Bastidores do Nazismo
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Bastidores do Nazismo
Bastidores do Nazismo Autor: Santo Só Aos dezessete anos de idade, apoiado pela família, Hans ambicionou atender a uma oferta do consulado aos descendentes de alemães no Brasil para ir à Alemanha. Seus avós foram imigrantes alemães e ele era o quinto filho do pequeno proprietário de uma oficina em cidadezinha próxima à capital. No ano de 1938 eles não podiam imaginar a guerra que iniciaria no ano a seguir. O prestígio da Alemanha estava em alta e enviava à colônia de alemãs no Brasil catálogos e informações. Quase todos os equipamento mecânicos conhecidos por Hans eram importados de lá. O convite para estudar no país significava para o jovem uma oportunidade extraordinária de aperfeiçoamento. O pai conduziu Hans ao consulado na capital. Em sala isolada, ele precisou responder a longo interrogatório. Em seguida, foi encaminhado a um gabinete médico onde, muito envergonhado, submeteu-se completamente nu a exames clínicos e antropométricos. Na semana seguinte, recebeu em casa o resultado. Junto com a informação de que fora aprovado vieram os documentos para a viagem. A família, embora penalizada pela separação, comemorou o benefício e, logo, o embarque em navio do seu, agora, ilustre membro. * Chegando à potência europeia, Hans foi conduzido junto com outros jovens masculinos na mesma situação para uma colônia de reeducação situada nos arredores de um vilarejo não muito afastado da cidade de Berlim. Já no primeiro dia foram informados sobre o currículo com horários de atividades e repouso rigorosamente determinados. Não se recomendava conversas colaterais, sendo, especialmente, proibidos comentários e apelidos com relação aos professores. No dia seguinte, iniciaram aulas de língua alemã e matérias tradicionais, assim como atividades físicas. Havia tempo para higiene, alimentação e leitura em ampla biblioteca. Mais valorizadas seriam as aulas ditas de civismo. Os professores eram militares idosos, aposentados da caserna. Apenas o professor Theodor era mais jovem e ostentava o uniforme de tenente ativo do exército. Em conversas discretas com colegas mais antigos, Hans soube que ele pudera escolher a função por ser filho de um general subordinado diretamente a Joseph Goebbels, o poderoso ministro da propaganda de Hitler. Após duas semanas, iniciou-se a doutrinação com respeito à história e à geografia da nação alemã, mais o papel do regime nazista. O professor Klausmam ministrava aulas sobre Hierarquia Social: “Os estudos científicos desenvolvidos por Darwin demonstram a sobrevivência dos mais fortes. Nós pertencemos aos povos germânicos denominados raça nórdica, os mais puros representantes da raça ariana. Somos, portanto, uma raça superior e temos a obrigação de preservá-la unindo todos os alemães para criar uma sociedade homogênea.” O professor Hermmann explicava: “O Nacional-Socialismo, conhecido como Nazismo não se filia ao comunismo e nem à democracia liberal. Surgiu em contraposição à situação absurda criada depois da última guerra com a atuação covarde do governo Weimar e o humilhante Tratado de Versalhes. A Alemanha perdeu 13% do seu território, todas colônias ultramarinas, obrigando-se a pesadas indenizações e ao desarmamento.” O professor Brauner era mais contundente: “O nosso grande líder Hitler, eleito chanceler em 1933, nos convoca para excluir todos os povos estrangeiros dos territórios historicamente alemães, especialmente judeus e comunistas, dentro de uma doutrina pangermânica. Em 1935, o Tratado de Versalhes foi repudiado. Se os nossos legítimos interesses não forem atendidos, iremos à guerra.” Todavia, O professor Theodor Sturn era mais suave e falava com algum sarcasmo sobre os conceitos apresentados pelos demais professores: “Vocês não devem ficar chocados com as palavras agressivas dos nossos professores. A propaganda é necessária para açular pessoas que necessitam ser arregimentadas porque desinformadas e letárgicas. Os discursos foram formatados para as massas trabalhadoras, antes do que para vocês. Os alunos desta colônia