores outros relacionados a outras instâncias de controle social. Do mesmo modo, a função motivadora emanada por estas outras instâncias seria ineficaz se não fosse confirmada e assegurada pela função motivadora da norma penal. No entanto, este controle social realizado pelo Direito Penal necessita de limites315 e deve preservar a dignidade do ser humano. Aqui reside a justificativa ética do Direito Penal e do Estado, o qual, a nosso sentir, não pode depender estritamente de considerações individualistas. 314 315 MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, en: PG8, p. 355. HASSEMER, Persona, mundo y responsabilidad, pp. 116-117. 127 2. Neste sentido, a culpabilidade, entendida deste modo, mais que um problema de ordem individual, é fenômeno social, não sendo uma qualidade da ação, mas uma característica que se atribui àquela para poder imputar o fato delitivo a alguém. Por isso, a correlação de forças sociais existentes em certo momento definirá os limites do culpável e do não culpável, entre liberdade e não-liberdade. Assim, não existe uma culpabilidade em si mesma (concepção individualista), mas uma culpabilidade em relação aos demais. Por isto, forte segmento doutrinário propugna, modernamente, por um fundamento social ao invés do tradicional elemento psicológico. O caráter motivador da norma penal configura-se como revelador de participação e de comunicação, culminando no processo de socialização do indivíduo. Assim, numa sociedade onde residam diversos sistemas de valores, isto deverá ser conhecido pelo julgador,316 tanto que um transtorno relevante que incida sobre a capacidade de motivação do sujeito, igualmente, deve ser considerado à luz de um Direito Penal da culpabilidade, e esta deve ser diminuída na proporção direta daquela diminuição de capacidade, como refere Bitencourt.317 Em que pese a moralidade sexual não ser considerada um bem jurídico a ser tutelado, deve ser considerada diante do caso concreto, na análise da culpabilidade. Assim é que os limites entre o permitido e o proibido em termos de incesto, “pedofilia”, relações de poligamia, variam em diferentes culturas. 3. Em relação à ideia de “normal motivabilidade”, que nos interessa em razão das discussões sobre o livre arbítrio diante de problemas de saúde mental ou da perigosidade, o princípio da culpabilidade representa a possibilidade de aplicação de pena a quem apresente certas condições psíquicas, pessoais ou situacionais que lhe possibilitem o acesso normal à proibição.318 Evidentemente, segue sendo proibida a conduta de quem atua sem responsabilidade penal, e não é absurdo dirigir ao inimputável a proibição. A exclusão da culpabilidade diante da inimputabilidade não implica exclusão da proibição do fato: ninguém se arriscaria a dizer, ante inimputáveis, que podem matar, pois no caso deles não há delito, já que esta mensagem poderia ser compreendida mesmo por eles, apesar de sua falta de responsabilidade penal. Conforme Mir Puig, segue fazendo sentido dirigir a mensagem normativa aos penalmente não responsáveis, pois ainda que lhes falte a possibilidade de entrar em contato com a norma de modo consciente, a norma poderá acabar incidindo em seu processo motivacional. 316 MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, PG8, pp.353. BITENCOURT, PG17, pp. 461 e ss. 318 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Introducción al derecho penal, vol. II, p. 575. 317 128 A sociedade também compreende a existência da aplicação de uma consequência jurídica em relação a um delito praticado, mesmo por inimputável, pois conforme Jakobs em relação às medidas de segurança: “[...] ellas también ejercen el efecto secundario de tipo preventivo general (reafirmador de la norma)...”.319 É que a norma primária não pretende proibir a perigosidade, já que esta não é um comportamento, mas um estado do sujeito. Porém, tais normas possuem caráter imperativo em relação ao magistrado, obrigando-o à aplicação de medidas ante a perigosidade.320 Diante de um sujeito completamente impossibilitado de ser motivado normativamente, não se deve falar em infração à norma (é como se não houvesse comportamento humano nem dolo).321 Assim, quando o sujeito sofre uma motivação anormal, a qual coloca em risco sua normalidade psíquica, poderá apresentar ausência de responsabilidade penal. Vale registrar que a impossibilidade absoluta de motivação normativa impede a própria infração da norma, caso em que haverá ausência de comportamento humano ou do próprio dolo. Por isto, não se castiga a um inimputável, posto que não pode ser motivado em absoluto, de forma completa, pela norma. O desejo por prevenção geral, em que pese a demanda popular por penas cada vez mais rigorosas em sede de delitos sexuais, não pode chegar a este ponto, pois a possibilidade da pena encontra limite normativo diante da ausência de responsabilidade penal.322 Tal situação difere dos casos em que a situação motivacional anormal não compromete totalmente a normalidade psíquica do sujeito, podendo gerar, no máximo, uma diminuição na sua capacidade de responsabilidade. 4. Assim, se a existência ou não de motivação alcança certo grau de normalidade, isto é matéria de culpabilidade. Por isto, no injusto são selecionados aqueles comportamentos que o Direito Penal deseja evitar e em relação aos quais é necessário motivar o cumprimento da norma. A culpabilidade é o terreno onde as possibilidades psíquicas de motivação normal do autor são examinadas. A ausência desta normalidade não impede de seguir valorando o fato como antijurídico, pois não supõe uma impossibilidade absoluta de motivação, mas apenas uma ausência de normalidade do processo motivacional. Por tudo isto, Mir Puig323 afirma, a respeito do princípio da culpabilidade, que a probabilidade de fracasso na internalização das normas deve ser considerado no caso concreto como uma possível ponte para a inimputabilidade. 319 JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 40. MIR PUIG, Derecho penal: PG9 p. 81. 321 MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, PG8, pp. 386-388. 322 MIR PUIG, Derecho penal: PG9, pp. 535-536. 323 Ibidem, p. 536. 320 129 5. No que tange à imputabilidade, refere Muñoz Conde324 que qualquer fator que incida sobre processos de socialização “aunque no afecte a la inteligencia y a la voluntad, deve ser tenido presente. El sujeto no motivable por la norma, es inimputable, al haber fracasado los procesos de socialización y aprendizaje.” No mesmo sentido, ou seja, pela incapacidade de culpabilidade em certos casos, referem Jescheck e Weigend325 que mesmo concorrendo a compreensão do injusto, a capacidade de culpabilidade pode ser negada quando o autor resultar incapaz de atuar levando em conta aquele entendimento (momento volitivo) em razão da perturbação psíquica, o que procede, principalmente, nos casos de embriaguez, psicopatias e perturbações sexuais, posto que nestes casos, a pesar de concorrer uma clara consciência do injusto, em casos excepcionais, predominam os impulsos que conduzem ao fato, ou os fatores inibidores podem restar debilitados, deixando de serem domináveis. 6. Diante do exposto resta claro que não se pode descartar, desde logo, a possibilidade de reconhecimento da inimputabilidade em certos casos de delitos sexuais, nem mesmo nos casos de psicopatias, apesar da jurisprudência majoritária. Urruela Mora, ainda que se referindo ao CP de 1995, informa que, de qualquer modo, houve avanço por parte do legislador:326 “a pesar de las críticas planteadas conviene poner de manifiesto el importante avance que ha supuesto la novedosa fórmula del art. 20.1 CP 1995, básicamente al permitir la integración en su ámbito de todos aquellos trastornos mentales y del comportamiento incluidos en las clasificaciones internacionales.” Entretanto, o câmbio legal demonstrado, mantido pela LO 1/2015, não foi acompanhado de movimento similar por parte da jurisprudência sobre a matéria. No caso de psicopatias, por exemplo, o Tribunal Supremo continua apreciando-as como eximentes incompletas ou atenuantes analógicas, somente admitindo-as como eximentes completas quando acompanhadas por outras enfermidades orgânicas ou psíquicas suplementares, as chamadas comorbidades. A respeito, a crítica do mesmo autor: “Este criticable criterio (no sólo por restrictivo, sino también por confuso, ya que evidentemente el trastorno de la personalidad tiene que incidir en la capacidad de autodeterminación, pues de lo contrario no procederá aplicar ni la eximente ni la atenuante) es el que se ha mantenido con oscilaciones bajo la vigencia del nuevo CP de 1995, por lo que se continúa con la tendencia 324 MUÑOZ CONDE, Psicopatología, 1982, pp. 130-135. JESCHECK/WEIGEND, PG5, p. 605. 326 URRUELA MORA, Imputabilidad penal y anomalía o alteración psíquica, pp. 320-321. 325 130 jurisprudencial anterior de apreciar la atenuante analógica […] mientras que se reserva la semieximente para los supuestos más graves de trastorno de la personalidad, normalmente cuando se manifiesta junto con otra patología.” O referido autor também menciona a necessidade de superação deste entendimento jurisprudencial para que o forte alarme social desencadeado por este tipo de delinquência não se torne o vetor principal do julgamento do tema da (in)imputabilidad penal. Acompanha o mesmo entendimento López-Ibor Aliño,327 o qual explica que certos casos graves desta natureza apresentam sérias incidências sobre a própria capacidade volitiva do sujeito, razão pela qual já caberia reconhecer a inimputabilidade, afinal, não são indivíduos “comuns”: são pessoas a quem “falta el motor necesario para hacer el bien o el mal”,328 falta um elemento constitutivo da nossa espécie, já que não possuem capacidade de compreender aos demais, de sentir emoções de certa profundidade, de compreender emocionalmente aos outros, como refere Cancio Meliá. Tampouco se poderia sustentar, como no passado, que a psicopatia era uma espécie de “desordem moral”.329 7. Assim, independentemente da consideração pela (in)imputabilidade, de forma precipitada e sem relação com o fato concreto, há que se avaliar, com maior segurança, o fator perigosidade, este sim, ensejador (mesmo diante de imputáveis) de medida de segurança, como é o caso, atualmente, da liberdade vigiada espanhola. A classificação de um indivíduo como (in)imputável não deveria ser feita do modo como vem ocorrendo nos tribunais, aprioristicamente, classificando-se as pessoas nestas categorias independentemente da relação com o fato cometido. Sobre este tipo de discussão, Quintero Olivares330 faz uma forte crítica à forma como as ciências penais separam as pessoas entre imputáveis e inimputáveis, independentemente do delito cometido. Logicamente que esta não é a única separação que se faz de modo preliminar, pois também se divide a população entre enfermos e são, entre capacitados e incapacitados. São todas falsas comparações, pois a imputabilidade é um conceito jurídico construído para estabelecer a vinculação subjetiva entre pessoas e atos delitivos. Não faz sentido em se referir a ela como uma condição natural ou social. Portanto, 327 LÓPEZ-IBOR ALIÑO, La responsabilidad penal del enfermo mental, p. 48. No mesmo sentido: ALBERCA LORENTE, La actualidad de la enfermedad y la tipicidad del delito en derecho penal, p. 61; ALONSO ALAMO, en: DE LA CUESTA ARZAMENDI/DENDALUZE/ECHEBURÚA (orgs.), Criminología y derecho penal al servicio de la persona, p. 448; GARRIDO GUZMÁN, en: DE LA CUESTA ARZAMENDI/DENDALUZE/ECHEBURÚA (orgs.), Criminología y derecho penal al servicio de la persona, p. 1052. 328 CANCIO MELIÁ, en: FEIJOO SÁNCHEZ, (ed.), Derecho penal de la culpabilidad y neurociencias, p. 281. 329 Ibidem, pp. 279-282. 330 QUINTERO OLIVARES, Locos y culpables, p. 159. 131 não se pode ser imputável em abstrato, com independência de um delito, já que se trata de condição que somente pode ser examinada após a prática do crime. Por tudo isto, entendemos que a imputabilidade é elemento, e não pressuposto da culpabilidade, tal qual Martinez Garay recomenda. Assim, um sujeito que venha a ser considerado inimputável poderá receber a absolvição própria, completa, sem medida de segurança, diante de inexigibilidade de conduta diversa, igualmente elemento (e não pressuposto) da culpabilidade, por exemplo.331 Repisa-se: a discussão é importante porque o nascimento das modernas medidas complementares à pena, como é o caso da liberdade vigiada espanhola, decorre, exatamente, da preocupação atual da sociedade em tratar (ou inocuizar) indivíduos considerados (aprioristicamente) imputáveis, porém ainda perigosos. Nem todo portador de transtorno de personalidade antissocial é psicopata e vice-versa; nem todo psicopata é imputável ou inimputável sempre e da mesma forma. A fórmula jurídica é insuficiente para a complexidade da matéria.332 Por isso, voltamos a insistir que o mais importante não é a análise da (in)imputabilidade, mas sim, da perigosidade, a qual, se presente, pode conduzir a medidas de segurança complementares à pena em alguns casos, como nos delitos sexuais, tema que será abordado ao longo de todo o quarto capítulo. 8. Como consequência, pode-se afirmar que soluções simplistas não conseguirão responder a questionamentos complexos. A obstinação pela negação da inimputabilidade como possibilidade, em certos casos de delinquentes sexuais graves, especialmente psicopatas, revitimiza a própria sociedade, posto que a aplicação “equivocada” da etiqueta e suas consequências poderão ser desastrosas para todos, trazendo ainda mais insegurança jurídica.333 O risco gerado pelo tipo de influência que significam os psicopatas nas casas prisionais é imenso, e esta fatia corresponde entre 15 a 25%,334 ou seja, até praticamente um quarto da população carcerária, ou então, internados em centros psiquiátricos em razão de medida de segurança, exercendo a capacidade de manipulação do próprio staff terapêutico. É um dado altamente significativo, especialmente se constatarmos que, conforme a jurisprudência majoritária, eles são considerados imputáveis. Daí a importância de uma análise mais racional, com o adequado encaminhamento, preferencialmente, para unidades 331 MARTÍNEZ GARAY, La imputabilidad penal, p. 80-83. Tanto é verdadeiro o posicionamento de Martínez Garay que, por exemplo, diante de um crime de roubo seguido de um estupro, poderia perfeitamente ocorrer de o sujeito ser considerado imputável em relação ao primeiro, e inimputável em relação ao segundo crime, recebendo pena e medida de segurança ainda num sistema monista, e não dualista, posto que não há acumulação pelo mesmo fato. O exemplo é de FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, pp. 100-101. 332 GONZÁLEZ COLLANTES/SÁNCHEZ VILLANOVA, EPC vol XXXIV (2014), pp. 127-171. 333 REGHELIN, Crimes sexuais violentos, 2010. 334 CANCIO MELIÁ, en: FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Derecho penal de la culpabilidad y neurociencias, p. 267. 132 especializadas, nestes casos.335 Logicamente, não se pode sustentar a possibilidade do reconhecimento da inimputabilidade sempre, para todo e qualquer psicopata. É que no dizer de Cancio Meliá,336 nos casos de “crimes formais” (mala quia prohibita), como seria o caso de uma lavagem de dinheiro culposa na Espanha, evidentemente que o reconhecimento da psicopatia não conduziria às mesmas consequências como em um delito sexual, por exemplo. Importa analisar este aspecto com cuidado porque diante do forte apelo por um Direito Penal meramente simbólico, existe uma tendência, inclusive jurisprudencial, a afastar, ab initio e aprioristicamente, o reconhecimento da inimputabilidade em certos casos, como nas psicopatias e em delitos sexuais em geral. Isto ocorre, muitas vezes, face à confusão que existe entre os conceitos de (in)imputabilidade e perigosidade. Enquanto a primeira deve estar relacionada à prática de um fato e restringe-se a isto, comportando a análise tão somente da idade e da saúde mental do sujeito e desta relação com o fato que cometeu, a perigosidade vai além. A perigosidade, e aqui tratamos apenas da perigosidade criminal, é analisada, através de diagnósticos e prognósticos, inclusive e principalmente, o potencial para a reincidência em delitos graves ou violentos. Não se quer afirmar que todo o psicopata é imputável ou inimputável, aliás, isto não é o mais importante. Como será visto logo mais, interessa-nos, numa investigação acadêmica como esta, a discussão sobre a perigosidade do indivíduo, e não a sua classificação quanto à imputabilidade. 9. Por fim, o princípio da culpabilidade também deve operar como limite ao jus puniendi, segundo esta vertente mais tradicional. As finalidades da pena somente podem ser justificadas no sentido preventivo, e não como mera retribuição. Para Mir Puig, tal prevenção deve ser limitada pelo princípio da culpabilidade, já que não se pode admitir penas a enfermos mentais, a menores de idade, ou a pessoas que não possam ser motivadas normalmente. 337 O professor catalão,338 a respeito do assunto, refere: “Personalmente, considero que en un Estado respetuoso de la autonomía moral del individuo la prevención general positiva sólo resulta adecuada si se entiende en un sentido restrictivo.” Mir Puig, ao apresentar a prevenção especial como alternativa mais moderna do que a teoria da prevenção geral, cita a Escola correccionalista, espanhola (com Dorado Montero), a Escola positiva, italiana, e a Escola da direção moderna, alemã (com von Liszt). Liszt introduziu a idéia de pena-fim e em seu Programa de Marburgo defendeu a prevenção especial como critério para encontrar-se a pena justa e necessária, quando, então, aproveitou da Criminologia conceitos como os de criminoso 335 GARRIDO GENOVÉS, Psicothema 2002, p. 185. CANCIO MELIÁ, en: FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Derecho penal de la culpabilidad y neurociencias, p. 282. 337 MIR PUIG, Derecho penal: PG9 pp. 126-127. 338 MIR PUIG, ADPCP tomo 39 (1986), p. 56. 336 133 ocasional, habitual e habitual incorrigível. Tal movimento inicial foi seguido por Gramática (Movimento de Defesa Social italiano) e por Marc Ancel (Nova Defesa Social francesa), entendendose por países escandinavos e anglo saxãos. Na Alemanha, o Projeto Alternativo ao Projeto do Código Penal de 1962 apresentou ideias bastante novas para a época, como a liberdade condicional e a possibilidade de substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direitos, afora a concepção ressocializadora das casas prisionais. Estes ideais acabaram sendo enfraquecidos nas últimas décadas diante de dificuldades práticas e teóricas, até porque num Estado Democrático de Direito, a chamada ressocialização não pode ser obtida contra a vontade do condenado. Roxin, igualmente, defende limites ao jus puniendi através do princípio da culpabilidade, e conforme a corrente limitadora da prevenção geral positiva, por ele sustentada, esta prevenção geral positiva deve estar adequada à culpabilidade, ponto de partida do sistema de medição das penas. No caso concreto, Roxin também sugere que se aplique uma pena inferior à adequada à culpabilidade quando aquela resultar dessocializadora ou contraindicada pela prevenção especial.339 Dito isto, passamos, agora, de imediato, à análise da segunda vertente de concepção da culpabilidade e suas repercussões diante do tema da delinquência sexual grave. 3 A autodeterminação de fidelidade ao ordenamento jurídico como equivalente funcional à ideia do livre arbítrio em Jakobs 1. Diante da crise do conceito de culpabilidade face à indemonstrabilidade do chamado livre arbítrio, surge espaço para novas concepções que pretendem resolver o problema de outros modos, com outras concepões. Escolhemos a proposta de Jakobs como representativa deste novo segmento por sua originalidade em desviar-se, ao menos em parte, do problema citado e propor uma nova forma de compreensão do princípio, a partir de sua teoria retributivo-funcional, qual seja, a teoria compensatória da culpabilidade, como refere GómezJara Díez.340 Para o professor alemão341 a culpabilidade, dentro de um moderno Direito Penal, deve ser entendida como a responsabilização pela falta de disposição de se automotivar conforme a norma, preenchendo todo o conteúdo de uma única finalidade da pena: a prevenção geral positiva: “[...] la culpabilidad es la responsabilidad por un déficit de motivación jurídica dominante, en un comportamiento antijurídico. Esta responsabilidad se da cuando falta la disposición a motivarse 339 ROXIN, Culpabilidad y prevención en derecho penal, pp. 29, 36, 110. GÓMEZ-JARA DÍEZ, InDret 2008, pp. 1-31. 341 JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 198. 340 134 conforme a la norma correspondiente y este déficit no se puede hacer entendible sin que afecte a la confianza general en la norma342. 2. Assim, para Jakobs, não significa que o ser humano não seja importante, porém, para a análise do conceito de culpabilidade, interessa a sociedade concebida como um sistema autopoiético, ou seja, uma sociedade na qual as pessoas participam como “estruturas” ou “portadoras de papéis”. Para ele,343 a culpabilidade significa a ausência de fidelidade individual perante o ordenamento jurídico vigente, propugnando, assim, pelo ideal de prevenção geral, por aquele autor defendido como preponderante, já que para ele, a culpabilidade344 corresponderia, em toda a sua extensão, ao ideal de prevenção, e não como limite ao poder punitivo do Estado. Neste sentido, Feijoo Sánchez observa que Jakobs rejeita o conceito material de delito como lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico, que é a base de todas as teorias globais relevantes de Direito Penal na atualidade. Para Jakobs, a teoria do delito se constituiria, basicamente, do delito como ação culpável e de penas, enquanto as medidas de segurança seriam expulsas da teoria funcional. Portanto, a culpabilidade, segundo Jakobs, deixaria de corresponder à ideia de censurabilidade individual, em relação à errônea conformação da vontade do agente ou a seu equivocado processo de motivação, para ser a responsabilidade por um déficit de motivação jurídica que se exterioriza na contradição da norma, a lei individual do autor que, em dado momento, substitui a expectativa realizada, conforme diz Lesch: 345 “En esta concepción de la culpabilidad, se trata exclusivamente de la negación del hecho, no de la desvaloración del autor, la culpabilidad es siempre, por tanto, culpabilidad del hecho, esto es, no una errónea conformación de la voluntad, no una errónea conducción de los impulsos internos, no un equivocado proceso de motivación, no una posición o actitud del autor frente al derecho negativamente valorable [...], sino errónea (es decir, no la que debe ser) realización de la voluntad, la perturbación social misma, o sea, la contradicción de la norma, la particular voluntad, la ley individual del autor que en la situación sustituye a la expectativa irrealizada.” 3. Para Jakobs,346 o conceito de livre arbítrio não deve ser assumido, então, para além de uma metáfora, no sentido de que apenas a vontade serve como orientação, não como algo natural, mas como construção normativa. Isto porque, segundo ele, uma sociedade vincula pessoas, e não seres humanos individuais. Pessoas são indivíduos destinatários de direitos e 342 JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 566. FEIJÓO SÁNCHEZ, en: GÓMEZ-JARA DÍEZ (coord.), Teoría de sistemas y derecho penal, p. 502. 344 JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 198. 345 LESCH, La función de la pena, p. 277. 346 JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, p. 203. 343 135 deveres construídos comunicativamente, questão esta que não é enfrentada pelas neurociências, as quais investigam apenas indivíduos, e não a sociedade. 347 Assim, em que pese a polêmica acerca de alguns posicionamentos de Jakobs, este refere que as pessoas são competentes para manter uma liberdade de autoadministração:348 “[...] existe una correspondência entre autonomia y responsabilidad, pero no entre albedrío y responsabilidad.”349 O tema é importante na medida em que o conceito de culpabilidade apresentado por Jakobs pode, numa concepção mais acrítica, levar ao perigoso conceito de inimigo, como alguém que, de forma duradoura, declara guerra ao ordenamento jurídico vigente, o que poderia englobar os delinquentes sexuais perigosos e, inclusive, justificar instrumentos degradantes ou aviltantes conforme o Direito Penal moderno. No entanto, quanto à ideia de uma autodisposição para o cumprimento das normas previstas pelo ordenamento como equivalente funcional para o conceito de livre arbítrio, parece-nos que, em parte, o conceito merece respeito e aproveitamento. E neste sentido ele será aproveitado em 3.II.C para compor o conceito de liberdade, no sentido jurídico, que adotamos para este trabalho, como sendo correspondente ao que se deveria entender, modernamente, por “livre arbítrio”. C. Posicionamento adotado neste trabalho diante do princípio da culpabilidade: o conceito de liberdade no sentido jurídico-penal 1. O Direito Penal analisa a responsabilidade criminal daqueles atos praticados em liberdade, não reações puramente instintivas, inconscientes ou derivadas de força irresistível. Entretanto, definir quais eram as opções que o sujeito dispunha frente a determinado evento e como elegeu esta ou aquela alternativa exige um conceito de liberdade no campo jurídicopenal. Possivelmente, aí resida a crise do princípio da culpabilidade, já que o livre arbítrio é algo indemonstrável. Por isto, fala-se na desintegração dialética do princípio metafísico.350 Resta concluir que o conceito meramente descritivo de liberdade ou livre arbítrio, bem como as discussões sobre (in)imputabilidade, cada vez mais amplas e aprofundadas, inclusive graças à interferência (necessária) de ciências afins, especialmente das neurociências, não são suficientes para responder ao conceito do que seja “liberdade” em sentido jurídico-penal, à luz do princípio da culpabilidade. 347 Ibidem, p. 206. Ibidem. 349 Ibidem. 350 CARVALHO, Fundamentação constitucional de Direito Penal, pp. 63-64. 348 136 2. Por todo o exposto, verifica-se que o conceito de livre arbítrio resta matizado. Na verdade, tal relativização demonstra o estágio atual do conceito, e sua conexão com referências preventivas, diante do debate sobre a indemonstrabilidade do livre arbítrio. Deste modo, trabalha-se com a ideia de atribuir capacidade de motivação, mediante normas, aos sujeitos chamados “normais” ou “iguais”, a fim de evitar uma diminuição do princípio punitivo e, consequentemente, a perda da eficácia do Direito Penal. Tais generalizações são feitas também por autores que pretendem manter o princípio da culpabilidade sobre seu pressuposto clássico da liberdade de vontade, mas acabam se curvando ao argumento da indemonstrabilidade desta. É que o Direito Penal se fundamenta em exigências normativas que a sociedade dirige ao autor, “o qual é tratado como cidadão responsável, e não como menor ou como doente”, no sentido que esta “espécie de imputação subjetiva é tão necessária quanto justificada num ordenamento jurídico baseado na liberdade,” como referem Peñaranda Ramos, Suárez González e Cancio Meliá.351 Feijoo Sánchez refere, até mesmo, que a possibilidade hipotética de uma atuação conforme o Direito nunca foi a razão de punir do Estado, e que isto vem camuflando o real fundamento normativo da culpabilidade: “nunca se ha declarado culpable a nadie por haber podido actuar de otra manera o de manera conforme al Derecho en la situación concreta”.352 O conceito tradicional é válido, mesmo com suas limitações. 3. O conceito apresentado por Jakobs também recebe suas críticas, mas igualmente deve servir como referência importante na evolução no trato da matéria. Assim, como nenhuma resposta é perfeita ou definitiva, vemos com preocupação o rechaço prematuro em relação às propostas de perspectiva funcionalista moderada, pois como refere Ortiz de Urbina Gimeno,353 trata-se de um rechaço que parece alimentado pela crença de que existe somente um modo de fazer dogmática com relevância político-criminal: “...esto, sin embargo, es por completo incorrecto, ya que política criminal hacen todos los planteamientos dogmáticos: el problema está en qué tipo de política criminal se hace.” Assim, neste trabalho, entendemos que somente será possível oferecer uma resposta dogmaticamente satisfatória a respeito da culpabilidade se esta for compreendida numa perspectiva indispensável no marco de um 351 PEÑARANDA RAMOS/SUÁREZ GONZÁLEZ/CANCIO MELIÁ, Um novo sistema do direito penal, pp. 65-66. 352 FEIJOO SÁNCHEZ, InDret 2011, p. 8. Trabalho também publicado em: FEIJOO SÁNCHEZ, en: idem (ed.). Derecho penal de la culpabilidad y neurociencias, pp. 71-168. 353 ORTIZ DE URBINA GIMENO, La excusa del positivismo, p. 153. 137 sistema de liberdades e, neste sentido, a culpabilidade, no sentido jurídico-penal, está construída sobre a capacidade de autodeterminação do indivíduo. Não é possível construí-la sobre uma base constituída por uma liberdade absolutamente incondicionada, mas sim como competência socialmente dada sobre a qual se constroem as correspondentes estruturas de responsabilidade. Isto nada tem a ver com a exigência de um comportamento distinto face à possibilidade de atuar de outro modo, e sim com a disposição jurídica mínima, que é indispensável, prestada por todos os cidadãos em benefício da sociedade. Refere Callegari354 que “da mesma maneira que ocorre no âmbito da responsabilidade culpabilista, determina-se por um procedimento normativo quem é o competente para o resultado, e não por um curso natural, isto é, nem pela biologia, nem pela física, nem tampouco pela psicologia.” Para Feijoo Sánchez, no marco de um Estado Democrático de Direito, a única disposição (intersubjetivamente) relevante é a de cumprir com as normas.355 4. Assim, não parece ser o mais relevante discutir teses deterministas ou indeterministas, mas a compreensão de que até mesmo um determinismo parcial não é incompatível com a noção jurídica da liberdade, e que somente desta, resulta a noção de responsabilidade. Com isto deixamos claro que será adotado neste trabalho o conceito de liberdade no sentido jurídico, não no sentido biológico, neurológico ou filosófico, sob pena de não chegarmos a qualquer lugar. Isto não significará desprezar conhecimentos relevantes de outras áreas do conhecimento, como por exemplo, algumas considerações acerca de psicopatias, da pedofilia, dos maus tratos na infância, dos tratamentos hormonais, enfim, de temas que possuam reflexos importantes para as ciências jurídicas. Porém, quanto às escolhas que o indivíduo faz e quanto à responsabilização, a análise de sua liberdade deve ser jurídica, não havendo espaço, nesta pesquisa, para uma discussão sobre o livre arbítrio desde um prisma filosófico, por exemplo, o que demandaria tese específica sobre o assunto. Se fôssemos seres absolutamente livres, indeterminados, incondicionados em nossas decisões, estaríamos diante de vontades incontroláveis. E diante dessas vontades incontroláveis seríamos todos levados a uma total irresponsabilidade, já que o indeterminismo absoluto nos levaria a uma privação de controle e de responsabilidade por nossas ações. Diante disto, a questão agora não é saber se somos ou não determinados, assunto de difícil e complexo 354 355 JAKOBS, Fundamentos do direito penal, p. 17. FEIJOO SÁNCHEZ, en: DEMETRIO CRESPO (dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.), Neurociencias y derecho penal, p. 293. 138 debate, até mesmo do ponto de vista filosófico. A questão, na verdade, é saber “como” estamos determinados, e por isso, leciona Feijoo Sánchez:356 “[...] nuestra ceguera ante determinados fenómenos es lo que se encuentra en el origen de la sensación de que todo depende de nuestra voluntad libre y consciente. Acabamos llamando libertad al desconocimiento de lo que nos determina. Si los procesos que predisponen nuestros comportamientos son inconscientes, ello crea la apariencia de que dichos comportamientos carecen de una causa previa y, por ello, atribuimos a nuestra voluntad el carácter de ´causa libre´ sin pasado. Las neurociencias han confirmado la brillante intuición de Spinoza cuando afirmaba que nuestra sensación de libertad no es más que una consecuencia de nuestra ignorancia de los mecanismos que nos determinan.” 5. Esta concepção ora apresentada de liberdade embasada na ideia de autodeterminação, na verdade, complementa-se com a ideia de liberdade como criação social, com a qual resulta impossível trabalhar em um laboratório, o que, no entanto, não descaracteriza, em hipótese alguma, o conceito jurídico.357 Feijoo Sánchez entende, portanto, que a cultura e a socialização não podem ser compreendidas como uma mera ilusão pelo fato de que não possam ser observadas dentro do cérebro humano mediante experimentos científicos, já que são realidades diversas dos processos naturais. No entanto, não deixam elas de serem processos tão reais quanto os neuroquímicos. Cancio Meliá,358 inclusive, refere a necessidade de se avançar numa direção mais clara quanto às categorias da culpabilidade, mas levando-se em conta seu caráter normativo, ou seja, as condições reais e sociais do sistema de imputação penal. Isto deve significar uma superposição do normativo em relação ao fáticobiológico. É que a responsabilidade jurídica, como construção social, pertence ao mundo social, que não é irreal ou ilusório.359 São critérios estritamente normativos os que nos permitem determinar o nível de disposição jurídica exigível aos cidadãos, bem como em quais casos o autor da infração não deve ser responsabilizado pela deficiente disposição jurídica que foi manifestada através do injusto ou, dito de outro modo, quando o ocorrido apresenta relação com situação não forjada pelo seu autor como, por exemplo, reações defensivas, em situação de necessidade, enfermidades, processos legislativos inadequados, enfim, quando então, aquele poderá não ser responsabilizado. A obrigação jurídica essencial não consiste em ser fiel à norma, precisamente, mas sim em evitar seu “não reconhecimento mediante uma 356 357 358 359 FEIJOO SÁNCHEZ, en: DEMETRIO CRESPO (dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.). Neurociencias y derecho penal, p. 285. FEIJOO SÁNCHEZ, InDret 2011, p. 47. Também publicado em: FEIJOO SÁNCHEZ, en: idem (ed.). Derecho penal de la culpabilidad y neurociencias, pp. 71-168. CANCIO MELIÁ, en: DEMETRIO CRESPO (dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.), Neurociencias y derecho penal, pp. 539 e ss. FEIJOO SÁNCHEZ, en: DEMETRIO CRESPO (Dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.), Neurociencias y derecho penal, p. 293. 139 ação que a infrinja,” como diz Feijoo Sánchez.360 Claro que isto não significa que o Estado poderá inculcar valores sobre o indivíduo, o que seria, evidentemente, ilegítimo. Neste sentido Mir Puig361 refere que haveria grave contradição com o modelo de Estado Democrático de Direito caso o mesmo resolvesse impor, pela força, uma atitude interna de adesão a seus cidadãos. No mesmo sentido, referem Peñaranda Ramos e outros, a propósito, que o Estado não tem legitimidade para otimizar a atitude dos cidadãos, senão que se conforma com a observância externa do Direito, somente podendo empregar meios que resultem legítimos frente a qualquer outro cidadão não incurso na responsabilidade penal. 362 Isto é particularmente significativo em matéria de delinquência sexual quando se avalia questões relacionadas, por exemplo, a alguns tabus como o do incesto, o qual, apesar de fundante da civilização, somente é crime se estiver previsto em lei, e não por si só, já que a moralidade sexual não é um bem juridicamente tutelado, embora exista e permeie a legislação de um povo, em dado contexto histórico e cultural. 6. Essa liberdade, que para o Direito existe em razão da própria sociedade, faz com que o olhar sobre a conduta criminosa considere outros fatores que não apenas as condições de saúde individuais do agente e sua perigosidade, mas também a gravidade do delito cometido, a probabilidade dele vir a reincidir em delitos graves (daí a importância da classificação efetuada no capítulo segundo, a respeito, em 2, III, C), a gestão deste risco, hoje mensurada através de modernos instrumentos atuariais, vistos em 3, III, C, e as modalidades mais adequadas de resposta penal ao caso concreto. Assim, tais fatores, dentro de uma lógica social, devem ser todos contextualizados, especialmente quando se fala em delinquência sexual grave. Exatamente por estas questões amplia-se a atenção sobre o problema investigado para, sob um prisma jurídico-penal, concentrarmos esforços na análise do debate sobre o tratamento penal a ser conferido, principalmente, a autores de delitos sexuais graves, os quais, embora imputáveis, ainda possam apresentar eventual perigosidade. Para além do problema quanto à saúde, sem dúvida, esta também é uma questão de Direito Penal, embora ainda haja resistência nesta compreensão, como se fosse alheia ao sistema de Justiça Criminal. O debate é atual e instigante, ocorrendo, justamente, em razão dos contornos que o princípio da culpabilidade, enquanto princípio reitor do Direito Penal recebe, eis que trata, conforme o entendimento mais tradicional, dos limites ao jus puniendi estatal e da censurabilidade da 360 FEIJÓO SÁNCHEZ, en: GÓMEZ-JARA DÍEZ (coord.), Teoría de sistemas y derecho penal, p. 575. MIR PUIG, ADPCP tomo 39 (1986), p. 58. 362 PEÑARANDA RAMOS/SUÁREZ GONZÁLEZ/CANCIO MELIÁ, Um novo sistema do direito penal, p. 33. 361 140 conduta diante do indivíduo que não foi “motivável” o suficiente, ou não se autodeterminou adequadamente diante do que prevê o ordenamento vigente. Em razão disto, indaga-se se as medidas de segurança, aplicáveis aos casos de sujeitos perigosos, não importando aqui a questão da (in)imputabilidade, por não estarem ao abrigo do conceito do princípio reitor da culpabilidade, não deveriam, então, ser excluídas do âmbito do próprio Direito Penal, tema que vem sendo ampliado diante da delinquência sexual grave e que começa a ser enfrentando a partir de agora. D. A culpabilidade como princípio reitor do Direito Penal e o resguardo da dignidade humana no caso da delinquência sexual 1. Diante das considerações anteriormente realizadas, verifica-se, no dizer de Carvalho363, que o princípio da culpabilidade, numa visão mais tradicional por assim dizer, demonstra a face ética do Direito Penal, que tem no homem o centro de seu sistema, cuja responsabilidade provém de sua dignidade de pessoa, capaz, por isso mesmo, de receber censurabilidade. Tal princípio, ademais, limita a pena, proibindo ao Estado o abuso na sanção punitiva, numa visão menos utilitarista de instrumentalização do homem para a satisfação do bem comum, visando resguardar a dignidade humana. Isto é facilmente atestado, eis que, atualmente, vários países democráticos vêm sustentando, já em nível constitucional, o princípio da culpabilidade. Não se pretende ser exaustivo, mas a citação das Cartas Políticas pretende demonstrar o espaço já consagrado que o princípio apresenta em praticamente todos os ordenamentos jurídicos, embora apenas citemos alguns. Diz a Constituição italiana de 1947, em seu art. 27: “A responsabilidade penal é pessoal. O acusado não é considerado culpado senão quando de sua condenação definitiva”. A Constituição da Nicarágua determina, em seu art. 34: “O réu tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se prove a sua culpabilidade de acordo com a lei”. A Constituição da Costa Rica, no artigo 39, assegura: “Ninguém pode sofrer pena senão por delito, quase delito, ou contravenção sancionados por lei anterior, e em virtude de sentença definitiva, ditada por autoridade competente, garantida previamente a oportunidade da defesa, e mediante a necessária demonstração da culpabilidade”. A Constituição da Bolívia, em seu art. 16, afirma: “Presume-se a inocência do acusado enquanto não se prove a sua culpabilidade”. A Constituição do Peru, na letra “c”, do art. 29, refere: “Toda pessoa será considerada inocente enquanto não for declarada 363 CARVALHO, Fundamentação constitucional do Direito Penal, p. 64. 141 judicialmente a sua responsabilidade”. No Brasil, diz o inc. XVII, do art. 5º, da Constituição Federal: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ainda, no mesmo artigo, o inc. XLVI consagra a individualização da pena, outro forte atestado da presença do princípio na Carta Política, já que a aplicação da pena tem esta por base, pois dela depende a escolha da sanção (quando houver alternativa) e sua quantificação.364 2. Ao mesmo tempo e pelo que se infere da importância do princípio da culpabilidade nas Cartas Políticas de tantos e tão diversos ordenamentos internacionais, se pode concluir que as necessidades preventivo sociais em certo momento histórico também devem ser consideradas, bem como a aplicação dos princípios constitucionais democráticos. Cancio Meliá365, por exemplo, narra o desenvolvimento do conceito do princípio da culpabilidade e traz análises sobre novas incidências doutrinárias, como o moderno e polêmico enfoque da prevenção geral positiva, com seus efeitos sociocomunicacionais, ou seja, a pena como confirmação da vigência da norma, autenticando a identidade social. Deste modo, a culpabilidade não poderia ser compreendida sem referência a tal ponderação, sendo pois, nesta concepção, visualizada desde um ponto de vista puramente normativo, sem conexão com um “poder atuar de outro modo” fático, deixando excluídos desta perspectiva aqueles elementos tradicionalmente estudados como seus integrantes. Ignorar ou desprezar o princípio da culpabilidade, em qualquer de suas vertentes, conforme demonstrado, pode levar a consequências bastante perigosas como é o caso do ressurgimento de um Direito Penal de Autor ou, numa versão mais contemporânea, ao Direito Penal do Inimigo, o qual não é o simples retorno de uma política criminal autoritária, mas sua nova fase evolutiva, conforme Cancio Meliá.366 3. A discussão que se impõe, para fins desta pesquisa, neste momento, é a limitação do papel do princípio da culpabilidade diante da perigosidade. Vale a pena um Direito Penal que responda às necessidades da perigosidade através do princípio da culpabilidade, com mecanismos exacerbados e com uma intensificação excessiva quanto à resposta penal, ou está na hora de analisar-se melhor a possibilidade de outra resposta, igualmente permeada de garantias, como questiona Martínez Garay? Ou ainda no mesmo sentido, por que se mantém o 364 LUISI, Os princípios constitucionais penais2, p. 37. CANCIO MELIÁ ¿Crisis del lado subjetivo del hecho? Separata de: In: ZUGALDÍA ESPINAR/BARJA DE QUIROGA, (coord.), Dogmática y ley penal: libro homenaje a Enrique Bacigalupo, pp. 64 e ss. 366 CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de derecho penal, p. 440. 365 142 discurso de que o Direito Penal deve proporcionar satisfação às necessidades de segurança para além do permitido pelas limitações do princípio da culpabilidade?367 Assim, evidente a dificuldade (total ou parcialmente) quanto à aplicação do principio da culpabilidade aos indivíduos perigosos, inimputáveis ou não. No tocante aos imputáveis perigosos, vale ressalvar que o princípio da culpabilidade é aplicável tão somente até o limite da aplicação da pena; entretanto, caso haja necessidade de medida de segurança (como é o caso das medidas complementares, a exemplo da liberdade vigiada espanhola), o princípio da culpabilidade deve ser afastado já que seus limites balizadores não são os mesmos que regem as medidas, abrindo-se espaço para o princípio da proporcionalidade em relação à perigosidade. 4. Diante disto, duas últimas observações quanto a esta questão: primeira, face ao caráter de proteção à dignidade humana, penas vexatórias ou degradantes (shaming penalties) deveriam ser banidas de qualquer ordenamento. Evidentemente, toda pena traz algum caráter degradante,368 mas este não pode preponderar nem constituir seu principal objetivo. No caso de delitos sexuais o tema é muito pertinente. Veja-se, por exemplo, a forma como os registros públicos de delinquentes sexuais são expostos pela rede mundial de computadores e as consequências disto em países como Estados Unidos; aliás, no mesmo país citado, veja-se, ainda, certas proibições impostas como penas a autores de delitos sexuais, os quais, nos dias de Halloween, por exemplo, sequer podem sair de casa ou acender às luzes à noite, evitando que crianças se aproximem para a tradicional brincadeira do mês de outubro.369 A segunda observação, também tendo por raiz comum a questão da dignidade humana, versa sobre a insuficiência do princípio da culpabilidade diante do tema da perigosidade, seja em relação a inimputáveis, ou a imputáveis, eis que, atualmente, o último caso também enseja a aplicação de medidas complementares à pena, como no caso espanhol (exclusivamente para delitos de terrorismo e sexuais originalmente, tendo ocorrido a extensão a outros setores a partir da LO 1/2015), bem como em outros países, como sendo a mais moderna tendência de políticacriminal, tema que será abordado no próximo capítulo. O tema é tão preocupante, complexo e atual que a “Recomendación CM/Rec (2014)3 del Comité de Ministros a los Estados Miembros relativa a los delincuentes peligrosos”, adotada pelo Comitê de Ministros em 19 de 367 MARTÍNEZ GARAY, InDret 2014, pp. 64-65. WHITMAN, Harsh justice, 2003. 369 HALLOWEEN sex offenders laws, FindLaw, 2014. Disponível em: <http://criminal.findlaw.com/criminalcharges/ halloween-sex-offender-laws.html>. Acesso em: 28 set. 2014. 368 143 fevereiro de 2014,370 expôs vários conceitos e diretrizes a respeito do tratamento do delinquente perigoso, inclusive e destacadamente, o sexual. Declarou-se que se considera como delinquente perigoso a pessoa que foi condenada por um delito sexual muito grave ou com violência contra a pessoa, e que apresenta uma alta probabilidade de voltar a cometer novas infrações sexuais ou com violência contra os demais. Sobre o assunto, refere Frisch que “sólo si la pena adecuada a la culpabilidad fuera siempre tan extensa como durase la peligrosidad del autor, la pena estaría en situación de asumir el programa de prevención especial en forma irrestricta.” E complementa o mesmo autor que no caso de haver divergência, o único caminho é renunciar à vinculação entre prevenção especial e culpabilidade, sustentando, neste caso, um regime de medidas de segurança orientado à prevenção.371 A propósito desta mudança de rumo histórica que vem ocorrendo, refere Cancio Meliá372: “El factor de la peligrosidad llega a sus límites estructurales: por un lado, el riesgo individual de un autor imputable es una cuestión que no puede plantearse intrasistematicamente en un orden regido por el principio de culpabilidad, que conduce a la dicotomía responsabilidad-pena y peligro-medida; por otro, el conjunto de los factores de riesgo, la cuestión de la seguridad colectiva – en relación con el grado de cumplimiento general de la norma en una sociedad dada – es una cuestión previa al sistema jurídico. El unilateralismo preventivista rompe el esquema del Derecho Penal para transformarlo en algo distinto”. E exatamente sobre este “algo distinto”, referido por Cancio Meliá, passamos ao próximo tópico, quando serão analisados os temas mais relevantes concernentes à perigosidade do autor de delito sexual grave e as modernas formas de investigação atuarial, também quanto ao prognóstico de reincidência. Objetiva-se demonstrar a incapacidade do princípio da culpabilidade em lidar com as questões derivadas da perigosidade, trazendo a lume a necessidade de outra forma de enfrentamento desta problemática. Não se pode, por fim, confundir diagnose da personalidade com prognóstico de reincidência, embora eventual relação. Primeiramente, faz-se a diagnose da personalidade e da qualidade sintomática do sujeito perigoso para, só então, analisar-se a possibilidade (prognóstico) de futuro comportamento delitivo.373 370 CONSEJO DE EUROPA, Comité de Ministros a los Estados Miembros, Recomendación CM/Rec(2014)3, (Adoptada por el Comité de Ministros el 19 de febrero de 2014 en la 1192ª sesión de los Delegados de Ministros), Bilbao, 2014. Disponível em: <http:// www.coe.int/t/dghl/standardsetting/cdpc/PC-GRDD/Recomm%202014 _3_%20Spanish.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2013. 371 FRISCH, InDret 2007, pp. 39-40. 372 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 76-77. 373 SANZ MORÁN, en: LANDA GOROSTIZA (ed.)/GARRO CARRERA (coord.) Delincuentes peligrosos, p. 74. 144 III A perigosidade criminal e o princípio da proporcionalidade: prognóstico, crises conceituais e possibilidades A. Transição necessária: do princípio da culpabilidade ao princípio da proporcionalidade tendo a perigosidade como eixo central do debate 1. Em relação aos delinquentes imputáveis a consideração de perigosidade carece de todo o sentido? Parece que não, pois como responde Silva Sánchez,374 existem indícios significativos de que a sociedade não compartilha da tese de que a culpabilidade pelo fato deva definir a fronteira absoluta de distribuição de riscos entre indivíduo e sociedade, ou seja, a tese de que, cumprida a condenação ajustada à culpabilidade, a sociedade deva assumir sempre todo o risco de um delito futuro cometido por alguém imputável. Ao contrário. Parece razoável a tese de que a constatação de uma séria perigosidade subsistente ainda após o cumprimento da pena deva dar lugar a uma fórmula de asseguramento cognitivo adicional. Assim, já teríamos no ordenamento algumas soluções, porém outras, sem embargo, requerem tal formulação legislativa. Verifica-se, de qualquer modo, que a solução passaria, sempre, pelo Direito Penal, e não excluída deste. Diante disto, o Direito da perigosidade e o Direito da culpabilidade terão que buscar conviver de maneira equilibrada e harmônica, sob o manto protetor comum do Direito Penal, como ensina Jorge Barreiro375 buscando “encontrar un equilibrio entre las necesidades preventivas –de protección de la sociedad– frente al delito y los derechos fundamentales del ser humano.” 2. O tema da perigosidade como eixo central é de fundamental importância, eis que o Direito Penal de medidas volta-se a algumas questões bastante relevantes, especialmente na seara do tratamento jurídico-penal do delinquente sexual. Isto envolve analisar alguns pontos imprescindíveis como é o caso do próprio conceito de perigosidade, sua origem nas discussões sobre enfermidades mentais e na criminologia, estigmatizando pessoas e o próprio debate, os avanços na área das neurociências, suas formas de diagnóstico e prognóstico, sua relação com a reincidência específica em crimes sexuais e em geral, além dos encaminhamentos dados em sede de medidas de segurança, tanto na concepção mais 374 SILVA SÁNCHEZ, en: ARROYO ZAPATERO/BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos, vol. I, p. 708. No mesmo sentido: GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 435. 375 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado Social y democrático de derecho, p. 660. 145 tradicional destas, como numa visão mais moderna com as polêmicas que o assunto representa. No campo das neurociências, por exemplo, verifica-se que estudos demonstram a existência de grupos diferenciados de delinquentes sexuais, cujas características, bem como das vítimas em geral, serão apresentadas no presente capítulo: sujeitos violentos, impulsivos, reincidentes, com anomalias estruturais, ou simplesmente, nada disso. Em alguns casos, há a presença de enfermidades graves; noutros, trata-se de maldade, podendo haver, logicamente, problemas de toda a ordem, inclusive psicológicos. Tais indivíduos costumam apresentar dificuldades em estabelecer relacionamentos afetivos e sexuais “normais”, dificuldade de comunicação, dificuldade de estabelecer empatia em geral, e especialmente diante de suas vítimas, ou mesmo distorções cognitivas ou conceitos equivocados valorativos em relação às mulheres e a seu papel na sociedade, entendendo que estas “gostam” de ser abusadas sexualmente, por exemplo, ou então não percebem qualquer problema em relação ao abuso sexual de uma criança que consentiu no ato, encontrando, assim, justificativas para seus próprios atos criminosos.376 São aspectos criminológicos e vitimológicos importantes que serão analisados neste capítulo. Ressalte-se, igualmente, que não se tem o objetivo de supervalorizar conhecimentos nas áreas da psicologia, psiquiatria e neurociências em detrimento da apreciação normativa, porém não se pode desconsiderá-los, simplesmente, até porque o tema está vinculado à problemática da reincidência, tema de especial interesse para as ciências criminais. 3. Sabidamente, há grande polêmica no tocante à acuidade dos prognósticos nesta área, em que pese a evolução dos instrumentos científicos. Não existe um instrumento que seja totalmente seguro, do modo como todos pretendem e gostariam que fosse. O fato é que mecanismos atuariais, atualmente, detectam fatores de risco e probabilidades cada vez com maiores índices de assertividade. Entretanto, muitas vezes, isto torna o legislador, e também o gestor, mais distantes do caso concreto. Assim, de certo modo, ainda que indiretamente, talvez esteja sendo fomentada a ideia da demonização de um grupo, o qual, na verdade, é muito mais heterogêneo do que parece, a considerar-se, inclusive, pelas próprias estatísticas de reincidência, que são bastante interessantes e que se revelam diversas do que o imaginário coletivo parece pensar, como será apresentado. 376 REDONDO ILLESCAS, La violencia sexual, pp. 1-9. 146 Por tudo isto, passemos a analisar alguns conceitos como ponto de partida desde a saúde mental (e seu contraponto: a loucura), passando pela reincidência para, enfim, em 3, III, C.6, concluir-se esta transposição do princípio da culpabilidade ao da proporcionalidade. B. Perigosidade criminal e loucura: de noções criminológicas históricas à inocuização do sujeito face à ausência de “segurança cognitiva” 1. Para bem compreender o conceito de perigosidade é importante retroceder um pouco na história, e isto envolve analisar o conceito de saúde mental e de seu contraponto, a “loucura”, o que acabou interferindo na própria criminologia como ciência empírica e, evidentemente, na forma de perceber o delinquente sexual, principalmente quando considerado perigoso para a sociedade. Verifica-se que o doente mental, ou o “louco”, como antigamente era conhecido, sempre foi demonizado, por não apresentar a “segurança cognitiva” como hoje se denomina diante da ausência da sensação de segurança individual que se espera dos demais, como visto em 2, II, B, 4. Com o delinquente sexual se passa o mesmo que com o inimigo: assim como o louco, não possui condições de oferecer segurança cognitiva. Assim, importante entender, ainda que brevemente, as razões pelas quais as ciências criminais, especialmente a Criminologia, há tanto tempo se debruçam sobre o tema da loucura e da perigosidade, pois como será demonstrado, todos os períodos deixaram marcas indeléveis no trato do delinquente sexual. Aliás, foi justamente o processo de construção social da noção de perigosidade (recordando aqui a ideia do criminoso nato lombrosiano) que constituiu o nascimento da criminologia como ciência, ao final do século XIX. Portanto, analisar a origem da construção do conceito de perigosidade significa, igualmente, analisar parte importante, principalmente para esta investigação, da história da estigmatização do delinquente sexual e do próprio debate. 2. O conceito de perigosidade, como fundamento das medidas de segurança, nasceu durante o positivismo criminológico italiano, no último terço do século XIX. Neste contexto, o atual conceito de perigosidade se originou da expressão “temibilitá”, proposta por Garofalo em 1880. Já no século XX, enfrentando os debates sobre monismo e dualismo, Exner, em 1914 definiu que “una persona peligrosa en el sentido del Derecho Penal es una persona que probablemente cometerá delitos, es decir que reúne en si un complejo de condiciones que permiten esperar de él un comportamiento criminal”. Para Jiménez de Asúa, perigosidade é 147 “la probabilidad de que un individuo cometerá o volverá a cometer un delito”.377 Veja-se que o tema é, até hoje, atual. Na antiguidade, louco era aquele que rechaçava a lei divina e que se opunha aos sábios. Na Idade Média, marcada pela religiosidade, a loucura foi tratada de forma benevolente, em um primeiro momento, e depois, considerada heresia. Na Idade Clássica, os loucos passaram a ser confinados com outros excluídos, surgindo assim, um novo campo de estudos para a psiquiatria. A “cura” passou a ser o objetivo do tratamento e o “louco”, a ser um problema político e social. Veja-se que as neurociências fazem do tema sua pauta até os dias atuais e que a cura ou, pelo menos, a cessação da perigosidade, continua a ditar a extinção das medidas de segurança. Afastar os indivíduos com problemas mentais da sociedade sempre foi uma forma de garantir que os homens “saudáveis” estivessem ao lado da razão, garantindo a exclusão do outro, personificando aquilo que incomodava e que atemorizava. Neste sentido, a ideia de uma segurança cognitiva permanece. A ideia de perigosidade associada à loucura, ou a transtornos psíquicos, começou a surgir pela relação entre estes e comportamentos agressivos, violentos e imprevisíveis, criando no imaginário coletivo a ideia de perigosidade como atributo da loucura. Diante disto, convém mencionar, brevemente, quatro etapas importantes do ponto de vista histórico, pois acabam sendo repetidas há quase dois séculos, apesar de diferentes roupagens. 3. Conforme Neves,378 a primeira destas fases é anterior ao surgimento da criminologia como disciplina autônoma. Já havia a influência da psiquiatria, e também das áreas jurídicas e sociais. No entanto, na área jurídica, por exemplo, transtornos mentais não configuravam hipóteses para atenuação da pena e não se podia modulá-la em razão da enfermidade mental. Nestes casos a pessoa tinha sua responsabilidade penal completamente excluída. Os magistrados, então, passaram a recorrer aos alienistas ou “psiquiatras” da época a fim de buscar pareceres. Mais tarde, o sistema de atenuantes foi introduzido no Direito Penal. A segunda fase de construção do conceito de perigosidade formou-se ao final do século XIX, com base no movimento de defesa social. Havia um paradoxo, no entanto: por um lado, tratava-se o indivíduo como condicionado pela enfermidade; por outro, como alguém livre e responsável, merecedor de castigo. Em 1850, o tema, contemplando saberes médicos, biológicos, sociológicos e jurídicos passou a ter como objeto central a questão criminal. Cesare Lombroso escreveu L’Uomo Delincuente en 1876, versando sobre o criminoso nato, 377 GAROFALO, La criminología, p. 405. A observação é de SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 88, JIMÉNEZ DE ASÚA, El estado peligroso del delincuente y sus consecuencias ante el derecho penal moderno, p. 40. 378 NEVES, en: FRANÇA, Tipo, pp. 177-203. 148 influindo, sobremaneira nas noções de medidas de segurança que vieram, então, a ser desenvolvidas. Os positivistas italianos sustentavam que os delinquentes não tinham capacidade de autodeterminação sendo, pois, totalmente, condicionados e merecedores da medida de segurança. Era um Direito Penal à margem da culpabilidade. Entendiam que a sanção não poderia consistir, apenas, na retribuição jurídica pelo delito cometido baseada na culpabilidade do agente, mas também deveria ser considerada a “temibilidad” ou “peligrosidad” do indivíduo, situação, de certa forma, ainda merecedora das considerações da mais moderna política-criminal, especialmente em relação a delinquentes sexuais, como trata a presente pesquisa. Veja-se a atualidade do tema, eis que a discussão sobre a perigosidade e os limites da culpabilidade já inundavam os debates jurídicos desde então. Na terceira etapa, entre as décadas de 1960-80, buscou-se a desconstrução do caráter “científico” do conceito de perigosidade. Questionava-se, até mesmo, a capacidade dos profissionais em estabelecer com precisão, a presença da perigosidade, o que não difere do momento atual se considerarmos os debates científicos acerca, por exemplo, das metodologias que envolvem instrumentos atuariais quanto aos prognósticos de reincidência. Na quarta e última fase, chegamos ao momento contemporâneo, marcado por um tempo de imprecisões técnicas sobre aspectos importantes envolvendo perigosidade, reincidência, diagnósticos e prognósticos. Narra Neves379 que o fundamento das medidas institucionais adotadas contra os “loucos” não é apenas proteger a sociedade de indivíduos potencialmente perigosos, mas também o argumento da benevolência, já que a loucura vem associada às ideias de incapacidade, dependência, mendicância, enfim. Assim, sob o argumento de caridade das Santas Casas, durante a Idade Média, da filantropia das instituições da Idade Clássica, da fraternidade nos manicômios da Idade Moderna ou de solidariedade nos hospitais psiquiátricos contemporâneos, a justificativa é sempre a mesma: “é do próprio interesse do louco ser confinado em instituições”. Sobre isto, recordemos que a eutanásia de tantas pessoas durante o nacional-socialismo visava por fim a vidas "indignas de serem vividas", era a "muerte por gracia”. Em países como a Itália, por exemplo, o conceito de “delincuente por tendencia” reflete o conceito de perigosidade, estando, todavia, em vigor, como forma de castigar o sujeito considerado “malvado”, o que bem demonstra a ideia de um Direito Penal de Autor, tema já estudado no capítulo anterior. Como se referem Cadoppi y Veneziani380, se trata de um conceito anacrônico vinculado à personalidade do sujeito: 379 380 NEVES, en: FRANÇA, Tipo, pp. 177-203. CADOPPI/VENEZIANI, PG, p. 529. 149 “La dottrina più recente tende a ritenere queste tipologie legali di autore (delinquente abituale, profissionale, per tendenza), di ascendenza positivistica, discutibili ed anacronistiche; su tutte, quella del delinquente per tendenza mostrerebbe – oltre che mancanza di fondamento criminologico – un eccessivo sbilanciamento verso forme di responsabilità troppo eticizzanti e legate al ‘modo di essere’ interiore del soggetto, oltretutto – si aggiunge – di difficile accertamento.” Padovani381, referindo-se a tal conceito destaca que a ideia de punir a “indole particolarmente malvagia del colpevole” é do legislador da década de 30 do século passado. Mais modernamente, Fragoso382 afirmou que a perigosidade criminal é um juízo de probabilidade que se formula diante de certos indícios, sendo um juízo empiricamente formulado e, como todo indício, sujeito a erros, eis que trata da natureza humana. Pressupõe uma ordem social determinada à qual o sujeito deve ajustar-se. A medida da perigosidade limitaria, assim, a medida de segurança. 4. Contemporaneamente e a título de ilustração, veja-se que a palavra “enfermidade” provém do latim “in firmitas”, aquilo que não é firme. Assim, consiste em qualquer alteração do estado de saúde que se possa produzir por fenômenos bioquímicos, morfológicos ou emocionais, cuja manifestação se realiza através de sinais e sintomas. A Classificação Internacional de Enfermidades Mentais (CID-10)383 optou por denominar estas enfermidades como transtornos mentais e do comportamento. A Federação Mundial de Saúde Mental (único organismo não governamental assessor das Nações Unidas em matéria de saúde mental tem declarado que é uma exigência dos tempos modernos que a enfermidade mental não seja discriminatória para os cidadãos e seja tratada de igual forma que qualquer outra enfermidade (Declaração de Makuari, Japão, 1993)384. Ao contrário, o conceito de saúde representa aquilo que deve ser buscado, almejado, respeitado por todos e para todos, inclusive como condição para a dignidade humana. Tampouco o conceito é pacífico. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS)385 saúde é o completo bem estar físico, psíquico e social, e não apenas a ausência de enfermidades. Assim, impossível negar a história destes conceitos bem como que os mesmos servem para compreender de onde partimos e para qual destino estamos rumando. Apesar das muitas diferenças e dificuldades conceituais com o passar do tempo, cada vez mais novidades em termos de diagnósticos de perversões, transtornos e parafilias vem sendo 381 PADOVANI, Diritto penale, p. 342. FRAGOSO, Lições de direito penal13, p. 390. 383 Todos os conceitos são da WORLD HEALTH ORGANIZATION, The ICD-10 Classification of Mental and Behavioral Disorders, 1992. 384 CABRERA FORNEIRO/FUERTES ROCAÑIN, La enfermedad mental ante la ley, p. 262. 385 WORLD HEALTH ORGANIZATION, The ICD-10 Classification of Mental and Behavioral Disorders, 1992. 382 150 desenvolvidas, o que interfere nas ciências criminais, especialmente quando o assunto é o diagnóstico de perigosidade criminal. Tais temas suscitam debates intermináveis na medicina, especialmente na área da psiquiatria, bem como da psicologia, e até hoje, o conceito de saúde ou de normalidade mental é obscuro, despertando, no dizer de García-Pablos de Molina386, polêmicas em outras esferas como estatística e na área forense. Com o Direito Penal, a Criminologia e a Política Criminal, não seria diferente. Por isso mesmo, a enfermidade mental ou a perigosidade do delinquente sexual tem levado diversos países a tratar o tema de modos tão polêmicos e diversos. Vários destes países, inclusive, utilizam conhecimentos de outras áreas do saber, não apenas da medicina e da psicologia, mas, inclusive, da economia, através de mecanismos atuariais, para alcançar instrumentos mais modernos de enfrentamento a este tipo de criminalidade. C. Diagnósticos de perigosidade e Prognósticos de Reincidência: dos Mecanismos de Gestão Atuarial de Riscos (Risk Assessment) às possibilidades reais de tratamento do autor de delito sexual grave 1. Avaliação clínica ou mecanismos atuariais (risk assessment)? 1. A perigosidade, segundo Marcos Madruga387, é um juízo de probabilidade quanto a fatos delitivos ou outros semelhantes, os quais podem vir a serem repetidos. Para Jorge Barreiro388, “la peligrosidad criminal es, en definitiva, un juicio de pronóstico acerca de la probabilidad o de la relevante posibilidad de que el delincuente peligroso cometerá nuevos delitos en el futuro.” O juízo de perigosidade apresenta duas estapas:389 a primeira consiste no diagnóstico ou comprovação da qualidade sintomática da perigosidade do sujeito; a segunda fase abrange a comprovação da relação entre tal qualidade e o futuro criminoso da pessoa. Como refere García Albero390, “en el juicio de peligrosidad está el punctus dolens de toda la regulación de la materia”. Em que pese o diagnóstico de perigosidade ser fundamental para 386 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, TC, pp. 581-582. MARCOS MADRUGA, en: GÓMEZ TOMILLO (dir.), Comentarios al CP2, p. 420. Vide ainda jurisprudência do TS, STS 17-1-2001 [RJ 2001/397] no mesmo sentido. 388 JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 511. 389 GARCÍA GARCÍA, Marco jurídico de la enfermedad mental, p. 479. No mesmo sentido: GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 459. 390 GARCÍA ALBERO, en: QUINTERO OLIVARES (dir.)/MORALES PRATS (coord.), Comentarios al CP Español6, tomo I, p. 643. 387 151 qualquer tratamento, ele serve como parâmetro para uma análise quanto ao prognóstico de reincidência, que sempre é discutível, logicamente. 2. Basicamente, existem duas formas de prever os riscos de comportamentos perigosos, especialmente os violentos: procedimentos clínicos, compostos por diagnósticos psiquiátricos, informações pessoais e psicopatológicas, além de conclusões “informais” do clínico, e as decisões de base atuarial ou estatística. O primeiro modelo comporta “una pobre fiabilidad y validez de las decisiones”.391 Já o modelo atuarial se baseia em dados específicos de avaliação, selecionados em razão de terem se mostrado relacionados, empiricamente, à violência, e sua codificação se predetermina com antecedência, melhorando a validade e a consistência dos prognósticos de risco. Conceitualmente, o modelo atuarial ou “risk assessment” representa o processo de estimativa quanto à probabilidade de que algum fato mais gravoso possa vir a ser cometido contra a sociedade (“the process of using risk factors to estimate the likelihood -i.e., probability- of an outcome occurring in a population”).392 Já o fator de risco ou “risk factor” significa o elemento relevante anterior ao fato, cronologicamente, falando, não havendo necessidade de uma relação direta entre este elemento e a consequência que possa vir a ocorrer: “correlate that precedes the outcome in time, with no implication that the risk factor and outcome are causally related. Our outcome of focus is physical violence to others.”393 O fato é que o sistema denominado “Risk Assessment”, já conhecido desde o pós-guerra civil norte-americano, em final do século XIX (New York e Massachussets) retornou com força total naquele país nos dias atuais. Após dar seus primeiros passos, e em especial, diante do alto número de indivíduos presos na California, com penas indeterminadas, o sistema foi alterado para o de penas fixas (“truth in sentencing”). Com a alta população carcerária, a Suprema Corte, na década de setenta, determinou, diante das dificuldades financeiras e legais, a soltura de trinta e sete mil indivíduos presos, os quais deveriam ser liberados mediante avaliação conforme risco de reincidência. Desde então, voltou o estímulo ao sistema de “Risk Assessment” já sendo adotado por estados como Pensilvânia, Virgínia e Utah.394 Atualmente, Reino Unido, Suíça, Alemanha, Holanda, Estado Unidos, Austrália, Canadá – não estudam mais apenas a questão da perigosidade e seu diagnóstico. Vão além, preocupando-se com a análise de riscos futuros, 391 PÉREZ RAMÍREZ/MARTÍNEZ GARCÍA/REDONDO ILLESCAS, Documentos de trabajo, pp. 191 e ss. No mesmo sentido: SANZ MORÁN, en: LANDA GOROSTIZA (ed.)/GARRO CARRERA (coord.) Delincuentes peligrosos, p. 75. 392 KRAEMER/HAZDIN/OFFORD/KESSLER/JENSEN/KUPFER, AGP 1997, pp. 337-343. 393 SKEEM/MONAHAN, PLLTRPS 2011 p. 4. 394 MONAHAN/SKEEM, FSR 2013, pp. 2 e 3. 152 ou seja, com a questão, central, da reincidência, porém, de forma protocolizada. Tal preocupação é relevante, pois o risco é algo gestionável e modificável, muito mais do que a perigosidade em si quando se pensa em execução penal. Neste sentido Andrés Pueyo: 395 “Eso que aparentemente no es muy trascendente, en el fondo lo es y mucho; la peligrosidad es un atributo personal, el riesgo es un estado en el que se combinan, necesariamente, factores personales y situacionales que constituyen el riesgo como variable transitiva y no la peligrosidad como entidad constitutiva de la persona. Estas nuevas normas (que incluyen medidas de gestión del riesgo) como son los ingresos en centros psiquiátricos forenses, detenciones preventivas pos penales etc., buscan la protección de las futuras posibles víctimas de aquellos delincuentes crónicos que tienen un alto riesgo de victimizar de nuevo al estar en la comunidad”. 3. Na verdade a dicotomia entre instrumentos clínicos e instrumentos atuariais é muito antiga e parece-nos já ter sido ultrapassada. Hoje, existe uma ampla variedade de instrumentos que ficam entre ambos os extremos. O processo de “risk assessment”, de um modo geral, compreende, basicamente, os seguintes elementos: identificação dos fatores de risco, determinação de metodologia e formas de medição ou scoring dos fatores de risco e avaliação ou estimativa quanto ao risco do cometimento de atos violentos.396 Discute-se muito se uma avaliação psicológica ou psiquiátrica deveriam se sobrepor a uma análise atuarial, se, por exemplo, um check list com uma lista de fatores determinantes seria mais efetivo. Entretanto, a metodologia não tem sido muito precisa e o resultado não está garantido cientificamente, o que é confirmado por Lucken y Bales, ao se referirem a este processo como “muito vulnerável”. O método atuarial, segundo os pesquisadores norte-americanos, então, acaba sendo mais seguro: “Even prior to the development of actuarial instruments, Kozol, Boucher and Garofalo (1972) concluded that with respect to classifications of dangerousness, the results from natural experimentation do not provide defensible grounds for the belief that prediction is sufficiently accurate for policy makers to be confident that the number of ‘false positives’ is low. Janus and Meehl (1997) also argued that unless there is a high base rate of recidivism and high accuracy for a specific cohort, the probability of accurately predicting future behavior is less than 50%.”397 Zysman Quirós refere que o principal tema da modernidade tardia em termos de controle social é o atuarialismo, compreendido como forma de calcular, em termos probabilísticos, os riscos do comportamento social e em relação ao temos aos demais, à sensação se insegurança e ao medo do delito.398 395 ANDRÉS PUEYO, en: DEMETRIO CRESPO (dir.)/CALATAYUD MAROTO (coord.), Neurociencias y derecho penal, p. 501. 396 SKEEM/MONAHAN, PLLTRPS 2011, p. 5. 397 LUCKEN/BALES, C & D 2008, pp. 95-127. 398 ZYSMAN QUIRÓS, Castigo y determinación de la pena en los Estados Unidos, p. 68. 153 4. Nos Estados Unidos, por exemplo, instrumentos como o Static-99, o Rapid Risk Assessment denominado Sex Offense Recidivism-RRASOR, e o Minnesota Sex Offender Screening Tool Revised-MnSOST-R são bastante empregados. O RRASOR, por exemplo, considera quatro fatores importantes relacionados à reincidência em delitos sexuais: condenações anteriores por delitos sexuais, idade da vítima inferior a vinte e cinco anos, vítimas do sexo masculino e vítimas fora do ámbito familiar. O Static-99 foi criado adicionando ao RRASOR fatores de risco associados ao comportamento antissocial. O MnSOST-R avalia dezesseis fatores. Também o Psicopathy Checklist-Revised (PCL-R) tem sido muito utilizado na área dos delitos sexuais. O PCL-R, na verdade, não é considerado, estritamente, um instrumento atuarial, porém, ao avaliar a presença de psicopatia, a qual está está associada à reincidência em delitos violentos, inclusive sexuais, acaba revelando resultados decisivos, já que uma combinação entre psicopatia e desvio sexual é um relevante sinal de alerta. O PCL-R adota vinte itens para efetuar esta análise e, por isto, às vezes acaba sendo apresentado junto aos instrumentos atuariais propriamente ditos, como faremos neste trabalho. 5. Assim, estudos atuariais analisam a presença de psicopatia, histórico de violência, prática de atos delitivos, idade, vida conjugal, separação dos pais, infância conflitiva, “más companhias”, abuso de álcool ou outras drogas, modus operandi, enfim. Também são objeto de análise a avaliação clínica, a autoestima, o coeficiente de inteligência, a gravidade do delito praticado e sintomas psicóticos. O desemprego, a juventude e o abuso de drogas podem predispor à reincidência, porém os maiores fatores de risco estão relacionados com a conduta sexual desviada (interesses desviados, vítimas do sexo masculino, delitos sexuais anteriores). Logicamente, os dados encontrados não são definitivos, nem absolutos. 399 Neste sentido Lucken y Bales: “The formula for predicting sex offender recidivism is complicated not only by the controversy over which risk factors should be included but by the relative priority of these factors and the manner in which they should be organized and interpreted.”400 6. Nos estudos atuariais, fatores estáticos e fatores dinâmicos merecem especial consideração diante da aplicação dos processos de “risk assessment” e de “risk management”, conforme Londt401. Interessante observar ainda, embora mais raramente mencionado pela 399 LUCKEN/BALES, C & D 2008 pp. 95-127. Ibidem, p. 100. 401 LONDT, Practice, 2008. 400 154 literatura, existem fatores de proteção ou de resistência, como o fato de ser filho primogênito, possuir boa autoestima e autocontrole, haver tido cuidados alternativos aos paternos em caso de riscos familiares, além de ter tido modelos de apoio do mesmo sexo como forma de proteção ao indivíduo, diminuindo o risco de conduta delitiva.402 Os fatores estáticos são aqueles que não podem ser alterados, tais como a biografia, a idade, condenações anteriores, a idade na primeira condenação e a idade da primeira condenação por delito sexual. Em relação a fatores dinâmicos, estes podem ser acompanhados e modificados, como o comportamento abusivo em relação ao álcool e outras drogas, atitudes pobres como a ausência de remorso com a consequente culpa da vítima, entre outros. Os fatores estáticos costumam apresentar possibilidades de bons resultados também entre jovens, público ainda pouco estudado, porém de especial interesse para o tema da delinquência sexual. O fato é que, com maior precisão, os mecanismos atuariais vêm sendo desenvolvidos para contemplar os chamados fatores de risco nestas análises. Cervelló Donderis refere que “[...] no se trata de pronosticar futuros hechos concretos, ya que no son predecibles, sino de determinar la probabilidad de que sucedan.”403 Para estas análises, os fatores considerados, estáticos ou dinâmicos, necessitam ser sopesados com muita cautela. Para investigadores como Londt, o mais importante não é o processo de avaliação de riscos (Risk Assessment), mas a administração e o acompanhamento destes riscos404. Processos de Risk Assessment são altamente relevantes, especialmente diante do submetimento de indivíduos ao instituto do Civil Commitment, posto que as legislações de quase todos os estados norte-americanos exigem algum tipo de investigação neste sentido, assunto que será aprofundado em 5, III. 7. Deve-se esclarecer que o processo de “Risk Assessment” é empregado em três situações, nos Estados Unidos:405 a primeira envolve o momento do sentenciamento criminal, cuja aplicabilidade vem sendo bastante contestada, posto que há duas correntes. Uma entende que a aplicação da pena deve voltar-se apenas em relação ao fato cometido; a outra julga que a probabilidade de uma reincidência já deve ser considerada. Ocorre que não se poderia levar em conta, no momento da sentença, alguns fatores que não estão sob o controle do acusado, como seu histórico, seu passado familiar, circunstâncias que podem ser importantes para o processos de Risk Assessment. Então, julgar o indivíduo com base em elementos desta natureza não seria adequado, conforme este posicionamento. No entanto, nas outras duas 402 VALENCIA/MANUEL ANDREU/MÍNGUEZ/ANGEL LABRADOR, PCLF 2008 p. 11. CERVELLÓ DONDERIS, LL 2014 p. 17. 404 LONDT, Practice, 2008. 405 MONAHAM, VJL 2006, pp. 395 e ss. 403 155 situações em que se utiliza o Risk Assessment, este parece bastante aceito: a internação civil de doentes mentais (Civil Commitment) e a internação de delinquentes sexuais considerados “predadores” (Civil Commitment of Sexually Violent Predators), formas de segregação de indivíduos considerados perigosos, especialmente quando autores de delitos sexuais graves, como será analisado ao longo de todo o 5, III. A jurisprudência406 sobre o tema, naquele país, já é farta a respeito do assunto, conforme igualmente será demonstrado através da análise de alguns casos emblemáticos selecionados (5, III, C). 2. Argumentos contrários ao atuarialismo 1. Contra os mecanismos atuariais, manifesta-se Díez Ripollés, entendendo-os como métodos de “inocuização coletiva”. Refere o citado autor:407 “El auge de los mecanismos de inocuización selectiva, directamente encaminados a sacar de la vida social y recluir por largos períodos de tiempo a los delincuentes habituales de la criminalidad clásica, es considerado igualmente como una eficiente variante más de la gestión administrativa e riesgos, inevitable en las complejas sociedades actuales dada su alta sensibilidad al riesgo, y que sirve de técnicas probabilísticas similares a las de los seguros, en este caso para concentrar la persecución penal sobre ciertos tipos de delincuentes.” Aliás, convém salientar que o conceito de inocuização é bastante semelhante ao de incapacitação, que no dizer de Kleiman,408 representa a manutenção do delinquente longe de qualquer oportunidade para a reincidência, como por exemplo, mantendo-o segregado. Também em sentido bastante crítico, Hamilton409 refere que apesar dos avanços na área, o processo de risk prediction não deveria ser aplicado na fase de sentença, ou ao menos não deveria ser utilizado como fonte principal para a decisão judicial. A autora aponta vários estudos demonstrando que há várias falhas na aplicação e na leitura dos dados dos instrumentos. Refere, também, que pelo menos dezenove estados norte-americanos empregam o sistema sem questionar o nível ou standard de admissibilidade dos dados vindos de peritos quando baseados em “risk assessments”. Menciona que não é uma “culpa” do magistrado, mas sim da própria legislação que exige tais procedimentos, cooperando, desta maneira, para que não sejam questionados ou revisados. E por fim, indaga como os magistrados ou jurados 406 MONAHAM, VJL 2006, pp. 391-435. DÍES RIPOLLÉS, La política criminal en la encrucijada, p. 150. 408 KLEIMAN, When brute force fails, Cap. 6, p. 88. 409 HAMILTON, ASLJ 2014, pp. 55 e ss. 407 156 irão questionar estes dados e metodologias se os próprios peritos, geralmente, não o fazem, ou quando, ainda, cometem sérios equívocos na sua aplicação. Em todo o caso, conclui dizendo que os instrumentos atuariais são a moderna face da nova penologia do risco e que, justamente por isso, algum grau deste risco sempre haverá em qualquer tomada de decisão. O importante seria aperfeiçoar o sistema e as metodologias para que, cada vez mais, tais riscos de equívocos sejam diminuídos. 2. A respeito de equívocos e falhas no modo de interpretação e aplicação dos dados, deve ser observado que os instrumentos atuariais, de modo geral, ainda estão sendo desenvolvidos, aperfeiçoados e compreendidos, inclusive, por parte dos operadores jurídicos, como é o caso de vinte e um Promotores de Justiça e de quatro Defensores Públicos de New Jersey que foram entrevistados recentemente. O resultado410 apontou as dificuldades em relação à compreensão de alguns conceitos e da operacionalização quanto à aplicação e interpretação de dados importantes no tocante ao RRAS, instrumento lá utilizado, tendo sido sugerido treinamento frequente e específico, no caso. 3. Em sentido bastante crítico em relação ao processo de risk assessment e aos mecanismos atuariais empregados encontramos Sidhu,411 o qual, igualmente, refere algumas virtudes da proposta. Como qualidades Sidhu menciona a possibilidade de uniformização da jurisprudência, avaliações mais objetivas e impessoais, classificação não apenas entre “quem vai ou não reincidir”, mas também separando por níveis de probabilidades, resultados práticos e, inclusive, financeiros, na medida em que o sistema prisional está superlotado e a questão interessa aos cofres públicos. Por outro lado, Sidhu412 comenta sobre os limites do processo, observando, por exemplo, que no âmbito federal a legislação, baseada na Constituição, vetou critérios baseados em raça, sexo, etnia, religião, status socioeconômico, no processo de risk assessment. Embora isto não obrigue aos estados norte-americanos, é comum ser aplicado por analogia. Refere o mesmo autor que há entendimento no sentido de que, por envolver fatores que não dependem exclusivamente do investigado (geralmente os fatores estáticos, ou seja, que envolvem o passado ou vida familiar) não deveria ser empregado para aumentar a duração de penas ou medidas, mas tão somente para diminuí-las. A maior crítica que se faz a este 410 LANTERMAN/BOYLE/RAGUSA-SALERNO, CJB 2014, p. 828. SIDHU, Research Paper n. 26 (2014), p. 77. 412 Ibidem, pp. 20-30. 411 157 modelo, conforme Cervelló Donderis,413 é que, praticamente, não costuma considerar os fatores dinâmicos que intervêm no nível de risco do sujeito, no caso concreto, não favorecendo a avaliação de tratamentos específicos ao caso, o que acaba, indiretamente, favorecendo certa a estigmatização de um determinado grupo e a não consideração da pessoa individualmente avaliada. 3. Argumentos favoráveis aos mecanismos de Risk Assessment 1. Apesar de algumas críticas ainda encontradas doutrinariamente, a literatura científica majoritária demonstra que os instrumentos atuariais permitem efetuar prognósticos mais precisos do que meras estimativas profissionais não estruturadas.414 Tais instrumentos, conforme Cervelló Donderis415 servem para se conhecer melhor os fatores de risco associados à reincidência, o que costuma apresentar resultados confiáveis. 2. A respeito da crítica em geral, e por não se tratar de tema pacífico, existe um posicionamento doutrinário bastante importante a respeito da matéria e que precisa ser apresentado. Seu proponente é o norte-americano John Monahan,416 considerado expoente no assunto pela Suprema Corte dos Estados Unidos. O posicionamento do professor de Virginia com sua colega de Berkeley, Skeem, diverge da divisão de fatores em “dinâmicos” ou “estáticos” da forma como vêm sendo empregados. Os pesquisadores tampouco acreditam que existam instrumentos atuariais melhores ou piores, já que são bastante semelhantes em termos de resultados acurados e precisos, apesar de alguns problemas metodológicos, principalmente conceituais, basicamente de linguagem, que ainda costumam ocorrer. Demonstraram os pesquisadores que, em estudo de meta-análise envolvendo vinte e oito pesquisas a respeito dos instrumentos atuariais empregados nos Estados Unidos, a par das semelhanças entre todos eles, nove instrumentos de risk assessment apresentavam condições de serem intercambiados entre si, tal a semelhança quanto à acuidade e precisão dos resultados, incluindo o HCR-20, 413 CERVELLÓ DONDERIS, LL 2014, p. 13. ANDRÉS-PUEYO, en: ECHEBURÚA/FERNÁNDEZ-MONTALVO/CORRAL, Predicción del riesgo de homicidio y de violencia grave en la relación de pareja, pp. 21-55; ANDRÉS-PUEYO/REDONDO ILLESCAS, Predicción de la conducta violenta: estado de la cuestión, 2004; VILJOEN/ MORDELL/BENITEAU, LHB 2012, pp. 423-438, dentre outros trabalhos. 415 CERVELLÓ DONDERIS, LL 2014, p. 13. 416 MONAHAN/SKEEM, FSR 2013, pp.1-25. 414 158 LSI-R e VRAG.417 Isto se deve, segundo os pesquisadores, aos elementos que são considerados nestas pesquisas, que são comuns, a despeito de seus diversos formatos e metodologias.418 Dizem que o decisivo é saber qual o objetivo que se pretende alcançar, primeiramente, e só então, partir para a escolha do instrumento, que deverá ser o mais adequado e específico ao atingimento daquela proposta. 3. Monahan e Skeem contam que, antigamente, instrumentos voltados quase que exclusivamente a índices e cálculos eram mais utilizados para efeitos de prognosticar risco de reincidência, a exemplo do Static-99, já referido. Atualmente, há maior ênfase nos chamados testes voltados à ideia de interferência para a redução daquele Risk Reduction Front ou daquele prognóstico, de modo que não apenas os tradicionais fatores de risco são considerados, mas também os denominados “variable risk factors”, denominados por alguns como “fatores dinâmicos” ou “criminogenic needs”. Claro que estes são também empregados nos instrumentos de prognóstico, o que é bastante adequado tendo em vista que versam sobre questões dinâmicas, ou seja, que podem sofrer alteração, como a condição de desempregado. Não são assemelhadas às chamadas “causal risk factors,” circunstâncias que, efetivamente, reduzem a reincidência, como seria o caso do modo de pensar do delinquente. Entretanto, nada impede que um “variable risk factor” se transforme em um “causal risk factor”. Apenas para ilustrar, um fator imutável ou Fixed Marker seria, por exemplo, a condição masculina do indivíduo, e um Variable Marker seria a passagem da adolescência para a fase adulta. Deste modo, uma maior ênfase em “variable risk factors” seria mais importante naquelas medições que objetivam analisar a possibilidade de se planejar o melhor tratamento, a intensidade da resposta penal, seu tempo de duração, programas mais personalizados a serem desenvolvidos e formas mais efetivas de supervisão.419 Assim, veja-se como complementação que, enquanto o Reduction Oriented Approach busca definir a melhor intervenção para reduzir a probabilidade de reincidência, o “Predicted Oriented Approach” é mais indicado para os casos de necessidade de análise quanto à colocação em liberdade de algum indivíduo, então, ao contrário, diante da análise de casos concretos mais graves, como no caso do cometimento de alguns delitos sexuais, conforme expusemos no capítulo anterior (2, III, C), os quais necessitam maior tempo de supervisão ou até mesmo, de incapacitação por algum período. Referem os citados autores, informando ainda que a escolha do instrumento deve estar 417 SKEEM/MONAHAN, PLLTRPS 2011, p. 7. Ibidem, p. 8. 