“Efeito do retorno à psicose ordinária”, de Jacques-Alain

Transcrição

“Efeito do retorno à psicose ordinária”, de Jacques-Alain
Latusa Digital Ano 8 – N. 44/45 – Março e Junho de 2011.
Resenha do texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, de Jacques-Alain Miller,
publicado em Opção Lacaniana online nova série. Ano 1, n. 3. Novembro de 20101.
Cristina Frederico
Percorridos dez anos desde a invenção do termo "psicose ordinária" na
Convenção de Antibes, J- A. Miller retorna sobre este sintagma e pontua de modo incisivo
a série que deu início a um programa de investigação ocorrido ao longo desses anos. A
intervenção aconteceu em julho de 2008, na cidade de Paris, durante um seminário
anglófono organizado a pedido dele, por Marie-Hélène Brousse. Na ocasião, Miller
assinala que o significante psicose ordinária foi lançado por ele sem delimitações nítidas e
tinha o objetivo de produzir efeitos e de recolher a contribuição de toda uma comunidade
analítica.
Miller indaga a existência objetiva da psicose ordinária na clínica e propõe que ela
seja mais epistêmica do que objetiva. Por uma outra via, reflete que lançou este
significante para driblar a rigidez de uma clínica binária: neurose e psicose. As
ferramentas teóricas utilizadas até então criavam uma fronteira espessa entre neurose e
psicose, e não se mostravam efetivas nestes tratamentos.
A psicose ordinária era uma maneira de introduzir o terceiro excluído pela
construção binária, mas, em vez de sugerir algo intermediário entre neurose e psicose,
semelhante ao dito borderline, Miller situa o terceiro excluído do lado direito do binarismo,
ou seja, no lado da psicose. Todo esse percurso traçado pelo significante psicose
ordinária traz importantes consequências teóricas. Uma delas é a afinação do conceito de
neurose, outra seria a generalização do conceito de psicose. Generalização que nos leva
a pensar que o Nome-do-Pai não existe, pois é somente um predicado, o que nos permite
fazer uso de sua propriedade, e não dele em si. Haveria na psicose ordinária um aparelho
suplementar, algo que servisse como Nome-do-Pai para aquele sujeito.
O que tentamos pinçar ao falarmos em psicose ordinária? Miller nos orienta para a
esclarecedora frase de Lacan na Questão Preliminar... “[a psicose é] uma desordem [ ]
na junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito”. E propõe que os indícios de
1
Originalmente publicado em Miller, J.-A. "Effet retour sur la psychose ordinaire". Em: Quarto. Revue de Psychanalyse.
Bruxelles: Ecóle de la Cause Freudienne, n. 94/95, jan. 2009, pp. 40-51.
Resenha do texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, de Jacques-Alain Miller
Latusa Digital Ano 8 – N. 44/45 – Março e Junho de 2011.
foraclusão sejam buscados por meio de uma tripla externalidade: uma social, uma
corporal e uma subjetiva.
Para Miller, é possível encontrarmos o sinal mais claro de psicose ordinária na
"relação negativa do sujeito com sua identificação social". O sujeito é incapaz de assumir
sua função social, podendo se desligar sucessivamente. Miller chama a atenção para o
fato de que este é um percurso frequente nos esquizofrênicos. E surpreende o leitor ao
afirmar que a esquizofrenia pode ser a realidade do sujeito, embora possa parecer uma
psicose ordinária. O mesmo poderia acontecer com a paranoia. Ele considera a psicose
um vasto continente e nos convida a irmos mais longe e reencontrarmos a clínica
psiquiátrica e psicanalítica clássica, em vez de afirmarmos simplesmente tratar-se de uma
psicose ordinária. Deste modo, evitaríamos o que ele chama de "asilo da ignorância",
considerado um refúgio para não saber. Aí reside segundo Miller, o perigo do conceito de
psicose ordinária.
A externalidade corporal, por sua vez, apresenta-se na falha presente na relação
do psicótico ordinário com seu corpo. E, finalmente, a externalidade subjetiva presentificase na experiência do vazio e nas identificações feitas com um "bric-à-brac". Todos esses
detalhes mínimos assinalam a psicose ordinária, e são passíveis de se conectar em torno
de uma desordem central que atinge a "junção mais íntima do sentimento de vida" .
Ao responder à plateia, Miller nos permite uma ideia mais precisa do que seria em
seu entendimento a psicose ordinária. Ele afirma ter discordado durante anos da ideia de
uma psicose não desencadeada, por temer o abuso que isto poderia trazer. Mas os fatos
clínicos fazem-no mudar de posição: "Quando se tem uma psicose que se desencadeia, o
período que antecede ao desencadeamento é de psicose não desencadeada (...) o passo
a mais é compreender que certas psicoses não conduzem a um desencadeamento"2, pois
podem se apresentar em torno de uma desordem no ponto de junção mais íntimo do
sujeito e evoluir sem barulho, apenas com desconexões que se perpetuam. Podemos,
com isso, inferir que caso J-A Miller tenha uma definição de psicose ordinária, ela também
teria vindo a posteriori.
2
“Efeito do retorno à psicose ordinária”, de Jacques-Alain Miller, publicado em Opção Lacaniana online nova
série. Ano 1, n.3. Novembro de 2010, p. 26.
Resenha do texto “Efeito do retorno à psicose ordinária”, de Jacques-Alain Miller

Documentos relacionados

arquivo em PDF - Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas

arquivo em PDF - Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas algo relativamente normal para a psicanálise. É que, se o sentimento de externalidade é um índice possível para a psicose, por outro lado, a ideia de uma “normalidade” do “ter um corpo” pressupõe, ...

Leia mais

116 A psicose ordinária e os fenômenos de corpo

116 A psicose ordinária e os fenômenos de corpo entre os campos da psicose e da neurose se esfuma em benefício de uma localização do sujeito não em termos de classes, mas em relação a modos de amarração e de gozo particulares. Ao levar em conta ...

Leia mais

A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso

A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso (1996-1997). Buenos Aires: Paidós, 2005. Seminário de Orientação Lacaniana II, 15, ensino pronunciado no quadro do Departamento de Psicanálise de Paris VIII, aulas de 11/12/1996, 4/12/1996, 23/4/19...

Leia mais