as cidades folheadas de borges e de benjamin

Transcrição

as cidades folheadas de borges e de benjamin
AS CIDADES FOLHEADAS DE BORGES E DE BENJAMIN
Mariângela de Andrade Paraizoi
RESUMO: Pretende-se trabalhar os conceitos de alegoria e de ruína, em Jorge Luis
Borges e Walter Benjamin, fazendo incidir as propostas teóricas de Benjamin sobre os
textos de Borges, no intuito de verificar como escrita e cidade se aliam em suas obras.
ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the concepts of allegory and ruin,
in Jorge Luis Borges’s and Walter Benjamin’s works, making Benjamin's theoretical
proposals fall upon Borges's text with the intention of analysing how the notions of
writing and city are allied in their intellectual production.
PALAVRAS-CHAVE: cidades, Borges, Benjamin
KEYWORDS: cities, Borges, Benjamin
... intimó conmigo la luz de Buenos Aires
y yo forjo los versos de mi vida y mi muerte con esa luz de calle.
Calle grande y sufrida,
Eres la única música de que sabe mi vida.
Jorge Luis Borges
Essa arte [de perder-me numa cidade] aprendi tardiamente; ela
tornou real o sonho cujos labirintos nos mata-borrões de meus
cadernos foram os primeiros vestígios.
Walter Benjamin
Borges e Benjamin, cada um a seu modo, foram dois entusiastas dos
livros e das cidades. Ricardo Foster explora esse tema num ensaio
intitulado “Borges y Benjamin: La ciudad como escritura y la pasión de
la memoria”, divulgado em 1992 nos Cuadernos Hispanoamericanos,
Nº505/507, e reescrito e publicado em livro de 1999ii. Nesse ensaio,
Foster propõe que escrita e cidade, na obra de ambos, sustentam-se na
mesma estrutura. Para o crítico, percorrendo as cidades da Suíça em
que viveram, ambos aprofundaram suas experiências de leitores e de
andarilhos, ainda que sob prismas diferentes:
Suiza significó para Benjamin un interregno, tomar distancia de
sus padres, del militarismo germano, (...); pero también
supuso, a través de sus debates con Scholem, ahondar en sus
inquietudes teológicas, en sus indagaciones lingüísticas y en lo
que luego serían sus vagabundeos por la protohistoria de la
modernidad.
Para Borges Ginebra fue (...) la posibilidad de mirar de otro
modo su lugar de procedencia, de recorrer con la memoria la
ciudad lejana, esa Buenos Aires que iría adquiriendo rasgos
míticos (FOSTER, 1999, p. 147).
Através do estudo da obra de ambos, observa ainda que nem Benjamin
nem Borges viam apenas as cidades reais que percorriam, pois
permeava suas imagens a miragem de outros tempos e lugares:
Benjamin, el caminante, buscaba lo imposible de hallar, trataba
de encontrar las otras épocas, las voces en el tejido urdido por
la metrópolis contemporánea. Borges, caminando hacia la
ceguera, siguió viendo siempre la misma ciudad abrumada por
el paso de los años y el frenesí del progreso... (FOSTER, 1999,
p.155).
Foster identifica, então, duas trajetórias distintas e simétricas na vida e
na obra de ambos: Vivieron la historia como escritura, caminaron la
ciudad como si fuera una obra estética y la describieron como metáfora
de la sociedad (1999, p. 156).
Partindo-se do pressuposto de que essas observações elucidam com
precisão e relevância as obras de Borges e de Benjamin, pretende-se,
neste artigo, retomar essa hipótese elaborada por Foster e trabalhar os
conceitos de alegoria e de ruína, fazendo incidir sobre os textos de
Borges as propostas teóricas de Benjamin. Evidentemente, não cabe,
aqui, uma análise extensiva de suas obras, mas podem-se levantar
alguns dados fundamentais, através de recortes pontuais.
Em texto de 1952, “De las alegorías a las novelas” (BORGES, 1989, v.
