1 Cooperação Sul-Sul em Alfabetização: rumo ao Desenvolvimento

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1 Cooperação Sul-Sul em Alfabetização: rumo ao Desenvolvimento
Cooperação Sul-Sul em Alfabetização: rumo ao Desenvolvimento Humano
Michelle Morais1
1. Introdução
Este artigo se propõe a apresentar, qualitativamente, os vínculos identificados teórica e
empiricamente entre Desenvolvimento Humano, Alfabetização de Jovens e Adultos e
Cooperação Sul-Sul. Ele é ao mesmo tempo resultado e desdobramento de pesquisa realizada
entre abril e novembro de 2004 para o programa de mestrado em Estudos de Desenvolvimento do
Intitute of Social Studies – ISS (A Haia, Países Baixos). Tal pesquisa adotou como estudo de caso
a cooperação entre o Programa Alfabetização Solidária e o Ministério da Educação de
Moçambique, país em que foi feita a pesquisa de campo nos meses de julho e agosto de 2004.
Utilizando-se do conhecimento empírico obtido naquela ocasião, este artigo não apenas evidencia
os vínculos acima mencionados, como também, em virtude da importância dos mesmos, aponta
orientações para a prática. São princípios gerais propostos para guiar a experiência da
Cooperação Sul-Sul em Alfabetização de Jovens e Adultos. Por fim, mas não menos importante,
o presente artigo chama a atenção para os desafios e as oportunidades que se colocam para a
continuidade e aprimoramento da Cooperação Sul-Sul no futuro.
Vale ressaltar que, devido a limitações de espaço, inúmeras questões expostas no presente texto
não virão acompanhadas de sua fundamentação empírica. Conseqüentemente, é bem possível que
em alguns momentos o leitor se depare com argumentos de aparência normativa. Assegura-se, no
entanto, que tais argumentos foram derivados dos dados primários e secundários obtidos (e
analisados, obviamente, pelas lentes próprias à autora).
1
Embora a autora esteja atualmente à serviço da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), as idéias apresentadas neste artigo não necessariamente correspondem às daquela organização.
1
2. Alfabetização: liberdade essencial para o Desenvolvimento Humano
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial até os anos 80 prevaleceu uma visão do
desenvolvimento que o concebia e o media por meio de elementos fundamentalmente
econômicos. Nesse sentido, o Produto Interno Bruto (PIB) de um país e sua renda per capita
eram tomados como parâmetros para a avaliação do nível de desenvolvimento alcançado. Ao fim
da década de 80 e início dos anos 90, o que se pode chamar de “Regime Internacional de
Desenvolvimento” (Morais: 2001) se desprendeu desta visão puramente economicista e
econométrica, abrindo-se para novas abordagens que qualificavam o desenvolvimento como
humano e preferivelmente sustentável.
A Teoria do Desenvolvimento Humano, erigida por acadêmicos como Amartya Sen e Martha
Nussbaum, ganhou reconhecimento internacional ao se tornar o pilar sustentador do Relatório de
Desenvolvimento Humano anualmente publicado pelas Nações Unidas desde 1990. Segundo essa
Teoria e nas palavras de Sen, o desenvolvimento deve ser entendido como ‘processo de expansão
das liberdades reais que as pessoas desfrutam’ (Sen: 2000, p. 17). Também a pobreza é abordada
por ele como privação de liberdades e não apenas como insuficiência de renda. Para que se
expanda essa ‘liberdade para levar o tipo de vida que as pessoas têm razão para valorizar’, há
algumas liberdades instrumentais a serem garantidas. Sen introduz cinco categorias de liberdades
instrumentais: ‘(1) liberdades políticas, (2) facilidades econômicas, (3) oportunidades sociais, (4)
garantias de transparência, e (5) segurança protetora’ (Sen: 2000, p. 55).
