i opinião.p65 - Retrato do Brasil

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i opinião.p65 - Retrato do Brasil
Iraque, 2004
análise
Império & Guerra
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REPORTAGEM N.63 DEZEMBRO 2004
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OPINIÃO: ELEIÇÃO AMERICANA
A
ceitar o caminho do combate ao terrorismo proposto pelos EUA significa entrar numa guerra em que eles definem, a cada momento, quem é e onde
está o adversário, uma guerra sem fim e cada vez mais extensa, permanente e
“infinitamente elástica”, diz José Luís Fiori no texto de abertura deste Caderno
de Opinião, editado a propósito da vitória de George Bush nas eleições americanas. Nesse caminho, diz o professor de economia política da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, o próprio centro do império é atingido. O governo
Bush propõe uma “rede cidad㔠de espionagem, constituída por milhões de
homens e mulheres comuns que gastariam parte dos seus dias controlando e
vigiando seus próprios vizinhos. Cria, assim, um controle permanente e cada
vez mais rigoroso da própria sociedade americana, vista pelo governo como
um imenso universo de possibilidades agressivas – uma direção paranóica e
coletiva rigorosamente insustentável.
Aceito o princípio geral do direito americano à guerra preventiva, a estratégia
da luta global contra o terrorismo acabará opondo, portanto, em algum
momento, as próprias grandes potências, diz Fiori.
De que forma o governo neoliberal, que se proclama o defensor das liberdades, pode chegar à guerra? Neoliberal é quem acredita que as forças do
mercado devem atuar livremente, sem amarras regulatórias e de preferência
sem fronteiras que dificultem a circulação de bens, capitais e trabalho. O
neoliberalismo, portanto, seria o avesso do autoritarismo na política e do
centralismo na economia. Em princípio, não combina com ditadura, com Estado forte. Pode, então, em um mundo em que as idéias neoliberais são
hegemônicas florescer e se fortalecer um Império? Um Império que combina
a imposição da frouxidão formal da economia com a imposição dos seus
desejos e interesses, ainda que pela força de poderosa máquina de guerra?
Uma ditadura acima de qualquer ditadura para impor um certo modelo de
Estado? Um paradoxal Império Neoliberal que impulsiona a guerra? Essas são
as questões a que responde outro de nossos articulistas, o professor Rainer
Rilling, da Universidade de Marburg, Alemanha.
Os outros três participantes deste Caderno, coordenado por nosso editor especial Paulo Arantes, são Ernani Teixeira Filho, que conta a história do petróleo e
das guerras recentes que o petróleo alimentou; Gloria Moraes, que analisa a
evolução da estrutura de poder e das telecomunicações do centro do império:
Robert Biel, que propõe formas radicais de decisão popular, como formas de
ajudar na luta contra a violência total da guerra ao terror.
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Limites para o império mundial
As contradições das políticas americanas mostram que o país enfrentará
dificuldades crescentes para manter o seu controle político e econômico global
José Luís Fiori
“O desejo de todo estado e de seus governantes
é alcançar uma condição de paz perpétua,
através da conquista de todo mundo”
Immanuel Kant, Ensaio Filosófico
sobre a Paz Perpétua, 1795
A vitória eleitoral de George Bush a 3 de novembro referendou
a tendência unilateral e expansionista de sua política internacional, frustrando os que apostaram numa mudança de rumo,
com a vitória de John Kerry. Esta mudança era muito pouco
provável, mas a reeleição de Bush, sem dúvida, confirmou a
opção belicista do seu primeiro governo, criando a impressão
de que o poder americano não tem mais limites, ao contrário
do que dizem os que vem anunciando, já faz tempo, uma
crise terminal da hegemonia mundial dos EUA. Do nosso ponto
de vista, neste início do século 21, fica difícil sustentar a tese da
crise final, mas tampouco acreditamos que tenha chegado a
hora de um império mundial. Ao contrário, os Estados Unidos
enfrentarão dificuldades crescentes nas próximas décadas para
manter o seu controle político e econômico global. Estes limites
não podem ser deduzidos de macro visões teleológicas da
história; têm de ser identificados a partir de uma análise cuidadosa das contradições das políticas americanas que poderão
chegar a desestabilizá-las.
Os Estados Unidos definiram seu novo inimigo propondo ao mundo uma parceria estratégica global para combater o “terrorismo
internacional”. A principal dificuldade desta opção está no fato
de se tratar de um inimigo que não se identifica com nenhum
Estado, não tem território e não estabelece nenhum tipo de complementaridade econômica com seu adversário. Ele é universal
e ubíquo – tipicamente imperial, da humanidade, e não de
algum Estado em particular. Aceitar esse caminho significa entrar numa guerra em que os Estados Unidos definem, a cada
momento, quem é e onde está o adversário, uma guerra sem
fim e cada vez mais extensa, permanente e “infinitamente elástica”. No início se tratava de destruir a rede Al-Qaeda e o regime
talibã do Afeganistão; hoje, as tropas americanas já estão presentes – em nome da mesma guerra – na Argélia, Somália,
Yemen, Afeganistão, Filipinas, Indonésia e Colômbia. A própria
definição do inimigo já foi modificada várias vezes: primeiro foram as “redes terroristas”; depois, o “eixo do mal”, constituído
pelo Iraque, Irã e Coréia do Norte; e, finalmente, os “estados
produtores de armas de destruição de massa”.
As características deste novo inimigo bipolar escolhido pelos Estados Unidos não cumprem com os requisitos fundamentais indispensáveis ao funcionamento do sistema mundial e, além disto, colocam dificuldades e limites imediatos para a execução da
nova estratégia de contenção global dos Estados Unidos. Em
primeiro lugar – do ponto de vista da segurança interna dos Estados Unidos – é da natureza do novo inimigo, segundo Donald
Rumsfeld, mover-se no campo “do desconhecido, do incerto, do
inesperado”, aproveitando-se de toda e qualquer “vulnerabili-
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dade americana”. Uma ameaça, portanto, que pode ser nuclear, mas também pode ser cibernética, biológica, química e pode
estar no ar, na terra, na água, nos alimentos, enfim, em centenas de veículos ou lugares diferentes. Neste sentido, tudo pode
se transformar numa arma, em particular as inovações
tecnológicas dos próprios americanos. E tudo pode se transformar num alvo, em particular as coisas mais prezadas e
desprotegidas dos norte-americanos. Daí a defesa pelo governo
Bush de uma “rede cidad㔠de espionagem, constituída por milhões de homens e mulheres comuns que gastariam parte dos
seus dias controlando e vigiando seus próprios vizinhos. E é isto
que explica, também, a criação pelo governo americano de novas “equipes vermelhas” encarregadas de planejar ataques contra os Estados Unidos, pensando como terroristas, para poder
identificar as “vulnerabilidades” do país. A visão imperial dos Estados Unidos e a ubiqüidade do seu adversário “interno”, exigem, portanto, um controle permanente e cada vez mais rigoroso da própria sociedade americana, vista pelo governo como
um imenso universo de possibilidades agressivas – uma direção
paranóica e coletiva rigorosamente insustentável.
