Nós Estamos nos Tornando Turcos? `Othello` e o novo imperialismo

Transcrição

Nós Estamos nos Tornando Turcos? `Othello` e o novo imperialismo
Nós Estamos nos Tornando Turcos?
‘Othello’ e o novo imperialismo.
A montagem teatral que está causando sensação nesta temporada de verão inglesa é a de
‘Othello’ pela Royal Shakespeare Company, principalmente devido ao fato de que pela
primeira vez temos um Iago negro no consagrado palco de Stratford-upon-Avon. A
encenação é deslumbrante, mas mais que isso, resgata dois objetivos centrais do texto:
refletir sobre as humilhações cotidianas entre as pessoas de diferentes posições sociais,
e sobre o efeito das guerras imperialistas. Ao apresentar tanto Iago quanto Otelo como
personagens negros (Iago é um personagem espanhol, e os ingleses viam os espanhóis
como negros), a relação entre eles fica mais clara, assim como fica claro o rancor de
Iago por Otelo ter promovido Cássio em seu lugar. Cássio é um militar muito mais
inexperiente que Iago, mas foi promovido por ser mais aceito socialmente no
hierárquico universo veneziano. Otelo também quer ser aceito, mesmo que para isso
traia seu seguidor mais fiel, aquele que mereceria o cargo. Quando o público entra, se
depara com uma Veneza recriada em majestosos arcos, com um barco sobre o palco. Ao
soar da última campainha, parte do palco desce, surge um verdadeiro canal e o barco
literalmente navega sobre suas águas, levando Iago e Rodrigo. Ao chegar ao destino - a
casa de Brabantio -, enquanto Rodrigo ri como um idiota, Iago o empurra para fora do
barco. A partir daí, a violência que surge numa brincadeira sem consequências se
espraia por toda a peça. Quando Otelo aparece em cena, percebemos que todos em sua
facção são negros, com exceção do tenente Cássio. Usam roupas militares
contemporâneas em contraste com o universo asséptico e formal da clássica e branca
Veneza. Quando a cena passa para Chipre, a brincadeira começa.
O cenário se abre e a magnífica Veneza se transforma numa Chipre arruinada pela
guerra empreendida pela mesma Veneza. A associação entre o Oriente Médio e as
guerras financiadas pelas nações desenvolvidas fica evidente demais para alguém fingir
que não percebeu. Afeganistão, Iraque, Palestina e Síria nos vêm imediatamente à
frente. Na celebração de que a guerra terminou porque “os turcos morreram afogados”,
Iago começa a cantar uma triste e lindíssima canção africana, com todo o coração,
tocando a todos com sua saudade e historia. Impossível não reconhecer a menção às
guerras africanas que começaram com a (des)colonização europeia. Ele é imediatamente
ridicularizado por Cássio, que começa a cantar suas músicas importadas da cultura
anglo-americana e lhe diz que um tenente (ele) sempre está acima de um alferes (Iago).
Todas as pequenas humilhações causadas por diferenças sociais e culturais contidas no
texto original, mas sempre tão pouco valorizadas nas montagens, saltam aos olhos e
dominam o palco. Cássio humilha Iago, Iago humilha a esposa Emília, Otelo humilha
Desdemona, e até Desdemona humilha Emília ao brincar com ela lhe jogando água, mas
não permitindo (gentilmente) que a criada faça o mesmo. A microfísica do poder.
A própria caracterização dos personagens flerta com estas relações hierárquicas.
Desdemona não passa de uma garotinha rica sonhadora e superficial, que se contenta em
ser servida por Emília e frequentemente ela ri dela. Emília é feita por uma atriz de
origem indiana, e seus costumes são estranhos até mesmo aos olhos de Otelo. As raças
dos dois saltam quando Otelo a abraça e diz aos venezianos: “Bem vindos a Chipre,
terra de macacos e cabras”. Cássio e Rodrigo são playboys estúpidos e preconceituosos.
