Ensaio A Arte Poética de Felipe Garcia de
Transcrição
Ensaio A Arte Poética de Felipe Garcia de
Se Poeta, ou Poesia Hoje? A arte poética, um ensaio do autor Felipe Garcia de Medeiros Aristóteles foi o grande filósofo de Estagira, ou pelo menos aquele que se dedicou deveras à arte poética na aurora de Atenas. Estudei bastante a poética clássica, o conceito de mímesis e verossimilhança – a construção da poesia, a diferença da história, um pouco de retórica e, no geral, a definição da tragédia e epopeia. Cheguei a sonhar por vários dias com a palavra imitação martelando a minha cabeça e, como o gigante da terra de Jotunhein, atingindo Thor, fingi não sentir nada. No entanto, doía. “Imitação que, aos poucos, um com mais e outros com menos habilidades desenvolveram a poesia”. Foram (épico, lírico e dramático); mas não me contentei com o conceito e com o possível surgimento da poesia, muito menos com o sumiço da segunda parte da poética (lenda para Eco). Octávio Paz, no Arco e a Lira, dá mil sinônimos à poesia e, ao invés de defini-la (não no conceito positivista da palavra nem pragmático, mas no sentido essencial, que não quer dizer último ou cristalizado), apenas classifica algumas sensações que são despertadas (ou não) no momento da leitura. Hegel, mais idealista, procurava sempre criticar algo de Aristóteles na sua Estética e dizer que o poeta lírico devia causar no leitor a mesma sensação que sentira ao escrever. Fernando Pessoa, longe de ser idealista como o genial Hegel, foi o que mais bem expressou, em Autopsicografia, as relações poeta-leitor. Contudo, creio que Eliphas Levi encerrou o assunto em poucas palavras, num livro seu que não lembro o nome, dizendo que “o espírito se comunica pelo espírito através do verbo”. Eis o ponto central. Os primeiros homens do mundo viveram num estado mágico de presença intensa com a poesia. Os mitos de criação dos povos, juntamente com os primeiros poetas teólogos (assim definidos por Vico), foram um dos elementos principais da formação da poesia. A origem do homem é um mistério, mas o que fazer com isso? Cada tribo primitiva possuía seus rituais de encantamento (o colar de dentes de animais para dominá-los na caça, por exemplo) e o chefe, em algumas tribos só eleito mediante um conflito com outra tribo inimiga, ou uma feiticeira, que previa desastres, bonança – geralmente mística no modo de ser excêntrica ao executar seus rituais. O que pretendo? Continuando, assim como pensava Aristóteles, pensei que o homem imitava a natureza e, não somente a imitava, mas a construía de acordo com a verossimilhança e com a necessidade. Houve um tempo, justamente o tempo fora da história (o que é maravilhoso), ou melhor, na pré-história, em que o homem vestiu a natureza, não somente com o que ela é (uma macieira, árvore que dá maçãs) – mas a deusa da vulva que repousa no galho. E também com o mito da criação. Antes da imitação da natureza, descrito pelo macedônico, existiu a criação. O que é a grande poesia, a verdadeira, a que permanece, senão essa criação eterna? Homens rudes, quase animais selvagens que mal articulavam um som linguístico – conceberam a poesia, essa discutida até hoje por quem a lê e a vive. Nietzsche fala, um discurso que se aplica aqui, da filosofia grega na época trágica dos gregos: Filosofavam como homens de cultura e, por isso, eximiram-se de inventar, uma vez mais, os elementos da filosofia e da ciência a partir de alguma arrogância autóctone; ao contrário, trataram rapidamente de completar, elevar, erguer e purificar de tal modo os elementos por eles absolvidos que, a partir de então, tornaram-se inventores num sentido mais elevado e numa esfera mais pura. É exatamente esse o ponto crucial: filosofavam como homens da cultura e, por isso, eximiram-se de inventar [...]