Nesse âmbito, ele apresenta a alfabetização como uma oportunidade social, e, conseqüentemente,
como uma importante liberdade. Em suas palavras, ‘o analfabetismo pode ser uma barreira
formidável à participação em atividades econômicas que requeiram produção segundo
especificações ou que exijam rigoroso controle de qualidade (uma exigência sempre crescente no
comércio globalizado). De modo semelhante, a participação política pode ser tolhida pela
incapacidade de ler jornais ou de comunicar-se por escrito com outros indivíduos envolvidos em
atividades políticas’ (Sen: 2000, p. 56). Em consonância com essa idéia, a Organização das
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Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) tem adotado o lema
Alfabetização como Liberdade como o marco de suas ações em alfabetização.
A importância da alfabetização para o desenvolvimento humano pode ser também vislumbrada
na composição e no cálculo do chamado IDH – Índice de Desenvolvimento Humano.
Introduzido em 1990 pelo primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano, o IDH se coloca
como importante alternativa ao PIB na medição do nível de desenvolvimento de um país.
Ademais, o cálculo do IDH também para estados e municípios passou a ser utilizado como
importante instrumento para o desenho e focalização de políticas públicas.
Sendo um índice composto, o IDH se sustenta em um tripé de índices: um para renda, um para
longevidade e outro para conhecimento (Desai: 1991). O primeiro deriva da renda per capita, o
segundo da expectativa de vida, e o terceiro – educação – é também um índice composto. O
índice de educação tem dois componentes: taxa de alfabetização da população com 15 anos ou
mais e taxa líquida de matrículas em todos os níveis de ensino. Note-se que no cálculo do índice
de educação, a taxa de alfabetização recebe peso 2, enquanto a taxa de matrículas tem peso 1.
Embora pareça mero detalhe metodológico, essa é uma evidência do destacado valor que a teoria
do desenvolvimento humano e sua operacionalização conceitual conferem à alfabetização da
população jovem e adulta.
3. Cooperação Sul-Sul: uma aliada
O analfabetismo persiste em grande parte do mundo em desenvolvimento apesar da marcante
modernidade científica e tecnológica deste século XXI. Convencidos de que a educação é um
direito fundamental e inalienável, governos, sociedade civil, iniciativa privada e organismos
internacionais têm dedicado esforços para levar a alfabetização àqueles que não a obtiveram
durante sua infância ou não tiveram a oportunidade para praticá-la, assim retornando à condição
de analfabetismo.
3
As experiências são diversas, como diversos são os contextos locais em que vivem os mais de
860 milhões de adultos analfabetos. E essa diversidade traz um sem-número de metodologias, de
abordagens, de materiais (publicados ou simplesmente de uso corrente da comunidade) como
também de resultados. A riqueza de experiências espalhadas em todo o mundo em
desenvolvimento corresponde a um recurso de que se poder lançar mão para fortalecer as demais
ações voltadas à alfabetização de jovens e adultos. Um número significativo de iniciativas tem
alcançado positivos e destacados resultados em seus esforços. Exemplos importantes são o
projeto de alfabetização bilíngüe na Bolívia; os programas de alfabetização conduzidos pela
ActionAid em diversos países do Sul com a metodologia REFLECT; a política de alfabetização
intensiva da cidade de Tianshui, na China; o Conselho Bunyad de Alfabetização Comunitária no
Paquistão (UNESCO: 2004), e os programas brasileiros Alfabetização Solidária (AlfaSol) e
Brasil Alfabetizado, entre outros.
Nesse sentido, o compartilhamento de experiências como as acima mencionadas (e diversas
outras) e o aprendizado conjunto oferecem a possibilidade de que cada país do Sul não tenha que
“reinventar a roda” em suas ações de combate ao analfabetismo. Em particular, a Cooperação
Sul-Sul tem potencial utilidade, estando em consonância com o oitavo e último Objetivo de
Desenvolvimento do Milênio (ODM), que chama para o estabelecimento de uma parceria
mundial para o desenvolvimento. Do mesmo modo, as Nações Unidas defendem que ‘para que a
Década das Nações Unidas para a Alfabetização tenha êxito, parcerias precisam ser estendidas e
fortalecidas para compartilhar informações sobre as práticas correntes, para coordenar atividades
e para alavancar recursos’ 2 (UNESCO: 2003, p. 55).
