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COMPORTAMENTO Tema: Quem Tem Medo da Pornochanchada? Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse Os gêneros ligados ao erotismo no cinema brasileiro nos anos 70 e 80, sejam eles o drama, a comédia ou o thriller, eram enquadrados, de modo pejorativo, como “pornochanchada”. Durante muito tempo o preconceito contra o cinema brasileiro estigmatizou a chamada “pornochanchada” como sinônimo de falta de qualidade, pois era corriqueiro dizer que filme brasileiro só tinha “sexo e palavrão”. O fato é que na época em que esses filmes eram produzidos, o público enchia as salas de cinema e grande parte da crítica desprezava os filmes. Sendo assim, o sexo foi um dos principais assuntos do cinema brasileiro durante as décadas em que a pornochanchada foi realizada. O programa, portanto, trabalha as abordagens que o cinema brasileiro fez do sexo, desde o erotismo nos filmes Amada Amante, de Claudio Cunha, A Dama do Lotação, de Neville de Almeida, passando por Eu Te Amo, drama existencial “de apartamento” de Arnaldo Jabor, e terminando com a comédia Os Bons Tempos Voltaram – Vamos Gozar Outra Vez, de John Herbert e Ivan Cardoso. Apresentação dos filmes e das questões Amada amante (1978), de Cláudio Cunha Augusto e sua família, que moraram a vida inteira no interior de São Paulo, se mudam para o Rio de Janeiro em virtude da transferência de seu trabalho para a capital carioca onde deve montar uma filial. Porém, é advertido pelo chefe que deve tomar cuidado com o Rio de Janeiro, a tentação lá é grande. Augusto, conservador, replica: “eu jamais prevariquei!”. Sua esposa Tide e de seus filhos Fátima, Marita e Zequinha, passam a morar em um apartamento amplo em Ipanema. O pai, preocupado com os filhos, os controla e os reprime para que não cedam à imoralidade do Rio de Janeiro. Acontece que todos os filhos, inclusive Augusto e sua mulher, se veem envolvidos em situações tentadoras. Augusto com a secretaria. Fátima, com um playboy da praia, Zequinha com a vizinha, Marita (a caçula) com uma amiga. O filme é representante da segunda geração de diretores da Boca do Lixo (como Jean Garret e Alfredo Sternheim), que primavam por um trabalho cênico, plástico e dramático mais sofisticados. Cláudio Cunha foi no fim dos anos 70 um dos produtores de maior sucesso na boca paulistana. Amada amante foi seu primeiro filme realizado no Rio de Janeiro. A música do filme (com a letra repleta de duplos sentidos) é do bossanovista Carlos Lyra e o roteiro de Benedito Ruy Barbosa. Como pode ser ver, o filme se adéqua ao rótulo de “pornochanchada” por ser de uma produtora da Boca do lixo, por conter uma abordagem erótica e um tema que trata de sexo, porém, está longe do estereotipo de filme de fatura precária e técnica primária. Na época, o cineasta dizia que qualquer filmes que fizesse seria tratado por “pornô”, mesmo que os gêneros fossem outros. Amada amante é uma crônica de costumes, crítica da moral e da família. Na época das filmagens, Cunha entrou em disputa judicial com Luiz Carlos Barreto em razão do título do filme. Barretão alegava que ela havia comprados os direitos da música de Roberto Carlos (Amada amante) e seu filho, Bruno, havia começado a filmar um longa-metragem com o mesmo nome. A justiça deu causa ganha ao cineasta Cláudio Cunha. Bruno Barreto mudou o nome de seu filme para Amor bandido e fez 500.000,00 espectadores. Amada amante, de Cláudio Cunha fez 1.800.000,00 A dama do lotação (1978), de Neville de Almeida Quando Neville de Almeida realizou A dama do lotação (1978), Arnaldo Jabor era outro cineasta surgido no celeiro do cinema moderno brasileiro (Jabor no cinema novo, Neville, no marginal) que já havia realizado dois filmes baseados em obras de Nelson Rodrigues: Toda nudez será castigada (1973) e O casamento (1975). Enquanto Jabor olha para Nelson Rodrigues por meio da austeridade do teatro (toda nudez...) e do romance (o casamento), Neville recorre a uma crônica. Há uma