II, p. 122 a 124), o escritor argentino trabalha o primeiro desses
conceitos, fundamentando-se principalmente na leitura de Croce, que
nega a arte alegórica, e de Chesterton, que a defende. Este o
pressuposto de Borges: “Para todos nosotros, la alegoría es un error
estético.” (1989, v. II, p. 122). Para ele, a alegoria trata de abstrações
que se personificam nos romances, o que faz com que haja algo de
romanesco nas alegorias e algo de alegórico no romance. Para além
dessa gênese e dos traços remanescentes, não vê lugar para a alegoria
no mundo moderno: “... sé que el arte alegórico pareció alguna vez
encantador (...) y ahora es intolerable” (1989, v.II, p.123).
Embora não conste entre os autores consultados por Borges, Benjamin
trabalhou o tema em sua tese de livre-docência, Origem do drama
barroco alemão (1925), na qual parte da idéia de que o Barroco se apóia
em relações dialéticas - uma dialética de cunho religioso (em que o
mundo profano é elevado a um plano superior ao mesmo tempo em que
é desvalorizado) à qual corresponde, formalmente, a dialética entre
convenção e expressão - e conclui que a alegoria, enquanto “escrita
criada por Deus” (1986, p.29), é a representação que melhor lhe
convém, uma vez que, enquanto forma de expressão, é sustentada por
tensões, seja entre o novo e o convencional, seja entre natureza e
história, e tem um caráter também dialético. Diferentemente do símbolo
que remonta a uma recomposição da estrutura, a alegoria é um ponto
de fuga, onde se observa o deslizamento do sentido, e é mais parecida,
portanto, com a própria linguagem, ou com uma certa concepção que
dela se tem.
Ainda nos estudos de Benjamin, ruína e alegoria estão intimamente
relacionadas: “No campo da intuição alegórica, a imagem é fragmento,
ruína” (1986, p. 30). “As alegorias são, no reino dos pensamentos, o
que são as ruínas no reino das coisas” (1986, p. 31). Tanto se pode
pensar a ruína como um equivalente da alegoria - uma corresponde à
outra em diferentes planos - quanto se pode observar que a linguagem
alegórica recorta a imagem de que se apropria justamente para que o
sentido possa deslizar do que é exposto para o que se quer representar.
Essa fragmentação se dá não apenas pelo corte promovido, mas
também pelas perspectivas de associações que deixam em aberto, à
disposição do leitor.
Disso se pode inferir que uma das formas de alegorizar um texto é
retirá-lo de seu contexto, deixando liames suficientes para multiplicar
suas possibilidades de significação, entremostrando a perspectiva de
restaurá-lo em uma nova articulação. Se a ruína, como a alegoria, é
algo que sobra de um suposto conjunto maior que desapareceu, é
também uma tensão entre o efêmero e o eterno, sempre lembrando que
o todo, do qual pretensamente é parte, não se pode reconstituir.
Se tratamos a obra de Borges à luz do conceito de alegoria tal como
elaborado por Benjamin, transparecem novas nuances de sua proposta
literária, especialmente se consideramos os fragmentos com que
costuma elaborar sua escrita, seja através de citações, paráfrases ou
alusões, criando lacunas em cada um desses recortes, enfatizando seu
caráter de ruínas.
As múltiplas citações, na obra de Borges, promovem deslocamentos e
conseqüentes descontextualizações, quando ele faz com que alguns
textos separados por séculos e oceanos se avizinhem e se contaminem.
As muitas referências não se acomodam em sua obra; antes,
inscrevem-se como trepidações, como se, ao mostrar as costuras de um
texto compósito, fizessem com que as múltiplas vozes que nele se
registram vibrassem em perpétua dissonância.
Exemplificam essa tendência alguns de seus textos cujos títulos são
apenas referências, como “Mateo, XXV, 50” (BORGES, 1989, v.II,
p.252); “Juan, I, 14” (BORGES, 1989, v.II, p.271); “Inferno, V, 129”
(BORGES, 1989, v.III, p.323) ou “Purgatório, I, 13” (BORGES, 1989, v.