Contudo, a Cooperação Sul-Sul em alfabetização não é nenhuma novidade que este artigo venha
a introduzir. Embora não sejam numerosos os casos, podem-se mencionar, por exemplo, as
presentes iniciativas de cooperação entre Cuba e Haiti (UNESCO: 2004) e entre Cuba e
Moçambique para compartilhar a experiência cubana no estabelecimento de programas de
alfabetização via rádio. Ademais, desde 2000 o Programa Alfabetização Solidária tem também
2
Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.
4
cooperado com países como Timor Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Moçambique e
Guatemala para a “transferência”3 de suas práticas em alfabetização.
A Cooperação Sul-Sul para a Alfabetização figura como exemplo da evolução por que tem
passado a cooperação entre países em desenvolvimento. Essa modalidade de cooperação surgiu
fundamentalmente nas esferas política e econômica durante os anos de Guerra Fria. No campo
político, os países do então chamado “Terceiro Mundo” se uniam para fazer frente à bipolaridade,
constituindo o Movimento Não-Alinhado e negociando o estabelecimento de uma Nova Ordem
Econômica. Em assuntos econômicos propriamente ditos, a Cooperação Sul-Sul voltava-se ao
estímulo aos intercâmbios comerciais inter-hemisféricos, assim como ao compartilhamento de
tecnologias de produção. Com o fim da bipolaridade e as mudanças ocorridas no Regime
Internacional de Desenvolvimento, o foco colocado sobre o desenvolvimento humano e sobre a
erradicação da pobreza permitiu o fortalecimento da Cooperação Sul-Sul no âmbito social.
Paralelamente a essa evolução da agenda da cooperação, sucedeu também uma maior ênfase no
compartilhamento não apenas de técnicas mas principalmente de conhecimentos “do Sul, para o
Sul”. Reconheceu-se pois, a capacidade do mundo em desenvolvimento de produzir soluções
autênticas para seus próprios problemas.
4. Alguns Princípios a Orientar a Cooperação Sul-Sul para a Alfabetização
Ao defender e promover o exercício da Cooperação Sul-Sul corre-se, todavia, o risco de
romantizá-la. A cooperação entre países em desenvolvimento de fato lhes oferece maiores
oportunidades de aprendizado e aproveitamento das lições aprendidas, uma vez que as condições
de vida de suas populações tendem a se aproximar quando comparadas àquelas dos países do
Norte. No entanto, essa maior proximidade não chega a equiparar completamente os países em
desenvolvimento. Embora referidos sob essa única denominação desde o célebre discurso do
presidente norte-americano Harry Truman (Truman: 1949), esses países diferem amplamente no
que se refere ao seu contexto social - que é heterogêneo não apenas entre países como também
3
O termo “transferência” está sendo aqui utilizado em conformidade com a literatura que aborda a chamada
“transferência de políticas” (policy transfer). Para conhecer a base conceitual desse corpo de literatura, ver Dolowitz
e Marsh (1996), Stone (2000), Dolowitz e Marsh (2000), e Newmark (2002).
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dentro deles – e à parcela de poder de que desfrutam dentro do que Hans Morgenthau chamou de
“balança internacional de poder” (Morgenthau: 1978). Comparem -se, por exemplo, África do Sul
e Nepal, México e Serra Leoa, Belize e Índia.
Conseqüentemente, observa-se não ser apropriado supor que: (1) a Cooperação Sul-Sul nunca
seja vertical; (2) as soluções encontradas em um país sejam inerentemente implementáveis e
adequadas nos demais; (3) questões de apropriação (ownership) e sustentabilidade não precisem
ser preocupações constantes como se tem defendido para a Cooperação Norte-Sul. Nesse sentido,
a partir da coleta de dados em campo e análise do estudo de caso, o presente artigo apresenta a
seguir alguns princípios que resultam importantes no desenho e implementação da Cooperação
Sul-Sul para a Alfabetização de Jovens e Adultos.