Em segundo lugar, do ponto de vista da segurança externa dos
Estados Unidos, a nova estratégia cria uma situação de insegurança coletiva e permanente no sistema mundial. Os Estados
Unidos se reservam o direito de fazer ataques preventivos contra todo e qualquer Estado onde considerem existir bases ou
apoio às ações terroristas, o que significa a auto-atribuição de
uma soberania imperial. Problema que deverá se agravar, ainda mais, na medida em que outros países, em particular as
demais Grandes Potências, se sentirem ameaçadas por forças
consideradas terroristas, incluindo nações ou minorias externas ou internas. Todos os que tiverem a capacidade militar necessária seguirão o caminho aberto por Israel, e seguido pelos
Estados Unidos, optando pelos ataques preventivos.
A nova doutrina estratégica americana acabará tendo desdobramentos contraditórios e perversos: aceito o princípio geral,
não há nenhum acordo possível sobre o que seja, e quem sejam os terroristas, para cada uma das potências que detêm
atualmente os armamentos de destruição de massa. A estratégia da luta global contra o terrorismo acabará opondo, portanto, em algum momento, as próprias grandes potências. E
neste sentido, não apenas deverá aumentar as resistências
dentro dos Estados Unidos, como deverá acelerar o retorno de
uma situação de conflito entre as grandes potências, devolvendo a discussão sobre os limites do poder americano para o
campo dos conflitos tradicionais do sistema político mundial. E
neste campo, a verdadeira oposição ou resistência ao poder
americano acabará vindo de onde sempre veio através da história: de dentro do núcleo central de poder do sistema mundial, das suas Grandes Potências.
A própria necessidade norte-americana de alianças e apoios
nas guerras do Afeganistão e Iraque acabou devolvendo a liWWW.OFICINAINFORMA.COM.BR
OPINIÃO: ELEIÇÃO AMERICANA
berdade de iniciativa militar ao Japão e à Alemanha, ao mesmo tempo em que permitiu à Rússia reivindicar de volta o direito à sua “zona de segurança” clássica, onde estão incluídos
territórios que já foram ocupados militarmente pelos Estados
Unidos, depois de 1991. A Europa continental, por sua vez, começa a rebelar-se contra sua situação de refém militar da OTAN
e dos Estados Unidos, o que prenuncia o retorno da luta pela
hegemonia dentro do continente europeu, mesmo que seja na
forma de uma luta prolongada pelo controle da União Européia. Nesta região, se a Inglaterra sair da União Européia, não é
improvável que os capitais alemães acabem seguindo o caminho da história e estabelecendo uma nova e surpreendente
aliança com o poder militar “ocioso” da Rússia.
Enquanto isto, do outro lado do
mundo, o sistema estatal asiático se
parece cada vez mais com o velho
modelo de competição pelo poder
e riqueza que foi a marca originária
do “milagre europeu”, desde o século XVI. E não é provável que se
repita na Ásia algo parecido com a
União Européia. Ao contrário, o
que se deve esperar é uma intensificação da competição econômica
e política pela hegemonia regional, entre a China, o Japão, a
Coréia, a Rússia e os próprios Estados Unidos.
Desta perspectiva, não há dúvida que a grande novidade
geopolítica e geoeconômica do sistema mundial, desde os anos
1990, é a nova relação que se estabeleceu entre os Estados
Unidos e a China. Ela reproduz e prolonga o eixo Europa-Ásia
que dinamizou o sistema estatal e capitalista desde sua origem,
e a relação privilegiada dos Estados Unidos com o Japão, desde
1949. Mas ao mesmo tempo, ela contém algumas novidades
notáveis. Em primeiro lugar, o novo motor geoeconômico do
capitalismo mundial deslocou e esvaziou o tripé da “época de
ouro” da economia mundial – Estados Unidos, Alemanha e
Japão – que funcionou de maneira extremamente virtuosa entre 1945 e 1980. Em segundo lugar, esta nova engenharia
econômica mundial e a prolongada estagnação das economias
alemã e japonesa vem recolocando o problema dos seus projetos nacionais derrotados ou bloqueados, e a necessidade de
retomá-los como forma de sair da crise, sem contar com a ajuda
americana. Em terceiro lugar, esta nova aliança apressou a volta
da Rússia às suas posições clássicas de corte nacionalista e militarista, obrigada por sua posição eternamente dividida, entre
sua presença na Ásia e na Europa. Mas não há dúvida que o
aspecto mais importante desta nova relação entre Estados Unidos e China é que ela é complementar e competitiva a um só
tempo, e ao mesmo tempo ela é econômica e militar.
Este foi o grande segredo do sistema mundial criado na Europa, a partir do século 16: a inevitável complementariedade entre
os principais competidores que disputam situações hegemônicas e
que dinamizam o conjunto do sistema, durante algum tempo, graças
à sua competição.
No sistema mundial a partir do século 20, durante a Guerra Fria, a regra da complementariedade não foi
mantida: os Estados Unidos mantiveram sua competição militar com
um país com quem não mantinham
relações econômicas importantes
para o dinamismo de sua própria
economia nacional (a URSS). E mantiveram relações econômicas dinâmicas com países que não tinham autonomia militar,
nem possibilidade de expandir seu poder político nacional ( a
Alemanha e o Japão). Tudo indica que agora, com a nova relação que vem se consolidando entre os Estados Unidos e a
China, o sistema mundial deve voltar aos seus trilhos “normais”.
Neste momento, os Estados Unidos não tem mais como se
desfazer economicamente da China. Mas chegará a hora em
que terão de enfrentar o desafio da expansão chinesa, sobretudo quando ela deixar de ser apenas econômica e assumir a
forma de uma vontade política hegemônica no sudeste asiático, muito antes, portanto, de se transformar num projeto de
poder global.
Aceito o princípio da
guerra preventiva, a luta
global contra o terrorismo
oporá, em algum
momento, as próprias
grandes potências
José Luís Fiori é professor do Instituto de Economia da UFRJ e autor do livro
O Brasil no espaço (Vozes, 2001), entre outros.