foram selecionados por possuírem acentuadas características da raça germânica e estão destinados a ser parte do comando desta grande nação.” Embora cumprindo corretamente suas obrigações, Hans manifestava menos entusiasmo do que os seus mais impetuosos colegas e reconhecia não ser dos melhores alunos. Ainda assim, observava com surpresa Theodor lhe dedicar especial atenção. O professor fazia perguntas corriqueiras, e prestava atenção em suas, geralmente triviais, respostas. * Depois de uma das aulas, Theodor se aproximou de Hans, perguntando: -Eu o tenho observado e você parece não se sentir perfeitamente adaptado aqui na colônia. As aulas não o agradam? -Eu encontro algumas dificuldades com nosso regime bastante rígido. Estava acostumado com menores exigências. Porém, o importante é que tenho aproveitado bastante os estudos. -A política da colônia é dar um choque inicial para, depois, as tarefas parecerem mais leves. Enfrentamos um período difícil de recuperação que exige muito de nós. Não se constrói a grandeza sem esforço. Entretanto, espero que não cheguemos à guerra, como alguns preferem. -Não estou me queixando. Apenas, constato que nos são feitas cobranças cívicas e morais em patamar quase sobre-humano. Alguns colegas parecem agir como autômatos. -Os professores estão aqui para ensiná-los a serem legítimos alemães. Eu espero, também, auxiliá-los no que for devido. Às vezes, é difícil estabelecer o limite apropriado entre o que se deve exigir e o que é exagerado. Não se deixe dominar pelo convencionalismo. Eu o vejo como estando acima da média, com potencial para alcançar posições privilegiadas. Nos escalões mais elevados não se pratica o mesmo moralismo cobrado da maioria. -Como assim? Theodor colocou a mão sobre o ombro do aluno e concluiu: -O seu perfil físico é de um perfeito alemão. Se houver correspondência da sua parte e interesse em progredir, eu poderei ajudá-lo. -Em seguida, o jovem professor se afastou, deixando Hans mergulhado em pensamentos confusos. * Os rumores de guerra aumentavam. Nas aulas, os professores se expressavam, cada vez, com palavras mais agressivas. Quando, em setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polônia, todos evidenciavam entrar em grande vibração cívica. Somente Theodor era menos loquaz e parecia não estar satisfeito com o rumo dos acontecimentos. Ele sempre encontrava pretextos para se aproximar de Hans e, procurando demonstrar intimidade, comentou em tom zombeteiro o que diziam os outros professores: -É fácil começar uma guerra, o difícil é saber como termina. -Os seus conceitos não coincidem em quase nada com as convicções expressas pelos demais professores. –Comentou Hans. -Não são convicções. Eles obedecem às ordens do Comando Central e repetem os discursos preparados pelo Departamento de Propaganda. -O seu pai diz isso? -Eu posso concluir por conta própria. Com o meu pai, eu tenho contatos, apenas, formais. Ele desejaria que trabalhasse no Ministério, contudo, aceita a minha preferência. Eu gosto de estar com jovens. Pedi para lecionar na Escola de Cadetes, mas, ele achou melhor me colocar aqui. Essas conversas davam a Hans confiança para manifestar a Theodor opiniões que nunca se atreveria expressar aos outros professores. Depois de assistirem um filme no qual Hitler aparecia perante grandes desfiles e exibições, Hans comentou: -O dinheiro gasto com estas demonstrações não seria melhor empregado na reconstrução da Alemanha? Theodor riu e respondeu: -Opiniões como a sua têm sido apresentadas a Goebbels por alguns generais ao fazerem pedidos para mais armamentos. Isso irrita o meu pai. Ele diz que as armas são manejadas por pessoas que, todavia, precisam estar bem convencidas. -O convencimento não deveria resultar da consciência sobre as necessidades da nação? -A propaganda atua sobre sentimentos preexistentes. Um dos seus recursos é transformar desacordos de inimigos em cisões. Internamente, ao contrário, precisamos de motivos para a união. Os alemães estão frustrados e a propaganda lhes dá alvos a quem dirigir a sua indignação. Goebbels tem conseguido bons resultados. O nosso