. Os povos primitivos não caíram na “arrogância autóctone” de criar um elemento vazio no seio da sua cultura. O mito é gerado a partir de uma tradição profunda – que obedece a lei do primeiro mito – este que de forma alguma, in essentia, pode ser alterado. O propósito do grande poeta é elevar os elementos da cultura e purificá-los no sentido de torná-los poesia, em forma de poema – pois, está bem certo Octávio Paz quando diz que todas as expressões artísticas são poéticas amorfas, ou seja, sem uma forma definida, imortal. Oswald de Andrade fez exatamente o que disse o pensador alemão, juntamente com Mário de Andrade e os modernistas brasileiros. O que fizeram? Foram (des)cobrir o Brasil “no fundo da mata virgem”, o Brasil místico dos brasileiros... A antropofagia é a lei de ordem do genuísmo nacional. Aqueles poetas que se esqueceram da sua cultura, da sua raiz primeira, esses não chegaram ao trono do sol, pois a essência da arte não está no objeto (algo que existe em todo o mundo), mas no eco despertado pela sensibilidade. Poetas medíocres acham que falando da globalização ou da via férrea europeia, atingem a literatura universal por se referirem a alguns conceitos ou lugares do mundo – pecam, sem exceção, pelo superficialismo material, o mesmo pregado pelo futurismo e criticado por muitos. Não quero dizer que o poeta precisa, necessariamente, se vestir de índio, claro que não. O que tenho percebido em alguns poetas, sobretudo nos africanos, uma forte e extrema ligação com sua cultura, principalmente por aquela cultura construída historicamente com base na opressão, na miséria e no racismo. O movimento pelo qual esses poetas direciona a sua poesia, chamo-o de empréstimo aditivo. O que isto significa? É o movimento pelo qual o poeta é valorizado (com a poesia carregada de sentido atribuído) pela sua história de origem. Não é que sua poesia seja trabalhada, de qualidade (não no sentido capitalista, óbvio), inovadora, espantosa. O seu poema, perdoem-me a expressão, é apenas um pão seco melado de mel na boca de um faminto. Quem tem fome? Um crítico interessado/e um leitor ofendido. A poesia não pode se submeter a nenhuma questão exterior – ela não dever ser contida, ela contém e impõe o próprio limite (fonte inesgotável de poesia). O poeta, portanto, cria – e cria, não o objeto ou uma concepção, mas uma imagem que se desfaz e refaz na palavra em estado permanentemente latente em nosso espírito. No canto XXXI, do Purgatório da Divina Comédia de Dante, diz: Meu espanto, leitor, qual não seria, Vendo o objeto na imagem, transmutado, Quando constante em si permanecia? Mas que terceto sublime! Aí vemos o diálogo de homem para homem – na sua imanência transgressora e fantástica. A força mágica das imagens é a causa mais importante de todo o sentido. Por isso, repito, o poeta, consciente da sua condição, não deve – isto não é lei, talvez razão de ser, ou algo mais próximo – cometer uma “arrogância autóctone” nem estar alheio ao espírito do seu povo, pois somente dessa maneira ele irá se tornar, num sentido mais elevado, inventor. Não é à toa que, poetas dessa estirpe, são visionários e mágicos e universais. O poema revela segredos incontidos – aqueles do qual não se podem extrair de uma pessoa e que muitos amantes tentam, em vão, arrancá-lo um do outro. Há na poesia uma espécie de exposição do segredo, revestida por uma forma mais pura de linguagem, que desapropria a individualidade do segredo, fulminando-o para todos aqueles que leem/vivem o verso. Não podemos acusar o poeta de coisa qualquer antes de olharmos para nós mesmos. Um crítico chegou a afirmar que Oscar Wilde fazia pose até quando escrevia em verso (referindo-se ao Balada do Cárcere de Reading). Na verdade, quem fez pose foi o crítico – não o artista – ao tratar os versos que são, mesmo os traduzidos para o português, profundamente poderosos e vitais. O poeta transforma sua intimidade, triforme como Cérberus, multiforme como Proteu