419 MONAHAN/SKEEM, FSR 2013, p. 12. 418 159 respaldada pela possibilidade, real e concreta, de alcançar tratamento, supervisão ou programa efetivos, pois caso contrário, somente gerará descrédito e ocasionará perda de tempo: The ultimate purpose of risk assessment must be a feasible one. […] It is a waste of time to assess variable risk factors that a correctional system does not even attempt to change”.420 4. Se o objetivo é administrar riscos para reduzi-los, não basta utilizar instrumentos que empreguem apenas fatores estáticos, mas será necessário considerar, também, os dinâmicos: “For these reasons, the choice of tool should be guided by whether the ultimate purpose of risk assessment in a specific sanctioning context is predicting or reducing recidivism.” Mesmo assim, interessante dizer que os instrumentos mais voltados à busca precisa pelo prognóstico - “predictive accuracy” - estão, atualmente, bastante desenvolvidos. Entretanto, ao contrário, quanto aos instrumentos que analisam o “risk reduction front”, ainda há muito o que avançar, conforme Skeem e Monahan421: “We hope that forensic shifts more of its fruitful attention from predicting violence to understand its causes and preventing its (re)occurrence.” Estes instrumentos são consequência de uma contemporaneidade onde novos mecanismos de racionalização de recursos incorporados à ideia de eficiência, principalmente na área da segurança pública, propiciam a adoção de estratégias na gestão do delito, especialmente numa época em que conhecimentos específicos, mormente nas áreas médicas, são muito polêmicos e os conceitos muito incertos. Por isto, ainda que os instrumentos atuariais venham sendo cada vez mais aperfeiçoados, eles também estão, cada vez mais, sujeitos à discussão científica e jurídica, principalmente por parte dos magistrados e demais operadores do Direito. 5. Diferentemente de juízos ou prognósticos clínicos, geralmente trazidos aos tribunais através de meros testemunhos de médicos e peritos em geral, tais instrumentos são fontes estruturadas de dados sujeitos ao escrutínio das partes, o que tem sido denominado como Daubert Standard for Evidentiary Admissibility, nos Estados Unidos. Assim já foram julgados casos como Coble vs. Texas, em 2010, e New Hapshire vs. William Ploof, em 2009. No caso Coble, a Texas Court of Criminal Appeals entendeu que embora o depoimento de um perito tenha sucumbido diante dos requisitos mínimos exigíveis para os padrões Daubert, como meio de prova nestes casos, e aqui se tratava da imposição de pena de morte, tal depoimento não interferiu na formação da convicção dos jurados, razão pela qual, apesar do mencionado, 420 421 MONAHAN/SKEEM, FSR 2013, pp. 15-16. Ibidem, p. 12. 160 indeferiram o direito a um novo julgamento.422 O chamado Daubert Standard visa qualificar mais as fontes, rechaçando, assim, meros depoimentos ou pareceres, ainda que de profissionais e peritos, quando de caráter pessoal, subjetivo e menos científico. Como o tema ainda é bastante novo, vale registrar, conforme Krauss e Scurich, que as organizações costumam providenciar guidelines orientando tais profissionais e peritos para, ao serem chamados na condição de depoentes em juízo, terem condições de emitirem um depoimento mais razoável conforme os achados e, portanto, mais coerente cientificamente, tornando o trabalho dos tribunais mais confortável no sentido de poderem considerar válidos depoimentos técnicos prestados nesta condição.423 6. De qualquer modo, parece-nos que a melhor conclusão está com Jorge Barreiro424 e com Sanz Morán425 no sentido que apesar do “excepticismo” acerca da credibilidade dos prognósticos, tanto em relação ao cometimento de delitos futuros como a respeito da idoneidade da medida para prevenir tais fatos, é preciso avançar nas investigações que permitam reduzir a margem de insegurança que se encontra no juízo de prognóstico inerente à perigosidade criminal426. E neste sentido, veja-se que Sidhu427 bem sugere que o emprego de instrumentos atuariais deveria ser significativamente reduzido apenas para conhecer-se os riscos e informar as sentenças que condenam à privação de liberdade. Ficaria em aberto, entretanto, a utilização deste tipo de dados para identificar as necessidades do sujeito, bem como para determinar qual o tipo de programa mais adequado para facilitar sua reabilitação e para reduzir o risco de reincidência. Dito isto, passemos ao tema da reincidência, já que, em última análise, todo o objetivo do processo atuarial de diagnóstico de perigosidade e prognóstico de reincidência visa, exatamente, e desde uma perspectiva preventivista, conhecer e gerir os dados e riscos que seguem apresentados. 422 KRAUSS/SCURICH, BSL 2013, pp. 224-225. Ibidem, pp. 225. 424 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA (dir.), Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, pp. 615-616. 425 Ibidem, pp. 615-616. SANZ MORÁN, en: LANDA GOROSTIZA (ed.)/GARRO CARRERA (coord.), Delincuentes peligrosos, p. 76. 426 MARTÍNEZ GARAY, InDret, abr. 2014, pp. 1 a 78. 427 SIDHU, Research Paper n. 26 (2014), p. 77. 423 161 4. A reincidência em delinquência sexual, metodologias de pesquisa e alguns mitos a. Estatísticas a respeito de reincidência em delinquência sexual 1. Para analisar-se a reincidência em delinquência sexual, há que se apurar, primeiramente, as estatísticas internacionais e espanholas quanto a questões relevantes como o percentual de indivíduos presos por este tipo de criminalidade, índices de reincidência, geral e específico, problemas quanto à obtenção de dados envolvendo vitimização primária face às subnotificações que este tipo de criminalidade compreende pela sua própria natureza, além de alguns mitos envolvendo a figura do próprio delinquente sexual. 2. Conforme as estatísticas internacionais, considerando-se o percentual destes delitos em relação ao volume total, tem-se que os delitos sexuais correspondem a, aproximadamente, 1% do conjunto dos crimes oficialmente reportados, sendo que também na Espanha, eles representam o mesmo que nos demais países europeus, ou seja, 1%. A taxa de reincidência oscilaria entre 10 e 15%,428 ou mesmo entre 18 e 20% conforme outra pesquisa a respeito, envolvendo dados internacionais, ao contrário das demais categorias delitivas, cuja reincidência poderia chegar aos 60%.429 Outra pesquisa, ainda, de certa forma confirma os dados apresentados, já que aponta um índice de 50% de reincidência em crimes, em geral, sendo que no caso de delitos sexuais esta ficaria em torno de 20%, porém destes, não mais do que 5% reincidiriam de modo repetitivo e crônico.430 De fato, o certo é que os delinquentes sexuais não excedem a 5% de toda a população penitenciária, como refere Redondo Illescas.431 3. Sem embargo, nos Estados Unidos, o número de condenados por delitos sexuais tem aumentado significativamente para além de qualquer outra categoria delitiva, exceto quanto ao tráfico de drogas. Somente o estado da Florida teve um aumento no número de condenados à pena privativa de liberdade por delitos sexuais entre 1993 e 2002, na ordem de 74% se comparado com 49% de aumento da população carcerária daquele estado.432 É possível inferir 428 ROBLES PLANAS, Indret 2007, p. 3. Vide diversas pesquisas apontadas por REDONDO ILLESCAS/GARRIDO GENOVÉS, Principios de criminología, 2013. 430 LANGEVIN/CURNOE, IJOT 2010, pp. 997-1021. 431 REDONDO ILLESCAS, en: REDONDO ILLESCAS (org.). Delincuencia sexual y sociedad, p. 41. 432 LUCKEN/BALES, C & D 2008, pp. 95-127. 429 162 que este resultado tenha relação com o tipo de legislação existente referentemente ao tema, ampliando largamente o foco de abrangência, o que certamente tem impactado nas estatísticas criminais. Em quinze estados norte-americanos, de todos os presos liberados em 1994 (aproximadamente dez mil), 43% vieram a ser presos novamente dentro de três anos, por delitos em geral. Destes, dois terços reincidiram em crime patrimonial. Tampouco houve diferença considerável entre estupradores (46%) e outros crimes sexuais (42%). Apenas 2% dos estupradores, nesta pesquisa, foram presos novamente, por novo delito de estupro, concluindo-se contrariamente à tese usual que refere os delinquentes sexuais como predadores persistentes e crônicos: “The conclusion derived from available empirical evidence on sex offenders is largely contrary to the conventional wisdom and stereotypical image of them as chronic and persistent sexual predators..433 Inicialmente, os dados citados foram coletados no U.S. Department of Justice e no Bureau of Justice Statistics. Depois, também foram buscados elementos no Interuniversity Consortium for Political and Social Research (ICPSR), na University of Michigan. Também foram utilizados os dados dos estados e ainda, do Federal Bureau of Investigation (FBI), tais como prisões realizadas, processos judiciais, dados demográficos em geral (idade, sexo, raça) e histórico criminal de cada indivíduo antes de 1994 e até três anos depois (quando foram colocados em liberdade dez mil indivíduos, o que representa dois terços de todos os liberados no país naquele ano. Estabelecimentos privativos de liberdade juvenis foram incluídos. Nunca, até então, os Estados Unidos havia pesquisado, ao menos com esta profundidade, o assunto, razão pela qual a pesquisa adquiriu notável distinção.434 4. Existem, eventualmente, algumas informações em sentido contrário, mas acabam restando minoritárias e isoladas. Nos Estados Unidos, no caso United States vs. Emerson, do 5th Circuit, baseado no depoimento de um probation officer, a reincidência em delitos sexuais seria de, aproximadamente, de 70%.435 Entretanto, como visto, as pesquisas científicas não confirmam este dado. O Department of Justice examinou os boletins de 9.691 delinquentes sexuais em quinze estados, tendo constatado que a reincidência entre delinquentes sexuais era muito menor do que se imaginava: “The study found that sex offender recidivism among that 433 MIETHE/OLSON/MITCHELL, JRCD 2006, p. 209. Ibidem, pp. 211-212. 435 YUNG, JRCD 2011, p. 973. 434 163 population was far lower than believed and in line with other violent offenders.”436 O mesmo estudo constatou que nos primeiros três anos após a colocação em liberdade, considerado o período mais crítico, o índice de reincidência foi de 5,3%. Mais: concluiu-se que a reincidência em delitos sexuais foi 37% inferior quando comparada à população de autores de delitos não sexuais durante o mesmo período de tempo. O Bureau of Justice Statistics também já referiu que os delinquentes sexuais compõem um dos grupos com menor índice de reincidência de várias populações estudadas.437 Logicamente, estes dados podem sofrer com as consequências da subnotificação, muito peculiar neste tipo de delinquência, como passaremos a abordar. b. Vítimas e pesquisas de vitimização: dados relevantes 1. A criminalidade sexual apresenta alto grau de subnotificação, dificultando conhecer, com precisão, os dados reais, o que sempre pode ser melhorado e aperfeiçoado com pesquisas de vitimização.438 Pesquisas como a realizada por Redondo Illescas em 2010, na Cataluña, apontaram que 2,9% das mulheres asseguraram ter sido violentadas em algum momento de suas vidas. Destas, entre 50 e 55%, não levaram o fato ao conhecimento das autoridades. 2. Na Espanha, conforme dados do Ministério do Interior de 2011, são registrados, anualmente, cerca de 1.161 estupros,439 porém especialistas vêm entendendo que, talvez, esta forma de abuso varie em torno de 2000 estupros ao ano. De qualquer forma, os dados do Ministério do Interior refletem um decréscimo (quanto ao número de registros de casos de estupro) em torno de 16% entre 2008 e 2011. Diante disto, refere Redondo Illescas440 em entrevista ao periódico El País, que estes delitos são, geralmente, pouco numerosos, não passando de 1% do total e, apesar de poder haver, por isso mesmo, oscilações relevantes de um ano para o outro, as cifras têm se mantido estáveis ao longo dos anos. Pesquisas de vitimização de grande porte e escala, aliás, conforme trabalhos já realizados nesta área por Redondo Illescas441 em 1996, apontaram índices de vitimização sexual em 29 países, cuja média ficou em 2,7%. Porém, países asiáticos, africanos e latino-americanos, normalmente, 436 LANGAN/SCHMITT/DUROSE, Recidivism of sex offenders released from prison in 1994. MERRIAM, JPEL 2008, pp. 3-7. 438 REDONDO ILLESCAS, en: idem, Delincuencia sexual y sociedad, pp. 38-39. 439 PRATS, El País 22 jun. 2013. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/2013/ 06/22/actualidad/1371929413_934353.html>. Acesso em: 9 jan. 2014. 440 Ibidem. 441 REDONDO ILLESCAS, en: idem, Delincuencia sexual y sociedad, p. 139. 437 164 permanecem acima deste índice. As taxas europeias são, normalmente, mais baixas que a média, ainda que bastante variáveis. Alguns dados interessantes a respeito: Argentina: 9,6%; Índia: 7,5%; Suíça: 4,6%; Áustria: 3,8%; Países Baixos 3,6%; Suécia: 2,9%; Inglaterra/Gales: 2,0%; Escócia: 1,3%; Irlanda do Norte: 1,2%; e França: 0,9%. c. Delinquentes sexuais e estererótipos 1. No tocante a um suposto perfil de agressor ou de abusador sexual, expressão que evitamos utilizar por sua atecnicidade, segundo Redondo Illescas,442 há alguns mitos a desfazer, primeiramente: “las personas condenadas por delitos sexuales no suelen tener un perfil de violador sistemático.” Quanto ao tempo de duração das penas no caso de delitos sexuais, estes apresentam, geralmente, penas mais longas do que a dos demais delitos. Isto faz com que haja uma maior representatividade deste tipo de delinquência nas penitenciárias. Disto, possivelmente, decorram alguns mitos, inclusive a ideia do criminoso sexual como predador. Ademais, existe a forte percepção de que uma vez criminoso sexual, sempre criminoso sexual: “Once a sex offender, always a sex offender” - “they will never stop” são algumas das frases a esse respeito mais conhecidas, como se a especialização neste tipo de delinquência, ou a própria reincidência, fossem estatisticamente significativas. 2. Outro dado importante diz respeito ao fato de que 90% dos abusos sexuais infantis ou “child molestations” são praticadas por membros da família, conhecidos ou amigos da vítima. Outras pesquisas também apresentam resultados neste sentido, concluindo que entre 65% e 85%, nos casos de abuso sexual infantil, o abusador costuma ser um familiar ou alguém próximo à vítima, como vizinhos, treinadores, professores. Costumam ser abusos que se prolongam mais no tempo e, portanto, não implicam, geralmente, condutas violentas associadas.443 A idéia do delinquente sexual estranho que ataca suas vítimas desconhecidas em ruas e parques é, em grande parte, um mito,444 o qual se encontra no centro dos debates norte-americanos, estaduais e federais, atualmente. O abusador, independentemente de gênero, geralmente possui um histórico traumático em sua infância (alcoolismo dos pais, episódios de violência doméstica, abuso sexual). Poderia existir, ainda, uma raiva reprimida que se expressa no ato incestuoso. Possivelmente, todos estes indivíduos prefiram se 442 PRATS, El País 2013. ECHEBURÚA/REDONDO ILLESCAS, ¿Por qué victima es femenino y agresor masculino? Madri, 2010. 444 PERLMAN, PS & J Jun. 2006. Disponível em: <http://www.governing.com/topics/public/justice-safety/sexoffenders-Live.html>. Acesso em: 13 jun. 2013. 443 165 relacionar com crianças, não sentindo nenhuma inibição nessa aproximação que, no mais das vezes, é mais fácil do que a aproximação com adultos. Por isto, percebem seus atos como expressão de carinho e afeto; também costumam apresentar baixa tolerância à frustração e baixa autoestima. A necessidade de gratificação acaba, pois, sendo imediata. Geralmente, são pessoas com muita dificuldade de aprender com o passado, sendo bastante egocêntricas e não demonstrando sentir culpa por seus atos antissociais. Apresentam baixa capacidade de comunicação. Recentemente, foram atualizados os dados da Base Nacional Dru Sjodin, Departamento de Justiça, Estados Unidos.445 Assim, verifica-se, apenas a título de complementação, que 9,3% dos casos envolvendo maus tratos de crianças, reportados em 2012, foram considerados abusos sexuais; 62.939 casos de abuso sexual infantil foram reportados no ano de 2012, nos Estados Unidos; de acordo com o Bureau of Justice Statistics National Criminal Victimization, em 2012 foram reportados 346.830 estupros envolvendo vítimas maiores de 12 anos de idade; vinte milhões de mulheres, de um total de 112 milhões (18%) já foram vítimas de crime sexual durante sua vida; apenas 16% dos casos de estupro de adultos são reportados à polícia; o Center for Disease Control and Prevention encontrou que 81% das mulheres que foram vítimas de delitos sexuais reportaram consequências significativas de curto, médio e longo prazos. Em 2012, dos casos de maus tratos reportados envolvendo abusos sexuais, 26% das vítimas possuíam idade entre doze e quatorze anos, e 34% delas tinham menos de nove anos de idade; por volta de 1,8 milhão de adolescentes, nos Estados Unidos, já foram vítimas de abusos sexuais; a mesma pesquisa conduzida pelo Centers for Disease Control and Prevention estimou ainda que, aproximadamente, um em cada seis meninos e uma em cada quatro meninas são sexualmente abusados antes dos dezoito anos de idade; 35,8% dos abusos sexuais acontecem quando a vítima possui entre doze e dezessete anos; 82% das vítimas adolescentes são do sexo feminino; 69% dos jovens que reportaram o abuso sexual declararam que o mesmo ocorreu na residência da vítima, do agressor ou de alguém conhecido; adolescentes entre dezesseis e dezenove anos apresentam 3,5 vezes mais probabilidade de serem vitimizados sexualmente do que a população em geral; cerca de 40% das vítimas crianças são assintomáticas, ou seja, não expressam sintomas do abuso sexual sofrido; vítimas do sexo masculino tendem a não reportar a vitimização, o que acaba afetando a estatística; um em cada vinte e cinco adolescentes já receberam convite sexual para contato offline; em mais de um quarto dos casos (27%), os pretendentes 445 The Dru Sjodin National Sex Offender Public Website (NSOPW). U.S. Department of Justice. Facts and Statistics. Disponível em: <http://www.nsopw.gov/en/Education/FactsStatistics?AspxAutoDetectCookie Support=1>. Acesso em 8 set 2015. 166 solicitaram aos adolescentes que enviassem fotos de nudez dos mesmos; 76% dos delinquentes sexuais que agem pela internet começam conversar com a vítima por uma sala de chat; em cerca de metade (47%) dos casos, o interessado se aproxima e oferece dinheiro ou presentes à vítima como forma de ganhar sua confiança; 11% dos adolescentes já compartilharam fotos suas de nudez via mensagem de texto online; destes, 26% acredita que o destinatário não seria capaz de compartilhar o material com terceiros; em geral, 60% dos delinquentes sexuais são conhecidos da criança ou adolescente vítima, 30% são membros da própria família e apenas 10% são estranhos; estima-se que nem todos os delinquentes sexuais sejam adultos, pois calcula-se que 23% dos casos foram perpetrados por jovens com menos de dezoito anos de idade. Apesar destas características importantes, não se pode falar, cientificamente, na existência de um “personality profile” definido, ou seja, de uma “personalidad delincuente sexual”, assim como, nem sempre, serão considerados psicopatas sexuais. Resumidamente, é necessário e possível, portanto, modificar certas condições associadas ao comportamento criminoso, fazendo com que o sujeito adquira e consiga manter um controle adequado sobre si, desenvolvendo a capacidade de controlar seus próprios riscos, nos termos de Londt446: “Working with individual offenders is about altering the conditions associated with sexual offending, by assisting sex offenders to gain and mantain adequate control of their behavior and by developing their ability to manage risk.” 3. Quanto ao grau de especialização ou de reincidência específica, os resultados apontaram que dentro do grupo dos criminosos sexuais, os “pedófilos” apareceram como mais especializados do que os estupradores, mas o dado também é muito relativo e deve ser visto com cautela, pois 70% dos pedófilos e dos estupradores eram “one timers”, ou seja, haviam sido presos uma vez, apenas, por este tipo de crime, o que os colocou no grupo com menor grau de especialização, junto aos homicidas.447 Quando comparados a outros criminosos repetitivos, os criminosos seriais sexuais apresentaram algumas diferenças interessantes: à exceção dos homicidas, um baixo número (proporcional) de criminosos seriais foi encontrado entre estupradores seriais e pedófilos, do que entre os demais. Por exemplo, menos de 10% dos seriais foram encontrados dentre estupradores e pedófilos, ao passo que aproximadamente 44% foram encontrados na categoria drug offenders com pelo menos três diferentes prisões cumpridas por crimes relacionados a drogas. Aproximadamente, um terço dos “assaltantes” eram serial offenders por crimes patrimoniais, sendo que um quinto dos “assaltantes” 446 447 LONDT, Practice, v. 20, n. 2, jun. (2008). MIETHE/OLSON/MITCHELL, JRCD 2006, p. 220. 167 (basicamente furto e roubo) já havia sido preso três vezes por este tipo de crime. Autores de delitos como tráfico de drogas e crimes patrimoniais apresentaram maior persistência, portanto.448 Assim, os criminosos sexuais não apresentaram ser muito persistentes. Daqueles criminosos sexuais com, no mínimo, uma prisão registrada por crime sexual, apenas 5% eram “exclusivamente” delinquentes sexuais (ou seja, tiveram todas as suas prisões por crimes sexuais), e a maioria (60%) apresentou apenas uma prisão por crime sexual durante a “carreira criminosa”. Já em relação a crimes contra a propriedade e contra a ordem pública, o grau de especialização aumentava a cada ciclo criminoso subsequente (cujo resultado era medido conforme o número de retornos à prisão). 4. Em um Estudo realizado na Cataluña constatou-se que –comparando dados de reincidência em diversas infrações- o grupo penitenciário que apresentava maior taxa de reincidência também era formado por indivíduos que praticaram delitos contra o patrimônio, e não pelos que praticaram delitos sexuais, ao contrário do que se imagina frequentemente.449 No mesmo sentido, tanto delinquentes adultos como jovens costumam reincidir em delitos não sexuais em maior medida do que em delitos propriamente sexuais. Pesquisa realizada envolvendo 123 indivíduos, conduzida por Redondo Illescas, apontou que 31,8% reincidiram em delitos não sexuais, enquanto 6,1% reincidiram em delitos propriamente sexuais.450 Garrido Genovés já dizia na década de 1980451 que enquanto “los delincuentes sexuales frecuentemente cometen delitos no-sexuales, los delincuentes no-sexuales raramente cometen delitos sexuales”. Por isso, ao contrário do que usualmente se acredita, a reincidência em termos de delitos sexuais não é tão alta como em outros delitos não sexuais.452 5. Ainda na Cataluña foi realizada uma pesquisa sobre a capacidade de redução de taxas de reincidência penitenciária em geral. No acompanhamento de cinco anos constatou-se a reincidência na ordem de 40%, sendo que destes, entre 54% e 67% reincidiram já no primeiro ano de “excarcelación”. Em torno de 60% já estiveram presos anteriormente. Assim, verifica-se que nem as penas mais longas, nem seu íntegro cumprimento apresentaram, 448 MIETHE/OLSON/MITCHELL, JRCD 2006, p. 223. LUQUE REINA/FERRER PUIG/CAPDEVILA I CAPDEVILA, La reincidència penitenciària a Catalunya, pp. 22 e ss. 450 REDONDO ILLESCAS/LUQUE/NAVARRO MARTÍNEZ, APJ 2005, pp. 135-157. 451 GARRIDO GENOVÉS, Psicópatas y otros delincuentes violentos, p. 238. 452 MALESKY JUNIOR, Sex roles, 2010, pp. 292-294. 449 168 efetivamente, capacidade de redução da reincidência.453 Nesta seara, muitos fatores influenciam, especialmente na reincidência sexual, a qual, em parte, coincide com os casos envolvendo agressores sexuais. Assim, fatores como menoridade, maior número de delitos prévios (específicos ou gerais), versatilidade delitiva, vítimas desconhecidas, psicopatologias graves ou ingressos psiquiátricos, ações excêntricas, parafilias e perfil psicopático são alguns dos mais importantes. A título de informação, as parafilias, segundo o DSM-V,454 compreendem necessidades urgentes, fantasias ou comportamentos envolvendo objetos, situações, atividades ou dificuldades situacionais, ocupacionais ou em outras áreas importantes da vida envolvendo exposição dos genitais para alguém estranho (exibicionismo), emprego de objetos como roupas íntimas ou sapatos (fetichismo), tocar o corpo contra a vontade da vítima (frotteurismo), atividades sexuais com adolescentes pré-púberes, geralmente até os treze anos de idade ou menor (pedofilia), simulação de atos de humilhação ou agressão e/ou sofrimento (sadismo e masoquismo), “cross-dressing” (transvestismo) e observação de pessoas nuas, se despindo ou em atos sexuais (voyerismo). d. As limitações das pesquisas em matéria de reincidência nos delitos sexuais 1. Há que se reconhecer que pesquisas envolvendo a temática da reincidência bem como seus resultados precisam ser lidos com muita cautela, já que costumam apresentar muitas divergências em termos metodológicos. Neste sentido, os problemas mais comuns são a falta de informação sobre conteúdos do tratamento, as avaliações globais das instituições, a heterogeneidade dos grupos de delinquentes e as distintas faixas de exclusão e abandono pelos participantes dos programas.455 A própria nomenclatura costuma divergir bastante. Por exemplo, nos Estados Unidos encontramos as figuras do “adult male child molesters”, “adult male rapists”, “adult male child pornographers”, “adult offenders”, “adult male sexual abusers”, dentre outros.456 2. Inicialmente, pois, o problema conceitual e de linguagem abre o leque das limitações a pesquisas de reincidência. Veja-se, por exemplo, a quantidade de definições sobre o conceito de “sexual addiction”, sobre o qual existem inúmeras controvérsias, inclusive do 453 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, p. 8. 454 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014. 455 LÖSEL, en: REDONDO ILLESCAS (org.), Delincuencia sexual y sociedad, p. 393. 456 DEMICHELE/PAYNE/BUTTON, JOR, 2008, pp. 119-135. 169 ponto de vista médico. Para uma análise jurídica, importa saber que trata de problema persistente quanto ao controle sobre o comportamento sexual, inclusive com consequências danosas, quando o sujeito costuma repetir o ato (delito) sexual com a mesma vítima ou não.457 Os denominados “sexual ofender o sexual addicts”458 apresentam uma probabilidade maior de terem sofrido abuso sexual na infância ou na adolescência do que os “non addicts”, ademais de apresentarem maior preocupação com pensamentos de natureza sexual (“sexual thoughts”). Isto apenas sugere que o item “sexual addiction” pode variar conforme a população e o ordenamento jurídico investigado. Na verdade, não existe uma padronização metodológica ou conceitual a respeito do tema por parte das ciências criminais. Verifica-se, por exemplo, que em nível jurídico, reincidência significa uma circunstância agravante da responsabilidade criminal, já que consiste no fato de o réu ter sido condenado por um delito anterior ao que ora se imputa.459 Mas este conceito tampouco é pacífico. Outras classificações quanto à reincidência também poderiam ser feitas, subdividindo-a em reincidência violenta (à margem do registro oficial), reincidência em delito violento (o acusado já foi condenado previamente por outro delito), ou recaída (durante o tratamento).460 Por isto, talvez, seja tão complicado estabelecer relações e extrair conclusões, já que fica muito difícil comparar grandezas diversas. Não é por outra razão que, Luque Reina, Ferrer Puig e Capdevila i Capdevila já referiram, em estudo sobre a reincidência penitenciária na Cataluña, 461 que as pesquisas deveriam diferenciar as seguintes categorias: reincidência policial, reincidência penitenciária e reincidência penal, e que certa corrente doutrinária sustenta que a primeira seria a melhor das medidas, posto que mais ampla, já que as demais acabam dependendo de filtragens jurídicas mais apuradas como juízo de culpabilidade, enfim. A reincidência penitenciária avalia o número de ingressos do indivíduo no sistema penitenciário. A reincidência penal se dá quando o indivíduo comete um delito após já ter sido condenado por outro crime, em regra. Outra agravante encontrada com frequência diz respeito à questão temporal, já que os conceitos de crime sexual costumam oscilar bastante. 3. Ademais, o tema da subnotificação, característica da problemática em tela, dificulta, sobremaneira, a obtenção de dados reais. Mesmo empregando pesquisas vitimológicas, os 457 MARSHALL/MARSHALL, SAC 2006, pp. 377-390. MARSHALL/MARSHALL, SAC 2006, pp. 377-390. 459 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, p. 4. 460 Ibidem, pp. 5-7. 461 LUQUE REINA/FERRER PUIG/CAPDEVILA I CAPDEVILA, La reincidència penitenciària a Catalunya, pp. 6-21. 458 170 dados apresentam limitações severas, muitos não fazendo constar, por exemplo, a relação do agressor com a vítima, sem a descrição pormenorizada e precisa do delito ou sem a data exata de se seu cometimento, não se permitindo, assim, a análise de uma reincidência efetiva ou de caso de reingresso penitenciário, por exemplo, por situações pretéritas pendentes. 4. Outro complicador, metodologicamente falando, é o período de acompanhamento (follow up) que se impõe em cada estudo, o que dificulta, senão impede, a possibilidade de comparação, já que geram cifras muito diferentes, que podem ir de 8,4% em períodos em torno a um ano, a 60% em follow up de dez anos, como foi encontrado.462 A maioria das pesquisas volta-se para o acompanhamento de indivíduos colocados em liberdade e às variáveis analisadas antes da liberação, agora comparadas e relacionadas estatisticamente com a posterior conduta delitiva ou reincidente. Observe-se que conforme o período de acompanhamento (follow up) os resultados costumam variar bastante. Quanto ao monitoramento daqueles indivíduos que iniciaram o tratamento no cárcere, por exemplo, demanda saber se haverá ou não a análise de delitos cometidos durante o tratamento no cárcere, eventualmente, ou se apenas será considerado o momento posterior à colocação em liberdade, como geralmente é feito.463 5. A forma de execução do delito ou modus operandi, assim como outros fatores igualmente importantes, necessita ser analisado com mais cautela diante de reincidência em delitos sexuais, especialmente no tocante à “pedofilia”, auxiliando na classificação do indivíduo quanto ao risco que apresenta. Um exemplo prático disto é que sujeitos com mecanismos crônicos de negação e alta resistência ao tratamento não costumam apresentar bons resultados.464 Especialmente diante de abusos infantis aparecem distorções ou racionalizações como parte do processo de autovitimização do próprio delinquente465, pois o mesmo geralmente pensa que seus delitos não são muito graves, nega-os ou tende a justificálos, como se fosse vítima. Para compreender melhor o tema, apresentamos um modelo de questionário aplicado pela pesquisadora Veach, publicado no Journal of Child Sexual Abuse, apenas para demonstração da relevância deste tipo de análise. 462 LUQUE REINA/FERRER PUIG/CAPDEVILA I CAPDEVILA, La reincidència penitenciària a Catalunya, pp. 1-167. 463 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, pp. 5-7. 464 LONDT, Practice, v. 20, n. 2, jun. (2008). 465 VEACH, JCSA n. 4 (1999). 171 Figura 1 - Modelo de questionário empregado Fonte: Veach466. Não somente Veach, mas também outros investigadores apresentam um rol similar para a investigação de características comuns a esses indivíduos. Joanne e Brown publicaram no Journal of Aggression467 algumas observações sobre o tema, no entanto, vinculando-as ao tema do incesto. 6. As características referidas em tais avaliações são relevantes para a análise da reincidência criminal, bem como para a determinação do melhor tratamento ao indivíduo, aliadas a outros tipos de testes, os quais também enfrentam discussões acerca de sua 466 467 VEACH, JCSA n. 4, (1999). JOANNE/BROWN, JAMT 1997, pp. 335-354. 172 cientificidade. Exemplos destes outros testes são o pletismógrafo e o polígrafo. O primeiro consiste numa espécie de anel colocado no pênis do indivíduo para medir o grau de excitação sexual quando o mesmo é exposto a imagens e áudios envolvendo situações sexuais com crianças, ou sexo não consentido, enfim. O pletismógrafo costuma ser empregado em conjunto com o “polygraph” ou detector de mentiras, cuja utilização ainda é bastante polêmica nos Estados Unidos, apesar de mais de um século de existência. Apenas para resumir esta polêmica, vale mencionar que a National Research Council (NRC), em 2003, declarou que, sob o ponto de vista científico, psicológico e fisiológico, há um frágil embasamento para sustentar-se uma alta precisão em relação aos dados obtidos pelo detector de mentiras. Por outro, o uso do “polygraph”, cuja aplicabilidade na área da delinquência sexual, iniciou em Oregon, Estados Unidos, no final da década de 1980, foi posteriormente adotado por outros estados como Tennessee (1995), Colorado (1996), South Carolina (2006) e Hawaii. No sistema penitenciário, em relação a delinquentes sexuais, a técnica é empregada em Illinois, Kansas, California, Colorado, Florida, Indiana, New Mexico e Texas. 468 Esta dupla (pletismógrafo e detector de mentiras) acaba, segundo alguns especialistas, através dos resultados que proporciona, evidenciando dados diante dos quais o indivíduo, desde logo, admite a necessidade de tratamento, tornando-se mais disponível, inclusive minimizando a atitude de negação, que costuma caracterizar este tipo de delinquente, conforme mencionam as pesquisas de Balmer e de Sandland.469 7. Mesmo com todos os inconvenientes que são próprios da natureza do tema, as legislações em geral costumam falar em prognósticos de comportamentos futuros que revelem a probabilidade de cometimento de novos delitos. Entretanto, o juízo ou diagnose de perigosidade e o prognóstico de futuro ou quanto à reincidência podem não conduzir a um grau de certeza jurídica. Portanto, é suficiente e até mesmo necessário que se admita um “riesgo considerable, idôneo”, como sustentam Jescheck e Weigend470, considerando-se não haver instrumentos completamente perfeitos na sua precisão final. No entanto, o emprego de quaisquer medidas de segurança, principalmente as privativas de liberdade, por exemplo, deve ser cauteloso e restritivo.471 Neste sentido, mas indo além: como a finalidade é evitar a reiteração criminal, resulta fundamental analisar, não apenas a natureza da infração já perpetrada, mas também a natureza dos fatos que poderão vir a ser cometidos, exigindo-se, 468 BALMER/SANDLAND, JLS 39, n. 4, Dec. (2012), pp. 593-615. Ibidem, pp. 593-615. 470 JESCHECK/WEIGEND, PG5, p. 868. 471 Ibidem, p. 867. 469 173 para a configuração da chamada “probabilidade de reincidência”, a probabilidade de cometimento futuro de delitos considerados “graves”, daí a importância dos conceitos de crime sexual grave, tema já analisado em 2, III, C, e não simplesmente bagatelares, em respeito ao princípio da proporcionalidade. Disto resulta que não se deveria justificar a imposição de uma medida, unicamente, sobre a base da gravidade do fato motivador.472 8. Do ponto de vista da aplicação de instrumentos atuariais, trabalhar com probabilidades e com grupos ou faixas de riscos auxilia o gestor público e o legislador. Porém, isto não dispensará intervenções individualizadas associadas às variáveis dinâmicas. Assim, seria possível prevenir de forma mais priorizada e intensificada, a reincidência em delitos violentos e em casos de multirreincidência. No caso de crime sexual, e aqui preocupa-nos o delito sexual de especial gravidade, surge a dúvida inevitável quanto ao risco de repetição daquela conduta. E o magistrado, de qualquer modo, terá que decidir, geralmente, diante de um vazio ou de poucas informações técnicas a respeito, o que sempre constitui tarefa difícil na prática forense.473 Há a necessidade de um processo de avaliação de indivíduos a fim de caracterizar a real probabilidade de que efetuem atos violentos, orientado ainda a desenvolver intervenções para gerir ou reduzir esta probabilidade. Neste sentido, uma das maiores dificuldades na área dos delitos sexuais graves é que, como mencionado anteriormente, em 3, III, C, 4, a reincidência em crimes sexuais constitui fenômeno estatisticamente infrequente, porém de efeitos sempre impactantes, merecendo a notória atenção dos poderes públicos, da imprensa e da sociedade em geral. Isto faz com que, sem qualquer ingenuidade, sempre se aumente a probabilidade de falsos positivos ou seja, de se superestimar a reincidência quando, em verdade, o risco não se incrementou, independentemente da utilização ou não de instrumentos atuariais. 9. Ante todo o exposto, passamos a demonstrar, de forma prática, três exemplos da utilização dos instrumentos atuariais. Primeiramente, será apresentada a experiência realizada na Oak Ridge Maximum Security Psychiatric Facility, Canadá, a respeito da aplicação do instrumento PCL-R na detecção de psicopatias, fator que restou considerado como preditivo para a reincidência sexual, especialmente em sede de delitos graves (sexuais e violentos também), nos termos do que foi analisado em 2, III, C, bem como auxiliando na definição pela necessidade e intensidade de tratamento. Observe-se que, apesar de o PCL-R não ser 472 473 JESCHECK/WEIGEND, PG5, p. 867. PÉREZ RAMÍREZ/MARTÍNEZ GARCÍA/REDONDO ILLESCAS, Documentos de trabajo, p. 190. 174 propriamente um instrumento atuarial, é apresentado em conjunto com os demais, nesta pesquisa, conforme já esclarecido em 3, III, C, 1; o segundo exemplo prático trata de estudos realizados pela Universidade de Munich, na Alemanha, aplicando-se instrumentos atuariais para avaliar prognósticos de reincidência, com todas as discussões, inclusive éticas, que o tema comporta; no terceiro exemplo, apresenta-se um estudo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Barcelona, do Centro Penitenciário de Brians, utilizando o SVR-20, porém de forma retrospectiva, a fim de testar sua validade. 5 Três ilustrações envolvendo o “estado-da-arte” no emprego de avaliações atuariais e sua importância prática a. Psychopathy Checklist Revised (PCL-R) aplicado na Oak Ridge Maximum Security Psychiatric Facility 1. Nos Estados Unidos viveu Ted Bundy, um dos psicopatas sexuais mais conhecidos na história recente e que matou a mais de 40 pessoas. Bundy foi executado na cadeira elétrica em 1989. Interessante, para ilustração, que em 1983 Bundy havia afirmado e publicado que tinha plena consciência sobre tudo o que fazia e sabia o quanto tudo era grave e terrível, porém sua humanidade e seu espírito, dados por Deus, às vezes eram vencidos. Dizia que pessoas como ele não eram monstros, mas filhos e maridos de uma sociedade tolerante à pornografia, a qual ele responsabilizava pela pessoa que se tornou. 2. A psicopatia é o elemento clínico mais relevante para o sistema jurídico penal, e as implicações quanto ao estudo deste transtorno de personalidade são importantes, tanto por sua relação com as taxas de reincidência criminal, seja no tocante à seleção do tratamento mais apropriado e dos programas de reabilitação mais indicados no sistema penitenciário, especialmente diante de autores de delitos sexuais. Para Morana474, a psicopatia é a condição mais grave de desarmonia de integração da personalidade. Somente nos Estados Unidos, os psicopatas são responsáveis por 50% dos delitos violentos e calcula-se que o índice de psicopatia na população em geral seja de 1%, e entre 15 e 20% na população carcerária.475 474 475 MORANA, Identificação do Ponto de Corte para a Escala PCL-R, p. 6. Ibidem, p. 5. 175 Pesquisas476 indicam que a taxa de reincidência criminal ocorre, aproximadamente, três vezes mais em indivíduos psicopatas do que em outros tipos de delinquentes, e que em matéria de delitos violentos, a taxa sobe para quatro vezes mais em indivíduos psicopatas do que não psicopatas.477 3. O PCL-R (Psychopathy Checklist) é um dos métodos que avalia psicopatia e reincidência em geral, não apenas sexual.478 O instrumento foi utilizado em investigação realizada, inicialmente, com 219 homens internados na Oak Ridge Maximum Security Psychiatric Facility, os quais foram colocados em liberdade em 31 de dezembro de 1983. Deles, foram selecionados 124 abusadores de crianças e adolescentes (considerando-se vítimas meninas menores de quatorze anos, e meninos menores de dezesseis anos) e sendo o abusador, no mínimo, cinco anos mais velho. Ademais, destes 124 indivíduos, treze haviam praticado incesto; somaram-se ainda vinte e oito homens que já tinham empregado violência sexual contra vítimas maiores de quatorze anos, e vinte e seis que, além de estupradores, eram também abusadores de menores de idade, totalizando 178 homens na amostra.479 4. A reincidência sexual foi analisada considerando-se três fatores: vida criminal pregressa, índices de psicopatia e dados obtidos no exame com pletismógrafo ou “phallometric assessment data”. Esta análise é importante, não apenas para definir a necessidade de tratamento e supervisão, mas também para verificar a intensidade dos mesmos. Apesar de as psicopatias e os interesses sexuais desviados estarem relacionados à reincidência sexual, em tese, este binômio não apresentou relação com uma “alta” probabilidade de reincidência.480 Variáveis como ambições, perda do emprego, mudanças de humor ou de atitude, podem ser dinâmicas e devem ser analisadas. Situações criminógenas podem predispor o indivíduo à prática delitiva, inclusive pela facilidade ou pela cumplicidade eventualmente obtida junto ao supervisor. Assim, a psicopatia funciona como preditivo quanto à reincidência sexual, principalmente em delitos violentos, de uma forma bastante peculiar, sendo fundamental a avaliação deste fator de risco. 476 Ibidem, p. 6. CLEMENTE/ESPINOSA, en: idem (coords.), La mente criminal, p. 173. 478 STADTLAND/HOLLWEG, JFPP 2005, pp. 92-108. 479 QUINSEY/RICE/HARRIS, JIV 1995, pp. 85-105. 480 Ibidem, pp. 85-105. 477 176 b. Estudos realizados pela Universidade de Munich, Alemanha, sobre o modelo atuarial na administração da Justiça 1. Investigadores do Departamento de Psiquiatria Forense da Universidade de Munich481 pesquisaram a relação entre delinquentes sexuais e reincidência, a partir de quatro instrumentos de controle de riscos ou de “risk assessment”: Static-99, HCR-20, SVR-20 e PCL-R. O estudo tratou de verificar a aplicação dos mesmos numa unidade penitenciária especial, dotada de tratamento altamente especializado, a fim de certificar se este tipo de tratamento reduziria o risco de reincidência em delinquentes sexuais e em que medida, bem como se grupos de alto risco remanescentes poderiam ser identificados por tais métodos de diagnóstico: “We hypothesized that a highly specialized treatment in a special prison unit would reduce the risk of reoffences in some, but not all sexual offenders, and that high risk groups could be identified by prediction methods.” 2. Foram selecionados 134 delinquentes sexuais, sem problemas mentais e que haviam deixado a unidade no ano 2000, bem como aqueles que nunca chegaram a ser condenados, efetivamente. Formaram três grupos: o grupo 1, com quarenta e seis pessoas que praticaram delitos sexuais entre os anos de 1975 e 1995. Nenhum deles havia sido tratado em hospitais psiquiátricos forenses, mas alguns poucos tinham recebido tratamento na prisão. É a amosta denominada como Assessment Sample; o grupo 2, denominado como Therapeutic Sample, com setenta e três sujeitos que foram submetidos a tratamento psicossocial altamente especializado em prisão estadual por dois anos, entre 1972 e 1995, e que haviam recebido a liberdade; e o grupo 3, chamado de Drop Out Sample, com quinze indivíduos que foram desligados do tratamento na penitenciária por diversos motivos. 3. Constatou-se que 46,3% eram solteiros, 17,2% eram casados, 1,5% separados, 20,1% divorciados. Não foi possível classificar os demais. Quanto à nacionalidade, 94,2% eram alemães e 5,8% de outras nacionalidades, principalmente do leste e sul europeus. A idade média ficou em 30,7 anos. O acompanhamento do grupo (follow up) durou nove anos. O grupo que apresentou os piores resultados foi o Drop Out, eis que somente um indivíduo não reincidiu. O grupo Therapeutic Sample ou n. 2, foi o que mais reincidiu, ainda que não apenas em delitos sexuais. O grupo Assessment Sample reincidiu quase tanto quanto o Therapeutic 481 STADTLAND/HOLLWEG, JFPP 2005, pp. 92-108. 177 Sample.482 As investigações demonstraram que os delinquentes sexuais continuavam reincidindo mesmo depois do tratamento especializado na prisão, ainda que os índices de reincidência variassem conforme o tipo de delinquente sexual. Muitas vezes os dados obtidos como índices de reincidência entre delinquentes sexuais não são exatos pela ausência de pesquisas de acompanhamento adequadas. 4. De acordo, no entanto, com os quatro instrumentos aplicados, resultou que o grupo 2 apresentou maiores índices de reincidência (geral e específica). Foi o grupo que apresentava os delitos mais severos antes da prisão, tendo sido, justamente pela necessidade de tratamento, selecionados, sendo inicialmente classificado como o grupo de mais alto risco. Os resultados obtidos foram muito parecidos com os demais encontrados na literatura médica especializada, como por exemplo, quando se encontrou, em grupo pesquisado muito similar a este, que apenas 37% não reincidiram após colocação em liberdade de uma unidade terapêutica penitenciária em um período de cinco anos, e que os demais, 30%, no mesmo período de cinco anos, tinham reincidido em delito de natureza sexual e os outros 13% em outros delitos, no mesmo período. Mas o índice mais alto de reincidência ocorreu com egressos que interromperam o tratamento. Isto também está de acordo com a literatura especializada. No presente estudo, a relação é de 1 para 15, ou seja, apenas um dentre quinze não reincidiu. Dos quinze sujeitos, 40% (6 indivíduos) e outros 33% (5 sujeitos) reincidiram em delitos violentos e em delitos sexuais. O grupo Drop Out reincidiu mais rapidamente que os demais. Para os outros, após 150 meses, diminuíram as ocorrências de reincidência. Apenas no grupo Therapeutic Sample houve um caso de reincidência no período 150-340 meses. Diante disto se concluiu que os instrumentos empregados, especialmente o Static-99 são capazes de distinguir delinquentes sexuais com grande risco de reincidência daqueles que apresentam grande probabilidade de não reincidir:483 “The Static-99 risk categories did help differentiate sexual offenders with a great recidivism risk from those who won’t reoffend with high probability. It was possible to predict all, violent and sexual recidivism in sex offenders with moderate validity.” 5. A título de conclusão, o modelo atuarial vem sendo aplicado tanto na Administração da Justiça quando na elaboração de políticas de segurança pública, a fim de calcularem-se as probabilidades quanto ao cometimento de delitos sexuais graves e violentos, ou de sua 482 483 STADTLAND/HOLLWEG, JFPP 2005, pp. 92-108. Ibidem, pp. 92-108. 178 reincidência.484 Entretanto, este modelo não consegue medir a gravidade do futuro ato reincidente (se violento ou não). Muitos entendem que a inocuização deveria ser empregada diante de hipóteses nas quais o instrumento atuarial determinasse o alto risco de reincidência violenta, mas há que ter cautela quando são analisadas tais taxas de reincidência, já que podem apresentar uma grande variação485 em função das diferenças nos tratamentos, assuntos de ordem geográfica e temporal, características pessoais individuais e, inclusive, variações na qualidade da supervisão pós-tratamento. De tal maneira, instrumentos de prognóstico para a reincidência de delitos sexuais, ainda que não tenham alcançado o pleno reconhecimento científico, estão sendo empregados como forma de minimizar os riscos e consequências da prática deste tipo de delito para a sociedade. Inobstante, a reincidência pode ocorrer de qualquer modo e a qualquer momento, obviamente. Ademais, como já salientado, o conceito de “reincidência” varia muito conforme a metodologia utilizada, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos. 6. Por fim, na Alemanha, como, aliás, em outros países, ocorre o problema da subnotificação, já analisado em 3, III, C, 4. Assim, além dos registros oficiais também é necessário incluir dados obtidos a partir dos self reports (pesquisas de vitimização), ocasião em que os números chegam a aumentar em torno de 50%. Por este motivo sempre será importante a combinação de elementos atuariais com os elementos clínicos, conforme visto em 3, III, C 1, sendo referido por Stadtland y Hollweg:486 “In the last decade, an actuarial vs. clinical measures debate has lead to the development of risk assessment tools which recognize the importance of both static actuarial items and clinical/risk management variables”. c. Prognoses de reincidência em agressores sexuais na Cataluña 1. Dentre alguns dos objetivos pesquisados em trabalho científico desenvolvido na Cataluña, mais especificamente, no Centro Penitenciário Brians, por pesquisadores do Grupo de Estudos Avançados em Violência-GEAV, da Universidad de Barcelona, utilizando as diretrizes do SVR-20 – Sexual Violence Risk, pretendeu-se avaliar o risco de cometimento de atos com violência sexual por delinquentes sexuais adultos. Trata-se do primeiro estudo empírico realizado na Cataluña que investigou a validade de um instrumento de prognóstico de risco de violência sexual. Foi aplicado o instrumento de forma retrospectiva, ou seja, sobre 484 QUINSEY, en: TONRY (org.), The handbook of crime and punishment, p. 407. Ibidem, p. 411. 486 STADTLAND/HOLLWEG, JFPP 2005, pp. 92-108. 485 179 uma amostra de agressores sexuais que cumpriram pena entre 1991 e 2002, os quais já estavam em liberdade. Assim, como se dispõe dos dados reais acerca da reincidência daqueles indivíduos, foi possível comprovar se o método do SVR-20 realmente é confiável, através da comparação dos dados sobre a “capacidad predictiva” em contraposição à reincidência real. 2. Da amostra global inicial, de 424 delinquentes sexuais, foram selecionados 163 indivíduos homens, dos quais se dispunha do máximo de informações possíveis para o estudo conforme exige o SVR-20, e que foram acompanhados em liberdade durante o período de três anos e oito meses, em média: noventa e cinco agressores de mulheres adultas e cinquenta e oito abusadores de menores. O SVR-20 dispõe de uma listagem de vinte fatores de risco que apresentam relação com a violência sexual futura, merecendo, pois, ser avaliados em três categorias, conforme segue487 no Protocolo do SVR-20. Na categoria Funcionamento Psicossocial constam: “desviación sexual; víctima de abusos en la infancia; psicopatía; trastorno mental grave; problemas relacionados con el consumo de sustancias toxicas; ideación suicida/homicida; problemas interpersonales; problemas laborales; antecedentes de delitos violentos no sexuales; antecedentes de delitos no violentos; fracaso en las medidas de supervisión previas”. Na categoria delitos sexuais constam: “frecuencia elevada de delitos sexuales; tipologías múltiples de delitos sexuales; daños físicos a la víctima de los delitos sexuales; uso de armas o amenazas de muerte en los delitos sexuales; progresión en la frecuencia y gravedad de los delitos sexuales; minimización extrema o negación de los delitos sexuales; actitudes que dan soporte o toleran los delitos sexuales.” Por fim, na categoria Planos de Futuro, estão: “falta de planes realistas/viables; actitud negativa hacia la intervención”. 3. O resultado da pesquisa apontou que houve um índice bastante considerável de 78,5% de acertos nas classificações feitas a partir do emprego do SVR-20. Constatou-se, ainda, que outras variáveis como o tratamento psicológico e o número de condenações são significativas no prognóstico de reincidência de violência sexual. Embora o estudo não tenha logrado maiores resultados conforme pretendia inicialmente no tocante à avaliação de câmbios terapêuticos nos agressores sexuais como consequência do tratamento empregado, “se puede detectar una tendencia en la disminución del nivel de riesgo evaluado una vez realizada una parte importante del tratamiento, sobre todo en aquellos ítems que evalúan 487 PÉREZ RAMÍREZ/MARTÍNEZ GARCÍA/REDONDO ILLESCAS, Documentos de trabajo, pp. 213-214. 180 factores dinámicos de riesgo y que, por tanto, están influidos por la intervención terapéutica.”488 Outra observação importante diz que, ainda que não se possa estabelecer uma relação determinista entre a presença de características biopatológicas e psicopatológicas e determinadas condutas delitivas, especialmente no âmbito das agressões sexuais, há evidências científicas no sentido que determinados perfis psicopatológicos e ambientais (como por exemplo, a manifestação de transtornos de personalidade ou de condutas antissociais) incrementam o risco de reincidência. E são fatores estes que podem ser detectados e avaliados antes mesmo de que o agressor termine de cumprir sua pena.489 4. Do exposto, importante verificar que os resultados de programas de tratamento para autores de delitos sexuais graves não deveriam ser avaliados tão somente pelo que representam em termos de evitação de reincidência, que é a meta final. Este dado, na verdade, embora muito importante não pode obliterar que um bom programa voltado ao tratamento de autores de delitos sexuais graves deve desenvolver habilidades e competências destes sujeitos em lidar com seus desejos e permitir ao mesmo buscar mecanismos de vida alternativos ao delito.490 Este último objetivo, aliás, não pode ser esquecido. Por esta razão é imprescindível tratar os desiguais na medida em que se desigualam, ou seja, respeitando-se as diferenças também no momento terapêutico. É fundamental uma boa triagem, separando-se indivíduos com alto risco de reincidência daqueles com baixo risco, em nome do princípio que rege a reabilitação de agressores, e que diz: “the intensity of treatment should be proportional to the offender´s risk”, ou seja, a intensidade do tratamento varia conforme o risco apresentado pelo sujeito.491 Independentemente do alto ou baixo risco para reincidência, o tratamento deveria ser ofertado a todos. Entretanto, face às dificuldades econômicas, é bastante oneroso manter equipes especializadas e bem treinadas, além de equipamentos em boas condições para o suporte necessário, razão pela qual, sem dúvida, a prioridade deve ser dada aos indivíduos que apresentam maior risco de reincidência. Assim, para aqueles sujeitos que oferecem menores riscos em termos de delitos sexuais, soluções em meio aberto e de menor intensidade podem revelar bons resultados, otimizando recursos para serem destinados aos casos mais graves.492 488 PÉREZ RAMÍREZ/MARTÍNEZ GARCÍA/REDONDO ILLESCAS, Documentos de trabajo, pp. 188-221. REDONDO ILLESCAS/GARRIDO GENOVÉS, Principios de criminología, pp. 230 e ss.. 490 LUQUE REINA/FERRER PUIG/CAPDEVILA I CAPDEVILA, La reincidència penitenciària a Catalunya, pp. 150-156. 491 WAKELING/MANN/CARTER, HJCJ v. 51, n. 3, July (2012) pp. 286-299. 492 Ibidem, pp. 286-299. 489 181 5. Disto se verifica o quanto a reincidência está relacionada ao tratamento recebido pelo sujeito e à sua eficácia, o que demonstra que, apesar das dificuldades, não pode o Estado simplesmente abandonar o ideal de reinserção social previsto constitucionalmente. A avaliação do perfil individual é fundamental, principalmente quando da análise dos fatores dinâmicos, ou seja, aqueles que podem ser modificados, a fim de que se elabore um plano individualizado adequado ao caso concreto. Entre os fatores dinâmicos mais destacados estão a negação, racionalização, baixa motivação para o tratamento, pouca competência pessoal, fatores criminógenos, incluindo o consumo de drogas, preferência por hábitos “desviados”, baixo autocontrole e perfil psicopático.493 De todos estes, sem dúvida o mais frequente e persistente é a negação, o que dificulta, sobremaneira, qualquer câmbio de comportamento, bem como a busca pela ajuda terapêutica.494 6. Ainda que não seja papel do Direito Penal modificar pautas de pensamento, tem este a obrigação de intervir no processo de evitação da reincidência. Assim sendo, o Direito Penal intervirá no processo de contenção da perigosidade criminal, senão meramente para inocuizar, ao menos para oferecer alguma possibilidade, dentro de padrões éticos e legítimos, em termos de acompanhamento terapêutico ao indivíduo, independentemente de buscar a sua “cura”, como se fazia em tempos idos. A respeito de considerações sobre tratamentos terapêuticos, apresentamos, sucintamente e como breve excurso, por não ser o tema da presente investigação, mas possuir interesse relevante na área, um breve apanhado sobre o “estado da arte”, especialmente na Espanha, quanto ao tratamento médico e psicológico de delinquentes sexuais graves. Como consequência de todas as preocupações e avanços científicos que correspondem à preocupação de evitar a reincidência e de, realmente, oferecer-se tratamentos dignos e efetivos aos delinquentes sexuais, principalmente aos autores de delitos sexuais graves, buscou-se alguns dados importantes correspondentes à eficácia dos tratamentos conforme o “estado-da-arte” contemporâneo, não como um capítulo ou subcapítulo propriamente dito, mas apenas a título de complementação, já que o tema é correlato. 493 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, p. 9. 494 LUCÍA VALENCIA/MANUEL ANDREU/MÍNGUEZ/ANGEL LABRADOR, PCLF 2008, p. 4. 182 d Excurso: Considerações relevantes acerca do “estado-da-arte” sobre o tratamento médico e psicológico de delinquentes sexuais graves, especialmente na Espanha, e sobre sua eficácia 1. A legislação espanhola, em geral, garante que todo o tratamento realizado nas casas prisionais seja sempre feito de modo voluntário, pelo apenado. Assim também as regras europeias acerca do tema. A Constituição espanhola, o Código Penal e o Regulamento Penitenciário, igualmente, seguem no mesmo sentido, sempre buscando a reeducação e a reinserção social dos internos. O Regulamento Penitenciário, no artigo 116.4, por sua vez, dispõe que “La Administración penitenciaria podrá realizar programas específicos de tratamiento para internos condenados por delitos contra a libertad sexual, de acuerdo con su diagnóstico previo (…). El seguimiento de estos programas será siempre voluntario…”. A “Recomendación n. (87)3, das Reglas Penitenciarias Europeas”, estabelece em seu artigo 87: “En relación con los internos condenados a penas de más larga duración [como es el caso de muchos de los delincuentes sexuales], conviene asegurarles un retorno progresivo a la vida en sociedad. Este objetivo se podrá conseguir, en particular, gracias a un programa de preparación para la puesta en libertad, organizado en el mismo establecimiento o en otro establecimiento adecuado, o gracias a una puesta en libertad condicional bajo control con una asistencia social eficaz.” 495 2. O tratamento de delinquentes sexuais na Espanha é relativamente recente. Nos Estados Unidos e no Canadá o tema começou a ser debatido por volta da década de 70. Assim, ainda é muito pequeno o número de delinquentes sexuais que recebem tratamento na prisão, até porque o número de casas prisionais envolvidas com este tipo de programa ainda é reduzido. Considerando-se que os custos destes programas costumam ser altos e que os mesmos possuem prazos largos de duração, pode-se imaginar a distância que ainda existe em relação a um processo terapêutico de melhor qualidade e com maior efetividade. Ademais, o número de indivíduos presos é expressivo e, com isso, não é possível aplicar os programas terapêuticos para todos.496 Os programas terapêuticos de matriz psicológica, muitas vezes, contam com equipes multidisciplinares, terapeutas homens e mulheres, e quando é necessário, associam medicação (tratamento hormonal antiandrógeno ou THA) a fim de reduzir a secreção de testosterona, reduzindo o impulso sexual durante o tratamento. Este tratamento para indivíduos imputáveis exige o consentimento informado, ou seja, a voluntariedade do apenado, o que pode ser recompensado e até incentivado com benefícios penais e 495 496 CONSEJO DE EUROPA. Reglas Penitenciarias Europeas, 2010. REDONDO ILLESCAS/ANDRÉS PUEYO, PPsi 2007, pp. 147-156, vide ainda, em geral, sobre o tema: REDONDO ILLESCAS/GARRIDO GENOVÉS, Principios de criminología4, 2013. 183 penitenciários, respeitadas as polêmicas acerca da possibilidade. Os maiores objetivos destes programas terapêuticos podem ser resumidos em três: tratamento do comportamento sexual desviado, o tratamento das distorsões cognitivas, e a busca pelo funcionamento social da pessoa. Basicamente, visam que tais indivíduos aprendam a inibir suas condutas delitivas e que desenvolvam habilidades de comunicação necessárias para estabelecer relações sexuais maduras, adultas e consentidas.497 3. Na Espanha, as primeiras pesquisas acerca do tema foram desenvolvidas na Cataluña, com o apoio do Departamento de Justiça, em 1992.498 Em 1995 foi realizada a primeira pesquisa envolvendo vinte e nove autores de 226 delitos de estupro; a segunda pesquisa, em 1996, analisou trinta e três autores de crimes sexuais que haviam abusado de menores de idade, sendo responsáveis por 116 delitos; a terceira pesquisa ocorreu em 1998 e envolveu adolescentes infratores sexuais, objetivando desenvolver um programa específico de tratamento penitenciário para estes jovens; e a quarta pesquisa, no mesmo ano, avaliou a aplicação de programa de tratamento em duas casas prisionais, para delinquentes sexuais. Foi a partir da primeira das pesquisas citadas que se desenvolveu o primeiro programa específico para este tipo de delinquente, adaptado ao contexto espanhol.499 O então denominado Programa de Control de la Agresión Sexual (SAC) foi colocado em prática em duas casas prisionais em Barcelona: Quatre Camins e Brians. O mesmo programa, feitas algumas adaptações, segue sendo aplicado, atualmente, em várias casas prisionais espanholas, devido aos bons resultados apresentados quanto à redução substancial em termos de reincidência sexual: os agressores tratados, monitorados ao longo de quatro anos e meio, em média, apresentaram uma taxa de reincidência de 4,1%, frente aos 18,2% apresentado pelo grupo de controle não-tratado, conforme refere Redondo Illescas.500 4. Dentre as várias técnicas que podem ser empregadas nestes programas, destacamos as seguintes, conforme esboçado por Redondo Illescas: 501 desenvolvimento da autoestima (melhorando nível educativo e habilidades laborativas, ampliando atividades externas e até melhorando a aparência física da pessoa); distorsões cognitivas (ainda sem maiores comprovações científicas, o programa envolve o confronto da percepção do delinquente 497 REDONDO ILLESCAS, La violencia sexual, pp. 1-9. REDONDO ILLESCAS, Intervención intensiva con internos autores de delitos sexuales violentos y contra la libertad sexual, pp. 1-199. 499 Ibidem. 500 Ibidem. 501 Ibidem. 498 184 sexual sobre seus atos em relação aos informes policiais e ao depoimento da vítima); relações interpessoais e isolamento, visando trabalhar aspectos como a comunicação, ciúmes, a sexualidade, o medo da solidão, buscando identificar sinais inadequados nos relacionamentos e, a partir disto, estruturar caminhos mais efetivos para tanto; atitudes preferenciais sexuais, principalmente nos casos em que a vida sexual não é satisfatória, quando então o indivíduo recorre ao sexo, tanto delitivo, quanto não delitivo. São também desenvolvidas estratégias mais efetivas para lidar com esses problemas. Como nem sempre este tratamento alcança os resultados esperados, é usual associar algum medicamento antiandrógeno ou algum inibidor de serotonina; além disso, a prevenção de recaídas é outra técnica bastante empregada, a qual pretende estimular o indivíduo para que este próprio reconheça os primeiros sinais da aparição dos primeiros sintomas ou riscos de reincidência, a fim de que utilize estratégias para enfrentá-los a tempo, bem como para aprender oportunidades ou situações de perigo. Trabalha-se, também, a questão da empatia (importante desenvolvimento desta habilidade, que consiste na capacidade do indivíduo em sentir e expressar compaixão em relação a vítimas de agressões, capacidade de colocar-se no lugar do outro, compartilhando seus pensamentos e sentimentos), eis que o delinquente sexual, na maioria das vezes, até pode sentir empatia em situações diversas, mas geralmente não em relação a suas vítimas, sendo, pois, incapaz de perceber o mal causado. Este tipo de programa realmente melhora a empatia em relação à vítima. Aliás, a questão da empatia se revela como importante aspecto da personalidade cuja complexidade mistura elementos genéticos, neurobiológicos, comportamentais e sociais e, em sendo assim, ao mesmo tempo em que pode ser considerada uma característica relativamente estável da personalidade do sujeito, pode ser vista como um fator psicológico dinâmico, ou seja, que admite graduações e permite treinamento e melhoria, razão pela qual este aspecto é incluído, com algum destaque, nos tratamentos de delinquentes sexuais.502 5. Trabalho desenvolvido por Martínez García, Redondo Illescas, Pérez Ramírez e García Forero503, apresentou estudos cujas conclusões revelaram que estupradores manifestaram empatia (tanto quanto os delinquentes não sexuais) em relação a vítimas de acidentes ou de agressões sexuais por parte de outros agressores, mas não em relação às suas próprias vítimas, o que parece indicar a dificuldade no reconhecimento dos danos por eles 502 MARTÍNEZ GARCÍA/REDONDO ILLESCAS/PÉREZ RAMÍREZ/GARCÍA FORERO, Psicothema 2008, pp. 199-204. 503 Ibidem. 185 causados. Também referem pesquisas demonstrando que aqueles indivíduos que sofreram abuso sexual na infância e exposição à pornografia infantil mostraram menor empatia em relação a crianças e adolescentes em situação de abuso sexual, bem como informaram haver cometido mais delitos de abuso sexual infantil; já aqueles que haviam sido vítimas, na infância, de agressões físicas, manifestavam menor empatia em relação a mulheres vítimas de agressão, e confessavam haver cometido um maior número de delitos de agressão a vítimas adultas. Portanto, a empatia apresenta, sem dúvida, um papel decisivo na explicação do delito sexual bem como no tratamento do delinquente, sendo, apesar das discussões ainda persistentes, entendida, majoritariamente, como um importante “predictor de reincidencia sexual”.504 Deste modo, o resultado da pesquisa concluiu que os delinquentes sexuais tratados apresentaram maior empatia do que os delinquentes sexuais não tratados e, inclusive, do que os delinquentes não sexuais. 6. São empregados os programas do tipo cognitivo-comportamental,505 geralmente em formato de grupo de oito a dez pessoas, com a inserção dos mesmos em atividades para alto, médio e baixo risco de reincidência. Assim, aqueles classificados na primeira categoria recebem um tratamento mais intenso e mais longo do que os demais, otimizando recursos, em função da necessidade de cada sujeito. Estima-se que este tipo de intervenção seja uma das mais, ou a mais efetiva para delinquentes sexuais.506 Especificamente, sobre a eficácia de tratamentos cognitivo-comportamentais aplicados a delinquentes sexuais na Penitenciária de Brians, em Barcelona, Redondo Illescas concluiu que o mesmo logra reduzir a reincidência sexual em torno de 14,1% (que foi a diferença entre o percentual alcançado pelo grupo de controle, ao redor de 18,2% e o grupo de tratamento, que foi de 4,1%). Dos quarenta e nove indivíduos que participaram do tratamento, somente dois reincidiram em delitos sexuais ao longo de quatro anos (follow up). Houve apenas outro indivíduo que reincidiu em delito não sexual, totalizando uma reincidência geral de 6,1% Já no grupo de controle (não tratado), dos setenta e quatro integrantes, treze reincidiram em delitos sexuais (18,2%), além de dez em delitos não sexuais (13,6%) totalizando vinte e três sujeitos reincidentes (31,8%). As diferenças foram, pois, estatisticamente significativas. Para o autor mencionado,507 isto 504 MARTÍNEZ GARCÍA/REDONDO ILLESCAS/PÉREZ RAMÍREZ/GARCÍA FORERO, Psicothema 2008, pp. 199-204. 505 GONZÁLEZ COLLANTES, RGD 2014, pp. 24 e ss. 506 REDONDO ILLESCAS, Intervención intensiva con internos autores de delitos sexuales violentos y contra la libertad sexual, pp. 1-199. 507 REDONDO ILLESCAS, REIC 2006, pp. 17 e ss. No mesmo sentido, a respeito da importância da abordagem cognitivo-comportamental e de seus resultados, vide: HANSER/MIRE, IRLCT 2008, pp. 101-114. 186 demonstra uma considerável potência reabilitadora deste tipo de tratamento quanto à redução da reincidência em sujeitos tratados, embora estes sejam resultados iniciais de pesquisas que deveriam prosseguir por muito mais tempo a fim de permitir uma avaliação de reincidência a longo prazo. 7. No que diz respeito aos chamados pedófilos, outra categoria de especial interesse cujo conceito já foi apresentado em 2, III, C, 6, ao tratarmos dos delitos em espécie, embora não se possa descartar a existência de programas interessantes que visam acompanhar o indivíduo nesta trajetória de tratamento e acompanhamento, algumas modalidades terapêuticas vêm sendo adotadas em vários países.508 A medicação antiandrógena (THA) é um bom exemplo, embora possam ocorrer reincidências diante da interrupção ou da descontinuidade do tratamento. Programas como os “Doze Passos” são muito empregados nos Estados Unidos (a exemplo dos programas para alcoolistas) já que tratam de comportamentos compulsivos que conduzem, posteriormente, à culpa e à vergonha. Modelos como os de “Prevenção de Recaídas” auxiliam o sujeito a lidar com seus problemas, reconhecendo situações de risco, desenvolvendo o autocontrole e trabalhando com a possibilidade de recaídas. O Oregon State Hospital, por exemplo, é uma unidade de tratamento para delinquentes sexuais crônicos, incluindo casos de indivíduos que praticaram incesto. Realiza tratamento medicamentoso e psicoterápico e trabalha com o modelo de “Prevenção de Recaídas” utilizando o pletismógrafo. O modelo “Parents United” também consiste numa forma de trabalhar com psicoterapia de grupo, animando a delinquentes e a seus familiares ao apoio mútuo. Hospitais e casas de abrigo, nos Estados Unidos, já trabalham com estes modelos há bastante tempo. O Freemont Community Correctional Center, uma Casa de Abrigo em Salt Lake City, é operada pelo Departament of Corrections de Utah e realiza tratamento especializado nos casos de delinquentes sexuais que praticaram incesto. Possuem um Centro para a Família (Center for Family Development) com quarenta vagas para estes casos. O programa iniciou em 1983. Neste estudo509 de follow up, apenas três de um total de 250 indivíduos reincidiram dentre aqueles que completaram o programa. 8. No tocante a agressores domésticos, incluindo autores de delitos sexuais, mas não se resumindo a este tipo de delinquência, algumas questões parecem ser um pouco diversas. Estima-se que em torno de 20% venha a reincidir, mas os dados variam conforme a passagem 508 509 JOANNE/BROWN, JAMT 1997, pp. 335-354. Ibidem. 187 do tempo. Geralmente, os primeiros meses e anos são os mais cruciais. Estudos citados por Gondolf e Kingsnorth510 mencionam que cerca de 41% dos sujeitos tratados haviam reincidido passados trinta meses do tratamento, e destes, dois terços ocorreram nos primeiros seis meses de acompanhamento. Outras pesquisas são referidas no mesmo sentido, o que leva a crer que um follow up de um ano já seria suficiente para detectar a maioria das novas agressões e avaliar a efetividade do tratamento. Em que pese estes dados, as pesquisas referidas apontam no sentido de que, a longo prazo, a reincidência pode alcançar uma proporção de até 50% da amostra, e que o câmbio psicológico produzido após o tratamento e o possível fim daquela violência inicial não implicam modificações comportamentais significativas a longo prazo. Também se encontrou que dentre os fatores associados a esta violência doméstica, e que muitas vezes inclui a sexual, existem os fatores estáticos ou imodificáveis, que costumam ser inerentes ao sujeito ou a seu passado e, portanto, de impossível ou difícil modificação (a idade no primeiro delito – ser jovem, conduta antissocial, violência na família de origem, agressão prévia à companheira ou companheiro e transtornos de personalidade ou psicológicos severos). Dentre os fatores dinâmicos ou modificáveis mediante intervenções,511 destacam-se a ira, as distorsões cognitivas, as atitudes machistas ou favoráveis à violência, o consumo de álcool e outras drogas, a dependência emocional e alguns problemas psicológicos. A motivação delitiva está relacionada a fatores dinâmicos modificáveis, e o tratamento deve ser, sempre, mais intensificado sobre estes fatores. Porém, cabe ressaltar que é grande a proporção de indivíduos presos, cuja carreira delitiva está consolidada. Para estes, a violência doméstica não é uma questão cultural (machismo), pois não agridem apenas suas companheiras, mas sim a estranhos também.512 O consumo de álcool e outras drogas, aliás, chama a atenção pelos dados. Cerca de 20% a 40% dos indivíduos que hoje se tratam por terem cometido violência doméstica preenchem os requisitos para abuso daquelas substâncias. Se o agressor também recebesse este tipo de tratamento, a reincidência poderia ser reduzida em até 40% naqueles delitos. Diz-se, inclusive, que o abuso de álcool é “el mejor predictor de reincidencia tras el tratamiento, sino que además, es el principal mediador en la capacidad predictiva de otras variables como la conducta delictiva general, que puede incrementar el riesgo de reincidencia en un 90%.513 Também em relação à violência doméstica, não somente o álcool, mas o discurso machista é um fator a parte, a ser analisado. 510 GOLDOLF, Batterer intervention systems, 2002; KINGSNORTH, VAW 2006, pp. 917-935. REDONDO ILLESCAS, REIC 2006, p. 5. 512 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, p. 65. 513 Ibidem, pp.16-18. 511 188 O discurso machista não pode explicar a violência doméstica (nem sexual), pois embora se trate de valor cultural presente em quase todos os extratos sociais em diversos países, no entanto, só uma minoria maltrata suas esposas. Sutherland definiu, criminologicamente, que valores e crenças gerais (neste caso patriarcais ou sexistas) não podem explicar, por si só, a agressão e a delinquência por parte de apenas alguns indivíduos, razão pela qual, cientificamente, são necessários outros elementos a explicar este tipo de conduta, inclusive os de natureza patológica (sejam psicológicos ou orgânicos).514 Loinaz Calvo, Irureta Lecumberri e Doménech Burset515, em pesquisa específica sobre o tema dos agressores domésticos, constataram discrepâncias metodológicas a partir de diversas pesquisas consultadas em estudos anglo-saxônicos, razão pela qual se configurou uma baixa representatividade quanto aos resultados e, ainda, a impossibilidade de compará-los. 9. Já no que tange ao tratamento dos psicopatas, como refere Cerezo Mir, mesmo no caso do sujeito receber a classificação correspondente a uma eximente completa ou incompleta, “su internamiento en un sanatorio psiquiátrico no es necesario e incluso sería contraproducente y el tratamiento externo puede ser insuficiente.”516 Sobre o tema, referem Jescheck e Weigend,517 que “los hospitales psiquiátricos nada positivo pueden hacer con respecto a tales grupos de personas, mientras que la presencia de éstas perturba notablemente o impide la debida atención a los verdaderos enfermos.” Embora muitos tratamentos aplicados a psicopatas ainda não tenham logrado suficiente êxito, segue a necessidade de se prosseguir com pesquisas na área. Tais sujeitos, e ainda os multirreincidentes, são os responsáveis por 81,1% das reincidências penitenciárias na pesquisa518 realizada nas prisões da Cataluña (o que correspondeu a um conjunto de 258 sujeitos, dos quais 18,4% acumularam 1.754 reingressos na prisão no intervalo de cinco anos e meio de acompanhamento). Há, pois, necessidade de se considerar a possibilidade de intervenção intensiva, propiciando programas e atuações específicas, individualizadas. 514 REDONDO ILLESCAS/ANDRÉS PUEYO, Perfil y tratamiento del maltratador familiar, Disponível em: <http://www.ub.edu/geav/contenidos/vinculos/publicaciones/public1_6/publicac_pdf/6_5_Redondo%20Illesc as,%20S.%20y%20Andr%C3%A9s%20Pueyo,%20A.pdf. Dossier. Acesso em: 15 mar. 2013. 515 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, pp.10-12. 516 CEREZO MIR, en: ARROYO ZAPATERO/BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.)/NIETO MARTÍN (coord.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos, vol. I, p. 931. 517 JESCHECK/WEIGEND, PG5, pp. 869 e ss. 518 CAPDEVILA CAPDEVILA/FERRER PUIG, Tasa de reincidencia penitenciaria 2008, pp. 140 e ss. 189 10. Cabe lembrar, ainda, do que reza a Constituição no sentido de que toda pena ou medida de segurança deve primar pela reeducação e pela reinserção social da pessoa. O assunto faz lembrar o Programa de Marburgo, quando von Liszt referia que a pena deveria ressocializar alguns, intimidar outros e, ainda, inocuizar ou neutralizar aqueles que ele denominava como “incorrigíveis”.519 Logicamente, à luz de um Estado de Direito Democrático, o Estado não tem legitimidade para impor aos cidadãos valores morais,520 porém deve atender ao objetivo de evitar a reincidência quando da aplicação e execução da pena. Na Espanha, um pequeno percentual de sujeitos está condenada por crimes sexuais, como já demonstrado, neste mesmo capítulo, mas apesar de passarem vários anos na prisão, isto não significa que a conduta desviada futura poderá ser evitada. É que em inúmeros casos de delinquentes sexuais os hábitos agressivos ou abusivos de natureza sexual fazem parte da conduta do sujeito e são reiterados. É possível que diante de novas oportunidades o indivíduo reproduza aqueles comportamentos. Por isso mesmo e mais do que nunca, é fundamental que o indivíduo aprenda, sempre que isto seja possível, a controlar sua conduta e seus hábitos sexuais, o que requer mudanças em termos de atitudes externas, envolvendo, em muitos casos, alteração de hábitos, habilidades, preferências sexuais, controle da bebida e de outras drogas etc. Portanto, pode-se concluir que para diminuir o risco de reincidência é fundamental um atendimento especializado521. Segundo Redondo Illescas,522 em que pese os especialistas considerarem a agressão sexual como um dos comportamentos delitivos mais resistentes ao câmbio, há vários trabalhos demonstrando que tratamentos podem apresentar resultados positivos, como é o caso do Programa de Control de la Agresión Sexual (SAC)523 e que se aplica no Centro Penitenciário Brians, desde 1996 até os dias de hoje. As taxas de abandono destes tratamentos, quando voluntários, oscilam entre 50% e 75%, e se estima que a reincidência dobre quanto aos sujeitos que não completam a terapia.524 A principal conclusão a que se chega é que se deve analisar a eficácia destes tratamentos quando forem baseados em perfis específicos de agressores, e não em relação a perfis genéricos. “Los tratamientos ajustados a los factores de riesgo reducirían en mayor medida la reincidencia que los 519 JAKOBS, Derecho penal: PG2, pp. 28-29. BITENCOURT, Falência da pena de prisão, p. 128. 521 MARSHALL/REDONDO ILLESCAS, en: REDONDO ILLESCAS (org.), Delincuencia sexual y sociedad, p. 302. 522 PRATS, El Pais, 22 jun. 2013. Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/2013/06/22/ actualidad/1371929413_934353.html>. Acesso em: 9 jan. 2014. 523 GONZÁLEZ COLLANTES, RGDP 2014, pp. 30 e ss. 524 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, pp. 23-24. 520 190 tratamientos de ‘talla única’ de práctica habitual”.525 Há, então, que se compreender que a ideia da chamada “ressocialização” é muito mais ampla do que se costuma dizer. E mais: não se encontra oposta ao princípio da culpabilidade, mas é seu correlato, pois como refere Gudín Rodríguez-Magariños,526 o terreno da ressocialização é, em câmbio, muito mais amplo. A maior ou menor responsabilidade social no sistema de produção-manutenção-garantia da liberdade mediante o Direito Penal determina a solidariedade para com o delinquente e a prestação do necessário para sua integração social: “para evitar equívocos debe advertirse que, pese a que la resocialización tiene un amplio espacio en tanto misión del Estado, ésta sólo puede llevarse a cabo de forma limitada en el marco de la pena.” 11. De tudo o que já foi feito até o momento na Espanha as sugestões da literatura especializada apontam, basicamente, para a necessidade da implementação de programas mais centrados em tratamentos individualizados e para a criação de unidades especializadas no tratamento de delinquentes sexuais, especialmente os violentos, que são aqueles que mais suscitam preocupação na sociedade. Assim, seriam otimizados recursos, os quais seriam mais concentrados na correta avaliação (triagem), tratamento e posterior acompanhamento daqueles que realmente oferecem maiores riscos, mesmo já em liberdade. Outra sugestão que merece registro, também feita a partir dos trabalhos de Redondo Illescas, diz respeito à necessidade de criação de equipes especializadas para o acompanhamento e desenvolvimento de programas fora das prisões, para estes mesmos delinquentes, especialmente diante das novas alternativas à privação de liberdade, como são os trabalhos em benefício da comunidade. Refere Redondo Illescas527 que “tanto las actuales legislaciones penales como las penitenciarias regulan suficientemente la posibilidad de aplicar programas de tratamiento y de establecer normas de conducta y de control (incluso en la comunidad, durante los periodos de libertad condicional).” Refere que o mais importante é ter possibilidades legais e recursos para efetivá-las, desenhando e aplicando os programas técnicos necessários. A literatura vem, portanto, demonstrando a efetividade deste tipo de medida em relação a delinquentes considerados de perigosidade moderada a alta.528 525 LOINAZ CALVO/IRURETA LECUMBERRI/DOMÉNECH BURSET, Análisis de la reincidencia en agresores de pareja, p. 33. 526 GUDÍN RODRÍGUEZ-MAGARIÑOS, Cárcel electrónica, p. 139. 527 REDONDO ILLESCAS, en: Intervención intensiva con internos autores de delitos sexuales violentos y contra la libertad sexual, pp. 1-199. 528 REDONDO ILLESCAS/SÀNCHEZ-MECA/GARRIDO GENOVÉS, Psicothema 2002, pp. 164-172. 191 12. Encerrado o excurso que pretendeu demonstrar, sucintamente, o “estado da arte” em termos terapêuticos e sua eficácia diante da pretensão de redução de reincidência, recoloquemos o tema em linhas jurídicas propriamente ditas. Como fica a situação no caso de um indivíduo que, embora imputável e, portanto, apto a consentir quanto a eventual proposta terapêutica, apresente também potencial de perigosidade que represente grande probabilidade para reincidência em delito sexual grave? Neste caso, aplica-se pena e medida de segurança ou uma pena agravada? Passamos, então, a análise jurídica da questão. 6 Limites ao princípio da culpabilidade no tratamento jurídico-penal do indivíduo imputável perigoso e a função do princípio da proprocionalidade a. Da culpabilidade à proporcionalidade: a redefinição de espaços principiológicos 1. Compreendendo-se melhor a importância do tema do diagnóstico de perigosidade e de prognóstico de reincidência é possível entender-se as razões pelas quais o tema das medidas, que será mais profundamente trabalhado ao longo de todo o próximo capítulo é tão relevante. Diante da perigosidade, a pena nada tem nada a oferecer, pois seria injustificável uma pena agravada pela perigosidade se entendermos que esta não compreende o juízo de censurabilidade. Diante disto, o princípio da culpabilidade entendido tradicionalmente como hipótese de censurabilidade, cede espaço ao princípio da proporcionalidade, de índole constitucional “e que afeta a toda intervenção limitadora de direitos por parte do Estado”, devendo ser idônea a proteger o bem jurídico tutelado, necessária ou imprescindível para assegurar o efeito social objetivado e, ainda, proporcional em sentido estrito, ou seja, adequado como resposta penal. O princípio da proporcionalidade é a ancoragem de todo o sistema ou aparato conceitual que versa sobre a proteção de bens jurídicos, conforme Cancio Meliá.529 Por isto se diz que a análise deste está estreitamente vinculada ao tema da própria legitimidade e da finalidade das medidas de segurança. Assim, e já como forma de preparar a introdução ao tema das medidas, objeto do próximo capítulo, importa compreender a importância do princípio da proporcionalidade para o estudo das medidas, já que estas, tanto quanto as penas, constituem mecanismos de defesa social, sendo pois, formas de controle 529 CANCIO MELIÁ/PÉREZ MANZANO, Lección 3 en: LASCURAIN SANCHEZ (coord.), Introducción al derecho penal2, 2015. p. 22. (en prensa). 192 social, conforme Hassemer.530 Ambas devem limitar o jus puniendi estatal,531 tendo caráter de ultima ratio.532 É verdade que existe profunda semelhança entre penas e medidas, já que ambas se orientam à mesma finalidade sob o prisma constitucional: reeducação e reintegração social,533 além do que, devem estar regidas pelas mesmas garantias e limites constitucionalmente impostos, resguardadas as peculiaridades em cada caso.534 2. No entanto, traço diferenciador fundamental entre penas e medidas é que aquelas, dentre tantos limites, estão subjugadadas pelo princípio da culpabilidade, enquanto as medidas ficariam limitadas pelo princípio da proporcionalidade.535 Argumentos antigos referiam que a pena se volta ao passado e que a medida, ao futuro. Hoje se sabe que ambas apresentam, como pressuposto, o passado, e ambas possuem o horizonte de um futuro mediante a reinserção social da pessoa, já que a prevenção especial não é uma prerrogativa ou exclusividade de qualquer dos institutos.536 Evidentemente que se pode afirmar que as medidas, assim como as penas, também se voltam ao passado na medida em que possuem como pressuposto a prática de fato típico e ilícito, e sem delito antecedente, não se admite medida de segurança.537 O mais importante é conseguir constatar que através do discurso de que ambas merecem o resguardo dos mesmos princípios e garantias constitucionais, penas e medidas não são iguais. Embora as semelhanças, as medidas não devem ser tratadas como se penas fossem, a começar pela necessária ausência de juízo de censurabilidade naquelas. Ademais, nas penas, ainda que a finalidade de prevenção especial seja atendida, a finalidade preventivo-geral segue demandando a persecução penal, ao contrário da medida, sem esta mesma correspondência.538 A perigosidade é o requisito angular que participa no binômio temibilidade-medida, supondo o fundamento e a base principal do chamado Direito Penal preventivo, “pese a quien pese”. 539 E este tema está completamente vinculado à análise da delinquência sexual grave, posto que a decisão por medidas ou penas irá passar, necessariamente, por este tipo de análise, e qualquer resposta indicativa de perigosidade por parte do sujeito, deverá desencadear no operador jurídico todas estes reflexões. 530 HASSEMER, Fundamentos del derecho penal, pp. 390 e ss. FERRARI, Medidas de segurança e direito penal no Estado Democrático de Direito, p. 131. 