problema é que os ingleses, também, são bons propagandistas. * Uma vez por semana os alunos tinham um dia de folga. Eles o desfrutavam descansando, conversando, cantando, lendo, jogando bilhar, carteado, e outros jogos em um grande salão de recreio e piscina. Hans fizera poucas amizades e o seu desejo era caminhar. Dirigiu-se ao gabinete do Superintendente, um oficial menor da reserva designado para a colônia por ter tido uma perna amputada. Solicitou a indispensável licença, mas, o oficial, sem sequer o olhar, negou o pedido. No corredor, caminhando cabisbaixo, encontrou o professor Theodor: -Aconteceu alguma coisa que o desgostou? -Eu desejava caminhar um pouco, possivelmente até o vilarejo, mas, não obtive licença. -Apenas, isso? Venha comigo. Theodor abraçou o aluno pelos ombros e o conduziu até o gabinete do Superintendente a quem disse que a saída de Hans devia ser autorizada. -A Direção não me autorizou permitir a saída de alunos isolados. -Não é uma decisão absoluta. Convém-nos manter bom relacionamento com os aldeões. Pode conceder um salvo-conduto a este aluno sob minha responsabilidade. -Se o senhor se responsabiliza, tudo bem. –Disse o Superintendente. Olhando para Hans, com um sorriso maroto, continuou: -É bom ter um amigo influente. Observando a dura expressão de censura de Theodor, completou imediatamente: -Logo, mando lhe entregar um salvo-conduto permanente. Ao saírem, Hans comentou: -Nada me parece haver de mal em uma saída, entretanto, o meu pedido não era, assim, tão importante. Contrariar a prescrição dos diretores não irá indispô-lo com eles? -Se eu dependesse deles, não estaria mais aqui. Este Superintendente é um imbecil. Só lhe peço um favor: Não diga a nenhum colega, nem a ninguém, o que eu lhe falo. Os diretores da Colônia não têm autoridade sobre mim, mas, podem incomodar. * Caminhando em direção ao vilarejo, Hans meditava sobre os recentes acontecimentos. Qual motivo haveria para impedir a sua saída. Para onde ele poderia viajar? Só a hipótese remota de um desequilíbrio mental faria alguém fugir causando embaraço à direção da colônia. Concluiu que, para quem dirigia, era mais fácil decretar uma proibição absurda do que se expor a um ínfimo risco de uma acusação de negligência. Perguntava-se por que Theodor assumira uma posição que poderia causar contrariedade, clara ou velada, da direção, apenas, para satisfazer a pretensão de um aluno. Depois de quase uma hora de caminhada, Hans chegou ao vilarejo. Andou pelas ruelas mais centrais observando a escassa população, todos ocupados em seus afazeres, pouca atenção prestando à sua pessoa. Em suas voltas viu uma pequena oficina de bicicletas que anunciava, também, a venda de produtos usados. Aproximou-se e perguntou: -Eu poderia alugar uma bicicleta usada? -Infelizmente, não está para aluguel. O dono deixou aqui para vender. Eu recebo, apenas, uma comissão. Ela está bem barata e tem a qualidade de uma nova. Sendo aluno da Colônia, eu posso, até, dar um prazo para você pagar. -Eu poderia guardá-la aqui? -Não daria certo. A oficina frequentemente fica fechada e quase nunca está aberta aos domingos. -Eu gostaria de comprá-la, mas, não me permitiriam que eu a levasse para dentro da Colônia. O dono da oficina pensou um pouco e, depois, falou: -Creio que poderia deixá-la no galpão pertencente à mercearia. O homem da bicicleta, acompanhado por Hans, dirigiu-se à moça que atendia em uma mercearia ao lado e fez o pedido. -É claro que pode. O meu pai não vai se opor. –Disse a moça. Depois de agradecer, Hans assumiu a bicicleta a dirigiu pelas estradas próximas. Apreciou a belíssima paisagem onde sobressaíam culturas de hortaliças e cereais. Ao retornar, pediu licença para colocar a bicicleta no galpão situado aos fundos da casa que servia de mercearia e residência. A moça ofereceu um lanche o qual foi muito bem acolhido. Quando Hans quis pagar, a moça não aceitou: -Hoje é um brinde. Os alunos da Colônia andam pouco por aqui. Será um prazer tê-lo como visitante outras vezes. -Eu lhe agradeço, mais uma vez. Qual é o seu nome? -Eu me chamo Érica e o seu? Hans voltou para a Colônia