ou como um homem/e o próprio Fernando Pessoa o é, sendo – no momento em que escreve – destituído da imagem acústica que o segredo lhe atribuía. Depois de escrever, seu material verbal perde o fio de origem como um filho ao sair do útero e, por isso mesmo, o poema torna-se um ser no mundo (simplesmente autêntico esse ser no mundo) – mas lembra que o fez: o artista. Não acusemos o poeta de rebeldia. Somos rebeldes, Rimbaud é um outro. O poeta captura leitores através de suas imagens/versos e, nesse instante, o arrepio é compartilhado por ambos. A partir de agora, para deixar mais claro, irei traçar, brevemente, a trajetória da poesia no país ou em algum lugar com um pouco de malha cronológica/quase inexistente e de como os poetas lidaram com ela através do tempo. Não posso dizer nada além do que sei, apenas pressinto a chegada de novos poetas capazes de atingir patamares nunca dantes alcançadas por outras gerações nos países – e eles trarão de volta aquele espírito renovador que reluta em permanecer na aura do homem, como um demônio enjaulado durante muito tempo que anela fugir como um grito – porque a poesia com vigor ressurge em cada século quando os verdadeiros poetas se impõem mestres. A literatura brasileira recebeu seu testamento quando Vaz de Caminha escreveu aquela carta e, a partir daí, começamos a (re)produzir elementos peculiares de outros mares longínquos. De sorte, muito se salvou nesse undoso mar de versos – de poucos, quase nenhum poeta. Desde a descoberta até períodos do romantismo, a poesia brasileira medrou apenas breves ápices de liberdade. Gregório de Matos, de um talento inquebrantável, ousado na forma e no conteúdo, compôs poemas indeléveis, tratando temas da sua época: religião/reforma/barroco/antíteses claras e escuras. Pelo o que consta, alguns versos espalhados retratam o poeta (dessemelhante) em meio a toda essa estética. Há um só tempo (“período: classicismo”) podia ser ver, em Portugal, Sá de Miranda compor versos bi/partidos de si e Camões se desfazer em épico e lírico. Embora a florescência poética de Petrarca tenha atingido/impregnado os dois portugueses, eles foram além da presunçosa influência literária do italiano. E os períodos foram se sucedendo – há quem acredite na inexistência do barroco – o que é um bom sinal para os poetas, até o arcadismo. O artifício mais hábil para encaixotar satisfatoriamente os poetas durante o tempo na História foi a produção/criação dos períodos literários/estéticos/afins/estilos de época. O poeta, Judeu errante, expulso da República, novamente, teria de emigrar. Não poderia existir outra maneira de guardá-los no tempo, desde que um poeta fosse representante de uma época que já passou – o que não é, de todo, verdade. Quando se fala em literatura, o tempo entra em pânico, a história refaz o seu discurso, e a vida se reinventa para não dar vexames diante desse fenômeno que é uma obra de arte. “O poeta é a má consciência do seu tempo” – assevera Perse. Seja a cachaça/a doença/a pátria/o nativo/o cotidiano ou os cisnes selvagens de Coole, um simples sistema social, uma construção épica da Europa moderna, o fragmento de milhares de versos/poemas/autores, tragédias/desconstruções/rosas/pulmões/descobertas, clássico ou contemporâneo; não tenho sistemas ou pensamentos complexos na cabeça nem linhas que conectam a um ralo comum para encaminhar todos os homens. No máximo, linhas de fuga, conexões avulsas e alguns mestres da arte podem nos guiar. Falta: eis a palavra. Precisa-se de poetas na Nicarágua, a falta sensibilidade do nosso país e a falta de objetividade estão destruindo a palavra. Destruindo não, mas contaminando e disseminando a palavra de ordem: falta. Não existe anarquia em arte isso é coisa de classes sociais, Karl Marx e Engels, Adorno, estrutura e infraestrutura. Chove, e a criança emite o som da chuva - por quê? É verdadeira a