III, p.364), o que torna imprescindível uma bibliografia de apoio à
leitura. Em outras palavras, é necessário que o leitor recorra aos livros
indicados, consultando-os efetivamente para decodificar o diálogo
buscado por Borges, a menos que disponha de uma memória
prodigiosa.
Outra versão dessa tendência encontramos na técnica que ele atribui a
Pierre Menard, “la técnica del anacronismo deliberado y de las
atribuciones errôneas” (BORGES, 1989, v. I, p. 450), que ampliam os
vazios em torno dos textos citados, tantas vezes detectável na obra do
próprio Borges.
Muitas vezes, o deslocamento se faz a partir de textos de outros
autores, recriados por Borges. Um exemplo desse procedimento é o
conto “Las ruinas circulares” (1989, v. I, p. 451-455), em que se ouvem
outras vozes, como a de Giovanni Papini, no conto “La última visita del
Caballero Enfermo” (1984, p.61-70), selecionado pelo escritor argentino
para integrar a coleção La Biblioteca de Babel, da editora Siruela. No
prólogo dessa edição, Borges declara:
Leí a Papini y lo olvidé. Sin sospecharlo, obré del modo más
sagaz; el olvido bien puede ser una forma profunda de la
memoria. (...) Ahora, al releer aquellas páginas tan remotas,
descubro en ellas, agradecido y atónito, fábulas que he creído
inventar y que he reelaborado a mi modo en otros puntos del
espacio y del tiempo. Más importante aún ha sido descubrir el
idéntico ambiente de mis ficciones.(BORGES, 1984, p. 9-10)
Outras vezes, a mesma idéia se desenvolve em textos e contextos
diferentes na obra do próprio Borges. Exemplo curioso dessa estratégia
se dá com esta frase: “Los muchos años lo habian reducido y pulido
como las aguas a una piedra o las generaciones de los hombres a una
sentencia.” (BORGES, 1989, v. I, p.528 e p.613). Ela se repete na
íntegra em dois textos: da primeira vez, em “El Sur” (1944), descreve
um homem na Argentina, típico representante do lugar em que se
encontra; da segunda, em “El hombre en el umbral” (1949), aplica-se a
um velho muçulmano encontrado na Índia. Além de se descontextualizar
a descrição, o enunciado da proposição nos leva ao dito popular,
mostrando que, para Borges, a repetição da frase, por gerações, vai
lapidando-a, aparando-lhe arestas.
Já o filósofo alemão, em um de seus textos mais conhecidos: “O
narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” (1936),
representa a construção de narrativas populares através da metáfora da
superposição de camadas, como neste trecho:
Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se
emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta
superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a
melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à
luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas
pelas narrações sucessivas (BENJAMIN, 1985, p. 206).
Superpondo-as ou retirando-as, Benjamin e Borges identificam, ambos,
a existência de várias camadas nas frases ou narrativas populares.
Ainda Benjamin, nesse mesmo ensaio, afirma: “Podemos dizer que os
provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da
história abraça um acontecimento, como a hera abraça um muro”
(1985, p. 221). Retomado por esse viés, constatamos a importância do
conceito de ruína como chave de leitura na obra de Borges.
Atendo-nos à proposta e às dimensões deste artigo, passaremos a
observar como esse procedimento de leitura se reflete na escrita que
ambos engendram sobre sua maneira de perceber e representar a
cidade. No caso de Borges, vamos nos deter em Fervor de Buenos Aires,
de 1923, primeiro livro de poemas e primeiro que se apresenta na
reunião de suas obras pela Editora Emecé. No caso de Benjamin,
percorreremos sua Rua de mão única (1928)iii, primeiro livro publicado,
quando desfolha as lembranças de acontecimentos pessoais ao lado das
reflexões sobre cenas da vida pública, à maneira de livros de recortes,
em que se colam tempos diferentes, e nos quais o sujeito ora se
debruça sobre aspectos de sua vida particular, ora contempla o mundo
que o cerca, entornando a seu redor um olhar que reconstitui o passado
com olhos de presente, em uma nova articulação significante.