532 GARCÍA GARCÍA, Marco jurídico de la enfermedad mental, p. 479. 533 ZUGALDÍA ESPINAR, PG, pp. 67-70. 534 SIERRA LÓPEZ, Las medidas de seguridad en el nuevo código penal, p. 68. 535 ENCINAR DEL POZO, en: NAVARRO GARCÍA/SEGOVIA BERNABÉ (dirs.). EDJ 2007, p. 46. 536 FERRARI Medidas de seguridad e direito penal no Estado Democrático de Direito, p. 74. 537 BERISTAIN, Medidas penales, 1974, pp. 58 e ss. 538 SILVA SÁNCHEZ, El nuevo CP, p. 29. 539 LEAL MEDINA, RdPP 2008, p. 56. 531 193 3. Quanto à questão da prevenção especial positiva, esta assume o protagonismo no caso das medidas, conforme Figueiredo Dias540, não estando excluída, de modo algum, das penas. Entretanto, mesmo reconhecendo que o propósito socializador deve ter primazia, nos termos dos princípios da socialidade e da humanidade, e do que reza a própria Constituição, a finalidade de segurança não pode ficar esquecida, até porque uma medida privativa de liberdade arrasta consigo um elemento de segurança inerente, ao menos durante o tempo da internação. Inclusive, o autor português menciona que a prevenção geral, no âmbito da medida, chega a apresentar função autônoma, embora, inicialmente, seja dependente de um pressuposto de perigosidade. É que por razões de tranquilidade social e de tutela da confiança comunitária na vigência do ordenamento, a política criminal deve encaminhar sua mensagem, mesmo perante inimputáveis, ainda que o comportamento destes não sirva como modelo para a maior parte das pessoas.541 Por isto, a finalidade preventivo especial deve ser compatibilizada com a preventivo geral. Aliás, gize-se que a tanto as medidas como as penas, possuem finalidade preponderantemente preventivo-especial, ainda que possam, residualmente, apresentar caráter ou função preventivo-geral.542 Também neste sentido, Luzón Peña,543 o qual conclui pela prevalência da teoria da prevenção especial, já que a prevenção geral até poderia ser alcançada, porém não seria esse o objetivo principal. Segundo o autor referido, as “medidas de seguridad tienden exclusivamente a la prevención especial y sólo de modo absolutamente marginal y en alguns casos pueden servir de hecho a la prevención general, pero ese no es su fin”. Veja-se que o próprio artigo 25.2 da Constitução espanhola determina que penas e medidas de segurança devam convergir para os ideais de reeducação e reinserção social, mas isto não pode ser interpretado com literalidade, sob pena de admitir-se pernicioso regresso às medidas de segurança pré-delitivas ou de impor-se a cura como requisito para a obtenção da liberdade. Ante o exposto, verifica-se que prevenção especial e prevenção geral constam nas duas consequências jurídicas do delito, penas e medidas, porém com diferentes matizes, no modo como se relacionam, principalmente, sendo que existem algumas divergências neste sentido, como salienta Sanz Morán.544 O problema da prevenção especial é parecido com o da prevenção geral negativa (intimidação) no sentido de que nele não se observa o quantum de danosidade social do fato praticado versus o dano causado pela 540 FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, p. 94. FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, pp. 91-92. 542 Referindo ser este o posicionamento da doutrina majoritária, GARCÍA GARCÍA, Marco jurídico de la enfermedad mental, p. 469. 543 LUZÓN PEÑA, ADPCP 1989, p. 44. 544 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 78. 541 194 reação ao delito, podendo levar a desproporções exageradas. Assim, se um sujeito reincide, talvez coubesse aplicar uma custódia asseguradora durante muitos anos, apesar de os danos causados socialmente serem escassos. Para remediar o problema, existe o princípio da proporcionalidade. 4. Em se empregando o princípio da proporcionalidade poderá, no entanto, ficar abandonada determinada reação preventivo-especial. Igualmente, o mesmo princípio da proporcionalidade afastará, em muitos casos, a função preventivo-geral porque nem a pena, nem a medida devem funcionar, apenas, como um “calmante” para a sociedade. Ademais, muitos infratores não necessitam de adaptação social. Além disso, nos casos que envolvessem situações conflitivas, cuja repetição fosse improvável, tampouco caberia aplicar a pena. O perigo de tudo isto é que diante de eventual renúncia à reação que compense os danos à vigência da norma, reforçar-se-ía o perigo de que a própria possibilidade de orientação pela norma fosse perdida, no dizer de Jakobs.545 Também como crítica à finalidade preventivoespecial, existe o fato de que o Estado não está legitimado para regular as disposições morais dos cidadãos. Assim, a prevenção especial somente poderá buscar esta obediência externa utilizando-se de meios que, primeiramente, sejam aceitos pelo sujeito infrator para cooperar ou não neste sentido, quando livre e imputável; ademais, para tanto, terá que utilizar meios que também sejam legítimos frente a qualquer outro cidadão que não tenha incorrido numa conduta punível.546 5. Porém, quanto às medidas de segurança questiona-se a justificativa para sua imposição, as quais desde já ressaltamos, possuem como pressuposto a perigosidade, e não a inimputabilidade, via de regra, no sistema espanhol e, logicamente, devem respeitar a dignidade humana tanto quanto as penas. De fato, a justificativa ético-social baseada na liberdade interior do indivíduo não pode ser aplicada, posto que isto significaria afirmar que doentes mentais seriam indignos da liberdade exterior ou social e que isto poderia justificar qualquer medida ou intervenção estatal.547 A outra justificativa é apresentada por segmento doutrinário considerável e consiste na tese do interesse público preponderante, fundamentado na ponderação de bens, ou seja, pode-se privar alguém de sua liberdade quando esta conduza a uma alta probabilidade a prejuízos alheios que pesam mais do que as restrições que quem 545 JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 32. Ibidem, p. 34. 547 JORGE BARREIRO, RPCC (2001), pp. 542-543. 546 195 causa o perigo deve suportar por força da medida. Assim, predomina a ideia da salvaguarda de interesses preponderantes, princípio este que é o mais apropriado, mas que deve vir limitado pelo respeito à dignidade humana pela segurança jurídica própria de um Estado Democrático de Direito.548A legitimidade das medidas, para Figueiredo Dias, surge da chamada “finalidade global de defesa social”, nos termos que explica. Tal finalidade compreende a prevenção de ilícitos-típicos futuros pelo agente perigoso que cometeu um ilícito-típico grave. Assim, as exigências jurídico-constitucionais devem estar garantidas e a medida deve decorrer do monopólio do poder judicial, sendo dependente dos princípios da necessidade, da subsidiariedade, e da proporcionalidade ou proibição de excesso. Deve, pois, conforme o professor português, ser aplicada na defesa de um interesse comunitário preponderante na medida em que não se revele desproporcional à gravidade do ilícito-típico cometido e à perigosidade do agente. Por isto, nos termos do que refere Figueiredo Dias, o princípio da defesa social tem que ser conjugado com o princípio da ponderação de bens conflitantes.549 6. Neste aspecto, Sanz Morán apresenta posicionamentos doutrinários trazidos por outros autores os quais, embora concordem quanto à oposição que fazem ao entendimento de Figueiredo Dias, discordam, no mérito, entre si, como é o caso de Frisch e de Jakobs. Para o primeiro existe o chamado “dever de proteção do Estado”, ou seja, como poder público, deve se preocupar, além da proteção aos bens jurídicos tutelados, com a proteção dos direitos das pessoas, inclusive com os direitos do infrator. Assim, como diz Sanz Morán, evidencia-se a importância de se analisar a real necessidade da intervenção ou a possibilidade de recurso a outras técnicas menos gravosas. Trata-se de uma análise de ponderação entre deveres do Estado. Para Jakobs, a medida (principalmente aquela de natureza complementar à pena) justifica-se enquanto possibilidade de satisfazer as exigências cognitivas sem prejuízo das normativas, ou seja, afiançar a autoridade da norma. Em ambos os casos se trata de delimitar o poder de intervenção estatal de modo mais pragmático. É desta forma que princípios como o da subsidiariedade e da proporcionalidade adquirem significativa relevância no campo das medidas,550 e para satisfazer necessidades preventivas, o Direito Penal deve organizar um sistema de medidas desvinculado do princípio da culpabilidade.551 548 Ibidem. FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, pp. 96 e ss. 550 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, pp. 83-84. 551 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 437. 549 196 7. Exatamente a respeito de um sistema de medidas desvinculado do princípio da culpabilidade, Antunes entende que, enquanto nas penas a prevenção geral de integração está em primeiro lugar e a prevenção especial, de qualquer espécie, atua apenas no limite da culpa, nas medidas a prevenção especial (reinserção social ou mesmo, a função de segurança) prepondera, não se excluindo a prevenção geral de integração. Assim, a diferença reside em pressupostos irrenunciáveis como é o caso do princípio da culpa para a pena, o qual não exerce qualquer papel no âmbito das medidas.552 Se a presença do princípio da culpa é vital para a pena, vale dizer que o mesmo não interessa, mas tampouco exclui, o cabimento da medida. Assim, viável a aplicação de medida para imputáveis desde que em caráter pósdelitivo e diante da constatação de perigosidade criminal. É o que fez o legislador espanhol ao criar o instituto da liberdade vigiada para imputáveis dotados de perigosidade. Assim, no que tange à perigosidade, o princípio da culpa, aplicável a sujeitos imputáveis, não se aplica, mas tampouco impede o cabimento da medida diante da perigosidade. 8. A ideia do princípio da proporcionalidade serve, então, como critério reitor para o tratamento jurídico da perigosidade, que é o fundamento das medidas de segurança criminais pós-delitivas. Como refere Jorge Barreiro,553 tal princípio assume importante função limitadora do poder punitivo do Estado ao condicionar a aplicação das medidas de segurança à gravidade do fato cometido pelo sujeito perigoso e dos que este possa vir a cometer no futuro, bem assim como ao grau de perigosidade criminal do autor, tendo este sentido limitador do jus puniendi do Estado levado a que certo setor doutrinário afirmasse que este princípio desempenha, quanto às medidas, o mesmo que o princípio da culpabilidade representa em relação às penas. Aliás, o período de duração de uma medida de segurança deveria ser calculado com base no princípio da proporcionalidade, este entendido em relação à perigosidade do indivíduo e sempre se respeitando o artigo 25.2 da Constituição, buscando-se a reeducação e a reinserção social do sujeito, já que qualquer critério de censurabilidade, diante da medida de segurança, deveria ser afastado ab initio. “De hecho es una monstruosidad lógica creerse que la medida de seguridad deriva de la retribución de un mal causado por una persona que ni siquiera sabía lo que hacía”, refere Hireche. 554 Os retribucionistas sonhavam com a realização da justiça, entretanto, esta não é uma missão possível ao Direito Penal. Ao contrário, é praticamente incompatível com as funções deste 552 ANTUNES, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, pp. 477-478. 553 JORGE BARREIRO, RPCC 2001, pp. 552-553. 554 HIRECHE, A função da pena na visão de Claus Roxin, p. 102. 197 ramo do ordenamento. Sobre o assunto, menciona Bitencourt555 que “a metafísica necessidade de realizar a Justiça excede os fins do Direito Penal.” O Estado pode utilizar os meios em Direito Penal admitidos, sempre, desde que sejam os menos lesivos ao indivíduo e que seja de forma subsidiária. Por isto, a medida somente deverá ser empregada quando o tratamento realmente for necessário, não se justificando no caso de o sujeito ter se recuperado. 556 Neste sentido Jorge Barreiro557 defende o princípio da intervenção mínima como decorrência do próprio princípio da proporcionalidade, sendo, pois, totalmente aplicável às medidas de segurança. Sobre as finalidades da medida, Cerezo Mir558 declara que esta deve atender ao desiderato constitucional comentado, e neste sentido, será sempre legítima e constitucional. Inadmissíveis serão as medidas que, embora de algum modo atendam aos objetivos de reeducação e de reinserção social, venham a ferir direitos e garantias fundamentais. Isto pode ser verificado, por exemplo, nos casos das shaming penalties como são denominadas nos Estados Unidos as sanções aplicáveis em casos que objetiva-se reeducar o indivíduo através da sua exposição à vergonha e à humilhação pública, como ocorre, por exemplo, pela castração física (vide 6, III), ou mesmo em algumas formas de registros de delinquentes sexuais pela rede mundial de computadores (vide 6, IV). b. Crítica ao princípio da proporcionalidade em sua concepção legal vigente 1. O princípio da proporcionalidade, no que tange à sua relação com a medida de segurança, encontra guarida no artigo 6.2 CP: “Las medidas de seguridad no pueden resultar ni más gravosas ni de mayor duración que la pena abstractamente aplicable al hecho cometido, ni exceder el límite de lo necesario para prevenir la peligrosidad del autor.” No entanto, o tema enfrenta algumas críticas doutrinárias, especialmente quanto à redação legal referida. A previsão de que a medida de segurança não pode ser mais gravosa nem mais longa do que a pena prevista para o delito parece ter perdido sua razão de ser, especialmente hoje, diante da medida de liberdade vigiada, quando, em algumas situações, poderá a mesma ser imposta por até dez anos após o cumprimento da pena, mesmo que esta tenha prazo de duração inferior àquela. 555 BITENCOURT, Falência da pena de prisão, p. 114. FERRARI, Medidas de segurança e direito penal no Estado Democrático de Direito, p. 110. 557 JORGE BARREIRO, RPCC 2001, p. 558. 558 CEREZO MIR, LL n. 4063 (1996), pp. 1-5. 556 198 2. Jorge Barreiro559 faz importante crítica acerca do modo como a legislação penal trata o princípio da proporcionalidade no caso das medidas de segurança, referindo que a sistemática adotada pelo Projeto de 1980 (artigo 133) e pela Proposta de Anteprojeto do CP, de 1983 (artigo 88.1), eram superiores. O Anteprojeto mencionado previa, no artigo 88.1, que “las medidas de seguridad serán necesariamente proporcionadas a la peligrosidad criminal del sujeto y a la gravedad del hecho cometido y de los que sea probable que aquél pueda cometer.”560 É que o atual artigo 6.2 CP, conforme o professor citado, não considerou como devia o princípio da proporcionalidade em relação à medida de segurança, principalmente porque não levou em conta que a perigosidade criminal é seu fundamento e seu limite. Assim ele refere sobre o artigo 6.2 em comento: “[...] incurre en el grave defecto de olvidarse de dos términos de referencia ineludibles en ese ámbito, como son el grado de peligrosidad criminal del sujeto […] y la gravedad de los delitos que se puedan cometer probablemente en el futuro.” O artigo 6.2 CP, ao tratar apenas da “[…] gravosidad y duración de las medidas de seguridad en relación con la pena abstracta prevista en la ley para el delito cometido por el sujeto criminalmente peligroso, provoca una indeseable asimilación y confusión entre medidas de seguridad y penas, olvidando sus importantes diferencias de fundamento, contenido y fines.”561 E neste sentido, a confusão e consequente aproximação entre penas e medidas, hipótese de intercambialidade funcional, tema que será abordado ao longo de todo o próximo capítulo, chega às raias do “criticable y lamentable”, na expressão de Jorge Barreiro,562 quando, por exemplo, a lei proíbe que se imponha medida de segurança privativa de liberdade quando o delito cometido não apresente a pena privativa de liberdade como sanção admissível, já que, terapeuticamente falando, poderia haver esta necessidade. “Tal planteamiento ha de evitar la criticable tendencia legislativa -como sucede en nuestro CP de 1995- de someter la regulación de las medidas de seguridad criminal -el Derecho Penal de la peligrosidad– a las mismas de la culpabilidad”, como refere Jorge Barreiro.563 Tal tendência, gize-se, foi mantida pela reforma operada pela LO 1/2015. O mesmo autor ressalta a consequência daquela previsão legal: 559 JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 513. JORGE BARREIRO, en: COSTA ANDRADE/ANTUNES/SOUSA, (orgs.). BFD 2009, p. 145. 561 JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 513. 562 Ibidem, pp. 513 e 611. No mesmo sentido: CEREZO MIR, RP 2008, pp. 16-21. 563 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, pp. 655 e 607-608. 560 199 “Como corolario a esta desafortunada formulación del mencionado principio de proporcionalidad, cabe destacar que no se podrá imponer ninguna medida de seguridad privativa de libertad - sino sólo alguna o algunas de las medidas no privativas de libertad previstas en el art. 96.3 CP – cuando la pena que hubiera podido imponerse por el delito cometido no fuere privativa de libertad […] o en el caso de los semiimputables, cuando la pena impuesta no sea privativa de libertad.” [grifo do autor]. 3. Conforme assevera Cerezo Mir, a justificativa para as medidas de segurança está, justamente, na devida proporcionalidade com a gravidade dos fatos cometidos e com aqueles, cujo cometimento, deseja-se prevenir. E o mesmo autor cita o exemplo alemão, onde se rechaça, em nome do princípio da proporcionalidade, a aplicação de Custódia de Segurança para delinquentes habituais de criminalidade leve.564A comparação permanente entre medidas e penas, numa pretensão de torná-las grandezas quase que iguais, tem gerado esta grande contradição e oposição interna entre os fundamentos da pena e da medida. Por isso, o princípio da proporcionalidade deve estar orientado, primeiramente, pelo conceito de perigosidade criminal e, só após, pela gravidade dos delitos cometidos, ao contrário do estipulado pelo artigo 6.2, o qual acaba valorizando o fato ilícito para além de mero fator indiciário ou sintoma de futura perigosidade, no dizer de Leal Medina. Conforme o autor citado, reduzir a perigosidade criminal à mera gravidade do delito cometido resulta um “absurdo jurídico.”565 Afinal, “no es el hecho el que determina su imposición sino la probabilidad de comisión futura de delitos que es en lo que consiste la peligrosidad”. 566 Para Silva Sánchez a forma como o texto foi redigido é “rechaçável”. 567 Veja-se que a redação atual funda o juízo de proporcionalidade no fato típico praticado, e não na perigosidade do agente.568 4. Como refere Antunes, no mesmo sentido, nos últimos tempos, o pressuposto do fato típico vem ganhando cada vez maior autonomia no sentido de garantir que o agente inimputável fique resguardado e protegido contra abusos e excessos por parte do Estado, como se o modelo que tem por referência a pena e a culpabilidade, pudesse lhe trazer melhores garantias. O problema deste tipo de compreensão é que se baseia na forma de enxergar o delito (fato típico), e não o sujeito infrator. Tanto é assim que até hoje se discute se a culpabilidade (atributo do indivíduo ou do fato?) é elemento conceitual do crime ou pressuposto para a aplicação da sanção penal. Assim, no sistema atual, as medidas ainda 564 CEREZO MIR, PG6, pp. 42-43. LEAL MEDINA, RdPP 2008, p. 56. No mesmo sentido: GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.). Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 462. 566 LEAL MEDINA, RdPP 2008, p. 56. 567 SILVA SÁNCHEZ, El nuevo código penal, p. 34. 568 ANTUNES, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica. p. 117. 565 200 fazem parte do Direito Penal, embora a sanção por excelência continue sendo a pena. Refere, sobre o tema, Antunes569 que não fica margem para qualquer dúvida que as medidas fazem parte do Direito Penal: chama-se Direito Penal ao conjunto das normas jurídicas que ligam a certos comportamentos humanos, os crimes, determinadas consequências jurídicas privativas deste ramo do Direito. A mais importante, tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo (social) destas consequências, é a pena, a qual só pode ser aplicada ao agente do crime que tenha atuado com culpa. Ao lado da pena prevê, porém, o Direito Penal, consequências jurídicas de outro tipo: são as medidas de segurança, as quais não supõem a culpa do agente, mas a sua perigosidade. 5. Dito de outra forma, o presente discurso acaba eliminando as especificidades da medida de segurança, “uma sanção que, assim sendo, tem subsistido praticamente apenas mercê da manutenção do princípio da culpa e que subsistirá somente enquanto este princípio não for definitivamente arredado da condenação em pena. Assim, dizer que não se pode aplicar medidas que, em tese, poderão resultar mais gravosas do que as penas não soa convincente. Primeiramente, porque nem a Constituição assim o determina e, em segundo lugar, porque não se pode comparar grandezas distintas, conforme refere Sanz Morán,570 inclusive citando decisões, no mesmo sentido, do Tribunal Constitucional. 6. Veja-se que a Exposição de Motivos do Projeto de novo Código Penal declarava o abandono definitivo à ideia de que medidas não poderiam resultar mais gravosas do que as penas que seriam aplicáveis ao delito cometido, já que a gravidade da pena viria determinada pela culpabilidade, e o limite da medida se encontraria na perigosidade do autor. Assim, as medidas seriam proporcionais, não apenas à gravidade do ilícito típico cometido, mas também aos fatos que o sujeito poderia vir a cometer e, portanto, à sua perigosidade.571 No entanto, a alteração propugnada não foi levada a efeito e o texto se manteve tal qual como anteriormente redigido. 7. Resulta, de todo o exposto, que a medida não pode ter finalidade meramente utilitária, já que o Estado tem o dever de proporcionar ao indivíduo instrumentos educativos e curativos que lhes sejam necessários para que o mesmo possa adquirir e exercitar a capacidade 569 Ibidem, p. 92. SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 187. 571 Exposição de Motivos do Projeto de Reforma do CP espanhol. Projeto de Reforma do Código Penal espanhol, de 20 de setembro de 2013, vide: BOCG n. 66-1 Serie A: Proyectos de ley 4 oct. 2013. 570 201 de adequar sua conduta às exigências de ordem ético-social, ou seja, de modo compatível com as exigências de liberdade e de segurança dos demais.572 Diante disto, resta claro que, primeiramente, o Direito Penal da culpabilidade não pode absorver os problemas derivados da perigosidade e, ainda que, um Direito de Medidas fora do Direito Penal, abriria um vácuo perigoso para o combate a uma categoria demonizada. Como diz Cancio Meliá, “el Derecho Penal de la culpabilidad no puede tomar nota de um pronóstico de peligrosidad individual o colectivo de determinados autores responsables, siendo incapaz de procesarlos”573 e refere o mesmo autor: “[...] mientras el discurso legitimatorio del Derecho Penal positivo en la discusión político-criminal parece afirmar que es algo ‘menos’ que el Derecho Penal de la culpabilidad (la reacción imprescindible frente a un riesgo gravísimo; una reacción frente a un perigo examinado de modo neutro), en realidad es algo ‘más’ (la construcción de una categoría de representantes del mal; algo más grave que ser ‘simplemente’ culpable). Dicho de otro modo, combinando ambas perspectivas - , la demonización tiene lugar mediante la exclusión (definición como otro) […]”. Sanz Morán574 também se manifesta neste sentido, e refere que assim, igualmente, pensa a doutrina majoritária. Alega que penas e medidas, podendo ser decididas diante de um mesmo caso, exigem uma mesma instância judicial a analisar seus pressupostos e a aplicá-las, e que muitas medidas de segurança nem sequer apresentam correlato fora do Direito Penal. Ante o exposto, passamos ao próximo capítulo para, então, tratar das medidas de segurança propriamente ditas, em sua versão tradicional bem como na condição de instituto complementar à pena, abordando, ainda, a questão da intercambialidade funcional. 572 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 439. CANCIO MELIÁ, Los delitos de terrorismo, pp. 47-49. 574 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, pp. 42-43. 573 202 § 4 A MEDIDA DE SEGURANÇA COMO RESPOSTA À PERIGOSIDADE EM DELITOS SEXUAIS GRAVES: DO MODELO PADRÃO À INTERCAMBIALIDADE FUNCIONAL Galileo: “Quien no sabe la verdad es simplemente un ignorante. Pero quien la sabe y la llama mentira es un delincuente.” (Bertolt Brecht, La vida de Galileu, cena 9) I Apresentação 1. Um dos postulados mais importantes de uma política criminal eficiente e racional diz respeito às exigências de defesa social perante à criminalidade, através dos mecanismos de controle social, especialmente os formais. Entretanto, a dignidade da pessoa humana é o valor fundamental, servindo em relação à vítima e em relação ao acusado, constituindo o fundamento da exigência constitucional de culpa como pressuposto de aplicação da pena. Não é menos certo que a culpa ainda é a forma, por excelência, de limitação do poder sancionatório do Estado, porém não é a única, como menciona Figueiredo Dias. 575 Ocorre que, em muitos casos, a pena adequada à culpabilidade pode ser insuficiente para cumprir as funções preventivo geral e especial que o Direito Penal deve atender, conforme 3, II. Nestes casos, alguma medida de segurança para indivíduos perigosos poderá ser necessária, ainda que como forma de contenção, tratamento ou mesmo de monitoramento em liberdade. É o que já está ocorrendo na Espanha, com a medida de liberdade vigiada, tema que será tratado em 6, VI. 2. Neste contexto de limitações às medidas à luz de um Estado Democrático de Direito, mas ainda diante da insuficiência do princípio da culpabilidade, Figueiredo Dias576 traz à colação o princípio da proporcionalidade como reitor das medidas de segurança. Salienta, igualmente, que o mesmo deve ser lido conjuntamente com outros, tais como o princípio da necessidade e o da subsidiariedade, além da jurisdicionalidade, legalidade e da consequente irretroatividade prejudicial. Também a pós-delitividade, embora não seja um princípio em si mesmo, é apresentada em conjunto, pela importância do assunto e relação direta com os princípios elencados. Assim, com penas e medidas, o sistema denominado 575 576 FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, p. 103. Ibidem, p. 103. 203 dualista flexível se configura como legítimo, principalmente em relação ao valor da dignidade humana, devendo-se evitar a cumulatividade automática. A pauta do dia envolve a discussão sobre a necessária articulação entre penas e medidas, ambas privativas ou não de liberdade, cujo equilíbrio se alcança, invariavelmente, através da vicariedade na execução, já proposta desde Stooss, e aplicada no caso de medidas e penas privativas de liberdade. De todas as maneiras, o sistema dualista, bem como o monista, será abordado como ponto de partida histórico neste capítulo, mas também como conceitos relevantes à contemporaneidade, posto que dentre várias idas e vindas legislativas, existe a proposta de uma solução que, se não é perfeita, é a que parece melhor se ajustar ao momento atual: um dualismo flexível. Assim, serão trabalhadas, ainda, as medidas de segurança em sua versão mais tradicional, abrangendo conceito, natureza jurídica, pressupostos e execução, não de forma absolutamente completa, eis que não se pretende fazer um tratado sobre as medidas, porém procurando-se abranger aqueles aspectos que possuam relação direta com a temática proposta, qual seja, aquela que visa alcançar um dualismo flexível e, por isso mesmo, apresenta aspectos tradicionais que possam ser comparados a aspectos bem mais atuais como é o caso das medidas complementares às penas. Temas como o princípio da legalidade e a discussão sobre a irretroatividade da medida mais gravosa, o caráter jurisdicional e a pósdelitividade serão, igualmente abordados. Em que pesem ser tratados no âmbito das medidas tradicionais, são temas atuais e relevantes para as discussões posteriores, as quais, na última parte, versarão sobre o mecanismo de intercambialidade funcional. Tais mecanismos, hoje tendência em Direito Comparado principalmente diante das chamadas medidas complementares à pena, podem traduzir, como ocorre algumas vezes, excessos no poder punitivo, confundindo penas e medidas, Direito Penal e Direito Civil. De outra banda, podem representar também a possibilidade de uma interessante articulação entre penas e medidas, privativas ou não de liberdade, desvinculando a supremacia da pena como astro regente do sistema penal e permitindo às consequências jurídicas do delito uma vicariedade em uma execução dotada de maiores racionalidade e harmonia, e focada nos objetivos constitucionalmente definidos, de reeducação e de reinserção social, preservada a dignidade como principal fundamento, seja da vítima, seja do acusado. Ademais, será apresentado um excurso sobre a duração das medidas, tema que embora não tenha relação direta com o enfoque do trabalho, foi eleito pela relação que possui com todos os demais, especialmente desenvolvendo-se uma reflexão sobre o papel da dignidade humana e da segurança jurídica frente a argumentos de índole preventivistas vinculados a um jus puniendi estatal ilimitado, retratando, pois, o contexto político-criminal vigente e a permanente tensão entre segurança 204 pública e os limites à força estatal penal. Ao final, em uma ousada tentativa de elencar elementos verificadores de legitimidade no tocante a mecanismos de intercambialidade funcional de Direito Comparado e também quanto à liberdade vigiada espanhola, serão sugeridos alguns critérios que podem ser observados na direção desta análise. A listagem não é fechada, devendo ser compreendida como algo que pode e deve ser aperfeiçoado, constantemente. II Dos sistemas monista e dualista clássicos às medidas de segurança em seu formato tradicional: conceito, natureza jurídica, pressupostos e execução A. Considerações iniciais históricas: Sistemas Monista e Dualista 1. Sistema Monista 1. Inevitável abordar-se a concepção histórica dos sistemas monista e dualista, posto que, atualmente, a crise do sistema dualista já abre espaço para novas alternativas como o dualismo flexível. Assim, o olhar histórico como ponto de partida permite-nos entender melhor o momento presente e, inclusive, abordar possíveis tendências, especialmente à luz dos instrumentos que serão estudados, especificamente, nos capítulos quinto e sexto, de Direito Comparado. As medidas de segurança, tema destacado nesta investigação pelas peculiaridades mais modernas e polêmicas que apresenta, originam-se exatamente da insuficiência da pena para o trato de algumas questões importantes. Veja-se, por exemplo, que desde a antiguidade clássica, quando se discutiam as funções do Estado, havia intenso debate sobre as finalidades das penas. Platão, por exemplo577, dizia que se a finalidade da pena era a aplicação de algum castigo, seu efeito era o de melhorar o culpado, livrando-o do cometimento de novos delitos, além de advertir aos demais sobre as consequências da prática delitiva. Sêneca (4-65 DC), em Roma, acreditava que a recuperação dos delinquentes deveria ocorrer através das penas, embora propusesse a eliminação dos considerados irrecuperáveis.578 Na Grécia, o ostracismo alijava das cidades os cidadãos influentes que, por suas posições 577 578 PLATÃO, Leis. Diálogos, vol. XII, p. 374. ALVIM, Uma pequena história das medidas de segurança, p. 56. 205 políticas, pudessem gerar algum tipo de risco para o Estado. 579 No entanto, na Idade Média cristã, nasciam algumas propostas diferenciadas e voltadas à ideia de uma terapêutica, repleta de compaixão e de piedade, que pudesse, mesmo com rigorismo, fazer com que o pecador se arrependesse de seus pecados: neste sentido, no século XIII, São Tomás de Aquino. No Direito Canônico, os “loucos” já eram considerados penalmente incapazes.580 Os práticos entendiam que aplicar-lhes uma pena consistiria em maxima iniquitas581. Já a partir do século XVI, algumas providências corretivas e disciplinares, de caráter policial, foram impostas como meios preventivos, não apenas aos menores e aos “loucos”, mas também aos ébrios habituais, “vagos” e mendigos, dentre outras categorias de indivíduos considerados antissociais. 2. Nos séculos XVIII e XIX, com o crescimento galopante das principais cidades europeias e com a revolução industrial, aumentaram o desemprego e a instabilidade social e novos métodos de combate à criminalidade surgiam ao lado da instituição de vigilância policial como sendo as primeiras medidas de higiene urbanas. Nasciam, então, os conceitos de perigosidade e de medidas de segurança. Na sequência, surgiam os pilares que fundaram o sistema monista, caracterizado pela previsão de reação única punitiva do Estado face ao delito, isto é, pena ou medida. As medidas de segurança, inicialmente, não pretendiam alcançar a proporcionalidade entre delitos e penas, mas neutralizar o indivíduo considerado prejudicial à sociedade, em um sentido acentuadamente utilitarista de defesa social. O Código Penal francês de 1810 previa medidas educativas para menores entre treze e dezoito anos de idade que atuassem sem discernimento, e ordenava a segregação, por período indefinido, dos chamados “vagos”, cumprida depois da pena que tivesse sido imposta. Veja-se que esta “vigilância especial para depois da pena” é algo que continua presente até nossos dias, ainda que com novas aparências. A liberdade vigiada, por exemplo, ilustra a ideia histórica. Nesta consequente caminhada histórica, ao final do século XIX foi sendo abandonada a ideia da pena como única resposta estatal suficiente. Diante dos reincidentes, dos delinquentes habituais, dos loucos e dos menores, surgia, definitivamente, a necessidade de um tratamento jurídico diferenciado. Com um caráter eminentemente preventivo, deixando-se de lado o aspecto meramente retributivo, o tratamento significava, muitas vezes, a inocuização do sujeito, mesmo que este não tivesse delinquido, e pretendia a defesa da ordem jurídica e da 579 ALVIM, Uma pequena história das medidas de segurança, p. 57. Ibidem, p. 78. 581 FRAGOSO, PG13, p. 403. 580 206 sociedade. Havia a visão biológica do delito, conforme Ferri, ou seja, aquele era visto como uma enfermidade social que poderia ser “curada” com um tratamento eficaz. Von Liszt falava dos incorrigíveis e considerava necessária sua inocuização.582 3. A Escola Positivista italiana se destacava, conforme disse Ferrari:583 a Justiça Penal possuía, assim, uma função clínica que preservaria a sociedade, estimulando a formação da Escola de Defesa Social, propondo a substituição dos fins retributivos por novos e eficazes instrumentos preventivos. A medida preventiva era um instrumento de eficácia e de utilidade. Por isso, a utilidade, o determinismo, a defesa da sociedade e a perigosidade foram características relevantes do positivismo e tiveram um papel significativo na construção de medidas de segurança. Veja-se que mesmo com o passar do tempo, a história, de certo modo, se repete, com alguns novos matizes, logicamente. “Em relação ao movimento de defesa social, esta iniciou seus postulados com três importantes direções: Concepção Extrema ou de Gênova, Direção Moderada ou de Paris e, ao final, Direção Conservadora. Representante maior da primeira delas foi Felippo Gramatica. Ele defendia a tese de que a sanção penal fosse aplicável a todos os antissociais; o indivíduo não seria castigado por ter praticado um delito, mas sim, por sua perigosidade social. Segundo a corrente genovesa, o sistema de defesa social deveria substituir penas por medidas de prevenção, elegendo a cura e a educação social como seus fundamentos. Marc Ancel, representante da Corrente Moderada ou de Paris, verificou que a Corrente Extrema colocava em perigo garantias individuais e propôs uma nova vertente denominada “Nova Defesa Social”. Esta corrente se distinguia da Genovesa porque anunciava grande preocupação com relação à questão do livre arbítrio do delinquente. Pretendia a ressocialização do cidadão e um sistema de penas e de medidas que convivessem de modo integrado, embora não unificado. Já com respeito à Corrente Conservadora, seu grande expoente foi Nuvollone. Esta foi a corrente que mais se aproximou do Direito Penal clássico. Propugnava pela unificação entre penas e medidas, revelando alguma incoerência em relação à aplicação de certos princípios. Por exemplo, enquanto o princípio de legalidade exigia a prática de um delito anterior para a aplicação de pena, isto não ocorria em relação à medida de segurança, a qual prescindia da prática de um ilícito típico.584 A defesa social se convertia no único fundamento de reação frente ao delito, enquanto a culpabilidade do agente restava como elemento estranho. O positivismo determinista, em sua vertente extrema, apesar de haver clarificado o fundamento das medidas como forma de reação ao delito adequado à perigosidade do delinquente, conduzia ao esquecimento das garantias do mesmo frente ao Estado, postergando as exigências dos princípios básicos de Direito Penal. A medida concreta a impor viria determinada pela perigosidade do infrator”.585 4. No auge das teorias de defesa social, em 1933, promulgou-se a Lei de Vagos e Maleantes (LVM) na Espanha. Foi um período de forte instabilidade social na II República. Era um instrumento que, dentre outros problemas, foi considerado excessivamente defensivista da ordem pública, conferindo primazia à perigosidade social pré-delitiva e às medidas de mesma índole. Este também foi um dos maiores problemas da sua sucessora, a 582 JAKOBS, Derecho penal: PG2, pp. 28-29. FERRARI, Medidas de segurança e direito penal no Estado Democrático de Direito, p. 20. 584 Ibidem, p. 28. 585 SANTOS REQUENA, La imposición de medidas de seguridad en el proceso penal, pp. 19-23. 583 207 chamada “Ley de Peligrosidad y Rehabilitación Social” (LPRS) de 1970, em plena ditadura franquista, quando se confundia perigosidade criminal com social. A perigosidade criminal consistia na probabilidade de que o sujeito realizasse, no futuro, uma conduta delitiva; já a perigosidade social consistia em ser excluído, ficar à margem da sociedade, o que em verdade, exigia medidas preventivas de caráter social, e não de caráter penal. 586 Derrogada a LVM, a regulamentação vigente, até a entrada em vigor do Código Penal de 1995 ficava limitada à LPRS. No preâmbulo do texto legal se elogiavam os resultados obtidos pela lei de 1933, sustentando-se, substancialmente, os mesmos princípios lá inspirados.587 A lei de 1970 estabeleceu uma série de estados perigosos como “vagos”, habituales, los que habitualmente ejercen, promueven, favorecen o facilitan la prostitución, los mendigos habituales, los ebrios habituales y los toxicómanos”. Especial crítica mereceu a possibilidade de aplicar medidas de segurança de caráter pré-delitivo. Em suma, concluiu-se que a LPRS, realmente, serviu para prolongar os efeitos da pena, infringindo princípios básicos de Direito penal, como os da legalidade e da intervenção mínima, como já observava Jorge Barreiro.588 5. A LVM e a LPRS, ao estabelecerem categorias amplas e indeterminadas de estados perigosos, revelavam a ausência de garantias. Na verdade, foi a LVM que instaurou um sistema inicial de imposição de medidas de segurança na Espanha. 589 Já depois da Segunda Guerra mundial, os postulados da Defesa Social deixaram de ser desenvolvidos em sua forma mais pura. A preocupação por compatibilizar os princípios da Defesa Social com um irrenunciável humanismo ficou evidenciada pela “Nova Defesa Social” de Marc Ancel, já trazida, brevemente, em pequeno trecho em apartado. Esta corrente doutrinária se distinguiu da tradicional por considerar o livre arbítrio, proporcionar os meios mais eficazes para a eliminação do perigo e por empregar uma ampla gama de medidas na luta contra o delito. Opôs-se, radicalmente, aos princípios básicos do positivismo (em especial ao determinismo e a uma concepção organicista-biológica da sociedade), outorgando especial relevância à culpabilidade e à pessoa do delinquente, levando a cabo uma ação social completa capaz de reduzir os fatores criminógenos, por complexos que fossem. 586 CEREZO MIR, PG6, pp. 38 e ss. JORGE BARREIRO, Las medidas de seguridad en el Derecho español, pp. 52-53. 588 Desde há muito a LPRS vinha sendo motivo de crítica, vide, por todos, MUÑOZ CONDE, Introducción al derecho penal. 589 Por todos, JORGE BARREIRO, Las medidas de seguridad en el Derecho español, pp. 52-53. 587 208 6. Quanto ao sistema monista, este é adotado, por exemplo, no Reino Unido, na Suécia, na Bélgica e na França. Exemplo de um monismo contemporâneo de penas é o caso da Pena Relativamente Indeterminada portuguesa (PRI), que será abordado em 5, II. Trata-se de uma pena que comporta, após sua execução, uma prolongação ou um complemento de pena, para os casos de imputáveis perigosos, ou seja, comporta uma pena privativa de liberdade por um período adicional, para além daquilo que o princípio da culpabilidade correspondeu,590 o que mais parece um complemento a título de uma medida de segurança disfarçada. Jorge Barreiro denomina como dualismo tendencialmente monista tal Pena Relativamente Indeterminada portuguesa.591 Uma das principais críticas à formulação monista é que não respeita a diversidade dos pressupostos das sanções pena e medida, além de ver no modelo de retribuição exclusivo das penas a renúncia às medidas pós-delitivas, retrocedendo ao final do século XIX.592 As críticas ao sistema monista foram muitas, tanto na versão tradicional da Escola Positiva Italiana, como na mais recente e radical, por exemplo, das Escolas de Eisenberg ou de Baurmann, pois aquele comporta inúmeros riscos à segurança jurídica.593 Assim surgiu o “novo monismo radical”, o qual, por um lado, pretende extrair as medidas do Direito Penal e reconduzi-las ao Direito Privado ou ao Direito Administrativo e por outro, noutra vertente, visa reduzir o âmbito das medidas assemelhando-as às penas, em termos de limites, inclusive temporais.594 7. Há quem sustente, até mesmo, um Direito de Assistência Social, fora do âmbito penal, para o tratamento das medidas, o que é duramente criticado por Jorge Barreiro, posto que neste caso, não se trabalharia, do mesmo modo, com as garantias necessárias à proteção dos indivíduos e da sociedade. Também há quem defenda, ainda que minoritariamente, um puro Direito de Medidas baseado em perigosidade social (e não criminal) e reparação, à margem do Direito Penal, o que é válido como reflexão, mas utópico na prática.595 Aliás, releva salientar que não se pode confundir perigosidade com “estado perigoso”. A este respeito, diz Carbonell Mateu596: 590 SANZ MORÁN, RPC 2007, p. 5. JORGE BARREIRO, RPCC 2001, p. 571. 592 Ibidem, pp. 594-596. 593 SANZ MORÁN, en: BUENO ARÚS/KURY/RODRÍGUEZ RAMOS/ RAÚL ZAFFARONI (dirs.), Derecho penal y criminología como fundamento de la política criminal, p. 1089. 594 SANZ MORÁN, RPC 2007, p. 3. 595 Ambas as propostas são apresentadas por JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 654. 596 CARBONELL MATEU, Derecho penal3, pp. 42-43. 591 209 “[...] no tiene cabida en Derecho Penal ninguna referencia al ‘estado peligroso’ como presupuesto de la aplicación de la medida. Tal presupuesto viene determinado por la comisión de un delito y por la peligrosidad, que ya no proviene de un ‘estado’ de los recogidos en la derogada Ley de Peligrosidad y Rehabilitación Social. Por otra parte, la peligrosidad ha de venir referida necesariamente a la comisión de delitos, y no de conductas antisociales.” 8. Robles Planas, sustentando medidas fora do âmbito do Direito Penal, refere que a primazia da liberdade, o princípio da culpabilidade e a pena, como reparação e expressão normativas de reprovação excluem o uso indiscriminado, generalizado e mecânico do Direito de penas como instrumento de combate frente a condutas perigosas futuras dos cidadãos. O Direito Penal não serviria como reação ao exercício defeituoso da liberdade e das limitadas consequências preventivas das quais as medidas derivam, não impedindo o desenvolvimento de um sistema de intervenção individual que implique diversos graus de heterotutela. Este é o campo de jogo da ressocialização, em definitivo, da prevenção individual. Neste sentido, o Direito de medidas de segurança, segundo ele, deveria experimentar uma importante transformação desvinculando-se completamente do Direito da pena e orientando-se ao tratamento, reeducação e reintegração em maior medida do que tem sido feito até agora: “Naturalmente, esta “radical separación” de penas y medidas de seguridad no tiene por qué comportar una relajación para éstas últimas de los límites del Estado de Derecho, sino una configuración propia de un sector autónomo del ordenamiento desde finalidades totalmente ajenas a las de la pena y con los correspondientes controles y garantías a que toda intervención estatal restrictiva de derechos viene obligada. Sólo mediante la articulación de tales límites, necesariamente externos a la lógica de las medidas, se supera la principal objeción que cuestiona su legitimidad.”597 Diante das críticas todas expostas, devemos passar à análise do sistema dualista, o qual postula pela aplicação acumulada de penas e medidas, mas com primazia às penas, partindo de uma concepção retributiva.598 É o que passamos a verificar. 2. Sistema Dualista e Vicariedade na Execução 1. O sistema duplo binário ou dualista, resultado da concepção de Carl Stooss, surgiu em finais do século XIX, especialmente desenvolvido para os reincidentes, os alcoolistas, os perigosos e para os jovens infratores. Na Itália ficou conhecido como “doppo-binario”, e na Alemanha, como “Zweispurigkeit”.599 O sistema veio para fazer o enfrentamento daqueles 597 ROBLES PLANAS, InDret 2007, p. 19. Por todos, JORGE BARREIRO, RPCC 2001, pp. 564-565. 599 JORGE BARREIRO, Las medidas de seguridad en el Derecho español, p. 165. 598 210 casos em que a pena não era eficaz ou adequada, impondo-se medidas de internação em instituições específicas, substituindo a execução da sanção-pena pela sanção-medida de segurança. Ademais, segundo o Anteprojeto de Stooss de 1893, se o delinquente reincidisse em período inferior a cinco anos, seria submetido a uma medida de internação específica. Assim, a medida de segurança no Anteprojeto de Stooss resultou na criação de um sistema de “doble vía”, conferindo relativa autonomia ao instituto.600 Aliás, a expressão “medidas de segurança” se deve, logicamente, a Stooss. Resumidamente, a proposta vinculava a pena à culpabilidade, e a medida de segurança à perigosidade, permitindo a imposição sucessiva, sobre o mesmo indivíduo, das duas hipóteses. Depois do anteprojeto de CP suíço de Stooss, outros projetos surgiram como o CP alemão, em 1909, e o austríaco, em 1910. Como pode ser deduzido, o dualismo surgiu como reação ao positivismo criminológico que desejava a completa supressão da pena. O sistema de medidas, para Stooss, reunia as seguintes características: caráter jurisdicional, perigosidade como pressuposto; duração indeterminada e a medida de segurança cumpririam funções preventivas que a pena não era capaz de executar. O êxito da proposta determinou as bases sobre as quais se construiria, logo adiante, todo o sistema de medidas de segurança. Embora todo o exposto, vale dizer, a partir de Sanz Morán,601 que a expressão “sistema dualista” é empregada de duas formas. Ora é referida como “doble-via”, ou seja, sistema que admite ambas as possibilidades: penas e medidas, e noutro sentido é referida como sistema cumulativo, necessariamente, de penas e medidas cumulativamente, ou seja, referindo-se à forma como ambas se articulam. A propósito, a introdução de medidas de segurança, assim denominadas e à luz de um sistema dualista, na Espanha, só teve lugar em 1928, no Código Penal. 2. O dualismo, na sua vertente mais intransigente ou rígida, veio a ser criticado, primeiramente, quando segmento doutrinário chegou a propor uma sanção unificada, porém extremamente limitada, ou seja, apenas aplicável a semi-imputáveis e a delinquentes habituais perigosos. A corrente foi superada diante da necessidade de se trabalhar com a diferenciação entre os institutos da pena e da medida de segurança.602 A crítica ao sistema dualista tradicional ou rígido é referida pela doutrina majoritária, tendo sido dito que esta resposta legislativa está totalmente superada por ser inadequada, como diz Jorge Barreiro. 603 Diz-se que o dualismo rígido chega a ser irracional ao impor, por exemplo, ao semi-imputável, 600 FERRARI, Medidas de segurança e direito penal no Estado Democrático de Direito, p. 31. SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 41. 602 Ibidem, pp. 36-38. 603 JORGE BARREIRO, Las medidas de seguridad en el Derecho español, p. 170. 601 211 obrigatoriamente, o cumprimento inicial de uma pena, quando nem sempre isto seja o mais recomendável (imagine-se o caso de um dependente químico), para após, independentemente da perigosidade, impor-se o cumprimento de uma medida de segurança. Esta duplicidade de resposta penal, assim de forma automática, é dificilmente justificável.604 A aproximação excessiva e confusa entre penas e medidas é outra das críticas feitas ao modelo, o que se pode verificar a partir da leitura do artigo 6.2 (princípio da proporcionalidade), artigos 95.2, 101 a 104, CP, todos completamente inspirados no instituto da pena, gerando problemas graves quanto à aplicação das medidas.605 Atualmente, a crise do sistema dualista tradicional ou rígido foi imensamente agravada diante da possibilidade de imposição de medida de segurança a imputáveis perigosos, de modo automático, por força de lei, independentemente de qualquer consideração sobre o caso concreto. O sistema dualista rígido é atualmente encontrado, por exemplo, na Alemanha, com as custódias de segurança e nos centros de terapia social, bem como na Suíça e na Áustria.606 3. Quanto ao sistema dito “vicarial”, este não é um modelo que se contrapõe ao sistema dualista, mas uma forma de articulação do dualismo para evitar-se a imposição cumulativa de penas e medida.607 Contra o sistema binário dizia-se que a aplicação sucessiva de pena e de medida violava o princípio “ne bis in idem”, pois aplicava, ao mesmo sujeito, pena e medida. Foi a partir disto, que, posteriormente, desenvolveu-se a vicariedade na execução nas hipóteses de aplicação cumulativa de pena e de medida de segurança, no dizer de Sierra Lopez,608 podendo se falar na evolução de um modelo anterior, dualista rígido, para um modelo mais atualizado denominado como dualista flexível, caracterizado pela marca da vicariedade, pois para a professora de Sevilla, “la superioridad de este sistema vicarial sobre el monista consiste además en que no son desatendidas por completo las exigencias de la prevención general y de reafirmación del ordenamiento jurídico.” Na Espanha, a concepção vicarial foi introduzida em 1983. Sierra López referiu ainda que estamos frente a “una verdadera solución de compromiso entre los sistemas dualista y monista.” Interessante que o próprio Stooss já propunha o sistema vicarial como forma de resolver a acumulação de pena e medida, e já em 1914, Exner, na Alemanha, publicava monografia a respeito.609 Segundo Jorge Barreiro, a solução dualista 604 JORGE BARREIRO, Las medidas de seguridad en el Derecho español, pp. 172-173. Por todos, JORGE BARREIRO, RPCC 2001, p. 573. 606 SANZ MORÁN, RPC 2007, p. 6. 607 Neste sentido SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 42. 608 SIERRA LÓPEZ, Las medidas de seguridad en el nuevo CP, p. 123, vide CEREZO MIR, Estudios sobre la moderna reforma penal española, p. 127. 609 A observação é de SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 32. 605 212 flexível, baseada na vicariedade, é a solução que permite respeitar os diferentes pressupostos de penas e de medidas, e ainda, as distintas exigências político-criminais de ambas as sanções, já que a pena não está em condição de assumir com caráter exclusivo as distintas exigências derivadas da prevenção especial que, em muitos casos, se satisfazem melhor com ambas as formas de resposta ao delito.610 Porém, cabe ressaltar que a legislação prevê a possibilidade da vicariedade apenas diante de medidas acumuladas a penas somente quando ambas forem privativas de liberdade. 4. Diante de todas estas considerações históricas, especialmente na Espanha, compreendese a relevância do atual artigo 25.2 da Constituição espanhola, pela evolução histórica que demonstra compreender: “las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación, reinserción social y no podrán consistir en trabajos forzados”. Jorge Barreiro611 entende que o modelo espanhol é dualista rígido de “sinal abertamente monista” ou “quase monista”, tal a perniciosa confusão ou aproximação estabelecida entre medidas e penas, sendo que aquelas passaram a ter um papel quase residual, apesar de alguns avanços como a proibição de medidas pré-delitivas ou o estabelecimento de perigosidade criminal e não social. Não é à toa que Sanz Morán, por exemplo, entende que o modelo espanhol é mesmo monista, exceto para semi-imputáveis.612 B. A Medida de Segurança tradicional: conceito, natureza jurídica, pressupostos e execução 1. Conceito e natureza jurídica da medida de segurança 1. Para Sanz Morán,613 as medidas de segurança constituem mecanismo jurídico-penal de resposta ao delito, podendo ser complementares à pena, aplicada nos termos da lei, por órgãos jurisdicionais em atenção à perigosidade do sujeito, com finalidade corretiva ou assegurativa. Elas correspondem ao remédio que o Código Penal prevê para o tratamento dos casos de inimputabilidade ou semi-imputabilidade, tradicionalmente, sendo fundamentalmente 610 Neste sentido e referindo tratar-se de entendimento majoritário: SANZ MORÁN, en: LANDA GOROSTIZA (ed.)/GARRO CARRERA (coord.), Delincuentes peligrosos, pp. 63 e 77. 611 JORGE BARREIRO, RPCC 2001, pp. 571-575. 612 SANZ MORÁN, RPC 2007, p. 13. 613 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 71. 213 dirigida a fins preventivos especiais através de medidas de caráter terapêutico, educativo ou assistencial e são deduzidas a partir do prognóstico de comportamento futuro que revele a probabilidade quanto ao cometimento de novos delitos.614 Já para García García, a medida não é um castigo por um fato antijurídico, mas uma resposta à perigosidade, de cunho preventivoespecial, ainda que seu conteúdo possa ser considerado aflitivo pelo sujeito que as sofre, sem prejuízo de apresentar também função preventivo-geral.615 Cumpre registrar desde já que as medidas eram aplicáveis, antigamente, apenas a inimputáveis e, em alguns casos, a indivíduos semi-imputáveis. Na verdade, deveriam estar vinculadas à ideia de perigosidade, e não de inimputabilidade. No Código Penal, após 2010, com a criação da medida de liberdade vigiada, esta passou, inicialmente, a ser prevista apenas para as hipóteses de delitos sexuais e de terrorismo, sendo recentemente ampliadas para outras situações, mas seguem sendo numerus clausus, não podendo ser impostas se não previstas no próprio Código Penal, também face ao princípio da legalidade. Outrossim, fica consignado desde já que, doravante, ao referirmos a expressão “medida” ou “medida de segurança” estaremos tratando, com exclusividade, da medida de segurança criminal. 2. As medidas possuem natureza jurídico-penal. Como exceção podemos referir as medidas previstas pelo Código Penal italiano, de natureza administrativa. Embora a previsão legal do Código italiano, a maioria da doutrina e jurisprudência daquele país já reconhece sua natureza jurídico-criminal, como referem Cadoppi e Veneziani:616 “Ormai pressoché definitivamente superata la tesi secondo cui le misure di sicurezza avrebbero natura amministrativa”. Por isso, também Mantovani defende a diferença doutrinária entre medidas administrativas de segurança pré-delitivas e medidas de segurança criminais propriamente ditas, pós-delitivas:617 “[...] le misure specialpreventive ante o praeter delictum, essendo applicabili ai soggetti pericolosi prima della conmissione o a prescindere dalla avvenuta conmissione di reati. Con le misure di sicurezza hanno in conune il presupposto della pericolosità del soggetto, fondandosi entrambe su un giudizio di probabilità di futuri atti criminosi. Mentre, però, nelle seconde la pericolosità è post delictum, essendone il reato conmesso una componente sintomatica e trattandosi di una probabilità di recidiva, nelle prime la pericolosità è sine delicto o ante delictum, prescindendo il relativo giudizio dalla precedente conmissione di reati.” 614 Por todos, LÓPEZ BARJA DE QUIROGA, CP2, p. 346. GARCÍA GARCÍA, Marco jurídico de la enfermedad mental, p. 470. 616 CADOPPI/VENEZIANI, PG, p. 523. No mesmo sentido: PADOVANI, Diritto penale, p. 339; FIANDACA/ MUSCO, PG, p. 809. 617 MANTOVANI, Principi di diritto penale, p. 428. 615 214 Assim, temos que, em geral, a medida é a consequência jurídica da declaração ou da comprovação da perigosidade criminal do sujeito delinquente, no dizer de Cobo del Rosal e de Vives Antón.618 3. A medida difere da pena, essencialmente por não comportar qualquer juízo de censura,619 já que está endereçada à perigosidade do agente, ao contrário daquela. A exigência, como pressuposto que será mais tarde analisado, do ilícito típico cometido pelo agente perigoso é critério objetivo, inclusive, a diferenciar a medida de segurança criminal, tema tratado neste trabalho, de qualquer outra que porventura pudesse ser pré-delitiva. Por faltar a capacidade de censura, refere Luzón Peña,620 as medidas não são normas de determinação, pois não se pode determinar estados ou modos de ser. Além disso, são normas que fazem um juízo de desvalor em relação ao fato que aquele estado perigoso supõe quando diante da possibilidade do cometimento futuro de um delito, mas não como uma valoração negativa de um modo de ser: “así pues, si se puede hablar de desvaloración respecto de un estado peligroso, ha de ser en un sentido totalmente distinto al del desvalor que implica el juicio de antijuridicidad.”621 4. Disto resulta a discussão sobre o locus adequado para o tratamento do tema das medidas de segurança, se no Direito Penal ou em outro ramo do ordenamento. Para Rubio Lara, as medidas possuem caráter penal porque pretendem combater a perigosidade criminal pós-delitiva e, portanto, devem ser tratadas no campo do Direito Penal. Refere o citado autor622: “En consecuencia, el ámbito de las medidas de seguridad no es otro que el Derecho Penal, la comisión previa de un hecho delictivo y la peligrosidad criminal postdelictual. Si su naturaleza fuese predelictual estaríamos hablando de medidas de naturaleza administrativa o de peligrosidad social, que para nada interesa al Derecho Penal y se encuentran claramente excluidas del ámbito penal”. Santos-Requena623 também entende que as medidas são verdadeiras consequências de natureza penal já que podem supor a limitação da liberdade por quem as padece: 618 Por todos, COBO DEL ROSAL/VIVES ANTÓN, PG5, p. 993. COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 530. 620 LUZÓN PEÑA, ADPCP 1989, p. 44. 621 Ibidem. 622 RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, pp. 38-39. 623 SANTOS REQUENA, La imposición de medidas de seguridad en el proceso penal, p. 34. 619 215 “[…] nos alejamos de la concepción que otorga un predominio a la finalidad estrictamente aseguradora de las medidas, o hacen especial alusión a su aspecto meramente aflictivo, sin dejar de entender que se trata de verdadera sanción penal que, aún no teniendo el carácter de pena, supone una limitación de la libertad por quien las padece.” No entanto, como diz Rubio Lara, não deveriam ser consideradas, as medidas, propriamente como sanções: “a pesar que sean consecuencias jurídicas del delito, las medidas no deberian ser consideradas como sanciones, por su propia naturaleza, aunque algunos autores a ellas así se refieran”.624 2. Pressupostos de aplicação: uma leitura a partir dos princípios aplicáveis a. Atendimento ao disposto pelo princípio da legalidade e interpretação do princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa voltado ao caso em estudo 1. O novo CP espanhol, pós LO 1/2015, manteve o princípio da proibição de retrocesso da lei penal desfavorável e funciona também em relação à medida de segurança, conforme artigos 1º e 2º. O diploma legal espanhol não elegeu, entretanto, o momento da prática do fato típico como circunstância temporal indicativa para aferição quanto à lei aplicável em relação à medida de segurança aplicável ao caso. A lei aplicável é também a lei vigente ao momento do preenchimento do pressuposto perigosidade criminal, pois o legislador entendeu que se houvesse a transposição do princípio da legalidade do campo das penas para o campo das medidas, sem certas adaptações, poderia haver a descaracterização da medida de segurança. Por isto, há que se esclarecer, antes de tudo, o que se deve entender por aplicação retroativa em matéria de medida de segurança, já que este princípio surge tradicionalmente vinculado à questão da aplicação das penas e ao princípio da legalidade. É de se perguntar se seria, em tese, possível aplicar uma medida, ainda que mais gravosa e mesmo que distinta daquela contemporaneamente vigente à prática do ilícito típico, desde que perdurasse o estado perigoso do agente. A resposta parece ser afirmativa, segundo Antunes,625 que refere que, conforme o princípio da atualidade do estado perigoso626, o qual é permanente, não há violação ao princípio da legalidade nem ao da anterioridade caso se aplique uma 624 RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 32. ANTUNES, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, pp. 180183. 626 Ibidem, p. 369. 625 216 medida de segurança a posteriori, pois “a aplicação da lei atual impõe-se sempre como sendo a reguladora do estado de perigosidade, uma vez que este também é atual.” Evidentemente, segundo a autora portuguesa, os ilícitos típicos pressupostos que ensejam a medida devem estar previstos em lei antes de sua ocorrência. Também é cristalino que as medidas devem ser determinadas pela lei vigente no momento do preenchimento dos pressupostos de que dependem sua imposição. 2. Na verdade, o autêntico pressuposto da medida é o estado atual de perigosidade do indivíduo. O pressuposto “ilícito típico” não pode negligenciar o pressuposto “perigosidade criminal”, sob pena de descaracterização das medidas de segurança. Assim, a medida determina-se pela lei vigente no momento da sua imposição (momento do preenchimento do requisito do pressuposto da perigosidade criminal do agente), preponderando esta sobre a lei vigente no momento da prática do ilícito típico, ou seja, ainda que a lei vigente no momento da prática do ilícito típico não determinasse a mesma medida.627 Para Cerezo Mir,628 em que pese o princípio da legalidade ser, conceitualmente, distinto do princípio da irretroatividade das leis penais, o princípio da legalidade exige, unicamente, que penas e medidas estejam previstos em lei quando de sua aplicação. Se a medida imposta a posteriori estiver prevista em lei, uma vez finalizado o cumprimento da pena privativa de liberdade ou da medida de internação, não há que se falar em infração do princípio da legalidade, desde que concorram, no caso concreto, os requisitos exigidos pela legislação. Na Espanha vige o princípio da irretroatividade, salvo quando se tratar de lei mais benéfica ao réu. Para Cerezo Mir629, no mesmo sentido progugnado por Antunes, retromencionada, logicamente que os ilícitos típicos deverão, quando de sua ocorrência, já estarem previstos como crime pela lei. Entretanto, a medida poderá ser aplicada a posteriori desde que tenha sido prevista tal possibilidade na sentença condenatória, quando deverá ter sido feita referência ao prognóstico de perigo e ao delito já processado, não havendo que se falar em bis in idem. Claro que se a medida que se propõe a posteriori não tiver relação com o fato delitivo anteriormente processado e julgado, a hipótese seria inadmissível, posto que significaria um retorno às medidas pré-delitivas. 627 ANTUNES, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, p. 183. No mesmo sentido: GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 448. 628 CEREZO MIR, RP 2008, p. 19. 629 Ibidem, p. 19. 217 b. Avaliação quanto à (in)imputabilidade no caso concreto e não como categorização prévia de indivíduos 1. Inicialmente, conforme o artigo 3.1, CP (mesma redação dada pela LO 1/2015), as medidas somente podem ser aplicadas quando previstas em lei, com anterioridade ao fato e atendidos aos demais pressupostos630 como prognóstico de perigosidade criminal e a situação de inimputabilidade ou de semi-imputabilidade do agente, posto que estamos, por ora, tratando das medidas de segurança tradicionais. Como refere Martínez Garay,631 há que se entender a imputabilidade como elemento, e não como pressuposto da culpabilidade, eis que não se pode repartir os indivíduos entre imputáveis ou inimputáveis, previamente, sem uma relação concreta com o fato em análise. Observe-se, neste sentido, que a perigosidade tampouco pode ser presumida diante do fato de o indivíduo padecer de um problema mental, pois há que estar estabelecida, especificamente, em processo objeto de controvérsia. A medida não pode ser levada a cabo automaticamente.632 A imputabilidade só existe em relação a um fato concreto, e assim, consequentemente, a culpabilidade. c. O caráter jurisdicional das medidas, como imposição constitucional 1. O artigo 3.2 CP, que trata do princípio da jurisdicionalidade, deve ser entendido como remetente, em termos de garantia de execução, à Lei Orgânica Penitenciária (LOGP) 1/1979, ao Regulamento Penitenciário (Real Decreto n. 190/1996) e ao Real Decreto n. 515/2005. Principalmente, a Constituição apresenta, nos artigos 9.3 e 25.2 o mesmo princípio, repetido pelo CP nos artigos 1.2, 2.1 e 95. As medidas somente poderão ser executadas quando impostas por sentença transitada em julgado (“sentencia firme”), pronunciada por magistrado ou tribunal e sob o controle dos órgãos judiciais competentes, conforme o CP, artigo 3.2. Não se admite medida com caráter cautelar (artigo 3.1 CP). Entretanto, Sanz Morán chama a atenção para o risco que passou a existir a partir da LO n. 15/2003, que modificou a redação do artigo 508 da Lei de “Enjuiciamiento Criminal”, possibilitando o cumprimento “de la prisión provisional en el domicílio del acusado cuando por razón de enfermedad el internamiento entrañe grave peligro para su salud”. Este conceito de saúde ou de enfermidade 630 MARTÍNEZ GUERRA, Nuevas tendencias político criminales en la función de las medidas de segurida, 2004. O conceito é recorrente na obra. 631 MARTÍNEZ GARAY, La imputabilidad penal, p. 80-83. 632 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 458; MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, PG8, p. 589. 218 também se refere às questões mentais, e sobre isso, refere Sanz Morán: 633 “Se abre así, paso de manera tímida, la posibilidad de imponer medidas correctivas con carácter cautelar y siempre como alternativas a la prisión provisional.”634 d. A pós-delitividade: requisito legitimador e tríplice garantia 1. Enquanto na medida pré-delitiva, baseada estritamente na perigosidade do sujeito, aquela não se fundamentava no cometimento de um delito, a medida pós-delitiva exige como pressuposto, além da perigosidade, a prática do fato típico e ilícito. Mas medidas de segurança criminais pré-delitivas são baseadas no modo de ser, na personalidade da pessoa, nas suas tendências ideológicas e na sua trajetória pessoal. Esta chamada “perigosidade social” não é, pois, admissível, num Estado Democrático de Direito e remete à ideia de um Direito Penal de Autor, tema que já foi amplamente trabalhado em 2, II, B. A pós-delitividade é, pois, requisito previsto pelo artigo 95, CP, exigindo-se que o sujeito tenha cometido um delito, não podendo ser uma falta, cuja escassa gravidade não constituiria base fática suficientemente apta a ensejar a gravidade minimamente exigida.635 Ainda, exige que, a partir do fato cometido e das circunstâncias pessoais do agente, seja alcançado um prognóstico de comportamento futuro que demonstre a probabilidade de que o mesmo venha a cometer novos delitos, nos termos do citado artigo 95, CP: 1. Las medidas de seguridad se aplicarán por el Juez o Tribunal, previos los informes que estime convenientes, a las personas que se encuentren en los supuestos previstos en el capítulo siguiente de este Código, siempre que concurran estas circunstancias: 1ª) Que el sujeto haya cometido un hecho previsto como delito. 2ª) Que del hecho y de las circunstancias personales del sujeto pueda deducirse un pronóstico de comportamiento futuro que revele la probabilidad de comisión de nuevos delitos. 2. Cuando la pena que hubiere podido imponerse por el delito cometido no fuere privativa de libertad, el Juez o Tribunal sentenciador sólo podrá acordar alguna o algunas de las medidas previstas en el art. 96.3. Conforme Gracia Martín, devem ser incluídos na expressão legal “delito” “los actos preparatorios punibles y las diversas formas de autoría y participación, tentativa, en fin, todas 633 SANZ MORÁN, en: CARBONELL MATEU/ROSAL BLASCO/MORILLAS CUEVA/ORTS BERENGUER/ QUINTANAR DÍEZ (coords.), Estudios penales en homenaje al profesor Cobo del Rosal, p. 880. 634 Ibidem, p. 880. 635 MAZA MARTÍN, en: ECHEVARRI GARCÍA (dir.), CDJ n. 14 (2006), p. 25. En el mismo sentido GRACIA MARTÍN en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, pp. 452-453. Veja-se também COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 530, y RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 53. 219 las formas de participación delictiva, pues el concepto es amplio”.636 Quando a doutrina fala no prévio cometimento de um “delito”, compreenda-se “ilícito típico”. Vale referir, ainda, a interessante provocação de Figueiredo Dias637 no sentido de que não há razão para denominar o ilícito-típico exigido como pressuposto para a aplicação de uma medida, como sendo “fato do inimputável”, como defende, por exemplo, Antunes.638 Percebe-se que a autora portuguesa preocupou-se em desvincular a nomenclatura de um sistema de penas e de culpabilidade, porém, por outro lado, com a designação “fato do inimputável” excluiria-se a possibilidade de que também o “fato do imputável”, ainda que em casos especiais, pudesse ensejar medida de segurança, como já vem ocorrendo na Espanha e noutros ordenamentos jurídicos. 2. E, neste sentido, a exigência do cometimento prévio de um delito deve ser entendida como “requisito legitimador da intervenção penal preventivo-especial e pressuposto legal para a imposição de medida de segurança”. Não se pode converter esta exigência, que trata de um sintoma ou indício de perigosidade criminal, esta sim, autêntico fundamento da medida, como critério determinante da classe e da magnitude das medidas de segurança aplicáveis. A pósdelitividade é, pois, condição de legitimidade da medida de segurança, como refere Frisch.639 Para Jorge Barreiro,640 a exigência da pós-delitividade está fundamentada no próprio Estado de Direito: não se poderia admitir, por motivo de segurança jurídica, a intervenção punitiva do Estado se o sujeito sequer cometeu um delito. Para Rodríguez Mourullo641 isto representa uma tripla garantia: reforça o prognóstico de perigosidade, fortalece o princípio da legalidade e reduz a limites toleráveis à função preventiva. e. Prognóstico (futuro) de perigosidade como exigência legal 1. Quanto à legislação, o artigo 6.1, CP define que “1. Las medidas de seguridad se fundamentan en la peligrosidad criminal del sujeto al que se impongan, exteriorizada en la comisión de un hecho previsto como delito.” O tema já foi apresentado em 3, III, quando do 636 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, pp. 452-453. RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 56. 637 FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, pp. 90-91. 638 ANTUNES, Medida de segurança de internamento e facto de inimputável em razão de anomalia psíquica, pp. 477-478. 639 FRISCH, InDret 2007, p. 28. 640 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del estado social y democrático de derecho, pp. 612-613. No mesmo sentido: GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 451. 641 RODRÍGUEZ MOURULLO, Medidas de seguridad y Estado de Derecho. en: A.A.V.V. peligrosidad y medidas de seguridad, 1974, pp. 343 e ss. 220 capítulo terceiro, inclusive com as questões mais atualizadas sobre as metodologias atuariais a respeito e que são tendência em diversos países. 3 A execução da medida de segurança tradicional (aplicável apenas a inimputáveis e a semi-imputáveis) e sua incidência em relação a autores de delitos sexuais graves a. Considerações gerais acerca da medida para o inimputável e para o semi-imputável 1. Inicialmente, os artigos 101, 102 e 103, todos do CP, tratam do regime geral de aplicação das medidas de segurança para indivíduos inimputáveis (situações envolvendo as eximentes completas), totalmente isentos de responsabilidade criminal, pois no momento do delito, padeciam de “anormalidad o alteración psíquica que impedía conocer la ilicitud del hecho o actuar conforme a esa comprensión (101, 20.1 CP), por hallarse em um estado de intoxicación plena al haber consumido alcohol, drogas, estupefacientes, o por hallarse bajo la influencia de un síndrome de abstinencia (102, 20.2); o por sufrir alteraciones en la percepción que le suponen una grave alteración de la realidad (103, 20.3)”, conforme prevê o Código Penal espanhol. O Magistrado ou o Tribunal Sentenciador deve considerar dois fatores para aplicar a medida privativa de liberdade: o fato cometido, previsto como delito, deve vir acompanhado pela previsão de pena privativa de liberdade, senão deverá ser aplicada, conforme o artigo 95.2, CP, alguma das medidas não privativas de liberdade previstas pelo artigo 96.3, que compreendem: “la inhabilitación profesional, la expulsión del territorio nacional de extranjeros no residentes legalmente en España, la libertad vigilada, la custodia familiar, la privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores y la privación del derecho a la tenencia y porte de armas.” Diante das hipóteses de eximentes completas não é necessário o consentimento do sujeito inimputável para a execução da medida, desde, é claro, que seja respeitosa com os valores constitucionais, especialmente, com relação à dignidade humana. O tema é particularmente instigante se avaliarmos, apenas como exemplo de possibilidade, sob o prisma da delinquência sexual grave, a hipótese de eventual administração de medicação antiandrógena (THA), tema que, embora venha a ser tratado mais aprofundadamente em 6, III, poderia ser aplicado ressalvando-se a previsão legal mais o evidente acompanhamento judicial quanto à imposição da medida, bem como se fosse, ainda, 221 no interesse do próprio sujeito, para que pudesse prosseguir com tratamento psicoterápico, visando sua reinserção social o mais brevemente. O tratamento antiandrógeno não é, por si só, degradante, na medida em que as mesmas medicações são utilizadas para vários outros tratamentos terapêuticos inclusive e principalmente para pessoas que não praticaram qualquer delito, e apresenta resultados importantes, pois conforme Robinson,642 tal modalidade terapêutica chegou a reduzir em 12% a reincidência sexual nos Estados Unidos. Por fim, o inimputável não pode abandonar a instituição onde está internado sem autorização judicial prévia, nos termos do artigo 103.2, CP. De qualquer modo e em geral, são necessários programas individualizados de tratamento, de acordo com as características e traços de personalidade do sujeito, levando em conta seu histórico, a gravidade do fato praticado, seus problemas de saúde físicos e mentais, seus fatores de risco e de vulnerabilidade, seu histórico na prisão ou na instituição psiquiátrica. Ademais, deve-se buscar formar um vínculo motivacional do indivíduo com seu plano de tratamento. 2. Quanto a indivíduos semi-imputáveis, vale referir a hipótese de aplicação conjunta, nos termos do artigo 104, CP, de medida e de pena, nesta ordem, para execução sucessiva, conforme possibilita o sistema vicarial, previsto pelo artigo 99, CP. O requisito para a aplicação do sistema vicarial é a concorrência entre penas e medidas, sendo ambas privativas de liberdade, situação a que se chega através da apreciação de uma circunstância eximente incompleta e de um prognóstico de perigosidade criminal, além é claro, da demonstração da necessidade da privação de liberdade quanto à medida. Há que se fazer uma breve referência à hipótese de cumulatividade entre pena e medida de liberdade vigiada, esta não privativa de liberdade, numa espécie de “novidade” vicarial, mas ainda num formato dualista tendencialmente monista, onde a lei determina que a medida seja, automática e obrigatoriamente, cumprida após a pena privativa de liberdade, como ocorre nos delitos sexuais (artigo 192.1 CP), tema que será aprofundado em 6, VI, face a uma das maiores inovações ocorridas no ordenamento penal espanhol nos últimos tempos. 3. Quanto à execução da medida ao semi-imputável, e retornando ao sistema vicarial tradicional, aplica-se primeiramente a medida, e ainda, torna-se possível substituir a pena pela medida já executada, no dizer de Jorge Barreiro.643 No entanto, fica proibida, conforme o modelo vicarial, a imposição de medida de internação quando a pena imposta não tenha sido 642 643 ROBINSON, A quién debe sancionarse y en qué medida, p. 132. JORGE BARREIRO, Las medidas de seguridad en el Derecho español, p. 183. 222 privativa de liberdade, nos termos do artigo 104 CP, novamente vinculando-se as medidas às penas. O tempo de cumprimento das medidas deve ser descontado do tempo de execução da pena, a qual, porventura, ainda venha a ser cumprida. Desconta-se um dia de medida para cada dia de pena, conforme entendimento doutrinário observado por Jorge Barreiro, o qual sempre sustentou a necessidade de uma legislação mínima para a execução da medida de segurança.644 Se após a execução da medida, o magistrado considerar que os efeitos com ela alcançados possam ser perdidos, poderá suspender o cumprimento do restante da pena por um período de tempo não superior a sua duração, mais uma vez vinculando os institutos. Pode ser aplicada uma medida privativa de liberdade a quem foi considerado isento de responsabilidade criminal por força do artigo 20.1 (e artigos 101.1 y 96.1), mas também a quem foi aplicada a eximente incompleta (artigo 21.1º y 104). Como o artigo 21, 1º refere-se a “cualquier anomalía”, não se exclui de seu âmbito o transtorno mental transitório.645 A pena, que deve ser diminuída nos casos de eximentes incompletas, encontra guarida legal no artigo 68 CP. Exige-se, ainda, a fim de definir a (in)conveniência de ambas as consequências jurídicas do delito, a análise da possibilidade de tratamento e de reinserção social do sujeito. O sistema vicarial pretende impedir que o juízo de perigosidade e a medida de segurança sejam convertidos em instrumentos indiscriminados de intervenção sobre o indivíduo, resultando em dupla punição pelo mesmo fato, pois de acordo com o sistema vicarial, evita-se que penas e medidas sejam simplesmente somadas e incrementem a aflição gerada pela privação de liberdade.646 4. Ante o exposto, serão apresentadas a classificação das medidas e, em seguida à análise de cada uma, especificamente aplicável ao caso de delinquentes sexuais graves num primeiro momento, previstas pelo ordenamento jurídico espanhol, apenas, à exceção da liberdade vigiada para imputáveis, tema que fica reservado 6, VI. Inicialmente, apresenta-se a classificação clássica conforme o nível de direitos afetados:647 medidas com caráter terapêutico e medidas estritamente asseguratórias. Compõem o primeiro grupo as medidas de submetimento a tratamento médico e a programas formativos; por outro lado, compõem o segundo grupo a proibição de permanência e de residência em determinados lugares, a Custódia de Segurança, a privação do direito de 644 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del estado social y democrático de derecho, pp. 623-627. 645 SIERRA LOPEZ, Las medidas de seguridad en el nuevo CP, p. 103. 646 MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, DP: PG8, pp. 587-588. 647 MARTÍNEZ GUERRA, Nuevas tendencias políticocriminales en la función de las medidas de seguridad, p. 51. 223 possuir e de portar armas de fogo ou de dirigir veículo automotor, a expulsão do território nacional de estrangeiros ilegais e a inabilitação profissional, as quais pretendem apenas a inocuização do sujeito perigoso em nome da proteção social. Em função da intensidade das medidas em relação a quem as suporta, são classificadas em privativas e não privativas de liberdade. É a classificação empregada pelo CP e que, por isto, será empregada neste trabalho. Refere o artigo 96.1 CP: “Las medidas de seguridad que se pueden imponer con arreglo a ese Código son privativas de libertad y no privativas de libertad”. b. A execução da medida privativa de liberdade e suas espécies 1. O tema que passamos a analisar versa sobre a execução de medidas privativas e não privativas de liberdade e suas condições pragmáticas. Assim, primeiramente, quanto à execução de medidas privativas de liberdade, discute-se muito a questão da natureza do estabelecimento mais adequado, o que é vital para o tratamento, especialmente de delinquentes sexuais graves que necessitam da internação. Como já abordado no capítulo em 3, III, B, desde os mais antigos conceitos sobre a “loucura” até a moderna concepção de ausência de segurança cognitiva, tais indivíduos sempre foram estigmatizados pelo simples fato de estarem numa casa manicomial ou congênere. Não nos parecem em vão as propostas de retirada do assunto da esfera do Direito Penal, eis que a sua complexidade foge do tradicionalmente convencionado por um Direito acostumado a temas de culpabilidade, tão somente. Entretanto, como já analisado no presente capítulo, a medida de segurança criminal deve ser pós-delitiva, e neste sentido, compreende-se sua relação com o Direito Penal, já que a medida é consequência jurídica do delito e incide diante da perigosidade criminal. Por tudo isto, países que investem mais em tratamentos terapêuticos para delinquentes sexuais vêm demonstrando resultados importantes quanto à presença de instituições adequadas, especializadas e voltadas a este tipo de matéria, o que almeja impactar a evitação da reincidência, tema essencialmente político-criminal contemporâneo. Analisemos, pois, as possibilidades de medidas com privação de liberdade, iniciando pela mais convencional, ou seja, a internação em hospital psiquiátrico, dentro ou fora do sistema penitenciário. 2. Quanto ao previsto pelo Código Penal, os estabelecimentos correspondentes à internação podem consistir, conforme à hipótese n. 1 do artigo 20 (“trastorno mental”) à internação em centro psiquiátrico; quanto à de n. 2, do mesmo artigo 20 (“intoxicación 224 alcohólica o drogadicción)” associa-se a medida de internação em centro de desabituação; e à n. 3, do artigo 20 (“alteraciones de la percepción”) fica atrelada à medida de internação em centro educativo especial,648 conforme prevê o artigo 96.2, CP. Entretanto, as três medidas citadas não possuem correlato com o previsto pela LOGP, em seu artigo 11, posto que nesta há uma referência a “centros hospitalares, centros psiquiátricos y centros de rehabilitación social para la ejecución de medidas penales”. Veja-se que tampouco consta a previsão de centros formativos, conforme previsto pelos artigos 96.2.3ª, 103.1 e 104, todos do CP, redação mantida pela LO 1/2015. Afora estas questões legais, na prática, não existem muitas opções em termos de locais idôneos para o cumprimento das medidas desta natureza, restando, quase sempre, os centros psiquiátricos penitenciários, os quais, na verdade, são cárceres, e não hospitais.649 3. Os centros referidos ou hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico destinam-se a quem se encontra no caso de eximente completa ou incompleta, ou seja, a inimputáveis e a semi-imputáveis. A medida, neste caso, está submetida, permanentemente, ao controle judicial, devendo ser revisada a cada seis meses por equipe multidisciplinar que faz esta avaliação e a informa ao Ministério Público. Possui clara finalidade terapêutica e, às vezes, asseguratória, embora não se busque, apenas a segregação social, mas também potenciar o tratamento e a readaptação do internado através de equipes preparadas e de tratamentos adequados. É medida considerada aflitiva, caracterizada, ao longo da história, pela figura do manicômio judicial. O ideal, nestes casos, seriam estabelecimentos especializados, principalmente dirigidos a delinquentes sexuais. Alguns defendem que a internação deva ser realizada em hospitais psiquiátricos penitenciários; outros, consideram estes estabelecimentos como verdadeiras prisões, sugerindo os hospitais psiquiátricos gerais ou ordinários. 4. Muitas vezes, estes locais onde as internações são realizadas, acabam sendo transformados em verdadeiros depósitos de delinquentes-enfermos, os quais acabam completamente privados de sua liberdade. Conforme refere Messias,650 tais locais, muitas vezes, têm-se prestado a serem cenários de abandono, de falta de controle social das práticas ali realizadas e de conhecimento da comunidade científica sobre as peculiaridades vivenciadas em todas as áreas de atuação. Diz a autora brasileira: “têm sido locais de grandes 648 COBO DEL ROSAL/VIVES ANTÓN, DP: PG5, p. 996. REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, p. 820. 650 MESSIAS, Ética e direitos humanos, p. 132. 649 225 argumentações científicas que não resultam em melhoria de qualidade de vida para os usuários. É o lugar do poder, do adestramento, da apatia, da institucionalização e da morte sem explicação.” No mesmo tom crítico, Jescheck e Weigend referem que este grupo de pessoas duplamente estigmatizada pelo delito e pelos transtornos mentais tornam-se, nos hospitais psiquiátricos, um corpo estranho que, em razão das maiores exigências de segurança pública, acaba isolado socialmente, e onde tantos esforços são, geralmente, considerados reduzidos.651 De acordo com o Regulamento Penitenciário (Real Decreto n. 190/1996), as pessoas internadas em unidades desta natureza são denominadas “pacientes”, o que acentua, por um lado, o caráter assistencial da medida. De qualquer modo, deve-se recordar que os artigos 101.1 e 104, CP, denominam esta medida como “internação” e, por isso, tais indivíduos deveriam ser separados conforme suas necessidades, sendo suas liberdades limitadas de acordo com seu estado de saúde ou necessidade de tratamento. Tais indivíduos não estão submetidos ao regime disciplinar vigente para estabelecimentos prisionais comuns, tendo direito à comunicação e às saídas para o exterior na forma fixada no programa individual de reabilitação, nos termos do artigo 190, RP.: Las comunicaciones con el exterior de los pacientes se fijarán en el marco del programa individual de rehabilitación de cada uno de aquéllos, indicando el número de comunicaciones y salidas, la duración de las mismas, las personas con quienes los pacientes puedan comunicar y las condiciones en que se celebren las mencionadas comunicaciones. 