A oportunidade do império neoliberal
Rainer Rilling
Agora, ele precisa redesenhar todos os Estados do mundo de modo a que se
tornem minimamente adequados à administração da ordem global
O neoliberalismo não foi simplesmente inventado por ideólogos
neoclássicos como Friedrich Hayek ou Milton Friedmannn e
implementado por “grandes” políticos como Thatcher e
Reagan. Não foram as teorias e os conceitos econômicos que
fizeram do neoliberalismo uma realidade global. As idéias tendem a desmoronar quando não estão de acordo com a realidade. A oportunidade de o neoliberalismo tornar-se uma realidade resultou da crise do Estado do Bem-Estar Social, da
perda da hegemonia dos EUA nos anos 60 e começo dos 70.
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Ele tornou-se hegemônico graças à sua habilidade de costurar alianças entre uma extraordinária variedade de atores
sociopolíticos, ideológicos e culturais.
A matriz material e a forte musculatura política do neoliberalismo estavam principalmente nos Estados do sul dos EUA.
Visto a partir daí, o neoliberalismo é um projeto essencialmente americano. Na porção sul do mais poderoso país do
mundo, durante os anos 1970 e 1980, o neoliberalismo
propunha um modelo econômico baseado no extrativismo
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do petróleo, na exploração intensiva de mão-de-obra barata, com impostos baixos e num ambiente reacionário e racista, hostil aos sindicatos e às liberdades civis. Essa economia já existia antes de Reagan, mas suas políticas seriam
difundidas nacionalmente e seus contornos seriam mais
bem definidos pela dinastia Bush.
A globalização se dá na troca de materiais, bens e força de
trabalho, na interligação dos atores, dos mercados, do dinheiro e do capital. A própria competição é globalizada. Os
mercados e suas relações sociais de apropriação regulam os
processos de troca e interação, o que requer uma forma
política e legal globalmente efetiva para a expropriação no
núcleo e nas periferias de uma economia de massiva imposição de valor financeiro sobre qualquer coisa, da natureza ou
do mundo das idéias. Globalização neoliberal e globalismo
militar combinam-se claramente para implementar um novo
projeto de império. As bases desse projeto têm um século,
mas o ambiente neoliberal o redefiniu nas últimas quatro
décadas. E seus mais poderosos atores se juntaram no último quarto de século. As ambições, a prática e sua estratégia
em grande escala foram desenhadas nos anos 1990. O 11
de Setembro foi um catalisador. A guerra no Iraque é seu
primeiro teste. Mesmo se este experimento falhar, de modo
algum o projeto estaria perto de ser abandonado ou rejeitado pela realidade. Afinal, trata-se do futuro dos Estados
Unidos da América.
Hoje só existe uma grande estratégia explícita e relativamente
coerente para uma forte ordem política mundial: a americana.
A idéia é preservar o capitalismo global por meio de um império
permanente e imbatível. O ponto de partida é a afirmação de
que existe uma nova disparidade qualitativa do poder global
entre os EUA e “o resto do mundo”. A segunda crença é a de
que, pela primeira vez, tal disparidade na distribuição do poder
pode ser sustentada por longo tempo. A idéia estratégica do
império americano opera, portanto, em um vasto contexto histórico. Formula o objetivo de estabelecer-se globalmente por
longo prazo e traz uma metodologia de ação que inclui a “superioridade militar impossível de ser desafiada”, a “guerra contra o terror”, o “ataque preventivo” e a legitima com o argumento de que o terrorismo privatizou a guerra.
Esse projeto de império é, entretanto, paradoxal, pois combina
de modo contraditório neoliberalismo com práticas imperiais
tradicionais. Seu bem equipado Estado nacional de segurança
opõe-se ao conceito de “governo enxuto”; a mercantilização
do Estado opõe-se à sua politização e o poder executivo é fortalecido por braços secretos que aumentam a robustez do Estado de segurança; a hegemonia por consenso opõe-se à hegemonia pela força em nome do direito ao ataque pela simples presunção da ameaça; o capitalismo fiador do setor privado opõe-se ao Estado alimentador do complexo industrial-militar; a eliminação das fronteiras nacionais para os mercados
financeiros opõe-se à delimitação geopolítica de territórios para
as indústrias bélica e do petróleo; a integração de uma economia por via informal convive com a ocupação formal de seu
território; a disciplina frouxa para o mercado contrasta com a
disciplina militar do Estado de segurança e suas forças de ocupação; políticos que lutam por uma política forte convivem com
radicais do mercado que tentam enfraquecer a política e a
presença do Estado no mercado.
Uma aliança de intelectuais, fundações, órgãos de comunicaHiroshima, 1945/ Pesquisa ODI
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OPINIÃO: ELEIÇÃO AMERICANA
ção, empresas, aparatos estatais e organizações políticas apresenta-nos a grande estratégia neoliberal. Ideólogos e estrategistas neoconservadores, militares reaganistas, a direita fundamentalista cristã e radicais de mercado estão no núcleo
político dinâmico do novo grupo nacionalista imperial. A configuração heterogênea dessa nova direita imperial nos EUA é
uma inovação política sem precedentes, combinando diversos
elementos aparentemente incompatíveis. Esse núcleo de poder neo-imperial tem suas raízes nos anos 1970, sua base é o
confronto, o poder militar, a política dura. No começo era um
paradoxo de poder que por muito tempo foi pouco notado: a
geração de cardeais do neoliberalismo radical de mercado na
Organização Mundial do Comércio (OMC), no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial pertence à mesma geração dos reaganistas belicistas do gabinete militar de
Bush. A derrota americana no Vietnã forjou suas concepções
das relações dos EUA com o mundo. Para eles, defender o
capitalismo e as regras do mercado eram pressupostos básicos. Mercados, dinheiro, negócios e ídolos da burguesia não
eram, no entanto, como poderia parecer, as mais altas conquistas da civilização. Seu mundo ideológico focalizava a grandeza épica de Roma como utopia de um novo poder imperial,
de cultura bélica e moral política. Eles são guerreiros políticos,
por vezes diplomatas, mas principalmente belicistas. Com lar
espiritual no Pentágono, essa geração se unifica na crença da
supremacia bélica dos EUA. Nos anos 1970 e 1980, trabalharam na reestruturação do poder militar depois da Guerra do
Vietnã e se opuseram ao discurso do declínio americano.
A transição nos anos 1990 foi vista por eles como a maior
vitória na história americana: os EUA ganharam a terceira guerra
mundial – a Guerra Fria. Nessa época, esses ativistas políticos
da guerra criaram o conceito de uma nova função ofensiva
para as forças armadas. Observar essa geração evidencia o
traço crucial dessas três décadas: a reascensão dos EUA no
sistema internacional. As bases conceituais do seu projeto político assumiram dimensão imperial. Esse projeto emerge da tradição hegemônica da política externa americana, mas na prática oscilou entre hegemonia e internacionalismo imperial.