relação da criança com o poeta, mas como os poetas se esquecem de ser criança? Depois, o que resta do laço? O poeta cresce e tem consciência disso. A criança acha que tudo é brincadeira. Existe uma tendência geral para o ridículo, improfícuo/silício na poesia, herança da poesia marginal, dos poemas/piadas da aclamada era de ouro do modernismo brasileiro de 1922 que se estabelecem como regra abissal para composição de poesia neste país – não digo para os novos poetas (poucos, raros), mas para aqueles que almejam ou os que leem um poema “curto, bom pra ler”. Não se pode negar a importância do modernismo brasileiro, ele não acabou com a literatura, de modo algum, basta qualquer um ler alguns poemas séculos atrás e os produzidos na época do movimento – e todos podem observar, nesse percurso, as mudanças efetivas/eletivas e importantes para produção de uma literatura mais crítica, mais densamente consciente no panorama geral das artes do que, diferente do que se pensa, descobrir o Brasil ou pátria que seja, não. Esse período foi marcante porque o ser poeta tornou-se um dilema original em nossa literatura (tendo como gênese lá em Cruz e Sousa com mais acento, Augusto dos Anjos e, Menotti del Picchia mais próximo da semana e do que viria a acontecer no país); e o papel desse homem, em nossa sociedade, foi posto em questão/relevo/expressão. Foi mera coincidência ou mera sina buscar o Brasil primitivo/nativo/místico/lendário/folclórico como meio de expressão de uma literatura brasileira, e Juca Mulato ter sido escrito nesses “moldes” mesmo antes da semana de 22? Não – de forma alguma o foi. Por quê? Era o que estava se fazendo na Europa – e na mesma linha dos movimentos estéticos de vanguarda, o Brasil precisava olhar para si e seguir os preceitos políticos/instantâneos/imediatistas dos movimentos literários em voga no mundo. O Juca foi exaurido nesse ideal como muitas obras pelo tempo. Ser poeta não está no âmbito exclusivo do desejo e anseios da criação de uma nação – mas da natureza imprecisa cujas leias são rigorosíssimas, cruéis e, como o tigre branco, surge durante um tempo, impreciso/justo/necessário alguém capaz de olhar com esgar para tudo o que foi deixado para trás e com brilho tudo o que se sucederá em arte. Qualquer outro tipo de homem poderá conseguir ser o que deseja, com o talento – todos o podem ter com o esforço – será um excelente maratonista, lutador, pedreiro, empresário, advogado, médico/palhaço, professor/garçom/frentista/atendente e, com o devido talento, vão ser mestres em seu artifício/emprego/habilidade. É um grande paradoxo pensar em gênio/talento. Nenhum poeta ou artista é um buraco negro que engole todos os demais, embora, em arte, isso pareça possível – no máximo, ele poderá ser um guia dúbio (como Virgílio na Comédia de Dante) que iluminará gerações até permanecer nas estrelas, como os grandes heróis do universo, mestre da atração, a atrair novos homens. O buraco negro talvez seja cria do leitor/crítico no ato de fechar ou abrir um ou outro livro de poesia do seu interesse e, no interior das páginas, a verdadeira escuridão prevalece naquela obra que não elegeu. O nosso problema atual com a falta de inovação nas artes em geral reside no fato crucial de admirarmos, durante um longo/vasto tempo, um escritor antigo/imortalizado/artista. E essa admiração vai longe, chegando à imitação, culminando na brincadeira legal com as palavras, trocadilhos, repetições/e cacoetes de lagartixa. As coisas mudam, já dizia Camões em um dos seus sonetos – naturalmente – e seguem-se novos meios de expressão/novos sujeitos portadores de escrituras que, por serem novos/inovadores, iluminam os antigos. O mesmo processo ocorre, se compararmos, com um cantor que se consagrou com uma música de sucesso: sempre irá tocá-la se outra não se instalar em nossa alma – ou em seu repertório. Jamais algum escritor irá