animado. Afinal, havia entrado em contato, com alemães de verdade e fora bem aceito. Esperava que, na Colônia, não criassem problemas para ele voltar ao povoado na semana próxima. Seria agradável, principalmente, encontrar Érica novamente. As idas ao vilarejo continuaram e, naturalmente, surgiu um namoro entre Hans e Érica. Ela o acompanhava em sua bicicleta e desfrutavam afagos em recantos arborizados. Tudo transcorreu maravilhosamente para eles por algum tempo. Certo dia, voltando ao vilarejo, Hans soube pela família de Érica que a sua namorada fora convocada e levada para servir ao Serviço de Saúde do exército. Estavam desconsolados e inconformados porque ela fora a única em iguais condições no povoado a ser convocada. Hans intercedeu junto a Theodor, inclusive, levantando a suspeita de que a direção da Colônia tivesse intervindo para afastá-la. Ele, porém, disse-lhe que nada sabia e não poderia intervir, deixando Hans com dúvidas sobre a responsabilidade do próprio Theodor. * O início da guerra foram anos de vitórias. A propaganda era intensa e todos estavam eufóricos com os sucessos do exército alemão. Com a continuidade, foram surgindo fracassos. Em 1943, a campanha da Rússia terminou com franca derrota em Stalingrado. Os bombardeios sobre as cidades alemãs se acentuaram. Havia carência de tudo e os próprios alunos eram levados em turnos para auxiliar na retaguarda. Nas aulas os professores, inclusive Theodor, usavam expressões cada vez mais agressivas. Contudo, as demonstrações de amizade de Theodor para Hans eram progressivamente mais calorosas. Hans percebia que isso causava comentários, porém, o que Theodor lhe dizia reservadamente com respeito à guerra o deixava menos confuso. Ele manifestava pensamentos muito diversos do discurso oficial e bastante mais ajustados ao que Hans percebia. Theodor ia seguidamente a Berlim e devia estar bem informado sobre o que, de fato, acontecia. -Por que, nas aulas, você fala para todos fala coisas tão diferentes daquilo que conta para mim? -Se eu dissesse em aula o que sei, nem mesmo o meu pai poderia me salvar. Hoje, a propaganda é o que mantém o Reich. Algum tempo depois, Theodor demonstrava, ainda, maior preocupação. -Quem é mais consciente sabe que perdemos a guerra. Até aqui na Colônia há perigo. Se você concordar, vou fazer contato com alguém que pode conseguir sua fuga para a Argentina. Estando lá, será fácil ir ao Brasil. Quando eu puder, também vou para lá e o procuro. * Em julho de 1944, oficiais do exército promoveram a operação Valquíria que cometeu um grave atentado contra Hitler, todavia, frustrado. A reação do governo foi violenta, resultando na prisão de cerca de cinco mil pessoas e a execução de duzentas. O pai de Theodor estava implicado e acabou condenado. O próprio Theodor foi transferido para a frente de batalha. Ele se despediu dos professores, alunos e, finalmente, de Hans. -É provável que eu não o veja mais. Acabarei sendo morto em alguma das missões que me serão destinadas. Proteja-se, evitando se expor quanto possível para voltar ao Brasil quando a guerra acabar. -Precisamos manter o otimismo. Theodor abanou a cabeça em sinal de negação e falou chorando: -Eu não posso ser otimista. Esta é a despedida final. Em seguida, Theodor abraçou e beijou Hans que, embora acanhado, não ousou recusar. Theodor se voltou para a condução que o esperava e mandou seguir, sem olhar para trás. Com a ocupação e rendição da Alemanha em 1945, decorridos todos os trâmites regulamentares, Hans voltou para o Brasil sendo recebido com grande carinho pela família. Depois de algum tempo, perguntado sobre o que mais havia aprendido, não relutou em dizer: -Quando estive em uma escola nazista conheci a superstição de ser considerado alguém superior aos demais. Tanto maior o apego a preconceitos quanto menor o próprio valor. Agora, tenho tido a experiência inversa: a superstição de ser considerado pretencioso. Aprendi que um julgamento exige assaz conhecimento e nenhum preconceito. Más percepções conduzem a péssimas consequências. Nunca se está certo ao julgar por aparências o caráter de alguém. FIM