5. Chama a atenção como a legislação não se encontra uniformizada. Começando pelos Centros Psiquiátricos, veja-se que o Código prevê no artigo 96.1 o cumprimento da internação em centros não necessariamente penitenciários.652 Inobstante, o Regulamento Penitenciário, no capítulo VII do Título V, refere o cumprimento das medidas privativas de liberdade em estabelecimentos ou unidades psiquiátricas penitenciárias, quando diz, no artigo 183:“los Establecimientos o Unidades Psiquiátricas Penitenciarias son aquellos centros especiales destinados al cumplimiento de las medidas de seguridad privativas de libertad aplicadas por los Tribunales correspondientes.” Conclui-se, portanto, que face ao princípio da especialidade, as medidas privativas de liberdade devem ser executadas em estabelecimentos especiais, independentemente de outros estabelecimentos penitenciários que sirvam para a execução das penas privativas de liberdade, conforme preceituam os artigos 7 e 11 da LOGP. Diz o primeiro: “los establecimientos penitenciarios comprenderán: Establecimientos de preventivos. Establecimientos de cumplimiento de penas. Establecimientos especiales”. Na 651 652 JESCHECK/WEIGEND, PG5, p. 869. REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, pp.821. 226 sequência, e visando complementar o artigo mencionado, refere o artigo 11 que os estabelecimentos especiais são aqueles em que “prevalece el carácter asistencial” e menciona quais são eles: “Centros hospitalarios. Centros psiquiátricos. Centros de rehabilitación social, para la ejecución de medidas penales, de conformidad con la legislación vigente en esta materia”. Neste sentido também os chamados critérios de atuação, conclusões e acordos da XII Reunião de Juízes de Vigilância Penitenciária, quando se insta às Administrações Penitenciárias para que procedam à criação de unidades psiquiátricas nos centros penitenciários que sejam reputados como necessários para atender a demanda por atenção especializada em suas respectivas áreas territoriais, no cumprimento do dever de velar pela saúde dos internos, conforme o artigo 3.4 LOGP, e aplicando o critério legal de triagem e separação previsto pelo artigo 16D da mesma lei.653 Observe-se que o artigo 184 do RP define o ingresso em estabelecimentos ou unidades psiquiátricas penitenciárias para inimputáveis que tenham recebido medida de internação em centro psiquiátrico penitenciário. Assim, segundo Sanz Morán,654 parece que o legislador pretendeu encerrar a discussão sobre a possibilidade de cumprimento da medida de internação psiquiátrica em centros não penitenciários. 6. Já nos “Centros de Deshabituación”, a finalidade é eminentemente terapêutica e se aplica a casos de eximentes completas ou incompletas em relação ao artigo 20.2, CP (“estados de intoxicación plena y síndromes de abstinencia”). Conforme o artigo 102.1 CP exige-se que o centro de desabituação seja um estabelecimento público ou privado devidamente credenciado ou homologado. Como esta medida encerra questões mais voltadas a indivíduos que necessitem a desabituação do álcool e outras drogas, não a abordaremos, posto que refoge do nosso tema objeto da pesquisa, mais específico. 7. Quanto aos “Centros Educativos Especiales”, são previstos pelo CP como medida de segurança privativa de liberdade aplicável nos casos do artigo 20.3 (“padecer grave alteración en la percepción desde el nacimiento o desde la infância, que provoque una alteración grave en la consciência de la realidad”), tanto nos casos de eximente completa como incompleta, tendo caráter predominantemente pedagógico-curativo.655 No entanto, surpreende como o assunto, na verdade, não foi tratado, nem pela LOGP, nem detalhado pelo 653 RÍOS MARTÍN, en: ECHEVARRI GARCÍA, CDJ n. 14 (2006), p. 329. SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 298. 655 REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, pp. 822. 654 227 CP. Aliás, como refere Bacigalupo, o CP de 95 previu o centro educativo especial apenas como modalidade de estabelecimento para a execução de medida de segurança de internação, longe de ser essencialmente entendido como programa político-criminal ressocializador, conforme os ditames constitucionais. É que, do modo como foi previsto, o estabelecimento destina-se apenas “al tratamiento de quienes tengan gravemente alterada la conciencia de la realidad por sufrir una alteración en la percepción desde el nacimiento o desde la infancia.” Bacigalupo considera o preceito impreciso e pouco esclarecedor, concluindo que “ni esos son los casos de los reincidentes graves y peligrosos, ni los establecimientos tienen la menor analogía con los institutos de terapia social”, cuja proposta estimula.656 Quanto ao RP, no artigo 182.3, este apenas tratou superficialmente do assunto, de forma bastante genérica: “La Administración Penitenciaria correspondiente celebrará los convenios necesarios con otras Administraciones Públicas o con entidades colaboradoras para la ejecución de las medidas de seguridad privativas de libertad previstas en el Código Penal.” Veja-se, ainda, que a medida de “participación en programas formativos, laborales, culturales, de educación sexual u otros similares”, agora prevista no regime de liberdade vigiada, conforme artigo 106, CP, encontrase com caráter subsidiário, posto que órfã de qualquer desenvolvimento normativo.657 A mesma redação foi mantida pela LO 1/2015. Mesmo assim, conforme Jorge Barreiro,658 o protagonismo da medida de internação em centro especial poderá perder parte de seu prestígio diante da medida citada e prevista pelo artigo 96.3, 12ª CP (“sometimiento a programas de tipo formativo, cultural, educativo…”), já que esta poderá substituir aquela. 8. Discute-se, ainda, se devem imperar nestes locais, de forma geral, os aspectos puramente terapêuticos ou também os custodiais ou assecuratórios. De qualquer forma, as últimas duas formas de internação apresentadas serão executadas de maneira diversa: nos casos de internação em centro de desabituação ou também no caso de internação em centro educativo especial, caberá, conforme explicitamente reconhecido no texto legal, no primeiro caso (e admissível no segundo), a execução em estabelecimentos privados, o que torna sempre questionável o tema do poder de custódia do Estado, ainda mais em um assunto tão rigoroso como este. Um dos críticos mais ferrenhos ao sistema atualmente previsto é Leal Medina,659 para quem o legislador desenhou um modelo que permite a execução das medidas em centros públicos (penitenciários ou não) ou privados. O problema segue sendo a falta de condições e 656 BACIGALUPO, El retorno del delincuente peligroso (II). MARCOS MADRUGA, en: GÓMEZ TOMILLO, (dir.), Comentarios al CP2, p. 422. 658 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del estado social y democrático de derecho, p. 619. 659 LEAL MEDINA, RdPP 2008 pp. 424 e ss. 657 228 recursos, humanos e materiais, para este atendimento. Conveniar com a rede privada pode ser uma solução muito complicada, pois se a família do próprio indivíduo não puder arcar, nem mesmo ele próprio, com os custos eventualmente decorrentes, corre-se o risco de haver uma medida judicialmente fixada que possa ser imensamente desigual e dependente das condições econômicas do sujeito internado. 9. Tampouco existe um catálogo ou estatuto jurídico para o inimputável que ingressa num hospital psiquiátrico penitenciário “para cumplir una medida de internamiento, que recoja de forma clara e inequívoca, los derechos de estas personas al modo como se regula para los individuos que cumplen una pena privativa de libertad”. No dizer de Jorge Barreiro,660 deveria haver uma lei de execução de medidas de segurança, inclusive prevendo, neste caso, cláusula de “salvaguarda”, a qual exigiria dos poderes públicos a habilitação de centros idôneos e de pessoal especializado, garantindo que, se não atendidos os critérios mínimos, as medidas poderiam, então, serem executadas em centros não penitenciários. 10. Quanto à falta de meios e recursos para o bom funcionamento com respeito às garantias jurídicas, o tema não é novo. A ausência de previsão legislativa no que tange à dotação de infraestrutura e de pessoal qualificado que possibilite o cumprimento efetivo das medidas de segurança é situação com a qual a sociedade já se deparava diante de legislações como o CP de 1928, a “Ley de Vagos y Maleantes” e a “Ley de Peligrosidad y Rehabilitación Social”. A falta de investimento em pesquisas criminológicas neste sentido emperra o aperfeiçoamento das medidas e de sua execução, principalmente.661 Veja-se, por exemplo, as modelares Patuxent, em Maryland, Estados Unidos, ou Herstedvester, na Dinamarca. Tais instituições, além de uma estrutura física adequada, possuem programas sólidos, com regras rígidas e claras, somente admitindo internação com ordem judicial. Tratamentos mais sérios, embora mais longos, ainda que hospitalares, podem, efetivamente, vir a efetuar câmbios importantes no comportamento do sujeito delinquente. Neste sentido, refere Gabbard662 em relação, até mesmo, aos indivíduos antissociais: “solamente tratamientos hospitalarios prolongados tienen condiciones de producir cualquier cambio durable en estos pacientes.” Verifica-se que tais instituições acabam sendo, realmente, importantes, pois a psicoterapia 660 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 618. pp. 599-660. 661 JORGE BARREIRO, en: COSTA ANDRADE/ ANTUNES/SOUSA (orgs.), BFD v. 2 n. 99 (2009), pp. 103170. 662 GABBARD, Psiquiatria psicodinâmica, pp. 350-353. 229 ambulatorial de pacientes com transtorno mais grave costuma se apresentar inadequada, sobretudo quando o tratamento ocorre em local não controlado ou não monitorado.663 c. A execução da medida não privativa de liberdade e suas espécies 1. As medidas não privativas de liberdade são muito heterogêneas. Embora não privativas de liberdade, ocasionam restrições a diversos direitos, de forma muito similar a algumas penas restritivas destes, se analisarmos apenas o conteúdo de cada qual.664 Este modelo é, por isso mesmo, criticado por Jorge Barreiro,665 já que baseado no sistema de penas, o que “inspira y distorsiona todo el sistema de medidas” chegando ao ponto de terem a mesma redação de várias penas privativas de direitos. Ainda, o professor espanhol critica as escassas referências legais ao conteúdo concreto e regime de execução das medidas não privativas de liberdade, bem como a hipertrofia do catálogo geral, sem qualquer parâmetro com o Direito Comparado. Tais medidas podem ser impostas a sujeitos inimputáveis e a semi-imputáveis nos casos em que a pena prevista para o delito não seja privativa de liberdade.666 Evidentemente, considerações acerca do novo instituto da liberdade vigiada para imputáveis serão resguardadas para 6, VI, quando ademais, serão apresentados instrumentos, alguns de Direito Comparado, acerca da colocação em liberdade do sujeito imputável perigoso autor de delito sexual grave. 2. O artigo 96.3 apresenta o catálogo, enquanto os artigos 105 a 108, todos do CP, tratam delas, efetivamente. Com as reformas operadas pela LO n. 15/2003, e posteriormente, pela LO n. 5/2010, o artigo 96.3 foi alterado de modo relevante, inclusive passando a prever a medida de liberdade vigiada, o que foi mantido pela LO 1/2015. As medidas não privativas de liberdade compreendem “la inhabilitación profesional, la expulsión del territorio nacional de extranjeros no residentes legalmente en España, la libertad vigilada, la custodia familiar, la privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores, la privación del derecho a la tenencia y porte de armas.” Existem também duas medidas não privativas de liberdade aplicáveis a situações especiais, previstas pelos artigos 107 e 108. A respeito do conteúdo previsto pelo artigo 108, que versa sobre a expulsão do território, esta não será comentada por 663 GABBARD, Psiquiatria psicodinâmica, pp. 356-358. GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 470. 665 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del estado social y democrático de derecho, p. 656. 666 ORTS BERENGUER/GONZÁLEZ CUSSAC, Compendio de derecho penal: PG, pp. 504-508. 664 230 não apresentar relação direta com o tema da presente investigação. Comecemos pelo artigo 107, CP, posto que apresenta relação, ainda que indiretamente, com o tema da delinquência sexual. 3. A “inhabilitación profesional” está prevista pelo artigo 107, CP, a qual é cabível no caso de ocorrência de abuso quanto ao exercício da profissão ou de ofício. O conteúdo desta medida coincide com o conteúdo da pena de inabilitação, sendo que a lei expressamente dispõe que a medida será aplicada nos casos em que, por “exención de responsabilidad, no se hubiera podido imponer la pena”667. Reza o artigo 107, CP: El Juez o Tribunal podrá decretar razonadamente la medida de inhabilitación para el ejercicio de determinado derecho, profesión, oficio, industria o comercio, cargo o empleo, por un tiempo de uno a cinco años, cuando el sujeto haya cometido con abuso de dicho ejercicio, o en relación con él, un hecho delictivo, y cuando de la valoración de las circunstancias concurrentes pueda deducirse el peligro de que vuelva a cometer el mismo delito u otros semejantes, siempre que no sea posible imponerle la pena correspondiente por encontrarse en alguna de las situaciones previstas en los números 1º, 2º y 3º del art. 20. A medida pretende evitar que o indivíduo possa ver-se, novamente, envolvido em delito dentro do âmbito de sua atividade profissional, sejam delitos da mesma natureza ou não, desde que haja perigosidade criminal, situação que se verifica em muitos casos envolvendo delinquência sexual grave, especialmente em relação a vítimas menores de idade ou vulneráveis em geral. A respeito, inclusive, Diretiva da União Europeia de 2011 exige que todos os estados membros vetem, temporal ou permanentemente, o exercício, por parte de delinquentes abusadores sexuais, de profissões que propiciem contato direto e regular com menores de idade, sugerindo que o mesmo seja feito em relação às atividades de voluntariado.668 O fundamento reside no fato de que a atividade profissional, nestes casos, seria um fator de influência ou de permanência para a perigosidade criminal. O artigo 107, assim, permite a inabilitação quando o delito tiver sido cometido com abuso de profissão ou ofício e haja o perigo de repetição da conduta delitiva, conforme Rubio Lara. 669 Exige-se a aplicação, sempre fundamentada, pelo magistrado ou Tribunal.670 Quanto aos termos empregados pelo legislador, verifica-se que, conforme Rodríguez-Ramos Ladaría, as expressões utilizadas pelo legislador devem ser compreendidas em seus exatos termos: 667 ORTS BERENGUER/GONZÁLEZ CUSSAC, Compendio de derecho penal: PG, pp. 504-508. DÍEZ RIPOLLÉS, InDret 2014, p. 23. 669 RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 74. 670 MAZA MARTÍN, en: ECHEVARRI GARCÍA (dir.), CDJ n. 14 (2006), p. 25. 668 231 “Empleo es la relación que el sujeto tiene con el empleador, que en el caso de cargos públicos, no es otro que la Administración del Estado considerada en términos generales. El concepto de cargo es más anfibológico y viene a ser considerado, desde la perspectiva del puesto o función pública que se desenpeñaba, pero al mismo tiempo el cargo se desepeña en función de la relación de empleo de que de disfruta. El concepto de empleo se aplica exclusivamente para los funcionarios públicos, mientras que el cargo es el adecuado para definir la situación de los que, sin el carácter o condición de permanencia y continuidad, ostentan una función pública por elección o por cualquier otra circunstancia transitoria.”671 Há que se salientar, no entanto, que os cargos ou empregos aqui considerados são aqueles relacionados, diretamente, ao cometimento do delito objeto da condenação, e não aqueles vinculados a qualquer atividade profissional. Fica excluída uma proibição genérica e que pudesse afetar a participação do sujeito no exercício de qualquer função pública. A restrição deve ajustar-se ao âmbito orgânico e funcional onde o delito foi cometido.672 A decisão judicial deverá estabelecer, concretamente, em relação a qual cargo o indivíduo será privado de exercer suas atividades e, principalmente, deverá apontar a relação entre o cargo ocupado e o delito praticado.673 Se não for o caso de medida, mas de pena de inabilitação especial, remete-se ao comentado em relação àquela pena já comentada, prevista pelo artigo 192.3, CP (nova redação conforme LO 1/2015), em 2, III, C, 6, 13. El juez o tribunal podrá imponer razonadamente, además, la pena de privación de la patria potestad o la pena de inhabilitación especial para el ejercicio de los derechos de la patria potestad, tutela, curatela, guarda o acogimiento, por el tiempo de seis meses a seis años, y la pena de inhabilitación para empleo o cargo público o ejercicio de la profesión u oficio, por el tiempo de seis meses a seis años. A los responsables de la comisión de alguno de los delitos de los Capítulos II bis o V se les impondrá, en todo caso, y sin perjuicio de las penas que correspondan con arreglo a los artículos precedentes, una pena de inhabilitación especial para cualquier profesión u oficio, sea o no retribuido que conlleve contacto regular y directo con menores de edad por un tiempo superior entre tres y cinco años al de la duración de la privación de libertad impuesta en su caso en la sentencia, o por un tiempo de dos a diez años cuando no se hubiera impuesto una pena de prisión atendiendo proporcionalmente a la gravedad del delito, el número de los delitos cometidos y a las circunstancias que concurran en el condenado. 4. Quanto à medida de liberdade vigiada ordinária, referida pelos artigos 105.1.a e 105.2.a, CP, foi uma importante novidade apresentada pelo CP de 1995. Na sua modalidade pós-penitenciária, possui funcionalidade especial em relação aos autores de delitos sexuais, tema que será abordado em 6, VI, posto que de momento, estamos tratando das medidas em seu sentido tradicional. A liberdade vigiada foi introduzida no ordenamento espanhol através da LO n. 5/2010 e provocou mudanças importantes no campo das medidas. Seu conceito é 671 RODRÍGUEZ-RAMOS LADARIA, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, pp. 335-336. 672 Ibidem, p. 336. 673 Ibidem. 232 oferecido por Rodríguez Ramos, como sendo674 uma medida de segurança imposta pelo Tribunal, de modo facultativo ou preceptivo, conforme a norma assinala a cada caso, e cujo conteúdo se concretiza numa série de limitações, obrigações, proibições ou regras de conduta, aplicáveis separada ou conjuntamente, dentro das margens de duração específicas que no caso resultem da parte especial do CP, tendentes não apenas à proteção das vítimas, mas também à reabilitação e à reinserção social do delinquente, objetivo que presidiu toda aquela reforma. 5. Há duas hipóteses a considerar no âmbito da liberdade vigiada ordinária, que por ora nos interessa, diante de sujeito inimputável:675 a aplicação alternativa e a aplicação conjunta com a medida de internação. Primeiramente, pode-se aplicar a liberdade vigiada ordinária alternativamente à medida de internação para inimputável em dois casos: quando o delito tiver pena privativa de liberdade prevista, porém não seja a mesma necessária, ou ainda, quando o delito apresentar pena não privativa de liberdade prevista. Ainda, a liberdade vigiada também poderá ser aplicada ao inimputável cumulativamente a uma medida privativa de liberdade, conforme reza o artigo 105, CP. No primeiro caso, as obrigações ou proibições que compõem a liberdade vigiada devem ser executadas tão logo transite em julgado a sentença (“sea firme”). No segundo caso, embora teoricamente se admita o cumprimento simultâneo, é mais lógico e razoável o cumprimento sucessivo da internação e, logo depois, da liberdade vigiada. Porém, neste último caso, é claro que também cabe a possibilidade de o Juiz ou o Tribunal Sentenciador, aplicando o artigo 97, substituir a medida de internação por qualquer das obrigações, proibições ou pautas de conduta contidas na medida de liberdade vigiada. Assim, poderia o Juiz ou Tribunal, por exemplo, substituir a internação em centro educativo especial pela obrigação de participar de programa educativo se este resultasse mais indicado. Já no que tange aos sujeitos semi-imputáveis676, o Juiz ou Tribunal poderá impor, além da pena atenuada, as medidas previstas pelos artigos 101, 102 e 103, do CP. Cabe impor medida de internação quando a pena prevista delito seja privativa de liberdade, sendo que sua duração não poderá exceder a pena prevista pelo Código para o delito. Mais uma vez aqui se seguem os ditames da teoria da pena aplicável ao campo das medidas.677 No caso de serem aplicadas medida e pena, ambas privativas de liberdade, de aplicar-se o contido no artigo 99, CP sobre o sistema vicarial. Assim, se cabível uma pena de prisão, o Juiz poderá impor, além desta pena atenuada, uma medida de internação. Entretanto, nada impede que, no lugar desta internação, 674 RODRÍGUEZ RAMOS, CDP: PG, p. 286. DEL CARPIO DELGADO, RDP año 12 n. 36 (2011), p. 28. 676 Ibidem, p. 29. 677 Vide críticas a respeito feitas por JORGE BARREIRO, JD n. 25 (1996), p. 51. 675 233 venha o magistrado a impor medida não privativa de liberdade, qual seja, a liberdade vigiada. Agora, se a pena prevista não era privativa de liberdade, o Juiz não poderá impor medida de internação. Neste caso, somente aplicará uma medida não privativa de liberdade. Disto resulta, no entanto, sério problema. Conforme já referido anteriormente, segundo o artigo 99 CP, a concorrência entre penas e medidas só ocorre se ambas forem privativas de liberdade. Assim, se ao semi-imputável for aplicada prisão e medida de internação, aquele primeiramente cumprirá a internação (medida) e, depois, o restante do tempo de prisão (pena) se necessário e descontado o tempo cumprido na medida. No entanto, nada foi dito em relação a casos combinando penas privativas de liberdade com medidas não privativas, ou ainda, penas não privativas de liberdade com medidas igualmente não privativas de liberdade. Ante o silêncio do legislador, a doutrina tem sido favorável ao cumprimento de ambas simultaneamente, quando possível (exemplo: multa e proibição de frequentar determinados lugares), ou então, sucessivamente (ex. prisão e submetimento a controle médico periódico). Em sendo sucessivamente, a execução irá depender do tipo de pena e de medida. Marcos Madruga refere que nos casos de penas e de medidas não privativas de liberdade, cumpre-se, primeiramente, a pena, diante da omissão do legislador.678 O contrário seria possível no caso de um dualismo flexível, solução que se propõe neste trabalho a fim de valorizar as circunstâncias do caso concreto, e não apenas de regras gerais baseadas sempre e de modo automático, na teoria geral da pena. Enfim, são apenas breves considerações referentemente à aplicação da liberdade vigiada ordinária ao semi-imputável, tema que não iremos aprofundar. Por fim, na liberdade vigiada ordinária, a sentença que a impuser mencionará seu conteúdo e seu prazo de execução (sempre considerando os limites temporais previstos pelo CP). Assim que esta sentença tornar-se firme, ou seja, transitar em julgado, iniciará a execução. Nela o magistrado deverá justificar a adoção da medida de liberdade vigiada, estipular seu conteúdo de forma clara e objetiva de forma a buscar a reabilitação do sujeito, que continua sendo o objetivo maior. Já durante a execução da liberdade vigiada ordinária, o Juiz ou Tribunal Sentenciador tomará (obrigatoriamente e anualmente) a decisão de decretar a manutenção, a cessação, a substituição ou a suspensão da medida, conforme os artigos 97 e 98, CP. A reforma promovida pela LO n. 5/2010 excluiu a intervenção do Juiz de Vigilância Penitenciária desta proposição ou formulação no que diz respeito a medidas não privativas de liberdade (como é o caso da liberdade vigiada ordinária), conforme o artigo 98.2 CP. Assim, há de se entender que o prazo para que o Juiz ou Tribunal Sentenciador requisite os informes 678 MARCOS MADRUGA, en: GÓMEZ TOMILLO (dir.), Comentarios al CP2, p. 427. 234 da Administração Penitenciária deva ser, na ausência de previsão expressa, igual ao da liberdade vigiada pós-penitenciária, ou seja, ao menos anualmente.679 Também o submetido à medida poderá solicitar a revisão diretamente ao Juiz ou ao Tribunal Sentenciador. 6. Medidas antigas como a obrigação de residir em determinado lugar ou em território designado, proibição de acudir a determinado lugar ou território, proibição de frequentar determinados espetáculos desportivos ou culturais, ou de visitar estabelecimentos onde haja bebida alcoólica ou jogos, proibição de aproximação ou de comunicação com a vítima, de seus familiares ou de outras pessoas, submetimento a tratamentos externos em centros médicos ou estabelecimentos de caráter sociossanitário, submetimento a programas de tipo formativo, cultural, educativo, profissional, de educação sexual e outros similares, migraram para o conteúdo do novo instituto da liberdade vigiada. Veja-se, no tocante aos delinquentes sexuais, que programas como os de tipo formativo cultural, educativo, profissional e, principalmente, de educação sexual, costumam ser bastante importantes, principalmente se combinados com outras medidas de caráter assecuratório.680 7. Quanto à medida de custódia familiar, prevista pelo artigo 105, 1, b, CP, é considerada medida de menor complexidade, embora, na prática, de difícil execução, pois acaba comprometendo os familiares do sujeito a ela submetido. Evidentemente, tais pessoas nem sempre terão disponibilidade, tempo e condições emocionais para arcar com esta responsabilidade. Por outro lado, uma família comprometida com o tratamento resulta bastante importante e, nestes casos, o resultado é promissor. González Rus681 refere a importância da custódia familiar desde que associada a outras medidas como no caso da assistência ambulatorial. Neste sentido, Rubio Lara682 entende que teria sido mais adequada a introdução de medida de vigilância de conduta vinculada à assistência social, e personalizada. Como visto, no entanto, não é de se descartar a custódia familiar por completo, porém, a medida acaba sendo mais efetiva quando empregada em outras hipóteses como no caso do controle de jovens delinquentes e de sujeitos com anomalias psíquicas em geral, sem prejuízo da medida de tratamento externo ou outra que for adequada e compatível. O problema é que esta previsão não apresenta detalhes sobre o procedimento dos familiares incumbidos 679 DEL CARPIO DELGADO, RDP año 12 n. 36 (2011), p. 45. GRACIA MARTÍN, en: GRACIA MARTÍN (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, pp. 474-475. 681 GONZALES RUS, AP n. 2 (1999), p. 36. 682 RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 74. 680 235 voluntariamente, especialmente se estes não cumprirem adequadamente o seu papel. Mais que isso, a medida, da forma como prevista, pode conduzir à certa confusão envolvendo normas e instituições civis, o que faz com que se questione, ainda mais, seu caráter penal, colocando-se em risco sua utilidade e eficácia “al resultar inoperantes las funciones que se espera que la medida pueda cumplir”, no dizer de Leal Medina.683 Não aprofundaremos o tema por sua escassa relevância, ainda que o conteúdo deste tipo de medida possa ser bastante útil na medida em que comprometa a família a acompanhar, mais de perto, a vida do autor delitivo. 8. Quanto à “privación del derecho a la tenencia y porte de armas”, vale comentá-la no sentido de que pode ser aplicada em relação a autores de delitos sexuais que as utilizaram durante a execução delitiva. Prevista pelo artigo 105, 2, b, CP, resulta evidente o interesse em evitar-se que o indivíduo continue tendo em mãos instrumentos que possam ser letais, conforme já demonstrou, anteriormente, ser capaz de empregá-los para tal finalidade. Logicamente, as armas referidas pelo artigo são aquelas que necessitam autorização administrativa para registro e porte, não impedindo que o indivíduo delinquente venha a utilizar, por exemplo, armas brancas, para a consecução de novos delitos. A título de curiosidade, o conteúdo desta medida também aparece previsto enquanto pena aplicável para alguns delitos como os dos artigos 171.4, 171.5, 172.2, 173.2, todos do CP, além, claro, daqueles em que a arma tenha sido utilizada como instrumento para o delito, mesmo que não prevista como pena, mas como sua agravante, como ocorre no caso do artigo 148.1, por exemplo, também do CP.684 Assim, é medida de caráter assecuratório e seu conteúdo possui relação direta com o modus operandi do delito cometido, 685 e neste sentido, aplicável, portanto, às hipóteses de crimes sexuais. 9. Quanto à “privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores”, deixamos de comentá-la, posto que não apresenta relação direta com o tema. d. Espaço de jogo para o julgador durante a execução da medida e suas causas de extinção 1. Durante a execução da sentença que determinou a medida de segurança, o Juiz ou o Tribunal Sentenciador adotará, nos termos do artigo 97, CP, alguma das seguintes decisões, as 683 LEAL MEDINA, RdPP n. 20 (2008), pp. 412-413. GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.). Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 475 e ss. 685 RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 74. 684 236 quais serão comentadas individualmente: a) manutenção da execução da medida imposta, b) extinção de qualquer medida imposta caso desapareça a perigosidade criminal; c) substituição de uma por outra medida mais adequada, dentre as previstas para o caso; e d) suspensão da execução da medida diante dos resultados já obtidos com sua aplicação, por prazo não superior ao que reste por cumprir e desde que o sujeito não pratique novo delito durante o prazo fixado. Tais possibilidades devem atender ao objetivo terapêutico maior de eliminação da perigosidade criminal que serviu como fundamento para aplicação e durante a execução da medida.686 2. Quanto à manutenção da execução da medida imposta, introduzida pela LO n. 15/2003, esta ocorre porque a proposta do Juiz de Vigilância Penitenciária foi em sentido contrário à liberação do sujeito, ou então, por eventual proposta de liberdade ter sido rechaçada após o contraditório.687 Mesmo sem grandes novidades, tal menção trouxe maior clareza na articulação do texto legal. 3. Quanto à possibilidade de decretar a extinção da medida, isto depende do desaparecimento, por completo, da perigosidade criminal, já que este estado pessoal é o fundamento e o limite de aplicação da medida, em respeito ao princípio da proporcionalidade.688 A mesma lógica deve incidir, pois, durante a fase de execução das medidas.689 Exige-se o desaparecimento, por completo, da perigosidade, não bastando sua redução momentânea.690 4. Quanto à possibilidade de substituição de uma medida por outra que se estime mais adequada, dentre as previstas ao caso, há que se analisar se, diante da nova medida o sujeito não apresentar uma evolução favorável, a mesma deve ser deixada sem efeito, retornando-se à medida substituída, ou seja, àquela prevista originalmente, ainda que mais restritiva.691 Alguns autores admitem, inclusive, a hipótese de substituição de medida não privativa de liberdade por uma privativa, caso necessário.692 A rigor, conforme o texto da legislação sugere, se a nova medida for adequada ao tratamento que se deseja, e se a mesma for prevista como 686 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, p. 532. GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.). Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 481. 688 REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/ GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, p. 800. 689 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.). Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 481. 690 RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 94. 691 MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, Derecho Penal: PG8, p. 596. No mesmo sentido: RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del CP, p. 94. 692 REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/ GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, pp. 826-827. 687 237 possível ao caso, não há óbice que ela seja, inclusive, mais gravosa do que aquela inicialmente imposta. É que apesar de o assunto não ser pacífico, segundo Jorge Barreiro693 o critério há de ser o da adequação, e não o da menor onerosidade, não havendo qualquer impedimento legal. 5. Quanto à possibilidade de suspender-se a execução da medida em atenção aos resultados com ela já obtidos por prazo não superior ao máximo assinalado na sentença que a impôs, esta ficará condicionada a que o sujeito não pratique novo delito durante o prazo fixado, e poderá ser, novamente, deixada sem efeito se ocorrer qualquer das hipóteses do artigo 95, CP. Diante do desaparecimento por completo da perigosidade, extingue-se a medida, mas neste caso é diferente: existe dúvida sobre a cessação completa daquela, porém há avaliação apontando o progresso do sujeito avaliado, por isto, a suspensão condicional. Se durante o prazo que restar para o cumprimento da medida o sujeito voltar a delinquir, revogase a suspensão. Igualmente caberá a revogação caso fique demonstrado o retrocesso quanto à evolução do indivíduo quanto ao prognóstico de cometimento de novos delitos.694 E se o mesmo não delinquir novamente durante o período de suspensão condicional da medida, inobstante haja prognóstico desfavorável nos termos do artigo 95, CP? Neste caso, cabível a revogação, conforme amplo setor da doutrina, o qual entende não haver dificuldades, eis que as hipóteses para a revogação da suspensão são alternativas. Fica a pergunta: no caso de revogação, qual a medida que seria imposta, a antiga ou outra? Diante do silêncio da lei, em princípio, apenas o Juiz de Vigilância Penitenciária poderá responder, nos termos do artigo 98 CP.695 Aliás, o artigo 98 é bastante polêmico, pois possibilita, em seu apartado terceiro, inclusive, trazer as vítimas do delito para serem ouvidas, o que seria algo puramente formal e de índole vingativa, conforme o pensamento de Córdoba Roda e outros.696 6. Deve-se dizer ainda que, para a adequada execução das medidas, o Poder Judiciário conta com o auxílio dos serviços de Assistência Social competentes. Para além do controle judicial, é fundamental que a Administração da Justiça garanta a infraestrutura assistencial. Do contrário, os efeitos seriam perniciosos.697 Tal estrutura de profissionais, principalmente da Assistência Social, deve ser sólida para que o Poder Judiciário efetue a competente revisão 693 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, pp. 633-634. 694 COBO DEL ROSAL/VIVES ANTÓN, Derecho penal: PG5, p. 998. No mesmo sentido: GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 483 e JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, pp. 634-635. 695 REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/ GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, p. 828. 696 Ibidem. 697 GÓMEZ DE LA TORRE, Lecciones de derecho penal: PG2, p. 402. 238 das medidas e para que o Juiz de Vigilância Penitenciária tenha condições de propor, ao menos anualmente, a manutenção, a extinção, a substituição ou a suspensão das mesmas, levando em consideração os informes emitidos pelos profissionais que assistem ao submetido à medida, embora, lamentavelmente, na expressão de Jorge Barreiro,698 o legislador não tenha referido qual a classe de informes, nem mesmo quem deveria emiti-los. Em sendo uma medida não privativa de liberdade, o Juiz ou o Tribunal Sentenciador requisitará da Administração Pública e dos profissionais competentes os devidos informes sobre a situação e evolução do indivíduo, seu grau de reabilitação e prognóstico de reincidência. Em qualquer dos casos, sendo ou não hipótese de medida privativa de liberdade, será o Juiz ou o Tribunal Sentenciador quem irá proferir a última palavra diante da proposta, no primeiro caso, ou dos informes, no segundo caso. Tanto o indivíduo submetido à medida quanto o Ministério Público devem ser ouvidos. Também podem ser ouvidas outras pessoas e as próprias vítimas, como já mencionado. 7. Como refere Jorge Barreiro,699 “sigue faltando una ley de aplicación de las medidas de seguridad y la configuración de un auténtico juez de ejecución de las mismas.” A figura de um magistrado especializado evitaria as tensões ou conflitos entre o atual Juiz ou Tribunal Sentenciador. Tal Juiz de Execuções deveria assumir por completo esta tarefa, com a redefinição de suas atribuições, pois conforme Urruela Mora, o papel deste foi descaracterizado já a partir do Código Penal de 95, posto que precisaria ocupar lugar central como autêntico órgão decisório em matéria de execução de penas e medidas. Seu papel, hoje, como mero assistente dos órgãos sentenciadores não se justifica, até porque os órgãos sentenciadores, nesta fase, já se encontram muito distanciados da questão, até mesmo desligados dela tão logo pronunciam a sentença condenatória, diferentemente do Juiz de Execução, quem melhor conhece o sujeito e a evolução de sua perigosidade700. Para melhor regular todas estas questões certo segmento doutrinário vem propugnando por um Direito Penal de Medidas, o qual possibilitaria a reformulação jurídica e, inclusive, de infraestrutura vitais, para que as medidas pudessem ser aperfeiçoadas e mais efetivas. Veja-se que o antigo Anteprojeto de Código Penal de 1983 apresentava uma disposição, ao final, deveras interessante, determinando que o governo remetesse às “Cortes Generales”, no prazo de seis meses, um projeto de lei de aplicação de medidas de segurança, inclusive instando-os a 698 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, pp. 599-660. 699 JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 517. 700 URRUELA MORA, Las medidas de seguridad y reinserción social en la actualidad, pp. 103-104. 239 habilitar estabelecimentos idôneos para o cumprimento das medidas privativas de liberdade, as quais seriam cumpridas em centros não carcerários, enquanto aqueles não existissem ou não fossem habilitados.701 Como refere Jorge Barreiro,702 o atual ordenamento jurídico apresenta certa lacuna quanto a medidas de segurança adequadas à realidade, além de uma pobre cobertura legal a respeito da execução das mesmas. Deveria haver maior preocupação com o tema, além de uma reforma jurídica para ajustar todas as questões que as envolvem, além, é claro, maior dotação de recursos para infraestrutura a fim de que as medidas, privativas ou não de liberdade, tivessem tratamento mais adequado e condizente, principalmente quanto à execução, bem como quanto ao necessário controle judicial periódico, o que poderia ser articulado através da criação de um autêntico juízo de execução de medidas, com idêntico aprimoramento dos serviços sociais competentes encarregados de prestar auxílio ao submetido a medidas de segurança não privativas de liberdade, eis que o CP igualmente não os especifica. O conjunto de profissionais responsáveis pela adequada execução das medidas de segurança é composto conforme os termos do artigo 3.2 e do artigo 98, ambos do CP, os quais referem a importância do Juiz ou Tribunal Sentenciador como aqueles que decidem a proposta formulada pelo Juiz de Vigilância Penitenciária, e que trabalham com os servidores que assistem ao indivíduo submetido à medida: De la dicción de los correspondientes preceptos relativos a la ejecución de las medidas de seguridad (arts. 95 y ss.) se deduce que las decisiones se toman por el Juez o Tribunal sentenciador, pero la propuesta corresponde a los Jueces de Vigilancia Penitenciaria que trabajan con los facultativos y profesionales que asistan al sometido a medidas (art. 98).703 8. Por fim, hipóteses de extinção das medidas como o “quebrantamiento”, morte ou decurso do prazo, embora relevantes, não serão tratadas neste trabalho, diante da delimitação quanto ao seu objeto de pesquisa. Com relação à prescrição, interessante mencionar que, conforme defende parte da doutrina, o instituto seria inaplicável, posto que a medida está vinculada ao estado perigoso do agente. Porém, mais modernamente, o artigo 135 CP definiu que: 1. Las medidas de seguridad prescribirán a los diez años, si fueran privativas de libertad superiores a tres años, y a los cinco años si fueran privativas de libertad iguales o inferiores a tres años o tuvieran otro contenido. 2. El tiempo de la prescripción se computará desde el día en que haya quedado firme la resolución en la que se impuso la medida o, en caso de cumplimiento sucesivo, desde que debió empezar a cumplirse. 701 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 294. JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 517. 703 COBO DEL ROSAL/VIVES ANTÓN, Derecho penal: PG5, p. 997. 702 240 3. Si el cumplimiento de una medida de seguridad fuere posterior al de una pena, el plazo se computará desde la extinción de ésta. Neste artigo verifica-se a elevação dos prazos de prescrição em relação ao previsto pela LPRS, e ainda, a existência de três modalidades de cômputo do prazo correspondente. 9. Quanto ao cancelamento de anotações registrais, o artigo 137 trata do tema tal qual ocorre em relação às penas, mas somente nos casos previstos em lei. A norma vai endereçada a magistrados, tribunais e autoridades administrativas competentes. O cancelamento se produz ex lege, no mesmo momento do cumprimento ou da extinção, incluída a hipótese prescricional, ficando limitado o acesso ao registro, de forma radical. Também é importante salientar que as medidas cessam de forma automática no caso de eventual reforma legislativa vir a descriminalizar o delito cujo cometimento fundamentou a imposição de medida ou suprimiu a concreta medida imposta naquele caso.704 No mais, apenas para registro, a LO n. 15/2003 cometeu, segundo Sanz Morán, equívoco quando adicionou ao artigo 130.1 n. 7, CP, menção expressa da prescrição como causa extintiva da responsabilidade criminal, pois a responsabilidade criminal fundamenta a aplicação de penas, e não de medidas. Refere o artigo 130.1.7º que “1. La responsabilidad criminal se extingue: 7º) Por la prescripción de la pena o de la medida de seguridad.” 10. Dito isto, entendemos, face à natureza do assunto e à importância da discussão sobre a eterna vinculação das medidas às penas, em apresentar como breve excurso, já que não é o objeto central da pesquisa, breves anotações acerca da polêmica questão que envolve a duração das medidas de segurança. Por uma questão de coerência, até agora foi dito que a perigosidade deveria funcionar como eixo central a regular o princípio da proporcionalidade no tocante às medidas. E deste modo, deveríamos ter medidas de segurança com prazos indefinidos. No entanto, critérios mínimos de segurança jurídica se impõem à luz de um Estado Democrático de Direito e determinam que tenhamos limites a tais pretensões, sejam privativas ou não privativas de liberdade, gerando, pois, grande controvérsia na busca pelo equilíbrio entre tais ponderações. e. Excurso: A controversa questão da duração máxima das medidas de segurança 1. Tema de grande relevância para a temática dos delinquentes sexuais, questiona-se se a medida privativa ou não de liberdade deve guardar relação com a perigosidade, seu 704 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 315. 241 fundamento, devendo durar o tempo necessário para preveni-la, sem exceder, no entanto, a alguns limites impostos pelo Direito Penal. Jorge Barreiro, a respeito, menciona que a perigosidade criminal, além de fundamento, serve como limite à imposição da medida. Conforme refere o autor citado,705 “ésta há de durar, en principio el mismo tiempo que perdure la peligrosidad criminal, y la medida de seguridad ha de cesar cuando desaparezca la peligrosidad criminal del sujeto – CP 97.b”, ao menos este é o raciocinio do autor como ponto de partida. Numa visão limitadora quanto ao prazo de duração, como refere Robles Planas,706 o debate envolve saber se a preferência deve ser dada à proporcionalidade em relação ao fato cometido, ou deveria se guiar pelo limite de tempo fixado para a duração da pena que seria cabível, maximizando a segurança jurídica. Talvez, ainda, a duração da medida devesse ser calculada com relação à perigosidade do agente, com a correspondente tendência à indeterminação quanto ao prazo de duração. Para Garcia Martín, como o princípio reitor é o da proporcionalidade em relação à perigosidade, por coerência, o prazo máximo deveria ser indefinido, porém em razão de segurança jurídica é necessário aplicar um limite temporal final, sempre submetido à revisão e ao controle judicial periódico.707 Sánchez Lázaro708 propugna que, diante de certas situações que exigem a proteção maior da sociedade, o princípio da proporcionalidade deveria ser removido. O referido autor propõe um sistema casuístico de prazos fixados antes da execução, mesclado com a possibilidade de prorrogações de caráter excepcional, conforme o caso. Justifica dizendo que este entendimento seria mais coerente com o propósito de atenuar a perigosidade do delinquente, devendo esta perigosidade funcionar como referência para o lapso temporal. Quanto à segurança jurídica, não vê prejuízo, pois sustenta que a proposta seria estruturada sob a égide do contraditório, com a previsão expressa da possibilidade de apresentação de propostas, direito de audiência, igualdade entre as partes e intervenção especializada. O mesmo doutrinador critica, ainda, o fato de que as medidas sejam proporcionais à gravidade dos delitos, não podendo, portanto, ser mais gravosas do que as 705 JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.) MP, p. 510. pp. ROBLES PLANAS, RAD 2007 p. 14. A respeito vide JORGE BARREIRO, en: COBO DEL ROSAL (dir.) Comentarios al CP, tomo IV, pp. 131 y ss.; CEREZO MIR, PG6, pp. 38 e seguintes; GARCÍA ARÁN, Fundamentos y aplicación de penas y medidas de seguridad en el CP español de 1995, pp. 132 y ss.; SILVA SÁNCHEZ, El nuevo CP, pp. 15 e ss.; SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, pp. 120 e ss. e pp. 179 e ss.; GRACIA MARTÍN, Lecciones de consecuencias jurídicas del delito3, pp. 385 e ss. 707 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 460. 708 SÁNCHEZ LÁZARO, RP 2006, p. 151. 706 242 penas a eles previstas. Romeo Casabona,709 por sua vez, entende que a proporcionalidade deveria estar relacionada, exclusivamente, com a perigosidade do agente, ainda que admita a necessidade, por razões de segurança jurídica, quanto à fixação de limites máximos derivada do princípio da legalidade. Para Mir Puig,710 além da perigosidade, a proporcionalidade deveria corresponder não apenas à gravidade do ato cometido, mas também dos atos delitivos que o indivíduo poderia vir a cometer no futuro. Para Mir Puig,711 os prazos deveriam ser determinados, sob pena de as medidas restarem mais gravosas do que as próprias penas. Para Jescheck e Weigend, a medida não deveria ter prazo definido, somente cessando com o fim da perigosidade do agente,712 devendo haver uma relação de proporcionalidade da medida em relação à importância dos delitos futuros e prováveis, sendo que o primordial quanto às medidas seria atender às necessidades de segurança coletiva.713 Para Cerezo Mir,714 o prazo de execução das medidas não deveria ser proporcional ao delito cometido, mas à perigosidade do agente. Sustentava, antes do atual CP, que a duração da medida deveria corresponder ao tempo necessário ao tratamento terapêutico do sujeito, chegando a propor alguns prazos fixos. Cerezo Mir715 entende que o sistema de determinação de limites temporais adotado pelo CP é “nefasto políticocriminalmente”. Martínez Guerra,716 por exemplo, chegou a sustentar, já após 1995, um “meio termo” entre a indeterminação quanto à duração das medidas e os prazos legalmente estabelecidos pela lei penal, sugerindo a utilização de limites específicos considerando a “la previsión de curación del sujeto”. 2. Sanz Morán, referindo-se ao CP de 1995, refere que este adotou o critério de definição do prazo máximo da medida conforme o delito praticado. Segundo o autor citado, isto merece ser contestado, posto que se anulou o caráter prospectivo que justifica o recurso às medidas.717 Veja-se, segundo Sanz Morán, que o Código Penal alemão, no parágrafo 62, estabeleceu que devem ser levados em consideração os delitos cometidos, os esperados e o grau de perigosidade que disto resulta quando da fixação de critérios diante da imposição de medida, combinando dados retrospectivos com dados prospectivos. Ainda cita Sanz Morán o 709 ROMEO CASABONA, Peligrosidad y derecho penal preventivo, p. 87. MIR PUIG, Derecho penal: PG9 pp. 761 e ss. 711 Ibidem, pp. 761 e ss. 712 JESCHECK/WEIGEND, PG5, p. 866. 713 Ibidem, pp. 879 e ss. 714 CEREZO MIR, Estudios sobre la moderna reforma penal española, p. 181. 715 CEREZO MIR, en: ARROYO ZAPATERO/BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.)/NIETO MARTÍN, (coord.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos, vol. I, p. 928. 716 MARTÍNEZ GUERRA, Nuevas tendencias políticocriminales en la función de las medidas de seguridad, pp. 66-67. 717 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 127. 710 243 exemplo do Código Penal de Portugal, de 1995, que no artigo 40, n. 3, e sem paralelismo no Código anterior, de 1982, diz que a medida somente pode ser aplicada se for proporcional à gravidade do fato cometido e à perigosidade do agente. 718 Aliás, quanto ao Código Penal português, há que se mencionar que no caso de “hipótese excepcional de primeira internação” (quando houver o perigo real de cometimento de novos delitos contra a pessoa, que desaconselhe a colocação em liberdade) ou diante da hipótese de segunda ou posterior internação, a medida somente será extinta se houver a cessação completa da perigosidade. Por isto, segundo Figueiredo Dias,719 nestes casos parece que o CP desrespeita a Constituição, a qual no artigo 30º proíbe medidas e penas de caráter perpétuo ou de prazo máximo indefinido ou ilimitado. Observe-se, ainda, no sentido de complementação, segundo Sanz Morán, que resulta patente o problema quanto à regra de proporcionalidade acolhida no CP espanhol, assunto já tratado em 5, II, diante de maiores informações ou critérios o problema deve ser resolvido à luz de algumas regras nele previstas, pois é bastante grave que não se tenha maior claridade, não apenas quanto à fixação do prazo de duração, mas em relação à toda a execução das medidas. Jorge Barreiro, inclusive, vai além, dizendo que o modelo adotado gera a nefasta consequência da completa desnaturalização de um sistema de medidas e de um Direito Penal da perigosidade autônomo em relação ao Direito Penal da culpabilidade, o que revela a assimilação, a confusão e o solapamento entre medidas e penas, demonstrando o desconhecimento das diferenças mais elementares entre ambas as consequências jurídicas do delito. Assim, parece que o legislador esqueceu-se da importância do princípio da proporcionalidade no tema das medidas. Esqueceu-se de analisar a proporcionalidade na duração da medida em relação à gravidade dos delitos que o sujeito possa vir a cometer no futuro, bem como o grau de perigosidade do autor, fatores ainda mais relevantes do que a gravidade do delito já cometido, como já inovaram alguns Códigos Penais. 3. Tudo isto acaba levando à outra consequência ainda mais prejudicial: caso a perigosidade do indivíduo persista, o atual sistema recomenda sua internação civil, instituto destinado para sujeitos incapazes, mas não criminalmente perigosos, não sendo o instrumento apto para atender aos objetivos próprios de uma medida de segurança criminal.720 Assim, Jorge Barreiro721 entende que por uma questão de segurança jurídica a medida deve ter sempre um prazo máximo de duração, o qual permita levar-se a cabo tratamento condizente com a 718 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 127. FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português: PG, tomo II, pp. 472-473. 720 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 611. 721 JORGE BARREIRO, RPCC n. 11 (2001) p. 550. 719 244 situação do indivíduo, buscando-se a cessação da perigosidade criminal, em razão da segurança jurídica própria de um Estado Democrático de Direito. Refere também que não se pode resolver adequadamente esta situação através da internação civil prevista pela disposição adicional 1ª, CP, a qual versa sobre doentes mentais, não tendo sido pensada para os casos de perigosidade criminal, denominando tal “fraude de etiquetas” como a “tática do avestruz”, abandonando-se o doente mental à sua sorte, desinteressando-se por seu futuro incerto e ignorando as exigências de segurança da própria sociedade.722 Entretanto, apesar da observação no que tange à fraude de etiquetas, há quem sustente que a alternativa de encaminhamento pela via civil, uma vez vencido o prazo da medida de segurança, seria viável.723 Entretanto, o tema é discutível sob o prisma constitucional, já que nem sequer foi previsto em Lei Orgânica, conforme exige o artigo 81 da Constituição espanhola, eis que trata de direitos fundamentais e liberdades públicas.724 Na verdade, a hipótese de internação civil deveria apenas ser empregada diante de real risco à vida da pessoa ou às demais. Neste caso, não se aplicaria o instituto conforme a classe de pessoas visadas (delinquentes sexuais), mas sim, face ao risco real e iminente de morte ou de agressão sexual que estas apresentassem no caso concreto. Seria também empregada quando, inclusive, o delito nem chegasse a ocorrer: por isto cabível o âmbito civil, porém restrito, a casos extremos e emergenciais, não devendo, jamais, ser empregado como substituto para uma medida de segurança, cujos pressupostos e execução são completamente diversos. Veja-se que no âmbito civil, quem pode conceder alta ao paciente é o médico, o qual apenas comunicaria a decisão ao magistrado. Afora isso, a internação civil tem, em princípio, caráter indeterminado. É extremamente problemático sustentar-se uma intercambialidade entre a internação civil e outra penal, como faz o artigo 763 da Ley de Enjuiciamento Civil. Assim, quanto mais perigosidade revelada no delito praticado e nos esperados, maior deveria ser o limite de duração de uma medida privativa de liberdade; o contrário também é verdadeiro, inclusive chegando-se ao nível do bagatelar, com a consequente exclusão do recurso à medida, o que poderia ser, tranquilamente, adotado.725 4. Especificamente, no caso da medida privativa de liberdade em relação a situações que envolvam as eximentes completas, os artigos 101 a 103 referem que aquela não pode durar mais do que a pena privativa de liberdade duraria se o sujeito tivesse sido declarado 722 JORGE BARREIRO, RPCC n. 11 (2001) p. 578. Neste sentido, SILVA SÁNCHEZ, en: ARROYO ZAPATERO/ BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.)/ NIETO MARTÍN (coord.), Homenaje al dr. Marino Barbero Santos, vol. I, p. 708, e MARCOS MADRUGA, en: GÓMEZ TOMILLO (dir.), Comentarios al CP2, p. 434. 724 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, pp. 42-43. 725 Ibidem, pp. 129-131. 723 245 responsável, relacionando o tema com a regra geral prevista pelo artigo 6 (“la medida no puede ser más gravosa que la pena ‘abstractamente’ aplicable”) e pelo artigo 95.2 (“si la pena que ‘hubiera podido imponerse’ no es privativa de libertad, no cabe medida de internamiento’). Assim, há que se verificar, no caso concreto, primeiramente, se a pena “abstratamente prevista” é ou não privativa de liberdade. Colina Oquendo também sustenta o mesmo ponto de partida da pena abstratamente prevista, porém quanto ao prazo de duração, refere que o grau de execução do delito (consumação e tentativa) e de participação (autoria e cumplicidade) devem ser considerados, excluindo-se da apreciação as agravantes e as atenuantes. O mesmo autor cita, na mesma linha de raciocínio, o Acordo de 31 de março de 2009, do “Pleno No Jurisdiccional de la Sala Segunda del Tribunal Supremo” que estabeleceu que a duração máxima de internação deve ser determinada pela pena em abstrato prevista para o delito em tela (STS 1336/2009, de 22 de diciembre [La Ley 283764/2009]), mas o calcula da forma que segue:726 “Ha de calcularse pues ese límite máximo de duración de la medida de seguridad por el límite máximo de la pena a imponer, no por la pena concreta con que se hubiera sancionado de no existir esa eximente (1939/2002, de 19 de noviembre [La Ley 647/2003], 47/2003, de 23 de enero y 376/2005, de 6 de abril [La Ley 1960700/2005]), entendiendo como tal la prevista en el correspondiente artículo definidor del delito teniendo en cuenta lo dispuesto en los arts. 61 a 64 a propósito del grado de ejecución (consumación y tentativa) y de participación (autoría y complicidad) y sin consideración a las circunstancias agravantes o atenuantes de caráter genérico (arts. 21, 22 y 23 CP).”727 Rebollo Vargas salienta que qualquer intenção de fixar uma pena concreta para, a partir dela, calcular-se o prazo de duração da medida, não faria qualquer sentido, pois obrigaria a um processo de individualização que, por sua própria natureza, é incompatível com a declaração de inimputabilidade, nos termos do que referiu a Fiscalía General em consulta n. 5/1997, de 24 de fevereiro.728 Gracia Martín refere, quanto à pena abstratamente aplicável que, conforme a teoria da pena, pena em abstrato é aquela prevista pela parte especial do CP, e que deve prever também os diversos graus de participação e de execução no delito. No entanto, o caso aqui é diferente, como ele mesmo refere. Segundo Gracia Martín, para fins de cálculo de duração de uma medida de segurança o raciocínio deve ser outro, já que deve corresponder, antes de tudo, à perigosidade, podendo, pois, ser superior à pena abstratamente prevista e guardar independência do raciocínio aplicável à pena. Assim, para Gracia Martín, neste caso, trata-se da pena tão somente prevista pela parte especial do CP, sem que sejam considerados graus de participação e de execução do delito. O autor assim sustenta seu posicionamento a 726 COLINA OQUENDO, en: RODRÍGUEZ RAMOS (dir.)/MARTÍNEZ GUERRA (coord.), CP4, pp. 542-543. Ibidem, p. 547. 728 REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, pp. 842-843. 727 246 partir de uma leitura fundada em princípios, e não a partir de uma compreensão meramente gramatical, a qual, aliás, critica. Quanto ao artigo 104, CP, que trata da duração da medida para os semi-imputáveis, a redação determina claramente empregar como referência, a pena prevista pelo Código para o delito, e não a pena concreta, o que não deixa dúvidas, não somente pela literalidade, como pela coerência com a questão principiológica já comentada, no dizer ainda de Gracia Martín.729 5. No caso de medida privativa de liberdade em hipótese de eximente incompleta, deve-se utilizar, como pressuposto, a pena imposta, conforme refere o artigo 104, CP. Com isto alcança-se um sistema de limitação mais aproximado ao das eximentes completas. 730 Para Jorge Barreiro, igualmente entende que a pena privativa de liberdade, concretamente imposta (e atenuada) serve apenas como “pena-pressuposto”, nos termos do artigo 104, porém será a pena abstratamente prevista para o delito que funcionará como teto máximo” no que tange a seu prazo de duração.731 Teria sido melhor, então, que o legislador tivesse, assim como fez com as medidas não privativas de liberdade, desde logo, fixado os prazos máximos de duração.732 No tocante à duração da medida de segurança não privativa de liberdade, estas possuem importância crucial no sentido de que nem sempre estará autorizada uma medida privativa de liberdade, como já comentado, e ainda, porque nem sempre uma internação irá se mostrar mais eficiente, necessariamente. Como referem Jescheck e Weigend:733 “Los conocimientos de la Criminología moderna dan lugar a un planteamiento escéptico […]: ni disponemos de métodos seguros para la previsión del comportamiento legal futuro del individuo, ni existe un motivo fundado empíricamente que conduzca a confiar en que la estancia que, por ejemplo, se desarrolla en un centro de desintoxicación conducirá a un delincuente alcohólico o drogadicto multirreincidente a un comportamiento adecuado a Derecho. El sacrificio excepcional que normalmente está ligado con la adopción de la medida es situado de esta forma sobre una base fáctica muy insegura cuya comprensión debería conducir a una utilización especialmente moderada de las medidas de seguridad privativas de libertad.” 6. As medidas não privativas de liberdade estão previstas pelos artigos 105 a 108, CP. Nestes casos, o limite máximo quanto ao prazo de duração da medida está estabelecido, objetiva e diretamente, no artigo 105, CP, o qual reza que nos casos previstos pelos artigos 101 a 104, o magistrado ou o tribunal, quando impuser medida privativa de liberdade ou mesmo durante sua execução, poderá impor, fundamentadamente, uma ou mais medidas 729 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, pp. 464-466. MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, Derecho penal: PG8, p. 594. 731 JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 512. 732 JORGE BARREIRO, RPCC n. 11 2001 pp. 527-601. 733 JESCHECK/WEIGEND, TDP: PG5, p. 867. 730 247 dentre as seguintes: 1. Por un tiempo no superior a cinco años: a) Libertad vigilada. b) Custodia familiar. El sometido a esta medida quedará sujeto al cuidado y vigilancia del familiar que se designe y que acepte la custodia, quien la ejercerá en relación con el Juez de Vigilancia y sin menoscabo de las actividades escolares o laborales del custodiado. […] 2. Por un tiempo de hasta diez años: a) Libertad vigilada, cuando expresamente lo disponga este Código. b) La privación del derecho a la tenencia y porte de armas. c) La privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores. […] Recorde-se que no caso da pena prevista para o delito praticado ser inferior a cinco ou a dez anos, conforme a hipótese cabível, a medida não deverá ter duração superior àquela, pois o artigo 6.2 proíbe, expressamente, medidas mais gravosas que as penas abstratamente previstas. Evidentemente, tal raciocínio somente pode ser aplicado quando pena e medida tiverem a mesma natureza, ou seja, quando ambas forem privativas de liberdade. Afora isto, cada qual seguirá as suas próprias regras e limites.734 Assim sendo, passa-se à análise dos aspectos relevantes quanto a um novo e polêmico modelo de medidas, o da intercambialidade funcional, como forma de estabelecer, a título comparativo, sistemática que vem sendo fortemente empregada diante da delinquência sexual grave, como se passa a demonstrar. III. Novidades em medidas de segurança: do modelo tradicional à intercambialidade funcional A. A insuficiência das medidas de segurança tradicionais diante da perigosidade do imputável 1. O Direito Penal vem sofrendo tendência a uma intensificação e a um expansionismo, no mais das vezes, injustificado, com a consequente e exagerada flexibilização de princípios e garantias jurídico-penais liberais do Estado de Direito, o que é bastante perigoso, como menciona Gracia Martín,735 tendência esta que vem sendo empregada com vigor em matéria de delinquência sexual em geral. Apesar das críticas a esta tendência expansionista e intensificada, não há dúvidas que, independentemente da (i)legitimidade ou da (in)constitucionalidade dos instrumentos hoje empregados, a maioria dos países ocidentais, 734 735 GONZÁLEZ RUS, AP n. 2 (1999), p. 39. GRACIA MARTÍN, RECPC 2005, p. 2. 248 atualmente, tende a esta forma de maximalismo-populista. O fenômeno é plenamente compreensível diante da realidade contemporânea de alarme e medo coletivos, embora bastante polêmico. Assim, repisa-se, este Direito Penal de marca acentuadamente simbólica acaba voltando-se em relação não apenas a fatos, mas a certos tipos de autores, que são definidos, não como “iguais”, mas como sendo “os outros”, ou seja, como não partícipes de uma mesma identidade social. O assunto é bastante pertinente diante da figura dos perigosos imputáveis, tema que vem despertando o interesse mais moderno da doutrina, principalmente. Porém, a questão que resta indagar é se há, realmente, necessidade, de um Direito Penal desta natureza, ou seja, de um Direito Penal praticamente de exceção, seja qual for o rótulo dado. Talvez a melhor alternativa não esteja entre modelos extremos: nem o tradicional, já superado pelos desafios da modernidade, nem o de exceção, de índole meramente simbólica. Como informa Cancio Meliá, existem muitas formas de lidar com os problemas criminais, e com a delinquência sexual em especial. No entanto, embora as formas sejam diferentes, existem mecanismos interessantes, não havendo motivo para se justificar o emprego de qualquer sistema radical sem que eles representem um rombo que comprometerá, de alguma forma, o Estado de Direito.736 Assim, mecanismos como medidas de segurança complementares à pena, os quais funcionam, inúmeras vezes, de forma intercambiável, legítima ou ilegitimamente, são causa de inúmeras discussões contemporâneas, merecendo ser abordados. Outro modo de se enfrentar o problema, atualmente, são as penas exacerbadas, o que soa ilegítimo desde o princípio. 2. Este tipo de tendência punitiva que vem sendo constatada é registrada também por Silva Sánchez737 quando este fala do retorno à inocuização como um fenômeno que pode ser constatado através de institutos como medidas de liberdade privativas de liberdade a serem cumpridas após a pena e que podem ser perpétuas. Teorias de inocuização seletiva, bem como a proliferação de leis tipo Three-Strikes738 demonstram a utilidade deste discurso ponderando custos e benefícios econômicos quanto ao combate à criminalidade. A Suprema Corte NorteAmericana tem afirmado sistematicamente a vigência da proibição de penas desproporcionais, porém este tipo de legislação vem sendo aceito e tem o respaldo dos correspondentes órgãos judiciais.739 Através deste tipo de legislação, por exemplo, a lei californiana definiu, em 1994, que a pena para o segundo delito deve ser dobrada caso esteja prevista dentro de certa 736 CANCIO MELIÁ, EDP n. 2 (2010), p. 486. Por todos, SILVA SÁNCHEZ, La expansión del derecho penal, p. 146. 738 ZYSMAN QUIRÓS, Castigo y determinación de la pena en los Estados Unidos, p. 115. 739 SANZ MORÁN, RPC n. 4 A3 (2007) p. 9. 737 249 tipologia de crimes, basicamente os violentos, podendo chegar à prisão perpétua no terceiro delito.740 Também cabível ilustrar o tema com as observações feitas por Polaino Navarrete e Polaino Orts quando referem que em alguns países europeus, como Bélgica e Reino Unido, onde se iniciou uma polêmica com a difusão pela internet dos chamados registros públicos de delinquentes sexuais, completamente abertos à população em geral, o que gerou consequências bastante desastrosas para as políticas sérias de reinserção social destes indivíduos, conforme analisaremos mais amiúde no capítulo sexto. Nos Estados Unidos, ainda, delinquentes considerados perigosos devem segurar cartazes declarando-se culpáveis por delitos sexuais ou outros crimes violentos, a fim de que possam ser, desde logo, assim reconhecidos pelos demais cidadãos.741 Também assim no Reino Unido. A Criminal Sentence Act de 1997 (Sentencing Guidelines) estabelece em certos casos a chamada “extended sentence”, ou mesmo a prisão perpétua no caso de um segundo delito. Ainda, nos Estados Unidos, pode-se citar o instituto da internação de natureza civil, com quase um século de tradição no sistema da Common Law, denominado Civil Commitment, ou também conhecida como preventive detention, o qual é amplamente adotado para situações envolvendo os chamados sexual predators, tema que será desenvolvido em 5, III. Tal instituto pode ser aplicado a indivíduo imputável, semi-imputável ou mesmo inimputável – neste último caso, quando aceita a tese da insanity defense, sendo reconhecido como de caráter civil, embora possa ser aplicado para além da pena, empregado como medida de proteção social no caso de indivíduos que supostamente revelem perigosidade, dentre outros requisitos, no campo sexual. O instituto norte-americano tem sido criticado por apresentar resposta de caráter bastante simbólico e pouco técnico, já que os problemas quanto à sua configuração, requisitos, terminologia, âmbito de aplicação, pressupostos de imputação, variam muito de estado para estado, sendo bastante influenciados pelo discurso político. Tal exemplo é representativo de intercambialidade funcional no sentido negativo, já que o instituto está configurado como instrumento de Direito Civil, a fim de evitar a incidência das garantias próprias do Direito Penal contemporâneo, numa autêntica mescla de institutos. A “confusão” conceitual acaba ocorrendo porque o Civil Commitment pode ser aplicado em duas versões: tanto a indivíduos que praticaram delitos (modelo voltado aos chamados sexual predators), quanto de modo prédelitivo, estando completamente baseado na questão da perigosidade, razão pela qual, o Poder Judiciário não lhe confere o rótulo de mecanismo “penal”. 740 741 CANCIO MELIÁ, EDP n. 2 (2010), p. 421. POLAINO NAVARRETE/POLAINO-ORTS, AP tomo 3 Sección Doctrina (2001), p. 12, La Ley 17274/2001. 250 3. Desde logo, necessário deixar claro que ao comentarmos algumas legislações estrangeiras o fazemos, embora de modo crítico, com especial consideração às questões culturais locais, posto que, como refere Cancio Meliá,742 a enorme variedade de sistemas de tipificação de infrações no âmbito sexual “se encuentran muy estrechamente vinculadas a las peculiaridades de la idiosincrasia de la sociedad que las ha producido, de modo que la falta de un conocimiento profundo de aquella puede conducir a valoraciones poco respetuosas con el medio social en el que han de aplicarse.” Neste sentido, registre-se nosso respeito às culturas e aos ordenamentos locais, como é o caso dos países que escolhemos como paradigmáticos: Estados Unidos, Alemanha e Portugal, para além, é claro, da Espanha. Evidentemente, podese compreender a lógica desta formulação, no sentido de que todos, independentemente de rótulos, desde que considerados perigosos, devem alcançar o mesmo tipo de tratamento e com as mesmas garantias, principalmente no que tange à saúde. Entretanto, questões relevantes deveriam ser consideradas como, por exemplo, a probabilidade de reincidência, o tipo de segurança adotado pelos estabelecimentos, as consequências para o descumprimento do tratamento, as decisões no curso da execução, afora a necessidade de clareza quanto ao juízo que acompanha a execução e seus incidentes, são fatores importantes e decisivos a fim de sustentar-se a diferenciação entre o que é de natureza civil e o que é de natureza criminal, posto que há pressupostos e garantias executadas de modo diferenciado. 4. Assim, embora penas e medidas tenham, pois, um caráter diferenciado, verifica-se que ainda hoje existe forte discussão entre um Direito Penal retributivo e um Direito Penal preventivo, entre o punitur quia peccatum est e o punitur ne peccetur, entre culpabilidade e perigosidade, entre penas e medidas.743 Culpabilidade e perigosidade são os dois pontos de conexão do atual sistema de reação estatal frente a um delito: o delito cometido por um autor culpável dará lugar à imposição de uma pena; já o delito cometido por autor perigoso dará lugar a uma medida de segurança. Mesmo assim e apesar das semelhanças entre penas e medidas, existe hoje tal aproximação entre os institutos que reflete, de certo modo, a crise do dualismo tradicional, conforme já exposto em 4, II e III.744 Em razão disto, vem sendo entendido, resumidamente, que as medidas devam ser aplicadas diante da presença de perigosidade, não importando se o indivíduo é imputável ou inimputável. A restrição ficaria por conta do inimputável, no sentido de que este, pela ausência de culpabilidade (em sentido estrito) jamais poderia receber uma pena. A 742 CANCIO MELIÁ, en: idem, Estudios de Derecho penal, p. 282. MUÑOZ CONDE, Direito penal e controle social, p. 36. 744 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 603. 743 251 diferença entre penas e medidas, deste modo, continuaria demarcada, porém com um campo de aplicação diverso daquele tradicionalmente compreendido. Se antes a sociedade via apenas nos inimputáveis a possibilidade de aplicar medidas, agora a possibilidade se estende aos sujeitos imputáveis, quando houver perigosidade. 5. Atualmente, o momento é de crise, não apenas conceitual. Diante da crise do sistema dualista tradicional tem sido sustentada a possibilidade de aplicação das chamadas “medidas complementares” à pena, com diferentes substratos teóricos, principalmente para autores de delitos sexuais graves. E dentro deste atual contexto é que surge espaço para novos entendimentos, os quais passam a apresentar novas formas de compreensão de conceitos jurídicos tradicionais, como o de bem jurídico, perigosidade, princípio da culpabilidade e princípio da proporcionalidade, conferindo-se novas leituras, inclusive e consequentemente, às finalidades das penas e das medidas, bem como quanto às suas relevâncias em cada caso. Algumas correntes são sustentadas à luz de garantias próprias de um Estado Democrático de Direito; já outras, desbordam de tais limites, podendo ensejar o desiderato puramente retributivista e o velho punitivismo, conduzindo a política criminal atual a um Direito Penal meramente simbólico, de autor ou do inimigo, como já demonstrado no segundo capítulo quando se tratou do contexto político-criminal vigente (2, II, B). De todo o modo, diante deste mesmo contexto, o qual se apresenta muito similar na maioria dos países denominados ocidentais, onde a tensão entre liberdades individuais e segurança pública é uma constante, tem-se esta alternativa das chamadas medidas de segurança complementares à pena, aplicáveis a indivíduos imputáveis considerados, ainda, perigosos. As chamadas “pós-penas ou pós-medidas” como aquelas medidas ficaram conhecidas, geralmente representam a possibilidade de um contínuo monitoramento sobre o indivíduo. Neste sentido, diversos países têm investido em novos institutos, sendo alguns estritamente inocuizadores, especialmente para os emblemáticos e midiáticos casos envolvendo delitos sexuais, graves ou não. A esta possibilidade de aplicação de medidas de segurança pós-pena, ou mesmo à possibilidade de aplicação de outros instrumentos, penais ou não, diante de sujeitos perigosos, inclusive imputáveis, denominamos como intercambialidade funcional, tema que será analisado na sequência. O mesmo conceito deve englobar, ainda, casos que, além de uma aproximação exacerbada entre penas e medidas, envolvem certo hibridismo já que, às vezes, penas contém em si mesmas verdadeiras “medidas de segurança “disfarçadas”, como aponta a doutrina no caso da chamada “Prisão Relativamente Indeterminada” portuguesa, que será estudada em 5, II. O mesmo ocorre diante de uma aproximação intensa entre mecanismos civis e penais a ponto de resultar obscuro o produto final, como é o caso do instituto norte-americano denominado “Civil 252 Commitment”, já brevemente anunciado, ou no caso do sistema alemão conhecido como “Custódia de Segurança”, o qual pretende ser considerado como uma medida de segurança, porém não apresenta as garantias próprias que o Direito Penal exige para tanto, conforme já se pronunciou o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). Os três modelos, paradigmáticos, serão estudados ao longo do capítulo 5, enquanto instrumentos que envolvem a privação de liberdade do delinquente sexual. Já no capítulo 6 o tema seguirá o mesmo, porém analisando-se instrumentos de direito comparado que envolvam a colocação do sujeito perigoso em liberdade, inclusive e principalmente, a medida de liberdade vigiada espanhola (6, VI). B. A intercambialidade funcional como tendência internacional de resposta ao problema e seus dilemas 1. Delineamentos gerais: a intercambialidade funcional e sua (i)legitimidade 1. Não bastam considerações utilitárias para justificar o emprego de medidas de segurança em geral, e principalmente no caso da chamada intercambialidade funcional, não há um conceito definitivo, mas sempre em construção, a partir de realidades que estão sendo constatadas desde ordenamentos jurídicos internacionais comparados, os quais se aproximam entre si diante da necessidade de segurança pública ante indivíduos perigosos, especialmente imputáveis, mormente quando o tema é a delinquência sexual grave. Assim, curar, tratar e ajudar são justificativas éticas apenas diante do indivíduo considerado inimputável ou semiimputável, assim como educar também o é, por exemplo, diante de menores. Porém, perante imputáveis perigosos, a justificativa há de ser outra. Como diz Cerezo Mir, talvez a justificativa seja, então e neste caso, meramente, sua condição de perigosidade associada à probabilidade de reincidência, o que justifica a medida.745 2. Diante de tantas incógnitas e dificuldades, o mero e desmedido utilitarismo demonstrado por Estados totalitários, onde seres considerados antissociais foram eliminados, incluindo-se aí os enfermos e os dissidentes políticos, demonstrou, em níveis aberrantes, ao ponto que se pode chegar quando são eliminados os limites éticos que toda intervenção do 745 CEREZO MIR, PG6, pp. 42-44. 253 Estado deveria ter em se tratando de direitos individuais. Neste sentido, diz Berdugo Gómez de la Torre: “Únicamente la clara comprensión de que jamás la sola utilidad social puede justificar la aplicación de un medio, sino sólo su admisibilidad ética, y, únicamente el claro reconocimiento de una limitación ética del poder estatal, nos lleva más allá del utilitarismo y nos resguarda de un Poder estatal totalitario.”746 Em que pese estas observações, é fato que a adoção de modelos embasados num Direito Penal de inimigo ou correlato vem inspirando sistemas penais, notadamente, o norteamericano e o europeu, destacadamente em três setores, em especial, a saber: legislação antiterrorista, criminalidade organizada e delinquência sexual, e o Direito Penal de permanência “evolui” para um Direito Penal de emergência, no dizer de Gomes Canotilho747, de ampla vocação meramente utilitária. 3. De outra banda, descartando-se uma vocação meramente utilitária, haveria que se questionar se seria possível um Direito Penal para além dos estreitos limites do Direito Penal da culpabilidade, enriquecido pela possibilidade, no terreno do Direito Penal da perigosidade, de somar medidas às penas. Mais do que isso: de executar esta combinação articulando ambos os instrumentos de forma legítima e denominando-se cada fator pelo seu próprio nome, sem vícios ou fraudes de etiqueta, em nome da segurança pública. A esta possibilidade denominamos intercambialidade funcional, a qual já vem ocorrendo em alguns países, de forma legítima ou não, conforme o conjunto de critérios que serão estabelecidos ao final deste capítulo, e, 4, IV, e que foram levados em conta para as análises individualmente procedidas nos capítulos vindouros, em relação a cada instituto que será comentado. O tema é atual e tem obtido o apoio de importante setor doutrinário,748 já que o Direito Penal é chamado a dar uma resposta na condição de mecanismo de controle social formal que é, ou seja, como ultima ratio, pois em muitos casos, ainda que cumprida a pena inicialmente imposta, o indivíduo imputável segue demonstrando não ter condições de vida em sociedade, expondo a risco a vida ou a dignidade sexual dos demais. E é preciso encontrar uma solução, não se podendo afirmar que o Direito Penal nada tem a ver com isto. 746 BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, Lecciones de derecho penal: PG2, p. 404. GOMES CANOTILHO, Estudo sobre direitos fundamentais, pp. 236-237. 748 ZUGALDÍA ESPINAR, RDPC 2009-1, pp. 2003 e ss.; GRACIA MARTÍN, en: GARCÍA VALDÉS/CUERDA RIEZU/MARTÍNEZ ESCAMILLA/ALCÁCER GUIRAO/MARISCAL DE GANTE (coords.), Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat, tomo 1, pp. 988 e ss.; GARCÍA ALBERO, RAD n. 6 2010; SÁNCHEZ LÁZARO, RP n. 17 (2006), p. 157; FEIJOO SÁNCHEZ, InDret n. 2 (2011), p. 12; ROBLES PLANAS, InDret n. 4 (2007), pp. 14 e ss.; BOLDOVA PASAMAR, CPJML n. 6 2009, p. 47. 747 254 4. Registre-se, desde logo, que não se sustenta aqui, nem haveria apoio doutrinário neste sentido, qualquer sanção penal com caráter pré-delitivo. Porém, diante de indivíduo que praticou crime sexual grave e que, após o cumprimento de certa pena, ainda que imputável, revela não apresentar as mínimas condições para viver plenamente em sociedade, sendo ainda perigoso, exige-se algumas reflexões. Conforme García Rivas, a vida em liberdade exige, de forma sinalagmática, a obrigação de assegurar cognitivamente o valor que sustenta a norma. Assim, se as pessoas almejam a liberdade, devem apresentar um modo de vida que permita aos demais concluir que serão fiéis ao ordenamento jurídico, gerando a “fiabilidade cognitiva”. Se isto não for espontâneo, a sociedade terá que procurar coercitivamente, concretizar esta fiabilidade cognitiva de outro modo, por exemplo, através de medidas de segurança complementares à pena e que são excludentes de determinadas atividades sociais.749 De acordo com este último entendimento, naqueles casos em que somente estabilizar o ordenamento não seja suficiente, até porque não é mais possível recuperar o bem jurídico destruído, o respaldo cognoscitivo ainda poderá ser necessário,750 já que se entende que este tipo de medida complementar também serviria para a manutenção da autoridade da norma, apoiando o próprio efeito da pena aplicada e cumprida. E tais medidas complementares à pena, enquanto mecanismos integrantes do conceito de intercambialidade funcional, poderão ou não ser consideradas instrumentos legítimos de controle social formal diante de um sistema maior, que é o próprio Direito Penal. 2. A intercambialidade funcional e as medidas complementares à pena 1. Conforme era referido sobre o dever sinalagmático exigido pela vida em sociedade, refere Feijoo Sánchez, que “hay que estar muy alejado de la realidad para no tomar en consideración que la seguridad también forma parte del fenómeno punitivo”,751 e neste sentido, qualquer restrição ou privação de liberdade baseada em outros fatores que não a mera proporcionalidade desta com o fato, significa outra coisa que não pena, sendo melhor chamar as coisas pelos seus nomes: “No se trata de responsabilidad por lo que se ha hecho sino de 749 GARCÍA RIVAS, RGDP n. 16 (2011), p. 14. JAKOBS, Günther. Derecho penal: PG2, p. 41. 751 FEIJOO SÁNCHEZ, La legitimidad de la pena estatal, pp. 149-150. 750 255 comprobar um pronóstico de peligrosidad criminal que, no nos olvidemos, tiene siempre um carácter incierto”. Como refere o mesmo autor espanhol, que não há um modelo definitivo de resposta jurídica: somente devemos ter claro que aqui não se está a falar de penas (reações estatais retrospectivas proporcionais à culpabilidade pelo fato), mas de outro tipo de reação estatal (prospectivas orientadas à perigosidade criminal). Neste sentido, muitas vezes quando o debate público clama por penas mais longas ou rigorosas, o que se pretende, na verdade, são medidas de segurança específicas e extraordinárias para um grupo bastante reduzido de delinquentes que produzem vitimizações severas, como é o caso de parte dos delinquentes sexuais graves. 2. O fato é que hoje, diante destas ponderações, a tradicional dicotomia responsabilidade-pena e perigo-medida já não mais responde a todos os problemas, especialmente o do sujeito imputável perigoso. Ainda, a segurança coletiva é uma questão prévia, inclusive, ao próprio sistema jurídico, como refere Cancio Meliá752, e a adoção das medidas complementares às penas surge como possibilidade para o enfrentamento da tensão. Para Sanz Morán, a medida de segurança é “un mecanismo jurídico-penal de respuesta al delito, complementario de la pena, aplicado conforme a la ley por los órganos jurisdiccionales, en atención a la peligrosidad del sujeto, con finalidad correctora o aseguradora”753 e menciona que não importam mais tanto as discussões sobre modelos dualistas ou monistas, mas a correta articulação entre penas e medidas, o que pode ser feito através de “distintos planteamientos”.754 Silva Sánchez também apoia este tipo de medida, pois sustenta que o risco gerado por sujeitos perigosos deva ser compartilhado entre todos, considerando apropriada uma distribuição, também do ônus, entre a sociedade e os indivíduos delinquentes,755 já que no dizer de Frisch, há uma “contraposición entre dos deberes de protección – de la seguridad colectiva y de los derechos de los individuos, que conciernen simultáneamente al Estado.” 756 Silva Sánchez757 conclui que, embora não seja da tradição jurídica, vale refletir que a sociedade não compartilha do entendimento de que a culpabilidade pelo fato define a fronteira absoluta quanto à distribuição de riscos entre indivíduos e aquela. Em outras palavras: não 752 CANCIO MELIÁ, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 76-77. 753 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 71. 754 SANZ MORÁN, en: BUENO ARÚS/KURY/RODRÍGUEZ RAMOS/RAÚL ZAFFARONI (dirs.), Derecho penal y criminología como fundamento de la política criminal, p. 1089. 755 SILVA SÁNCHEZ, en: ARROYO ZAPATERO/BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.)/NIETO MARTÍN (coord.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos, vol. II, pp. 709-710. 756 FRISCH apud SANZ MORÁN, RPC n. 4 A3 (2007), p. 16. 757 SILVA SÁNCHEZ, en: REDONDO ILLESCAS (org.), Delincuencia sexual y sociedad, pp. 148-149. 256 compartilha a tese que, cumprida a pena ajustada à culpabilidade, a sociedade deva assumir sempre todo o risco de um delito futuro cometido por um sujeito imputável. Encinar del Pozo758 entende que as chamadas medidas pós-penitenciárias ou pós-penais deveriam ser mais trabalhadas e debatidas com seriedade. Na mesma esteira de raciocínio, refere Sánchez García de Paz, que não há qualquer problema em se recorrer, nestes casos, à via das medidas, pois a legitimidade quanto à resposta à perigosidade do inimputável ou do semi-imputável não muda quando a perigosidade reside no imputável. Ademais, prossegue, se trataria de medidas sujeitas a limites máximos os quais, juntamente à função de asseguramento, contemplaria também a de tratamento.759 Na verdade, mecanismos assim, cada vez mais, são adotados em todo o mundo, apesar das diferentes sustentações teóricas, incluindo medidas de vigilância que se estendem para além da pena de prisão, como refere Sánz Morán: “[…] no existe apenas país alguno de nuestro entorno cultural que no prevea, con mayor o menor extensión, medidas de vigilancia tras el cumplimiento de la pena de prisión, especialmente para el caso de los autores de delitos sexuales o violentos com alto riesgo de reincidencia; medidas de vigilancia que descansan sobre dos pilares: a) obligaciones de notificación b)imposición de determinadas obligaciones que minimicen el riesgo de reincidencia.” 760 Também Sanchez Lázaro761 sugere como alternativa ao caso dos reincidentes mesmo imputáveis, uma Custódia de Segurança a ser cumprida após a pena e com regime de execução distinto desta, ou medidas não privativas de liberdade como o tratamento consentido com medicação antiandrógena, tratamento ambulatorial ou controles eletrônicos, enquanto os semi-imputáveis cumpririam medidas terapêuticas não limitadas pela duração da pena imposta. Feijoo Sánchez762 salienta que a maioria dos países do entorno já chegaram à conclusão que a culpabilidade pelo fato somada a medidas complementares orientadas à perigosidade do indivíduo compõe a melhor forma de lidar com o problema atual: “[…] la mayoría de los ordenamientos de nuestro entorno han llegado a la conclusión de que, frente al viejo debate de origen decimonónico entre pena orientada a la proporcionalidad por el hecho o a la peligrosidad criminal, la mejor solución es culpabilidad por el hecho más medidas complementarias orientadas a la peligrosidad si son excepcionalmente necesarias”. 3. A intercambialidade funcional é, pois, um modo de perceber, a partir da crise do sistema dualista tradicional, a forte aproximação entre penas e medidas que hoje está retratada 758 ENCINAR DEL POZO, en: NAVARRO GARCÍA/SEGOVIA BERNABÉ (dirs.), EDJ n. 127 (2007), p. 59. SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, en: CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ (coords.), Derecho penal del enemigo, vol. II, pp. 890-891. 760 SANZ MORÁN, en: MUÑOZ CONDE/LORENZO SALGADO/FERRÉ OLIVÉ/CORTÉS BECHIARELLI/ NUÑEZ PAZ (dirs.), Un Derecho penal comprometido, p. 1006. 761 SÁNCHEZ LÁZARO, RP n. 17 (2006), p. 155. 