Horizontalidade e Aprendizado Mútuo
Em geral, iniciativas de cooperação entre dois países em desenvolvimento se estabelecem quando
um deles apresenta êxito na consecução de programas, neste caso de alfabetização de jovens e
adultos. Nesse contexto, tendem a emergir relações tradicionais de poder, como por exemplo
“professor -aluno”, em que se espera que uma parte ensine, enquanto a outra aprenda em
conformidade. Contudo, essa cooperação será mais proveitosa e eficaz para ambas as partes se
forem estabelecidas na prática relações de horizontalidade e aprendizado mútuo.
Isso significa incluir entre os objetivos da cooperação ganhos de aprendizado tanto para o país
destinatário quanto para o país remetente das lições resultantes da experiência de sucesso em
questão4. O país destinatário, embora principal aprendiz nesta cooperação, certamente possui
também experiências passadas em alfabetização as quais lhe deixaram lições. Estas, positivas ou
não, podem ser também compartilhadas e aproveitadas para as novas ações em desenvolvimento.
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Em geral a literatura em cooperação internacional utiliza as expressões “país beneficiári o” e “país doador”.
Contudo, em conformidade com o princípio de horizontalidade na relação entre as partes cooperantes, opta-se neste
artigo pelos termos “país destinatário” e “pais remetente”, respectivamente.
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Apropriação e Observância das Especificidades Locais
A conseqüência imediata do que foi anteriormente dito é que um projeto de Cooperação Sul-Sul
demanda elaboração conjunta. O país destinatário deve se sentir também dono da ação/estratégia
a ser desenvolvida e, fundamentalmente, direcionar esta cooperação ao saneamento de suas
principais deficiências e à solução de possíveis gargalos.
Deste modo, o ponto de partida para o desenho de tal projeto se encontra em uma análise
situacional do país destinatário no que se refere ao seu perfil do analfabetismo (literacy profile)5 e
às suas deficiências institucionais. Adicione-se a isso um levantamento e uma análise de suas
passadas políticas e iniciativas da sociedade civil em alfabetização de jovens e adultos. Há países
em que, por exemplo, campanhas de alfabetização marcaram a história nacional, deixando
indicações quanto a estratégias que funcionam bem e outras que não devem ser repetidas.
Essas análises se fazem importantes para que a experiência de sucesso “transferida” por meio da
cooperação seja adequadamente adaptada às especificidades locais do país destinatário.
Comparações entre os dois países cooperantes são úteis para a identificação dos principais
aspectos a serem adaptados. Em se tratando de programas de alfabetização de jovens e adultos,
dentre os principais aspectos a serem identificados e comparados se encontram: (i) localização da
população não-alfabetizada – se majoritariamente em áreas urbanas ou rurais; (ii) composição
etária e por sexo desta mesma população; (iii) sua(s) língua(s) materna(s) – se a mesma língua
proposta pelo programa de alfabetização ou não; (iv) a base gramatical e vocabular do idioma dos
dois países, no caso de o idioma ser o mesmo. Obviamente outras questões mais complexas, mas
não menos importantes, devem ser também observadas, tais como a motivação da população nãoalfabetizada para freqüentar programas de alfabetização e as relações de gênero prevalecentes na
sociedade.
5
O perfil do analfabetismo (literacy profile) de um país pode ser elaborado com o uso da mesma metodologia
utilizada para o levantamento do perfil de pobreza (poverty profile). Utilizam-se dados de pesquisas por amostra de
domicílio ou dados censitários para levantar as principais características sócio-econômicas da população nãoalfabetizada. No campo das políticas para a redução da pobreza esse tipo de perfil tem sido bastante útil para o
desenho de estratégias que mais se aproximem das necessidades da população pobre.