A política externa americana foi e é caracterizada pelo duplo
objetivo político de fazer “o mundo seguro para o capitalismo” e garantir a “primazia americana dentro do mundo capitalista”. Proteger o mundo capitalista significa opor-se a qual-
quer formação não-capitalista, seja mera tendência política
ou sistema socioeconômico alternativo real. Isso quer dizer
eliminação política ou socioeconômica dessas estruturas por
meio da integração e transformação ou da destruição. Assegurar a primazia americana implica na solução de dois problemas: os EUA devem ter o domínio no relacionamento competitivo entre os Estados capitalistas centrais assim como no
sistema internacional global. Este último caso requer prevenir-se contra um competidor que possa emergir na Eurásia e
manter o controle de suas periferias (Europa Oriental, Oriente Médio e Pacífico). Tal é o objetivo clássico central da
geoestratégia americana – o coração da política imperialista.
Um século atrás, os EUA já estavam preocupados em conter
e destruir um competidor hegemônico na Eurásia, daí a “longa guerra” de 1917 a 1989. Contudo, após o desmonte do
socialismo de Estado, os EUA não estão apenas preocupados
em deter um competidor ou inimigo, mas em evitar o desenvolvimento de outro. Fizeram isso por meio de bloqueios, inclusões e intervenções preventivas. Esse novo tipo de intervencionismo é o primeiro problema qualitativo ao qual o projeto de império neoliberal tenta reagir.
Assegurar a primazia também significa manter fluxo livre para
a troca de mercadorias dos EUA – um “mundo seguro para o
capitalismo” com todo o sistema político e econômico aberto e acessível (porta aberta, livre comércio, acesso). Surge
então a questão de moldar o sistema internacional como um
todo, não apenas contendo ou manobrando um competidor hegemônico. A produção de uma ordem mundial é fundamental. Esse é o segundo problema qualitativo ao qual o
projeto de império neoliberal tenta reagir. Por ser um projeto
exclusivamente americano podemos chamá-lo de questão do
império, caracterizada pela afirmação de Panitch/Gindin:
“A necessidade de tentar redesenhar todos os estados do
mundo de modo que eles se tornem minimamente adequados à administração da ordem global – também condição
geral para a reprodução e expansão global do capitalismo – é
agora o problema central do Estado americano.”
Este texto é um resumo da intervenção do autor em seminário no Rio de
Janeiro, em junho/julho de 2004. O texto original em alemão e uma tradução
para o inglês podem ser obtidos no site www.oficinainforma.com.br.
Rainer Rilling é professor da Universidade de Marburg, Alemanha, e pesquisador
do departamento de análise política da Fundação Rosa de Luxemburgo, em Berlim.
Por formas radicais de decisão popular
Robert Biel
Elas podem ajudar na luta contra a violência total da guerra ao terror
Num nível, os Estados maximizam seus interesses dentro de
um sistema internacional estabelecido; em outro, há interesses que não podem ser cumpridos dentro do quadro existente e requerem mudança de regras no próprio sistema. No
caso dos Estados Unidos, este problema foi historicamente
abordado do ponto de vista do poder dominante, que procura preservar sua dominação. Nos últimos 100 anos, os
Estados Unidos vincularam o aspecto sistêmico de sua polítiWWW.OFICINAINFORMA.COM.BR
ca externa com o objetivo do chamado liberalismo, que na
verdade significa a remoção das barreiras econômicas nacionais. Isto serve a seus interesses num sentido sistêmico, mesmo que leve a iniciativas – particularmente no que diz respeito a relações Norte-Norte – que parecem se chocar com uma
definição muito estreita ou imediata de interesse. Por exemplo: o Plano Marshall no final da II Guerra Mundial deu
muito dinheiro para os Estados europeus como uma iniciatiREPORTAGEM N.63 DEZEMBRO 2004
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va para desmantelar barreiras de comércio, apesar de que
isso criaria rivais em potencial.
Nessa base, o seguinte discurso se tornou extremamente
influente na política mundial: a posição “liberal” na política dos Estados Unidos é adotada para servir ao bem comum, porque ela cria uma ordem no sistema internacional.
De acordo com essa lógica, o maior perigo seria os Estados
Unidos cultivarem uma política “isolacionista”. Por isso,
todos deveriam evitar ofender os Estados Unidos, para evitar que os isolacionistas assumam o controle. A expressão
recente mais significativa dessa postura é um notável discurso feito no início desse ano pelo chefe da OMC, Supachai
Panitchpakdi, no qual ele afirma que “a ficção de que há
uma alternativa à OMC – ou à liderança dos EUA – é ao
mesmo tempo ingênua e perigosa” .
Esse próprio discurso é ingênuo e perigoso. Se examinarmos
a tendência intervencionista da política americana, o liberalismo sempre foi intrínsicamente ligado à agressividade. Podemos entender essa ligação analisando o documento seminal
O Corolário de Theodore Roosevelt da Doutrina Monroe,
que completa seu centenário neste mês de novembro. No
início do século 20, a Doutrina Monroe se tornou, como
destacou Woodrow Wilson, “uma doutrina mundial”1. E o
Corolário interpreta essa doutrina mundial como: a ordem
liberal pós-colonial vai permitir ao sul ter Estados independentes, mas apenas na medida em que esses Estados preencham o que os próprios EUA definem como sendo suas
obrigações. “Se uma nação demonstra que sabe como agir
com razoável eficiência e decência nas questões sociais e
políticas, se ela mantém a ordem e
cumpre suas obrigações, não é necessário que tema uma interferência dos Estados Unidos. Os cronicamente errados, ou impotentes,
que por essa razão perdem seus
laços de sociedade civilizada, seja
na América ou em qualquer lugar,
requerem a intervenção de alguma nação civilizada”2 . O novo discurso da política americana no século 21 coloca em evidência duas
categorias gêmeas: a de “Estados
fracassados”, muito fracos para
cumprir suas “obrigações” e “Estados trapaceiros”, traiçoeiros e inconfiáveis. Em resposta a isso, os Estados Unidos
assumiram “um poder de polícia internacional” .
A formação dos aspectos contemporâneos dessa doutrina
é da segunda metade dos anos 1980. Com o declínio da
Guerra Fria, o interesse nacional norte-americano foi
redefinido como a proteção de sua dominação sobre o conhecimento, com a chamada propriedade intelectual. A responsabilidade de nações subordinadas passa a ser usar seu
poder estatal doméstico para proteger esta “propriedade”.