762 FEIJOO SÁNCHEZ, en: DÍAZ-MAROTO Y VILLAREJO, Estudios sobre las reformas del CP, p. 216. 759 257 em vários países, muitos dos quais de tendência abertamente monista, como Estados Unidos, Reino Unido, Portugal, enfim, com todas as críticas e dificuldades que o tema comporta. Até por estas semelhanças “los especialistas estadounidenses e ingleses ya no discuten las diferencias entre penas y medidas, pues ambas implican privación o restricción de derechos fundamentales”.763 Portugal, embora no continente europeu, através da Pena Relativamente Indeterminada, assumiu, sem dúvida, o perfil tendencialmente monista na medida em que trata, apenas como pena, tanto o conteúdo correspondente à culpabilidade, quanto aquele correspondente à perigosidade do imputável. A expressão “intercambialidade funcional”, no dizer de Albrecht,764 revela, pois, um diagnóstico do momento atual, quando além de penas e medidas, também certos conteúdos de Direito Penal e de Direito Civil acabam sendo, muitas vezes, mimetizados, em nome da busca incessante pela sensação de segurança almejada pela coletividade, como ocorre com o instituto do Civil Commitment norte-americano. Veja-se, como já mencionado neste capítulo, o tema da incapacitação civil, previsto pela “Disposición Adicional Primera”, do Código Penal espanhol, que prevê a possibilidade de que o Ministério Público inste, porém fora do âmbito penal, a incapacitação de alguém que tenha sido declarado isento de responsabilidade, conforme o artigo 20.1º e 2º, CP (art. 763 da “Ley de Enjuiciamiento Civil”), correndo-se o risco de converter a internação, caso seja mesmo desnaturalizada, em um “apéndice del sistema de medidas de seguridad”765, situação em que se terá lamentável fraude de etiquetas,766 verdadeiro exemplo de intercambialidade funcional sem legitimidade. A respeito da intercambialidade entre mecanismos civis e penais, Robinson,767 nos Estados Unidos, afirma que a lei não pode ostentar credibilidade moral sem uma clara distinção entre o civil e o penal, e lamenta o fenômeno atual de “enturbiamento” destas funções. Ziffer denomina este tipo de solução indiferenciadora como “meramente aparente”.768 4. Esta “aproximação” entre penas e medidas é crescente, sobretudo em termos de conteúdos e fins, sendo tratada por Jorge Barreiro769 como um câmbio de modelo penal na política criminal: passa-se de um modelo considerado garantista a um novo modelo penal de 763 BERISTAIN, Medidas penales, pp. 46-47. ROBLES PLANAS, RAD n. 9 (2007), p. 6. a partir de ALBRECHT, FS-Schwind, 2006 p. 203. 765 ASUA BATARRITA, BAJO FERNÁNDEZ, El pensamiento penal de Beccaria, p. 31. 766 SANZ MORÁN, RPC n. 4 A3 (2007), p. 2. 767 ROBINSON, A quién deve sancionarse y en qué medida, p. 213. 768 ZIFFER, Medidas de seguridad, p. 258. 769 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado Social y democrático de derecho, pp. 603 e seguintes. 764 258 segurança-cidadã, desvinculando-se do modelo ressocializador, com um retorno aos ideais de inocuização, acompanhado de um particular protagonismo das vítimas, num claro movimento expansionista penal impulsionado por demandas sociais de lei e ordem, especialmente diante da chamada delinquência perigosa, habitual, reincidente. E o caso dos delinquentes sexuais, hoje considerados tipicamente como inimigos, é um exemplo forte neste sentido. Cumpre registrar, como disse Garland, 770 que o ideal de reabilitação sofreu profundo declive nas sociedades ocidentais, se subordinando, hoje, aos objetivos da retribuição, incapacitação e gestão do risco. E na chamada “guerra aos delinquentes sexuais”, verifica-se essa mesma tendência em termos de inocuização, quase sempre independentemente da gravidade do ato cometido. Utiliza-se, frequentemente, um rótulo diferenciado (civil ou penal, de pena ou de medida), mas de forma a mascarar o objetivo real inocuizador, ao menos para fins de sustentação jurídica perante os tribunais. Já perante segmentos sensacionalistas da mídia ou da política, ocorre o contrário: a demonização do indivíduo, tornando-se o elemento central das políticas públicas sobre o assunto. Sem dúvida, os meios de comunicação desempenham papel fundamental ao trazerem a informação e possibilitarem o conhecimento, em tempo real, no mundo todo, de fatos importantes e que merecem ser debatidos, o que também representa uma função social relevante. Porém, isto carrega consigo enorme responsabilidade, responsabilidade esta que deve ser exigida tanto em relação ao delinquente sexual, como em relação às vítimas desses delitos.771 A única hipótese em que vislumbramos a possibilidade de intercambialidade funcional com legitimidade, é diante de um sistema dualista flexível, o que será aprofundado ainda neste capítulo. E neste sentido, a liberdade vigiada espanhola chama a atenção por negar esta possibilidade, reafirmando um modelo dualista, porém rígido e automático ou também dito de tendência monista no caso de indivíduos perigosos e culpáveis, ao prever pena e medida sem qualquer possibilidade de vicariedade na execução. Nos Estados Unidos, tal automatismo radical também ocorre, mas ao contrário. Expulsa-se o problema do Civil Commitment do Direito Penal fazendo-o submergir no âmbito do Direito Civil, de modo a fugir das “amarras” do sistema de garantias próprio do ramo mais gravoso do ordenamento, com o aval da Suprema Corte daquele país Já no caso da Alemanha, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), não mais vem aceitando o rótulo de “medida de segurança” para a Custódia de Segurança, a qual, na verdade, embora prevista com natureza de medida, vem sendo executada sem qualquer devoção às prerrogativas aplicáveis às medidas. Mais do que 770 771 Por todos, GARLAND, La cultura del control, 2005. CAPDEVILA/FERRER, Tasa de reincidencia penitenciaria 2008, pp. 9-236. 259 um problema de rótulos, há questões substanciais a serem analisadas em cada caso e que ferem direitos fundamentais. Veremos em 5, II, III e IV, quando da análise dos modelos comparados, que Estados Unidos, Alemanha e Portugal são paradigmáticos em termos de intercambialidade funcional, porém e em geral, apresentam propostas extremamente inocuizadoras, utilizando rótulos diferentes daquilo que são, a fim de lograr convencer à sociedade das suas boas intenções. Nestes termos, a intercambialidade funcional pode acabar validando e reafirmando o Direito Penal de Autor, castigando-se o indivíduo por “ser quem é”, de forma desmedida, descontrolada. Por isso mesmo, como refere Nuñez Paz,772 se por um lado necessitamos do Direito Penal, por outro, este deve ser, diante de sua força inerente, limitado: “El derecho penal es, desgraciadamente, irrenunciable como instrumento administrativo de regulación de la convivencia y su función consiste - tras los fracasos del resto de instancias sociales, familiares, etc.- en tratar de garantizar la conciliación y la estabilidad de la propia sociedad; pero al tratarse de una instancia altamente represiva, enérgica y aflictiva, debe ejercerse un control sobre ella, es decir, debe limitarse.” 5. Assim, a solução que se apresenta ao tema da intercambialidade funcional ilegítima, não livre de críticas, evidentemente, é a articulação entre penas e medidas sucessivamente, sendo as últimas com duração ligada à permanência da perigosidade, porém com limites máximos determinados por uma questão de segurança jurídica à luz de um Estado Democrático de Direito. Se o Código Penal não as fixar, o legislador deve fornecer critérios para isto, muito mais relacionados à perigosidade e à razoabilidade quanto aos prazos de tratamento possíveis, do que os vinculando à pena ou a seus referenciais. Isto, inclusive, permitiria uma execução flexível entre penas e medidas, cuja ordem poderia ser determinada casuisticamente, e cuja sucessividade, quanto à execução de ambos os instrumentos, seria analisada, a critério do magistrado, no tocante à conveniência, conforme os resultados obtidos. Encinar del Pozo,773 a respeito, sustenta, inclusive, a possibilidade de uma medida pós-pena de custódia para casos mais graves para até dez anos, porém observa que, caso a perigosidade cessasse antes, a medida deveria ser, imediatamente, extinta. Aliás, experiências internacionais apontam que em países como Dinamarca, Itália, San Marino, Eslováquia e Suíça774 nem mesmo se fixa prazo máximo de duração destas medidas. A possibilidade de 772 NÚÑEZ PAZ, en: MUÑOZ CONDE/LORENZO SALGADO/FERRÉ OLIVÉ/CORTÉS BECHIARELLI/ NUÑEZ PAZ (dirs.); NÚÑEZ PAZ (ed.; coord.), Un derecho penal comprometido, p. 909. 773 ENCINAR DEL POZO, en: NAVARRO GARCÍA/SEGOVIA BERNABÉ (dirs.), EDJ n. 127 (2007), p. 65. 774 ROBLES PLANAS, RAD oct 2007, p. 7. 260 compatibilização desta solução com o Estado Democrático de Direito será analisada logo na sequência, em 4, III, B. 6. Outra alternativa seria, então, agravar, ainda mais, as penas diante da perigosidade e reorientá-las, mais voltadamente, à prevenção especial, solução que hoje estaria em descrédito pela doutrina, como afirma Requejo Rodríguez775, e que poderia se configurar também na contestada fraude de etiquetas porque estaria sonegando o papel das medidas de segurança e do princípio da proporcionalidade em relação à perigosidade do indivíduo. Neste exato sentido, veja-se que a política criminal europeia, no caso de delinquência sexual, tem sido a de exasperação. 776 Na Espanha, por exemplo, em relação a sujeitos imputáveis e em termos de penas, verifica-se que incidem mecanismos importantes tanto na sua determinação, quanto na sua execução. Por um lado, temos a circunstância agravante de reincidência prevista no artigo 22, n. 8, do CP. A habitualidade e a perigosidade inviabilizam, de outra parte, hipóteses como a suspensão condicional da pena ou a substituição das penas privativas de liberdade por outras. Finalmente, a controvertida regra do artigo 78 CP pretende assegurar, no caso de sujeitos perigosos responsáveis por vários delitos, o cumprimento ‘efetivo’ das penas impostas até o limite correspondente estabelecido para o concurso real de delitos, no artigo 76 CP.777 Por sua vez, a LO n. 11/2003 passou a prever a exasperação da pena para acima do seu limite em alguns casos de multirreincidência.778 Sobre o tema, Cerezo Mir779 inclusive, chegou a defender a ideia de uma aplicação de medida, até mesmo, privativa de liberdade para depois da pena, como seria o caso de uma Custódia de Segurança, como sendo alternativa políticocriminal mais adequada e segura do que uma ampliação desmesurada em relação aos limites máximos de cumprimento das penas privativas de liberdade, na regulação do concurso real de delitos e diante, ainda, da possibilidade de introdução da prisão perpétua revisável, por ocasião das tentativas de reforma da legislação penal espanhola recentemente. No entanto, apenas a prisão permanente revisável vingou, inclusive para a hipótese de delito de “assassinato especialmente grave”, após um crime contra a liberdade sexual, como no caso do artigo 140, CP. Mesmo assim, a Espanha mantém uma das políticas penais mais duras da Europa Comunitária, sendo que hoje há em torno de 591.443 reclusos na União Europeia. O Código Penal de 1995, com suas mais de vinte reformas, de tendência marcadamente punitiva, 775 REQUEJO RODRÍGUEZ, InDret jul. 2008 p. 20. Ibidem, p. 3. 777 SANZ MORÁN, RPC n. 4 A (2007), p. 10. 778 Ibidem. 779 CEREZO MIR, RP n. 22 2008, p. 20. 776 261 como já afirmado, fizeram esta taxa subir de modo contínuo.780 Também interessa referir que a Espanha tem uma população penitenciária que fica bastante tempo privada da liberdade, quando comparado a outros países: enquanto, em média, o preso fica treze meses privado de liberdade na Espanha, a média na União Europeia é de oito meses. Esta tendência de endurecimento vem se mantendo nas reformas legais, tanto é que a liberdade condicional é alcançada apenas por cerca de 20%.781 Ainda, consigne-se que de todo este conjunto de informações, apenas 1,8% cometeu delito sexual, enquanto 58,9% cometeram, como delito principal para a pena base, crimes contra o patrimônio e 9,2%, crimes contra a pessoa.782 3. Compatibilização de uma proposta de intercambialidade funcional entre penas e medidas à luz do Estado Democrático de Direito: a via dualista flexível 1. Diante do quadro de Direito Comparado sucintamente exposto e que será trabalhado a seu tempo, pode-se constatar que penas e medidas vêm sendo pensadas e elaboradas com propósitos bastante distintos daqueles tradicionalmente estudados em Direito Penal e em Criminologia nos bancos acadêmicos de meados do século XX. Mesmo diante da tendência demonstrada de uma aproximação contemporânea entre os institutos, a ampla doutrina majoritária não sustenta o abandono de um sistema de penas e medidas e, ao menos enquanto as medidas estiverem sob o comando de um juízo criminal, será preferível seguir-se falando em “doble via”. Neste sentido Jakobs preleciona783 que, assim como a pena é uma reação frente a um desprezo à autoridade da norma, a medida é uma reação frente a um perigo de repetição, objetivado no ilícito típico. Diante disto, a qualidade de “doble via” se impõe diante da divergência entre a pena e aquilo que for necessário para o alcance da prevenção especial. Porém, o sistema dualista em sua vertente tradicional encontra-se superado, segundo Jorge Barreiro,784 para quem o mesmo é dificilmente justificável porque enseja uma dupla privação de liberdade (pena e medida privativas de liberdade) ao mesmo sujeito imputável perigoso caracterizada pela imposição sucessiva e ulterior de medida e pela ordem rígida de execução 780 CAPDEVILA/FERRER PUIG, Tasa de reincidencia penitenciaria 2008, pp. 1-237. GUDÍN RODRÍGUEZ-MAGARIÑOS, La nueva medida de seguridad postdelictual de libertad vigilada, p. 41. 782 CAPDEVILA/FERRER PUIG, Tasa de reincidencia penitenciaria 2008, pp. 1-237. 783 JAKOBS, Derecho penal: PG2, p. 38. 784 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado Social y democrático de derecho, p. 624. JORGE BARREIRO, en: COSTA ANDRADE/ ANTUNES/SOUSA (orgs.), BFD v. 2 n. 99 (2009), pp. 160 e ss. 781 262 preferencialmente pela pena.785 Como o citado autor refere, a Espanha, com o CP de 1995, passou de um criticável dualismo rígido para um dualismo de “tendência monista”, que é “abertamente monista”, como ele define, posto que condicionado pela regra geral prevista pelo artigo 6.2 CP, que segue em vigor mesmo com a reforma operada pela LO 1/2015, declarando que as medidas não podem apresentar maior duração que a pena abstratamente aplicável ao fato cometido, o que foi resultado de uma tentativa extremada garantista que, por uma lamentável confusão entre penas e medidas, condicionou a aplicação destas mais ao tipo de delito cometido e à pena prevista a este, do que ao “estado pessoal de perigosidade” do autor. 2. Assim, diante da crise do sistema dualista tradicional ou rígido, especialmente agravado pela imposição de uma liberdade vigiada como medida associada à pena de forma pura e simples, como decorrência de imposição legal, sem qualquer possibilidade de ajuste ao caso concreto, é de se comentar uma terceira via, que seria, na verdade, uma extensão do próprio sistema dualista, porém na sua modalidade vicarial. A execução no formato vicarial seria estendida a outras hipóteses não pensadas, inicialmente, para o formato em comento, o que consubstanciaria o modelo legítimo de intercambialidade funcional ou de dualismo flexível. Tal proposta, defendida por Jorge Barreiro,786 além de outros autores como Sanz Morán,787 consiste, na prática, numa ampla e legítima intercambialidade entre pena e medida privativa de liberdade no caso de imputável perigoso, em autêntico sistema vicarial quanto à execução. Entretanto, é primordial o respeito às diferenças essenciais entre ambas as consequências jurídicas do delito, cuja aplicação deve ser informada por uma ideia assecuratória que seja compatível com os propósitos de reinserção social e com o respeito à dignidade pessoal do sujeito afetado, o que difere completamente da proposta de um Direito Penal de Inimigo que trata o indivíduo como não-pessoa. Caso contrário, a acumulação de penas e medidas acabaria por agredir o princípio da proporcionalidade.788 Assim, necessárias algumas garantias fundamentais à execução da medida pós-pena como demonstração de respeito aos seus pressupostos de modo claro, formal e restritivo, assim como seria imprescindível uma revisão judicial periódica dentro de um limite máximo de duração, legal ou judicialmente fixado. Tal medida pós-pena poderia, em determinados e especiais casos, ser privativa de liberdade, como ocorre hoje com a Custódia de Segurança alemã, caso houvesse 785 JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 519. JORGE BARREIRO, en: COSTA ANDRADE/ ANTUNES/SOUSA (orgs.), BFD v. 2 n. 99 (2009), p. 133. 787 SANZ MORÁN, Las medidas de corrección y de seguridad en el derecho penal, p. 45. 788 Ibidem, p. 45. 786 263 necessidade. Deveria, ainda, respeitar o princípio da humanidade, bem como estar orientada à reinserção social do indivíduo, podendo, também, ser seguida de uma medida de liberdade vigiada, por prazo máximo determinado, quando fosse necessária.789 3. Tal sistema dualista flexível seria aplicável não apenas da forma como se encontra previsto hoje, ou seja, quando houver pena e medida privativas de liberdade, de acordo com o artigo 99 CP, o qual reza que o magistrado ou o tribunal ordene sempre o cumprimento da medida em primeiro lugar e desconte, posteriormente, o tempo de medida cumprido do tempo de pena a cumprir, mas também em situações envolvendo pena e medida não privativas de liberdade. Ademais, todos os princípios deveriam ser respeitados, como os da legalidade, jurisdicionalidade, intervenção mínima, além dos pressupostos da pós-delitividade e da perigosidade criminal, próprios de um Estado Democrático de Direito, já comentados neste mesmo capítulo, quando se tratou das medidas de segurança tradicionais. Assim, preferentemente, aplicar-se-ía a medida e, após, descontado o tempo respectivo de cumprimento daquela, a pena residual, com a possibilidade de se deixar de cumprir o restante desta se já houver sido alcançado o objetivo de reinserção social do imputável perigoso, nos termos do vigente modelo vicarial previsto apenas para as hipóteses privativas de liberdade. Refere Jorge Barreiro790 a respeito, que a proposta de dualismo flexível supera as incongruências acerca da concorrência entre penas e medidas atualmente existentes, como são aquelas geradas pelo monismo ou pelo dualismo tendencialmente monista, com a vantagem de se respeitar as diferenças entre penas e medidas e, ainda, permitindo buscar os objetivos pretendidos, sem desnaturalizar as diferenças entre ambos os institutos: “Esta solución, del dualismo flexible, es mejor que la del dualismo rígido, y supera también las otras opciones ofrecidas acerca de la concurrencia de penas y medidas de seguridad, como son las del monismo (pena o medida de seguridad, o sanción unitaria híbrida: legislaciones anglo-sajonas, belga, sueca…) o del dualismo tendencialmente monista (de asimilación de la medida de seguridad a la pena: legislación española y portuguesa), ya que el dualismo flexible respeta las diferencias básicas (fundamento, contenido y finalidad) entre ambas sanciones criminales y permiten conseguir en la práctica los mismos objetivos político-criminales que persiguen esas otras soluciones, sin desnaturalizar el auténtico sentido de la pena y de la medida de seguridad.” 4. Neste sentido, um intercâmbio ou substituição (vicarial) da pena pela medida de segurança privativa de liberdade, na fase de execução poderia e deveria ser admitido, pois muitas vezes, a pena determinada pela culpabilidade não apresenta condições de assumir as 789 790 JORGE BARREIRO, en: COSTA ANDRADE/ ANTUNES/SOUSA (orgs.), BFD v. 2 n. 99 (2009), p. 119. JORGE BARREIRO, en: MOLINA FERNÁNDEZ (coord.), MP, p. 519. 264 exigências de prevenção especial de perigosidade criminal.791 Sanz Morán defende tal tipo de resposta diante, especialmente, do problema do delinquente habitual perigoso de criminalidade média ou grave por esta mesma razão, ou seja, a pena não tem condições de assumir, com exclusividade, as distintas exigências derivadas da prevenção especial, a qual, em muitos casos, melhor se satisfaz com uma adequada combinação de penas e medidas. Sánz Morán não propõe uma acumulação entre estas duas formas de resposta ao delito, mas sim, como ocorre no caso dos semi-imputáveis e também no caso do tratamento do delinquente habitual perigoso, uma valoração da possibilidade de substituição recíproca entre aquelas, o que foi denominado, neste trabalho, como intercambialidade funcional, ou seja, uma aproximação entre medidas e penas, porém com todos os cuidados necessários para que não se transforme isto tudo numa fraude de etiquetas ou num hibridismo que signifique ruptura de garantias, e para que cada instituto seja respeitado nas suas peculiaridades. 5. Enfim, conforme referido e avançando um pouco mais, rumo à medida de liberdade vigiada espanhola, este dualismo flexível, que já aparece, de certo modo, atualmente, na legislação através do sistema vicarial quando da execução de pena privativa de liberdade somada à medida de segurança privativa de liberdade, poderia ser ampliado abrangendo medidas de segurança complementares à pena, tal qual a própria liberdade vigiada póspenitenciária citada, que é medida não privativa de liberdade. Ademais, poderia haver discricionariedade quanto à decisão judicial, conforme o caso, para a aplicação inicial da pena ou da medida. Importante, ainda, a possibilidade de cumprimento inicial da medida, tal qual no sistema vicarial, de modo a se resguardar todos os efeitos proveitosos com ela alcançados. Assim, não haveria a necessidade de um dualismo rígido, com a imposição da medida de liberdade vigiada pós-penitenciária de modo obrigatório ou automático conforme está prevista em lei. Ao contrário. Tal medida somente seria executada naqueles casos previstos em lei e se realmente fosse necessária, nem sempre. O tema da medida de liberdade vigiada póspenitenciária será aprofundado em 6, VI. 791 FRISCH Die Massregeln, apud SANZ MORÁN, RPC n. 4 A3 (2007), p. 5. 265 IV Conjunto propositivo de critérios verificadores de legitimidade aplicáveis aos institutos privativos e não privativos de liberdade 1. O Direito Penal deve primar por fins racionais, tornando possível a convivência social. O indivíduo deve responder pela infração que praticou, sempre respeitados os princípios penais e constitucionais endereçados, sobremaneira, à questão da dignidade humana.792 Entretanto, nada impede que haja outra forma de lidar com certos problemas como o da perigosidade, quando esta se sobrepõe. Assim, esta nova forma de perceber e de lidar com o problema do delinquente sexual grave, perigoso, imputável ou não, evidentemente, deve ser respeitosa com o atual estágio de avanço das ciências penais frente ao modelo de Estado Democrático e constitucional de Direito atual, não se olvidando que existem peculiaridades importantes acerca dos autores de delitos sexuais graves que justificam, eventualmente, uma preocupação diferenciada de ordem jurídico-penal. Diga-se o mesmo em relação a questões de política criminal, posto que as legislações adotadas em cada ordenamento jurídico refletem tomadas de posturas que, geralmente, traduzem posicionamentos de caráter mais focados num mero punitivismo inocuizador, desvinculado de qualquer sentido preventivo ou reabilitador, embora existam experiências que constituem exceções à regra. Como refere Díez Ripollés, não faltam autores que percebem neste direito da perigosidade “una seria alternativa al continuo incremento de las penas próprio de la expansión securitaria.”793 2. Assim, parte-se do pressuposto, nesta pesquisa, de que o Direito Penal não pode ser compreendido isoladamente. Alguns conhecimentos criminológicos e de política criminal são fundamentais, e por isto foram apresentados ao longo dos capítulos, para o desenvolvimento do tema, especialmente quando se fala em modelos envolvendo Direito Comparado. Como dizia von Liszt, o conceito de ciência penal total deve cumprir uma tríplice função: pedagógica, quanto à formação de futuros penalistas na formação penal e processual penal; científica, quanto à descrição de fenômenos que constituam seu objeto, isto é, delitos e penas; e ainda a uma função política, consistente no assessoramento do legislador na luta contra a delinquência, lembrando-se sempre de sua célebre afirmação, proferida em 1893, na Assembleia Geral da Associação Internacional de Criminologia, no sentido de que o Direito 792 793 JESCHECK/WEIGEND, PG5, pp. 29-30. DÍEZ RIPOLLÉS, La política criminal en la encrucijada, p. 188. 266 Penal é o limite infranqueável da Política Criminal.794 Neste mesmo sentido, Jescheck já dizia que o Direito Penal sem a Criminologia, é cego, e que a Criminologia, sem o Direito Penal, é inútil.795 É que o Direito Penal não pode ter como objeto, apenas a norma, até porque é a política criminal quem confere legitimidade a esta, afinal as normas estão, permanentemente, sujeitas à análise e à revisão crítica, desde a perspectiva da realidade social. Por isto, as informações provenientes de outras ciências que estudam os fenômenos sociais, como a Criminologia em especial, devem ser consideradas. Como referem Bustos Ramírez e Hormazábal Malarée,796 “debe haber, en consecuencia, una permanente interacción entre la criminología, la política criminal y el Derecho Penal”, como diria Gómez Martín,797 embora sejam elas todas disciplinas autônomas, não são desconectadas entre si: “Sin la Criminología, el Derecho Penal estaría alejado de la realidad, y sin el Derecho Penal, la Criminología carecería de un objeto y un punto de referencia fijos. Sin la Política Criminal, el Derecho Penal se convertiría en un mero proceso legislativo sin orientación alguna, y a una Política Criminal desconocedora de las posibilidades del Derecho Penal le faltaría el fundamento sobre el que debe construir-se. Y por último una Política Criminal sin Criminología flotaría en un espacio sin aire, del mismo modo que, sin perspectivas político-criminales, la Criminología correría el peligro de convertirse en una mera recopilación de hechos pertenecientes a la realidad empírica.” A respeito desta relação entre Direito Penal, Criminologia e Política Criminal, bastante importante e cada vez mais evidenciada na temática da delinquência sexual, verifica-se que nos últimos trinta anos passou-se de um discurso criminológico reabilitador para o discurso e práticas de controle do crime, num movimento de supervalorização do controle situacional e do retribucionismo, totalmente descrente daqueles ideais. Como já afirmado e reiterado, o tema do controle entrou, definitivamente, para a pauta eleitoral, numa visão populista de que o Direito Penal não funciona e que se faz necessário ampliar e fortalecer o controle social, num ideal securitário expansionista, fortemente alimentado pelo medo, senão pânico. As teorias do controle passaram, pois, a assumir uma visão bastante obscura sobre o indivíduo, percebendoo como maligno, refreável apenas por instrumentos e mecanismos de controle pesados e efetivos: “onde a velha criminologia encaminhava-se mais na direção do bem estar e da assistência, e onde a nova insiste no reforço dos controles e na aplicação da disciplina.”798 3. Portanto, em tese, toda esta preocupação jurídica com a questão do delito e do delinquente sexual é justificável no âmbito de um panorama legal e político-criminal. 794 VON LISZT, apud GÓMEZ MARTÍN, El derecho penal de autor, pp. 39 e 47. JESCHECK, TDP: PG, vol. I e II, p. 57. 796 BUSTOS RAMÍREZ/HORMAZÁBAL MALARÉE, Lecciones de derecho penal: PG, p. 42. 797 GÓMEZ MARTÍN, El derecho penal de autor, p. 75. 798 GARLAND, The culture of control, p. 15. 795 267 Evidentemente, há que se matizar, a cada instrumento que será analisado ao largo dos capítulos 5 e 6, quais são os limites daquilo que se pode entender como aceitável ou que se pode aperfeiçoar, bem como do intolerável. Neste sentido, importa verificar se é possível sugerir melhorias a fim de possibilitar a aplicação do mesmo, na condição de pena ou de medida, ou se é, de fato, o instrumento é insalvável, já que o panorama é bastante preocupante. Como diz Jorge Barreiro,799 “no soplan buenos vientos en la actualidad, comienzos del siglo XXI para cumplir con ese fundamental objetivo de la prevención criminal del delito ante la instrumentación del Derecho Penal como prima ratio”. O mesmo autor refere que estamos num tempo de expansionismo, de ressurgimento de Direito Penal de Autor, de um Direito Penal de várias velocidades, de crescimento de um punitivismo populista, objetivando uma segurança chamada cidadã, a qualquer preço, sacrificando garantias elementares do Estado de Direito, adulterando, quando não esquecendo, das “exigencias básicas de seguridad jurídica que nos han proporcionado tanto la perspectiva formal – proceso penal garantizador – y material – categorías dogmáticas del sistema penal - del Derecho Penal democrático.” Diante do quadro, em relação aos autores de delitos sexuais graves, especificamente, preocupa e se questiona se as penas e as medidas aplicáveis possuiriam efetividade ou real capacidade de promoção da reinserção social dos sujeitos a elas submetidos, ou se seriam apenas instrumentos inocuizadores ou retributivos, até porque, de forma ampla, existe uma demanda quase irreprimível pelo castigo ao invés da reabilitação. 800 Sem dúvida, estamos, pois, revivendo teses a favor da mera inocuização do autor de delito sexual grave, principalmente, se considerado perigoso. Por isso mesmo, há que se atentar para os riscos de eventuais violações a princípios essenciais do Estado Democrático de Direito,801 intercambiando-se etiquetas, como se ao fim e ao cabo, tudo fosse igual. 4. Diante dos instrumentos que foram escolhidos para serem analisados, principalmente aqueles de Direito Comparado dos Estados Unidos, Portugal e Alemanha, além da Espanha, será percebido, após a leitura do conjunto de critérios propostos, que restarão evidentes antinomias entre o que se constata e o que se propõe. Por isto, relevante a leitura de Garland, pois conecta o assunto à sociedade atual, dita globalizada ou de “modernidade tardia”, como ele denomina: uma sociedade marcada pela insegurança, riscos e desafios do controle social, na qual as leis do mercado, cada vez mais ambicioso e em busca 799 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado Social y democrático de derecho, pp. 599-660. 800 REDONDO ILLESCAS/SÀNCHEZ-MECA/GARRIDO GENOVÉS, Psicothema v. 14 (2002), pp. 164-172. 801 SANZ MORÁN, RPC n. 4 A3 (2007), p. 8. 268 de lucros e de maiores vantagens competitivas, com as consequências que isto apresenta, faz com que sentimentos de ressentimento, conflito e deterioração de identidades acirrem os ânimos. Afora isto, as mudanças bruscas nas configurações familiares, o crescimento dos subúrbios segregados, o império da televisão e da comunicação de massa, o declínio das comunidades tradicionais, a mudança dos padrões de autoridade, o crescimento da criminalidade, novos padrões de isolamento e de alienação, enfim, incentiva perspectivas mais reacionárias, como aparecem nos modelos paradigmáticos escolhidos de tratamento jurídicopenal da delinquência sexual, grave ou não. Neste contexto, o problema do crime deixou de ser visto no plano da solidariedade e dos direitos, mas como uma fratura da ordem social. Como refere Garland802 em sucinta reflexão inspiradora antes de descrever-se o conjunto de critérios de análise quanto à legitimidade dos institutos, “a história que eu proponho é motivada, não por uma preocupação histórica para compreender o passado, mas por uma preocupação crítica com o nosso presente.” 5. Assim, vale ressaltar que este endurecimento punitivo sem precedentes, de grave retorno às teses inocuizadoras e de recuperação de um Direito Penal de inimigo, leva à negação da categoria de pessoa e à flexibilização extrema de garantias penais e de categorias dogmáticas de imputação e de responsabilidade penal, colocando em risco a dignidade humana. Tal contexto de risco iminente de ruptura de garantias já vem ocorrendo, como demonstraremos através dos institutos que vêm sendo aplicados na contemporaneidade, exigindo do legislador penal contemporâneo que a legitimidade de um sistema de sanções penais somente possa encontrar suas raízes em uma Política Criminal racional e respeitosa com os postulados do Estado Social e Democrático de Direito.803 Assim, nos termos de Jorge Barreiro,804 o mais importante não é a finalidade utilitária de uma medida de segurança, qualquer que seja, nem a obtenção da tranquilidade ao maior número de pessoas, nem o princípio cristão de caridade, mas sim o dever de caráter jurídico-constitucional que pesa sobre o Estado no sentido de remover os obstáculos que se opõem ao pleno desenvolvimento da personalidade humana. Pode-se afirmar que é um entendimento que consiste em respeitar as garantias, tanto dos imputados como das vítimas, pois ambos precisam coexistir para que o processo penal tenha equidade e para que o poder punitivo do Estado tenha legitimidade. A justificativa externa ou política do Direito Penal deve ocorrer através de uma racionalização 802 GARLAND, The culture of control, p. 2. JORGE BARREIRO, en: COSTA ANDRADE/ANTUNES (orgs.). BFD v. 2 n. 99 (2009), pp. 103-170. 804 JORGE BARREIRO, Las medidas de seguridad em el derecho español, p. 84. 803 269 quanto à quantidade e qualidade dos castigos, algo que se verifica com dificuldade diante da temática da delinquência sexual; a justificativa interna, diversamente, através do respeito aos direitos fundamentais de todos, inclusive e principalmente pelas autoridades públicas. E neste sentido, a proposta atende ao que propõe o conceito de garantismo, 805 mas não de um “hipergarantismo”, expressão utilizada para definir entendimentos inflexíveis e radicais diante de alguns princípios importantes quando da análise de iniciativas de controle social, no dizer de Ciani.806 Na verdade, o garantismo corretamente entendido representa uma teoria crítica ou uma filosofia política do Direito Penal, ao tratar de formas dentro de um sistema acusatório que legitima o poder de punir, gerando maior confiança neste mesmo sistema. Isto não apresenta qualquer relação com a efetividade (ou sua ausência) do sistema de Justiça Penal em si mesmo. Na verdade, o garantismo nem deveria ser considerado como modelo a fazer frente à proposta de segurança cidadã, mas sim, um baluarte “frente al posible abuso de los poderes públicos al desarollar tales programas”807 (político criminais). 6. Passemos, pois, à pretensa proposição de alguns critérios bastante pragmáticos, os quais, evidentemente e considerando-se todo o conteúdo teórico já apresentado, possuem respaldo principiológico, podendo ser analisados como referencial para a análise da legitimidade de penas e medidas de segurança, doravante denominados como “instrumentos”, eis que variam de adjetivação conforme o ordenamento, e que seguem previstos nos próximos dois capítulos. Esta é, talvez, a parte mais delicada da presente pesquisa, pois se arrisca a todo o tipo de crítica. No entanto, tem a intenção de, efetivamente, buscar compreender melhor e, inclusive, propor ideias para o aperfeiçoamento dos institutos, quando possível, além, é claro, de verificar a ocorrência da chamada intercambialidade funcional. Não se pode concordar que seja a melhor hipótese refugiar-se longe do palco dos fatos, simplesmente criticando e desqualificando boas tentativas, no dizer de Díez Ripollés.808 Tais observações são relevantes porque entendemos que se deve ter muita cautela na abordagem dos institutos que serão apresentados, individualmente. Todos são criticáveis, mas a maioria também tem seus méritos. Portanto, seria irresponsabilidade, simplesmente, contestar a tudo sem refletir sobre a possibilidade, real e concreta, acerca das condições de legitimidade e de legitimação de cada qual no Direito Penal que, mais do que se deseja, é possível ser alcançado, na maioria dos casos, como será demonstrado. Assim, para cada qual previsto nos próximos dois capítulos, 805 CIANI, ACCSP año 5 v. 10 (2013), pp. 10 e ss. Expressão referida por CIANI, ibidem, p. 9. 807 DÍEZ RIPOLLÉS, La política criminal en la encrucijada, p. 123. 808 Ibidem, pp. 103-104. 806 270 faremos, a seu tempo, uma breve análise ao final, levando em conta os critérios de legitimidade a seguir propostos num total de cinco para as hipóteses privativas de liberdade e de outros, em número variado, para as não privativas, conforme o caso. Observe-se que os critérios de verificação de legitimidade expostos dividem-se de forma diversa para os instrumentos privativos e não privativos de liberdade porque na primeira modalidade há certa similitude em termos de pressupostos e de discussões acerca de garantias e requisitos. No caso dos instrumentos não privativos, foram reunidas experiências muito diversificadas, sendo então necessária a criação de um rol mais específico e diferenciado que contemplasse tamanhas peculiaridades. De qualquer sorte, em ambos os casos será destinado um campo para observações pessoais quanto às recomendações para o aperfeiçoamento do instituto, caso possível. Observe-se que o catálogo não é taxativo, podendo ser revisado e aperfeiçoado. Assim, em cada instituto ou instrumento que será comentado nos capítulos vindouros, serão mencionados, em apartado final, os critérios verificadores correspondentes, acompanhados de seus resultados e de sugestões para o aperfeiçoamento do mecanismo, quando possível. Critérios verificadores de LEGITIMIDADE / PROPOSTA PARA LEGITIMAÇÃO aplicáveis aos instrumentos privativos de liberdade previstos no capítulo quinto. 1. Natureza jurídica do instituto (se mecanismo de direito civil ou penal; se medida de segurança ou pena) e existência de qualquer tipo de discussão acerca deste etiquetamento, para fins de verificação quanto à intercambialidade funcional; 2. Existência da observância do respeito à dignidade humana considerando os seguintes princípios e pressupostos aplicáveis à pena e à medida, quando possíveis e resguardadas suas especificidades: legalidade, anterioridade, jurisdicionalidade, pósdelitividade, nos termos já estudados neste trabalho e, considerando-se ainda, a evitação da finalidade estigmatizadora e meramente inocuizadora, sem qualquer propósito reabilitador. 3. Execução penal em local adequado, seguro e com servidores capacitados, sob supervisão judicial, mediante planos individualizados de tratamento terapêutico, quando cabível; 4. Fixação judicial de pena com prazo máximo de duração determinado; Fixação judicial de medida de segurança com prazo máximo de duração determinado, sendo este resultante de previsão legal taxativa ou não, porém revisável judicial e periodicamente, podendo ser extinta a qualquer momento diante da cessação de perigosidade; 271 5. Padronização metodológica quanto às exigências de diagnósticos de perigosidade e de prognósticos de reincidência, quando cabíveis; 6. Sugestões de aprimoramento do instituto em apreço. Critérios verificadores de LEGITIMIDADE / PROPOSTA PARA LEGITIMAÇÃO aplicáveis aos instrumentos não privativos de liberdade previstos no capítulo sexto. Outpatient Civil Commitment 1. Avaliação sucinta quando à proposta terapêutica; 2. Consideração de hipótese de intercambialidade funcional; 3. Sugestões para o aprimoramento do instituto. Castração Física e Tratamento Hormonal Antiandrógeno (THA) 1. Avaliação da compatibilidade da castração física no Estado Democrático de Direito; 2. Avaliação do THA como proposta terapêutica; 3. Análise das exigências quanto ao consentimento; 4. Consideração de hipótese de intercambialidade funcional; 5. Sugestões para o aprimoramento do instituto. Registros Públicos e Notificações à Comunidade 1. Análise do princípio da dignidade versus utilidade do instrumento; 2. Consideração de hipótese de intercambialidade funcional; 3. Sugestões para o aprimoramento do instituto. Monitoramento Eletrônico 1. Análise de questões principiológicas; 2. Consideração de hipótese de intercambialidade funcional; 3. Sugestões para o aprimoramento do instituto. Liberdade Vigiada 1. Análise quanto aos pressupostos; 2. Análise de questões pragmáticas; 3. Análise de questões especiais quanto à execução pós-penitenciária; 4. Consideração de hipótese de intercambialidade funcional; 272 5. Sugestões para o aprimoramento do instituto. 273 §5 INSTITUTOS DE DIREITO COMPARADO PRIVATIVOS DE LIBERDADE PARADIGMÁTICOS DE INTERCAMBIALIDADE FUNCIONAL DESTINADOS AO AUTOR DE DELITO SEXUAL GRAVE “La cárcel es el termómetro más fiable de la humanización de la sociedad. Cuanto más considerable sea el trato hacia los seres más desprestigiados del grupo, más humana es la sociedad que les da vida. Por el contrario cuanto más tiránicos sean los gobernantes, más terroríficas serán sus cárceles.” Gudín Rodríguez-Magariños809 I. Apresentação 1. Claro está que o problema da responsabilização penal dos autores de delitos sexuais graves no mundo contemporâneo ocidental atravessa fronteiras e dispõe de um leque muito variado de opções de enfrentamento. Conforme os diferentes pontos de partida pode-se sustentar desde as mais singelas às mais drásticas sanções a estes indivíduos, especialmente quando considerados perigosos, pois a sociedade atual reclama proteção contra este tipo de conduta. Na busca pela segurança pública, liberdades e direitos fundamentais são, muitas vezes, sacrificados. Mas até que ponto a sociedade pode abrir mão destas garantias em nome de políticas públicas que levam, até mesmo, à incapacitação de indivíduos em nome de uma segurança que é, em grande parte, uma ilusão maximizada por algums discurso políticodemagógico sem qualquer respaldo científico? 2. O certo é que cada vez mais o complexo sistema jurídico-político-social deve responder, com cautela e zelo, pela segurança pública sem descuidar das liberdades e garantias individuais, buscando o ponto de equilíbrio nesta difícil equação, especialmente quando o tema é delinquência sexual, tema que se presta a muitas polêmicas desde sempre. Assim, passamos a apresentar os principais institutos contemporâneos que envolvem grande discussão em sede de sanções aplicáveis a autores de delitos sexuais graves. E destacamos a gravidade dos delitos como requisito a ser observado, posto que nestes três modelos paradigmáticos escolhidos de Direito Comparado, há a exigência de que sejam destinados a tais casos apenas, face à gravidade das privações de liberdade que ensejam. Neste caso, se tais instrumentos utilizassem, efetivamente, os critérios apresentados em 2, III, C, poderíamos afirmar que seriam destinados aos crimes sexuais com violência, ou então nas hipóteses de abuso de vulneráveis, entendendo-se assim, as agressões sexuais, os abusos contra menores de dezesseis anos e os abusos contra quem não pode oferecer resistência, além é claro, da 809 GUDÍN RODRÍGUEZ-MAGARIÑOS, Cárcel electrónica, p. 177. 274 exploração sexual infanto-juvenil. Porém, como estamos falando em Direito Comparado, observações distintas, se houverem, serão mencionadas em cada caso. Foram escolhidos três modelos como paradigmas de Direito Comparado: a Pena Relativamente Indeterminada portuguesa (PRI), o instituto do Civil Commitment norte-americano e a Custódia de Segurança alemã. Face ao atual estágio de desenvolvimento bibliográfico, fruto da tradição e da história que os temas apresentam, inevitável que os dois últimos temas sejam trabalhados com muito maior profundidade do que o primeiro, porém em todos eles será analisada a questão da intercambialidade funcional e os requisitos para a verificação de legitimidade do instituto, acompanhada de sugestões, conforme já apresentado em 4, IV. II. A Pena Relativamente Indeterminada portuguesa (PRI) A. Considerações gerais e alguns aspectos históricos e constitucionais acerca da PRI 1. O enquadramento do tema à luz do Direito Constitucional português 1. Como o foco deste quinto capítulo versa sobre a análise do tratamento jurídico de indivíduos imputáveis, ainda perigosos, autores de delitos sexuais graves, revela-se essencial compreender o modo como o CP português aborda este tema, apresentando a denominada Pena Relativamente Indeterminada (PRI), instituto introduzido no CP português em 1982, e que não se confunde com a “pena indeterminada”, esta abandonada e proibida pela Constituição, além de criticada pela doutrina. O tema da crise do sistema dualista já vem trabalhado pela doutrina portuguesa desde os anos 30 do século XX, desde então se sugerindo a vicariedade na execução das penas e medidas privativas de liberdade, através da PRI, o que torna o sistema português um sistema não puramente monista, mas tendencialmente monista.810 A fim de se fazer alguns esclarecimentos sobre a Pena Relativamente Indeterminada portuguesa, necessário antes iniciar-se por algumas considerações de ordem constitucional, além de aspectos relacionados ao sistema português de medidas de segurança. A partir disto, então, se passará, objetivamente, à análise da denominada PRI, bem como da intercambialidade funcional que aqui se verifica. 810 FIGUEIREDO DIAS, PG2, tomo I, p. 105. 275 2. Segundo Figueiredo Dias,811 a Constituição portuguesa reza no artigo 30 que não se admitem penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas de liberdade de caráter perpétuo ou com caráter ilimitado ou indefinido. Reza ainda, quanto às medidas, que nos casos de grave anomalia psíquica e na impossibilidade de terapêutica em meio aberto, poderão aquelas que forem privativas ou restritivas de liberdade serem prorrogadas sucessivamente enquanto tal estado se mantiver, mas sempre mediante decisão judicial. Figueiredo dias812 afirma, ainda, que o sistema de revisão judicial, embora indispensável, por si só não é apto a assegurar a inteira constitucionalidade do sistema de medidas tal qual preconizado pela Constituição, eis que há que se analisar a presença de grave anomalia psíquica e a impossibilidade de terapêutica em meio aberto para que tais prorrogações possam ter lugar. 3. O novo CP de 1995 melhorou bastante vários aspectos tratados antes, pelo CP português de 1982. O princípio da proporcionalidade, por exemplo, refere que a medida somente pode ser aplicada se proporcional à gravidade do fato e à perigosidade do agente, valendo como regra geral aplicável a todas as medidas. Faltou apenas a referência à gravidade dos fatos que o sujeito viesse, previsivelmente, a cometer no futuro. Ainda, inovou quanto à fixação de limites máximos de duração para as medidas privativas de liberdade em geral, convergindo ao sistema espanhol, ou seja, vinculando o prazo ao correspondente tipo de crime cometido pelo indivíduo.813 Diferentemente do CP espanhol, no entanto, o CP português prevê agora o prazo mínimo de duração da medida privativa de liberdade de três anos, a fim de atender a critérios de prevenção geral de integração, desde que o delito tenha sido contra a pessoa ou de perigo comum, puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, salvo se a colocação em liberdade se revele compatível com a ordem jurídica e a paz social. Em Portugal, a internação não pode, mesmo diante da perigosidade do inimputável, quando atingido o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido, ultrapassar este limite, nos termos do artigo 92.2 CP português. Entretanto, tal regra possui uma exceção, a qual está prevista no artigo 92.3, CP. Quando o inimputável tiver cometido delito que corresponda à pena superior a oito anos e, ainda, o perigo de que venha a praticar novos fatos da mesma espécie seja de tal magnitude que a colocação em liberdade não seja recomendável, 811 FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português1: PG II, p. 472. Ibidem, p. 474. 813 JORGE BARREIRO, RPCC n. 11 (2001), pp. 588-589. 812 276 a internação poderá ser prorrogada por períodos sucessivos de dois anos até se verificar a cessação da perigosidade. E neste caso, portanto, a medida poderá chegar a ser perpétua. Maia Gonçalves814 não vislumbra qualquer inconstitucionalidade, neste sentido, pois a prorrogação se dá por nova decisão judicial, a qual incidirá sobre um comportamento já diferente daquele que originou a primeira decisão pela internação. Admite-se, em qualquer hipótese, a revisão judicial, sempre que se aponte qualquer justificativa para a cessação da internação. Trata-se de revisão obrigatória e judicial, porém resguardado o prazo mínimo de internação, de dois anos, ou sobre a decisão que a tiver mantido, nos termos do artigo 93. Deste modo, o CP português ajusta seu texto à Constituição e, ainda, permite satisfazer às exigências de prevenção geral de integração e especial, razão de tutela da confiança comunitária nas normas das medidas, sempre sob o controle judicial, como refere Jorge Barreiro.815 4. Conforme Maia Gonçalves816, em relação à nova redação do Código Penal português, reformado em 1995, o mesmo menciona alterações importantes em relação ao CP anterior, de 1982. No tocante à Pena Relativamente Indeterminada, quando o artigo 83 exige como pressuposto para a PRI a aplicação de prisão “efetiva”, visou evitar casos em que a pena de prisão tivesse sido suspensa ou substituída por outras, como eventual multa. Também é interessante mencionar que o legislador declarou, expressamente, que qualquer crime anterior deixa de ser relevante se entre a sua prática e a do delito seguinte houver transcorrido mais de cinco anos, tendo sido declaradas irrelevantes as medidas processuais cautelares privativas de liberdade que eventualmente tenham sido executadas no período, como prisão preventiva, por exemplo. Por fim, de se mencionar, ainda, que no mesmo artigo 83, quando o legislador definiu os pressupostos para a aplicação da PRI, referiu a prática de crime doloso ao qual se devesse aplicar concretamente pena de prisão efetiva por mais de dois anos, desde que tivessem sido cometidos, anteriormente, dois ou mais crimes dolosos, sendo que a cada qual tenha sido aplicada prisão efetiva por mais de dois anos. Diante do necessário questionamento, Figueiredo Dias,817 o qual participou da Comissão de Revisão do CP, avisa que não é necessária a condenação prévia, em que pese seu entendimento ser minoritário, como ele próprio admite. Alega que não há impedimento de que, em momento posterior, mas no mesmo processo, o tribunal leve em conta tais crimes para (em vez de proferir a pena do concurso) aplicar, eventualmente, uma PRI, e diz: 814 MAIA GONÇALVES, CP português14, p. 337. JORGE BARREIRO, RPCC n. 11 (2001), p. 590. 816 MAIA GONÇALVES, CP português14, pp. 276-281. 817 FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português1: PG, tomo II, pp. 566-567. 815 277 “Se a PRI devesse caber apenas aos casos em que houve condenações anteriores, deixaria ela de constituir um instituto destinado a acorrer ao problema da habitualidade, para se restringir ao fenômeno da multirreincidência. (...) Deixaria, por outras palavras de ser o que é: um instituto fundado em uma especial perigosidade do delinquente, para passar a ser, tal como a reincidência, mais um instituto fundado (primacialmente) na culpa agravada do agente.” 5. A PRI é aplicável para delinquentes perigosos imputáveis, o que significa dizer que abrange duas categorias: os delinquentes por tendência (grave e menos grave) e os alcoolistas e equiparados, categorias com pressupostos distintos. Não comentaremos a categoria referida por último pela ausência de relação direta com o tema ora enfocado neste trabalho. A PRI possui apenas a definição de pena determinada mínima; já a pena máxima, relativamente indeterminada, possui um patamar máximo, porém é calculada de uma forma mais complexa, assunto que não pretendemos adentrar.818 É que não se pode, a priori, definir um prazo exato de duração quando o tema é perigosidade, conforme Maia Gonçalves,819 devendo ser fixado um patamar máximo, porém sendo devolvido o tema ao juízo de execução para, depois, delimitá-lo com exatidão. Neste sentido, se acredita evitar a dupla aplicação de privação de liberdade pelo mesmo fato, ao mesmo sujeito, indo ao encontro do que entende a mais moderna psicologia e demais ciências penitenciárias. Ainda, o instituto teria sentido altamente pedagógico e reeducador, pois estimularia a autorresponsabilidade do delinquente na busca de sua própria reinserção social. Logicamente, todas as etapas incluem os elementos fornecidos pelos serviços que compõem a administração penitenciária, a qual tem uma função ativa e responsável pela ressocialização do delinquente, exigindo, sempre, o acompanhamento judicial como garantia. Portanto, desde o primeiro momento, já se produz, junto ao delinquente, um plano individualizado a ser seguido, passível de acertos e modificações, conforme os resultados que forem se apresentando. A equipe responsável deve emitir boletins periódicos informando ao magistrado a situação concreta daquele indivíduo a fim de que o Poder Judiciário possa decidir sobre eventuais benefícios. Assim, a PRI, nesta concepção,820 não é uma forma normal de punição do delinquente, mas, antes disso, uma reação com destinatários bem definidos, quais sejam aqueles que possuem uma personalidade marcada pela reiteração criminosa em crimes dolosos de certa gravidade, ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes. Por fim, afasta a agravante da reincidência, conforme o artigo 76.2, CP prevê. Disto isto, cumpre referir que neste apartado serão apresentadas então, as categorias e pressupostos da PRI, a colocação em liberdade do sujeito e os problemas decorrentes quanto à controversa natureza jurídica do instituto, a PRI e sua relação com o 818 FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito penal português1: PG, tomo II, pp. 556 e ss. MAIA GONÇALVES, CP português14, pp. 279 e ss. 820 Ibidem, p. 281. 819 278 tema da intercambialidade funcional, e por fim, a verificação de critérios de legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento. 2 Categorias e pressupostos da PRI a. O delinquente por tendência grave 1. Reza o artigo 83.1 CP português821 que, aquele que praticar crime doloso a que devesse aplicar-se concretamente prisão efetiva por mais de dois anos e tiver cometido anteriormente dois ou mais crimes dolosos, a cada um dos quais tenha sido, ou seja, aplicada prisão efetiva também por mais de dois anos, é punido com uma pena relativamente indeterminada, sempre que a avaliação conjunta dos fatos praticados e da personalidade do agente revelar uma acentuada inclinação para o crime, que no momento da condenação ainda persista. Trata-se, pois, do caso do delinquente por tendência grave e, sem dúvida, abrange, em tese o caso de delitos sexuais graves conforme o conceito já apresentado em 2, III, C. O artigo 83.2 CP português refere que a Pena Relativamente Indeterminada tem um prazo mínimo correspondente a dois terços da pena de prisão que concretamente caberia ao crime cometido e um máximo correspondente a esta pena acrescida de seis anos, sem exceder a vinte e cinco anos no total. Quanto ao artigo 83.3, em que pese algumas observações já tenham sido feitas anteriormente, o mesmo diz que qualquer crime anterior deixa de ser tomado em conta, para efeito do disposto no n. 1, quando entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o período durante o qual o agente cumpriu medida processual, pena de prisão ou medida de segurança privativas da liberdade. b. O delinquente por tendência menos grave 1. Já o delinquente por tendência menos grave é aquele que pratica um crime doloso a quem se deva aplicar, concretamente, pena privativa de liberdade, desde que tenha já cometido quatro crimes dolosos e que em cada um destes tenha sido aplicada, igualmente, pena de prisão. Nos casos de delinquente por tendência menos grave, a regra é a mesma 821 ANTUNES, CP14, pp. 53-54. 279 referida no caso de delinquente por tendência grave, porém a pena máxima é acrescida de quatro anos, ao invés de seis anos, e sem exceder a vinte e cinco anos no total (artigo 84.2 CP português, respectivamente).822 2. Apesar de a lei falar em certo número de crimes e de certos tipos de crimes, é necessária uma avaliação conjunta dos fatos praticados e da personalidade do agente para analisar se revelada acentuada inclinação para o crime que no momento da condenação ainda persista. Isto é válido para todas as categorias de delinquentes sujeitas à PRI. Assim, deve haver uma alta probabilidade de repetição, mas a lei não exige que a repetição envolva fatos de determinada gravidade. Porém, logicamente, não se deve aqui aceitar a bagatela ou a pequena criminalidade como ensejadoras da PRI, pelas razões já expostas, ou seja, pelo sentido político-criminal do instituto.823 Também vale registrar como marca geral, que não importa se a tendência foi adquirida por habitualidade ou se é inata, de modo endogenamente condicionado (doenças fortuitas, deficiências da vontade, etc.). A PRI está legitimada mesmo face a delinquentes por tendência os quais devam ser considerados imputáveis diminuídos. Assim, só se admite como pressuposto o caso em que a pena de prisão tenha sido efetivamente aplicada, e não, por exemplo, quando uma pena substitutiva tenha intervindo, caso em que uma PRI não seria necessária. Somente com a aplicação de pena de prisão anterior é que se justifica dizer que a socialização falhou e, por isto mesmo, é cabível um regime mais exigente e pesado como é o caso da PRI. B. A colocação em liberdade do sujeito e os problemas decorrentes quanto à controversa natureza jurídica do instituto 1. Resulta da execução da PRI relevante questão acerca da colocação em liberdade do indivíduo a ela submetido. As confusões aqui geradas são frutos deste caráter híbrido de pena e medida. Oficialmente, a PRI é pena. Então a liberdade condicional deveria seguir as mesmas determinações quanto à pena, lembrando-se que o condenado pode aceitar ou não as condições para lograr alcançar sua liberdade. Entretanto, sabe-se que a partir do tempo da pena calculado concretamente pelo magistrado, correspondente à medida da culpa do sujeito, o restante a cumprir é verdadeira medida de segurança. Neste último caso, a colocação em liberdade do indivíduo é diferenciada. Qual o rumo a seguir então? 822 823 ANTUNES, CP14, p. 854. FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português1: PG, tomo II, p. 573. 280 2. A liberdade condicional, etapa de execução penal, em geral, possui a função preventivo-especial positiva (reinserção social), daí a importância do consentimento do condenado quanto às condições impostas para alcançar a sonhada liberdade; porém na PRI há que se estabelecer a medida da pena, considerando-se não apenas os aspectos relacionados a ela, mas também aspectos relacionados à perigosidade e à imposição da medida de segurança, e nesta última parte, justamente por ser um instituto híbrido, pode ser discutível contar com a vontade ou com o consentimento do condenado. De todo o modo, o artigo 90 do CP português impõe que a liberdade concedida será condicional. Assim, dois meses antes de cumprido o prazo mínimo de duração da PRI, a administração penitenciária remete ao magistrado relatório e parecer sobre a concessão de liberdade condicional. A liberdade condicional dura pelo mesmo prazo que falta para atingir o limite máximo da pena, mas não pode superar os cinco anos, nos termos do artigo 90.2. Antes da reforma portuguesa, Figueiredo Dias sustentava a possibilidade de prorrogações renováveis judicialmente, no caso de persistir a perigosidade, como ainda ocorre com a medida de segurança para o inimputável, em determinados casos:824 “Se, por outro lado, a PRI só é verdeiramente ´pena´ na medida concretamente determinada pelo tribunal para o fato, sendo na parte restante, substancialmente, uma medida de segurança de internamento, então já se torna compreensível e aceitável (se bem que não necessário ou sequer conveniente do ponto de vista político-criminal) que o tempo de duração da liberdade condicional possa ultrapassar o tempo de privação de liberdade que ao condenado faltasse cumprir até ao máximo legalmente admissível no caso.” (grifo nosso). Registre-se que na hipótese de ter cessado, completamente, a perigosidade do agente, a PRI, que, na verdade, é em parte medida de segurança, impõe-se a liberdade, desde que segura tal cessação, não havendo mais qualquer necessidade de prevenção geral. A dificuldade resultante do rótulo escolhido (pena ou medida) demonstra, assim, ser muito mais complexa do que meramente uma questão de denominação linguística. C. PRI e intercambialidade funcional: pena pela culpa agravada ou medida de segurança disfarçada? 1. Inicia-se com o seguinte questionamento: seria, pois, o caso da Pena Relativamente Indeterminada (PRI) uma pena pela culpa agravada ou uma medida de segurança disfarçada, reflexo de autêntico exemplo de intercambialidade funcional? De fato, a PRI possui natureza 824 FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português1: PG, tomo II, p. 582. 281 mista e de conteúdo híbrido, na expressão de Jorge Barreiro, o que suscita muitas dúvidas na sua concretização.825 Ao imputável, em Portugal, cabe tão somente a aplicação da pena, e não de medida. No caso de um indivíduo imputável, autor de um grave delito sexual, o qual, diante do final do cumprimento de sua pena privativa de liberdade persiste sendo considerado perigoso, com alta probabilidade de reincidência em delitos sexuais, violentos, por hipótese, será aplicável a PRI. Os portugueses não admitem a aplicação de medida de segurança, neste caso, sendo vigente o sistema monista826: aplica-se pena pelo fato e também pela perigosidade. Mesmo assim, questiona-se se a PRI seria uma combinação “disfarçada” de pena com medida de segurança. Algumas decisões jurisprudenciais acabam revelando esta mescla conceitual ao concluir pela necessidade de pena (ainda que relativamente indeterminada) a casos de “personalidade marcadamente inclinada para a criminalidade”, sem que tenha cessado a perigosidade, “devendo o arguido responder pelo fato e pela sua personalidade perigosa que não se moldou conforme as exigências do Direito”, conforme já entendeu, por exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça português.827 2. A indagação inicial indica o hibridismo, marca da intercambialidade funcional. Alguns autores chegaram a denominar a PRI como “pena de segurança”. Afinal, seria uma pena referida à personalidade do sujeito, assente numa “culpa pela não formação da sua personalidade”? Entendida assim, a pena corresponderia a uma culpa agravada em face de uma “extensa traição ao dever de conformação da personalidade com as exigências do direito e, por conseguinte, uma mais grave desconformidade entre a personalidade do agente e a suposta pela ordem jurídica”, o que legitimaria uma pena mais gravosa. E diante disto, questiona Figueiredo Dias:828 “A consideração anterior justifica, pois, à luz de um estrito Direito Penal da culpa, uma eventual agravação da pena, aplicável ao imputável especialmente perigoso, embora não por certo um sistema de prorrogação da pena em função da manutenção do estado de perigosidade. Mas – e é a pergunta crucial neste enquadramento – será aquela consideração suficiente para integralmente legitimar a PRI como autêntica pena da culpa?” (grifo nosso). 3. Assim, na PRI, diante de uma pena agravada por uma culpa agravada, seria possível que aquela ultrapassasse o próprio limite máximo da abstratamente prevista para o fato. Nesta 825 JORGE BARREIRO, RPCC n. 11 (2001), pp. 588-589. FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português1: PG, tomo II, p. 556. 827 PORTUGUAL. Supremo Tribunal de Justiça. SJ199504190473463. Processo n. 047346; Relatora Vaz dos Santos. Data do acórdão: 19 de abril de 1995. 828 FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português1: PG, tomo II, p. 560. 826 282 hipótese, onde ficaria a função limitadora da culpa? A atividade judicial deve buscar determinar a culpa no caso concreto e projetá-la como limite não ultrapassável no contexto da moldura abstrata. Evidentemente, isto não se aplica no caso da PRI.829 Na verdade, o limite que não pode ser ultrapassado aqui é um valor meramente legal e estranho à culpa, e não o resultado de uma ponderação judicial sobre a culpa, efetiva e concretamente: 830 Noutras palavras: “a medida concreta da PRI é função exclusiva da perigosidade dentro de uma ‘moldura’ abstratamente criada pela lei”. Assim, primeiramente o magistrado, através da dosimetria penal, fixará a pena concreta para, só então, verificar a moldura legal com o patamar mínimo e máximo da PRI. De modo prático: na parte decisória da sentença que aplica a PRI deve constar a medida concreta da pena de prisão que caberia ao caso, mas não é necessário mencionar o mínimo e o máximo de duração da PRI. Evidentemente, a partir do momento em que consta a duração da pena que caberia no caso, “tornam-se evidentes as datas em que se deverá fazer a apreciação da liberdade condicional, e através dela, determinar a duração efetiva da PRI.”831 Com isto verifica-se que, embora a PRI tenha natureza jurídica de pena, ela não é uma pena vinculada à culpa. Então, por conseguinte, resta concluir que a PRI, na verdade, consiste em verdadeira medida de segurança com a designação de pena, posto que seu subtrato está diretamente relacionado à perigosidade do sujeito, conforme Figueiredo Dias. Este menciona, inclusive,832 que relevante para a aplicação da PRI não é a existência de uma culpa agravada (de uma culpa da personalidade), mas unicamente a persistência, no momento da condenação, da perigosidade do agente, ou seja, o substrato que dá, em geral, fundamento à aplicação de uma medida de segurança. Claro que também será necessário que tal perigosidade subsista no momento da aplicação da sanção. Deve guardar proporcionalidade com os fatos que são os seus pressupostos (como na teoria da medida de segurança) bem como com as exigências (futuras) de defesa social face à perigosidade do agente. 4. Assim, resta claro que a partir da reforma de 95, através do Decreto Lei n. 48/1995, a PRI aparece configurada como uma sanção de natureza mista, ou seja, como pena até o limite da sanção que concretamente corresponderia ao fato cometido, eventualmente agravada em razão da culpabilidade pela personalidade do autor, e ainda, como medida de segurança na parte restante, dominada pela persistência da situação de perigosidade criminal. É um sistema com o inconveniente de pretender resolver o problema do dualismo entendido como 829 FIGUEIREDO DIAS, Direito penal português1: PG, tomo II, p. 560. Ibidem, pp. 560-561. 831 Ibidem, p. 574. 832 Ibidem, pp. 560-561. 830 283 acumulação de penas e medidas privativas de liberdade sobre o mesmo sujeito, valendo-se de uma pena (relativamente indeterminada), a qual, em parte, substancialmente, é uma medida de segurança, solapando as diferenças entre penas e medidas. Daí que Jorge Barreiro 833 diz que o melhor seria o dualismo flexível condicionado, na prática, pelo sistema vicarial ou de substituição da pena pela medida, que segundo ele manteria os distintos pressupostos e âmbitos de aplicação do Direito Penal da culpabilidade e do Direito Penal de medidas de segurança criminais, tornando possível, “dentro del marco del Estado de Derecho y de una Política criminal racional, un sistema monista práctico ajustado a las exigencias jurídicoconstitucionales limitadoras del poder punitivo del Estado.” D. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento 1. Natureza jurídica do instituto (se mecanismo de direito civil ou penal; se medida de segurança ou pena) e existência de qualquer tipo de discussão acerca deste etiquetamento, para fins de verificação quanto à intercambialidade funcional: no caso da PRI verificou-se tratar de pena, oficialmente; porém, na prática, possui uma parte que consiste em verdadeira medida de segurança, eis que atribui um período de privação de liberdade face à perigosidade do indivíduo, exclusivamente. É, pois, uma sanção de natureza mista, ou uma “pena de segurança”, conforme chegou a ser referido. Veja-se que, conforme demonstrado, quando o tempo de privação de liberdade excede a medida da culpa, a pena começa a apresentar delineamentos de medida, pois o excesso está radicado em razões, apenas, de perigosidade criminal. O próprio Supremo Tribunal português entende a PRI para casos em que a personalidade não se moldou, de forma suficiente, ao Direito, como foi dito. Denota-se, pois, hipótese de intercambialidade funcional consistindo na chamada fraude de etiquetas, num hibridismo completo, conforme apontado em 4, III, B, o que, por si só, afeta a possibilidade de legitimidade plena do instituto diante dos princípios constitucionais e de Direito Penal estudados na presente pesquisa, especialmente os da culpabilidade e da proporcionalidade de penas e medidas. 2. Existência da observância do respeito a princípios e a pressupostos aplicáveis à pena e à medida, quando possíveis e resguardadas suas especificidades: legalidade, anterioridade, 833 JORGE BARREIRO, en: COSTA ANDRADE/ ANTUNES/SOUSA (orgs.), BFD v. 2 n. 99 (2009) pp. 103-170. 284 jurisdicionalidade, pós-delitividade, nos termos já estudados neste trabalho e, considerando-se ainda, a evitação da finalidade estigmatizadora e meramente inocuizadora, sem qualquer propósito reabilitador. No tocante a este item, é possível perceber a presença de todos os princípios e pressupostos citados, bem como não se verifica, em princípio, finalidades degradantes, mas sim, a intenção de reinserção social. Aliás, a impossibilidade de aplicação de qualquer outra medida terapêutica em meio aberto torna evidenciada a preocupação do legislador em empregar a PRI apenas como ultima ratio. Diante da PRI, o móvel é desenvolver a autorresponsabilidade no delinquente, o que deve ser feito com o envolvimento, imposto legalmente, a equipes da administração penitenciária monitoradas judicialmente. 3. Execução penal em local adequado, seguro e com servidores capacitados, sob supervisão judicial, mediante planos individualizados de tratamento terapêutico, quando cabível: entendemos como preenchido o quesito, expressamente, conforme o próprio texto legal do CP português ambiciona, nos termos do que já foi estudado em 5, II, A, 1, quando se refere, ainda, a importância de equipe especializada para o atendimento do sujeito, bem como para que sejam prestadas as informações mais adequadas ao magistrado, a quem compete tomar decisões responsáveis. Destaque-se que o plano individualizado deve ser construído e contar com a adesão do condenado, para que haja efetividade. O plano pode e deve ser permanentemente revisto e ajustado conforme as modificações que se fizerem necessárias. 4. Fixação judicial de pena com prazo máximo de duração determinado; fixação judicial de medida de segurança com prazo máximo de duração determinado, sendo este resultante de previsão legal taxativa ou não, porém revisável judicial e periodicamente, podendo ser extinta a qualquer momento diante da cessação de perigosidade: neste aspecto há que se ressaltar que a PRI, enquanto pena, deixa a desejar no sentido de não apresentar um prazo máximo determinado, sendo, pois, relativamente indeterminada. Também o CP português permite prorrogar a internação por períodos sucessivos de dois anos até a cessação (completa) da perigosidade, desde que o crime cometido tenha pena prevista superior a oito anos de prisão e o perigo de cometimento de novos fatos do mesmo gênero não recomende a colocação do indivíduo em liberdade, nunca podendo a PRI ultrapassar vinte e cinco anos no total, ao contrário da medida para inimputáveis, que pode alcançar a perpetuidade no sistema português vigente. É que a PRI é aplicável para imputáveis perigosos. A revisão judicial periódica foi prevista, o que é fundamental, mas a incerteza sobre o quantum da pena sempre gera sofrimento adicional, o que revela alguma dose de penalização a mais. Na verdade, como 285 pena, deveria ter prazo máximo de duração taxativamente definido, nos limites do princípio da culpabilidade, entendido como regulador do jus puniendi estatal. Em contendo, em parte, uma medida, esta deveria estar prevista separadamente, de modo a deixar evidenciado o período máximo de duração sempre proporcional à perigosidade, por questões de segurança jurídica, o qual, caso cessada aquela, poderia ser encerrado antes. No caso da medida para inimputáveis, que pode ser perpétua, a crítica é ainda mais contundente. Diante destas observações, o presente critério prejudica a intenção de legitimidade do instrumento. 5. Padronização metodológica quanto às exigências de diagnósticos de perigosidade e de prognósticos de reincidência, quando cabíveis: aplicável, porém sem maiores considerações específicas. Como já afirmado em 3, III, cada vez mais tais diagnósticos e prognósticos são necessários e empregados, devendo, pois, estar em constante processo de aperfeiçoamento. Porém, não há qualquer observação específica digna de nota neste caso especial. Observe-se a importância de discussões com tal caráter quando se propugna por sanções, penas ou medidas, diretamente voltadas à perigosidade da pessoa e, consequentemente, de seu diagnóstico e prognóstico de reincidência. Neste caso, parece-nos que o critério não chega a restar prejudicado, porém, nada ou quase nada é encontrado como doutrina acerca do tema, especificamente, a respeito da PRI. 6. Por fim, na condição de sugestões de aperfeiçoamento visando alcançar a possível legitimidade do instituto da PRI, constatou-se que a mesma ainda mantém vivo o sistema monista, o qual pretende resolver, sozinho, através da pena, todos os problemas da culpabilidade e da perigosidade, juntas, excluindo-se a medida como alternativa válida. Denominar cada instituto pelo seu verdadeiro nome (pena e medida), mesmo para o imputável perigoso, permitiria a aplicação de um sistema dualista flexível, sugestão que fica registrada, ou seja, com o regime vicarial na execução, o que, salvo melhor juízo, legitimaria o processo como um todo. Caso contrário, a continuar como está, permanece muito difícil explicar, por exemplo, a liberdade condicional, cujas regras são distintas quando se fala em pena e quando se fala em medida de segurança, ou ainda, no princípio da proporcionalidade, o qual também deve operar de modo diferenciado nos dois institutos, além de questões bastante pragmáticas como os locais de cumprimento das sanções, que se não possuem potencial para interferir na natureza jurídica das mesmas, deveriam ser respeitadas no tocante à preocupação com a dignidade da pessoa humana. É que nos dois casos, de pena e de medida, deve haver o respeito a garantias fundamentais: ninguém ousa discordar que uma medida privativa de liberdade que 286 envolva acompanhamento terapêutico diante da perigosidade, por exemplo, deva ser executada em ambiente próprio, diverso do sistema prisional comum. Aliás, patente, na legislação, a ausência de mais detalhamentos acerca do local de cumprimento da PRI. Enfim, há consequências muito sérias, teóricas e pragmáticas, face ao hibridismo em tela, que merecem algumas análises e também reformas, a fim de permitir-se a validação do instituto no âmbito de um Estado Democrático de Direito. Apresentado o modelo português, passa-se, de imediato, ao instituto norte-americano do Civil Commitment, outra situação jurídica em que os rótulos envolvendo Direito Penal e Direito Civil foram intercambiados, em nome da perigosidade e do discurso de emergência, a envolver, mais especialmente, o autor de delito sexual grave. III O modelo de Civil Commitment nos Estados Unidos A. Aspectos gerais e análise do instituto: de sua origem à contemporaneidade 1. Até a década de 90, muito se investiu nos Estados Unidos em relação à área que envolve delitos e delinquentes sexuais, especialmente em torno de princípios como reabilitação e tratamento. Com as dúvidas surgidas acerca da efetividade das terapias, abandonou-se, em grande medida, o ideal de reinserção social, especialmente quanto às hipóteses de parole e de probation. A prisão voltou a ser o centro das preocupações, bem como todas as formas de inocuização do indivíduo, fortalecidas por políticas criminais como a de tolerância zero, por exemplo. As chamadas “sexual violent predators laws” começaram a surgir pelo país. E com tais legislações, nasceu o instituto da internação compulsória civil, cujos reflexos jurídicos são extremamente importantes para o estudo das consequências do delito sexual, face a sua complexidade. Até 2004 eram dezesseis os estados que adotavam o instituto Civil Commitment. Hoje já são vinte:834 Arizona, California, Florida, Illinois, Iowa, Kansas, Minnesota, Nebraska, New Hampshire, New Jersey, New York, North Dakota, South Carolina, Washington, District of Columbia, Missouri, Virginia, Massachusetts, Wisconsin, e Texas.835 Chama a atenção que o estado da Pensilvania seja o único que admita a internação compulsória civil de jovens, porém não de adultos.836 834 FABIAN, AVB n. 17 (2012), p. 2. KENDALL/CHEUNG, JCSA v. 13 n. 2 (2004), pp. 41-52. 836 PITTMAN, Sexually violent predator civil commitment by state, 2003. 835 287 2. O instituto do Civil Commitment é, oficialmente, de natureza civil, embora aplicado ao indivíduo que já cumpriu sua pena e que ainda é considerado perigoso quando egressa do sistema penitenciário. Sua internação para tratamento em unidade psiquiátrica ou em estabelecimento penitenciário é compulsória e pode, conforme o caso, durar toda a vida. Tal internação é justificada por motivos de tratamento do indivíduo, mas possui, claramente, finalidade assecuratória.837 Este instituto apresenta uma mudança muito grande no modelo tradicional de Justiça, “a departure from the normal model of criminal justice”.838 Os critérios variam caso a caso e estado a estado. Ademais, em alguns deles, ao final, o indivíduo pode receber sanção em meio aberto: a chamada Outpatient Civil Program, como será visto em 6, II. Os americanos dizem “commitment, not conviction”, para demonstrar que a intenção do instituto é o compromisso com o tratamento, e não a condenação ou a punição, apesar das polêmicas existentes e que serão estudadas na sequência. 3. O instituto do Civil Commitment, ou involuntary commitment, ou preventive detention como é conhecido, é aplicado, pois, em função da perigosidade do indivíduo.839 O sujeito é internado e assim permanece enquanto for considerado perigoso à sociedade.840 Repudia-se a internação de alguém que não necessita, bem como a liberação de alguém que precise de tal segregação: “Sex offender Civil Commitment processes are designed to identify, contain and treat sex offenders who pose a high risk of sexual recidivism. Stakes are high with respect to both civil liberties and public safety. Confining someone who will not reoffend and releasing someone who will are both objectionable possibilities.”841 4. Nos Estados Unidos, o instituto possui uma versão destinada aos denominados SVPs, ou seja, para os sexually violent persons: tais internações são iniciadas logo após o indivíduo encerrar o cumprimento de sua pena de prisão por um delito sexual. Na verdade, parece que o selo “sexually dangerous person” (SDP), como também é usado, rotula a pessoa, ou melhor, um grupo de pessoas, de uma forma bem mais ampla, na confusa categoria dos sex offenders. Para Yung, não fica claro até que ponto esta última categoria não pode ser considerada “all-inclusive”.842 De qualquer modo, cada vez mais os estados buscam atender às suas peculiaridades através de legislações específicas adaptando os estatutos às suas próprias 837 FELTHOUS/SASS, BSL v. 31 n. 3 (2013), pp. 307-311. YUNG, J. crim. law criminal v. 101 n. 3 (2011), p. 1003. 839 ROBLES PLANAS, InDret 2007, p. 5. 840 REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, p. 801. 841 McLAWSEN/SCALORA/DARROW, PPPL v. 18 n. 3 (2012) pp. 453-476. 842 YUNG, J. crim. law criminol. v. 101 n. 3 (2011), p. 999. 838 288 peculiaridades. Por exemplo, em New York, a Kendra’s Law,843 que trata de internações compulsórias, prevê que somente o magistrado, mediante o cumprimento de certos requisitos, pode determinar a aplicação deste tipo de medida. Até aí não há grandes novidades. O que mais chama a atenção é que a lei não obriga o sujeito à ingestão de medicamentos, porém se o mesmo não o fizer, pode ficar detido até setenta e duas horas, destinando-se a lei a casos de emergência. Na California, existe desde 2002, a Laura´s Law para o caso de pessoas com problemas mentais, com histórico de internações psiquiátricas, prisões, enfim, ou que tenham praticado ou tentado praticar atos violentos contra si ou contra outrem. Tal legislação foi inspirada na Kendra’s Law, e surgiu após a jovem Laura Wilcox ter sido morta por um enfermo mental que havia recusado o tratamento. Em 2010, o estado de Nevada implantou também a Laura’s Law, e a cidade de Los Angeles instalou um projeto-piloto no mesmo sentido. 844 5. Existem muitas diferenças entre as legislações de cada estado. Apenas para citar uma delas, porém relevante, veja-se que alguns exigem revisões frequentes sobre o estado de saúde do indivíduo, outros não preveem qualquer data para revisão neste sentido. De qualquer maneira, em nenhum estado uma internação compulsória é determinada apenas e tão somente com base numa condenação criminal passada, embora isto possa ser empregado como dado relevante para o diagnóstico de perigosidade. Eis aí a delimitação entre “punir pelo passado” e “prevenir danos futuros”, o que, atualmente, serve como suporte constitucional, segundo a Suprema Corte americana, para viabilizar a aplicação do instituto. Aliás, foi neste sentido que a Suprema Corte, através do caso Kansas vs. Hendricks, que também será apresentado em 5, III, E, validou o sistema legal do instituto da internação Civil Commitment no estado de Kansas. Atualmente, visando harmonizar a legislação dos estados-federativos, sobreveio a Adam Walsh Act (AWA), legislação federal que será analisada ainda neste capítulo, em 5, III, C, 2. 6. Existe grande diferença entre os estados, talvez a maior delas seja o grau de exigência quanto ao aprofundamento da prova acerca da presença de todos os elementos necessários à institucionalização de uma pessoa, a ser produzida judicialmente. Alguns estados requerem grau máximo de certeza, um standard mais alto, ou como eles referem: “proof beyond a reasonable doubt of the elements needed for institucionalization”, enquanto a outra 843 844 SULLIVAN, Office of mental health, 2012. Ibidem. 289 se contenta com a prova mais simples ou de menor standard, bastando que o Governo demonstre “clear and convincing evidence the facts related to dangerousness.” Ferzan, fazendo um raciocínio análogo ao da legítima defesa, porém por parte do Estado, o qual tem o dever de proteger a seus cidadãos contra qualquer ato violento fornecendo segurança pública adequada e eficiente, entende pelo cabimento da “clear and convincing evidence”, ao invés da “proof beyond a reasonable doubt”. Complementa dizendo que, evidentemente, preocupa-se com a hipótese de falsos positivos, porém estes são menos significativos do que os falsos negativos, ao menos do ponto de vista preventivo, quando o Estado falha em detectar e fazer cessar o plano criminoso de alguém perigoso. Para Ferzan, colocando ambos os pratos na mesma balança e avaliando as hipóteses de distribuição dos possíveis erros, ainda assim parece mais razoável a adoção do “clear and convincing standard” do que o “proof beyond a reasonable doubt:” “To my mind, the clear and convincing standard that is sufficiently to lock someone up as mentally ill and dangerous is more on par with the wrong imposed by a false positive under the preventive regime proposed”, conforme já foi decidido no caso Addington versus Texas, de 1979,845 quando a própria mãe de Addington pleiteou a internação psiquiátrica do filho com problemas mentais. Após várias idas e vindas dos tribunais, a Suprema Corte dos EE.UU. entendeu ser suficiente o “clear and convincing standard”, ao invés da “proof beyond a reasonable doubt”, mesmo em casos criminais como era este. 7. Neste apartado que trata do Civil Commitment será abordado o tema desde sua origem à contemporaneidade do instituto, comentando os principais modelos existentes, desde Illinois e Minnesota até o modelo de segunda geração de Washington e da Florida. Também serão apresentados alguns casos emblemáticos como os de Kansas x Crane, em 2002 e o caso Comstock diante da atual legislação federal Adam Walsh Child Protection and Safety Act. Serão abordadas algumas questões atuais como o alto custo e a falta de vagas nas unidades destinadas à internação civil compulsória e os critérios para o recrutamento e seleção dos internos e a problemática colocação dos mesmos em liberdade, além de um excurso sobre o estado da arte nas ciências médicas chamadas “psi” e a discussão sobre intercambialidade funcional a partir do caso Hendricks, acompanhado dos posicionamentos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o qual, indiretamente, manifestou-se sobre situação envolvendo a extradição de norte-americano. A conclusão se dá com os critérios verificadores de legitimidade do instituto e algumas sugestões para o seu aprimoramento. 845 FERZAN, CLP 2012, pp. 18-19. 290 B. Modelos existentes de Civil Commitment nos EE.UU. e suas características peculiares 1. Dos três exemplos como ponto de partida, às quatro legislações modelares 1. A crescente preocupação com os chamados high profile sexual homicides levou vários estados e o próprio governo federal, nos últimos anos, a promover legislações mais agressivas neste sentido, objetivando a proteção da sociedade destes high risk sex offenders.846 Desde 1938, surgiram, basicamente, três modelos de Civil Commitment os quais foram adotados pelos Estados Unidos, e que passamos a descrever e a comentar, rapidamente. 2. “The Sexual Psychopatic Model” surgiu quando Illinois promulgou sua legislação em 1938, a qual permanece em vigor. O auge desta legislação em todos os Estados Unidos, onde se espalhou, foi na década de 60, quando já metade dos estados a haviam adotado especialmente para o caso de delitos sexuais graves. Na recente década de 90, apenas treze estados mantiveram tal tipo de legislação. O Sexual Psychopathic Law era um modelo alternativo à persecução penal baseado na premissa de que os delinquentes sexuais eram mad, not bad, e necessitavam tratamento ao invés de punição. Porém, se a Justiça considerava o indivíduo como um Sexually Dangerous Person (SDP) este poderia ser submetido ao Civil Commitment por tempo indefinido. A Suprema Corte declarou a legislação de Illinois constitucional em 1986, pois tinha caráter civil. No estado de Minnesota, a primeira lei desta natureza foi promulgada em 1939, exigindo-se como pressuposto de aplicação do instituto um diagnóstico de personalidade psicopática. Se a pessoa fosse considerada sexualmente perigosa ou SDP, era submetida ao Civil Commitment. A Suprema Corte reconheceu a constitucionalidade da legislação entre 1939 e 1940, e entre 1939 e 1969, 221 pessoas foram submetidas ao instituto. Em 1994, o texto legal foi revisado e passou a prever o Civil Commitment para SDPs. O estado de Washington começou a priorizar o tratamento reabilitador na década de 50 e era voltado a situações como estupros, incesto e pedofilia, exatamente à luz dos conceitos de crimes sexuais graves trabalhados no segundo capítulo, à exceção de atividades homossexuais, cujo conteúdo era de moralidade sexual apenas. Assim, o instituto era aplicado após a condenação, mas ainda antes de o indivíduo ser sentenciado à 846 FABIAN, AVB 17 (2012), p. 2. 291 pena (e não após o cumprimento da pena de prisão), já que nos EE.UU. são etapas e momentos distintos. Exigia a voluntariedade do condenado quanto ao tratamento e este durava enquanto não cessasse a perigosidade. 3. “Mental Health Commitment Model” foi o modelo adotado por New Jersey, em 1994. Este modelo priorizava o diagnóstico mental do indivíduo considerado SVP, ou seja, delinquentes sexuais violentos, exigindo que fossem avaliados por profissionais de saúde mental. Os tribunais, Departments of Corrections e Parole Boards fazem o encaminhamento dos indivíduos para as avaliações. 