No primeiro poema de Fervor de Buenos Aires, “Las calles”, os primeiros
versos identificam poeta e cidade: Las calles de Buenos Aires / ya son
mi entraña (BORGES, 1989, v. I, p. 17). Essa identificação faz com que
percorrer as ruas seja um exercício em que dentro e fora se encontrem
no mesmo movimento do poeta. Por outro lado, desentranhadas
daquele que as percorre, as ruas da cidade vão apresentar um desenho
híbrido em que o espaço público é iluminado por um olhar intimista.
Em Rua de mão única, a dedicatória apresenta perspectiva semelhante:
“Esta rua chama-se / Rua Asja Lacis, / em homenagem àquela que, / na
qualidade de engenheiro, / a rasgou dentro do autor” (BENJAMIN, 1987,
p. 9). Lendo os fragmentos reunidos nesse livro, que tanto tratam de
questões públicas quanto de questões pessoais, ou mais exatamente,
que tratam de maneira pessoal questões íntimas ou de alcance público,
vamos encontrar o filósofo fazendo com que o corpo da cidade e o do
indivíduo se toquem e se esclareçam um ao outro.
Tanto em Borges como em Benjamin, é possível localizar referências
explícitas também à identificação entre escrita e cidade, através de seus
elementos metonímicos. Em Borges, no poema “La vuelta”, quando
registra um momento em que, depois de longo período na Europa,
retorna à casa de sua infância: y he repetido antíguos caminos / como si
recobrara un verso olvidado (1989, v. I, p. 36). Ou em “Llaneza”: Se
abre la verja del jardín / con la docilidad de la página / que una
frecuente devoción interroga (1989, v. I, p. 42). Por esse portão assim
descrito, assistimos ao poeta entrando no jardim como se entrasse num
livro, o que o tornaria personagem da cidade, como ela própria o é de
sua escrita.
Enquanto Borges retorna de seu afastamento, Benjamin percorre as
cidades de seu exílio, como no fragmento “Fardos: expedição e
empacotamento”:
Eu ia de manhã cedo, de automóvel, através de Marselha em
direção à estação e, assim que no caminho me deparavam
lugares conhecidos, depois novos, desconhecidos, os outros de
que eu só conseguia lembrar-me inexatamente, a cidade
tornou-se em minhas mãos um livro, no qual eu lançava ainda
rapidamente alguns olhares, antes que ele me desaparecesse
dos olhos no baú do depósito por quem sabe quanto tempo
(1987, p. 56).
Nessa única frase que é todo o fragmento, o automóvel leva o narrador
a um recorte veloz, em que tanto as lembranças diversas como os
novos apelos da cidade se condensam na metáfora do livro que
avidamente se folheia antes que se tenha de juntá-lo ao fardo de
ausências que se acumulam.
Nas obras de ambos, as cidades se apreendem fragmentariamente,
através de recortes da paisagem, como se entrevê em títulos de Borges
(“Calle desconocida”, “La Plaza San Martin”, “Un patio”) ou de Benjamin
(“Posto de gasolina”, “Canteiro de obras”, “Cabeleireiro para damas
difíceis”).
Explicitamente em Benjamin, os títulos exploram a duplicidade de
sentido, apontando para fora e para dentro do espaço que demarcam. O
título “Quinquilharias” (1987, p. 61), por exemplo, reúne observações
sobre assuntos díspares, que começam pela seguinte: “Citações em meu
trabalho são como salteadores no caminho, que interrompem armados e
roubam ao passeante a convicção”. Em seguida: “O ato de matar o
criminoso pode ser moral – jamais a justificação desse ato”. Os
salteadores seriam também esse criminoso que um ato moral pode
matar? Mais provavelmente não, mas a aproximação entre as frases sob
um mesmo título acaba por contaminar sua enunciação. Embora, a
rigor, nenhuma das observações propostas pudesse ser considerada
quinquilharia, a partir do procedimento adotado a segunda frase parece
corroborar o enunciado da primeira, interrompendo o caminho do leitor.