Iago é visto como um capacho por todos os personagens, principalmente em seu toc de
limpeza. Ele limpa tudo com os dedos e um lenço, o palco, a própria roupa, o vestido de
Desdemona e, como a esposa, é visto como um alienígena naquele universo da alta roda
militar veneziana branca em Chipre. Otelo ao menos já parece aculturado. Como o
próprio Shakespeare aponta, ele quer ser mais veneziano, cristão e branco do que todos
os outros personagens, a não ser quando entra em seu papel militar e tortura os presos
na distante Chipre muçulmana. Ou será que é justamente nesse momento em que ele
deseja ser ainda mais branco e cristão? Em seus acessos de loucura ensaia torturar Iago
e a própria Desdemona. Aliás, este é um dos acertos da montagem. Pelo menosprezo e
as ameaças posteriores de Otelo, que exige provas ameaçando aniquilá-lo, Iago vai se
enrolando na própria trama que tece e vê diminuindo seu campo de possibilidades.
Quando Desdemona se ajoelha pedindo sua ajuda, vemos que ele deseja voltar atrás,
mas já não pode mais. É uma das cenas mais bonitas da peça, vemos que sempre
constrangido Iago não sabe o que fazer quando alguém lhe faz um gesto de carinho, seja
Desdemona que lhe beija em agradecimento, seja a própria esposa que se mostra
orgulhosa por tê-lo como marido. O amor na peça é sempre pressionado pela diferença
social entre seus agentes, seja a de posição, seja a de raça, seja a de gênero. Na cena
final, vemos que o quarto de Otelo e Desdemona se torna uma igreja arruinada pela
guerra, refletindo o elemento estético de que todas as expressões religiosas na peça são
reformuladas para definir o amor, o sexo, o ciúme. Na Inglaterra pós-reforma, o teatro
se apropriou das velhas expressões religiosas para falar de amor. O casamento de Otelo
e Desdemona é um templo devastado pelas guerras dos outros.
Em 1604, ano em que a peça foi provavelmente escrita, a Inglaterra saía de uma guerra
religiosa contra a Espanha e via os espanhóis como uma raça degenerada pela
miscigenação com os mouros durante o domínio árabe da península ibérica.
Shakespeare ao compor Otelo como mouro e Iago como espanhol já indicava à plateia
que eles representavam o menosprezo inglês àqueles povos. A audiência começava a
peça vendo-os como representantes de raças degeneradas, hereges, militares traiçoeiros,
e evidentemente Shakespeare questionava exatamente estes pré-conceitos. Qualquer
semelhança com as guerras na África e Oriente Médio, financiadas pelas novas
Venezas, não são mera coincidência nesta montagem, assim, é levantada
propositalmente a questão: nestes territórios em conflito, as questões são raciais, ou
religiosas, ou militares, ou de domínio econômico? Ao atualizar a discussão e mostrar o
novo panorama mundial em que o imperialismo não se concentra mais no domínio
militar europeu, mas no financiamento deste domínio por facções locais; além de
questionar sobre onde podemos chegar com os preconceitos raciais, as diferenças
sociais e o exercício do pequeno poder, a Royal Shakespeare Company acerta um gol na
consciência da plateia. Esta temporada tem a reflexão social como tema, não à toa as
quatro peças em cartaz têm Veneza e suas colônias como ambiente da trama - a cidade
em que nasceu o capitalismo, a mais rica do mundo na época de Shakespeare - e todas
essas encenações concentram a ação nas consequências devastadoras que a fixação pelo
dinheiro e status social tem sobre as relações humanas. Coincidência ou não, o atual
governo conservador inglês cortou nesse primeiro ano inúmeros subsídios aos pobres e
instituições culturais. Havia muito tempo que não se via tantos mendigos nas ruas de
Veneza. Ops, nas ruas da Inglaterra.
P.S. Para quem quiser conferir essas discussões brindadas pelo texto e pela RSC, sugiro
ver a atual encenação brasileira de ‘Otelo’ em cartaz no Teatro Sérgio Cardoso em São
Paulo. As preocupações de ambas as companhias são muito parecidas e os resultados,
embora diferentes, são espetaculares.
Ricardo Cardoso
Stratford-upon-Avon
Agosto, 2015.