4. “Post Prison Commitment Model”, modelo adotado em 1996, por vários estados como California, Arizona, Kansas, Illinois, North Dakota, Wisconsin, os quais seguiram aplicando o instituto, o qual é aplicado após o cumprimento da pena privativa de liberdade. A legislação de Kansas chegou a ser questionada pela Suprema Corte, mas acabou vendo declarada sua constitucionalidade em 1997, no emblemático caso Kansas vs. Hendricks, o qual será analisado posteriormente, em 5, III, E. 5. As semelhanças entre os modelos citados se resumem, muito basicamente, ao fato de a internação ser analisada após a condenação e, às vezes, após o próprio cumprimento da pena de prisão, sendo direcionada a pessoas consideradas perigosas e que podem vir a praticar futuros atos criminosos graves, especialmente quando violentos. Passamos a nos deter nos quatro modelos escolhidos: os mais importantes do ponto de vista histórico, Illinois e Minnesota, bem como o de Washington, sendo este já considerado representativo de uma segunda geração do segmento, e ainda, por fim, o modelo da Florida, por ser contemporâneo e por trabalhar com métodos atuariais, analisados em 5, III, B, 5. 2. O estatuto histórico de Illinois – 1938 1. Minow847 descreveu como Illinois tratava a seus delinquentes sexuais, conhecidos como “sexually dangerous persons” (SDP). O trabalho explicou a primeira legislação a respeito do tema, promulgada em 1938. Naquela época, Illinois tinha uma legislação destinada 847 MINOW, JDLC v. 40 n. 2 (1949), p. 190. 292 a delinquentes sexuais que tiveram problemas psíquicos há, pelo menos, um ano, e que tinham propensão à prática de delitos sexuais. O procedimento era realizado da seguinte maneira: o defensor público peticionava ao Judiciário quando acreditava estar diante de delinquente que sofresse de problemas mentais. Eram indicados, então, psiquiatras para examiná-lo. Era realizada uma audiência, antes do julgamento, e o Juiz decidia sobre o encaminhamento daquela pessoa ao Departamento de Saúde Pública (Departament of Public Safety). Se fosse o caso, ficava internado para tratamento. Após a internação, o indivíduo podia solicitar uma audiência buscando a alta, desde que comprovada sua recuperação. Se autorizada a liberação, era encaminhado à custódia penal para aguardar o julgamento pelo delito cometido. Se não autorizado, permanecia no tratamento e na custódia. 2. O maior obstáculo a esta legislação estava em provar a existência de problemas mentais há um ano antes do início de qualquer ação decorrente desta legislação. Ademais, era preciso que o Ministério Público provasse a propensão do indivíduo ao cometimento de delitos sexuais. Mesmo diante destas dificuldades, dezesseis pessoas foram submetidas ao rigor desta legislação e ao Civil Commitment ao longo de dez anos. Então, o Committee on Deliquency Law of the Chicago Bar Association propôs uma nova redação à lei. Destaca-se apenas que foram propostas ideias como a ampliação do conceito de “sexual dangerous person” (SDP) para abranger também aqueles que apresentavam falta de estabilidade emocional, falta de controle ou impulsividade, tudo em relação à vida sexual, fracasso na capacidade de apreciação das consequências de seus atos sexuais, gerando riscos aos demais. Tais requisitos eliminavam, assim, a necessidade daquele “um ano de duração prévia de problemas mentais”. Deste modo, expressões como “psychopath” seriam suprimidas do texto legal, que passava a ser mais amplo. Tais ideias foram inspiradas no modelo de Minnesota e já haviam sido consideradas constitucionais pela Suprema Corte, no caso State ex Rel Pearson vs. Probate Court of Ramsey County (cuja discussão era, exatamente, a imprecisão terminológica da lei). 3. À época, a Suprema Corte entendeu que a definição dada pelo Estatuto de Minnesota visava alcançar pessoas que possuíam dificuldades no controle de seus instintos sexuais, apresentando transgressões com certa habitualidade nesta área, ou seja “... those persons who by an habitual course of misconduct in sexual matters have evidenced an utter lack of power to control their sexual impulses”848. Ainda como sugestão foi proposto o 848 MINOW, JDLC v. 40 n. 2 (1949), p. 188. 293 encaminhamento destes indivíduos ao Department of Public Welfare, e não ao Department of Public Safety, pois se pretendia estimular tratamento de saúde com assistência social ao invés do cárcere. Foi proposta, ainda, a introdução de supervisão, por até três anos, junto ao instituto da liberdade condicional (ou quarto grau penitenciário), monitorada judicialmente. Caso o indivíduo fracassasse na tentativa de retorno à convivência social, retornaria ao Department of Welfare para prosseguir no tratamento como custódia (Civil Commitment); caso contrário, seria colocado em liberdade definitiva. Observe-se que ser rotulado como “sexually dangerous person” não serve como defesa judicial em relação a delitos cometidos, ao contrário de Michigan, por exemplo, onde, neste caso, autoriza-se a detração penal: o tempo cumprido em Civil Commitment, embora de natureza civil, deve ser abonado da pena. Neste sentido: “The new Bill follow the 1938 Act in stating that any determination that a person is a Sexually Dangerous Person shall not constitute a defense to any delinquent charge”… however, the new Bill does authorize the court to consider the period of time spent in custody of the Department of Welfare in imposing sentence for the crime”. 849 Por último, interessante destacar que outra ideia proposta foi a ampliação das garantias processuais em audiência. Assim, se o magistrado entender que a petição para consideração de alguém como SDP não for razoável, nem determina a audiência; ainda, caso a determine, o indivíduo questionado tem direito a ter defensor, podendo apresentar e contraditar testemunhas. Ao final, o Juiz poderá decidir, inclusive, contrariamente aos jurados, como em qualquer procedimento de ordem civil. Outro modelo histórico que marcou época e precisa ser conhecido é o de Minnesota, que começou em 1939. Ambos os estatutos, o de Illinois e o de Minnesota, são importantes pelas características que apresentaram, as quais podem ser comparadas aos modelos atuais. Passamos a apresentá-lo. 3. O estatuto histórico de Minnesota: do PPA - Psychopathic Personality Act de 1939 ao modelo atual 1. A legislação de Minnesota, de 1939, previa o instituto do Civil Commitment para pessoas com “psychopathic personality”, entendida esta como “instabilidade emocional, impulsividade, ausência de capacidade para avaliar as consequências de seus atos ou a 849 MINOW, JDLC v. 40 n. 2 (1949), p. 191. 294 combinação destas características, tornando a pessoa irresponsável ou perigosa por seu comportamento sexual”:850 “[...] the existence of such conditions of emotional instability, or impulsiveness of behavior, or lack of customary standards of good judgment, or failure to appreciate the consequences of his acts, or a combination of any such conditions, as to render such person irresponsible for his conduct with respect to sexual matters and thereby dangerous to other persons.” Esta primeira legislação do estado de Minnesota ficou conhecida como Psychopathic Personality Act. (PPA) Imediatamente, seu conteúdo constitucional foi questionado e a Suprema Corte de Minnesota decidiu ajustá-lo, para torná-lo mais amplo, incluindo pessoas que não tinham capacidade para controlar seus impulsos sexuais, ou seja, decidiu incluir, ainda, pessoas sem condições de controle sobre seus impulsos sexuais ou que apresentassem probabilidade de causar dor, perdas, sofrimentos, como resultado deste incontrolado ou irrefreável desejo. Neste sentido, manifestou-se a Suprema Corte:851 ´The definition of ‘psychopathic personality’ is intended to include those persons who by an habitual course of misconduct in sexual matters have evidencied an utter lack of power to control their sexual impulses and who as a result are likely to attack or otherwise inflict injury, loss, pain, or other evil on the objects of their uncontrolled and uncontrollable desire.” 2. A legislação em comento foi declarada constitucional em 1940. Entre 1939 e 1960, 474 pessoas foram submetidas ao Civil Commitment. Chama a atenção que o problema deles era, geralmente, comportamentos não violentos ou então, comportamentos os quais, atualmente, são considerados atípicos, como homossexualismo. Entre as décadas de 70 e 80, os índices caíram vertiginosamente, sendo que apenas quinze sujeitos foram encaminhados ao Civil Commitment por década. No entanto, a partir de 1989, quando alguns delinquentes que estavam em parole (liberdade condicional ou quarto grau penitenciário) cometeram delitos sexuais graves, a pressão por mudanças legais aumentou. Minnesota ganhou uma nova legislação sobre o tema, já na década de 90, bem como Washington. Em 1991, o Department of Corrections começou a analisar todos os delinquentes sexuais presos para verificar a possibilidade de aplicação do instituto do Civil Commitment a eles, para após o cumprimento da pena, e entre 9 e 10% foram selecionados. Destes, 51% acabaram sendo confirmados para o programa por prazo indefinido.852 Desde 1992, iniciou-se um trabalho mais intensivo voltado ao desenvolvimento de programas para atender aos sujeitos enquadrados pelas legislações 850 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), p. 348. Ibidem, p. 348. 852 Ibidem, pp. 343-374. 851 295 citadas. Isto tudo, na prática, pode ser constatado a partir da experiência do Minnesota Security Hospital de St. Peter, de Minnesota, que realiza o tratamento propriamente dito, dentro do modelo de Civil Commitment, possuindo larga experiência no tratamento de delinquentes sexuais. O programa integra o Department of Human Services Programs destinado aos Sexual Psychopathic Personalities and Sexually Dangerous Persons. Tais programas consideram os seus residentes pessoas vulneráveis e que, portanto, podem sofrer medidas restritivas mais duras se necessário. É possível pleitar o desligamento provisório (provisional discharge) ao comitê denominado Special Review Board.853 O processo de desligamento é longo, em Minnesota,854 funcionando como uma liberdade provisória, alcançada aos poucos. Também é possível pleitear o direct discharge, que é o alcance da liberdade definitiva, após a fase anterior, mas sempre avaliado pelo Special Review Board, composto por um psiquiatra, um membro da comunidade jurídica e um representante da sociedade. Tal conselho assessora o Commissioner of Human Services, que toma a decisão. Cabe recurso para um conselho formado por três magistrados. Evidentemente, pode-se facilmente deduzir que um projeto com tamanhas complexidade e logística seja bastante inviável do ponto de vista econômico. Os custos do programa levados a cabo por este estabelecimento são altíssimos: em junho de 1995, por exemplo, ocorreu a ampliação dos serviços do hospital, o qual passou a atender cem pessoas a mais, numa unidade construída em Moose Lake, ao custo de vinte milhões de dólares. Em 1997, além das vagas referidas, foram instaladas no St. Peter Hospital, outras cinquenta, ao custo de 8,3 milhões de dólares. No ano 2000, cinquenta vagas mais foram ampliadas e já havia planejamento para investir mais dezessete milhões de dólares para a criação de 200 outros leitos.855 3. Do ponto de vista jurídico, a Suprema Corte de Minnesota exarou duas importantes decisões para limitar tamanho alcance da legislação em tela.856 No caso Linehan foi questionado o requisito da “falta de capacidad de control” ou inability of control; já no caso Rickmyer, a perigosidade de um indivíduo considerado pedófilo foi questionada, todavia foi considerada suficientemente provada. Na ocasião, o governador resolveu interferir e pressionar para que decisões mais duras fossem tomadas, mas a legislação ainda não era muito precisa. Por isto, foi criada, no mesmo estado, a lei denominada Sexually Dangerous Persons 853 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), pp. 343-374. Ibidem. 855 Ibidem. 856 Ibidem. 854 296 Act, mais ampla e menos exigente, aplicável a pessoas que tiveram atos sexuais danosos a outrem, ou que manifestaram uma personalidade sexual, ou que manifestaram disfuncionalidade na vida sexual com a probabilidade de participação em futuros atos de natureza sexual também danosa: “... harmful sexual contacts, manifested a sexual personality, or other mental disorder or dysfunction and, il result is likely to engage in future acts of harmful sexual contact.” Esta mesma lei definiu o conteúdo de “sexually harmful behavior” incorporando presunções a partir de alguns delitos definidos pelo referido diploma legal. Ademais, rechaçou o requisito inability to control por entender que era muito rigoroso. Desta forma, e através destas características, basicamente, a nova legislação se diferenciou da primeira. A constitucionalidade do novo diploma legal foi reconhecida pela Suprema Corte de Minnesota em 1997. Atualmente, seguem em vigor os dois instrumentos legais, já que nenhum foi expressamente revogado, porém o mais recente é bem mais amplo e aberto. A nova legislação de Minnestota veio apenas a revelar o quanto de arbitrariedade era e segue sendo possível na aplicação do instituto, que varia muito de jurisdição para jurisdição, conforme Janus.857 O Minnesota Office of Legislative Auditor858 referiu, em 2011, que o nível probatório exigido pela legislação de Minnesota é muito baixo e, portanto, muitos indivíduos são considerados merecedores da internação, dada à terminologia jurídica bastante vaga. Ademais, referiu ainda que os padrões de implementação do instituto variam muito no mesmo estado, de cidade para cidade, de ano para ano. Vale ainda ressaltar, quanto aos pressupostos exigidos pela legislação da década de 90, que dentre eles não figura o requisito de violência no ato sexual cometido, podendo bastar o emotional harm, como no caso da conhecida conduta denominada stalking (perseguição, espreitar a vítima). Inclusive meras alegações, se forem substanciais, podem ser aceitas pelo tribunal. Mais: no que diz respeito ao prognóstico de reincidência, a lei não refere qualquer prazo quanto ao prognóstico de futuro abuso ou agressão sexual, não havendo qualquer limitação no tempo. Este horizonte, desarrazoado, poderá durar toda a vida da pessoa: “In other words, future predicted harm need not be iminent or reasonable soon to be suffice for commitment.”859 Minnesota tampouco exige que os prognósticos sejam elaborados com base no estado-da-arte, ou que refiram os instrumentos atuariais empregados para a verificação, nem os índices de confiabilidade e de erro do instrumento utilizado.860 857 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), pp. 328-343. Ibidem, p. 330. 859 JANUS, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 333. 860 Ibidem, p. 333. 858 297 4. Quanto ao número de internações, a partir de 2003 os dados voltaram a subir. Entre 2003 e 2006 chegou-se a setenta e seis internações em Minnesota, tendo o número novamente estabilizado após, até 2010. Isto não teve relação com mudanças na lei, e sim, com câmbios políticos. Por exemplo, em 2003, o então Governador de Minnesota processou o psicólogo que havia se manifestado contrariamente à determinada internação compulsória. Porém, posteriormente, o indivíduo já em liberdade veio a praticar um crime sexual matando sua vítima. Desnecessário dizer o quanto o número de internações compulsórias passou a aumentar. Em março de 2011 eram mais de 600 pessoas confinadas.861 Assim, podemos afirmar que nos últimos vinte anos foram 600 internações compulsórias, somente no estado de Minnestota, e somente uma foi condicionalmente liberada. Em janeiro de 2012, 75% da população internada em Minnesota já estava privada de liberdade por no mínimo três anos.862 Por questões de objetividade, passemos a uma análise das questões mais importantes começando pelo ano de 1990, que foi um divisor de águas demarcador do nascimento da segunda geração de Civil Commitment, agora mais focada na inocuização do indivíduo do que, propriamente, na sua reabilitação e reinserção social. Selecionamos as principais legislações envolvendo delinquência sexual grave, incluindo a violenta, por óbvio, e alguns dos principais julgados para comentar. 4. O estatuto de segunda geração de Civil Commitment: Sexually Violent Predators Act, Estado de Washington, 1990 1. A partir da década de 70, quando a descrença nos tratamentos reabilitadores de uma forma geral se mostrou mais forte, é que o instituto do Civil Commitment sofreu seu mais forte revés desde uma perspectiva política, e a maioria dos estados que o tinham adotado, rapidamente trataram de extinguir seus programas.863 Tal incredulidade generalizada quanto aos processos terapêuticos de delinquentes sexuais, somadas à crítica então feita pela literatura mais especializada acerca das imprecisões e das arbitrariedades no contexto do Civil Commitment fez nascer uma segunda geração do instituto.864 Também o pânico que começou a surgir entre as décadas de 80 e 90 face a alguns casos mais alardeados pela mídia diante de 861 JANUS, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 334. Ibidem, p. 331. 863 ALEXANDER JUNIOR, PJ n. 84 (2004). 864 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), p. 348. 862 298 alguns denominados “predadores sexuais” contribuíram para uma permanente busca pela incapacitação (selective incapacitation) da pessoa, ou seja, pela sua remoção do seio social, sem maiores preocupações com a chamada “ressocialização”, cujo ideal acabou caindo em desuso. O divisor de águas ocorrido no ano de 1990 passou a demarcar o nascimento de uma chamada “segunda geração” do instituto, visando à incapacitação ou inocuização, no dizer de Janus e Walbek:865 “Second generation sex offender commitments are explicitly aimed at incapacitation. Treatment, with its concomitant focus on mental illness, is a secondary goal, addressed under the assumption that Civil Commitment might be unconstitutional or unethical otherwise. Where the first generation sex offender commitments provided an alternative to punishment, the second wave provides a means to augment punishment, extending incapacitation after delincuente sentences have expired.” 2. Ante o exposto, verifica-se que na década de 1990, surgiu, então, a legislação de Washington em sua versão mais atual a respeito de Civil Commitment. O delinquente sexual alvo do instituto, pela primeira vez, chamava-se Earl Kenneth Shriner. Em maio de 1989, este indivíduo foi preso pela polícia de Tacoma, Washington, por estupro, tentativa de homicídio e práticas de mutilação sexual de Ryan Alan Hade, com sete anos de idade à época dos fatos. Shriner a recém havia deixado a prisão, apesar dos alertas dos psiquiatras de que ele era perigoso à sociedade, apresentando traços sádicos e fantasias homicidas envolvendo crianças.866 Shriner ficou encarcerado por vinte e dois anos por diversos crimes contra seis diferentes vítimas, e todos seus delitos anteriores relembravam, de algum modo, o crime praticado contra Hade, o qual ele estuprou, mutilou sexualmente, enforcou com uma corda e, depois, abandonou à morte. O primeiro delito de Shriner foi aos seus dezesseis anos, por tentar estrangular uma menina de sete anos de idade. Após condenado, ainda conduziu as autoridades até localizarem o corpo de uma menina de quinze anos, a qual ele teria estrangulado também. Em 1976, após dez anos cumprindo pena de prisão, foi solto. Em 1977, foi novamente preso, após o plea guilty, ou seja, após assumir a responsabilidade pelo sequestro e mutilações de duas adolescentes de dezesseis anos. Foi solto em 1987 e, novamente, preso por causar lesões corporais numa briga contra um jovem de dezesseis anos. Após liberado, praticou o crime contra Hade. O governador Booth Gardner nomeou uma Força Tarefa, a qual acabou recomendando um trabalho que resultou na Washington Community Protection Act, de 1990, direcionada a uma pequena fração de delinquentes sexuais, ou seja, aos chamados sexually violent predators. O objetivo inicial era remover tais 865 866 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), p. 344. CIPOLLA, JMH n. 32 (2011), pp. 103-113. 299 indivíduos do convívio social e assim foram designados porque não eram passíveis de tratamento, posto que considerados psicopatas sexuais (“sexual psychopaths”). Ao final dos trabalhos, a comissão havia entendido que existiam dois tipos de “sexual predators”: os curáveis e os incuráveis. Aos primeiros cabia a internação compulsória para o tratamento visando à liberdade condicional e vigiada; aos segundos, a inocuização, ou seja, a prisão perpétua. Porém, desde 1990, estas ideias sofreram várias modificações e mesmo aqueles que não podiam ser tratados ficaram sujeitos ao Civil Commitment, tendo em vista o interesse na segurança pública e na própria contenção destes indivíduos. Sustentam os defensores do modelo:867 “In the end, the superceeding goal is one of protection and containment, to the extent that there doesn’t even have to be a reasonable expectation of treatment. It is not that they probably pose a risk; rather, the risk is seen as absolute because their actions are constitutive of an identity”. 3. A partir do modelo de Washington, de segunda geração, podemos afirmar que, geralmente, os pressupostos para a aplicação do instituto podem envolver os dois seguintes requisitos: ter sido condenado ou estar sendo processado por crime sexual violento (o que, conforme analisamos, pode incluir delitos também não violentos, porém graves, remetendo-se aos conceitos vistos em 2, III, C, e sofrimento por alguma mental abnormality ou personality disorder e, como resultado disto, probabilidade de envolvimento em atos de violência sexual ditos predatórios, caso não venha a ser internado. A título de esclarecimento, legal mental abnormality ou personality disorder necessita diagnóstico médico,868 recordando, conforme todas as modalidades de diagnóstico de perigosidade e de prognóstico de reincidência apresentados no capítulo terceiro, que o tema é deveras complexo e polêmico. Precisamente, em Washington, o instituto é aplicado após o cumprimento da pena de prisão, quando o sujeito tiver praticado dois delitos sexuais graves, contra, então, pelo menos, duas vítimas e, ainda, apresente prognóstico de perigosidade, não importando a questão da habitualidade ou da reincidência. Passou-se, pois, de uma ideologia terapêutica para outra, de just deserts, meramente punitivista y inocuizadora.869 4. Assim, fica demonstrado que vários estados norte-americanos permitem a internação por tempo indefinido, após o cumprimento da pena, para delinquentes sexuais chamados “predadores sexuais”, considerados portadores de mental abnormality. Recordamos que tal 867 JANUS, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 113. FABIAN, AVB 17 (2012), pp. 2 e 11. 869 SILVA SÁNCHEZ, en: REDONDO ILLESCAS (org.), Delincuencia sexual y sociedad, pp. 148-149. 868 300 conceito é algo indefinido e indefinível cientificamente, ficando muito mais sob arbítrio político, o que acaba conduzindo a vários problemas jurídicos relevantes, transformando qualquer situação em delito sexual grave e, qualquer delinquente, em sujeito perigoso ou perverso digno de uma internação civil, no dizer de Loue:870 “The parameters estabilished by such laws for Civil Commitment are problematic at best and draconian at worst. First, ‘mental abnormality’ is legislatively undefined and may bear no relation to clinical classifications of mental illness. Accordingly, the term “mental abnormality” essentially serves to collapse “all badness into madness”, thereby permitting the term to be applied to any behavior and ensuring “that the class of individuals potentially subject to involuntary Civil Commitment can be defined by the political process rather than through a system based on demonstrable medical expertise and limited by effective judicial review”. A nomenclatura “predadores sexuais” ou sujeitos portadores de “mental abnormalities”, ou personalidades psicopáticas conhecidas como “psychopathic personalities” embasam os discursos contidos nos modelos de Minnesota e de Washington. 5. Sobre tais imprecisões de ordem político-legislativa, vejamos a gravidade do que se passou com a definição de mental disorder ou transtorno mental, conceito que era exigido segundo alguns, enquanto para outros, deveria haver apenas a presença de alguma mental illness ou doença mental, para fundamentar a aplicação do instituto Civil Commitment. Neste interessante caso, o DSM-V entende que comportamentos sexuais desviantes não são considerados transtornos mentais. Nem mesmo chega a existir o conceito de doença mental (mental illness). A própria Associação Nacional de Psiquiatria dos EE.UU., responsável pelo DSM, recomenda muita cautela na adoção de critérios médicos para fins legais, pois um diagnóstico, isoladamente, não deveria embasar definições jurídico-legislativas, posto que cada diagnóstico deve ser analisado conforme o grau de gravidade do caso.871 Este tipo de conceituação tem ocasionado muitas confusões nos tribunais norte-americanos. Como exemplo, veja-se que mesmo não fazendo qualquer diferenciação entre mental disorder e mental illness, os estatutos de Minnesota e de Washington foram considerados constitucionais.872 Já na Louisiana, a Suprema Corte determinou que fosse concedida a liberdade a um homem diagnosticado com esclerose múltipla, demência leve e transtorno de personalidade orgânica, pois não era um caso grave de enfermidade mental (“do not constitute serious mental illness”).873 A confusão chegou ao ponto de o governo federal ter, então, ele 870 LOUE, JLM v. 23 (2002), pp. 211-250. ALEXANDER, JH & SP v. 11, n. 3 (2000), pp. 67-78. 872 Ibidem. 873 ALEXANDER, JH & SP v. 11, n. 3 (2000), pp. 67-78. 871 301 próprio, conceituado o que deveria ser considerado como “mental illness”,874 dizendo que tal se configuraria quando presente condição envolvendo transtornos de comportamento ou emocionais diagnosticáveis no tempo presente ou durante o último ano, a qual tenha interferido substancialmente, limitando a vida de alguém em uma ou mais áreas essenciais (conceito de functional impairment): “... a present condition or a condition within the past year involving a ‘diagnosable mental, behavioral or emotional disorder’ of sufficient duration to meet the diagnostic criteria specified within DSM-III-R that has resulted in functional impairment which substantially interferes with or limits one or more major life activities.” Functional impairment significa, portanto, dificuldade para as atividades diárias tais como alimentar-se, vestir-se, tomar banho, administrar o patrimônio, cuidar da casa, tomar medicações, viver em família, enfim. Não podem ser considerados problemas ocorridos há cinco ou há dez anos, ou que levaram o indivíduo ao cárcere, isoladamente, conforme o conceito dado pelo governo, referido por Alexander Jr.875 “[...] incarcerated sex offenders are not validly diagnosed as having a mental disorder or serious mental illness when their past delincuency records are the basis for the diagnosis. Mental health professionals who use a prisoner’s delincuent history to make a DSM-IV diagnosis are misusing the DSM-IV. Because sex offenders are not validly diagnosed with a serious mental illness, one important requirement in their Civil Commitment is missing, and their Civil Commitment represents an unjust policy and a civil rights violation. This perspective presents an ethical dilemma for social workers”. 6. Assim, resta claro que a finalidade do instituto não é apenas o tratamento, mas o isolamento prolongado do indivíduo, mesmo depois do cumprimento da pena. Para Alexander,876 a medida é desonesta, não devendo ser aplicada por profissionais da saúde. O autor citado entende que esperar o final do cumprimento da pena do delinquente sexual para dizer a ele que deverá iniciar um tratamento de saúde com base em diagnósticos que não foram realizados antes, é antiético: “Waiting until an incarcerated sex offender is near completion of his or her sentence and then initiating Civil Commitment proceedings is dishonest public policy. More dishonest, and unprofessional, is the misuse of diagnoses in the DSM-IV to further a mental health policy unsupported by ethical principles. Ethical mental health professionals and social workers should not support or condone such a policy.” Para finalizar o modelo de Washington, podemos ainda, apenas a título de curiosidade, referir que os diagnósticos mais comuns dos indivíduos lá submetidos ao instituto do Civil 874 Ibidem. Ibidem. 876 Ibidem. 875 302 Commitment, são parafilias, transtorno de personalidade antisocial e abuso de substâncias ou dependências, e não mais apenas problemas psiquiátricos como esquizofrenia ou transtorno bipolar. Problemas cognitivos também são encontrados neste público, como transtorno de hiperatividade e déficit de atenção, personalidade borderline, demências ou transtornos associados à linguagem.877 5. O modelo contemporâneo do estado da Florida 1. Como o estado da Florida vem sendo considerado modelar no tocante à seleção dos indivíduos no regime de Civil Commitment, vale a pena apresentá-lo, já que envolve a aplicação de instrumentos atuariais. Naquele estado, somente após o cumprimento da pena privativa de liberdade é que se avalia a possibilidade de aplicação do instituto. São prérequisitos: idade mínima de dezoito anos; poder ser aplicado a indivíduos que delinquiram pela primeira vez, ainda que sem histórico delitito prévio; classificação da conduta entre delito sexual violento com morte da vítima, sequestro de menor de treze anos de idade, tendo havido com a vítima qualquer ato de cunho sexual, ou então a prática de atos de natureza sexual diante desta vítima; qualquer tentativa ou participação em ato sexual violento, ou qualquer condenação anterior por delito sexual grave, mesmo em outro estado, desde que similar ao previsto no estado da Florida, ainda que a condenação tenha ocorrido durante o período de avaliação do indivíduo quanto a sua colocação em programa de Civil Commitment. Critica-se a forma como certos elementos são bastante discricionários e abertos. Pesquisa realizada em 2004, na Florida, por Levenson,878 concluiu que o modo como o estado norte-americano seleciona indivíduos de alto risco, utilizando sistemas atuariais, para sua inserção em programas de Civil Commitment é bastante exitoso. Foram comparados dois grupos: um com sujeitos indicados ao Civil Commitment, e outro, com pessoas recomendadas para a liberdade, porém sem a necessidade do tratamento compulsório. Foram selecionados 450 homens dentre 2.418 indivíduos delinquentes sexuais presos e que poderiam ser recomendados ao Civil Commitment, naquele estado. Todos os 450 já haviam sido condenados, ao menos por uma vez, a um delito sexual violento entre 1º de julho de 2000 e 30 de junho de 2001, preenchendo as exigências feitas pela Suprema Corte e pelo Jimmy Rice Act. Aliás, interessante contar que 877 878 FABIAN, AVB 17 (2012), pp. 7 e ss. LEVENSON, IJOTCCrim n. 48 (2004), pp. 638-648. 303 a lei que criou o instituto do Civil Commitment na Florida originou-se de um movimento em prol de um caso ocorrido em 1995, quando um menino de nove anos de idade, chamado Jimmy Ryce, foi sequestrado e abusado sexualmente, tendo sido morto e esquartejado em Miami. De acordo com a lei Jimmy Ryce Act, entende-se como delinquente sexual “predador” aquele que tiver sido condenado por um delito sexual e que sofre de transtorno mental ou de alguma “mental abnormality” que possa levar tal pessoa a praticar atos de natureza sexual grave, necessitando ser privada de sua liberdade: “[...] any person who has been convicted of a sexually violent offense, and suffers from a mental abnormality or personality disorder that makes the person likely to engage in acts of sexual violence if not confined in a secure facility for long-term control, care and treatment [...] target a very specific type of sex offender, namely, the ‘small but extremely dangerous number of sexually violent predators” (Florida Statute § 394.910; Division of Statutory Revision of Florida Legislature, 1999, p.628).879 2. Dos indivíduos mencionados, 222 praticaram delitos sexuais contra menores de idade, exclusivamente, 115 cometeram delitos sexuais contra adultos, noventa e nove praticaram crimes sexuais contra ambos e doze não tiveram contato físico direto com suas vítimas (casos de exibicionismo, voyerismo, pedofilia pela internet...). Além disso, para 92% dos delinquentes a vítima estava fora do ambiente doméstico ou familiar, em 71% dos casos a vítima era mulher e em apenas 10% a vítima era homem; 18% dos indivíduos classificados agiram contra vítimas de ambos os gêneros. Ao final, dos 450 indivíduos, 51% ou seja, 229, foram recomendados ao Civil Commitment e 49%, ou seja, 221, foram recomendados para que fossem colocados em liberdade. Através de vinte e cinco avaliadores, a maioria psicólogos (92%) e ainda, de alguns psiquiatras (8%), com uma média de seis anos de trabalho especializado nesta área, verificou-se, ao final, que realmente foram selecionados na Florida aqueles indivíduos que apresentavam maior probabilidade de perfis antissociais ou de parafilias que predispõem, em tese, ao delito sexual (mental abnormality o personality disorder). Isto apareceu em todas as provas realizadas com instrumentos atuariais, especialmente com o PCL-R, já comentado em 3, III, C. 880 3. Conforme o programa denominado Jimmy Rice Act Program, as autoridades federais podem encaminhar o indivíduo classificado como delinquente sexual para uma instituição especializada nos seguintes casos: 1. Sujeito sob a custódia do Bureau of Prisons (BOP), 2. O Attorney General ou alguém por ele autorizado, ou o Diretor do Bureau of 879 880 LUCKEN, C & D v. 54 n. 1 (2008), pp. 95-127. LEVENSON, IJOTCCrim n. 48 (2004), pp. 638-648. 304 Prisons certificar que a pessoa é perigosa sexualmente (sexually dangerous person-SDP), e 3. Após a audiência, o tribunal entender “by clear and convincing evidence” (menor exigência, portanto) que a pessoa é realmente uma SDP. Para provar esta condição, o governo precisa provar que a pessoa executou ou tentou executar ato sexual violento ou molestar criança e, ainda, que sofre de séria doença mental (mental illness), abnormality ou transtorno (disorder), cujo resultado é séria dificuldade em controlar sua conduta sexual perigosa, caso liberada.881 4. Consistentes com a vasta literatura, os achados demonstram que delinquentes que cometeram uma variedade de delitos sexuais graves apresentaram maior risco de reincidência, da mesma forma como aqueles que praticaram estes delitos contra vítimas de ambos os sexos. Igualmente, apareceu maior risco de reincidência naqueles sujeitos com problemas prévios relacionados à sua autodisciplina (tratamentos fracassados, problemas disciplinares no presídio, descumprimento de regras da liberdade condicional, por exemplo).882 Levenson menciona que os peritos concluíram que os indivíduos mais propensos à reincidência seriam aqueles com maior número de vítimas, ou então aqueles que molestaram crianças, ou por fim, aqueles que empregaram a violência durante o delito sexual. Embora não cientificamente comprovado, constatou-se que o fato de o sujeito informar aos experts que tinha o desejo de voltar a praticar esta natureza de delito fez com que o mesmo fosse, novamente, recomendado para o instituto do Civil Commitment. Dentre algumas limitações do estudo faltou um grupo de comparação com sujeitos colocados em liberdade logo após o cumprimento da pena, sem qualquer indicação para o Civil Commitment; ademais, a investigação não teve suficiente tempo de duração, e seus resultados não podem, pois, ser generalizados. Há, portanto, que se investir mais em pesquisas sobre o tema, conforme concluiu Levenson.883 Apresentados os modelos mais destacados, passamos também a elencar três casos emblemáticos, nos quais a discussão jurídica atingiu padrões de referência fundamentais para esta pesquisa. São eles: Kansas vs. Crane, Comstock e a Adam Walsh Act e o caso Hendricks. No entanto, este último somente será abordado quando diante do tema da intercambialidade funcional, em 5, III, E. 881 WHITE HOUSE OFFICE, Fact sheet: the Adam Walsh child protection and safety act of 2006 [pp.?]. Ibidem. 883 Ibidem. 882 305 C. Casos emblemáticos que envolveram o instituto do Civil Commitment 1. O caso Kansas x Crane, em 2002 1. Neste caso emblemático, o júri condenou Michael Crane por quatro delitos sexuais, sentenciando-o de, no mínimo, trinta e cinco anos de prisão à prisão perpétua. Porém, a Suprema Corte do estado de Kansas reverteu a decisão quanto a todas as condenações, exceto quanto à parte referente ao comportamento sexual lascivo de Crane. Quanto às tentativas de estupro, as falhas processuais que negaram o direito ao devido processo legal levaram à anulação do feito. Quanto à acusação de sequestro, não havia provas suficientes. Temendo que a última acusação resultasse num pedido de novo julgamento, a acusação acabou aceitando o plea bargaining de Michael Crane por agressão sexual, pelo tempo que já havia cumprido de prisão. Porém, às vésperas de ser solto, e com a população temendo por sua liberação, a acusação declarou Crane um SVP – Sexual Violent Predator, sob o manto da Kansas Sexually Violent Predator Act, com isso permitindo sua internação perpétua. Para isto, bastava ficar provado que Crane já havia sido condenado por um delito sexual e que, por suas condições mentais, era possível um prognóstico de reincidência. Com o guilty plea, Crane já tinha preenchido o primeiro requisito. Para o segundo requisito buscou-se o psiquiatra que atendeu Crane por ocasião do julgamento original, o qual considerou Crane um sexual deviant and exhibicionist, que gostava de ver o medo estampado no rosto das suas vítimas. Assim, após noventa minutos de debates, o júri, por unanimidade, deliberou pela internação compulsória de Crane. 2. A Suprema Corte, a respeito de situações como a de Crane, já decidiu que para a configuração da chamada person´s mental abnormality ou personality disorder é suficiente uma “séria dificuldade”, e não a perda total do controle do comportamento sexual pelo indivíduo. A Suprema Corte disse ainda que a natureza e a severidade do problema mental precisavam ser consideradas para distinguir entre aqueles indivíduos que deviam ou não ser submetidos ao instituto. De fato, o problema da falta de tecnicidade na linguagem é uma constante nos EE.UU. Em outros estados, o júri não precisa decidir sobre a questão do controle em relação ao comportamento sexual, porém, conforme a lei exige, deve se manifestar acerca da mental abnormality, personality disorder, and likelihood of reoffending. 306 Atualmente, Minnesota (utter lack of power to control) e Virginia (difficult to control his predatory behavior), por exemplo, estão sintonizados com a decisão proferida no caso Crane, ou seja, se contentam com “alguma” perda da capacidade de controle sobre seu comportamento (some loss of control into their SVP Statute), no dizer de Fabian.884 3. Enfim, é preciso dizer que já em 1980, a American Bar Association e a American Psychiatric Association, juntas, reconheceram que era inviável definir, acessar e medir a capacidade volitiva, mesmo para peritos, e que não havia qualquer consenso sobre o tema e sua relação com o controle do comportamento entre os mesmos, entre juristas e entre acadêmicos.885 No caso Crane isto ficou claro: em que pese os critérios mais tradicionais para a imposição do Civil Commitment exigirem um histórico de crimes sexuais, a presença de mental abnormality e a probabilidade de reincidência sexual violenta, no caso concreto, a exigência foi outra: a comprovação da deficiência no controle do seu comportamento sexual, ou seja, no campo volitivo. Mas como apurar e como quantificar este tipo de deficiência de modo a justificar a internação compulsória, talvez a perpétua? A Corte aplicou o conceito de mental abnormality dado pelo Estatuto SVP de Kansas, ou seja, “congenital or acquired condition affecting the emotional or volitional capacity predisposing the person to commit sexually violent offenses in a degree constituting such person to menacing the health and safety of others”. Em outras palavras, numa tradução livre, uma condição adquirida ou congênita que afete a capacidade emocional ou volitiva em níveis tais que possam tornar o indivíduo uma ameaça à saúde e à segurança dos demais. Assim, o critério do volitional impairment, ou deficiência da vontade, acabou sendo reduzido, na prática, ao velho e conhecido critério da perigosidade (dangerousness). Portanto, “there is no firm legal standard that enables courts to make normative determinations regarding an offender´s ability to control their sex offending behaviors”,886 restando claro que não existem padrões ou critérios objetivos e precisos que possam ser empregados pelos tribunais para normatizar esta questão que trata sobre a capacidade do indivíduo controlar seu comportamento sexual, no dizer de Fabian. 884 FABIAN, AVB n. 17, (2012), p. 2. Ibidem, p. 8. 886 Ibidem, p. 9. 885 307 4. Ferzan também critica o conceito referindo que o mesmo trata de uma definição muito genérica, não tendo qualquer caráter delimitador de uma abnormality.887 Ferzan critica que tanto nos casos Hendricks como no Crane, os sujeitos tenham sido previamente condenados, mesmo tendo sido reconhecidos como pessoas que não tinham capacidade para o controle de seus comportamentos. Isto, segundo a professora norte-americana, é um paradoxo inaceitável:888 “[...] if these actors are sufficiently rational to choose to act, then they can be punished, but they cannot be detained. If they are sufficiently irrational that they ought to be detained, then they cannot be punished. The State should not be able to inconsistently maintain that these actors are responsible so it can punish them, and then based on the same facts, also maintain that they are non responsible so it can detain them post-punishment. The State should be required to pick one view: either responsible and punishable or non responsible and detainable.” Na sequencia será apresentado o caso Comstock, o qual movimentou, novamente, as esferas de poder nos EE.UU. e, mais uma vez, provocou mudanças no cenário político e jurídico, desta vez, diante da chegada da nova legislação federal denominada Adam Walsh Act, de 2006. 2. O caso Comstock e a recente legislação federal Adam Walsh Child Protection and Safety Act (AWA), 2006 1. O caso de Graydon Earl Comstock Jr. chamou a atenção porque o mesmo, em 4 de outubro de 2000, havia sido condenado (na verdade, transacionou via pled guilty) por armazenamento de material pornográfico infantil no seu computador, delito não considerado grave neste trabalho, em 2, III, C, tendo sido considerado, consequentemente, um delinquente sexual. Ficou preso por trinta e sete meses cumprindo pena numa unidade penitenciária federal. Porém, às vésperas de ser posto em liberdade, em 8 de novembro de 2006, o governo norte-americano decidiu aplicar-lhe o instituto do Civil Commitment como resultado da recém iniciada política criminal que visava manter presos, por prazo indeterminado, indivíduos classificados como sexualmente perigosos: a Adam Walsh Act (AWA). A decisão foi aplicada a Comstosk e a outros quatro indivíduos: Shane Catron, Thomas Matherly, Markis Revland e Marvin Vigil. Este novo estatuto de Civil Commitment foi então colocado à prova nos 887 888 FERZAN, MLR n. 96 (2011), p. 154. FERZAN, MLR n. 96 (2011), p. 154. 308 tribunais e, mesmo já tendo cumprido sua pena, Comstock foi mantido preso. A Justiça local (District Court for the Eastern District of North Carolina) entendeu que o novo regulamento avançava para além do permitido pela Constituição dos EE.UU., que o Congresso havia extrapolado suas atribuições (pois o parens patriae ou poder de polícia, pertence aos estados, razão pela qual a estes competia o controle do instituto do Civil Commitment) e, ainda, que agredia o princípio do devido processo legal (due process) ao admitir a internação mediante uma prova feita com base no “clear and convincing evidence”, como leciona Melcher.889 A autora refere que a Court of Appeals do Fourth Circuit também entendeu no mesmo sentido, confirmando a decisão judicial anterior, ou seja, pela inconstitucionalidade da legislação, embora não tendo se manifestado, especialmente, sobre a questão envolvendo a violação do devido processo legal arguida pela defesa no caso concreto. A Suprema Corte, então, reverteu aquela decisão por sete votos contra dois, considerando que o Civil Commitment é constitucional em razão da regra da “Necessary and Proper Clause of the Federal Constitution”. Assim, para a Suprema Corte, legítimo, necessário e apropriado o poder exercido pelo Congresso Nacional norte-americano, ainda que abrindo caminho para maiores arbitrariedades e ameaças a direitos fundamentais. Ademais, a Suprema Corte não rebateu o argumento de que somente aos estados cabe o poder de polícia, e asseverou que o Congresso pode agir dentro dos poderes que são enumerados constitucionalmente, o que teria sido feito de modo adequado no caso da AWA. Em sentido adverso, o magistrado Clarence Thomas discordou da maioria, referindo que no caso concreto, não se tratava de qualquer poder atribuído pela Constituição. Também assim, o magistrado Anthony Kennedy entendeu que os poderes do Congresso são poucos e limitados, enquanto os dos estados são numerosos e indefinidos. Aliás, Thomas referiu que o poder de oferecer segurança às pessoas diante de indivíduos com problemas mentais pertence aos estados. 2. Acabou sendo reconhecido, ainda, o clear and convincing evidence standard como padrão de exigência de provas suficiente, à luz da Constituição, quanto à conduta praticada por indivíduo cuja possibilidade de internação compulsória se analisava, afastando, assim, a beyond a reasonable doubt, de caráter mais exigente, anterior e tradicionalmente exigido nestes casos. Como a Suprema Corte já afirmou, o instituto do Civil Commitment é de natureza jurídica civil. Embora trate, de certo modo, de uma privação de liberdade que pode durar toda a vida, ainda assim, tem natureza civil, e não penal, e por esta razão, justificar-se-ía 889 MELCHER, ILR 2011/2012, p. 629. 309 a menor exigência:“The Civil Commitment proceeding, the Court held, unlike a criminal sentence, does not impose either the stigma attendant to criminal culpability or the loss of liberty associated with a criminal sentence, and therefore does not require the criminal law burden of proof.”890 No caso Foucha versus Louisiana,891 em 1992, a Suprema Corte, excepcionalmente, considerou o grau mais alto de exigência como sendo o standard mínimo admitido constitucionalmente nestes casos, mas foi uma decisão isolada e anterior à legislação AWA. O fato é que enquanto o governo federal aguardava uma decisão já na Suprema Corte, Comstock aguardava preso. Ao final, quando a Suprema Corte se pronunciou confirmando a legitimidade e a legalidade da nova legislação, Comstock já estava preso quatro anos além da pena que havia sido imposta, período extra este que ficou recolhido sem qualquer vinculação a uma sentença condenatória e sem relação com qualquer fato delitivo. Este caso emblemático foi apenas mais um dentre tantos, nesta já conhecida guerra aos delinquentes sexuais e foi este o contexto onde nasceu a legislação federal norte-americana denominada Adam Walsh Act (AWA), de 2006, já citada, a qual abriu as portas para uma enorme expansão na detenção de delinquentes sexuais, de forma ampla. 3. Hoje, as barreiras jurídicas foram, praticamente, removidas, e as agências governamentais norte-americanas, cada vez recebem poderes mais irrestritos para encarcerar aqueles indivíduos. Não apenas isso, mas também, dentre as várias iniciativas estabelecidas por lei, os estados que adotaram a AWA passaram a receber do governo federal considerável aporte financeiro para sua aplicação, e aqueles que não a adotaram perderam 10% do chamado “Federal Judicial Assistance Funding”. Ocorre que o custo por indivíduo, anualmente, do Civil Commitment, é de aproximadamente 64 mil dólares, atualmente, sendo alto demais para os estados. Dos cinquenta, vinte e nove estados já declararam que prefeririam que o governo federal arcasse com esta conta. Isto leva a crer que, talvez, muitos estados irão acabar não implementando a AWA, ainda que perdendo fundos federais. Além das consequências financeiras aos estados, referido por Melcher, verifica-se que existem também consequências processuais penais importantes nesta seara. Quando um réu “pleads guilty”, ele está dizendo que aceita uma sentença (menor), e, assim, evita o julgamento, bem como o risco de receber uma pena maior ou máxima. Com isso, também Promotores de Justiça poupam tempo na preparação de julgamentos. Ocorre que o famoso instituto 890 891 MELCHER, ILR 2011/2012 p. 629. Ibidem. 310 tradicional do sistema da Common Law agora enfrenta sérios problemas. No momento em que um sujeito, assim, “pleads guilty” num caso de crime sexual, ele pode acabar recebendo uma internação civil pelo resto de sua vida. Aquele plea bargaining (espécie de acordo) inicial pode se trasformar num grande pesadelo. Por que então efetuar o plea bargaining (que pode levar a uma consequência tão grave como a mencionada) se ele poderá lutar por um julgamento sem aquela consequência? Foi o que aconteceu com Comstock, que aceitou o plea bargaining e, depois, restou internado civilmente. O instituto do plea bargaining, que em 2004, chegou a representar 96% dos casos criminais federais, certamente irá decair bastante, o que deverá transtornar e abarrotar, novamente, os tribunais.892 4. Nesta filosofia de guerra e de inocuização de delinquentes sexuais, a AWA ainda determinou que os jovens condenados por delitos sexuais também devessem ser registrados como delinquentes sexuais por toda a vida, conforme será exposto em 6, IV.893 A diferença para as demais preventive detentions, em geral, é que enquanto as outras vêm sendo aplicadas cada vez mais restritivamente, inclusive, decrescendo, como se verifica até mesmo em Guantanamo, o número de pessoas confinadas em centros de detenção para sex offenders continua aumentando.894 5. O processo previsto pela AWA inicia com uma decisão classificando a pessoa como sexually dangerous, pelas autoridades referidas. A alegação basta, não sendo necessário demonstrar esta condição. Com isto, a pessoa que está presa já não será mais liberada até que o procedimento de Civil Commitment seja totalmente encerrado. Não há um prazo para isto, e a pessoa ficará detida por um prazo indefinido. Até a audiência, não há como esta “etiqueta” ser contestada. Na audiência, o governo deve demonstrar seus argumentos, através do standard da clear and convincing evidence. Na audiência, o indivíduo que se pretende manter internado pode arguir testemunhas, apresentar advogado, enfim. Entretanto, alguns direitos não são garantidos como o de permanecer em silêncio, o direito ao julgamento pelo júri, a ter um procedimento similar ao processual penal federal em termos de garantias, à razoabilidade quanto ao prazo para o julgamento nem ao pagamento de fiança enquanto aguarda a decisão final. Se o governo resultar exitoso na sua argumentação, o Attorney General determina o encaminhamento do indivíduo para internação em uma unidade federal para delinquentes 892 MELCHER, ILR 2011/2012, p. 629. PITTMAN, Sexually violent predator civil commitment by state, 2003. 894 SAVAGE/LEHREN, IHT Nov. 30 2010, p. 2. 893 311 sexuais, a menos que algum estado assuma a responsabilidade por aquele indivíduo, o que é muito raro ocorrer. Após algumas revisões pelo diretor da unidade, a pessoa poderá ser colocada em liberdade caso não mais apresente qualquer risco substancial ameaçador. Porém, antes, haverá nova audiência para demonstrar que a pessoa está “curada”: to show he or she is cured of the illness that created a serious risk of commiting a sex offense. Mais um problema: não há uma fórmula para esta prova, nem mesmo nos casos de pessoas consideradas enfermas mentais, não necessariamente em casos de violência sexual.895 6. Verifica-se que a AWA, na condição de lei mais recente e de lei federal, é de larga abrangência, tanto em termos de conceituações médicas necessárias, quanto em termos de graus de exigência quanto à questão probatória. Muitos estados exigem, por exemplo, que o indivíduo tenha sido condenado ou processado previamente por delito sexual violento, como requisito para a imposição da internação civil; a AWA exige apenas que o individuo tenha tentado praticar um bad act, e não necessariamente um delito de agressão sexual, o que tem sido muito criticado por inconstitucionalidade, em tese.896 Cabe dizer que o bad act foi definido no julgamento Comstock pela Suprema Corte como abrangente de fatos criminais, porém não limitado a estes, podendo incluir também outros, de natureza não criminal, quanto ao passado do sujeito, até porque a internação civil não tem (oficialmente, ao menos), natureza punitiva. O bad act seria um indício, um ponto de partida para a análise do potencial de risco do indivíduo como fator de perigo a si e aos outros, cujo confinamento seja necessário.897 Referiu a Corte: “Nothing in the Act requires that the finding of past conduct constitute criminal behavior. By its terms, the Act mandates a finding that a person ´has engaged or attempted to engage in sexually violent conduct or child molestation´. The Act does not define the terms ´sexually violent conduct´ and ´child molestation´, which are broad enough to encompass noncriminal conduct such as unlawful, tortuous conduct.”898 Como o bad act não é empregado para medir a culpabilidade, já que o instituto da internação civil não possui natureza penal, não sendo, pois, punitivo entendeu-se que não haveria violação do devido processo legal no caso Comstock. Além disso, aplicou-se o critério do clear and convincing evidence, muito menos rigoroso do que o beyond a 895 YUNG, J. crim. law criminol. n. 101 (2011), p. 980. KEANE, JHBL 7 n. 3 (2012), pp. 667-680. 897 Ibidem. 898 Ibidem. 896 312 reasonable doubt.899 Isto demonstra o quanto os estados podem variar na adoção de diversos critérios quanto ao nível de exigência para a suficiência da prova sobre a perigosidade de um indivíduo, a si mesmo ou aos demais.900 Restou claro que, ainda que se o Congresso não tivesse previsto o critério do bad act, ainda assim a Suprema Corte teria reconhecido a AWA como constitucional, pois aquela exigência tem sido considerada apenas como algo adicional, não necessariamente definitiva ou modificativa da realidade. É que o precedente demonstra a tendência da Suprema Corte em reconhecer a constitucionalidade do standard de prova do clear and convincing evidence: “Applying the more restrictive ´beyond a reasonable doubt´standard would create a difficult hurdle for the government to overcome in the Civil Commitment procedure, and would be an unnecessary roadblock to the ultimate goal of preventing sexual violence and protecting the physical and emotional health of children.”901 7. Ainda há que se mencionar outro problema de ordem conceitual e jurídica no estatuto Adam Walsh Act: em seu par. 4248, nenhuma mens rea é exigida902, ou seja, nenhuma intenção ou dolo (elemento subjetivo) precisa ser provado. Assim, até atos não intencionais ou meramente negligentes podem ser incluídos, expandindo o potencial de alcance do estatuto, por exemplo, a alguém que adquire pornografia pensando tratar-se de material adulto quando eram imagens de crianças, ainda que esta pessoa jamais tenha sido sequer processada por delito sexual. Aliás, convém dizer que o estatuto não exige como pressuposto qualquer condenação prévia por delito sexual. Também cabe observar que ainda há muitos termos não definidos com clareza na legislação que trata do Civil Commitment: child molestation, mental abnormality, disorder, mental disease, sexually violent conduct, e o principal deles “serious difficulty”. De qualquer modo, algumas agências tentam defini-las, a seu jeito. O Bureau of Prisons, por exemplo, define conceitos de modo bastante amplo, permitindo ampla aplicabilidade: “child molestation is any unlawful conduct of a sexual nature with, or sexual exploitation of, a person under the age of 18 years.” Inclui, pois, relação sexual consentida com menor de idade, e até posse de material pornográfico infantil. Quanto à possibilidade do plea bargaining cabe dizer que pode ser muito arriscado. Um indivíduo pode aceitá-lo admitindo ter praticado delito menor a fim de garantir uma pena menor, e por isso mesmo, acabar tendo que enfrentar o Civil Commitment para o resto da vida. Afinal, os tribunais não precisam alertá-lo do risco que corre caso aceite o plea bargaining no tocante ao instituto do 899 Ibidem. KEANE, JHBL 7 n. 3 (2012), pp. 667-680. 901 Ibidem. 902 YUNG, J. crim. law criminol. n. 101 (2011), p. 987. 900 313 Civil Commitment. Assim, diante do exposto, constatadas estas questões, inicialmente, é possível apresentar os principais problemas, de ordem mais pragmática, enfrentados pelo instituto Civil Commitment, atualmente. D. O Civil Commitment e seus problemas pragmáticos atuais 1. Primeiramente, o grupo dos denominados “delinquentes sexuais” é muito heterogêneo, abrangendo desde sádicos estupradores até indivíduos que urinaram em local público, o que, sem dúvida, deveria ser motivo de preocupação na busca por um parâmetro destinado à aplicação de uma internação de natureza civil nos Estados Unidos. Em certos casos, indivíduos chegam a cumprir penas mais longas do que se tivessem, até mesmo, praticado um homicídio, exatamente pelo tratamento, quase igualitário, a todos os tipos de delitos de natureza sexual, como se todos tivessem o mesmo grau ou status de gravidade. Por outro lado, os sujeitos não raramente acabam internados face ao instituto do Civil Commitment, por força de um diagnóstico muitas vezes discutível cientificamente. 903 Assim, as críticas aparecem com certa frequência na doutrina. Afora isto, o alto custo, que acaba permitindo a criação de poucas e escassas vagas, faz com que os poucos estabelecimentos dedicados ao problema estejam superlotados. O segundo aspecto versa sobre a discussão acerca dos critérios para o recrutamento e a seleção dos internados, bem como para a sua colocação em liberdade. Em terceiro lugar, a ausência de rigor conceitual na arte médica e correlata, bem como nas legislações que tratam da matéria, com todas as críticas que isto compreende, incluindo, lógica e principalmente, o grave problema da intercambialidade funcional quanto ao etiquetamento “civil”, do referido instituto. Analisemos. a. O alto custo e a falta de vagas nas unidades destinadas à internação civil compulsória 1. Certamente, o custo da vitimização sexual é algo incomensurável, assim como custodiar indivíduos através do Civil Commitment, em larga escala e sem critérios claros e definidos, o que sugere que o instituto deveria ser aplicado como medida extrema, como ultima ratio, quando todas as alternativas menos restritivas não fossem suficientes para 903 LEVINE, MR v 63 n. 9 (2012), pp. 57-58. 314 mitigar o risco. Mesmo diante de todo o expertise norte-americano, o custo do instituto é bastante elevado aos cofres públicos e a efetividade do mecanismo, discutível, o que já seriam motivos suficientes para o questionamento da manutenção deste tipo de política-criminal. 2. A administração do instituto do Civil Commitment em Minnesota, por exemplo, chega a ultrapassar $370 dólares americanos por dia, mais do que 15,5 milhões de dólares, anualmente.904 Em 2004, somente no tratamento e supervisão de condenados por delitos sexuais (na prisão e depois, em liberdade condicional – parole), gastou-se, aproximadamente, 4,2 milhões de dólares. A isto se somou 26 milhões de dólares para os programas de Civil Commitment para “predadores sexuais”. O instituto do Civil Commitment, então, consumiu em torno de 87% do orçamento total destinado ao Fundo para os delinquentes sexuais, sendo que é responsável por, no máximo, 12% dos casos de reincidência neste tipo de delito. Assim, resta concluir que o estado de Minnesota compromete apenas os outros 13% do orçamento deste Fundo para lidar com os outros 88% casos de reincidência sexual.905 Nos Estados Unidos, a média por indivíduo é, anualmente, de 180 mil dólares.906 Afora isto, existem os custos das construções de novas instalações. Na Florida, somente em 1999-2000 o custo foi de 17,8 milhões de dólares (Florida Office of Program Policy Analysis and Government Accountability, 2000).907 Em Nebraska, alguns estudos demonstraram que a internação via Civil Commitment tem ocorrido em larga escala, envolvendo indivíduos que apresentam risco moderado a baixo de reincidência sexual, trazendo à baila a questão sobre a responsabilidade do gestor público sobre o custeio do programa:908 “The observation that Nebraska commits moderate to low-risk sex offenders to inpatient settings at such a high rate merits consideration of whether this practice represents the most fiscally responsible use of the state´s limited correctional and mental health dollars.” 3. Para completar, em Nebraska, a média anual é de 100 mil dólares por indivíduo no sistema de Civil Commitment, incluídos aí hospital, advogado, avaliações psicológicas, custódia, taxas processuais. Para comparar, um preso custa, por ano, em torno de 26 mil dólares no sistema penitenciário. A mesma observação faz refletir sobre a disponibilidade e a efetividade dos programas em meio aberto, chamados outpatient ou community-based 904 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), p. 346. FERZAN, MLR n. 96 (2011) p. 186. 906 RAPPLEYE, Salon Apr 1 2012. 907 LUCKEN/BALES, C & D v 54 n. 1 (2008) pp. 95-127. 908 McLAWSEN/SCALORA/DARROW, PPPL v 18 n 3 (2012), pp. 453-476. 905 315 programs, os quais serão estudados em 6, II, como formas de colocação do delinquente sexual em liberdade. Entretanto, estes programas acabaram provando ser tão onerosos quanto as unidades tradicionalmente empregadas para a internação compulsória. Ademais, o discurso de lei e ordem e de demonização do delinquente sexual não têm permitido espaço para a defesa de programas em meio aberto para esta categoria de indivíduos, de forma que a modalidade vem sendo abandonada paulatinamente. Outro dos grandes problemas identificados aliados a este diz respeito à falta de um padrão mais uniforme e sistemático de critérios para o recrutamento e seleção dos indivíduos que devem ser submetidos à internação compulsória, bem como às dificuldades quanto à liberação de tais indivíduos. b. Critérios para o recrutamento e seleção dos internos e a problemática colocação dos mesmos em liberdade 1. O segundo problema usualmente apontado, como referido, é a falta de uma padronização quanto ao estabelecimento de critérios claros e precisos quanto ao recrutamento. Para exemplificar, o First Circuit (divisão geográfica da Corte Federal, situado em Boston) admitiu um diagnóstico para internar compulsoriamente uma pessoa, o qual não foi aceito por não ser admitido pela comunidade médica em geral, já que não estava nos parâmetros do DSM, não tinha definição certa nem pesquisas a respeito que fossem legitimadas pela comunidade científica. O tribunal entendeu então que não precisava o consenso da comunidade médica nem a adequação ao DSM.909 Noutro caso, perante o Second Circuit (sediado em New York City) admitiu-se que os testes realizados pelo indivíduo quando de sua liberdade condicional poderiam ser utilizados posteriormente, por ocasião da audiência de Civil Commitment, quebrando assim qualquer direito a não auto-incriminação do indivíduo.910 Além disso, diz-se comumente que os internados “entram facilmente, mas não saem da mesma maneira”.911 É impressionante o baixo número de pessoas que são liberadas do instituto: “The number of sex offenders who have been released from Civil Commitment is astonishingly slow”.912 Liberações têm sido extremamente raras e quase nunca dizem respeito ao sucesso do tratamento. Diferentemente da Guerra ao Terror, as perspectivas de saída em função dos criterios legais adotados são reduzidas: Once a person is in, they do not get out.913 909 YUNG, J. crim. law criminol. n. 101 (2011), p. 997. Ibidem. 911 RAPPLEYE, Salon Apr 1 2012. 912 KELLY, JIL n 39 (2008), pp.551-560. 913 YUNG, J. crim. law criminol. n. 101 (2011), p. 985. 910 316 2. O risco de hospitalização de pessoas sem necessidade, ou seja, sem uma mental illness, foi, definitivamente, criado, através da forma como as legislações de Civil Commitments estão dispostas.914 Com isto, a estigmatização de pessoas com problemas mentais tem sido uma consequência frequente. Ademais, tal situação aponta para uma maior necessidade quanto a uma qualificação mais séria em termos de equipes interdisciplinares.915 Quando o caso Comstock foi decidido pela Fourth Circuit (sede em Richmond), mais de 98% daqueles designados pelo governo como sexually dangerous estavam no final do cumprimento das penas de prisão. Simplesmente, pela vontade do governo, estas pessoas ficaram detidas aguardando posicionamentos jurídicos no sentido de criar-se um segundo período de privação de liberdade, na sequência, sem qualquer julgamento ou sem que qualquer novo delito tivesse sido por elas cometido.916 3. Atualmente, os critérios de seleção e recrutamento dos indivíduos sujeitos a este tipo de programa não são pacíficos. Há algumas regras genéricas de âmbito federal, porém cada estado pode determinar os limites e o alcance, em concreto, das mesmas, como já demonstrado. O trabalho de Luken e Bales, realizado em 2008 em vários estados norteamericanos demonstrou que 85% dos indivíduos inicialmente selecionados para o Civil Commitment foram liberados e retornaram à convivência social. Em números absolutos, foram 11.266 indivíduos entre 2000 e 2003.917 Entretanto, outros estudiosos divergem deste tipo de informação, dizendo que ninguém foi desligado deste tipo de programa desde 1983, e que desde 1988 até o ano 2000, ninguém foi desligado provisoriamente. 918 Apenas em 1991 o Civil Commitment representava 3% da incapacitação de delinquentes sexuais. Em 1999, o número alcançou os 13%. E a reflexão que fica é a utilização deste instrumento como prima ratio no enfrentamento de comportamentos antissociais (“the question posed is whether this growth in relative size is consistent with social norms that insist that the delincuente law is the primary means of dealing with antisocial behavior”). 919 Diante de todo o exposto, resta apresentarmos, em forma de excurso, já que não se trata do objetivo central do trabalho, porém interessa para uma melhor compreensão do estado 914 FELTHOUS/SASS, BSL, n. 31 (2013), pp. 307-311. Ibidem, p. 310. 916 YUNG, J. crim. law criminol. n. 101 (2011), p. 986. 917 LUCKEN/BALES, C & D v. 54 n.1 (2008), pp. 95-127. 918 En sentido contrário, por ejemplo: JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), pp. 343-374: “As a result, commited sex offenders are almost never released, and confinement under sex offender commitments most extends for years.” 919 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 (2000), p. 373. 915 317 da arte em termos de psicologia e psiquiatria a respeito das questões envolvendo definições legais e certas (im)precisões linguísticas, uma sucinta abordagem sobre a temática. c. Excurso: O estado da arte das ciências médicas e “psi” 1. Sabe-se que uma minoria dos agressores sexuais que inicia o programa de Civil Commitment possui prévios diagnósticos de problemas neuropatológicos ou deficiências cognitivas, como citados anteriormente no caso exemplificativo do estado de Washington. Mesmo assim, as estatísticas são baixas neste sentido. E quanto aos demais? Deveriam todos os delinquentes passar por este tipo de avaliação? Se não todos, ao menos aqueles que possuem problemas já conhecidos de ordem neurológica ou ainda, danos ou lesões cerebrais? Nestes últimos casos, deveriam passar até por exames de neuroimagens como tomografias, a fim de investigar anormalidades estruturais, pois conclusões nesta esfera podem trazer importantes elementos para a análise do caso concreto. Não é possível estabelecer, pois juridicamente, elementos desta ordem, com abrangência geral. O caso concreto é que vai determinar a necessidade, sendo sempre complexo, como se pode perceber a partir de alguns poucos exemplos920 que seguem, a modo ilustrativo. Muitos estudos apontam que indivíduos com lesões no lobo temporal e presença de convulsões têm apresentado problemas como sexual disturbances and sexual deviance. Outros estudos apontam indivíduos com hipersexualidade como detentores de frontotemporal dementia ou com lesões na amídala ou nos lobos temporais anteriores produzindo a chamada Klüver-Bucy Syndrome. Alguns estudos também têm reportado comportamento sexual inadequado em casos de esclerose múltipla, bem como no caso de Hungtinton´s disease. Alguns agressores sexuais pedófilos reportaram ter sofrido lesões na cabeça antes dos treze anos de idade. Estudos também têm apresentado relação entre o funcionamento deficiente do sistema neuropsicológico entre pedófilos. Para mencionar, ainda, outro dado interessante, certo número de estudos sugere a presença de lesões cerebrais, deficiências nos lobos frontais e temporais e déficits no circuito subcortical em agressores sexuais. A idade também interfere. Geralmente, a faixa etária entre quinze e vinte e quatro anos costuma ser a mais frequente para os delitos sexuais, especialmente para estupradores e pedófilos incestuosos. 920 Por todos, FABIAN, AVB n. 17 (2012) pp. 1-15. 318 2. Neste sentido, e apenas para demonstrar o quanto já se progrediu cientificamente, leia-se interessante trecho de pesquisa norte-americana921 que resume estes achados científicos: “[...] the literature has suggested that the prefrontal-subcortical systems involving the orbitofrontal córtex, striatum and thalamus are in part responsible in the regulation of sexual behavior, mediating functions such as initiation, choice, empathy and inhibition. Limbic and subcortical such as the amygdale, septal nuclei, and hypothalamus mediate distinct elements of sexual behavior such as sex drive, sexual motivation, sexual orientation, and gender identity. […] In essence, the neuroanatomical configurations that control sexual behavior comprise a broad and comprehensive neural network of structures in the nervous system. While lesions and impairment in the frontal areas may lead to antisocial behavior and impulsivity, damage and deficits in the limbic structures may lead to uncontrollable sexual urges. […] The deviant sexual behaviors generated by neuropathology are similar to those who become sex offenders with no known neurological disorders. In contrast, while it is concluded that although fronto-temporal dysfunctions are sporadically reported among sexual offenders, the evidence is limited and might not be specific to this type of criminal offending.” Indaga-se, portanto, como então os peritos podem ou conseguem, se é que é possível, aferir e mensurar esta (in)capacidade ou deficiência de controle quanto ao comportamento sexual, para fins forenses, ou seja, basicamente para a instrução de casos que possam resultar na aplicação do instituto do Civil Commitment. Segundo Fabian, o estado da arte informa que a maioria, se não todos, os indivíduos submetidos ao instituto do Civil Commitment como os sexually violent predators sofrem algum tipo de mental abnormality, esta definida em termos médicos como diagnóstico psiquiátrico de parafilia ou de personality disorder (transtorno).922 A pergunta que fica é: estas parafilias ou estes transtornos são sempre causados por problemas neurológicos ou neuropsicológicos? Não se tem, ainda, esta resposta. E ainda que esta resposta fosse afirmativa, tampouco se saberia dizer em que grau esta deficiência neurológica afetaria a capacidade de controle sobre o próprio comportamento sexual do indivíduo.923 Fabian também menciona que a literatura no campo psicológico não oferece clareza nas definições a respeito de como medir autocontrole, livre-arbítrio e vontade. No entanto, a deficiência volitiva é algo que aparece conceituada de forma bastante ambígua e obscura. Os conceitos variam muito. Alguns autores consideram o histórico de abusos, outros incluem históricos de dependência química, as lesões cerebrais, a forma e o grau como o indivíduo reage a impulsos, a existência de transtornos, os elementos de natureza afetiva, emocional, cognitiva, enfim. As teorias são várias. Não iremos aprofundar o tema. Por ora não passam de hipóteses, apenas: 921 FABIAN, AVB n. 17 (2012) p. 12. Ibidem, pp. 11 e ss. 923 Todos estes estudos médicos que foram referidos são oriundos de fontes científicas e são citados na pesquisa de FABIAN, para a qual remetemos o leitor. Deixamos de citá-las ou detalhá-las por não ser o objetivo deste trabalho, já que elas foram empregadas apenas a título de ilustração. Ibidem, pp. 11 e ss. 922 319 “In conclusion, while many scholars have actively considered and postulated as to the definitions and assessments of volitional impairments in sex offending behaviors, these pursuits remain just that, hypotheses, and none of these variables has been shown to empirically specifically impair behavior or volitional control.”924 3. Historicamente, tribunais, médicos e peritos têm feito uma confusão muito grande a respeito do que seja esta deficiência no controle sobre o comportamento sexual. O fato é que não existem guidelines seguros para tais diagnósticos: “Legal precedent, theoretical literature, empirical studies and practice guidelines all lack clear operational definitions or concepts of the criteria relevant to volitional impairment.”925 Tem sido dito, inclusive, que isto cria sérios problemas para os profissionais da área. O Código de Ética dos Psicólogos (APA Ethics Code Ethical Principles of Psychologists and Code of Conduct) refere que todas as avaliações profissionais devem ser feitas com base em linguagem e conhecimentos científicos. O mesmo se diga em relação ao Specialty Guidelines for Forensics Psychologists, publicado pela American Psychology-Law Society.926 Assim, cumpre dizer que o papel do técnico, geralmente do perito psiquiatra ou psicólogo, no julgamento do caso concreto, é simplesmente apontar elementos descritivos e explicativos no tocante ao funcionamento do indivíduo, às suas características, às suas deficiências, e às possíveis relações entre essas deficiências o delito sexual cometido. À Justiça compete julgar se estas características e deficiências do indivíduo, bem como se o comportamento delitivo daí resultante, remetem o mesmo (ou não) a um certo status legal em particular. Não há outro modo: “Since there is no operationalized definiton for volitional impairment within the fields of psychology, neuropsychology, and psychiatry, and no generally accepted methodology for evaluating loss of control over sexual behaviors, it is questionable whether expert witnesses should testify to this issue. Rather, they should again focus on the offender´s behavioral symptoms and psychiatric and neuropshychological functioning and how these elements potentially relate to the sex offending behaviors.”927 4. Verifica-se, portanto, que à crescente falta de uniformização conceitual na legislação e sua implementação nos diversos estados norte-americanos, subjaz certo objetivo incapacitador, travestido de uma máscara terapêutica muito utilizada para justificar a constitucionalidade do mecanismo. De qualquer modo, apesar de o assunto parecer não preocupar muito a comunidade política em geral, é possível afirmar que talvez seja uma das mais promissoras áreas no campo do conhecimento nesta matéria. Assim, passamos ao ponto 924 FABIAN, AVB n. 17 (2012), pp. 10-15. Ibidem, p. 10. 926 Ibidem. 927 Ibidem. 925 320 nevrálgico do tema. Comecemos pela questão referentemente à intercambialidade funcional e natureza jurídica do instituto. Logo após, apresentaremos algumas observações feitas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. E. Intercambialidade funcional: uma leitura da internação civil a partir do caso Hendricks 1. Uma das maiores discussões que precisa ser mencionada desde logo, trata da intercambialidade funcional entre as etiquetas “civil” e “penal” que rotulam o instituto. Afinal, qual a natureza jurídica desta internação? O instituto possui natureza jurídica civil e não penal, como, aliás, tem sido adotado em muitos lugares, no dizer de Robinson: “…todos los estados tienen algún tipo de internamiento no penal que desempeña una función de protección de la sociedad. Hay precedentes incluso más recientes en los estados que actualmente prevén el internamiento no penal posterior al cumplimiento de la pena de algunos delincuentes, normalmente de los predadores sexuales, si se demuestra que continua siendo peligroso.” 928 Embora o instituto do Civil Commitment ou preventive detention possa também ser aplicado a sujeitos imputáveis perigosos,929 o mesmo tem natureza civil. Resta claro que o instituto do Civil Commitment pode ser aplicado como internação civil para além da pena, no caso de imputáveis ou semi, ou então, simplesmente em razão de uma perigosidade criminal em si mesmo considerada (não importando a categoria de imputabilidade, nem a condenação prévia por um delito). No caso de inimputáveis também é aplicável o instituto, pois um delinquente sexual pode ser perigoso, mentalmente enfermo, porém absolvido da sua responsabilidade criminal por não ser possível imputar-lhe o crime cometido diante da ausência de culpabilidade; entretanto, pelo princípio da incapacitação, se requer sua internação civil face à perigosidade que apresenta, no dizer de Robinson.930 2. Segundo os mais críticos, da forma como vem sendo aplicada, ampla e genericamente, o instituto acaba sendo uma punição antecipada por delitos que o sujeito poderia, um dia, vir a cometer, mas que ainda não cometeu. Alguns autores como Polaino Navarrete y Polaino-Orts931 chegam a referir este tipo de instituto como representativo do 928 ROBINSON, en: Principios distributivos del derecho penal, pp. 157-158. Ibidem, p. 138. 930 ROBINSON, en: Principios distributivos del derecho penal, p. 143. 931 POLAINO NAVARRETE/POLAINO-ORTS, AP Tomo 3 Sección Doctrina 2001 p. 13, La Ley 17274/2001. 929 321 chamado Direito Penal de Autor, posto que acabam sancionando pelas predisposições subjetivas, pensamentos ou personalidade, havendo aí medidas pré-delitivas,932 fundamentadas na perigosidade social da pessoa, sobre a qual recai um aberrante juízo de probabilidade de realização de danos sociais futuros e incertos, embora prováveis. No mesmo sentido, diz, ironicamente, Robinson933: “La capacidad de punir el delito que aún no se ha cometido y por lo tanto prevenirlo es una genialidad política”. 3. Ao utilizar-se, com tanto êxito, no sistema vigente norte-americano atual o instituto do Civil Commitment, verifica-se a adoção plena do princípio da incapacitação, próprio da natureza jurídica civil, o qual não impõe sanção, mas tratamento; já no Direito Penal, ao contrário, vige o princípio do merecimento, no caso das penas. São princípios ancorados em critérios muito distintos. Para promover um objetivo (incapacitação ou merecimento) o sistema deve sacrificar o outro, pois o sistema de Justiça Criminal preocupa-se em distribuir a Justiça, o que ocorre levando-se em conta o comportamento do indivíduo e sua reprovabilidade, o merecimento de uma sanção, e até mesmo, o etiquetamento que o sistema penal acarreta. É preocupante quando um sistema, penal ou civil, resolve usurpar o papel do outro, confundindo a sociedade, gerando frustração quanto às expectativas de cada um, causando descrédito moral. Entretanto, há que se dizer, que a sensação de segurança que é transmitida à população quando alguém é submetido ao Civil Commitment, subliminarmente, vem carregada do discurso de lei e ordem. Para boa parte da mídia e para a opinião pública, em geral, aquele indivíduo segregado está sendo “punido” (pouco importando se o mecanismo imposto é de natureza civil ou penal). Mais do que isto, está sendo “punido para o seu próprio bem”, e receberá um tratamento custeado pelos cofres públicos (leia-se, um “benefício”). Claro que por se tratar de uma internação de natureza civil, o Estado terá que provar, periodicamente, a subsistência da perigosidade do indivíduo. Se esta desaparecer, então desaparecerá também a justificativa para a sua internação. 4. Os defensores do modelo de preventive detention sustentam que, desta forma, alcança-se uma maior capacidade de prevenção ao delito a longo prazo, pois um sistema de internação preventivo oferece uma maior proteção social, já que considera, antes de tudo, a perigosidade real do sujeito e, se preciso, permite reavaliações periódicas e garante economia 932 933 POLAINO NAVARRETE/POLAINO-ORTS, AP Tomo 3 Sección Doctrina 2001 p. 13, La Ley 17274/2001. ROBINSON, en: Principios distributivos del derecho penal, p. 140. 322 de recursos financeiros.934 Além disso, segundo Ferzan935, as vantagens de sua permanência no âmbito civil são, por exemplo, o fato de o sujeito não ser etiquetado como criminoso, ainda que venha a ter alguns direitos temporariamente suspensos. É que diante disto, poderá, em tese, voltar a reintegrar-se na sociedade, conseguir um emprego, sem a estigmatização característica que o Direito Penal encerra. Quanto à alegação de ausência das mesmas garantias processuais penais, alega Ferzan que, na verdade, a intenção do instituto não é a estigmatização. Refere, ainda, que a economia resultante em evitar-se apenas um delito sexual através do Civil Commitment é de, no mínimo, 200 mil dólares.936 5. Assim, diante de todos estes argumentos, o discurso político acabou adotando este tipo de mecanismo civil em larga escala, ampliando conceitos antes restritivos e científicos, estendendo limites, abrindo fronteiras para a aplicabilidade, quase que em regra, da internação via Civil Commitment, instituto que parece estar sendo, agora, mais do que nunca, banalizado. Assim, logra-se, através desta troca de etiquetas (o que seria penal agora tem natureza civil, com menores exigências e maiores flexibilizações de garantias), de modo mais simples, segregar pessoas numa escala muito mais ampla do que aquela que, possivelmente, seria autorizada pelo Direito Penal. Tanto é assim que a história norte-americana apresenta casos ilustrativos de legislações que chegaram a prever o instituto do Civil Commitment com natureza criminal e que, por isto mesmo. No dizer de Yung, o sistema de Justiça Criminal tradicional exigiria o cumprimento de uma série de garantias que acabam não sendo exigidas, da mesma forma, pelo mecanismo no âmbito civil. Desta forma, o alcance do instituto acaba sendo bem mais amplo, atingindo um número muito maior de indivíduos que passam a ser alcançados pela rede do Civil Commitment: “the circumstances are no more dire than for other serious crimes, the danger is speculative based upon pseudo-science, and the net is far too broad.”937 6. Um dos casos mais emblemáticos neste campo de discussão ocorreu no caso Kansas vs. Hendricks, 1997, quando a Suprema Corte de Kansas reconheceu a constitucionalidade da Kansas Sexually Violent Persons Act, e declarou a natureza jurídica civil do instituto. Aliás, Yung refere que se um estatuto que tratasse de Civil Commitment exigisse o cumprimento de direitos e garantias como são as de caráter penal e processual penal, como, por exemplo, o 934 Ibidem, p. 156. FERZAN, MLR n. 96 (2011), p. 141. 936 Ibidem, p. 186. 937 YUNG, J. crim. law criminol. n. 101 (2011), p. 1003. 935 323 devido processo legal, provavelmente, seria declarado inconstitucional, pois quanto menos garantias, maiores as probabilidades de os estatutos de Civil Commitment serem reconhecidos como constitucionais pela Suprema Corte dos EE.UU., ainda mais se de natureza civil. E cita que no caso Hendricks isto ficou muito claro: “As a result, Hendricks and its progeny essentially encourage legislatures around America to offer less due process and allow preventive detention to be applied as widely as possible in order to ensure constitutionality.”938 Leroy Hendricks, afinal, tinha molestado sexualmente, por décadas, crianças de ambos os sexos. O próprio Hendricks afirmou que seus problemas teriam começado em 1955, quando, aos vinte anos de idade, ele expôs os órgãos genitais para duas crianças. Já em 1957, ele havia sido condenado por jogar strip poker com uma jovem de quatorze anos. Em 1960, molestou dois meninos com sete e oito anos de idade. Após três anos preso, já em liberdade, foi novamente flagrado molestando uma menina de sete anos de idade, introduzindo os dedos em sua vagina. Foi neste caso que ele foi considerado sexual psychopath sob o manto da então vigente legislação de Washington, sendo submetido ao instituto do Civil Commitment para tratamento até o ano de 1965. Ele mesmo admitiu não possuir controle sobre seu comportamento sexual. Após liberado, em 1967, foi novamente preso por molestar um menino e uma menina: havia, reiteradamente, realizado sexo oral na menina de oito anos, e masturbar o menino de onze, por aproximadamente, dois meses. Ficou preso até 1972. Após, começou a molestar sexualmente a enteada e o enteado: fazia sexo oral na menina, dos seus nove aos quatorze anos, e sexo oral no menino, além de masturbação, também dos nove aos quatorze anos. Também teria feito o menino praticar sexo oral nele. A última condenação de Hendricks foi em 1984, por molestar dois meninos de treze anos de idade: foi condenado a uma pena de dez anos de prisão, a qual encerrou em 1994. Passou metade da vida preso em penitenciárias ou em instituições psiquiátricas. Chegou a dizer, certa vez, que diante do estresse, necessitava uma válvula de escape, e que esta era a atividade sexual envolvendo crianças. E quando perguntado sobre o que fazer para cessar este tipo de comportamento, respondeu que apenas morrendo: “the only way to guarantee that is to die”.939 7. Os peritos consideraram que tais características, no conjunto, configuravam uma mental abnormality e afetavam sua capacidade volitiva-comportamental (behavioral volition), 938 939 YUNG, J. crim. law criminol. n. 101 (2011), p. 974. Ibidem, p. 977. 324 predispondo-o a cometer futuros delitos de natureza sexual.940 Não resta dúvidas que Hendricks foi o caso perfeito para o reconhecimento da constitucionalidade da legislação do estado de Kansas, resolvido em dezembro de 1996 (Kansas vs Hendricks, 521 U.S. 346, 350 1997). O assunto já vinha sendo discutido desde 1990, quando do início de uma nova etapa de legislações de Civil Commitment (segunda geração), em Washington, como já foi apresentado em 5, III, B, 4. Nesta chamada segunda geração (Washington Rev. Code §71.09, de 1992), outros estados seguiram a proposta, como foi o caso do Iowa Code §901, em 1998. Cinco estados apresentavam este tipo de legislação à época, além de Iowa (Arizona, California, Minnesota, Washington e Wisconsin) e trinta e oito estados, incluindo New York e New Jersey enviaram amicus briefs – arrazoados indicando as razões pelas quais entendiam que se deveria entender em determinado sentido, instando, com êxito, a que os magistrados declarassem a constitucionalidade deste tipo de legislação. A promulgação da lei de Kansas foi baseada no descobrimento de que os “predadores sexualmente violentos”, habitualmente, possuem traços de personalidade que não são suscetíveis de tratamento, conforme as modalidades atualmente existentes e que tais traços tornam provável que tenham uma conduta sexualmente violenta (Kansas Stat. Ann. §59-29a 01 – 1994). A bem da verdade, o reconhecimento da constitucionalidade da legislação em Kansas, a partir do caso Hendricks, merece algumas considerações jurídicas especialmente importantes. 