se comparar com outro, todavia, estarão na mesma altura, alternando e, ao mesmo tempo, juntos, como ocorre na física quântica. O outro problema: a escassez de leitores e a abundância de consumidores de textos de massa, de diversos gêneros – os mais esdrúxulos (para usar esta palavra) possíveis. Há um número abundante de pessoas que escrevem qualquer coisa, de qualquer jeito, utilizando qualquer efeito banal e qualquer esforço repetitivo crendo-se qualquer gênio passado, moderno/ou atual. Jorge Luís Borges, aquele que tirou a literatura argentina do beco profundo em que esta afundava, além de espalhar a cultura e a literatura do mundo em seu país, estabeleceu o nível de qualidade em arte de que necessitava a sua nação. E Borges, mais ousado ainda do que imaginamos, fala, no livro Elogio da Sombra, no poema Um leitor: Que outros se jactem das páginas que escreveram;/a mim me orgulham as que li. Lembrei-me de uma obra, ao pensar sobre a leitura, de Ricardo Piglia, O último leitor, no qual o autor falava dos tipos de leitores, desde o maluco Dom Quixote de Cervantes até o obsessivo leitor argentino Jorge Luís Borges (que ficou cego com o tempo), e ele concluiu que o leitor ideal é aquele que se dedica a obra de alguma maneira – se lê a página que abre, folheia o livro, ou o deixa na cabeceira para devanear em qualquer hora. André Gide, em seus diários, ao lembrar uma conversa que teve com D’Annunzio, no qual este dizia que lia tudo, se surpreende com a afirmação do poeta quando disse ao escritor francês: nós lemos tudo na esperança que sempre renasce de encontrarmos enfim a obra-prima que há tanto esperamos. Onde esse leitor está? Creio haver no Brasil uma insensibilidade anômala à poesia, ao verso e ao poema, como um todo. Equívocos têm sido cometidos durante muito tempo e é de se espantar com o número parco de leitores e, sobretudo, com a visão absurda de poesia disseminada pela indústria cultural e pelos ditos “poetas”. Poema é sinônimo de rima ou, o que é pior, de família, amizade, amor, paquera/patética e expressão verbal fútil, para cultura bestializada. Drummond, em A rosa do povo, escrevera dois poemas (os que abrem triunfalmente o livro), Considerações sobre o poema e Procura da poesia, deixando esclarecido o que, de fato, não era poesia/poema: O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia. Não se pode dizer, é evidente, o que é poesia ou poema, no entanto, o que não é, fica evidente quando a tradição é enfrentada de acordo com o mesmo paradoxo da viagem no tempo: matando o avô no passado. O formalismo russo se encarregou da parte mais evidente ao delinear a forma/construção e a característica singular de um discurso literário/poético como elemento de literariedade intrínseca às obras de arte. Embora o tratado de versificação de Olavo Bilac e alhures não construa um poema, ainda mais um poeta, é digno de nota levar em consideração, no caso dos grandes discursos literários, a sua forma/informe e vazia. Existe algo que anima tais discursos, uma força vital que me demorei a reconhecer durante muito tempo em minha vida. Leituras estão sendo feitas de romances terríveis do estrangeiro, literatura de vampiro, sugando toda a nossa capacidade, e “escritores” brasileiros estão se atrevendo a fazer o mesmo aqui, escrevendo a mesma futilidade, as mesmas historinhas, com trilogias e reality shows piores do que poderíamos imaginar diante de uma realidade tão expressiva quanta a “brasileira”, mas destruída, desqualificada, e a população é como um pinto no ovo podre – infértil e mal cheirosa. Aqui reside o lugar de prestígio que os antigos ocupam: óculos para o novo, bases para o futuro, o inaudito silêncio que entra em confluência com o nosso mundo. Se esquecermos da história, vamos, enfim, perceber o que significa essa força cósmica que ainda paira no ar, provinda da explosão de tais obras literárias