Finalmente, como nos textos de Borges, Benjamin reconhece na citação
algo que vem arruinar a convicção do leitor.
Ainda no texto de Benjamin, é exemplar o fragmento intitulado
“Cervejaria”, no qual ele explora a importância que ela adquire para os
marinheiros: “A cervejaria é a chave de toda cidade (...). A taberna
alemã para marujos desenrola o mapa noturno da cidade: dali até o
bordel, até as outras tabernas, não é difícil achar o caminho”. (1987, p.
66). A cidade dos navegantes vai sendo composta de fragmentos de
todas as cidades que visitam, levando sempre a mesma chave. Já
Borges e Benjamin talvez usassem como chave as livrarias e as
bibliotecas públicas que tanto freqüentaram, a trabalho ou por lazer. A
cada um daqueles que a abordam, a cidade oferece pelo menos um
fragmento de identificação que lhes permita traçar um caminho.
Na cidade mítica deambulada por Borges, os pontos privilegiados
encontram-se preferencialmente nas fronteiras em que cidade e campo
se limitam ou se invadem. Nas margens entre a cidade real e a
imaginada, o poeta vai procurando identificar as marcas de um passado
que o fascina, que lhe veio das histórias que ouviu principalmente de
sua mãe (Cf. BORGES, 1989, v. 1, p. 9), que leu ou que inventou com
os recursos de sua poética e que ele busca desentranhar da geografia
que percorre. Nessa espécie de reconstituição, a cidade, como os textos,
apresenta suas ruínas.
Da mesma forma que a escrita de Borges se constrói com fragmentos
retirados de outros contextos, sua cidade vai se formar de um limiar de
onde não se pode destacar um fragmento que não esteja contaminado
por uma dupla inscrição, território em que os ecos de outros tempos e
lugares se fazem ouvir pelas ruas. Assim, no poema “Arrabal”: Mis
pasos claudicaron / cuando iban a pisar el horizonte / y quedé entre las
casas... (BORGES, 1989, v. 1, p. 32), ou no poema “Caminata”: La brisa
trae corazonadas de campo, / dulzura de las quintas, memorias de los
álamos, / que harán temblar bajo rigideces de asfalto / la detenida
tierra viva / que oprime el peso de las casas. (1989, v. 1, p. 43).
Para Benjamin:
Assim como todas as coisas que estão em um irresistível
processo de mistura e impurificação perdem sua expressão de
essência, e o ambíguo se põe no lugar do autêntico, assim
também
a
cidade.
Grandes
cidades,
cuja
potência
incomparavelmente tranqüilizadora e corroborante encerra o
criador em uma paz de castelo fortificado e é capaz de tirar
dele, juntamente com a visão do horizonte, também a
consciência das forças elementares sempre vigilantes, mostramse por toda parte vazadas pelo campo que penetra. Não pela
paisagem, mas por aquilo que a livre natureza tem de mais
amargo, pela terra arável, por estradas, pelo céu noturno que
nenhuma camada vibrante de vermelho esconde mais (1987, p.
25).
Nesse espaço impuro e misturado, jogo de tensões entre natureza e
cultura, entre campo e cidade, entre o público e o privado, surgem as
ruínas da cidade mítica delineada por cada um. Retomando o texto de
Foster:
Borges retrata un tiempo pre-moderno, ese espacio de
metamorfosis donde el campo va deviniendo ciudad. (...)
Benjamin bucea en la modernidad, en sus zonas fundacionales
(...) para entender la trama dialéctica que no permite reconocer
la proximidad de la decandencia allí donde todavía permanece el
esplendor (1999, p. 165).
Essa tensão descortinada por Benjamin na alegoria ou nas ruínas
sustenta, no texto de ambos, as cidades que oferecem a seus leitores. E
é ainda a uma imagem de Benjamin que recorremos para representar
esse tempo passado, cujas franjas subsistem a seu próprio
desaparecimento:
PESO DE PAPÉIS. Place de la Concorde: obelisco. Aquilo que há
quatro mil anos foi sepultado ali está hoje no centro da maior de
todas as praças. (...) Que aspecto tem, na verdade, essa glória?