Esta idéia tomou corpo numa emenda de 1988 para a Seção 301, da Lei de Comércio Americana de 1974. O desenvolvimento subseqüente dos objetivos sistêmicos – a Rodada do Uruguai do GATT, a formação da OMC em 1995 –
efetivamente saiu da legislação norte-americana e, a partir
dai, uma vez mais, se tornou uma “doutrina mundial”.
A contradição proposta pelo discurso convencional – entre
uma linha sistêmica/liberal “legal” na política americana e
uma nacionalista/isolacionista “mᔠ– é completamente falsa. Há, no entanto, na política americana, contradições reais que o discurso convencional obscurece e que são de
natureza fundamentalmente diferente. Primeiramente, o
objetivo sistêmico da integração Norte-Norte, iniciado com
o Plano Marshall, criou uma agenda dominante que é, de
fato, uma agenda unificada do mundo industrializado
como um todo, do qual a OMC é uma expressão. Esta agenda não segue realmente um interesse nacional estreito dos
EUA, ainda que o contexto doméstico force as elites americanas a articulá-lo dessa forma, mais notavelmente no “Projeto para um novo século americano” que vale como o
Manifesto Bush3. Há uma tensão difícil nessa contradição.
Em segundo lugar, as duas décadas passadas testemunharam um desenvolvimento muito significativo das políticas
EUA-Norte na direção do que eu poderia chamar de “imperialismo estrutural”: formas indiretas de influenciar, usando o discurso do pluralismo político e da “governança ”,
canalizando a influência por meio de atores da sociedade
civil ou ONGs4. Isso deveria garantir uma hegemonia sobre
o processo de democratização que emergiu naturalmente
do enfraquecimento das ditaduras militares características
da Guerra Fria. Este método indireto também operou no
sistema internacional, onde a hegemonia pode ser exercitada por meio de instituições. O aspecto econômico disso é
a OMC, mas inclui também um componente militar: o projeto “Nova Ordem Mundial” do
George Bush pai. Nesse projeto
estão novas formas de lei internacional que poderiam justificar
as “intervenções humanitárias”.
De repente, no entanto, apareceu
uma tendência estranha e contraditória que se posiciona desconfortavelmente ao lado desse imperialismo estrutural: a chamada “guerra
ao terror”, que é, na verdade, uma
fase extremamente militarista de preparação para a supressão de qualquer movimento popular ou de Estados que recusam os nichos a eles reservados pela agenda
dominante. As potências da OTAN estão dizendo abertamente
agora o que sempre esteve implícito na divisão Norte-Sul: que
os objetivos sistêmicos da integração e cooperação internacional são apenas para o uso entre eles mesmos, e que todos os
outros são para ser tratados por meio da violência total.
Um conselheiro chave de Tony Blair na Grã-Bretanha colocou
bem esta questão: “quando lidar com Estados antiquados fora
do continente pós-moderno da Europa, nós precisamos voltar
aos métodos rudes de tempos passados – força, ataques preventivos, fraude, seja o que for necessário para lidar com aqueles que ainda vivem no mundo do século 19, de cada Estado
por si”5. Por suas violações calculadas à lei e às instituições internacionais, a “guerra ao terror” sabota seriamente a viabilidade da estratégia indireta. Como essa estratégia indireta não
Com o declínio da Guerra
Fria, o interesse nacional
norte-americano foi
redefinido como a proteção
de sua dominação sobre o
conhecimento
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OPINIÃO: ELEIÇÃO AMERICANA
pode ser abandonada, os poderes estão condenados a preservar instituições como a OMC, que ao mesmo tempo dificulta a realização de certos interesses específicos.
A colocação do problema pode ajudar a pensar uma estratégia de resistência para países em desenvolvimento. Por um
lado, a segurança imediata deve ser defendida, considerando-se segurança num sentido amplo, incluindo a sobrevivência das massas. Por outro lado, é necessário repensar os objetivos sistêmicos. Hoje, em muitos lugares do Sul, incluindo o
Brasil, estão sendo exploradas novas formas radicais de tomadas de decisão populares em diferentes níveis, potencialmente um tanto diferente da agenda manipulada da sociedade civil, governança, descentralização, etc, nas quais os
poderes hegemônicos encontrarão dificuldades para sustentar o conceito de violência total da “guerra ao terror”.
Por meio desse pluralismo ampliado, deveria ser possível gerar
um novo tipo de movimento em busca dos objetivos sistêmicos,
construindo sobre os aspectos positivos do “movimento do terceiro mundo” dos anos 1970, mas menos estreitamente
centrado no Estado. Se a atual fase repressiva é realmente – e
parece ser – uma resposta preventiva para uma crise estrutural
da política econômica que se aproxima, então o debate sobre
objetivos sistêmicos precisa tratar questões maiores de uma
desejável e humanista solução para esta crise.
1 Queuille, P., L’Amerique latine - la Doctrine Monroe et le Panamericanisme, Paris : Payot, 1969.
2 Roosevelt, Theodore, Annual Message to Congress, 6 December 1904.
3 Donnelly T. et al, Rebuilding America’s Defenses - Strategy, Forces and Resources For a New
Century, Washington DC: Project for the New American Century, 2000.
4 c.f. Robinson, William L, Promoting Polyarchy – Globalisation, US Intervention and Hegemony,
Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
5 Cooper R., “Why we still need empires”, The Observer , April 7, 2002.
Robert Biel é professor na Unidade de Planejamento do Desenvolvimento no
University College, de Londres, e autor de The New Imperialism – Crisis and
Contradictions in North-South Relations (Londres, Zed Books, 2000).
As redes do poder global
Gloria Moraes
A poderosa estrutura de telecomunicações que sustenta o império
As telecomunicações, desde a sua origem, estiveram associadas à defesa nacional. E hoje, mais do que nunca, constituem uma estrutura global de poder da qual os EUA dependem
para a manutenção e expansão do seu poder imperial, no
campo das armas, da moeda, da produção, das idéias e do
conhecimento. Susan Strange, em States and Markets (1994),
diz que um mercado por si só não determina o seu regime
tecnológico e muito menos constitui um poder dominante, a
não ser que a ele seja permitido, por quem quer que detenha
o poder ou a autoridade, o exercício desse papel. Da competição acirrada que se seguiu à mudança de tecnologia
analógica para digital, que promoveu a convergência
tecnológica, emergiu um exuberante mercado de equipamentos, serviços e aplicações, envolvendo poderosas estruturas de pesquisa e desenvolvimento e aportes elevados de
capitais. Entretanto, por baixo desse mercado, como parte
de uma ‘agenda escondida’, encontra-se o poder que determina o relacionamento entre autoridade e mercado.