e autores. Rimbaud era (e)vidente ao dizer que precisávamos ser absolutamente moderno em Uma Temporada no Inferno, porque ele sabia que, por mais belos que fossem os versos feitos em sua época e antes até, do mundo antigo, além do estigma de imitação ter crucificado muitos poetas (levando uns à ressurreição - os que abandonaram tal ideia), o poema figurava apenas como uma coroa de louros no poeta e, para o mundo, uma cópia de realidade. Manoel de Barros diz, e com toda razão de/lírio: a aura do poeta é uma aura de ralo. Mas não podemos esquecer Baudelaire (o príncipe maldito/redentor da poesia), de suas Flores do mal, e do seu poema de entrada, Ao leitor, no qual o poeta chama de hipócrita, tu, leitor, hipócrita, meu semelhante, meu irmão. A poesia clássica, de Homero e Virgílio, Dante e Camões, cantava - no caso de tais epopeias - a fundação de um povo, uma nação, ou marcava o período histórico de uma civilização/país. Isso é o que se fala. No entanto, penso que eles criaram uma nova nação/realidade/mundo, suspensos, como se existissem em outra dimensão, por isso são atuais/estranhos, trazem novidades de lá, escorrem inolvidavelmente em nossa época, descicatrizando as chagas de hoje. Poderá o poeta compreender a dimensão de sua própria importância? Em 1922, ano da semana de arte moderna, o movimento modernista brasileiro, os novos escritores, ainda inseguros de sua produção, decidiram abandonar os velhos modelos e, seguindo a filosofia da antropofagia (desenvolvida por Oswald), extraíram o que eles consideravam de melhor nos antigos, brasileiros ou europeus. Tal atitude, admirável, sem dúvida, serve de exemplo para nós, desde que lembremos remotamente deles, e vivemos, finalmente, nossa época. Algo semelhante ao que ocorreu acontece hoje: muitos escritores duvidam ou estão desenvolvendo seu talento, mas poucos têm coragem o suficiente para se arriscar. Buscam a glória de um chá (com poções mágicas, quiçá, mortalíssimas) em Canaã, ao banquete na eternidade. O problema é que muitos beletristas não são realmente escritores, e acabam destruindo a si mesmos, só, e nada mais. Parece que todo jornalista ou colunista/freelance neste país possui talento inato para se tornar poeta/romancista/ portador de... A literatura nunca acabou nem acabará; o homem é que está em crise consigo mesmo - e ele precisa perder as palavras para se destilar em espelho/trincar em verbo. Assim como devo saber quem fui - na literatura também - eu só posso ser quem sou, e é por isso mesmo que atinjo o outro. Bertolt Brecht declara obstinadamente, em as Histórias do Sr. Keuner: bendito o filho que não lembra o pai – pois todo estilo deve ser citável, todo estilo é impessoal. Drummond, ciente da sua irônica luta vã, "cansou de ser moderno para ser eterno" e, dessa maneira, atingiu patamares inimagináveis em sua poesia, pois foi mais do que a realidade positiva que o cerceava, o mundo, e diria: a melhor poesia é um sinal de menos. Tenho pra mim que um grande poeta é aquele que, ao ler um poema seu, mas aquele poema, o José, por exemplo, de Drummond, faz-me perguntar inconformado: mas de onde o poeta tirou esse poema? O que ocorreu e talvez não ocorra é outra semana/ não sei/duvido - bastam de estéticas e movimentos sublimes. Felipe Garcia de Medeiros nasceu em Imperatriz (MA) em 1989. Atualmente, mora no RN. Graduado em Letras pela UFRN e, recentemente, mestrando em Letras pela UFRN (Natal). Poeta, autor do livro de poemas Frio Forte, lançando em 2012 pela Editora Multifoco. Professor de Português e Literatura do IFRN (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte); com experiência em gêneros textuais, literatura e ensino, e pesquisador na área de literatura e estudos culturais (nos eixos temáticos: modernidade e pós-modernidade - tópicos de poesia e prosa), analisando a questão da lírica homoerótica em Fernando Pessoa.