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Sustentabilidade e Fortalecimento Institucional
Quando se tratam de cooperação multilateral e bilateral Norte-Sul, costuma-se dizer que a meta
última da cooperação é se retirar o quanto antes do país (neste caso) beneficiário. Pode se dizer
que também a Cooperação Sul-Sul sirva a um propósito temporário de aprendizado mútuo e
fortalecimento do país destinatário. Por isso, é importante que o processo cooperativo não se
assemelhe a uma mera “entrega de encomendas”, em que o país remetente entrega um produto ou
presta um serviço ao país destinatário. Ao contrário, este processo deve estar voltado a garantir
que as instituições daquele país possam, uma vez finda a cooperação, gerar por si mesmas aquele
produto ou serviço. Nas palavras metafóricas do Sr. Ernesto Muianga, responsável pela Direção
Nacional de Alfabetização e Educação de Adultos (DNAEA) do Ministério da Educação de
Moçambique: “Ao pobre não se deve d ar o peixe. Deve-se ensiná-lo a pescar” 6.
No seio das Nações Unidas e suas agências especializadas, a preocupação central com a
sustentabilidade das ações resultantes da cooperação internacional levaram ao surgimento do
conceito de capacity building ou fortalecimento institucional. O conceito se define como:
‘Uma intervenção ou atividade realizada por uma organização ou grupo em um país
para auxiliar aqueles em outro país a melhorar sua habilidade de desempenhar certas
funções ou alcançar certos objetivos. (...) Crescentemente, o fortalecimento
institucional se tornou uma parte central da lógica de toda a idéia de cooperação
internacional para o desenvolvimento. Se os países não puderem ser auxiliados a
alcançar algum nível de sustentabilidade e desempenho institucional, qual seria então
o valor de longo prazo da cooperação internacional?’ 7 (United Nations: 1999, p. 14)
Deste modo, em se compartilhando experiências de sucesso, buscar o fortalecimento institucional
significa colocar o foco sobre a habilitação do país destinatário para que o mesmo obtenha bons
resultados por meio de estratégias similares que se adeqüem a sua realidade nacional. No caso
específico de Moçambique, os técnicos da Direção Nacional de Alfabetização e Educação de
6
7
Entrevista realizada em 10 de agosto de 2004 nas dependências do Ministério da Educação de Moçambique.
Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.
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Adultos indicaram, quando entrevistados, que o país necessita ser institucionalmente fortalecido
nos seguintes aspectos:
a) Fortalecimento dos centros de formação de alfabetizadores, a fim de que o país tenha
capacidade própria para treinar professores em novas metodologias;
b) Desenvolvimento de novos materiais didáticos de alfabetização de jovens e adultos (tanto em
português quanto nas línguas moçambicanas), uma vez que os materiais oficiais foram elaborados
em 1983.
c) Estabelecimento de parâmetros para avaliação de materiais didáticos, já que o país conta com a
presença de inúmeras organizações multilaterais, bilaterais e da sociedade civil que provêm
programas de alfabetização fazendo uso de uma diversidade de materiais. Aliás, esta é uma área
em que também o Brasil necessita se aprimorar.
Faz-se importante mencionar que alguns desses aspectos já estão sendo abordados na segunda
fase da cooperação Brasil-Moçambique para Alfabetização, agora envolvendo o Programa
Alfabetização Solidária e os Ministérios da Educação do Brasil e de Moçambique.
5. Oportunidades e Desafios ao Futuro da Cooperação Sul-Sul
Por um lado, a cooperação entre países em desenvolvimento demanda elevados recursos de
países que em geral se encontram em situação de permanente contenção de gastos. Por exemplo,
a inexistência de rotas aéreas freqüentes e diretas entre os mesmos faz com que os custos da
cooperação “presencial” sejam naturalmente elevados. E isso não se aplica apenas à cooperação
do Brasil com os demais países de língua portuguesa. O custo de um bilhete aéreo de Brasília a
Santiago do Chile (portanto, dentro do mesmo continente) se equipara, por exemplo, ao valor de
um bilhete para capitais européias como Madri e Londres.
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É certo que as tecnologias de comunicação e informação podem desempenhar papel fundamental
neste processo. Contudo, são inúmeros os países em desenvolvimento cujos governos ainda
contam com acesso limitado a ferramentas informáticas e à Internet. Ademais, considerando-se
que esta cooperação deva estar voltada para o fortalecimento institucional nos países
destinatários, até que se desenvolvam mecanismos eficientes de educação a distância continuará
sendo necessário lançar mão de processos presenciais de treinamento e troca de experiências.