No processo de conformação das telecomunicações, constituíram-se dois padrões distintos: o modelo europeu e o modelo norte-americano. O primeiro seguiu o rastro do Estado
do Bem-Estar e originou as Postal Telegraph and Telephone
– PTT’s, autarquias governamentais, monopolistas, que operavam sistemas integrados e impulsionaram as atividades de
P&D e as indústrias de telequipamentos européias. O segundo modelo formou-se à sombra do projeto expansivo dos EUA,
com estrutura oligopolista, regulamentada pela Federal
Communications Commission (FCC), uma autarquia responsável pelas concessões, conectividade e padronização de equipamentos. Com barreiras legais a novos entrantes, na indústria e em broadcasting prevaleceu a estrutura de concorWWW.OFICINAINFORMA.COM.BR
rência entre oligopólios privados; e na prestação de serviços
de telefonia e de telegrafia foi instituído o regime de monopólio privado1. Esse modelo perduraria até 1982, quando o
Congresso dos EUA aprovou um novo sistema abrindo os mercados locais à concorrência e quebrando o monopólio da AT&T
que permaneceu apenas na longa distância2.
Ao fim da Guerra, quando o domínio da tecnologia nuclear e
de mísseis teleguiados exigiu maior coesão entre pesquisa científica, engenharia e segurança, o Departament of Defense
(DOD) tomou a dianteira das articulações entre os interesses
de Estado e das corporações norte-americanas3. Sob a coordenação do DOD originou-se um “complexo militar-industrialacadêmico”, que deu aos EUA a dianteira tecnológica em inúmeros segmentos relacionados à segurança, dentre esses o de
telecomunicações. No campo “aliado”, no pós-Guerra, tornouse inconteste a superioridade dos EUA, no campo militar, na
produção e nas finanças, e à sua política externa foi incorporada a difusão de valores econômicos, políticos e culturais.
Com a Guerra Fria, apoiada na convicção de que armamentos tecnologicamente superiores são decisivos para a manutenção do poder global, o DOD ganhou maior importância,
expandindo a doutrina da “segurança nacional” para vários
segmentos. A condução da disputa espacial e a criação da
National Aeronautics and Space Administration (NASA) exigiram um elevado montante de recursos do governo. O Projeto
Apollo, que levaria o homem à Lua em 1969, mobilizou cerca
de 350 mil pessoas e a montagem de uma complexa rede de
sistemas integrados de telecomunicações. Foi a partir do
Semiautomatic Ground Enviroment (SAGE), criado em 1950,
e de suas demandas militares para comando e controle do
espaço aéreo que a engenharia de sistemas evoluiria, migranREPORTAGEM N.63 DEZEMBRO 2004
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Guerra do Vietnã/ Pesquisa ODI
do, posteriormente, para aplicações empresariais. Do SAGE
saíram as soluções para o processamento de informações em
tempo real, originando a mudança da tecnologia analógica
para a digital, além da ampliação dos sistemas de memória.
A descoberta de novos materiais e semicondutores, aliados
aos avanços tecnológicos na área de transmissão de dados,
deram aos EUA a primazia da condução da trajetória
tecnológica em comunicação.
Sob a coordenação do DOD, também foi criada a Advanced
Research Projects Agency (ARPA), com o objetivo de integrar
uma rede descentralizada voltada para a pesquisa com fins
militares e geradora de conhecimentos de ponta. A rede tornar-se-ia um laboratório dos sistemas de transmissão de dados, ao integrar, em tempo real, a vasta rede de pesquisadores. Nela foi gerada a teoria de comutação por pacotes e o
conceito de Intergalactia Network, origem do nome Internet.
Em 1966, o projeto ARPA Netwoks (ARPANET), também em
parceria com o MIT, ampliou a rede de colaboradores e a ela
interligaram-se os nós de várias Universidades, como a de Los
Angeles, Stanford, de Santa Bárbara Califórnia, de Utah e de
Harvard. Ao mesmo tempo, as de Michigan e de Wayne colocavam no ar outra rede, com protocolo X.25, para uso universitário. A criação do e-mail pela Bolt, Beranek and Newman
Technologies (BBN) agilizou a comunicação em tempo real,
consagrando a Internet e o sinal @4.
Dada a importância estratégica da rede e das informações
que nela trafegavam, em 1975, a gestão operacional da
Internet foi transferida oficialmente para a Defense
Communications Agency (DCA). Um pouco depois, difundiuse a tecnologia satélite para a transmissão de dados e, em
conjunto, o DOD e a ARPA referendaram a divisão de protocolos de controle para a sua operação. O Transmission Control
Protocol (TCP) foi dividido em TCP e IP – Internet Protocol, um
gateway para o livre trânsito de informações, usado até hoje
na Internet5. No rastro da Internet, a AT&T evoluía no segmento de transmissão de dados e, junto com ela, uma leva
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REPORTAGEM N.63 DEZEMBRO 2004
de pequenas empresas que usavam tecnologia de ponta e
que originariam o núcleo do Vale do Silício.
Depois da crise dos anos 1970, os EUA redesenharam a sua
política externa. A nova política avançaria em direção a confrontos decisivos com a URSS. Uma segunda Guerra Fria acabou se
transformando, no campo tecnológico, em Guerra nas Estrelas,
rompendo fronteiras terrestres e espaciais. Daí para frente, a
condução da nova política externa dos EUA dependeria, cada
vez mais, de uma estrutura dinâmica, na qual as telecomunicações desempenhariam papel fundamental, tanto no campo da
guerra quanto no da acumulação e centralização do capital6.
Em sua esteira, o sistema regulatório e o mercado de telecomunicações norte-americano adequou-se às necessidades dos
mercados, do capital e às demandas militares. As operadoras
globais norte-americanas romperam fronteiras e expandiramse. A liberalização dos mercados de capitais e de mercadorias exigia uma infra-estrutura global de telecomunicações integrada em escala global, essencial para a realização de operações financeiras em tempo real. Auxiliados pelas instituições supranacionais originadas em Bretton Woods, os EUA
coagiram os demais governos a adotarem, um após o outro,
o seu modelo de telecomunicações. Dotados de maior poder,
os mercados conduziram a indústria e a prestação de serviços de telecomunicações em direção a um novo ciclo de crescimento e acumulação.