Nenhum dentre dez mil que passam por aqui se detém; nenhum
dentre dez mil que se detêm pode ler a inscrição. Assim toda
glória cumpre o prometido, e nenhum oráculo a iguala em
astúcia. Pois o imortal está aí como esse obelisco: ordena um
trânsito espiritual que lhe ruge ao redor, e para ninguém a
inscrição que está sepultada ali é de utilidade (1987, p. 36).
Transpondo o centro da cidade para a escrivaninha, lendo o obelisco
pela metáfora do peso de papel, Benjamin desentranha-lhe o texto
ilegível. Sem essa letra que nela se enterra, a cidade não poderia se
constituir, uma vez que, como nos adverte Lewis Mumford, sua gênese
depende da lei escrita artifício capaz de retirar da pessoa do líder a
função de incorporá-la e de apontar para um imperativo divino (Cf.
MUMFORD, 1998, p. 59).
Observe-se que, no texto de Benjamin, o mesmo movimento que expõe
o obelisco vela sua inteligibilidade. Tensão entre monumento e ruína,
ordenada pela letra rasurada, sepultada na terra em que se edifica,
assim é a cidade enigma que tanto Benjamin quanto Borges procuram
percorrer na vida e nos textos, construindo sua literatura nas franjas de
uma linguagem aparentemente fragmentada, cuja mítica totalidade eles
reconhecem e expõem como desde sempre perdida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de
barbárie: escritos escolhidos. Seleção e apresentação de Willi Bolle.
Trad. Celeste H. M. Ribeiro de Souza [et al.]. São Paulo: Cultrix /
Editora da Universidade de São Paulo, 1986.
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense,
1987.
BORGES, Jorge Luis. “Prólogo”. In: PAPINI, Giovanni. El espejo que
huye. Selección de Jorge Luis Borges. Trad. Horacio Armani. Madrid:
Siruela, 1984. p. 9-12.
BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Maria Kodama y
Emecé Editores, 1989. 4 v.
FOSTER, Ricardo. “Borges y Benjamin: La ciudad como escritura y la
pasión de la memoria”. In: ENTRALGO, Pedro Lain; ROSALES, Luis;
MARAVALL, José Antonio. (Org.). Cuadernos Hispanoamericanos.
Homenaje a Jorge Luis Borges. n. 505 / 507. Madrid: Gráficas 82, julio –
septiembre, 1992. p. 507-523.
FOSTER, Ricardo. “Walter Benjamin y J. L. Borges: La ciudad como
escritura y la pasión de la memoria”. In: _____. El exilio de la
palabra. En torno a lo judio. Buenos Aires: Editorial Universitaria de
Buenos Aires, 1999. p. 145-165.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história. Suas origens, transformações
e perspectivas. Tradução de Neil R. da Silva. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
PAPINI, Giovanni. “La última visita del Caballero Enfermo”. In: _____.
El espejo que huye. Selección de Jorge Luis Borges. Trad. Horacio
Armani. Madrid: Siruela, 1984. p.61-70
PARAIZO, Mariângela de Andrade. O labirinto e a bússola. Tese de
doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 1987.
i
Doutora em Literatura Comparada pela UFMG. Professora da UFMG.
ii
A diferença entre as duas publicações é que, na segunda, o crítico se detém mais
sobre a obra de Benjamin, pouco explorada na primeira versão, ampliando o universo
de referências que corroboram sua proposta. Em tese de doutorado, abordei a primeira
dessas versões. Aqui, pelo fato de ela estar integralmente contida na segunda, todas
as citações serão feitas a partir desta última.
iii
Três livros: Einbahnstrasse, Berliner Kindheitum Neunzehnhundert e Denkbilder
foram reunidos sob o título Rua de mão única, em edição da Brasiliense de 1987,
citada nas referências bibliográficas. As considerações tecidas neste artigo se referem
ao primeiro deles.

Documentos relacionados