Adicionalmente, seria ilusório imaginar que a Cooperação Sul-Sul seja custosa apenas para o país
remetente. De forma alguma, o país destinatário incorre também em diversas e fragmentadas
despesas para acolher a cooperação recebida, o que, no final do dia, soma um montante
considerável de recursos financeiros.
Vis-à-vis essa barreira financeira (para países que afinal de contas enfrentam os permanentes
compromissos com sua dívida externa), é possível vislumbrarmos algumas oportunidades para o
financiamento da Cooperação Sul-Sul em Alfabetização. Primeiramente, o momento político
criado pela Década das Nações Unidas para a Alfabetização (2003-2012) pode contribuir para
que parte da Assistência Oficial para o Desenvolvimento (ODA) seja redirecionada para a
alfabetização de jovens e adultos. Isso ocorreria em contraposição à tendência da última década e
meia, em que esses recursos, quando destinados à educação, foram concentrados no ensino
fundamental para crianças.
Uma vez que a atenção dos doadores bilaterais e multilaterais esteja voltada para a alfabetização,
abre-se a possibilidade de que a Cooperação Sul-Sul seja fomentada. Ademais, é possível que se
multipliquem as ainda incipientes experiências de “triangulação” - a cooperação entre dois países
em desenvolvimento que é financiada, acompanhada e facilitada por um país desenvolvido. A
triangulação parte dos pressupostos de que: (i) os países em desenvolvimento teriam mais a se
beneficiar com a troca de experiências entre si do que com os países do Norte; (ii)
consequentemente, a ajuda externa seria mais eficientemente aplicada se usada para financiar a
Cooperação Sul-Sul. Adicionalmente, a prática da triangulação reflete o estabelecimento de um
verdadeiro pacto pela Alfabetização, congregando diferentes parceiros em torno de um único
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objetivo: levar o direito à educação e o desenvolvimento humano àqueles que se encontram
privados da capacidade de ler, escrever, calcular e interpretar.
Nas palavras da Sra. Rosa-María Torres, ‘as relações Norte-Sul continuarão sendo importantes.
No entanto, provavelmente a melhor contribuição que o Norte poderá aportar no âmbito desta
Década para a Alfabetização em termos de compartilhamento de informações e construção de
redes (networking) será em auxiliar os países em desenvolvimento a fortalecer seus vínculos, seu
intercâmbio e a cooperação Sul-Sul’ 8 (Torres: 2000, p. 20).
6. Conclusão
Destarte, o artigo que se encerra procurou indicar os vínculos teóricos entre o desenvolvimento
humano e a alfabetização, assim como as conexões entre esta última e a prática da Cooperação
Sul-Sul. Apresentaram-se também princípios ou orientações que se observam importantes para o
melhor aproveitamento e desempenho desta cooperação. São evidentes os desafios que se
colocam aos países em desenvolvimento para que possam compartilhar suas experiências em
alfabetização de jovens e adultos e para que possam aprender uns com os outros. Todavia, nesta
Década das Nações Unidas para a Alfabetização emergem também oportunidades que podem
alavancar esta até então tímida modalidade de cooperação.
Por fim, é imprescindível destacar que será exatamente a complementaridade entre as iniciativas
conduzidas no Sul e as análises políticas e sociais realizadas pela academia e por organismos
internacionais que nos permitirão progredir na busca incessante da Alfabetização para Todos e do
Desenvolvimento Humano. Nesse processo de retro-alimentação, o posicionamento crítico se faz
fundamental, como bem expresso pelo cientista social Paschal Mihyo:
‘Não será útil que o Sul adote uma abordagem muda e camuflada para questões de
política e estratégia. Relutância em ser autocrítico na crença confusa de que o autoexame conota falta de militância é um problema real para o progresso no Sul’9
(Mihyo: 1992, p. 235).
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Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.
Tradução do inglês para o português feita livremente pela autora deste artigo.
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