O projeto militarista, ainda em curso, tem novos e grandes
projetos. Equipamentos menores, móveis e dotados de grande capacidade, que permitissem monitorar o inimigo e fazer
a guerra à distância, sem que a perda de vidas minasse o
apoio necessário, interna e externamente, tornaram-se
determinantes. Igualmente, fortaleceu-se a idéia de que os
EUA podem controlar o mundo através da dominação estratégica e planejada do espaço, cuja conseqüência primeira foi
o abandono dos acordos de cooperação política e militar, pois
os EUA pretendem impedir outras nações de co-habitar o
espaço orbital. Um de seus projetos é o Ballistic Missil Defense
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OPINIÃO: ELEIÇÃO AMERICANA
– BMD, cujo objetivo é construir, preventivamente, sistemas
de defesas contra mísseis balísticos de outros países. Por sua
vez, o Pentágono elaborou o projeto Joint Vision 2010/2020,
cujo objetivo é o de criar um novo modelo conceitual para as
forças armadas norte-americanas, com a convicção de que
os EUA têm a possibilidade de alterar a própria natureza da
guerra. De acordo com o secretário Cohen, “a tecnologia
garante agora aos Estados Unidos uma oportunidade que
nenhuma outra força armada jamais teve: a habilidade de
ver através da neblina da guerra mais claramente e alvejar
com precisão objetivos a longa distância. Isso significa poder
lutar com invisibilidade, de maneira secreta, furtiva e surpresa, garantindo eficiência a um baixo risco” (Bacevich, 2003:
133). Por baixo dessa imensa rede militarizada, que se expande pela Terra e rompe suas fronteiras em direção ao espaço,
encontra-se uma poderosa infra-estrutura de telecomunicações e o domínio absoluto das tecnologias da informação que
suportam o seu sistema de segurança global.
1 Essa estrutura regulatória foi criada em 9 de julho de 1934, quando o
Congresso dos EUA promulgou o Communication Act e criou a FCC.
2 O processo iniciado em 1972, com uma ação antitruste, só terminou com a
divestiture da AT&T em 1º de janeiro de 1984, quando também as operadoras
regionais foram reunidas em sete holdings independentes, as Regional Bell
Operating Companies – as REBOCs ou Baby Bells. (Dantas, 1996).
3 Várias instituições foram criadas com o objetivo de coordenar as atividades de pesquisas, tais como: o National Defense Research Council (NDRC),
criado em 1941, o Defense Research Board, em 1947 e o Defense Science
Board, em 1956.
4 O sinal @ foi utilizado porque ele significa at (em), mostrando que o usuário
está em rede.
5 Quando a Alemanha e a Coréia se conectaram à rede, em 1983, a ARPANET
já estava desmembrada em ARPANET e em MILNET, esta integrada totalmente à Defense Data Network (DDN), que carregou para a área de segurança 68
dos 113 nós que a rede possuía. Mais tarde, com a promulgação do Freedom
of Information Act (FOIA), de 04 de setembro de 1998, a gestão operacional
da Internet passou para a Defense Information Systems Agency (DISA).
6 A partir de 1985, a liberalização dos mercados financeiros e a desregulação
das taxas de juros, promovidas pelo FED e por seus aliados europeus,
seguidas da valorização “compulsória” imposta ao yen, promoveram uma
verdadeira “financeirização da riqueza”. Na periferia do sistema, com balanços de pagamentos comprometidos por duas crises do petróleo, o aumento das taxas de juros internacionais provocado pelos EUA foi o limite
de trajetórias desenvolvimentistas, cujo padrão de financiamento era externo. Também ela submetia-se, no processo de renegociação de suas dívidas
externas, às políticas da restauração liberal-conservadora.
Gloria Moraes é economista, doutoranda da COPPE-UFRJ.
O óleo que alimenta a guerra
Ernani Teixeira Torres Filho
Nada indica que o petróleo tenha se tornado apenas
mais uma commodity como as outras
Historicamente, foi sua importância militar – e não a econômica – o que colocou o petróleo no centro da geopolítica
internacional. Tudo começou em 1911 quando a Inglaterra
decidiu converter sua armada do carvão – combustível abundante na Grã-Bretanha – para o petróleo – um produto disponível nos EUA ou em países “exóticos”, distantes e politicamente inseguros.
A I Guerra Mundial consagrou a relevância militar do petróleo.
Cavalos e locomotivas a carvão perderam definitivamente lugar para os veículos movidos por motores a gasolina ou diesel.
Na II Guerra, o controle de fontes estáveis de suprimento de
óleo foi novamente um elemento marcante do conflito. O ataque a Pearl Harbor em 1941 foi a resposta imediata do Japão
ao embargo de petróleo imposto pelos Estados Unidos, seu
principal fornecedor. Do mesmo modo, a invasão da União
Soviética e do Norte da África pelos alemães visava o controle
dos poços do Cáucaso e do Irã. A escassez de petróleo foi um
dos principais fatores a frearem os exércitos japonês e alemão,
enquanto a abundância do óleo americano permitiu que a vitória dos Aliados fosse mais rápida. Essa experiência firmou
entre os estrategistas americanos a idéia de que o controle das
principais fontes de petróleo seria um fator crítico para o sucesso dos EUA em quaisquer conflitos no futuro.
Do ponto de vista da oferta, os EUA foram, ao longo da segunda metade do século 20, perdendo sua posição de principal
produtor. Em 1945, mais de dois terços do petróleo do mundo
provinham dos EUA. Hoje mais da metade do petróleo mundial vem da Arábia Saudita, de outras nações do Golfo Pérsico e
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da Rússia e cerca de 70% da demanda americana é atendida
por importações. Os sauditas, além de grandes produtores, também são os: maiores exportadores; donos da maior parte da
capacidade ociosa; e produtores de mais baixo custo. Esses
elementos permitiram que, nos últimos anos, eles atuassem
como “fornecedores em última instância” no mercado. No curto
prazo, ajustam sua produção às flutuações de demanda, garantindo o equilíbrio global entre oferta e demanda. No médio
prazo, são capazes de impor quotas a seus concorrentes sob o
risco de uma guerra de preços que tende a reduzir mais rapidamente a renda de seus adversários. Ao mesmo tempo, conciliam os planos de investimento dos principais ofertantes de
forma a evitar crises. A liderança saudita só pode se efetivar
na medida em que sua própria segurança interna e externa
esteja garantida pela potência hegemônica. A política de disseminação de bases militares americanas no Golfo Pérsico,
desde 1991, é uma clara evidência desse compromisso.
A passagem da liderança de mercado dos EUA para a Arábia
Saudita foi sendo negociada em um processo conturbado por
crises e confrontações que teve três fases.