8. Primeiramente, Hendricks, ao recorrer, alegou que estava sendo punido, argumentando que havia, pois, uma natureza criminal e não meramente civil no procedimento denominado Civil Commitment ao qual ele havia sido submetido. Segundo: ele fundamentou sua alegação dizendo que era, conforme reconhecido pelos peritos, um “psicopata sexual incurável”. Assim, se não havia tratamento para ele, obviamente que aquela internação civil somente tinha objetivo inocuizador, ou seja, a finalidade era, exclusivamente, sua incapacitação. Terceiro: se o instituto da internação civil visava tratar o indivíduo, e no caso o objetivo era tão somente afastá-lo do convívio social, restaria claro, segundo Hendricks, que a natureza era punitiva, ou seja, criminal. Quarto: em sendo a privação de liberdade de natureza punitiva (criminal), estavam sendo violados os princípios ex post facto laws (irretroatividade de lei mais gravosa) e double jeopardy (bis in idem), afinal já havia cumprido sua pena pelos crimes cometidos quando a nova lei entrou em vigor, a qual ainda retroagiu em seu prejuízo. 940 FABIAN, AVB n. 17 (2012), p. 3. 325 9. A Suprema Corte, no entanto, refutou todas as suas alegações. Primeiramente, respondeu que a nova legislação não tinha natureza punitiva, pois não objetivava a retribuição, nem a prevenção. Não foi considerada retributiva, conforme a Suprema Corte, porque não visava punir o indivíduo, mas proteger a sociedade, ou seja, pretendia demonstrar a existência de alguma mental abnormality, ou ainda, oferecer a segurança social necessária nos casos de perigosidade. Tanto é assim que não se exigia qualquer tipo de prévia condenação: não se discutiu a culpabilidade, e sim a perigosidade; os outros elementos foram meros pressupostos. Igualmente, a Suprema Corte entendeu que a legislação aplicada a Hendricks não tinha qualquer escopo reabilitador ou preventivo, eis que o público-alvo nestes casos era, por si só, considerado, “undeterreble”, ou seja, insuscetível de intimidação, ou numa tradução livre, incurável. Ademais, a Suprema Corte referiu que, como não existe “cura” para delinquentes sexuais com certos tipos de mental abnormalities, impositiva a segregação. Hendricks, então, arguiu que, se o objetivo era a incapacitação, tratava-se, na verdade, de uma verdadeira pena disfarçada de natureza civil (disguised punishment). A Suprema Corte referiu que, sob certas circunstâncias, e ainda, diante de alguns procedimentos próprios, a incapacitação poderia ser, sim, admitida como sendo uma finalidade legítima do Direito Civil: “The Court rejected this argument, stating that ´under the appropriate circumstances and when accompanied by proper procedures, incapacitation may be a legitimate end of the civil law.”941 Inclusive, em caso envolvendo registros públicos sobre delinquentes sexuais no Alaska (Alaska Sex Offender Registration Act – ASORA), houve uma discussão sobre a verdadeira natureza da medida, eis que estigmatizava o autor do delito sexual de forma bastante severa. A Suprema Corte respondeu, então, alegando tratar-se de mero efeito incidental da medida, não seu escopo.942 A Suprema Corte, ainda, vem alegando, que a simples presença da finalidade preventivo-intimidatória (deterrence purpose) não é suficiente para transformar um comando civil em criminal. Resta claro, pois, que a Suprema Corte tentou, assim, salvaguardar o ordenamento jurídico que trata do instituto do Civil Commitment. Disse, ainda, claramente, que se fosse assim como Hendricks alegou, todos os estatutos de Civil Commitment teriam natureza criminal, e por óbvio, seriam inconstitucionais, por não seguirem os ditames do direito penal e processual penal, o que dificultaria as ações do governo dos Estados Unidos:943 941 STINNEFORD, J. crim. law criminol. v. 102 n. 3 (2012), p. 681. Ibidem, p. 682. 943 Ibidem. 942 326 “[...] the Court held that the existence of a deterrent purpose is not sufficient to transform a civil regulatory Law into a criminal Law. To hold that the mere presence of a deterrent purpose renders such sanctions ´criminal´… would severely undermine the Government´s ability to engage in effective regulation”. 10. Historicamente, estas considerações críticas a respeito do que hoje se denomina como intercambialidade funcional já eram, de certo modo, realizadas. Tanto é que os estatutos de Illinois y de Minnesota, os quais foram os primeiros a tratar o instituto da internação compulsória de delinquentes sexuais sob o prisma civil (e não mais criminal) foram desde logo considerados constitucionais a partir do momento em que as terminologias jurídicas permaneceram no âmbito dos estatutos civis, e não criminais, sendo os sujeitos, então, denominados como “pacientes”. A experiência de Michigan é importante ser referida, pois naquele estado americano, o instituto do Civil Commitment chegou a ser inserido no Criminal Code e acabou rechaçado, por isto mesmo, pela Suprema Corte daquele estado, no caso que ficou conhecido como People vs. Frontzak, tendo o instituto sido declarado inconstitucional por não observar direitos e garantias fundamentais para o acusado no processo penal. A legislação em tela, de Michigan, datava de 1937 e foi, verdadeiramente, a primeira da espécie, porém foi declarada inconstitucional, como referido. No dizer de Janus y Walbek944, referindo-se ao modelo de Minnesota, ou seja, de Direito Civil: “The program is described as being ‘provided in a humane and non-punitive manner within a secure environment”. Assim, estes tratamentos a que são submetidos os internados do instituto Civil Commitment não são considerados punitivos desde 1966, quando no caso Baxstrom vs. Herold, a Suprema Corte assim os definiu, marcando o caráter civil, definitivamente, do mecanismo. A compreensão norte-americana sobre o assunto foi consolidada no sentido de que, em casos de problemas mentais, não se pretende a punição, mas a atenção por parte do Estado em termos de assistência e custódia, como referem os especialistas945 no tema: “No punishment is intended for the individual; instead, the courts have reasoned that the state is merely extending its care and custody to afflicted persons who are dangerous to themselves and the community.” 11. Assim, verifica-se que a intercambialidade funcional, além de ser uma realidade desde há muito, é medida que vem sendo extremamente útil politicamente, principalmente para o governo, na condução de políticas públicas através da legislação e também das 944 945 JANUS/WALBEK, BSL n. 18 2000 p. 353. Vease por ejemplo MINOW, JDLC v. 40 n. 2 (1949), pp. 186-197. 327 decisões judiciais. A intercambialidade funcional resta evidenciada, desta forma, conforme Stinneford:946 “A statute is criminal if it exhibits a retributive purpose, that is, if it authorizes the state to impose sanctions to express the community´s blame or condemnation for the commission of an unlawful act. Although other purposes, such as deterrence or incapacitation, are often associated with punishment, these purposes are also compatible with civil regulatory statutes and so cannot serve to distinguish criminal from civil laws.” Porém, o que realmente mais chama a atenção, diga-se novamente, é a troca de etiquetas, problema explicitamente referido por Allen e Laudan: “Even more curious is the argument that all of this can be avoided by the simple expedient of changing the name, the moral force of the law will be undercut if those criminally convicted receive an extended term in jail because of their dangerousness or are convicted of a risk creating crime, but incarcerating the same person for the same reason in a civil context will pose no such threat.947 No mesmo sentido, Ferzan refere que a mensagem tem sido clara: prevenção e repressão são duas esferas distintas, porém em ambas as instâncias o Estado está falhando, pois não define fronteiras claras entre as duas, posto que embora distintas, em algum momento se sobrepõem.948 Esta discussão demonstra o quanto o direito anglo-saxão dos tribunais949 tem abandonado o critério da culpabilidade em seus julgamentos: “...judges still have little capacity to prevent the legislature from imposing under the pretextual label of civil liability.” “Because criminal punishment involved not only the ´possibility´ that defendant would lose his liberty but also the ´certainty´ that he would be stigmatized, courts could not use a burden of proof of standard that would ´leave [ ] people in doubt whether innocent men are being condemned. The ´moral force of the criminal law´ would be ´diluted by the use of a lower burden of proof.” 950 12. Resumindo, a Suprema Corte951, Segundo Stinneford952, tem agido de forma a justificar seus métodos de modo meramente utilitário quando isto se mostra conveniente; já quando pretende derrubar alguma condenação ou decisão que julgue oportuna, busca focar em 946 STINNEFORD, J. crim. law criminol., v. 102 n. 3 (2012), p. 683. ALLEN/LAUDAN, J. crim. law criminol. v. 101 n. 3 (2011), p. 799. 948 FERZAN, MLR 2011 n. 96 p. 144. 949 No mesmo sentido, veja-se as políticas chamadas “three strikes and you´re out”, dentre outras, que aumentam a quantidade de pena com base na suposta perigosidade do autor, conforme visto em 2, II, B. Em sentido crítico e por todos, Ibidem, p. 141. pp. 141-193. Ainda: ALLEN/LAUDAN, J. crim. law criminol. v. 101 n. 3 (2011), p. 793. 950 STINNEFORD, J. crim. law criminol. v. 102 n. 3 (2012), p. 703. 951 Nos Estados Unidos a Suprema Corte exerce os papéis de Suprema Corte Federal, que analisa, em grau de recurso, as causas decididas pelos Tribunais de Apelação Federais, bem como de mais alta Corte do país, julgando recursos contra decisões das Supremas Cortes Estaduais. 952 Ibidem, p. 723. 947 328 padrões mais rigorosos de produção de prova e conceitos mais precisos de culpabilidade. O resultado disto tem sido o desenvolvimento de doutrinas constitucionais vazias ou disruptivas:953 “[…] where the Court wants to uphold a punishment it employs rational basis review and is willing to justify the punishment even on purely utilitarian grounds. […] where the Court wishes to strike the punishment down, it covertly uses a higher standard of review and focuses primarily on culpability”. O fato é que, independentemente de rótulos, obviamente não há razão para imaginar que a Constituição norte-americana não proteja os indivíduos quando submetidos a qualquer mecanismo, ainda que de natureza civil, como é o caso do Civil Commitment.954 De qualquer modo, cabe dizer que o poder do Estado deve sempre ser bem delimitado, especialmente quando se trata de intervir sobre a liberdade do indivíduo. O posicionamento da Suprema Corte dos Estados Unidos reflete, em outras palavras, o sentimento coletivo. Pesquisa955 realizada nos Estados Unidos, envolvendo 175 estudantes e 200 indivíduos alistados para o Tribunal do Júri, como jurados visou, exatamente, apurar o que foi mencionado. O resultado foi um amplo suporte ao intuito retributivo do instituto do Civil Commitment para os delinquentes sexuais, utilizando como referência o emblemático caso Kansas versus Hendricks. O objetivo era, então, verificar se havia um desejo ordinário, nestes casos, pela incapacitação do indivíduo objetivando à proteção social de potenciais reincidências, ou se o foco seria o desejo retributivo de infligir castigo adicional contra alguns destes indivíduos considerados perigosos sexualmente. Tal resultado é consistente com os resultados de outras pesquisas.956 Tais tendências apenas comprovam que a suposta constitucionalidade do instituto do Civil Commitment descansa sobre a consciência coletiva, cujas razões são inconstitucionais: “[...] the constitucionality of Civil Commitment laws hinge upon the underlying justification for the commitment, and the present results demonstrate that ordinary people support these laws for unconstitutional reasons.”957 Embora a leitura apresentada não seja a mais importante, posto que o decisivo é o papel do legislador e do próprio Judiciário, não há dúvida que a opinião popular estimula tendências quanto à produção da lei e, influi, de forma direta, nos julgamentos com a presença de jurado ordinário. E não se pode duvidar da relevância do tema e da preocupação que isto deve gerar. Por estas razões, passamos às críticas que órgãos internacionais vêm endereçando ao tema. 953 Ibidem. FERZAN, MLR 2011 n. 96 p. 141. 955 CARLSMITH/MONAHAN/ALISON EVANS, Behav Sci. Law (2007), p. 1. 956 SKEEM/MONAHAN PLLTRPS n. 13 (2011), pp. 1-16. 957 Ibidem. 954 329 F. A posição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos acerca do Civil Commitment ou preventive detention 1. A Corte Europeia de Direitos Humanos tem avaliado nos últimos tempos a situação do Civil Commitment ou preventive detention, em diversos países, os quais apresentam institutos muito similares. É o que passamos a analisar. 1. O caso de Civil Commitment ou preventive detention envolvendo Alemanha e Estados Unidos, na visão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos - TEDH 1. O instituto até aqui estudado encontra similitude com a denominada Custódia de Segurança, na Alemanha. Faz-se necessária a abordagem do tema preliminarmente neste tópico porque o TEDH, ao analisar certo caso de extradição de cidadão norte-americano que residia no Reino Unido, acabou utilizando a argumentação empregada no caso alemão, por aquele tribunal julgado, para fundamentar sua decisão contrária à extradição daquele para os Estados Unidos, onde cumpriria a internação compulsória ou Civil Commitment. O caso do norte-americano Sullivan chamou a atenção do TEDH, o qual acabou entendendo pela negativa da extradição do mesmo, que era solicitada pelo governo de Minnesota/EE.UU. ao Reino Unido, em 2010. Sullivan temia ser submetido, para sempre, ao instituto do Civil Commitment. A defesa de Sullivan referiu, aproveitando a então recente decisão sobre o caso M. vs. Alemanha, que será estudada em 5, IV, B, 1, que os Estados Unidos aplicavam o instituto num procedimento separado e independentemente do processo penal de origem, o que violaria o artigo 5.1(a) da Convenção Europeia de Direitos Humanos, o qual prevê a privação da liberdade apenas após a condenação por uma corte ou tribunal competente. Da mesma forma, no caso alemão de M. vs. Alemanha, a imposição da preventive detention, criticada pelo TEDH, havia sido imposta separadamente do procedimento criminal original. No caso alemão, o governo alegou que a preventive detention não era uma pena propriamente dita, mas um tratamento, de caráter civil. A justificativa não foi aceita pelo TEDH, o qual argumentou que o confinamento mais parecia uma prisão e que não era fornecido o 330 atendimento terapêutico adequado: “the conditions of confinement were prison-like and that robust therapy was not provided”.958 2. Entretanto, o maior problema enfrentado pela defesa de Sullivan foi o disposto pelo artigo 5.1(e), da Convenção Europeia de Direitos Humanos - CEDH, que trata da privação da liberdade nos casos de pessoas com problemas mentais (unsound mind). Esta tratou de demonstrar que Sullivan não era um doente mental. Assim como no caso contra a Alemanha, M. não sofria mais de transtornos mentais, não devendo mais ser mantido internado compulsoriamente, Sullivan não deveria, portanto, ser internado para fins de Civil Commitment. A defesa de Sullivan entendia que a legislação não poderia se contentar apenas com a prova da mental abnormality ou da dysfunction, mas sim, demonstrar a relação disto com a habilidade ou a falta de competência do indivíduo no controle de seu comportamento e impulsos sexuais. A conclusão do TEDH a respeito da Convenção Europeia de Direitos Humanos no que tange ao artigo 5.1(e) foi de que o conceito de “unsound mind” é tão amplo que acaba tornando vulneráveis as próprias legislações que tratam do delinquente sexual nos Estados Unidos, as quais, como ocorre em Minnesota, não exigem mais do que a prova da chamada abnormality ou da dysfunction.959 O tema da Custódia de Segurança alemã e sua análise pelo TEDH serão aprofundados ainda no presente capítulo, em 5, IV, C, 1. 2. O caso da Austrália - Dangerous Prisoners Sexual Offenders Act DPSOA - 2003 1. Embora a análise dos fatos que seguem, relacionados à Austrália, não componham o quadro dos três paradigmas de Direito Comparado propostos para o presente capítulo, necessitamos trazer à colação estas observações diante das considerações que são feitas pelo TEDH diante do caso e que se aplicam, quase que na totalidade, ao instituto do Civil Commitment norte-americano. Antes de 2003, algumas tentativas já haviam sido feitas na Austrália para a elaboração de uma legislação no sentido de institucionalizar a preventive detention tal qual se conhece hoje. A primeira tentativa foi em Victoria, com a Community Protection Act, de 1990960, quando se buscou deter Garry David, condenado por duas tentativas de homicídio em 1980, e 958 JANUS, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 336. Ibidem, p. 337 e ss. 960 KEYZER/BLAY, MJIL v. 7 (2006), p. 407-424. 959 331 que ao final do cumprimento da pena de prisão, ainda apresentava comportamento classificado como perigoso, com prognóstico de reincidência. O novo ato legal foi criado especificamente para o caso de David, e permitiu que a Suprema Corte determinasse sua colocação em instituição psiquiátrica ou prisional por seis meses após encerrar o cumprimento da pena, e que depois fossem expedidas novas ordens. Em 1993, David morreu ainda na custódia. Em 1994, New South Wales enfrentou problema similar. Gregory Kable estava preso por ter matado, de forma premeditada, sua esposa. Mesmo na prisão, escrevia cartas ameaçando de morte a certas pessoas. Então, o Parlamento de NSW promulgou, em 1994, a Community Protection Act, 961 esta de abrangência geral, diferentemente do caso de Victoria, que era específica para um caso apenas. Ocorre que após o debate no Parlamento, decidiu-se que o ato deveria ser aplicado apenas ao caso concreto de Kable, e por seis meses após expirar sua pena de prisão. Em 1996, o ato foi declarado inconstitucional. Em 2003, no estado de Queensland, nasceu a legislação de preventive detention na Australia, prevendo continuar a prisão de indivíduos considerados perigosos que estivessem cumprindo pena, ou ainda, a chamada supervised release. A legislação nasceu a partir da preocupação social com a liberação de delinquentes sexuais condenados, não apenas pelo impacto deste tipo de criminalidade, mas também pela ausência de evidências quanto à eficácia no tratamento e na reabilitação destes indivíduos.962 Outros estados australianos já seguem o modelo do The Dangerous Prisoners Act, de 2003, para sexual offenders, de Queensland, como o Western Australia, com o Dangerous Sexual Offenders Act, de 2006 e New South Wales. Assim como nos Estados Unidos, consiste em um procedimento civil separado do processo criminal963, não exige a comprovação de problemas mentais como mental disorder ou dysfunctions, e o tratamento é feito nas unidades prisionais. A proposta é reabilitadora e não punitiva, para agressores sexuais:“[…] It is designed to protect the community against certain classes of convicted sexual offenders who have not been rehabilitated during their period of imprisonment”.964 2. Os dois grandes objetivos da legislação australiana são a proteção da comunidade e o alcance de tratamento e atenção à saúde necessários à reabilitação do delinquente sexual 961 KEYZER/BLAY, MJIL v. 7 (2006), p. 407-424. Ibidem. 963 Em sentido contrário, como sendo parte do sistema criminal encontramos, isoladamente: MERCADO, PP v. 2 n. 7 (2006), pp. 7-14. 964 JANUS, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 339. 962 332 conforme refere a seção 3, do DPSOA: “... to ensure adequate protection of the community; and to provide continuing control, care or treatment to facilitate their rehabilitation.” Ademais, o tribunal tem que justificar haver sérias razões para a internação no sentido de demonstrar um risco inaceitável de cometimento de delito sexual grave caso o sujeito não sofra a medida restritiva: “reasonable grounds for believing that there is an unacceptable risk that the prisoner will commit a serious sexual offence if released from custody”.965 Interessante é que esta legislação define o que é considerado um delito sexual sério ou grave, como ofensas de natureza sexual contra criança ou envolvendo violência, cometidas em Queensland ou fora de Queensland.966 O indivíduo enquadrado nesta situação fica sujeito à detenção continuada, independentemente de expirar o prazo de cumprimento da sentença originalmente imposta, submetido ao Corrective Services Act 2000 – CSA, exceto no que diz respeito aos programas de liberação (post-prison community-based release programs). A legislação de Queensland foi aplicada, primeiramente ao caso de Robert John Fardon967, indivíduo com um histórico de reincidência sexual violenta. 3. Fardon já tinha um passado de delinquência desde delitos menores contra o patrimônio e crimes não violentos. Os crimes sexuais iniciaram aos dezoito anos de idade e não pararam mais. Em 1988, após cumprir oito anos de prisão na Wolston Correctional Centre, em Brisbane, por abusar e estuprar uma menina com menos de quatorze anos de idade, Fardon foi posto em liberdade. Menos de vinte dias depois, já tinha cometido outros crimes sexuais, incluindo estupros. Foi condenado a mais quatorze anos de prisão. O cumprimento de pena findou logo após a entrada em vigor da Queensland Act em 2003, porém o caso foi considerado de alto risco, especialmente porque ele havia fracassado diante dos programas de tratamento na prisão. Assim, Fardon retornou à prisão por prazo indeterminado. Fardon recorreu sustentando a inconstitucionalidade, alegando que estava sendo punido duas vezes (double jeopardy). Ademais, referiu que o segundo período de prisão era de natureza punitiva, pois estava sendo submetido ao mesmo regime como se tivesse sido condenado criminalmente. A Justiça local, a Queensland Court e, depois, a High Court, entenderam pela constitucionalidade do ato. O entendimento majoritário foi no sentido que a Convenção Internacional de Direitos Humanos proíbe a privação de liberdade irregular. Porém, se no caso 965 KEYZER/BLAY, MJIL v. 7 (2006), p. 407-424. Ibidem. 967 MERCADO, PP v. 2 n. 7 (2006), p. 5. 966 333 a decisão foi tomada por um tribunal, consoante o ordenamento jurídico, não há o que se falar em dupla punição. Em que pese o posicionamento dos tribunais australianos, o assunto ainda está longe de ser pacífico. Nem todos concordam que seja este o melhor entendimento, nem que seja a última palavra: “More disturbingly, the power of imprisonment which is ordinarily reserved for judicial authority in accordance with traditional judicial processes is replaced by legislation purporting to authorize the exercise of the judicial power of imprisonment under the guise of Civil Commitment proceedings.[…] Although the High Court may have affirmed the legal validity of the DPSOA in Australia, its decision in Fardon is unlikely to remain the last word.”968 E prosseguem os críticos demonstrando que o instituto australiano é aplicado de forma totalmente desconectada do processo criminal original, sendo ainda, punitivo:“[...] the DPSOA allows inprisonment of the accused after they have served their sentence. Even more significantly, this is done without following the processes ordinarily required for a criminal trial. […] imposed after the completion of and independent to the initial sentence – is punitive.”969 4. Em 2007, dois indivíduos submetidos ao programa australiano procuraram o TEDH alegando tratamento arbitrário, violação aos artigos da Convenção 9(1) arbitrariedade, 14(7), bis in idem, 15(1) aplicação retroativa. O TEDH realmente considerou a detenção arbitrária, posto que na verdade, era um “fresh term of imprisonment”, o que não seria permitido sem uma condenação correspondente. Também foi considerada a retroatividade maléfica, pois o estatuto só entrou em vigor após o cometimento do delito pelo qual o indivíduo fora condenado. A natureza “civil” tampouco convenceu o TEDH, que considerou o caso uma fraude de etiquetas, especialmente porque os indivíduos continuavam na mesma casa prisional onde cumpriam suas penas privativas de liberdade. “The Australian preventive detention scheme was transparently an attempt merely to change the label on the detention”.970 A título de ilustração, a tendência hoje se alastra para outros países, como Canadá, com sua legislação sobre delinquentes perigosos, que permite a detenção por tempo indeterminado de delinquentes condenados, ou mesmo na Inglaterra, com legislação no mesmo sentido.971 Assim, pode-se concluir que existem muitas críticas relevantes, especialmente sobre a questão da fraude de etiquetas, ou intercambialidade funcional, conforme referido pelo próprio 968 KEYZER/BLAY, MJIL v. 7 (2006), p. 407-424. Ibidem. 970 JANUS, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 339. 971 MERCADO, PP v. 2 n. 7 (2006), pp. 6-7. 969 334 Tribunal Europeu de Direitos Humanos, quanto à forma como o instituto do Civil Commitment ou preventive detention vem sendo implementado em países como Estados Unidos, Alemanha ou Austrália, dentre outros. 5. Nesta esteira de raciocínio crítico, parte da academia norte-americana vem questionando até mesmo as decisões da Suprema Corte, do ponto de vista constitucionalpenal, sendo às vezes bastante dura, referindo certa “falta de vontade” ou mesmo “falta de coragem” diante dos limites constitucionais que devem delimitar toda e qualquer legislação. Refere, neste sentido, Stinneford:972 “The Supreme Court´s inability to place meaningful constitutional limits on this aspect of legislative power is often described as a failure of courage or will.” O mesmo autor refere que as bases do Direito Penal Constitucional anglosaxão residem na moralidade e na tradição973, ambas entendidas como construção de um conjunto de princípios e de uma hermenêutica capazes de conduzir a jurisprudência dos tribunais de forma coerente, ao invés do que vem ocorrendo ultimamente. Diante disto, os próprios interessados, ou seja, os próprios detidos é que estão tentando reverter o estado de coisas. Neste momento, por exemplo, o grupo de internados submetidos ao instituto do Civil Commitment no estado de Minnesota ingressou em juízo, em dezembro de 2011, contra o Minnesota Department of Human Services e Minnesota Sex Offender Program, com um ação coletiva conhecida como Karsjens et al. vs. Minnesota Department of Human Services et al. (class action Civ. N. 11-3659 DWF/JJK)974, alegando diversas violações à Constituição, especialmente à questão do devido processo legal, além de reclamarem do tratamento que vêm recebendo, encarcerados, sob condições desumanas, como à falta de medicamentos, de médicos, afora as internações em regimes de confinamento, ausência de terapia de grupo, de oportunidades de trabalho, enfim, além do fato de que apenas um indivíduo, até hoje, logrou liberdade sem que a mesma fosse, depois, revogada. Em agosto de 2012, o magistrado Arthur J. Boylan determinou a criação de um grupo, o Sex Offender Civil Commitment Advisory Task Force, pelo período de dois anos, para aprofundar o tema e apontar sugestões de como racionalizar o processo, torná-lo mais objetivo e eliminar o máximo possível de interferências 972 STINNEFORD, J. crim. law criminol. v. 102 n. 3 (2012), p. 653. Ibidem, p. 654. 974 MINNESOTA, Karsjens et al. vs. Minnesota Department of Human Services et al., Case 0:11-cv-03659DWF-JJK Document 208, Minnesota, 15 jul. 2012. Disponível em: <http://gustafsongluek.com/wpcontent/uploads/2012/08/Order-re-Task-Force.pdf>. Acesso em: 27 out. 2013. 973 335 políticas nas decisões que envolvem a internação e a liberação dos indivíduos. 975 Foram nomeados quinze membros e as conclusões foram apresentadas em dezembro de 2013. 6. Muito importante destacar, primeiramente, que a Força Tarefa considerou que eliminar o instituto do Civil Commitment deveria ser uma hipótese a ser considerada pelo legislador, porém, como havia sido constituída a fim de apresentar propostas que viabilizassem e aperfeiçoassem o instituto, passou de imediato, diretamente, a tecer estas considerações, já que o instituto foi considerado uma realidade dada. Assim, a Força Tarefa passou a apresentar recomendações para tornar o Civil Commitment um sistema mais razoável e efetivo. Basicamente, as recomendações foram as seguintes976: a) as definições legais de “Sexually Dangerous Person” (SDP) ou “Sexual Psychpathic Personality” (SPP) precisam garantir que somente as pessoas que realmente apresentem riscos consideráveis de cometimento de crimes graves sejam alcançadas, e não aquelas com baixo risco; b) o processo de identificação e também de tratamento de indivíduos que possam ser alcançados pelo Civil Commitment deve iniciar já durante a fase de execução da pena de prisão, pois maiores investimentos em tratamentos durante a execução da pena poderiam diminuir a necessidade e os custos do confinamento pós-encarceramento; c) a decisão a respeito da aplicação do instituto deveria ser “bifurcada”, ou seja, inicialmente deveria tratar apenas da necessidade ou não de sua incidência ao caso concreto e, depois, noutro momento, versar a respeito do grau de segurança pública e sobre a real necessidade de ambientes mais ou menos restritivos da liberdade, além de todos os outros termos do procedimento; d) seria importante haver uma instância judicial independente, que não ficasse sujeita a qualquer tipo de influência ou pressão política acerca das decisões sobre internações, transferências e liberações. A Força Tarefa chegou a pensar em propor a modificação do nível de exigência probatória que é, hoje, de “clear and convincing” para o mais exigente “beyond a reasonable doubt”, entretanto, desistiu, já que recomendou a criação de um órgão mais independente e imune às pressões políticas tradicionais, o que já deverá, por si só, garantir processos mais isentos; e) o ônus da prova quanto à necessidade de iniciar ou prosseguir com o Civil Commitment, bem como o grau de confinamento necessário para garantia da segurança pública compete ao Estado; f) deve haver uma revisão judicial de ofício, regularmente, independentemente, pois, da vontade 975 MINNESOTA, Karsjens v. Minnesota Department of Human Services, 0:11-cv-03659-DWF-JJK (D. Minn.), Minnesota, 1983. Disponível em: <http://www.clearinghouse.net/ detail.php?id=12351>. Acesso em: 28 jul. 2013. 976 JESSON 2013 e MINNESOTA, Department of Human Services. Minnesota sex offender Program Annual Performance Report 2013. Minnesota, Jan. 2014. Disponível em: <https://edocs.dhs.state.mn.us/lfserver/ Public/DHS-6677A-ENG Acesso em: 5 maio 2014. 336 ou da provocação do interessado; g) jovens e pessoas com problemas mentais requerem legislação especial a respeito; h) é importante existir uma unidade profissional e especializada na avaliação destes casos, treinada em instrumentos atuariais de prognósticos conforme o estado da arte, cujo trabalho deve sofrer auditorias periódicas. A Força Tarefa igualmente efetuou outras observações interessantes como, por exemplo, ter constatado que a legislação de Minnesota, do modo como está, favorece a captura de pessoas para o sistema de Civil Commitment. É que em Minnesota não se exige prévia condenação como pressuposto, diversamente de outros estados. 7. Enfim, após tudo o que foi apresentado acerca do instituto do Civil Commitment, na verdade, resta claro que visa o mesmo, ainda hoje, prioritariamente, o isolamento, apenas. Este confinamento, na verdade, é altamente caro aos cofres públicos, e o tratamento oferecido não tem sido nem eficiente (para alcançar resultados, metas), nem suficiente (apto, capaz para tanto). Antes, ao menos, de a Suprema Corte e o Congresso norte-americano decidirem se vão abolir o sistema de Civil Commitment, ou se apenas devem alterar a AWA, existe algo urgente a ser feito, como diz Melcher,977 e isto passa, necessariamente, pela melhoria do sistema de monitoramento humano dos “excarcelados”, através, pois, de uma liberação supervisionada (supervised release). O ideal seria que os oficiais de acompanhamento (federal probation officers) pudessem realmente acompanhar os indivíduos que deixam o Civil Commitment, os quais teriam viagens controladas, bem como restrições quanto a acesso à internet, por exemplo. Ademais, deveriam ter tratamento psicológico. Como refere Melcher, demonstrando a importância da combinação entre os direitos fundamentais do sujeito e a preservação da segurança pública digna de tutela, igualmente: “With this approach, the safety of the community would be protected; the rights of the individual would be preserved, the punishment would fit the crime; the costs would be greatly reduced; and, as the supervised release would appear as part of the sentencing scheme during plea negotiations, there would no risk of reduced plea deals. In fact, supervised release would likely increase the frequency of such deals – assuming the individuals prefers freedom, even supervised freedom, over incarceration.” 978 Cabe citar as palavras de Yung para encerrar, dizendo que a América deveria reconsiderar sua política em relação à delinquência sexual, pois estabelecer uma guerra sem fim, como esta, não cria, nem melhora a atual sociedade: “Because of these aspects of SVP laws, America should fundamentally reconsider its approach to fighting sexual violence. Laws 977 978 MELCHER, ILR n. 629 (2011-2012), pp. 629-664. Ibidem. 337 like the federal SVP statute, premised on myths that allocate substantial resources in a never ending war, do not create a just or better society".979 Prossigamos, pois, com a verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto. G. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento 1. Natureza jurídica do instituto (se mecanismo de direito civil ou penal; se medida de segurança ou pena) e existência de qualquer tipo de discussão acerca deste etiquetamento, para fins de verificação quanto à intercambialidade funcional: como relatado, o instituto do Civil Commitment pode ser aplicado como internação civil para além da pena, no caso de imputáveis ou semi, ou então, simplesmente em razão de uma perigosidade criminal em si mesmo considerada. No caso de inimputáveis também é aplicável o instituto, pois um delinquente sexual pode ser perigoso, mentalmente enfermo, porém absolvido da sua responsabilidade criminal por não ser possível imputar-lhe o crime cometido diante da ausência de culpabilidade; entretanto, pelo princípio da incapacitação, se requer sua internação civil face à perigosidade que apresenta, no dizer de Robinson.980 O que mais chama a atenção é que tentativas de inseri-lo no âmbito do Direito Penal foram declaradas inconstitucionais, desde a experiência inexitosa de Michigan, de 1937, posto que não preenchem os requisitos e garantias necessários. Assim, com natureza civil, fica facilitado, por exemplo, o grau quanto à exigência de prova, havendo, em grande parte dos estados, a preferência pela clear and convincing evidence (já que a proof beyond a reasonable doubt é desnecessária em muitos estados, com esta justificativa), flexibilizando e ampliando a aplicação do instituto. Evidentemente, há que se entender que na cultura anglo-saxônica é perfeitamente normal não se diferenciar as sanções quanto a penas e medidas como fazemos no sistema continental, o que nos preocupa neste momento, pois os tratamentos ofertados pelo Direito Civil são diferenciados em relação a uma internação penal. Veja-se que no âmbito penal equipes especializadas podem ser requisitadas a fim de evitarem-se novos delitos contra novas vítimas, inclusive no ambiente hospitalar, que o risco de reincidência e os processos de risk assessment costumam levar a resultados distintos quando se trata de pessoa presa ou com este tipo de histórico criminal, que a necessidade de custódia dos indivíduos pode variar muito, conforme o caso, especialmente considerando-se que no sistema de Direito Civil fica difícil estabelecer 979 980 YUNG, J. crim. law criminal v. 101 n. 3 (2011), p. 1003. ROBINSON, en: Principios distributivos del derecho penal, p. 143. 338 um regime de segurança interna e também, pública. Não há dúvida que todos merecem ser tratados dignamente; no entanto, a mescla completa destas categorias pode, como já ocorreu na história, conduzir, com muita facilidade, a um Direito de Autor ou do Inimigo que não se gostaria de ampliar ou fortalecer para além do que, inevitavelmente, já existe. Assim, encontra-se problemas quanto à intercambialidade funcional à medida em que, através de uma fraude de etiquetas, adota-se o rótulo de civil para uma intervenção das mais gravosas sobre a liberdade do indivíduo, desta forma, ampliando-se o alcance do Estado, em larga escala, voltado basicamente à inocuização, sem a contrapartida das garantias próprias de um Direito Penal moderno. 2. Existência da observância do respeito aos seguintes princípios e pressupostos aplicáveis à pena e à medida, quando possíveis e resguardadas suas especificidades: legalidade, anterioridade, jurisdicionalidade, pós-delitividade, nos termos já estudados neste trabalho e, considerando-se ainda, a evitação da finalidade estigmatizadora e meramente inocuizadora, sem qualquer propósito reabilitador. Conforme o exposto, é bastante difícil estabelecer comparações entre um sistema de internação civil compulsória para delinquentes sexuais que opera, pois, com base no Direito Civil, ainda mais à luz de um sistema anglo saxão, que não prima pela subdivisão entre penas e medidas, No entanto, mesmo assim, é perfeitamente identificada a hipótese meramente inocuizadora quando se percebe a tentativa político-criminal de vários ordenamentos, de vários estados norte-americanos, em ampliar, cada vez mais, o alcance dos instrumentos de captação de indivíduos. A prova está na verdadeira disfuncionalidade quanto às terminologias empregadas pelas legislações, variando a cada novo caso de repercussão, preenchidas por conceitos políticos e não científicos, enfim, motivo de séria preocupação, mas que coincidem no intuito claramente inocuizador, de cunho político e respaldado pelo sentimento coletivo, conforme pesquisas realizadas, de ampliação do alcance do instrumento. O princípio da legalidade parece ser o mais atingido, principalmente pelas permanentes discussões nos tribunais do país acerca da própria terminologia legal e de seus significados, muitas vezes, vazios e puramente demagógicos. Veja-se, ainda, que nenhuma mens rea (intenção ou dolo) é exigida pela atual Adam Walsh Act. Aliás, sobre a AWA, esta não exige qualquer condenação prévia, ampliando critérios na legislação federal, determinando o registro público pela web de jovens como delinquentes sexuais, e ainda, afastando dos estados norte-americanos 10% da destinação de recursos específicos para quem não adota o instituto do Civil Commitment. Afora isto, os critérios para o recrutamento dos indivíduos a serem conduzidos à internação também variam muito: em 339 certos estados se exige condenação por delitos graves sexuais pretéritos (apesar da AWA), ou ainda, diagnóstico de perigosidade e prognósticos de reincidência através de instrumentos atuariais com emprego discutível à medida em que o risco de falsos positivos conduz, inexoravelmente, ao reforço dos movimentos de lei e ordem. Como visto em 3, III, C não se duvida que os instrumentos atuariais merecem ser aperfeiçoados e possuem grande valia em determinados setores, como por exemplo, no desenvolvimento de políticas públicas de segurança ou mesmo no que tange à uma prévia gestão de riscos. Isto não impede que, para além do instrumento atuarial, medidas individualizadas sejam tomadas em relação ao sujeito que cumpre uma internação desta natureza, que nada mais é, do que uma pena, conforme declarou o TEDH em tom de crítica. Por fim, a escolha do instrumento atuarial deve variar conforme o objetivo a ser alcançado. 3. Execução penal em local adequado, seguro e com servidores capacitados, sob supervisão judicial, mediante planos individualizados de tratamento terapêutico, quando cabível: neste caso, não há maiores observações a tecer, exceto o fato de que, em alguns casos, tem sido preterida a avaliação individualizada em nome dos métodos atuariais, já trabalhados no capítulo quarto. Na verdade, o ideal é a combinação de ambos, como já foi, então, analisado. A definição quanto ao local adequado seria importante se houvesse maior clareza, posto que hoje, em regra, admite-se o cumprimento da internação tanto em unidades psiquiátricas como em estabelecimentos penitenciários, e embora em ambos deva existir tratamento respeitoso com o indivíduo, evidentemente, não se trata da mesma coisa. A etiqueta clássica da internação como um benefício terapêutico não pode mais vingar. Em que pese o instrumento não poder alcançar a índole punitivista, como bem ficou demonstrado no caso Hendricks, tampouco algum tribunal será ingênuo para acreditar no discurso “puramente benéfico”. Evidente o interesse inocuizador, o que se tornou uma realidade, principalmente, a partir do câmbio da primeira para a segunda geração de Civil Commitment ocorrida na década de 90. A falta de vagas, ainda, merece ser referida, porque como demonstrado, a internação custa caro aos cofres públicos e, assim, deveria contar com melhores processos de seleção, ao invés de procedimentos tão abertos e expansivos. Do modo como está funcionando, corre-se o risco de não haver vaga ou recursos adequados para quem realmente necessita da internação. 4. Fixação judicial de pena com prazo máximo de duração determinado; Fixação judicial de medida de segurança com prazo máximo de duração determinado, sendo este resultante de previsão legal taxativa ou não, porém revisável judicial e periodicamente, 340 podendo ser extinta a qualquer momento diante da cessação de perigosidade: neste quesito encontramos problemas sérios quanto à possibilidade de uma perpetuidade na execução do instituto. Como já trabalhado neste capítulo, embora a perigosidade possa levar a um tratamento duradouro, por prazo até indefinido, o Direito Penal exige, em nome da segurança jurídica própria de um Estado Democrático de Direito, limites ao jus puniendi. No entanto, ao tratar-se de medida de Direito Civil, fica aberto o caminho para este tipo de interpretação, o que, a nosso juízo, viola princípios, antes de tudo, o da dignidade humana. 5. Padronização metodológica quanto às exigências de diagnósticos de perigosidade e de prognósticos de reincidência, quando cabíveis: este tema, sem dúvida, como demonstrado, gerou e gera inúmeras preocupações. Cada legislação exige critérios diferenciados quanto ao aprofundamento da prova, quanto ao tipo de enfermidade mental, quanto a conceitos que devem ser preenchidos e buscados em todas as modalidades de exames médicos, psíquicos, atuariais, enfim. Um dos maiores problemas é, sem dúvida, a disparidade conceitual, conforme evidenciado. Infelizmente, não parece ser uma das maiores preocupações político-criminais do momento, exceto, mesmo, pela Academia. 6. Como sugestões para o aprimoramento, entendemos que o instituto até pode ser legitimado, porém modificações estruturais deveriam ser realizadas. Primeiramente, não se deveria esperar o final do cumprimento da privação de liberdade para iniciar o tratamento (ou sua oferta); deveria ser definido o padrão “proof beyond a reasonable doubt” como oficial para o país, nestes casos, pelo maior grau de exigência, diante da severidade de uma custódia que pode ser perpétua; tal tipo de legislação deveria passar a contar com maior precisão terminológica acerca dos conceitos de perigosidade, especialmente de diagnósticos de saúde mental mais modernos e científicos, e definição de prazos máximos, quando se fala em medidas pós pena para sujeitos imputáveis perigosos, verdadeiro objeto de incidência. Por isto, também, o etiquetamento penal seria importante, não para trazer o conceito de retribucionismo ou de punitivismo, como bem questionava Hendricks, mas sim, para buscar as garantias que, de modo objetivo, o Direito Penal encerra. Veja-se, por exemplo, o perigo de utilizar-se o conceito do plead guilty para, com ele e sem qualquer orientação ao sujeito, preencher-se uma fórmula que encerra o indivíduo numa custódia para sempre, quando na verdade, tudo o que ele esperava, ao aceitar o procedimento processual penal, era o contrário. O tratamento dos jovens, conforme a AWA, também precisaria ser revisado, pois como será visto no próximo capítulo, em 6, IV, o registro pela web de jovens considerados delinquentes sexuais a partir de 341 condutas nada graves como urinar em público, por exemplo, em nada contribui para tais indivíduos conseguirem refazer suas vidas, mas ao contrário. Mais precisão e menos influência política, aliados à cobertura de Direito Penal em termos de garantias, além de maior seriedade quanto à classificação dos indivíduos a serem encaminhados aos programas, tornariam o instituto salvável, além do que, as poucas e caras vagas existentes seriam melhor aproveitadas, evidentemente, por quem realmente delas precisa. Dito isto, passamos, então, ao último dos três modelos paradigmáticos de intercambialidade funcional envolvendo instrumentos comparados privativos de liberdade: a Custódia de Segurança alemã. IV. A Custódia de Segurança alemã: mais um modelo paradigmático de intercambialidade funcional A. Aspectos gerais do instituto e suas questões controvertidas 1. De questões históricas aos dias atuais: breves anotações 1. Na Alemanha, desde 1794, com a Allgemeines Landrecht für die Preußischen Staaten (General Territorial Law for the Prussian States ou Código Civil Prussiano) já havia a previsão da denominada preventive detention, uma espécie de Custódia de Segurança pre prevista para os casos de delinquentes perigosos. Somente em 1933, a chamada Custódia de Segurança (Sicherungsverwahrung) foi introduzida no Código Penal mediante a lei Gesetz gegen gefährliche Gewohnheitsverbrecher und über Massregeln der Besserung und Sicherung, de 24 de novembre daquele mesmo ano. Desde então o instituto vem sendo aplicado, conforme Morales Romero,981 a quem abusa, reiteradamente, de sua liberdade para cometer delitos graves, representando um considerável perigo para o futuro. Dizia-se que era o principal instrumento de combate à reincidência nos casos de delinquentes perigosos e violentos. Após a queda do regime nacional-socialista, as custódias foram todas colocadas em segundo plano, sendo reelaboradas a partir de 1998, com a lei de luta contra os delitos sexuais e outros delitos perigosos: “Gesetz zur Bekämpfung von Sexualdelikten und anderen gefährlichen Straftaten”, a qual ampliou as hipóteses de aplicação da mesma. Mais tarde, tal 981 MORALES ROMERO, RGDP n. 13 (2010), p. 3. 342 legislação foi reformulada duas vezes, sempre no sentido de ampliar sua incidência nos casos em que o delinquente representasse uma “ameaça à sociedade.”982 Tal tipo de legislação foi reavivada na Alemanha quando, a partir da segunda metade da década de 90, começou a divulgação pela imprensa de uma série de delitos sexuais “espetaculares”, como refere Cano Paños.983 2. Existem muitas controvérsias acerca do instituto, o qual possui natureza jurídica de medida de segurança criminal. Alguns a definem como sendo meramente inocuizadora, por instrumentalizar o indivíduo, agredindo princípios éticos e constitucionais, degradando a pessoa e tendo finalidade meramente utilitarista. Porém, o posicionamento não é pacífico984 já tendo angariado a simpatia de parte da doutrina e, também, do próprio Tribunal Constitucional alemão, como será detalhado na sequência. A Custódia de Segurança tem sido uma combinação de um fator retributivo (reativo) com um fator preventivo (proativo), segundo seus defensores, conceito este que tem gerado inúmeras polêmicas por parte do mundo acadêmico, principalmente. 985 Vale dizer que a medida não funciona como um substituto para a punição, no caso de pessoas com problemas mentais graves, mas sim como um plus a ser cumprido, em certos casos, após o cumprimento de toda a pena de prisão. Estas questões ficaram ainda mais acentuadas após o Tribunal Constitucional estabelecer o princípio da reabilitação ou ressocialização ao indivíduo preso, em 1970, o que representava o direito a receber tratamentos na prisão, a obter direitos de saídas temporárias, enfim, mesmo aos condenados à prisão perpétua. Embora isto não tenha sido estendido aos detidos em Custódia de Segurança, explicitamente, naquele princípio, assim foi interpretado agora, numa decisão relativamente recente, em 2002, quando o Tribunal Constitucional determinou que saídas temporárias ou para trabalhar seriam importantes a fim de permitir aos indivíduos provarem não serem mais perigosos. No entanto, a Corte Suprema nunca havia chegado a investigar, mais de perto, se realmente existiam esforços e ações concretas nas custódias de segurança visando alcançar aquele objetivo.986 982 ROBLES PLANAS, InDret n. 4 (2007), p. 6. CANO PAÑOS, CPC n. 91 (2007), p. 218. 984 GRACÍA MARTÍN, en: GARCÍA VALDÉS/CUERDA RIEZU/MARTÍNEZ ESCAMILLA/ALCÁCER GUIRAO/VALLE MARISCAL DE GANTE (coords.), Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat, pp. 988-1000. 985 DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), pp. 312-327. 986 Ibidem. 983 343 3. Discussões históricas à parte, a Sicherungsverwahrung atualmente é, pois, medida de segurança privativa de liberdade que se impõe a sujeitos imputáveis e perigosos, e que está prevista no §66b StGB. Sua origem remonta à época de von Liszt, quando este, no Programa de Marburgo, sustentava que a pena não apenas tinha um fim retributivo, mas que também tinha a missão de prevenir condutas delitivas posteriores. Neste apartado serão estudados, então, algumas questões históricas, os seus pressupostos e prazo de duração, casos concretos como o de M., e a sentença de 17 de dezembro de 2009, do TEDH, bem como o de Albert Haidn e a sentença de 13 de janeiro de 2011, daquele mesmo tribunal, o olhar internacional, algumas importantes observações feitas pelo Anteprojeto de Reforma do CP espanhol em relação ao mesmo tema, embora não exitoso, a discussão acerca da intercambialidade funcional e, por fim, as propostas para a legitimação da Custódia de Segurança, pela própria Alemanha, os critérios verificadores quanto à legitimidade da Custódia de Segurança para fins desta pesquisa, acompanhados de sugestões para o aprimoramento do instituto. 2. Execução da custódia:dos pressupostos ao prazo máximo de duração 1. A lei de combate a crimes sexuais na Alemanha, de 26 de janeiro de 1998 flexibilizou os requisitos de aplicação das medidas de segurança para delinquentes sexuais, especialmente da Custódia de Segurança. Esta poderia ser aplicada quando o indivíduo fosse sentenciado por um delito doloso grave, geralmente, contra a vida, dignidade sexual, liberdade ou saúde de outrem a, pelo menos, dois anos de prisão e, ainda, se as seguintes condições estivessem presentes: primeiramente, o acusado já deve ter sido condenado (sentenciado) por, no mínimo, três anos de privação de liberdade por delito anteriormente praticado e previsto naquela lei, ter cumprido ao menos dois anos de privação de liberdade (pena ou medida) por delito doloso e praticados anteriormente a este novo delito pelo qual está agora sendo julgado, além de apresentar diagnóstico de perigosidade e prognóstico desfavorável quanto à colocação em liberdade.987 Além disso, a medida também é cabível quando o sujeito tenha cometido dois dos delitos referidos naquela lei, sujeito à pena de privação de liberdade de, no mínimo, dois 987 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS TEDH. Case of M. v. Germany, 2009. Vide BASDEKISJOZSA/MOKROS/VOHS/BRIKEN/HABERMEYER, Sci. Law v. 31 n. 3 (2013), pp. 344-358. 344 anos, e ainda, resulte condenado por um ou mais desses crimes ficando sujeito a uma pena mínima de privação de liberdade de, pelo menos, três anos, contando com o prognóstico referido desfavorável, mesmo que não tenha sido condenado ou privado de liberdade previamente.988 2. Atualmente, as medidas de segurança, como é o caso da Custódia de Segurança, na Alemanha, visam, basicamente, reabilitar delinquentes perigosos ou, mesmo, proteger a sociedade daqueles, podendo ser adicionadas à pena para os imputáveis perigosos. Após a pena, incide a Custódia de Segurança e, após a custódia, nos casos de suspensão condicional da medida, incide a liberdade vigiada, podendo chegar a prazos indefinidos de duração, conforme a Gesetz zur Bekämpfung von Sexualdelikten und anderen gefährlichen Straften, de janeiro de 1998.989 Agora, com a lei citada, de 1998, a Custódia de Segurança já poderia ser imposta por ocasião da primeira condenação e por prazo indeterminado, ainda que a mesma tivesse também previsto a possibilidade de declarar extinta a medida após dez anos, caso provado não mais haver perigo de que o interno viesse a lesar, física ou psiquicamente, alguém, a pesar de suas tendências. Em outras palavras: houve uma reativação do instituto.990 A citada lei entrou em vigor dia 31 de janeiro daquele mesmo ano:991 “If a person has spent ten years in preventive detention, the court shall declare the measure terminated if there is no danger that the detainee will, owing to his criminal tendencies, commit serious offences resulting in considerable psychological or physical harm to the victims. Termination shall automatically entail supervision of the conduct of the offender.” Trata-se de medida de segurança cumprida após a pena privativa de liberdade, não estando, pois, limitada pela culpabilidade, mas pela ainda presente perigosidade do indivíduo, no dizer de Silva Sánchez.992 Deve ser proporcional à gravidade dos delitos praticados, dos delitos que poderão vir a ser praticados, bem como à perigosidade do sujeito, como já referiu o TEDH.993 “The purpose of these measures is to rehabilitate dangerous offenders or to protect the public from them. They may be ordered for offenders in addition to their punishment (compare Articles 63 et seq.). 988 HERNÁNDEZ BASUALTO, RP n. 23 (2009), p. 219. JESCHECK/WEIGEND, PG5, p. 884-888. Vide ainda: SILVA SÁNCHEZ, en: ARROYO ZAPATERO/ BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.) NIETO MARTÍN (coord.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos, vol. I, p. 706. 990 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 649. 991 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of M. v. Germany, 2009. 992 SILVA SÁNCHEZ, en: ARROYO ZAPATERO/BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.) NIETO MARTÍN (coord.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos, vol. I, p. 706. 993 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS. Case of M. v. Germany, 2009. 989 345 They must, however, be proportionate to the gravity of the offences committed by, or to be expected from, the defendants as well as to their dangerousness (Article 62 of the Criminal Code).” 3. Antes de janeiro de 1998, a Custódia de Segurança tinha duração máxima determinada de, no máximo, dez anos, conforme o artigo 67-d do CP alemão. No caso dos autores de delitos sexuais, especialmente de delitos sexuais violentos, verifica-se, portanto, certa tendência na aplicação mais ampla de penas ou medidas com prazos de duração indeterminados. “Se trata, ni más nem menos, de intensificar intervenciones penales en el núcleo de la delinquencia clásica. Y hacerlo en el sector de la criminalidad en el que, con toda probabilidad, más se ha producido el extrañamiento entre víctima y delinquente, en el que a éste se le atribuyen más connotaciones de ajenidad, de alineación, frente al resto de los ciudadanos que no lo reconocen como uno de los suyos. Y eso ha arrumbado buena parte de las certezas precedentes: las reacciones penales ya no le intimidan suficientemente, la resocialización no funciona con tales indivíduos, sólo la inocuización, el aislamiento, de tales personas ofrece perspectivas de éxito.” 994 Hoje, a custódia alemã pode durar toda a vida, no dizer de Robles Planas,995 havendo um regime especial de revisão da medida, sem prejuízo da revisão obrigatória a cada dois anos. Conforme o regime especial, o Tribunal deve declarar cumprida a medida quando o sujeito tiver cumprido dez anos desde o início da execução “(quedando el interno libre pero sujeto a vigilancia de conducta), a menos que exista el peligro de que a consecuencia de su inclinación cometa delitos de consideración, que afecten espiritual o fisicamente de un modo grave a las victimas.”996 4. Numa análise retrospectiva, verifica-se que as reformas de 2002 e 2004 nesta matéria geraram muitas polêmicas. É que a primeira, ocorrida em 21 de agosto de 2002, passou a permitir a execução da Custódia de Segurança ao final do cumprimento da pena privativa de liberdade, desde que a Corte sentenciadora tivesse reservado-se o direito, já no momento da sentença condenatória, de fazer tal análise e impor esta medida, mais tarde, procedimento denominado como “reserva de medida”, nos termos do §66/a(2) StGB. Ademais, esta mesma reforma passou a admitir a possibilidade de a sentença prever a chamada “reserva de medida” também para indivíduos com idade entre dezoito e vinte e um anos que 994 DÍEZ RIPOLLÉS, en: La política criminal en la encrucijada, p. 162. Ainda no mesmo sentido FELIP I SABORIT/ROBLES PLANAS/PASTOR MUÑOZ/SILVA SÁNCHEZ, en: AGRA/DOMÍNGUEZ/ GARCÍA AMADO/HEBBERECHT/RECASENS (eds.), Seguridad en la sociedad de riesgo: un debate abierto, 2003, pp. 121-124. 995 ROBLES PLANAS, InDret 2007, p. 6. 996 HERNÁNDEZ BASUALTO, RP n. 23 (2009), pp. 218-267. 346 tivessem sido sentenciados sob o manto do Direito Juvenil.997 A modificação legislativa posterior, de 23 de julho de 2004, foi ainda mais drástica: ainda que a corte sentenciadora não tivesse resguardado tal reserva de medida para mais tarde, a Custódia de Segurança poderia restar sendo imposta ao final do cumprimento da pena de prisão, antes de o sujeito alcançar a liberdade, nos termos do §66/b StGB.998 5. Em sentença datada de fevereiro de 2004, o Tribunal Constitucional alemão declarou constitucional a supressão feita em 1998 do limite máximo da custódia imposta por primeira vez.999 Em 2006, O Tribunal Constitucional alemão afirmou, em sentença de 23 de agosto, a constitucionalidade da medida imposta com posterioridade à sentença nos casos em que a perigosidade do indivíduo resultasse demonstrada a partir de circunstâncias novas, ou seja, que não foram consideradas ao tempo da sentença condenatória. O Tribunal entendeu que não se tratava de um menoscabo aos princípios da irretroatividade e de proporcionalidade. 1000 Os partidários da aplicação retroativa1001 das medidas em geral, apoiaram-se no argumento de que se tratava de prevenir a perigosidade do autor, sendo uma perigosidade que não poderia ser detectada no momento da condenação, mas apenas, posteriormente. Não se trataria, pois, de uma modificação do conteúdo material da ilicitude do fato praticado. A respeito, Freund refere que somente após o cumprimento da pena faz sentido impor a medida de Custódia de Segurança, já que, segundo ele, qualquer outra decisão anterior seria precipitada e supérflua, já que não poderia prever, mas apenas especular sobre a perigosidade que o indivíduo poderia apresentar no futuro momento de sua colocação em liberdade: “no tiene sentido exigir que todo lo sustancial esté ya regulado en el momento de la condena penal del delincuente por el hecho cometido.”1002 6. Entretanto, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos – TEDH, considerou que a aplicação retroativa da custódia agride o princípio da irretroatividade das leis penais e a segurança jurídica, dentre outros fundamentos exarados igualmente importantes, os quais serão analisados neste capítulo. Vale recordar que até a sentença do TEDH era possível a aplicação da custódia de modo retroativo, ainda que o sujeito estivesse a ponto de ser colocado em liberdade. O tema é atual e relevante, e a Alemanha não se encontra isolada. Veja-se, por 997 BASDEKIS-JOZSA/MOKROS/VOHS/BRIKEN/HABERMEYER, Sci. Law v. 31 n. 3 (2013), p. 345. JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 650. 999 ROBLES PLANAS, InDret n. 7 (2007), p. 7. 1000 Ibidem, p. 7. 1001 REBOLLO VARGAS, en: CÓRDOBA RODA/GARCÍA ARÁN (dirs.), Comentarios al CP: PG, p. 800. 1002 FREUND, en: LANDA GOROSTIZA (ed.)/GARRO CARRERA (coord.), Delincuentes peligrosos, pp.40-42. 998 347 exemplo e apenas a título de curiosidade, que tal tipo de legislação também já existe na Suíça, onde, em 2006, a custódia a posteriori foi introduzida no artigo 65, §2º, do CP, com um caráter quase perpétuo ao admitir a revisão apenas no caso de novas descobertas científicas que permitam encontrar possibilidade de cura “para a perigosidade do indivíduo violento ou sexual, com elevado risco de reincidência, e não suscetível de tratamento terapêutico.”1003 A fim de se expor melhor os temas ora anunciados, passamos, de imediato, a dois casos concretos ocorridos na Alemanha, com as consequentes avaliações jurídicas realizadas pelo Tribunal Constitucional alemão, bem como pelo TEDH. B. Casos concretos atuais e ilustrativos, e suas considerações jurídicas 1. Foram escolhidos dois casos concretos e bastante emblemáticos acerca do tema da Custódia de Segurança alemã para serem apresentados: o caso de M. e o caso de Haidn. Após, serão feitas considerações à luz das observações do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e de outras instâncias pertinentes. 1. O caso de M. e a Sentença de 17 de dezembro de 2009, do TEDH. 1. M. nasceu em 1957 e ao tempo em que ingressou com sua ação contra a Alemanha encontrava-se cumprindo pena na Schwalmstadt Prison.1004 Havia sido condenado por, pelo menos, sete vezes desde que alcançou a maioridade penal, tendo passado poucas semanas, no total, fora da penitenciária. Somente entre 1971 e 1975 foi, repetidas vezes, condenado por furtos e roubos com concurso de pessoas. No mês de outubro de 1977, a Kassel Regional Court lhe impôs uma condenação por homicídio tentado, roubo em concurso de pessoas e lesões corporais. Foi considerado, ainda, que M. sofria de algum transtorno mental e, com isso, sua responsabilidade criminal foi considerada diminuída. Em março de 1979, a Wiesbaden Regional Court o condenou por lesões corporais, sendo sancionado a um ano e nove meses de prisão, tendo sido colocado em hospital psiquiátrico. Posteriormente, agrediu 1003 1004 JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 652. EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 348 um dos agentes penitenciários, atirando contra aquele uma caixa de metal, atingindo-o na cabeça. Após ser repreendido, agrediu-o novamente, usando de violência. Acabou sendo confirmado que M. sofria de sério transtorno mental, sendo sua responsabilidade criminal novamente reduzida. Em janeiro de 1981, a Marburg Regional Court condenou-o por lesões corporais contra outro detento, portador de deficiência, em face de uma discussão sobre se a “janelinha da cela deveria ficar ou não aberta”. M. foi colocado novamente em um hospital psiquiátrico e, após realizados os exames, os peritos concluíram que a perigosidade de M. havia melhorado e suas condições de execução foram relaxadas. No entanto, M. roubou e tentou matar uma mulher, em 1985. Por isso, em 17 de novembro de 1986, a Marburg Regional Court condenou-o por homicídio tentado e por roubo, sentenciando-o a cinco anos de prisão. Ademais, o condenaram à Custódia de Segurança. Após certo tempo, novos exames foram realizados e foi considerado pelo tribunal, diante da avaliação dos peritos, que embora M. ainda sofresse de desordem mental, o quadro não era mais de ordem patológica, razão pela qual M. foi mandado para a Schwalmstadt Prison em agosto de 1991. Em 17 de novembro de 1998, a Marburg Regional Court recusou-se a colocar M. no período de prova da liberdade condicional ou a interná-lo em hospital psiquiátrico. Diante do exposto, a Regional Court entendeu que M., caso liberado, poderia reincidir, o que foi confirmado pelo perito psiquiatra forense. O diagnóstico de M. confirmava personalidade narcisista e sem capacidade de sentir empatia pelos demais, porém não sofria de qualquer transtorno mental, necessitando ser observado por vários anos antes de deixar de ser considerado perigoso. 2. Conforme Morales Romero1005, a imposição de custódia feita a M. naquela época não poderia ultrapassar os dez anos de duração, conforme a lei então vigente. Assim, considerando-se a execução da medida apenas após o cumprimento da pena privativa de liberdade, que se deu em agosto de 1991, o custodiado teria que ter sido posto em liberdade no ano de 2001. No entanto, com a novel legislação de 1998, o Tribunal Regional de Marburgo estendeu sua custódia por tempo ilimitado dada à perigosidade do mesmo. Entretanto, não houve qualquer “reserva de medida” na sentença condenatória. Aliás, a “reserva de medida” somente veio a ser criada em 2002 e, ainda, apenas em 2004, nova legislação passou a prever a desnecessidade de reserva de medida diante de casos graves envolvendo perigosidade intensa, autorizando, assim, a imposição de custódia por tempo indeterminado após o cumprimento da pena privativa de liberdade. M. processou a Alemanha (application file n. 19359/04), em maio 1005 MORALES ROMERO, RGDP n. 13 (2010), p. 3. 349 de 2004, alegando violação a vários artigos da Convenção Europeia de Direitos Humanos – CEDH, especialmente aos artigos 5º e 7º, §1º, devido à custódia a ele imposta estar estendida para além dos dez anos, hipótese legal prevista quando de sua condenação. 3. Conforme a Frankfurt am Main Court of Appeal1006, o artigo 67d, § 3, CP, alterado em 1998, foi considerado constitucional e seu artigo 2, §6 do mesmo diploma legal autorizou a retroatividade da medida no caso concreto. Foi entendido que o princípio da irretroatividade da lei mais prejudicial somente é aplicável no caso de penas, e não de medidas. Com isto, reforçou-se o entendimento de que a Custódia de Segurança é, sem qualquer dúvida, medida de segurança, tendo caráter preventivo, conforme artigo 103, § 2, CP. Este entendimento é reforçado pelo argumento da supremacia do interesse público no caso concreto, diante da perigosidade do sujeito:1007 “Likewise, the applicant's continued preventive detention did not infringe the prohibition in principle of retrospective provisions enshrined in the rule of law. Weighty public-interest grounds, namely the protection of the public from dangerous offenders, justified the adoption of such retrospective provisions by the legislator in the present case.” 1008 4. Irresignado, em 2001, M. impetrou recurso de amparo diante do Tribunal Constitucional alemão, alegando que a prolongação da custódia, no seu caso, agredia o seu direito à liberdade e autorizava uma retroatividade de disposições penais sancionadoras, o que é proibido pela Carta Política. O recurso foi analisado três anos depois, e julgado improcedente. Primeiramente, o Tribunal Constitucional disse que a extensão da Sicherungsverwahrung por período superior a dez anos não violava seu direito à liberdade, pois a decisão respeitava o princípio da proporcionalidade; em segundo lugar, tratava-se de medida de natureza preventiva, utilizada para proteger a sociedade contra delinquentes perigosos e, assim, o regime novo de Sicherungsverwahrung poderia ser aplicado retroativamente. Desta forma, em 5 de fevereiro de 2004, o Tribunal Constitucional declarou “conforma a la Constitución la supresión del límite máximo de dez años a la custodia de seguridad impuesta por primera vez” e apresentou alguns fundamentos, 1006 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1007 DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 2013 p. 315. 1008 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 350 os quais passamos a expor, sucintamente, acerca da custódia com prazo de duração indeterminado. 5. O Tribunal Constitucional entendeu que a custódia sem prazo de duração determinado não atingia a dignidade humana, do mesmo modo em que ocorre com a prisão perpétua, quando se possibilita uma vida responsável em liberdade, já que ambas buscam a ressocialização do indivíduo, através de programas concretos que auxiliam na busca pela liberdade:1009 “The person's dignity was not violated even by a long period of preventive detention if this was necessary owing to the continued danger which he or she posed. However, the aim of preventive detention had to be to rehabilitate detainees and to lay the foundations for a responsible life outside prison. Human dignity required laws and enforcement programmes which gave detainees real prospects of regaining their freedom.” O Tribunal também entendeu que a custódia sem prazo de duração determinado e aplicada retroativamente não gerava qualquer interferência desproporcional ao direito à liberdade do cidadão, pois uma vez transcorridos os dez anos, incrementam-se as exigências para a prolongação da medida. Ademais, citava a legislação, referindo que, conforme a Seção 1ª, preambular ao CP, constava que a lei alemã não restringia a possibilidade de uma aplicação retroativa:1010 “Article 67d of the Criminal Code, as amended by the Combating of Sexual Offences and Other Dangerous Offences Act of 26 January 1998 (Federal Gazette I, p. 160), shall apply without restriction.” Por fim, a Corte Constitucional alemã disse que “a custódia por prazo indeterminado e de modo retroativo não violava, ainda, o princípio da confiança, porque pesa mais o interesse coletivo à segurança pública na defesa de bens jurídicos fundamentais.” 1011 No caso concreto, 1009 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1010 SANZ, RPC n. 4 A3 2007 p. 9. E ainda: EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp? action=html&documentId=860012&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB861 42 BF01 C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1011 SANZ MORÁN, en: BUENO ARÚS/KURY/RODRÍGUEZ RAMOS/RAÚL ZAFFARONI (dirs.), Derecho penal y criminología como fundamento de la política criminal, p. 1098. 351 o Tribunal referiu que o interesse público se sobrepôs ao interesse à liberdade por parte de M., conforme prevê o artigo 67- d, § 3º, CP:1012 “The Federal Constitutional Court held that preventive detention based on Article 67d § 3 of the Criminal Code restricted the right to liberty as protected by Article 2 § 2 of the Basic Law in a proportionate manner. […] Weighing the interests involved, the Federal Constitutional Court concluded that the legislator's duty to protect members of the public against interference with their life, health and sexual integrity outweighed the detainee's reliance on the continued application of the ten-year limit.” A análise feita pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos será apresentada na sequência, no item 5, IV, C, 1, ainda neste capítulo. Veja-se outro caso de grande repercussão, no mesmo sentido, e que se considera referencial para o estudo desta problemática. 2. O caso de Albert Haidn e a Sentença de 13 de janeiro de 2011, do TEDH 1. Albert Haidn, cidadão nascido em 1934, processou a Alemanha também em razão da Custódia de Segurança que a ele teria sido aplicada retroativamente. Haidn estava preso por estupro, eis que em 1982, teria persuadido P., com quinze anos de idade, a ter relações sexuais com ele, em troca do pagamento da conta de luz da família da vítima. No entanto, durante o intercurso sexual, a vítima reclamava de dores, razão pela qual Haidn empregou violência contra a menina. Em julho de 1994, Haidn estava internado em hospital psiquiátrico em Bayreuth quando a Freyung District Court condenou-o por três abusos sexuais contra criança de nove anos de idade à época dos fatos, todos praticados no ano de 1993. Considerado portador de transtorno mental, teve sua responsabilidade penal diminuída.1013 Em 16 de março de 1999, a Passau Regional Court1014 condenou Haidn por outros dois estupros, aplicando ao mesmo pena de dois anos e nove meses por delito. Uma das vítimas era seu enteado, abusado desde quando tinha sete anos, bem como a irmã do menino, com quatorze anos. Diagnosticado com degeneração cerebral contínua, teve, novamente, sua responsabilidade penal diminuída. A 1012 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1013 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of Haidn v. Germany. Application n. 6587/04, Strasbourg 13 Jan. 2011. Disponível em: <http://cmiskp.echr. coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=879804&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142B F01C1166DEA398649>. Acesso em: 3 set. 2012. 1014 Ibidem. 352 Custódia de Segurança não havia sido aventada, posto que os delitos de Haidn eram todos anteriores à legislação de 1998. Ainda na prisão, Haidn foi informado que possivelmente seria mantido por mais tempo além da condenação, com base na “Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern”, de 1º de janeiro de 2002, dirigida para indivíduos particularmente perigosos e com alta probabilidade de reincidência. De fato, em 10 de abril de 2002, a Bayreuth Regional Court determinou que Haidn, já com 67 anos de idade e diagnosticado com dificuldades para caminhar, além da degeneração cerebral contínua, fosse colocado em Custódia de Segurança com prazo de duração indefinido, com base na lei referida, posteriormente ao cumprimento do tempo de pena privativa de liberdade. A Bayreuth Regional Court decidiu que a idade de Haidn não era impedimento para a custódia, posto que assim funciona em qualquer país do Council of Europe's Member States, e que o fato não conferia gravidade suficiente para ocasionar a violação à legislação, conforme o alegado por Haidn. Assim, faltando apenas três dias para a sua colocação em liberdade, Haidn foi colocado em regime de Custódia de Segurança. 2. A seguir, um novo fato chamou a atenção da comunidade jurídica: Haidn já havia apelado à Landgericht Bamberg Court of Appeal no dia 3 de maio de 2002, a qual manteve o entendimento pela constitucionalidade da Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern. Irresignado, Haidn recorreu ao Tribunal Constitucional Federal, o qual analisou o caso juntamente com outro similar, o qual questionava a Lei para Criminosos Perigosos da Alta Saxônia. Haidn alegou que sua prisão “continuada”, com finalidades preventivas, depois de ter cumprido toda a pena privativa de liberdade (entre 14 de abril de 2002 e 16 de dezembro de 2003, e também entre 3 de março e 30 de setembro de 2004), de acordo com a lei alemã inicialmente referida agredia seu direito à liberdade, nos termos do previsto pelo artigo 5º, §1º, da Convenção: “1. Everyone has the right to liberty and security of person. No one shall be deprived of his liberty save in the following cases and in accordance with a procedure prescribed by law: (a) the lawful detention of a person after conviction by a competent court; […] (c) the lawful arrest or detention of a person effected for the purpose of bringing him before the competent legal authority on reasonable suspicion of having committed an offence or when it is reasonably considered necessary to prevent his committing an offence or fleeing after having done so; […] (e) the lawful detention of persons for the prevention of the spreading of infectious diseases, of persons of unsound mind, alcoholics or drug addicts or vagrants.”1015 1015 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of Haidn v. Germany. Application n. 6587/04, Strasbourg 13 Jan. 2011. Disponível em: <http://cmiskp.echr. coe.int/tkp197/view.asp?action= 353 Referiu que não poderia seguir preso diante de legislação como a Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern, que permitia a aplicação retroativa da medida e que havia sido considerada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional alemão. Entretanto, o argumento tampouco vingou, pois como veremos na sequência, embora inconstitucional, foi dado um “período de transição” para o ajuste dos estados (Länder) e seguiu-se aplicando aquela lei com o aval do Tribunal Constitucional. Haidn também alegou violação ao artigo 3º da CEDH, pela questão da relação entre o prazo indeterminado e o tratamento desumano ou degradante, no que não foi atendido. Logicamente que, além destas questões jurídicas, questões de cunho político reforçaram este posicionamento, pois o governo alemão disse que Haidn não havia logrado êxito nos exames periódicos de verificação de cessação de perigosidade, e que não era o caso de tratamento desumano ou degradante na medida em que Haidn era submetido às mesmas condições dos outros indivíduos condenados, e que sempre recebeu acompanhamento terapêutico, mesmo na prisão. Afora isto, foi alegado que Haidn, nas oportunidades de liberdade que teve, demonstrou não estar preparado, já que seguia cometendo delitos. 3. Necessária uma pequena explicação paralela. Havia uma discussão sobre competência para legislar dentro do país. O governo federal alemão entendia que os parlamentos de cada estado ou Länder eram competentes para legislar sobre a aplicação retroativa da Custódia de Segurança, tanto que assim nasceu a Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern ou Bavarian Act for the placement of particularly dangerous offenders very liable to reoffend no dia 24 de dezembro de 2001, entrando em vigor dia 1º de janeiro de 2002, na Bavária. Com isso, a aplicação retroativa do instituto, também denominado como preventive detention, passou a ocorrer com prazos de duração indeterminados, somente podendo o sujeito ser liberado caso viesse a ser provado que o mesmo não fosse mais perigoso. Porém, o tema não era pacífico. O Tribunal Constitucional alemão, por cinco votos a três, decidiu que os Länder, neste caso, especificamente, Baviera e Alta Saxônia,1016 não tinham competência para legislar sobre a custódia retroativa (Nachträgliche Sicherungsverwahrung). Entretanto, não decidiu pela revogação dos estatutos de ambos. Ao revés, entendeu pela incompetência dos Länder, porém concedeu prazo até 30 de setembro para que corrigissem os problemas, na sentença de 10 de html&documentId=879804&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142B F01C1166DEA398649>. Acesso em: 3 set. 2012. 1016 CANO PAÑOS, CPC n. 91 (2007), pp. 211-212. 354 fevereiro de 2004. Seria um “período de transição”.1017 Tal posicionamento do Tribunal Constitucional foi muito criticado, pois segundo a Seção 95, §3, da Constituição, no caso de uma lei ser considerada inconstitucional deveria ser rechaçada de plano. No entanto, o que houve, de fato, segundo o Tribunal Constitucional, foi uma declaração de “incompatibilidade”, apenas, já que entendeu que se tratava de matéria de Direito Penal e, portanto, os Länder não poderiam legislar a respeito. E assim, houve a determinação de continuidade quanto à aplicação das leis, em nome da segurança pública (por um período de transição) a qual se julgou que seria ameaçada com a colocação em liberdade de delinquentes considerados perigosos e que estavam recolhidos. Cinco dos dezesseis Länder acabaram formulando estatutos nos moldes da Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern. A decisão do Tribunal Constitucional acabou envolvendo o caso de Haidn: “As to the circumstances in which the applicant was detained, the Court notes that on 10 April 2002, three days before his scheduled release from prison on 13 April 2002, the domestic courts placed him in prison for an indefinite duration for preventive purposes. The Bavarian (Dangerous Offenders') Placement Act, which served as the legal basis for his further detention, entered into force only on 1 January 2002, less than three and a half months before his scheduled release. Even though the said Act was found by the Federal Constitutional Court to be unconstitutional, that court ordered its continued application until 30 September 2004 and the applicant was detained further on the basis of that Act. Despite the fact that his detention must therefore be considered to have remained legal under domestic law, it failed to comply with Article 5 § 1 of the Convention, for the reasons set out above.”1018 Como se depreende da leitura da sentença de 13 de janeiro de 2011, do Tribunal de Estrasburgo, o Tribunal Constitucional declarou não ter tido a intenção de surpreender Haidn três dias antes do encerramento do cumprimento de sua pena privativa de liberdade, tendo sido uma coincidência, apenas, reconhecendo, no entanto, poder ter gerado sensação de humilhação e de incertezas quanto ao futuro do mesmo: “The Court observes that the said circumstances in which the applicant was detained after he had fully served his prison sentence must have generated in him feelings of humiliation and uncertainty as to the future, going beyond the inevitable element of suffering connected with any imprisonment. However, in view of the fact that the Bavarian (Dangerous Offenders') Placement Act had entered into force only shortly before the court's order to detain the applicant further, it cannot be said that the authorities deliberately wished to surprise, let alone debase, the applicant by ordering his continued 1017 1018 Vide EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of Haidn v. Germany. Application n. 6587/04, Strasbourg 13 Jan. 2011. Disponível em: <http://cmiskp.echr. coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=879804&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF0 1C1166DEA398649>. Acesso em: 3 set. 2012. EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of Haidn v. Germany. Application n. 6587/04, Strasbourg 13 Jan. 2011. Disponível em: <http://cmiskp.echr. coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=879804&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF0 1C1166DEA398649>. Acesso em: 3 set. 2012. 355 detention three days before his scheduled release from prison. Likewise, there is nothing to indicate that the German courts, in ordering the applicant's continued detention, did not act in good faith and on the assumption that his detention was compatible with the Convention.”1019 A Corte Constitucional declarou, ainda, que no caso concreto, a Bayreuth Regional Court havia decidido colocar Haidn no período de prova em 16 de dezembro de 2003, ou seja, menos de dois anos após ter determinado seu recolhimento à prisão. Porém, a mesma Corte revogou o ato três meses após, diante da reincidência de Haidn em delitos sexuais, demonstrando que o mesmo não tinha condições de viver em liberdade. 4. Em 16 de dezembro de 2003, a Bayreuth Regional Court determinou a suspensão da pena de prisão a Haidn, que havia sido imposta em 10 de abril de 2002, pelo período de um ano. Ele foi encaminhado a uma residência para idosos portadores de problemas mentais, com a condição de não sair do asilo sem autorização de seu Betreuer ou agente de custódia. No dia 3 de março de 2004, Haidn foi novamente preso por ter molestado sexualmente idosos com problemas mentais naquela residência psiquiátrica. Foi encaminhado à penitenciária de Bayreuth, mas em 26 de março de 2004, a Bayreuth Regional Court revogou a suspensão de colocação de Haidn na penitenciária e, no dia 5 de julho de 2004, a Bayreuth Regional Court entendeu pela aplicação da legislação Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern, a qual foi então ser aplicada juntamente com o parecer da Corte Constitucional, de fevereiro de 2004. A lei Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern havia entrado em vigor em janeiro daquele ano, três meses e meio antes de sua (quase) colocação em liberdade. Desta forma, foi determinado que Haidn fosse internado em hospital psiquiátrico e, depois, preparado para a liberdade. Em 28 de julho de 2004, Haidn foi internado no Hospital Psiquiátrico de Bayreuth. Lembre-se que também no dia 28 de julho de 2004, foi promulgada a lei que introduziu a custódia retroativa (Gesetz zur Einführung der nachträglichen Sicherungsverwahrung), a qual entrou em vigor dia 29 de julho de 2004. Agora, a custódia ou preventive detention poderia ser imposta retroativamente, especialmente antes do encerramento do cumprimento da pena privativa de liberdade, desde que se tratasse de delito contra a vida, a liberdade ou à autodeterminação sexual, nos termos do artigo 66 §3, CP, com as evidências de que aquela pessoa representasse perigo significativo aos demais. Enquanto tal lei federal era aguardada, tinha-se, no início de 2004, quatro pessoas presas sem maiores respaldos legais, e em junho do mesmo ano, este número já havia subido para oito. Durante 1019 Ibidem. 356 todo este tempo de espera pela lei de Introdução da Imposição Posterior da Custódia de Segurança para tratar da imposição posterior da medida de Custódia de Segurança no CP,1020 os indivíduos seguiram presos e sem amparo legal. 5. Cabe salientar que além da Alemanha, outras organizações e países discutem o assunto, a fim de encaminhar suas próprias diretrizes e legislações. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos já analisou o assunto e exarou decisões importantes, já comentadas por alto, mas que serão agora aprofundadas. Também assim, o Conselho Europeu já emitiu posicionamento importante a respeito do tema. Por fim, destacamos a Espanha, eis que o país apresenta apresenta verdadeiro câmbio inovador na forma de lidar com o imputável perigoso na área dos delitos graves sexuais, através da medida de segurança denominada liberdade vigiada, tema que será abordado, com maior profundidade, no próximo capítulo. Porém, cabe referir que a proposta de reforma espanhola para a introdução da medida de Custódia de Segurança não obteve sucesso e não saiu do anteprojeto de reforma do CP. C. A Sicherungsvewahrung na visão das agências internacionais 1. A análise dos casos concretos pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos TEDH 1. Aos olhos do Direito Penal alemão, a custódia é considerada medida de segurança, não se aplicando, portanto, o princípio da irretroatividade, conforme a legislação daquele país prevê. Entretanto, saliente-se que o TEDH não está vinculado à forma como o Direito interno compreende e cataloga a Sicherungsvewahrung. Aliás, vasta jurisprudência do próprio TEDH vem reclamando a construção de um conceito autônomo de sanção penal para efeitos dos artigos 6º e 7º da CEDH, independentemente da classificação outorgada pelos Estados. Uma Convenção desta natureza possui especial significado em termos constitucionais, pois tanto seu texto, quanto a jurisprudência do TEDH, são considerados critérios auxiliares de interpretação para a determinação do conteúdo e do alcance dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos-estatais da Constituição alemã, no caso. 1020 CANO PAÑOS, CPC n. 91 (2007), pp. 230-237. 357 2. A Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) é considerada lei federal, assim como cada convenção internacional, nos termos do que refere o artigo 59, inciso II, da Constituição alemã. Gera duas consequências importantes: não implica, automaticamente, qualquer nulidade de qualquer lei; sua violação não pode ser enfrentada através de um mero recurso de amparo diante do Tribunal Constitucional. Versa sobre obrigações de sujeição que derivam do princípio de empatia jurídico-internacional da Constituição sobre a base dos direitos humanos, que deve ser considerado no marco da proporcionalidade no momento de se colocar os pesos na balança. As decisões possuem efeito declaratório, não se podendo produzir, de imediato, qualquer modificação no plano jurídico. Conforme Swiderski1021 “las decisiones del TEDH deben considerarse en la interpretación legal y por lo mismo tienen un significado jurídicamente relevante.” 3. No tocante ao valor das sentenças proferidas pelo TEDH, declara Böhm1022 que as mesmas não possuem efeito cassatório e o Tribunal não pode impor medidas aos Estados. Entretanto, as suas sentenças possuem caráter vinculante imediato para o caso concreto, e mediato para casos paralelos. No caso da Alemanha, diante da Custódia de Segurança, num primeiro momento o Tribunal Constitucional rechaçou o pedido do requerente para ser colocado em liberdade, diante da necessidade alegada de segurança pública como prioridade. Porém, estava claro que a Alemanha teria que rever não só sua decisão, mas também sua normativa interna. 