José Domingos Raffaelli

Transcrição

José Domingos Raffaelli
Kind Of Blue 50, o Concerto de Jazz do Ano
por José Domingos Raffaelli
O Bridgestone Music Festival deste ano brindará o público com uma
das maiores atrações de todos os tempos em nosso país. Trata-se da
comemoração dos 50 anos do seminal disco “Kind of Blue”, do
sexteto do trompetista Miles Davis, gravado em 1959. A So What
Band liderada pelo baterista Jimmy Cobb, que participou da gravação
de “Kind of Blue”, estará se apresentando em duas noites mágicas no
Citibank Hall, em São Paulo, em 14 e 15 maio próximo.
Em entrevista concedida ao jornalista Carlos Calado, Jimmy Cobb
informou que organizou a So What Band (referência à composição
“So What”, do repertório de “Kind of Blue”) selecionando Wallace
Roney (trompete), Vincent Herring (sax-alto), Javon Jackson (saxtenor), Larry Willis (piano) e Buster Williams (baixo), em razão da
afinidade dos mesmos com os estilos de Miles Davis, Cannonball
Adderley, John Coltrane, Bill Evans, e Paul Chambers,
respectivamente, que gravaram “Kind of Blue”..
O repertório do conjunto é centralizado nos clássicos “So What”,
“Freddie Freeloader”, “All Blues”, “Blue in Green” e “Flamenco
Sketches”, imortalizados em “Kind of Blue”, além de composições dos
discos de Miles Davis daquele período.
A So What Band tem agendadas atuações nos festivais americanos
New Orleans Jazz & Heritage e Playboy Jazz, bem como na Europa e
no Japão.
Miles Davis (1926-1991) foi um músico de jazz presente em várias
manifestações do jazz moderno, um trompetista e /band leader/
influente cuja trajetória marcante estendeu-se através dos tempos.
Ele começou tocando bebop no quinteto do saxofonista Charlie Paker,
posteriormente tornou-se um dos pioneiros do cool jazz documentado
no disco “Birth of the Cool”, que originou o estilo cool jazz e
influenciou o West Coast jazz. “Birth of the Cool” foi um clássico, uma
espécie de contrapartida aos sons frenéticos do bebop. Segundo
Miles, “Birth of the Cool” era diferente “porque ouviam-se todas as
notas que os músicos tocavam, enquanto a fantástica velocidade da
maioria dos temas bebop, com centenas de notas em cada
improvisação, desafiavam a percepção do ouvinte. Nossa música era
lenta e eu procurava uma forma mais confortável de tocar”. Com seu
quinteto dos anos 50, ele foi uma das forças do chamado hard bop,
réplica aos sons mais suaves do cool jazz, e “Kind of Blue” foi
importante no desenvolvimento de novas técnicas de improvisação
com a adoção de escalas modais em vez das mudanças de
acordes como base para as improvisações. Ainda a mencionar entre
suas realizações os discos “In A Silent Way” e “Bitches Brew”, nos
quais Miles foi bastante radical ao rejeitar uma separação formal
entre o jazz e a então música popular da juventude da época,
sedimentando a fusão do jazz com o rock. Em sua autobiografia, ele
menciona que seus projetos gravados mais influentes foram “Birth of
the Cool”, em colaboração com o compositor e arranjador Gil Evans,
e “Bitches Brew”.
Deve-se ressaltar que Miles Davis não foi responsável por todas as
idéias das inovações dessas gravações, mas muito contribuiu para a
evolução do jazz moderno com o desenvolvimento da música dos
seus conjuntos.
Entre as sessões dos discos “Porgy & Bess” e “Sketches of Spain”,
gravados com o compositor e arranjador Gil Evans, Miles Davis
gravou “Kind of Blue” com seu sexteto, formado por Cannonball
Adderley (sax-alto), John Coltrane (sax-tenor), Bill Evans (piano),
Paul Chambers (baixo) e Jimmy Cobb (bateria); em “Freddie
Freeloader” o pianista Wynton Kelly substituiu Bill Evans. Seus
integrantes eram músicos de primeiro plano respeitados por suas
contribuições ao jazz e iriam contribuir para seu desenvolvimento nos
anos 60.
Na opinião de inúmeros músicos, críticos e conhecedores, “Kind of
Blue” é o melhor disco de jazz de todos os tempos. Raramente tantos
músicos tocaram em excepcional forma como eles em “Kind of Blue”.
Eles ficaram tão satisfeitos com suas improvisações que decidiram
não tentar novos /takes/, pois consideraram que jamais superariam o
que gravaram na primeira tentativa; a única exceção foi “Freddie
Freeloader”, que teve dois /takes.
“Kind of Blue” é um dos discos mais importantes da história do jazz
no qual Miles Davis concebeu uma sessão de rara beleza e
sensitividade utilizando escalas modais para as improvisações
obtendo resultados excepcionais. Como declarou Jimmy Cobb na
entrevista a Carlos Calado, “tudo que Miles e seus músicos queriam
era apenas perpetuar uma ótima sessão de gravação”. A preparação
para essa sessão foi mínima, ao contrário do que se poderia supor.
Miles levou para o estúdio alguns fragmentos musicais para serem
desenvolvidos pelo sexteto sem qualquer ensaio ou prévia