Na primeira (1945-1973), os centros de decisões eram as grandes empresas anglo-americanas. As “7 Irmãs” estabeleciam
preços estáveis e operavam individualmente o equilíbrio entre
oferta e demanda, integrando no seu interior os diferentes segmentos da cadeia, desde o “poço (de petróleo) até o posto (de
gasolina)”. Suas decisões e ações eram suportadas por contratos de concessão com os governos dos países produtores e por
acordos interempresas que estabeleciam áreas geográficas ríREPORTAGEM N.63 DEZEMBRO 2004
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gidas de atuação, eliminando a concorrência na exploração e
na produção. O mercado apresentava uma tendência de rápido crescimento, 7% ao ano, e a oferta era estruturalmente
excessiva. A segurança global do mercado era baseada em
um condomínio anglo-americano. À Inglaterra, antiga potência colonial, cabia a responsabilidade direta pela segurança interna e externa dos países do Oriente Médio, inclusive por meio
da presença de tropas estacionadas na área. Os EUA eram os
“ofertantes de última instância” e
garantiam não só sua própria segurança energética, mas também a
da Europa.
Na segunda fase (1973-1982), o
mercado de petróleo estagnou. As
grandes petroleiras perderam o
controle da produção para os países exportadores. Mantiveram, no
entanto, o domínio sobre as atividades de refino e distribuição e
continuaram a promover o “equilíbrio de mercado” no seu interior, através de frágeis contratos de compra e venda de longo prazo, que prefixavam preços e quantidades. A falta de capacidade ociosa na produção
de petróleo e a sucessão de crises na economia internacional
e no Oriente Médio tornaram letra morta esses novos contratos, sujeitando os preços a grande instabilidade.
A Arábia Saudita tornou-se, a partir de 1973, o “ofertante
de última instância”. Disputou a liderança de mercado, inicialmente, com o Irã e, posteriormente, com a União Soviética.
As tentativas da OPEP e da Arábia Saudita de estabelecerem
preços estáveis redundaram, na prática, no aumento do
market-share dos países independentes em detrimento dos
sauditas, graças ao aumento da oferta de óleo em outras
regiões, como o Mar do Norte, em um contexto de demanda
global cadente. Com a retirada das tropas britânicas, a segurança dos países do Golfo Pérsico passou a ser administrada
inicialmente pelo Irã e pela Arábia Saudita, a partir de acordos bilaterais com os Estados Unidos. Este sistema entrou
em colapso a partir da Revolução Iraniana (1979).
A terceira fase, a partir de 1985, vem sendo caracterizada por
um baixo crescimento da demanda e pela existência de limitada capacidade ociosa, concentrada na Arábia Saudita. As petroleiras ampliaram sua desintegração operacional. As relações
entre empresas e países exportadores passaram a ser multilaterais e flexíveis. Os preços passaram a ser formados a partir
de milhares de contratos transacionados em mercados spot e
a futuro, na medida em que os países produtores se sujeitaram
ao netback1. O gerenciamento de curto prazo é feito através
de um sistema de cotas de produção e de banda de preços
administrado pela OPEP. A segurança do Golfo Pérsico passou
a ser diretamente administrada pelos Estados Unidos.
Há uma correspondência entre cada um dos três padrões de
ordenamento do mercado de petróleo e as mutações da hegemonia americana nos mesmos períodos. Entre 1945 e 1973, a
hegemonia dos EUA era completa. Entre a vitória da 2ª Guerra e
a derrota do Vietnã, o mundo ocidental submeteu-se ao poder
militar e econômico americano em um contexto de Guerra Fria.
Graças à supremacia do dólar fixo, os contratos de longo prazo
eram formados com preços estáveis. Simultaneamente, as petroleiras americanas invadiam espaços antes dominados pelos
europeus, particularmente os ingleses, expulsos pela
descolonização apoiada por Washington. O rompimento desse
ordenamento foi decorrência da crescente contestação da hegemonia americana. Enquanto o dólar sujeitava-se a desvalorizações e o exército americano era derrotado no Vietnã, as petroleiras eram obrigadas a ceder seus direitos sobre as fontes de
produção para os governos nacionais
concedentes. O fim relativamente
abrupto – mas previsível – das condições estruturais de excesso de oferta de petróleo, vigentes desde a década de 20, consolidou e amplificou
a desestruturação da ordem internacional. Não é por acaso que o 1º
Choque do Petróleo é o marco final
do chamado “período de ouro” do
capitalismo do pós-guerra.
A incapacidade de os EUA conseguirem, de imediato, impor um novo ordenamento internacional deixou o mercado de petróleo sujeito a grande instabilidade. A fraqueza da moeda americana, aliada a uma situação
de escassez estrutural de oferta, tornou impossível a retomada
de um relacionamento estável entre petroleiras e países exportadores. Ao mesmo tempo, a tentativa de suprir o vácuo
deixado pelas tropas inglesas do Golfo Pérsico por uma
gendarmeria iraniana, teve um final breve em 1979 com a inesperada ascensão dos aiatolás ao poder em Teerã.
Uma nova ordem estável do mercado de petróleo só foi obtida a partir de meados dos anos 1980, pela conjugação de
dois elementos novos. A retomada do dólar como padrão
monetário internacional em um novo ambiente de taxas de
câmbio flexíveis teve como corolário a re-regulação dos principais mercados de commodities em consonância com esses princípios. Em lugar de quantidades e preços pré-fixados, os contratos passaram a ser regidos por expectativas
voláteis em um ambiente de incerteza. O princípio do
netback submeteu os produtores aos preços de curto prazo
bem como às curvas de preço a futuro, baseadas em expectativas de desempenho e de liquidez globais da economia mundial. O cartel dos países exportadores, sob liderança saudita, transformou-se no gerenciador da oferta de forma a garantir que o preço do “ouro negro” se mantivesse
dentro de bandas de flutuação prefixadas.
Esse novo padrão flexível do mercado de petróleo tem se
mostrado extremamente resistente a crises sendo um dos
elementos básicos de suporte e de estabilidade do poder
americano.
A incapacidade dos EUA
conseguirem impor um
ordenamento internacional
deixou o mercado de
petróleo instável
50
REPORTAGEM N.63 DEZEMBRO 2004
1 O netback pricing refere-se a um sistema em que o preço de oferta de um
bem – no caso o petróleo – é estabelecido com base em seu preço de
demanda final – o dos derivados de petróleo (gasolina, diesel, óleo combustível etc.) – menos uma margem que remunere os custos ao longo da
cadeia – transporte, revenda, distribuição e refino.
Este artigo é uma versão resumida de “O Papel do Petróleo na Geopolítica
Americana”, publicado em novembro de 2004 na coletânea organizada
pelo Professor José Luís Fiori, “O Poder Americano” , pela Editora Vozes.
Ernani Teixeira Torres Filho é professor Doutor do Instituto de Economia
da UFRJ e economista do BNDES.
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