4. Nos casos concretos apresentados e que acabaram sendo julgados pela Corte de Estrasburgo, há algumas considerações a serem feitas. Após serão apresentadas as conclusões em cada um deles. Primeiramente, veja-se, no dizer do TEDH, que no caso de M., este havia praticados os injustos penais quando a Sicherungsverwahrung estava submetida, ainda, a limites temporais. Assim, a prorrogação da custódia vulnerou o artigo 5º, da CEDH. Em segundo lugar, veja-se que a decisão tomada no caso, pelo Tribunal Constitucional, também feriu o artigo 7º, do CEDH, ao aplicar-se, retroativamente, uma disposição penal desfavorável.1023 Também chamou a atenção que a análise de perigosidade a indicar penas ou 1021 SWIDERSKI, BS GLIPGö n. 1 (2011), p. 29. BÖHM, BS GLIPGö n. 2 (2011), p. 25. 1023 MORALES ROMERO, RGDP n. 13 (2010), p. 3. 1022 358 medidas de caráter inocuizador estava ocorrendo não apenas no momento da sentença condenatória, mas também, a posteriori. Assim, nos termos de Böhm:1024 “El TEDH estableció que prolongar el encierro de personas condenadas teniendo por única base una reforma que quita un plazo máximo para la duración de la medida resulta violatorio del art. 5º (derecho a la libertad) y del art. 7º (no hay condena sin ley previa) de la CEDH. Según el Tribunal, esta imposición carecería de la relación causal entre una sentencia previa y la medida, violándose el requisito de que la medida sea impuesta por un tribunal competente juzgador del hecho. Además, el TEDH consideró que en la práctica una medida de seguridad no se diferencia de una pena, por lo que debe ser asimilada a aquella y por tanto debe aplicarse a su respecto el principio de irretroactividad de la ley (art. 7º CEDH).” 5. No caso de M., o TEDH criticou, ainda, o fato de a preventive detention alemã não ter exigido que o prognóstico de reincidência fosse suficientemente concreto, específico, apontando possibilidades reais de tempo, lugar e potenciais vítimas. Da forma como vinha acontecendo, considerou-se apenas o risco abstrato de reincidência, e isto não preencheu os requisitos exigidos pela CEDH. O Tribunal teceu ferrenha crítica à Alemanha também considerando que esta desrespeitou o artigo 5º, par. 3º, da CEDH, o qual reza que os presos, incluindo os casos de preventive detention, devem ser custodiados de forma a serem apresentados com brevidade a um magistrado para que tenham um julgamento dentro de um prazo razoável de tempo.1025 E por fim, a Corte de Estrasburgo foi muito clara: não importa se a lei doméstica entende que a medida de Custódia de Segurança não é punitiva. O fato é que ela estava sendo executada tal qual uma prisão. Aliás, esta é uma das sanções mais severas previstas pelo Código Penal Alemão, conforme o TEDH:1026 “The reality of secure preventive detention was found to be very similar to that of ordinary prison sentences; there were no special measures for these detainees other than those for ordinary long-term prisoners. The procedures involved in the making and implementation were also the same as, or quite similar to, those concerning penalties. Lastly, secure preventive detention was found to be among the most severe sanctions of the German Penal Code”. 6. Ante o exposto, o Tribunal de Estrasburgo 1027 declarou as vulnerações aos artigos 5º e 7º da CEDH relativamente à irretroatividade das penas e concedeu ao recorrente M., a liberdade e a indenização no valor, aproximado, de 50.000 euros. 1028 1024 BÖHM, BS GLIPGö n. 2 (2011), p. 25. DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), pp. 312-327. 1026 Ibidem, p. 318. 1027 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action=html&documentId=860012 &portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1028 MORALES ROMERO, RGDP, n. 13 2010 p. 2. DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 316. 1025 359 O caso encerrou em 10 de maio de 2010. 1029 No caso Haidn, a Corte de Estrasburgo considerou não ser o caso de tratamentos degradantes ou desumanos, ou seja, não reconheceu a violação ao artigo 3º da Convenção. Considerou, inobstante, presente a violação ao artigo 5º da mesma1030 (preventive detention” ou Custódia de Segurança para além dos dez anos, período máximo aplicável e aplicado, conforme a legislação vigente à época de seu julgamento e condenação): “The Court, having regard to all the material before it, therefore considers that the circumstances of the order and the duration of the applicant's continued detention for preventive purposes did not attain the minimum level of severity such as to amount to inhuman or degrading treatment or punishment. There has accordingly been no violation of Article 3 of the Convention". 2. Algumas considerações feitas pelo Conselho Europeu de Direitos Humanos, a respeito da Custódia de Segurança alemã 1. De 9 a 11 e de 15 a 18 de outubro de 2006, Thomas Hammarberg, do Council of Europe's Commissioner for Human Rights, referiu a necessidade de maiores investimentos em medidas alternativas à Custódia de Segurança alemã, pois estava muito preocupado com o volume de pessoas submetidas à privação de liberdade em razão delas:1031 “The Commissioner calls for an extremely considerate application of secured custody. Alternative measures should also be considered before recourse to secured custody is taken. The Commissioner is concerned about the rising number of people deprived of their liberty under secured custody. He encourages the German authorities to commission independent studies on the implementation of secured custody in order to evaluate the measure in terms of protecting the general public and its impact on the detained individual.” Referiu, ainda, ter constatado que os indivíduos submetidos às medidas em tela padecem de uma sensação de perda de perspectiva no futuro e que desistiam de si próprios. Isto teria demonstrado a necessidade de maiores investimentos em serviços psicológicos ou psiquiátricos. 1029 DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 318. EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of Haidn v. Germany. Application n. 6587/04, Strasbourg 13 Jan. 2011. Disponível em: <http://cmiskp.echr. coe.int/tkp197/view.asp? action=html&documentId=879804&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86 142BF01C1166DEA398649>. Acesso em: 3 set. 2012. 1031 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1030 360 2. O European Committee for the Prevention of Torture and Inhuman or Degrading Treatment or Punishment, do Conselho Europeu, em visita realizada no dia 20 de novembro de 2005 à unidade Secure Placement (Sicherungsverwahrung) em Berlin-Tegel Prison, reportou a falta de esperança na liberdade, e que muitos esperam, simplesmente, morrer durante a execução da medida:1032 “Even among those inmates who apparently assumed and coped with the responsibility for their daily lives on the unit, the sense was that the activities were strategies to pass time, without any real purpose. As might be expected, this appeared to be related to their indefinite Sicherungsverwahrung. Several inmates interviewed expressed a clear sense that they would never get out and one stated that the only thing he could do was prepare himself to die.” Implementar as Sicherungsverwahrung com respeito a uma prática mais humana é uma questão urgente. Foi recomendada uma revisão imediata sobre o tema. Na verdade, é necessário trabalhar com os condenados sob o ponto de vista psicológico, pois é bastante complicado lidar com pessoas que têm um horizonte de uma infinita detenção. Como conclusão, chegou-se à necessidade de que o assunto deveria ser tratado como prioridade:1033 “As well as empowering inmates to take charge of their lives in custody, there is a need for on-going support to deal with indefinite detention, as well as to address the legacy of serious past histories of aberrant behaviour and apparent psychological problems. Psychological care and support appeared to be seriously inadequate; the CPT recommends that immediate steps be taken to remedy this shortcoming. […] The difficult question of how to implement in practice a humane and coherent policy regarding the treatment of persons placed in Sicherungsverwahrung needs to be addressed as a matter of urgency at the highest level. Working with this group of inmates is bound to be one of the hardest challenges facing prison staff. […] The CPT recommends that the German authorities institute an immediate review of the approach to Sicherungsverwahrung at Tegel Prison and, if appropriate, in other establishments in Germany accommodating persons subject to Sicherungsverwahrung, in the light of the above remarks.” 3. As Nações Unidas, em julho de 2008, através do United Nations Human Rights Committee também criticaram a possibilidade de retroatividade quanto à aplicação de medidas:1034 “While the Constitutional Council has prohibited retroactive application of the statute, and the judge who sentences a criminal defendant contemplates the possibility of future civil preventive detention as part of the original disposition of a case, nonetheless, in the view of the Committee, the practice may remain problematic under articles 9, 14 and 15 of the Covenant.” 1032 Ibidem. EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1034 Ibidem. 1033 361 4. O tema é preocupante no sentido em que, apesar de todo o histórico aqui apresentado quanto à Alemanha, país desenvolvido e respeitado no cenário jurídico internacional, verifica-se o teor das críticas feitas pelos organismos mais importantes em defesa de garantias fundamentais. O risco de políticas criminais de emergência parece uma constante tendência de consideráveis proporções. Veja-se, que hoje, pelo menos sete outros países já adotam sistemas similares de preventive detention para casos envolvendo delinquentes imputáveis perigosos. Isto inclui também países como Áustria, Dinamarca, Itália, Liechtenstein, San Marino, Eslováquia e Suíça. Nestes, a preventive detention geralmente é executada após o cumprimento da pena privativa de liberdade, exceto na Dinamarca, onde a custódia é imposta no lugar da pena de prisão. A perigosidade é revisada periodicamente e quando os sujeitos deixam de ser perigosos para a sociedade, são colocados em liberdade.1035 Na Dinamarca, Itália, San Marino, Eslováquia e Suíça não se fixa prazo de duração máximo. Na Suíça, ademais, já se prevê como possibilidade a ser incluída na legislação a hipótese de indivíduo perigoso receber internação em custódia perpétua e sem possibilidade de revisão, diante de elevado risco de reincidência. 1036 Já na Áustria e em Liechtenstein, a medida não pode ultrapassar os dez anos. Em alguns países a custódia pode ser aplicada retroativamente. Na Itália, por exemplo, se aplica a lei vigente ao tempo da execução da sanção; na Eslováquia, o momento regulador é o do juízo criminal. San Marino não proíbe a aplicação retrospectiva das medidas. Ao contrário, esta é proibida na Áustria, em Liechtenstein e na Suíça.1037 Enfim, deste modo impõe-se, cada vez mais, uma reflexão profunda e plena sobre a Custódia de Segurança, de forma que esta possa ser novamente regulada e que venha a proteger direitos fundamentais considerados lesados em sua regulação anterior pelos órgãos internacionais mencionados. 1035 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1036 ROBLES PLANAS, Indret 2007 p. 7. 1037 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 362 3. Algumas considerações feitas acerca da tentativa frustrada de inserção da Custódia de Segurança no ordenamento espanhol 1. Na Espanha, o tema não é novo e alguns autores são muito críticos, referindo que o tema é verdadeira cópia das medidas alemãs;1038 outros1039 defendem a adoção, quando necessária, de medidas não privativas de liberdade após a pena, em situações de perigosidade; em sendo necessário, mas em caráter excepcional, poder-se-ía admitir até mesmo medidas privativas de liberdade, como uma Custódia de Segurança posterior ao cumprimento de pena de prisão, com fundamento na perigosidade, desde que como último recurso diante da ineficácia de outras formas, no caso concreto. Seria limitada apenas a casos extremos, inclusive em hipóteses envolvendo delitos sexuais graves. Diante de questões como esta, no entanto, alguns autores sustentam que devam ser buscados meios, exclusivamente no Direito Penal da culpabilidade, que possam fazer frente a problemas envolvendo autores imputáveis de delitos graves. Exemplos seriam a restrição da possibilidade de obtenção da liberdade condicional e de benefícios penitenciários por razões de perigosidade, controle dos egressos mediante submetimento à vigilância extramuros, penas mais estendidas, enfim. Assim, o tratamento destes indivíduos poderia ter lugar de modo adequado, proporcional e legítimo dentro de um mesmo Direito Penal da culpabilidade, conforme parte da doutrina sustenta.1040 Mas para quem defende a possibilidade de uma medida de segurança de custódia, para além da pena, portanto, e não de pena, alguns entendem que seu prazo máximo de duração não poderia ultrapassar uma década, podendo, em alguns casos excepcionais, ser estendida para além dos dez anos, no caso de haver perigo de cometimento de novos delitos graves, desde que fosse periodicamente revisada.1041 2. Quanto ao princípio da irretroatividade, tão polemizado na Alemanha, veja-se que o artigo 9.3 da Constituição espanhola garante a irretroatividade das disposições sancionadoras “no favorables o restrictivas de derechos individuales”, como é o caso das medidas de segurança. Ademais, no mesmo sentido, o CP refere no artigo 2.1 (que segue igual mesmo 1038 BORJA JIMÉNEZ, RGDP n. 18 (2012), pp. 1-57. ENCINAR DEL POZO, en: NAVARRO GARCÍA/SEGOVIA BERNABÉ (dirs.), EDJ n. 127 (2007), pp. 59-60. No mesmo sentido CEREZO MIR, ILECIP 003-05 (2008), pp. 1-10. 1040 GRACÍA MARTÍN, en: GARCÍA VALDÉS/CUERDA RIEZU/MARTÍNEZ ESCAMILLA/ALCÁCER GUIRAO/VALLE MARISCAL DE GANTE (coords.), Estudios penales en Homenaje a Enrique Gimbernat, p. 1000. 1041 ENCINAR DEL POZO, en: NAVARRO GARCÍA/SEGOVIA BERNABÉ (dirs.), EDJ n. 127 (2007), p. 64. 1039 363 após a LO 1/2015) que “carecerán de efecto retroactivo las leyes que establezcan medidas de seguridad”. O artigo 2.2 CP espanhol também deve ser aplicado diante de medida de segurança, razão pela qual a exceção prevista pelo apartado 2 do mesmo artigo deve ser estendida a ambos os casos. Porém, a interpretação do texto gera divergências importantes na doutrina. Para alguns, a retroatividade seria possível se a medida tivesse caráter curativo, terapêutico ou educacional; porém, seria irretroativa se tivesse um caráter preponderantemente aflitivo ou inocuizador.1042 Outros, são contrários, independentemente da justificativa que se encontre.1043 A polêmica segue: “Cuando se niega la posibilidad de una supuesta retroactividad de las leyes que establecen medidas de seguridad, no se tiene en cuenta que si el estado de peligrosidad del sujeto permanece en el momento del juicio, entonces la medida no se aplica a un hecho pasado ocurrido antes de aquella estuviera vigente (esto sí, sería retroactividad), sino que se aplica a un supuesto de hecho presente, es decir que se está realizando en el momento en que la medida está vigente y puede ser aplicada, y esto no es ya aplicación retroactiva de la ley penal.”1044 3. Não se pode, tampouco, deixar de comentar que, recentemente, tramitou Anteprojeto para Reforma do Código Penal, o qual pretendeu incorporar a Custódia de Segurança ao ordenamento espanhol, tendo sido esta proposta rechaçada. A Exposição de Motivos do referido documento referia a intenção do legislador em respeitar, mais seriamente, o princípio da perigosidade do autor, verdadeiro fundamento de imposição das medidas. Importante ressaltar que, no sentir de Manzanares Samaniego, com esta mudança, o atual sistema seria definitivamente superado, consagrando-se o sistema dualista, separando-se penas e medidas de forma muito clara. A primeira quebra deste sistema monista se deu com a medida de liberdade vigiada para imputáveis, como ocorre até hoje com os delinquentes sexuais considerados perigosos. Essa quebra se dá porque a liberdade vigiada resulta aplicável não apenas quando o prognóstico de perigosidade do indivíduo se relaciona com estados patológicos que determinaram sua inimputabilidade ou semi-imputabilidade, mas também quando este prognóstico deriva especificamente do perfil do sujeito ou da natureza do tipo delitivo cometido, e quando o próprio legislador assim o quis ou previu de maneira expressa. Outra diferença é que esta medida não se estabelece com caráter alternativo à prisão, nem sua execução antecede à prisão, mas vem imposta na mesma sentença, necessariamente, nos casos em lei previstos, ou seja, junto à imposição da pena de prisão. Porém, para a execução posterior ao cárcere, poderia haver uma revisão em nome de um dualismo flexível. 1042 RUBIO LARA, Las medidas de seguridad tras la reforma de la LO 5/2010, de 22 de junio, del Código Penal, p. 51. 1043 MUÑOZ CONDE/GARCÍA ARÁN, Derecho penal: PG8, pp. 585-588. 1044 GRACIA MARTÍN, en: idem (coord.), Tratado de las consecuencias jurídicas del delito, p. 445. 364 4. Assim, a ideia de uma revolução a partir da Custódia de Segurança teve início com outra revolução iniciada pela ideia da liberdade vigiada, assunto que aprofundaremos no próximo capítulo, em 6, VI e que segue tendência rumo à consagração de um sistema dualista, preferencialmente flexível, o qual permitiria aplicar, inicialmente, pena ao autor de um fato criminoso, em função da gravidade do delito e das circunstâncias do próprio autor, e ainda, uma medida de segurança pós-penitenciária ou também chamada de pós-penal, para Nistal Burón1045, quando concorressem circunstâncias que evidenciassem a perigosidade e a tendência ao delito. Tais medidas com caráter pós-penitenciário ou pós-penal facilitam que se persiga a finalidade de reinserção social, o que às vezes exige a adoção de medidas complementares à pena, as quais permitem o tratamento e o controle de determinados perfis criminológicos, muitas vezes mais resistentes ao efeito reabilitador da pena. Neste sentido, Nistal Burón1046 entende ser a custódia mais consequente com o princípio da culpabilidade pelo fato, permitindo, assim mesmo, “separar adecuadamente, la consecuencia por el delito cometido – la pena – de la respuesta frente a la peligrosidad del autor del mismo – la medida de seguridad.” A proposta de Custódia de Segurança na Espanha foi prevista pelo Anteprojeto de Reforma do CP e, caso fosse aprovada, a medida seria cumprida após a pena. A custódia seria destinada para aqueles que cometessem delitos com capacidade de culpabilidade, porém apresentando perigosidade e tendência ao cometimento de novos delitos. Na proposta constava que o Poder Judiciário aplicaria a medida na mesma sentença em que fosse aplicada a pena de prisão pelo delito cometido. Referia, ainda, em quais circunstâncias e para quais classes de delitos poderia ser a mesma aplicada, deixando claro que a imposição da custódia dependeria da constatação de uma “perigosidade relevante” e da “inexistência de outras medidas menos gravosas que pudessem compensar suficientemente aquela perigosidade”. 5. Deste modo, a Custódia de Segurança ficaria reservada aos casos mais graves, quando as medidas não privativas de liberdade se revelassem insuficientes diante da perigosidade do réu.1047 Assim, somente seria aplicável a custódia nos casos de delitos de especial gravidade, quais sejam, aqueles contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade, contra a dignidade sexual, aqueles cometidos com violência ou intimidação, os 1045 NISTAL BURÓN, LL n. 8035 (2013), p. 3. NISTAL BURÓN, LL n. 8035 (2013), p. 7. 1047 Ibidem. 1046 365 contra a comunidade internacional, os delitos de terrorismo e de tráfico de drogas, desde que preenchidos alguns requisitos que não iremos comentar, pois a ideia de uma Custódia de Segurança prevista pelo Anteprojeto de Reforma do CP espanhol restou fracassada. Entretanto, segue a tendência neste sentido, como diz Manzanares Samaniego a respeito deste tema:1048 “Parece que por fin, con una y otra en nuestro arsenal sancionador, nos colocaremos a la par de esos países de honda tradición democrática, aunque sea con décadas de retraso y tras parcheos poco ortodoxos en cuanto al cumplimiento efectivo de las penas.” Por fim, vale dizer que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos não condena este tipo de medida, porém exige critérios bem definidos para sua aplicação, assim como a finalidade ressocializadora na qual se insiste ao estabelecer-se a necessidade de um programa individualizado e orientado aquele fim, como, aliás, já foi bastante explanado anteriormente. Porém, um dos complicadores seria encontrar o estabelecimento adequado para o cumprimento da medida, já que estabelecimentos penitenciários não seriam os ideais. Refere o TEDH acerca do tema: […] habiendo declarado el Tribunal Europeo de Derechos Humanos su compatibilidad con el art. 5 del Convenio Europeo de Derechos Humanos (LA LEY 16/1950) siempre que se fijen legalmente sus condiciones y la relevante peligrosidad del sujeto sea valorada por un Tribunal en relación con los delitos cometidos, sin olvidar la perspectiva de una recuperación de la libertad. Assim, resumidamente, caso a mudança tivesse sido aprovada pela Espanha, não poderia ser aplicada retroativamente, devendo ter, pois, caráter excepcional. Para seu cumprimento eram previstos centros de internação especiais, os quais deveriam ser criados para isto, ou se não fosse possível, nas próprias penitenciárias, sob um regime especial. A duração máxima prevista seria de dez anos, podendo ser encerrada antes, caso a perigosidade cessasse, o que se constataria através das revisões periódicas, como já existem hoje.1049 O tema foi trazido à colação, embora não tenha sido objeto de aprovação legislativa, pela sua atualidade e relevância, já que constitui tendência o prosseguimento deste debate no Direito Penal espanhol, como de resto, em vários outros países, na atualidade. 1048 1049 MANZANARES SAMANIEGO, LL n. 7999 (2013), p. 6. NISTAL BURÓN, LL n. 8035 (2013) p. 8. 366 D. A intercambialidade funcional da custódia e a fraude de etiquetas 1. Das vantagens da pena associadas às vantagens da medida 1. Inicialmente, alguns números são necessários para que se possa demonstrar que o tema da intercambialidade funcional quanto à Custódia de Segurança, longe de ser uma simples teorização, consiste em inegável realidade. Tal realidade, hoje, abrange o perigo de transformação de um instrumento que talvez possa ser aperfeiçoado e legitimado, em um sistema de Direito Penal de inimigo, como será analisado. Os tribunais alemães determinaram setenta e cinco custódias de segurança em 2005, sendo quarenta e duas destas por delitos sexuais. Em 2008, setenta pessoas foram afetadas por esta mesma reforma, ficando mais de dez anos em custódia. Isto tudo num país que tinha noventa e cinco presos por cem mil habitantes em 2006, enquanto, por exemplo, na Espanha eram 149. De acordo com o Council of Europe Annual Penal Statistics, Survey 2006, de 12 de dezembro de 2007, o número total de presos sentenciados a, no mínimo, dez anos de prisão e incluindo a pena de prisão perpétua era 2.907 sujeitos na Alemanha, e 3.568 na Espanha.1050 Chegou-se a 504 indivíduos submetidos à custódia em março de 2011, sendo três mulheres1051; em 2012, o número foi de 445 casos, para uma população carcerária de, aproximadamente, 54 mil indivíduos já condenados naquele país. 1052 Sem dúvida, a Custódia de Segurança se tornou um instrumento fortemente empregado na Alemanha, como se pode aferir, embora os resultados apresentados. A partir, por exemplo, dos estudos realizados por Basdekis-Jozsa e outros,1053 nas penitenciárias de Straubing e de Luebeck, foi possível perceber que, embora os resultados não pudessem representar, em larga escala, toda a população detida, atualmente, sob a modalidade da Custódia de Segurança, os mesmos são significativos. Foi possível constatar um alto nível de transtornos de personalidade, de abuso e dependência de substâncias e comorbidades. Ademais, vários destes indivíduos sofreram traumas na infância e juventude, frutos do pobre processo de socialização, e dois terços, ou seja, 65,5%, relataram ter sofrido abuso físico, sexual ou psicológico. Ainda, com o tempo na 1050 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of M. v. Germany, Strasbourg, 17 Dec. 2009, Disponível em: <http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=860012& portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF01C1166DEA398649l>. Acesso em: 20 ago. 2013. 1051 Vide BASDEKIS-JOZSA/MOKROS/VOHS/BRIKEN/HABERMEYER, Sci. Law v. 31 n. 3 (2013), p. 345. 1052 DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 313. 1053 BASDEKIS-JOZSA/MOKROS/VOHS/BRIKEN/HABERMEYER, Sci. Law v. 31 n. 3 (2013), pp. 347 e 355. 367 custódia, os sujeitos demonstravam maior resistência à formação de vínculos com o tratamento mental, cuja aliança se mostrava um desafio muito difícil. Os programas para indivíduos com transtorno de personalidade antissocial demonstraram falta de comprovação quanto à sua efetividade. 2. Quanto ao risco de que um instrumento desta natureza pudesse preencher o conceito de intercambialidade funcional, há que se verificar qualquer hipótese de troca de etiquetas, no caso, de denominar-se como medida aquilo que, em verdade, é uma pena disfarçada. Segundo as críticas feitas pelo TEDH, por exemplo, pode-se afirmar afirmativamente a hipótese de intercambialidade funcional diante do instrumento denominado como Custódia de Segurança. As alegações da Alemanha no sentido de que alguns princípios não precisariam ser aplicados, ou que a estrutura vigente para a execução seria diferenciada, por se tratar de uma medida de segurança, e não pena, não foram aceitas. Na verdade, disse o TEDH que não importava se o instrumento fosse uma pena ou uma medida, posto que em ambos os casos, princípios de Direito Penal deveriam ser respeitados e as condições para a execução da sanção deveriam ser humanas e dignas. Assim, parece que o instrumento estava mais parecido com uma pena de masmorra, do que com uma medida terapêutica, pois tinha um caráter de censurabilidade e certa retributividade que não seriam admissíveis no caso de medidas de segurança. Por outro lado, o rótulo de medida era mais conveniente à medida que, conforme a legislação alemã prevê, haveria maior flexibilidade quanto a não aplicação de princípios como o da irretroatividade da lei penal, tema que, conforme apresentado nos casos emblemáticos citados, causou inúmeras discussões jurídicas importantes, o que fez com que algumas pessoas ficassem privadas de liberdade por muitos anos, sem qualquer suporte legal. Daí a gravidade e a contemporaneidade do tema, já que não se trata de mera ficção futurista, mas de fatos reais. A fraude de etiquetas consistia em denominar como medida uma custódia que era executada como autêntica pena de confinamento, o que foi detectado e condenado pelo TEDH. 3. A Custódia de Segurança já foi reconhecida por Jakobs como instituição de Direito Penal do Inimigo, bem como as demais medidas de segurança. O próprio Ministro da Defesa alemão, em 2005, pregava custódias preventivas, inclusive, já que as via como medidas “de controle de risco”.1054 Reconhece Jakobs que suas ideias carecem de “ímpetu políticolegislativo”, embora tratem de pressupostos para um Direito real. “Es fácil llegar a un acuerdo 1054 JAKOBS, en: CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ (ed.), Teoría funcional de la pena y de la culpabilidad, pp. 56-57. 368 acerca de un mundo ideal, pero con ello nada se ha ganado para la vida en el mundo real”.1055 Neste sentido, Jakobs diz que as custódias fazem parte de um mundo real, assim como o emprego de agentes infiltrados e de escutas telefônicas massivas com a finalidade de investigação de organizações terroristas. Negar isto seria fazer um convite a delinquentes graves e a terroristas, segundo o professor alemão.1056 E reconhece que longe do pacifismo incondicionado e de uma autodefesa incondicionada, devemos tratar aqui dos limites deste Direito Penal do Inimigo que existe, inegavelmente, mas que deve ser limitado ao necessário.1057 Mesmo assim, alguns autores como Nuñez Paz1058 referem que a custódia carece de qualquer ambição preventivo-especial, “pues el enemigo es un sujeto al que se le supone un demonio incorrigible que desataría mil fuegos en libertad, y como a tantos monstruos, hay que encerrarlos en cavernas o devolverlos al infierno.” Porém, o Tribunal Constitucional alemão disse que a “custodia de seguridad no lesiona la dignidad humana en la medida que con ella se posibilite una vida responsable en libertad”.1059 Assim, parece que o problema não é a custódia em si mesma, posto que se esta for denominada e executada como medida, segundo os parâmetros que devem reger as medidas, não haverá inconstitucionalidade. O problema são os limites que foram conferidos, na prática, ao instituto, corrompendo-o. Neste mesmo sentido, Jescheck e Weigend dizem que “el derecho vigente se ha esforzado en limitar la custodia de seguridad a delincuentes realmente peligrosos, frente a los que la necesidad de seguridad de la población es irrefutable”.1060 Jescheck e Weigend admitem o caráter inocuizador da medida, mas o compreendem como necessário como forma de proteção social, isolando de sua convivência delinquentes que praticam delitos graves e sobre os quais incide a probabilidade de reincidência. Mesmo assim, esforços no sentido da reinserção social devem ser sempre empreendidos. Dizem, ainda, os mesmos autores1061 que esta “es la última medida de emergencia de la Política Criminal” por su gravedad. Portanto, Jescheck e Weigend1062 defendem sua constitucionalidade, dizendo: “[...] para la prevención de riesgos inminentes para bienes jurídicos de importancia que poseen un mayor rango también deben ser admitidas injerencias en la libertad del individuo que sean 1055 Ibidem, p. 62. Ibidem, pp. 60-61. 1057 Ibidem, p. 62. 1058 NUÑEZ PAZ, en: MUÑOZ CONDE/LORENZO SALGADO/FERRÉ OLIVÉ/CORTÉS BECHIARELLI/ NUÑEZ PAZ (Dir.), Un derecho penal comprometido, p. 893. 1059 GRACÍA MARTÍN, en: GARCÍA VALDÉS/CUERDA RIEZU/MARTÍNEZ ESCAMILLA/ALCÁCER GUIRAO/VALLE MARISCAL DE GANTE (coords.), Estudios penales en Homenaje a Enrique Gimbernat, p. 996. 1060 JESCHECK/WEIGEND, PG5, p. 92. 1061 Ibidem, pp. 91-92; p. 876-877. 1062 Ibidem, p. 877. 1056 369 independientes de la culpabilidad; además, tampoco se produce una vulneración del principio de determinación a pesar de que el concepto de “propensión a la comisión de delitos de importancia” necesite ser objeto de una interpretación más precisa. Y mucho menos se da una – por otra parte inadmisible – doble punición puesto que la custodia de seguridad no pretender ser un mal punitivo.” Pode-se acrescentar ainda, os posicionamentos de doutrinadores alemães como Hassemer e Roxin, no mesmo sentido. Refere o primeiro: “concretando, no puedo considerar, por ejemplo, que la comprensión normativa de nuestra sociedad de hoy – y seguro que la de la mañana – permita la liberación de delinquentes que, ciertamente han extinguido su pena, pero resultan peligrosos, actualmente y en alto grado, para bienes jurídicos centrales de otras personas.”1063 Quanto a Roxin, refere este que “la peligrosidad de determinados delincuentes no puede quedar sujeta a un límite temporal determinado.”1064 4. Nesta tentativa de legitimar-se o instituto da Custódia de Segurança, busca-se uma justificativa ética para a adoção do instrumento. Neste sentido, eis a discussão sobre o eterno paradoxo entre a busca de maior segurança pública frente a indivíduos perigosos, ainda que imputáveis, ou a preservação, quase incondicional, de suas garantias e direitos fundamentais. Neste sentido, em nome da proteção social surge uma espécie de “estado de necessidade”, também denominado pela doutrina como “Princípio de salvaguarda do interesse preponderante de proteção da liberdade e segurança de todos”, correspondendo a um estado de necessidade de asseguramento e de proteção social. Assim, o bem de maior valor a ser preservado seria a necessidade de segurança social, dever do Estado, embora o tema seja bastante polêmico.1065 De outro lado, residiria a relevância dos direitos fundamentais do condenado, a proibição de tratamentos desumanos ou degradantes, o direito à liberdade e à segurança, e os princípios da legalidade e humanidade. Refere Roxin, a respeito: “[…] la medida de seguridad (y, por tanto, la custodia de seguridad) se justifica por la idea de ponderación de bienes, de manera que cabe la privación de libertad de un sujeto cuando el disfrute de la misma conduzca, con una elevada probabilidad, a menoscabos ajenos que, globalmente considerados, pesan más que las restricciones que el causante del peligro debe soportar a consecuencia de la medida de seguridad”.1066 1063 HASSEMER, W. Sicherheit durch Strafrecht: HRRS n. 4 (2006), p. 140 apud SANZ MORÁN, en: LANDA GOROSTIZA (ed.)/GARRO CARRERA (coord.), Delincuentes peligrosos, p. 72. 1064 ROXIN, CPC n. 100 (2010), p. 22. 1065 Posicionando-se contrariamente ao instituto: GRACÍA MARTÍN, en: GARCÍA VALDÉS/CUERDA RIEZU/MARTÍNEZ ESCAMILLA/ALCÁCER GUIRAO/VALLE MARISCAL DE GANTE (coords.), Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat, pp. 975-1003. 1066 ROXIN, Derecho penal: PG, tomo I, p. 105. 370 5. Para Gracía Martín, parece que a imposição de uma medida de custódia acaba causando um mal maior do que aquele que pretende evitar, razão pela qual deve ser rechaçada em razão do princípio da proporcionalidade. O problema se torna ainda mais sério quando os prognósticos de perigosidade são duvidosos e influenciados pelo pânico amplificado pelos meios de comunicação. Diante desta produção de dados, que não é absolutamente segura, contra um “mal” que se pretende evitar, resta um contraste efetivo com o menoscabo dos direitos fundamentais do sujeito submetido à Custódia de Segurança, a qual, embora não considerada pena, é consequência jurídica do delito, devendo ser oposta a tratamentos desumanos ou degradantes.1067 A sociedade, assim, não pode renunciar a assumir qualquer risco quanto à reincidência do autor do delito, recaindo sobre o mesmo a totalidade daquele risco: 1068 “La custodia de seguridad pretende la mera neutralización del delincuente mediante su retirada de la vida social. Es decir, la sociedad renuncia a asumir porcentaje alguno del riesgo de reincidencia y todo el riesgo se hace recaer en el autor, quien de este modo queda sometido a intervenciones asegurativas de la máxima intensidad, lo que hace que sea discutible la adecuación de este modelo al principio de proporcionalidad.” 6. Deste modo, questiona-se se a noção de estado de necessidade ou de princípio da salvaguarda do interesse preponderante é, realmente, o mais adequado para responder ao paradoxo posto. No mesmo sentido, Swiderski1069 também critica a custódia diante do princípio da proporcionalidade, pois refere que o “interesse na liberdade” pelo condenado, acaba não sendo suficientemente considerado, ao dizer que a configuração atual das modalidades de execução da medida de custódia “no considera suficientemente el interés de libertad durante el transcurso del cumplimiento de la medida de seguridad, interés que aumenta (o debería aumentar) con el paso del tiempo.” O mesmo autor critica a falta de legislação adequada que traga critérios específicos para tal tipo de definição, para que os poderes Executivo e Judiciário tenham condições de tornar efetivo o direito à liberdade individual da pessoa detida. 7. Por fim, diante de tal dilema e da falta de critérios específicos para optar-se, seja pela salvaguarda da segurança pública, seja pelos direitos fundamentais do condenado, 1067 GRACÍA MARTÍN, en: GARCÍA VALDÉS/CUERDA RIEZU/MARTÍNEZ ESCAMILLA/ALCÁCER GUIRAO/VALLE MARISCAL DE GANTE (coords.), Estudios penales en homenaje a Enrique Gimbernat, pp. 997-998. 1068 SILVA SÁNCHEZ, en: ARROYO ZAPATERO/BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE (dirs.) NIETO MARTÍN (coord.), Homenaje al Dr. Marino Barbero Santos, vol. I, p. 706. 1069 SWIDERSKI, BS GLIPGö n. 1 (2011), pp. 29-30. 371 colocados em perigo diante da interminável privação de liberdade, há que se encerrar a presente discussão apresentando aquilo que a própria Alemanha vem definindo como novos rumos passíveis de serem alcançados a fim de resgatar-se a Custódia de Segurança como instrumento adequado, legítimo e respeitoso com a Constituição e com as diretrizes internacionais sobre o assunto. 2. As propostas para a legitimação da Custódia de Segurança, pela própria Alemanha 1. Primeiramente foi sancionada nova legislação em 22 de dezembro de 20101070, abolindo-se parcialmente, a modalidade de medida de segurança a posteriori. Desta vez o próprio Tribunal Constitucional alemão, em 4 de maio de 2011, declarou a inconstitucionalidade desta e das outras normativas acerca da Custódia de Segurança, conforme já vinha sendo entendido pelo TEDH.1071 Como refere Böhm:1072 “Tanto la normativa anterior como la medida que perduró por la ley del 22 de diciembre de 2010 fueron declaradas inconstitucionales. Esta última decisión del Tribunal Constitucional y la nueva intepretación legal dada en la misma son resultado directo de la sentencia del Tribunal Europeo de Derechos Humanos y la supremacía dada a su jurisprudencia, la cual es una ‘ayuda interpretativa’ para el derecho constitucional”. Tal sentença referiu que a custódia apenas poderia ser passível de incidência nos casos de grave enfermidade mental. Considerou, ainda, que somente seria aplicável diante de uma análise exaustiva e individualizada sobre a perigosidade do sujeito. Por fim, afirmou que o juízo de proporcionalidade entre a perda da liberdade e o objetivo preventivo-especial que se deseja somente estaria equilibrado quando aplicado um tratamento intensivo sobre o sujeito, com uma programação específica que deveria começar ainda durante o período de cumprimento da pena de prisão, sem esperar que esta se encerrasse. E enquanto a Alemanha não assumisse a árdua tarefa de modificar a legislação a respeito da medida de Custódia de Segurança, o TEDH continuaria julgando casos envolvendo o instituto alemão, reforçando o constrangimento. Assim, o legislador alemão se viu na obrigação de reorganizar os requisitos para a medida, aperfeiçoando o caráter preventivo-especial da mesma. 1070 ROBLES PLANAS, Indret 2007 pp. 1-25. EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS, 5th Section, Case of Haidn v. Germany. Application n. 6587/04, Strasbourg 13 Jan. 2011. Disponível em: <http://cmiskp.echr. coe.int/tkp197/view.asp?action= html&documentId=879804&portal=hbkm&source=externalbydocnumber&table=F69A27FD8FB86142BF0 1C1166DEA398649>. Acesso em: 3 set. 2012. 1072 BÖHM, BS GLIPGö n. 2, (2011) p. 25. 1071 372 2. Em 1º de janeiro de 2011, entrou em vigor a Lei Therapieunterbringungsgesetz (Therapy Placement Act), conhecida como ThUG,1073 justamente para aqueles casos em que indivíduos deveriam ser soltos em razão das decisões do TEDH. As exigências agora eram outras para a aplicação da Custódia de Segurança:1074 o sujeito deveria apresentar uma psychische Störung (transtorno mental) que tornasse “altamente provável” que o mesmo viesse a cometer um delito sexual grave. Estas pessoas deveriam ser tratadas em ambiente adequado, fechado, confortável, para que a medida não fosse confundida com punição ou castigo. Vale registrar o problema existente quanto à denominação “psychische Störung” ou “mental disorder”, exigida pelo Therapy Placement Act ou Lei do Tratamento Terapêutico. Esta terminologia é relativamente nova na Alemanha, em termos de legislação. O Tribunal Constitucional entendeu que aquela não se encaixava exatamente no que refere aos artigos 20 e 21 do CP, e elencou vários diagnósticos como transtornos de personalidade antissocial, de comportamento, certas preferências sexuais, comportamento sexual seriamente irresponsável por parte de indivíduo condenado, enfim, como aptos a preencher o conteúdo daquela etiqueta. No entanto, as discussões travadas sobre o tema nas ciências médica psiquiátrica e psicológica foram ignoradas. Tais conceitos utilizados pelo Tribunal Constitucional foram, aliás, extraídos do julgamento realizado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no caso Hutchison Reid vs. Reino Unido. Neste, aliás, o debate nem era sobre a correta aplicação do conceito de “mental illness” (doença mental), mas sobre quais hipóteses admitiriam a internação do sujeito em clínica psiquiátrica sem violação à Convenção – CEDH. Em decisões mais recentes o TEDH teve discussões mais amplas, inclusive quanto à adoção de conceitos desenvolvidos pela pesquisa nas áreas psicológicas e psiquiátricas.1075 Diante destas variações no entendimento daquele Tribunal, cita-se rapidamente que no caso Hutchison Reid, este foi internado num hospital psiquiátrico meramente por razões de segurança, e isto foi aceito e considerado legítimo, embora o mesmo Tribunal tivesse entendimento diferenciado em relação a outros casos muito similares. Veja-se que no caso Haidn, mesmo o sujeito tendo um diagnóstico de “organic personality desorder”, não foi internado em hospital psiquiátrico. Aliás, após ele cumprir quase toda sua pena de prisão, foi submetido à Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern, já discutida em 5, IV, B, 2 e 5, IV, C, 1, e colocado novamente em regime prisional, porque foi considerado de alto risco para o 1073 BASDEKIS-JOZSA/MOKROS/VOHS/BRIKEN/HABERMEYER, Sci. Law v. 31 n. 3 (2013), p. 346. DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 319. 1075 DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), p. 323. 1074 373 cometimento de crimes sexuais. Mesmo não querendo colaborar no tratamento, na penitenciária, e até recusando o mesmo, não foi encaminhado a um hospital psiquiátrico como determinava a Bavarian Act on the Placement in an institution of mentally ill persons and their care, mesmo esta tendo prioridade diante da Bayerisches Gesetz zur Unterbringung von besonders rückfallgefährdeten hochgefährlichen Straftätern. Por tudo isto, o TEDH criticou a Alemanha. Referiu que as instituições psiquiátricas, neste caso, teriam sido mais adequadas, e que não havia qualquer relação entre o status mental de Haidn e sua colocação, sob custódia preventiva, em estabelecimento prisional.1076 Outro caso para ilustrar foi o de O. H., declarado imputável diante do crime cometido, porém diagnosticado com comportamento antissocial, mas seu caso não foi considerado grave o suficiente para ser diagnosticado como sendo patológico. Assim, após o cumprimento de sua pena de prisão, foi determinada sua internação sob a modalidade de Custódia de Segurança. Nos três primeiros anos, O. H. foi internado em hospital psiquiátrico, pois recebeu novo diagnóstico de esquizofrenia e sério transtorno de personalidade antissocial. Como se recusou a receber tratamento foi removido do hospital psiquiátrico para estabelecimento prisional, para cumprir sua Custódia de Segurança numa ala reservada para Custódia de Segurança na casa penitenciária, porém, novamente, veio a recusar o tratamento. Aqui também o TEDH entendeu que o local de cumprimento da medida não era adequado, pois à luz do artigo 5º, da CEDH, não apresentava condições nem fornecia o tratamento e acompanhamento psiquiátricos posteriormente necessários.1077 Mas a decisão do TEDH no caso O.H. não foi unânime. O magistrado que divergiu referiu que nem sempre a decisão pode ser em prol do tratamento psiquiátrico. Alegou que nos casos de psicopatias ou transtornos de personalidade antissocial, os quais não têm cura, muito pouco pode ser feito num hospital psiquiátrico, sendo válida a hipótese prisional, até porque são indivíduos que serão, muito provavelmente, considerados imputáveis. De qualquer modo, uma coisa é certa diante das decisões do TEDH: se uma pessoa necessitar ser segregada socialmente devido ao alto risco de reincidência que oferece, é necessário, caso seja encaminhada ao sistema prisional, que neste exista a oferta de tratamento psiquiátrico condizente. Este parece ser o único ponto pacífico.1078 Ainda em relação à ThUG, a competência seria da Justiça Civil e o procedimento de natureza processual civil, de modo a fazer com que o TEDH não pensasse se tratar de sanções punitivas, ou seja, de penas e, desta forma, tentava-se evitar que aqueles indivíduos fossem colocados em liberdade. A lei previa, ainda, que os psiquiatras examinariam os indivíduos na fase inicial, ou 1076 Ibidem, p. 324. DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), pp. 312-327. 1078 Ibidem. 1077 374 seja, para determinar a existência de algum transtorno mental (mental disorder) e para o prognóstico de perigosidade, a fim de submetê-los à custódia; e numa segunda fase, para examinar os indivíduos submetidos à Custódia de Segurança, a cada dois anos, ou então a cada dezoito meses no caso de tratamento psiquiátrico na própria instituição penitenciária.1079 Após ser bastante criticada, mais recentemente, a lei também foi declarada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional. Ademais, o Tribunal concedeu prazo ao legislativo, até 31 de maio de 2013 para que um novo diploma legal fosse elaborado, estipulou algumas regras para os casos existentes e durante aquele período de “transição” e definiu algumas exigências1080 que deveriam constar do texto da nova lei, as quais passamos a expor. 3. Primeiramente, a custódia deve ser a ultima ratio, a medida extrema. Mesmo assim, todos os esforços devem ser empreendidos na fase do cumprimento da pena de prisão a fim de que o indivíduo receba o tratamento necessário e não precise ser submetido à custódia posteriormente; em segundo lugar, a sentença deverá conter um plano individualizado, apresentando as melhores alternativas de tratamento, contando com estudos multidisciplinares, de acordo com o estado da arte, sem que se alegue problemas como custos ou qualquer outro tipo de dificuldade para a sua implementação; em terceiro lugar, staff preparado e motivado; quarto lugar, separação total de pessoas em regime de custódia de segurança dos presos em geral, principalmente quanto às acomodações e às atividades desenvolvidas; em quinto lugar, o programa individualizado deve estar orientado à liberdade, à busca pela reinserção social do indivíduo; em sexto lugar, deverão ser implementados os procedimentos judiciais de revisão das decisões concernentes à execução da medida e, por último, deverá haver um controle efetivo sobre a duração da medida, a fim de que não haja qualquer excesso. Entretanto, todas estas considerações feitas pelo Tribunal Constitucional foram extraídas da legislação que versa sobre o sistema penitenciário alemão. Nada é novo1081. Ao contrário. Resta concluir que segue sendo obscura a forma de elaboração de uma normativa mais adequada para a aplicação da custódia, já que ainda sofre do mal inicial, ou seja, ainda está umbilicalmente vinculada ao sistema prisional, que tem índole punitiva: “It is therefore unclear how prison administrations are meant to create a perceptible distance between the execution of regular imprisonment and that of secure preventive detention.”1082 1079 BASDEKIS-JOZSA/MOKROS/VOHS/BRIKEN/HABERMEYER, Sci. Law v. 31 n. 3 (2013) p. 346. DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), pp. 312-327. 1081 DRENKHAHN, BSL v. 31 n. 3 (2013), pp. 318-320. 1082 Ibidem, p. 320. 1080 375 4. Outra dificuldade na implantação deste modelo diz respeito à busca pela reinserção social do indivíduo, com foco no seu tratamento reabilitador. Como já foi dito várias vezes, os tratamentos nesta área não são reconhecidamente efetivos, havendo muita discussão a respeito, afora as dificuldades e carências no sistema prisional alemão quanto à saúde: “Thus, prison administrations will have to make a huge effort, with dubious prospects of success”.1083 5. Enfim, tudo isto leva a crer que, embora as políticas públicas e os legisladores alemães tenham tentado, até o momento, efetuar câmbios necessários quanto à rotulação da medida, visando amenizar seu conteúdo punitivo ou inocuizador, e a fortalecê-la com intuitos ressocializadores e legitimados, evitando-se o problema da fraude de etiquetas, o caminho a percorrer ainda é bastante longo, pois como refere Jorge Barreiro, tanto a custódia perpétua como a custódia a posteriori à luz de um sistema dualista rígido deveriam ter sido banidas há muito tempo do ordenamento, por violarem os valores e princípios constitucionais da dignidade, humanidade e legalidade.1084 Dito isto, passemos à análise dos critérios verificadores de legitimidade do instituto e algumas sugestões para seu aperfeiçoamento. E. Verificação de critérios quanto à legitimidade do instituto e sugestões de aprimoramento 1. Natureza jurídica do instituto (se mecanismo de direito civil ou penal; se medida de segurança ou pena) e existência de qualquer tipo de discussão acerca deste etiquetamento, para fins de verificação quanto à intercambialidade funcional: parece-nos que a intercambialidade funcional como troca de etiquetas está visivelmente presente no instituto da Custódia de Segurança. Inclusive, em que pese adotar o instituto o rótulo de medida de segurança, parece mais uma pena, conforme já declarou o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, e ainda, como observaram outras instâncias. Veja-se que o entendimento do TEDH, inclusive, contrariou o posicionamento da máxima Corte do país. Na verdade, o TEDH não disse que a medida de custódia fosse, por si só, ilegítima, mas que precisava modificações. Um dos principais pontos referidos pelo TEDH para não aceitar a custódia como medida, ao menos do modo como ela vinha sendo executada, era a forma displicente com que os indivíduos a ela submetidos eram tratados, ou seja, em estabelecimentos 1083 1084 Ibidem, p. 321. JORGE BARREIRO, en: LUZÓN PEÑA, Derecho penal del Estado social y democrático de derecho, p. 655 e ss. 376 inadequados, que não ofereciam o justo tratamento terapêutico e que mais se assemelhavam ao caráter punitivo, de censurabilidade ou até mesmo, puramente inocuizador, desrespeitandose, completamente, o sentido que deve ter uma medida de segurança. 2. Existência da observância dos princípios e pressupostos aplicáveis à pena e à medida, quando possíveis e resguardadas suas especificidades: legalidade, anterioridade, jurisdicionalidade, pós-delitividade, nos termos já estudados neste trabalho e, considerando-se ainda, a evitação da finalidade estigmatizadora e meramente inocuizadora, sem qualquer propósito reabilitador. Como já apresentado, a busca pela reinserção social do condenado não parece a tônica que vinha sendo empregada pela medida de custódia na Alemanha; esta estava muito mais associada à ideia de inocuização, por exemplo. Neste sentido, princípios foram agredidos como o da proibição da irretroatividade, decorrente da legalidade, tão discutido anteriormente, especialmente perceptível a partir dos dois casos emblematicamente apresentados e julgados pelo TEDH. A própria previsão da “reserva de medida” que vigorou de 2002 a 2004 consistia em exigência antes inexistente, e que foi aplicada retroativamente. Para justificar ainda mais a situação injustificável, em 2004 surgiu a legislação que veio a prever a aplicação de custódia mesmo sem a necessidade da prévia “reserva da medida”, comprovando-se o sentido político e cada vez mais amplo conferido ao instituto, que recruta muito e libera pouco, assuntos todos que foram vistos, analisados e criticados pela comunidade jurídica internacional. 3. Execução penal em local adequado, seguro e com servidores capacitados, sob supervisão judicial, mediante planos individualizados de tratamento terapêutico, quando cabível: neste caso tem-se uma das críticas mais acirradas do TEDH em relação ao instituto em tela, pois uma medida de segurança como a custódia, voltada a tratar a perigosidade criminal, exige tratamento terapêutico especial, e consequentemente, a colocação do indivíduo em local adequado, não podendo restar misturado com a população carcerária comum. Ademais, são necessárias equipes especializadas para lidar com a problemática da saúde mental, pois caso contrário, o que teremos serão agentes penitenciários que estão acostumados a tratar com a aplicação de penas. Não pode ser confundido o instrumento em análise com a pena privativa de liberdade em hipótese alguma, como vinha ocorrendo, conforme alguns casos concretos relatados e examinados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos. O TEDH disse que da forma como vinha sendo executada mais parecia pena do que medida de 377 segurança. Se reconhecida a finalidade exclusivamente inocuizadora, entendemos ser degradante e, como se sabe, o respeito à dignidade humana deve vir em primeiro lugar. 4. Fixação judicial de pena com prazo máximo de duração determinado; Fixação judicial de medida de segurança com prazo máximo de duração determinado, sendo este resultante de previsão legal taxativa ou não, porém revisável judicial e periodicamente, podendo ser extinta a qualquer momento diante da cessação de perigosidade: o tema é dos mais gravosos, eis que desde 1998, a custódia pode ser imposta já na primeira condenação do indivíduo e pode ser perpétua, ainda que haja a revisão obrigatória a cada dois anos. Evidentemente, a violação à dignidade humana, já que se trata de medida de segurança, vinculada a princípios e garantias de Direito Penal, não sendo nem podendo ser, pois, ilimitadas. Como justificativa encontra-se o “princípio de salvaguarda do interesse preponderante de proteção da liberdade e da segurança de todos”, já que ao Estado compete fornecer segurança pública. A solução parece residir, realmente, no sistema dualista flexível, com a revisão judicial periódica durante o período de cumprimento da medida. Poderia funcionar como no sistema da Pena Relativamente Indeterminada portuguesa, a qual, embora a qual possa originar um prazo máximo como expectativa, regula-se, na prática, pelas revisões judiciais periódicas e pelas prorrogações motivadas sucessivas, quando for o caso. 5. Padronização metodológica quanto às exigências de diagnósticos de perigosidade e de prognósticos de reincidência, quando cabíveis: também ficou demonstrado que a nomenclatura constante da legislação, como forma de estabelecimento de pressupostos, não é pacífica e comporta uma série de discussões. Na verdade aqui, como nos outros modelos paradigmáticos estudados, ressaltamos a necessidade de maior investimento em pesquisas e maiores precisões terminológicas. Do modo como está hoje, é fácil ser recrutado pelo instituto, e por outro lado, difícil de conseguir se desvencilhar dele. Como é uma medida que deveria ser de ultima ratio, sendo bastante onerosa, não há dúvidas que redefinir os conceitos reduzindo-lhe a vagueza e imprecisão, bem como se aplicando mais criteriosamente os instrumentos atuariais, auxiliaria a um recrutamento mais centrado, com possibilidades de um acompanhamento custodial e terapêutico mais eficaz, objetivando a reinserção social do indivíduo. Foi analisado em 3, III, C a importância da correta escolha do instrumento atuarial conforme o resultado pretendido. Também foi visto que, embora sempre haverá margem para erro, a tendência é de um incrível aperfeiçoamento com grandes probabilidades de acerto, o que pode servir, não no momento do julgamento ou condenação do sujeito, mas na hora de se 378 encaminhá-lo ou não para uma medida extrema como é o caso da Custódia de Segurança, e de personalizar o seu tratamento, em que pese algumas considerações perceberm o instituto, pura e simplesmente, como autêntica demonstração de um Direito Penal do Inimigo. Aliás, o próprio Jakobs assim a considera, porém o professor alemão entende a medida como necessária, assim como outros elementos penais e processuais penais o são, porém sempre merecedores de limites conforme o Direito Penal impõe ao jus puniendi estatal, o que configura uma análise bastante importante. 6. Como sugestões para o aprimoramento do instrumento, independentemente de todas as questões já trabalhadas e apontadas, inclusive, pela própria Alemanha, no caminho de uma renovação legislativa, iniciada por uma imposição, praticamente, do TEDH, salientaríamos, em primeira análise, a importância de um limite ao jus puniendi estatal. A medida em tela pode estar baseada no “princípio de salvaguarda do interesse preponderante de proteção da liberdade e da segurança de todos” quando este for mais relevante do que o interesse do autor na conservação de sua liberdade, no estrito limite do necessário. Assim, concordamos com o TEDH e com o Tribunal Constitucional alemão no sentido de não ver, a priori, motivo para rechaçar o instituto de plano, mas sim, importante aperfeiçoá-lo. Uma medida pode ter dez anos de duração, mas não se pode excluir a possibilidade de revisões periódicas judiciais no sentido de analisar-se a presença ou não da perigosidade, caso em que deveria cessar a custódia, de imediato. Custódias eternas violam o princípio da dignidade e não deveriam ser admitidas, sob pena de retorno a um Direito Penal ilimitado e de Autor, cujos ideais estão sendo revivificados a todo o instante por segmentos sensacionalistas midiáticos, por uma adesão popular que reclama não compartilhar qualquer risco à sua segurança, por um movimento político-partidário-parlamentar que promulga um Direito Penal mágico de difícil e simbólica operacionalidade todos os dias. Veja-se que o Anteprojeto de Reforma do CP espanhol, embora não tenha vingado no tocante à Custódia de Segurança, já veio ao encontro do anteriormente formulado, ao estipular prazo de duração para a custódia, com as revisões periódicas judiciais, e ainda, em casos extremos, uma adicional possibilidade de prorrogação da medida extrema privativa de liberdade por período menor e definido, sendo obrigatório o encerramento e colocação em liberdade vigiada, na sequência. Ainda, alguns dirão que no somatório, o resultado seria muito extenso, porém cremos ser possível, conforme a situação chegar-se a tal hipótese, porém sempre com uma limitação previamente estipulada e conhecida, ainda que prorrogável em certos casos, sob justificativa e motivação judicial. Também propugnamos pela manutenção dos princípios, seja o da legalidade, seja o da 379 irretroatividade da lei mais prejudicial, tanto para as penas, quanto para as medidas. Nos casos em que a retroatividade deva considerar a perigosidade no momento da colocação em liberdade, e não no momento da condenação, isto deve ser claramente previsto pela legislação. A custódia deve ser empregada como ultima ratio, sendo necessária, porém mediante limitações. Não pode admitir tratamento penitenciário comum e não pode admitir, tampouco, qualquer ideia de retribuição ou censura, senão estaremos diante da dupla punição, proibida, evidentemente. Ainda, a análise quanto à necessidade de imposição da medida deve ser exaustiva, minuciosa, fundamentada e individualizada. Por fim, o instrumento deveria admitir a possibilidade do dualismo flexível: além dos limites definidos para a medida, deveria haver a possibilidade de cessação da mesma diante da cessação da perigosidade. Assim, evitar-se-iam fórmulas fixas e automáticas, que se por um lado apenas cumprem o que dita um sistema dualista, no caso rígido, por outro, perde a oportunidade de cumprir com a missão para a qual foi destinada, principalmente, a de buscar a reinserção social e a consequente evitação da reincidência frente ao delinquente sexual autor de delito grave. Tendo apresentado os três modelos paradigmáticos de Direito Comparado envolvendo exemplos de intercambialidade funcional com privação de liberdade, passamos, de imediato, aos paradigmas ou tendências não privativas de liberdade, envolvendo a mesma temática. 380 §6. A COLOCAÇÃO EM LIBERDADE DO AUTOR (IMPUTÁVEL) DE DELITO SEXUAL GRAVE “En primer lugar, el Derecho penal no puede abandonar la primacía de la libertad. Esta es la principal garantía contra el totalitarismo y la arbitrariedad estatal. El precio de este primado de la libertad no es la renuncia total a la seguridad, sino la renuncia a la seguridad total”. Robles Planas1085 I. Apresentação 1. Feitas, no capítulo anterior, as considerações mais importantes acerca da aplicação de institutos que privam de liberdade o autor de delito sexual grave mesmo após o cumprimento da sua pena, resta, neste, então, referir as mais modernas tendências no que concerne à colocação em liberdade do delinquente sexual perigoso, imputável. Algumas destas alternativas, às vezes, são rotuladas como penas, às vezes como medida de segurança, conforme o ordenamento jurídico em questão. No caso do sistema anglo-saxão como EE.UU., a distinção não é clara, porque geralmente, não adotam o sistema dualista. Há, sem dúvida, forte possibilidade de oscilação, nos institutos que serão apresentados, quanto a seu caráter de pena ou medida, o que permite-nos perceber o fenômeno da intercambialidade funcional até agora comentada, eis que comum a troca de etiquetas com as mais variadas finalidades. No caso das chamadas Outpatient Civil Commitments, por exemplo, a situação é ainda mais instigante, pois embora seja um instituto de natureza civil, gera consequências de natureza penal, num hibridismo inquietante para a nossa sistemática mais tradicional, como veremos em 6, II. 2. De qualquer modo, tais mecanismos necessitam ser analisados porque, além de refletirem tendências importantes no ordenamento jurídico moderno, igualmente demonstram a necessidade de reflexão sobre as formas adequadas de colocação em liberdade do delinquente sexual num Estado Social e Democrático de Direito, cada qual com suas peculiaridades, dilemas e consequências próprias, como será visto. Refere Gudín RodriguezMagariños1086: “El problema surge cuando se advierte la patente inidoneidad de la cárcel para obtener los fines preventivo-especiales y, en concreto, la resocialización. Aunque junto a ello, hay que admitir también que hoy por hoy, la prisión es una necesidad irrenunciable. Salvar esta contradicción, debe suponer al 1085 1086 ROBLES PLANAS, Indret Oct. (2007), p. 18. GUDÍN RODRÍGUEZ-MAGARIÑOS, Cárcel electrónica, p. 139. 381 menos, potenciar la utilización de penas alternativas y, mientras que la prisión deba seguir siendo utilizada, la apertura máxima de la cárcel a la sociedad.” 3. Assim, neste capítulo apresentaremos as cinco alternativas mais discutidas, atualmente, quanto à colocação do autor de delito sexual grave em liberdade: as unidades abertas denominadas Outpatient Community Based Treatments (ou Outpatient Civil Commitment - programs), os tratamentos hormonais também conhecidos vulgarmente como castração química, expressão esvaziada de cientificidade, as notificações à comunidade e os registros públicos, o monitoramento eletrônico (que hoje já consiste numa das obrigações da liberdade vigiada, inclusive), e a medida de liberdade vigiada espanhola na modalidade póspenitenciária, ou seja, especialmente destinada para imputáveis perigosos que praticaram delitos sexuais. Antes, porém, de finalizar o tema da Outpatient Civil Commitment apresentaremos, brevemente, para que não passe in albis, o tema dos centros de terapia social, eis que, embora em desuso, foram importantes para a tradição alemã e, de certo modo, apresentam alguma similaridade com o instituto norte-americano. Já a ideia de colocar ao final a medida de liberdade vigiada tem por escopo homenagear o Direito Penal espanhol. Por fim, experiências de Direito Comparado serão utilizadas para elaborar algumas sugestões de aprimoramento de cada instituto, o que será feito, sempre ao final de cada instrumento, contando ainda com a análise de alguns critérios de verificação de legimidade muito peculiares de cada um. Enquanto nos instrumentos privativos de liberdade tínhamos um conjunto de critérios verificadores fixos, o mesmo não será possível, agora, quando cada instituto terá critérios diferenciados, pois a variedade de temas é grande e não entendemos possível um conjunto único, como feito anteriormente. Assim, passamos ao primeiro dos instrumentos, a Outpatient Civil Commitment, nos Estados Unidos. II. Outpatient Civil Commitment e o Erwin Act, desde Washington D.C., 1964 A. Contextualização 1. O modelo surgiu como uma nova forma de controle dos indivíduos, especialmente diante das críticas que foram direcionadas ao instituto do Civil Commitment e somadas à crise 382 econômica. Já está presente em quarenta estados norte-americanos1087 e envolve uma proposta mais aberta em relação ao paciente que adere à proposta, exigindo maior responsabilidade, o que pode melhorar, efetivamente, a qualidade de vida da pessoa envolvida. Como foi analisado no caso do instituto chamado Civil Commitment, pode-se afirmar que as Outpatient Civil Commitments são unidades abertas adotadas, em alguns estados norte-americanos, para indivíduos que, em tese, preencheriam todos os requisitos para uma internação compulsória em tempo integral. Este modelo aberto apresenta alguma semelhança com o instituto que encerrava as pessoas ao final do século XX, e deve ser compreendido num contexto mais amplo, envolvendo moradia digna, assistência à saúde, varas judiciais especializadas, enfim.1088 2. A primeira legislação a autorizar uma espécie de Outpatient Civil Commitment foi o Erwin Act, no distrito de Columbia, EE.UU.1089 O modelo foi desenvolvido no St. Elizabeth’s Hospital, em Washington DC, no ano de 1964. Na verdade, aquela legislação, desde o início, previa, lado a lado, o sistema de internação fechado e o sistema ambulatorial ou menos restritivo, já inovador ao tratar de direitos e garantias aos portadores de transtornos mentais, prevendo tratamentos dignos para pessoas com problemas psíquicos graves, com possibilidades de ferir a si ou a outrem, não tendo, ainda ou necessariamente, cometido qualquer delito.1090 Dentre os benefícios encontrados estão pacientes estabilizados em comportamentos disfuncionais, promoção das habilidades para a vida em comunidade e para evitar novas internações, principalmente nos primeiros dois anos, que costumam ser os mais difíceis. Milhões de dólares foram destinados aos estados que quiseram implementar o modelo, pois este tipo de investimento atrai outros como políticas públicas de habitação para que as pessoas possam residir próximo ao local onde se tratam. Na verdade, esta realidade é pouco menos onerosa que o Civil Commitment, mas deve ser considerada face aos benefícios apresentados, ao menos em casos menos graves quando o indivíduo possa ser tratado ambulatorialmente, ou seja, sem a privação integral de liberdade. Sabe-se que os programas chamados “Outpatient” estão presentes em quarenta e cinco estados norte-americanos, à exceção apenas de Connecticut, Maryland, Massachusetts, New Mexico e Tennessee. Tais 1087 ZANNI/STAVIS, AJB v. 7 n. 11 (2007), pp. 31-41. MONAHAN/BONNIE/APPELBAUM/HYDE/STEADMAN/SWARTZ, PS v. 52 (2001), p. 21. 1089 NNI/STAVIS, AJB v. 7 n. 11 (2007), pp. 31-41. 1090 COMMITTEE ON HUMAN SERVICES. Testimony of Martha B. Knisley, director D.C. Department of Mental Health on the “Mental Health Commitment Amendment ACT of 2002” bill no. 14-605 before The Committee on Human services councilmember Sandy Allen, chair. Disponivel em: <http://dbh.dc.gov/sites/ default/files/ dc/sites/dmh/release_content/attachments/8610/ervin_act.mk.062602.final.pdf>. Acesso em: 18 jan. 2014. 1088 383 programas, além de menos onerosos, apresentam, dentre suas vantagens, a capacidade de reduzir a necessidade de internação, reduzindo também a denominada “homelessness”, ou seja, aquela situação em que pessoas em tratamento acabam não tendo local para residir, ficando pelas ruas, ou em guetos. Pesquisa realizada pelo New York State Office of Mental Health, em 2005, demonstrou que houve redução de 74% de “homelessness” em um período de três anos, acompanhando-se os casos submetidos ao programa. Outra pesquisa, em 2010, realizada pelo New York State Kendra´s Law concluiu que houve diferença de dois terços para menos nos casos de pessoas submetidas aos programas Outpatient, ao contrário das demais. Na Carolina do Norte pesquisa indicou que o grupo sob Outpatient Programs apresentou 12% como índice de prisões, reduzindo o risco de ser preso em 74%. O grupo de controle, ou seja, sem a ordem judicial de Outpatient Programs, apresentou 47% naquele índice.1091 3. Em Nebraska, Estados Unidos,1092 verificou-se que, apesar da existência dos programas de Outpatient, o número de pessoas a ele submetido é pequeno. Lá, ou se recomenda o Civil Commitment na forma tradicional, com a internação, de forma bastante ampla e até desprovida de maior rigor ou controle, ou então, simplesmente se desacredita na modalidade de outpatient programs. É considerável o número de indivíduos apresentando baixo ou moderado risco para reincidência, todos submetidos à internação civil na modalidade tradicional de Civil Commitment.1093 Estudo comparativo entre estados americanos que adotam o instituto do Civil Commitment verificou dados muito interessantes no estado de Nebraska, onde os 134 indivíduos submetidos ao programa apresentavam baixo a médio risco de reincidência, em média. Apenas a metade deles foi diagnosticada com, no mínimo, um transtorno de personalidade. Quando comparado às outras amostras, o grupo de Nebraska apresentou as menores probabilidades de reincidir, embora tenha sido alta a probabilidade para a prática de pedofilia. Estes resultados podem ter relação com a metodologia e com certas variáveis. Em todo o caso, os resultados indicam rumos importantes a serem tomados. Por exemplo, um indivíduo que tenha forte desejo sexual por crianças e com alto risco de reincidência, conforme apontado em actuarial risk assessment, não deve trabalhar numa escola infantil 1091 ASSISTED outpatient treatment laws, 2011. Disponíel em: <www.treatmentadvocacycenter.org/ solution/ assisted-outpatient-treatment-laws?tmpl=component&print=1&page=>. Acesso em: 8 set 2015. KENDRA´s law: final report on the status of assisted outpatient treatment, 2005. Disponível em: <https://www.omh.ny.gov/omh web/kendra_web/finalreport/Program_admin.htm>. Acesso em: 8 set 2015. e SWANSON/BORUM/ SWARTZ/ HIDAY/WAGNER/BURNS, CJB, n. 28 (2001), pp. 156-189. 1092 A respeito vide: McLAWSEN/SCALORA/DARROW, PPPL v. 18 n. 3 (2012), pp. 453-476. 1093 Ibidem. 384 quando colocado em liberdade; já a mesma condição imposta a um homem cujo desejo é por sexo não consensual com adultos não influenciaria em seu comportamento. Tanto é assim, que fatores associados ao suporte social e a adesão ao tratamento são bastante relacionados ao risco de reincidência. Da mesma forma, a existência de vítimas intrafamiliares também configura um fator indicativo de risco importante, em que pesem as evidências em contrário. Dados encontrados em estudo realizado recentemente demonstraram que os delinquentes sexuais internados civilmente (Civil Commitment) nos estados de Washington, Florida e Wisconsin1094 exibiam altos níveis de risco de reincidência, os quais não seriam mitigados através de uma medida em meio aberto, sendo, nestes casos, necessária a internação em tempo integral. 4. Apesar dos programas de Outpatient Civil Commitment serem mais flexíveis, algumas regras, no entanto, podem ser bastante rígidas, como por exemplo, a coercitividade na condução de paciente que não se apresenta para sua consulta; tampouco cabe coerção para obrigar o paciente a tomar a medicação, porém, se o mesmo não colaborar poderá acabar sendo hospitalizado contra a sua vontade. O sistema é bastante adotado em North Carolina.1095 Evidentemente, e a respeito desta coercitividade, surgem questões éticas muito delicadas.1096 Questiona-se, por exemplo, se uma unidade Outpatient pode representar o poder estatal e impor sua autoridade para tratar e conter um indivíduo perigoso. Ademais se questiona a existência de benefícios em tratar pessoas que não são capazes de se autoconduzir ou que não se percebem como perigosas. Veja-se que o instituto do Civil Commitment comporta elementos importantes de poder de polícia e de poder de Estado também, o qual é denominado como parens patriae1097 e que o Poder Judiciário norte-americano, assim como fez em relação ao Civil Commitment tem feito em relação às Outpatient Civil Commitment, ou seja, vem admitindo-as normalmente. E com a roupagem civil, internam-se indivíduos sem os rigores que penas e medidas de segurança exigiriam. Talvez, por seu caráter civil, o tema das Outpatient não necessitasse maior aprofundamento. Entretanto, abrimos uma janela para apresentar, dentro deste âmbito de discussão, a implementação das Outpatient Civil Commitment realizada no estado do Texas, eis que tal experiência é um pouco diversa e contém discussões importantes acerca de temas como o emprego do monitoramento via GPS ou das casas de passagem (housing), além de algumas outras correlatas noutros estados norte1094 McLAWSEN/SCALORA/DARROW, PPPL v. 18 n. 3 (2012), pp. 453-476. SWANSON/BORUM/SWARTZ/HIDAY/WAGNER/BURNS, CJB v. 28 n. 2 Apr. (2001), pp. 156-189. 1096 ZANNI/STAVIS, AJB v. 7 n. 11 (2007), pp. 31-41. 1097 McKENNA/SIMPSON/COVERDALE, ANZJP v. 34 n. 4 ago. (2000), pp. 671-676. 1095 385 americanos, posto que se trata de uma modalidade voltada, especificamente, para delinquentes sexuais imputáveis, considerados perigosos, após o cumprimento da pena de prisão, e que são detectados com alguma mental abnormality a indicar alta probabilidade de reincidência. Exige-se, ainda, para sua execução, que o indivíduo tenha cometido dois ou mais crimes sexuais. Pela pertinência, passamos a apresentar o tema, já que se trata de uma forma de iniciação à liberdade. Ao final, constará o conjunto de critérios verificadores de legitimidade do presente instituto e algumas sugestões para o seu aprimoramento. B. O programa no estado norte-americano do Texas 1. Origem e procedimentos 1. Não há precedentes e face à sua relativa recenticidade, ainda não há estudos suficientes a comprovar a efetividade do programa, afora o menor custo quando comparado ao modelo tradicional de Civil Commitment. Críticas, no entanto, têm sido formuladas ao instituto, como referem Pawgann e O´Neil,1098 do mesmo modo e do mesmo porte como em relação a este último instituto, já comentado no capítulo anterior. Apenas a título de curiosidade, no estado do Texas, até 2003, havia vinte e cinco mil delinquentes sexuais na prisão, sendo quatro mil (15% a 16%) aptos ao Civil Commitment. Destes, 1526 foram indicados, efetivamente, para a equipe multidisciplinar, a qual selecionou 302 deles para a perícia, restando, ao final desta, 294. Destes 294, 210 foram indicados para a Special Prosecution Unit, a qual selecionou apenas cinquenta e um, dos quais vinte e um restaram inseridos no programa. Destes, um faleceu naturalmente, dez foram novamente presos, pois violaram alguma obrigação ou condição do programa; sete encontravam-se cumprindo o programa na comunidade em cinco das maiores cidades do Texas, e os outros três estavam saindo da prisão, e aguardando para entrar no programa.1099 2. A origem legal desta modalidade de programa no Texas iniciou com o Council on Sex Offender Treatment, criado em 1983. O referido Conselho é composto por várias agências de Estado que lidam com autores de delitos sexuais, tendo a missão de desenvolver políticas 1098 1099 PAWGANN/O´NEIL, Civil Commitment of sexually violent predators: a primer of the uninitiated. MEYER III/MOLETT/RICHARDS/ARNOLD/LATHAM, IJOTCCrim v. 47 n. 4 (2003), pp. 396-406. 386 públicas que consistam em intervenções efetivas no manejo deste tipo de indivíduo, além de coletar informações sobre os mesmos e prover tratamentos. Em 1998, o Conselho estava sofrendo forte pressão para desenvolver um pacote de medidas a serem sugeridas aos legisladores como forma de enfrentamento à delinquência sexual. Havia, à época, grande preocupação com os elevados custos da tradicional Civil Commitment em outros estados norte-americanos, além do forte lobby contrário à adoção de recursos destinados às políticas de saúde mental para fins de tratamento de delinquentes sexuais, já que isto poderia prejudicar o acesso ao tratamento por parte de outros necessitados por tratamento mental em geral. 1100 A partir destas iniciativas, o legislador do Texas conseguiu conceituar, em 1999, expressões como predatory act e sexually violent predator, sendo este último definido como alguém que sofre alguma behavioral abnormality, ou seja, algum comportamento que torne provável o envolvimento da pessoa em atos de natureza sexual violenta, predatória. 3. Além de preencher estes conceitos, para ser encaminhado a um programa Outpatient, no Texas, passou-se a exigir que o indivíduo estivesse condenado a mais de um delito sexual violento, podendo-se entender aqui aqueles que qualificamos como sendo graves, e que tivesse sido avaliado por uma equipe de triagem multidisciplinar formada por membro do Texas Department of Mental Health and Mental Retardation, Texas Deparment of Criminal Justice, Texas Department of Public Safety e Texas Council on Sex Offender Treatment, sendo usados como ferramentas atuariais para os diagnósticos instrumentos como o Static 99, o MnSOST-R e o HARE.1101 O objetivo é verificar se o indivíduo é perigoso e se existe probabilidade de reincidência. A conclusão é encaminhada ao Texas Department of Criminal Justice ou ao Texas Department of Mental Health or Mental Retardation. Estes avaliam os resultados, através de outra perícia, e se confirmado o diagnóstico, o indivíduo é encaminhado para a Special Prosecution Unit, a qual irá sustentar, judicialmente, o status de “predador”, no caso, em Montgomery County. Nos sessenta dias subsequentes o indivíduo tem direito ao julgamento. Caso considerado judicialmente um sexually violent predator, ele deverá aceitar o tratamento que será imposto, já que é obrigatório; se recusá-lo estará cometendo crime (denominado 3rd degree felony), podendo ser preso por até dez anos (sendo o mínimo, dois anos de prisão), além de receber multa que pode chegar até dez mil dólares. Após cumprir sua pena, ainda assim não estará liberado da ordem inicial de Civil Commitment incluindo todas as restrições e condições, as quais, no Texas, são diferenciadas. 1100 1101 MEYER III/MOLETT/RICHARDS/ARNOLD/LATHAM, IJOTCCrim v. 47 n. 4 (2003), pp. 396-406. Ibidem. 387 4. Verifica-se, pois, que de uma imposição inicial de caráter civil, porém lastreada em fundamentos criminais, derivam consequências bastante gravosas de caráter penal. Sem dúvida, trata-se de instituto que chama a atenção pela mescla nos rótulos que adota. Conforme já foi apresentado, tampouco seria conveniente aos defensores do modelo adotar a roupagem criminal, desprezando-se, consequentemente, a etiqueta “civil”, posto que, então, a Suprema Corte dos Estados Unidos, provavelmente, não admitiria a ideia, conforme já demonstrado pelo perfil das decisões proferidas em 5, III. 5. Assim, no Texas, a legislação sobre Civil Commitment, prevê uma execução diferenciada. Ao invés da tradicional internação, é previsto um misto de ambiente de recolhimento e tratamento, com saídas supervisionadas de forma intensiva, inclusive com monitoramento eletrônico. Para ilustrar, o tratamento é composto em cinco etapas e costume levar cerca de cinco anos para ser completado. O primeiro estágio é dedicado à aceitação da responsabilidade pelos seus atos e para que o sujeito aprenda a controlar sua agressividade; o segundo estágio é focado no desenvolvimento da autoestima; o terceiro estágio é focado no ciclo da violência e no aprendizado a reconhecer os sintomas em si mesmo; o quarto nível foca a sexualidade positiva e questões concernentes a relacionamentos, com intervenções comportamentais e acompanhamento de pletismógrafo. No quinto nível busca-se a prevenção a recaídas e o preparo para o desligamento do programa. Programa-se uma revisão bienal. Tabelas práticas que são preenchidas conforme o dia-a-dia dos sujeitos submetidos ao programa, com suas rotinas dentro e fora do ambiente terapêutico, podem ser consultadas em página da web, disponibilizadas pelos próprios gestores do mesmo.1102 É interessante acessar a página do Texas Departament of Criminal Justice – Parole Division, onde constam todos os dados e exigências práticas a respeito.1103 6. A equipe multidisciplinar também conta com um supervisor, além do responsável pelo tratamento, representante do Department of Public Safety, para acompanhar o monitoramento eletrônico feito por GPS, além de outros membros, como médico, psicólogo, etc. Tais profissionais que compõem as equipes multidisciplinares necessitam capacitação e especialização permanentes. Quanto ao indivíduo monitorado, seu consentimento para a troca 1102 1103 TAYLOR/WORRY, Outpatient sexually violent predator treatment program. Vide TEXAS. Department of Criminal Justice. Parole Division. Policy and operating procedure. Number: PD/POP-3.6.11. 388 de informações entre os profissionais das diversas áreas não é necessário. Se o monitorado não estiver usando o equipamento para controle via GPS, poderá ser preso, pois isto é considerado um crime grave (3rd degree felony). Além disso, deve seguir regras bastante rígidas se quiserem viver em comunidade. Por exemplo, os sujeitos submetidos a estas medidas não poderão viver ou se aproximar de escolas. Em muitos lugares existem casas de passagem (halfway houses), porém certas comunidades não as aceitam, razão pela qual o local para moradia destes indivíduos costuma ser um problema bastante sério. Em alguns casos eles passam a viver com suas famílias, porém quando o endereço não é conveniente para o Conselho, as famílias são requisitadas a mudar de endereço.1104 Acerca deste tema, cumpre salientar que os problemas habitacionais deste tipo de população são considerados gravíssimos pela literatura especializada. Em 2007, foi realizada pesquisa nos Estados Unidos logo após 117 indivíduos serem colocados em liberdade condicional. Onze municípios responderam. Destes, cinquenta e seis sujeitos, ao saírem da prisão, tinham suas próprias residências, sendo, pois, independentes; os outros sessenta e um estavam vivendo livres, mas sempre em áreas vizinhas às unidades da Inpatient Unit, de Civil Commitment, principalmente no Arizona e em Washington.1105 Dos onze estados que responderam, quatro informaram que patrocinam estas residências. No Arizona, quarenta e três indivíduos vivem nestas casas denominadas Less Restrictive Alternative Residential Facility (LRA). Este tipo de financiamento também ocorre em Minnesota. Dez estados responderam acerca da dificuldade em colocação destes indivíduos em residências na comunidade, sendo que seis deles disseram que, em regra, trata-se de tarefa bastante complexa. Os outros quatro disseram que tal grau de dificuldade é moderado. 2. A experiência do Texas como representativa de intercambialidade funcional para autores imputáveis de delitos sexuais graves 1. O programa de Outpatient Civil Commitment do Texas objetiva monitorar, intensivamente, o autor de delito sexual após o cumprimento de sua pena, bem como prover tratamento psicológico do tipo cognitivo comportamental, de forma individualizada, embora às vezes, admitam-se alguns momentos de tratamento em grupo. No entanto, a Association of 1104 1105 MEYER III/MOLETT/RICHARDS/ARNOLD/LATHAM, IJOTCCrim v. 47 n. 4 (2003), pp. 396-406. ARKOWITZ, JPL v. 36 n. 3 Oct. (2008), p. 494. 389 Treatment of Sexual Abusers (ATSA)1106 entende que programas assim exigem encaminhamentos e tratamentos individualizados em instituições adequadas, principalmente considerando outras comorbidades como dependências químicas e problemas psiquiátricos. Além disso, a intensive surveillance é extremamente importante, e envolve o contato frequente entre o case manager e o monitorado. 2. Objetivamente, não se nega que o modelo Outpatient no estado do Texas nasceu da busca por um sistema que fosse menos oneroso aos cofres públicos do que a internação comum, oferecida pelo Civil Commitment tradicional. O custo dos programas de Outpatient Civil Commitment costuma girar em torno de vinte mil dólares, anualmente, por pessoa, comparados aos cem mil dólares por pessoa, por ano, em média, no caso da internação comum (Civil Commitment). O estado do Texas encontrou, assim, uma forma menos onerosa e com um custo-benefício interessante para proteger a segurança pública e, ao mesmo tempo, tratar o agressor sexual grave. Além disso, entendeu-se que desta forma, os direitos civis do delinquente, bem como os das potenciais vítimas e os da sociedade ficam mais bem resguardados. Não existem muitos estudos acerca da efetividade deste tipo de programa, nem mesmo no Texas, inclusive por dificuldades metodológicas; ademais, o número de agressores sexuais posto em liberdade para ingressar neste tipo de programa não costuma ser significativo, estatisticamente.1107 3. A marca da intercambialidade funcional pode ser encontrada no curioso fato de que o instituto, que não se sabe pena ou medida de segurança, até mesmo face ao sistema anglosaxão, que é diferenciada neste sentido, impõe sanções de natureza penal extremamente gravosas diante do descumprimento de restrições que são de caráter meramente civil, aplicadas a autores de crimes que já cumpriram suas penas.1108 Esta “mescla” jurídica é o retrato da tendência que verificamos estar ocorrendo em vários cenários jurídicos internacionais, já explicada sob a denominação de intercambialidade funcional. 1106 MEYER III/MOLETT/RICHARDS/ARNOLD/LATHAM, IJOTCCrim v. 47 n. 4 (2003), pp. 396-406. Ibidem. 1108 Ibidem. 1107 390 C. Experiências correlatas norte-americanas em outros estados 1. Em 2006, no estado da California, a população aprovou, com 70% dos votos, a Proposition n. 831109 segundo a qual um agressor sexual, ao sair da prisão ou mesmo após a internação civil, não poderia residir a menos de “2000 feet” de escolas ou parques, algo que corresponde a pouco mais de 600 metros. Na omissão da legislação, já existem decisões dizendo que, inclusive, daycare centers são abrangidos neste caso. Paradoxalmente, este tipo de situação acaba isolando o indivíduo em guetos, tornando a fiscalização sobre o mesmo mais difícil bem como obstaculizando a formação de rede social e familiar, o que faz com que se perca qualquer benefício de integração social almejado, fomentando reincidências ou reiterações delitivas, conforme Díez Ripollés.1110 Em alguns locais no estado da California, por exemplo, o indivíduo pode permanecer na residência da sua família durante o dia, devendo procurar outro local para dormir, à noite. Muitos acabam morando na rua, ou dormindo em veículos ou em áreas perigosas. No estado do Colorado, em pesquisa realizada em 2004 pelo Colorado Department of Public Safety, concluiu-se que tais restrições residenciais não deveriam ser empregadas porque não há evidência desta relação com a reincidência sexual por parte de indivíduos que morem próximo a parques ou escolas. O Iowa County Attorneys Association declarou que tais formas de restrição residenciais geram outros problemas graves como falsas comunicações de endereço, indivíduos trocando de residência sem comunicar ao Juiz o novo endereço, morando nas ruas, fugindo das autoridades. Sugerem que as restrições deveriam ser aplicadas conforme a gravidade do caso, e não de forma genérica, como “one-size-fits-all approach.”1111 2. Ainda, há que se mencionar o interessante e recomendável programa CoSA 1112 – Circles of Support and Accountability Model, empregado em poucos lugares no mundo. Nos EE.UU. encontra-se este programa apenas em poucos estados, aplicável a criminosos sexuais ao alcançarem a liberdade condicional; no estado do Arizona o programa também vai dirigido a liberados condicionalmente do Civil Commitment. Neste estado, por exemplo, o indivíduo submetido ao Civil Commitment tradicional somente pode deixar a instituição, inicialmente, para fins de tratamento médico. Posteriormente, mas sempre supervisionado, poderá fazê-lo para buscar emprego na comunidade, se tiver cumprido todas as regras do programa. Se assim 1109 MEYER III/MOLETT/RICHARDS/ARNOLD/LATHAM, IJOTCCrim v. 47 n. 4 (2003), pp. 396-406. DÍEZ RIPOLLÉS, InDret Oct. (2014) p. 17. 1111 MEYER III/MOLETT/RICHARDS/ARNOLD/LATHAM, IJOTCCrim v. 47 n. 4 (2003), pp. 396-406. 1112 Ibidem. 1110 391 progredir com êxito, poderá sair para fazer compras, sozinho, sem supervisão e, até mesmo, mudar-se para