preparação. Ele solicitou ao produtor Teo Macero que
deixasse os tapes rolarem sem qualquer interrupção. Foi assim que
tudo aconteceu e fluiu naturalmente. Os músicos ficaram antenados
para as diferentes possibilidades que brotavam à medida em que a
sessão se desenvolvia.
No início, as escalas modais soavam como elementos aparentemente
simples aos ouvidos menos atentos, mas serviram de base
fundamental para as longas e frutíferas investigações de Miles e seus
músicos, oferecendo terreno fértil para extraírem riqueza de idéias
nas suas improvisações.
Outro aspecto importante a observar é que duas das cinco
composições são blues: “Freddie Freeloader” (na realidade é a linha
melódica de “Soft Winds”, de Benny Goodman e Charlie Christian) e
“All Blues”.
Os resultados foram excepcionais. A música é um modelo de
entendimento, criatividade e consistência. Em todas as faixas os
solistas correspondem às suas exigências. Miles é vibrante, sensitivo,
por vezes romântico ou mesmo melancólico (como em “Blue in
Green”). John Coltrane está no auge da sua forma, bastante
desenvolto e extrovertido em “Freddie Freeloader”, contrastando com
o lirismo romântico de “All Blues”.
Cannonball Adderley, sempre vigoroso e expansivo, projeta alegria de
tocar e, em certos momentos, exibe a influência de Coltrane em seu
estilo. A seção rítmica, com Bill Evans (em forma excepcional, seus
solos transbordam de lirismo e criatividade), Paul Chambers (um
dínamo a serviço do conjunto) e Jimmy Cobb (de requintado bom
gosto) é impecável, com uma unidade e entendimento invejáveis,
contribuindo em muito para o sucesso completo desse triunfo
artístico.
A seção rítmica desenvolve várias idéias interessantes em “So What”,
construído sobre duas escalas; a introdução de Bill Evans e Chambers
conduz a um /mood /introspectivo seguido pelo tema estabelecido
por Chambers enfatizado por acentuações de Evans e Cobb em
uníssono. “Blue in Green” (de Bill Evans, erroneamente atribuido a
Miles Davis) é um tema de 10 compassos, pouco comum no jazz,
sobre o qual os solistas improvisam com total liberdade.
É interessante observar que “Flamenco Sketches” foi influenciado
pelas composições do álbum “Sketches of Spain”, gravado por Miles
com o compositor e arranjador Gil Evans em 10/11 de março de
1959, ou seja, 42 dias antes de “Flamenco Sketches”, gravado em 22
de abril de 1959, no mesmo dia de “All Blues. “So What”, “Freddie
Freeloader” e “Blue in Green” foram gravados em 2 de março de
1959.
O andamento 6/8 de “Flamenco Sketches” confere-lhe uma alta carga
emocional. Deve-se destacar a soberba introdução do solo de
Coltrane, cuja consistência, força e inspiração contribuíram para
elevar esta interpretação à categoria de obra prima. Coltrane
revelou-se no quinteto de Miles Davis, em 1956, quando plantou as
sementes do seu estilo, em 1957 teve uma profícua associação com
Thelonious Monk, no ano seguinte voltou a tocar com Miles, mas a
partir de “Kind of Blue” sua concepção evoluiu, expandiu seus
horizontes imprimindo um estilo de cascatas de notas de fluxo quase
interminável alternando complexidade e lirismo.
Kind of Blue” é um álbum consagrado e considerado inovador por
trazer ao jazz a improvisação sobre escalas modais. Entretanto, Miles
gravara anteriormente o tema modal “Milestones”, faixa-título do
disco do mesmo nome.
Embora atribuída a Miles Davis a introdução dos graus modais no
jazz, essa inovação foi criada anos antes pelo pianista, compositor,
arranjador e ex-baterista George Russell. Esse passo gigantesco
nasceu da sua obra teórica The Lydian Chromatic Concept of Tonal
Organization, de 1953, incorporando ao jazz a influência da música
do Leste Europeu e Oriente Médio que utilizam escalas modais.
Transportadas para o jazz pela teoria de Russell, essas escalas
possibilitaram os /jazzmen/ abandonarem a improvisação baseada
sobre os acordes de um tema, como era prática comum,
substituindo-os pelas notas dessas escalas, abrindo novas
possibilidades para o solista. As inovações introduzidas por George
Russell foram adotadas por grande parte dos músicos de jazz de
vários países. Sua obra criativa a inovadora foi reconhecida por
inúmeras organizações e entidades cultural-musicais com
homenagens, prêmios e troféus nos Estados Unidos, na Europa e no
Japão.
Desde que foi anunciado, o grande evento “Kind of Blue 50” é
aguardado com enorme expectativa e entusiasmo pelos aficionados
brasileiros do jazz. A repercussão da notícia foi tão marcante que
ultrapassou nossas fronteiras, despertando o interesse de entusiastas
argentinos, chilenos e uruguaios, que começam a movimentar-se
para ouvirem em São Paulo a música imortal de “Kind of Blue”.
José Domingos Raffaelli (jornalista, crítico de jazz e professor)

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