diferença fundamental ai. A crônica pelo seu formato mais ligeiro e sua abordagem mais despojada, abre precedentes para uma abordagem erótica menos pesada e mais corriqueira. Aqui não se está no dramático/trágico/romanesco como Jabor, mas na crônica de costumes, ou seja, os personagens tem menos uma dimensão arquetípica e mais comum. Um olhar mais direto para a matéria provocativa de Nelson Rodrigues. A dama do lotação conta a história de Solange (Sonia Braga) e Carlos (Nuno Leal Maia), namorados desde a infância que se casam, entretanto, na lua de mel, Solange resiste ao sexo e Carlos a estupra. Depois disso não terá mais relações com o marido, mas sim com vários outros homens em situações inusitadas. O filme, na época, não foi valorizado como as adaptações de Jabor, por ser considerado mais vulgar, apesar do próprio Nelson ter preferido o filme de Neville ao de Jabor. Neville de Almeida, oriundo do cinema marginal, tinha um humor caustico, menos dado à análises sociais e mais à observação das taras dos personagens de modo mediado pelas significações de antemão. O filme fez quase 7 milhões de espectadores. 2 Eu te amo (1981), de Arnaldo Jabor Glauber Rocha em uma carta publicada no livro “Cartas ao mundo”, organizado por Ivana Bentes, diz que Arnaldo Jabor era péssimo cineasta e fazia pornô-chiques. Glauber Rocha exagerou, mas é natural o estranhamento: Jabor era o diretor ligado ao cinema novo que mais se preocupou em filmar a classe média alta e suas neuroses, todas com o sexo como elemento fundamental. Daí sua relação com o universo de Nelson Rodrigues. Eu te amo faz parte da trilogia do apartamento, composta também por Eu sei que vou te amar e Tudo bem. Como estes também se passa integralmente em um apartamento. Algumas cenas do filme, como o de Vera Fischer beijando a imagem de Paulo Cesar Pereio na TV, se tornaram icônicas. O filme trata de industrial arruinado em pleno milagre econômico nos anos 70 e se lançando a jogos eróticos com uma mulher, o que os afasta mais do que os aproxima. É um filme cheio de diálogos e monólogos densos e às vezes bem humorados - e lida com vários temas como sexo, dinheiro, amor. Mesmo sendo um trabalho sui generis, fez 3 milhões e 500 mil espectadores. Os bons tempos voltaram - vamos gozar outra vez (1984), de Ivan Cardoso e John Herbert Os bons tempos voltaram, vamos gozar outra vez é um filme de dois episódios (Sábado Quente, de Ivan Cardoso e Primeiro de Abril, de John Herbert) que é mais de autoria do produtor Anibal Massaini do que dos diretores Ivan Cardoso e John Herbert. Massaini os contratou quando o projeto já estava em andamento. John Herbert era ator experiente e Ivan Cardoso era artista plástico, fotógrafo, cineasta superoitista ligado aos poetas e artistas concretos e neoconcretos e integrante do cinema marginal, tendo sido assistente de Rogério Sganzerla e Julio Bressane, além de ter dirigido o experimental O segredo da múmia no ano anterior. Ou seja: John Herbert estava em casa, mas Ivan Cardoso que tinha vindo de movimentos vanguardistas caiu de paraquedas dentro de uma comédia de sexo com pretensões comerciais. Só que Massaini, apesar da marcação pesada deu liberdade aos diretores. Principalmente o episódio de Cardoso tem sacadas de roteiro e um trabalho plástico e estilístico baseado nas indumentárias dos anos 50 e o de John Herbert fazendo troças com os militares. O filme lançou Pedro Cardoso, Marcos Frota, Alexandre Frota e Carla Camurati. É a típica pornochanchada: produto encomendado por um produtor de olho no mercado. O filme foi sucesso. Material anexo Por dentro e por fora das pornochanchadas 3 Brasil, 2002. Na maior rede aberta de televisão, um dos sucessos de ficção do momento, O Quinto dos Infernos, deve boa parte do seu sucesso na medição de audiência, sem dúvida, ao teor intencionalmente erótico de algumas cenas. Da mesma maneira, nos noticiários e peças de divulgação da principal atração "documental" , o chamado 'reality show' Big Brother Brasil, invariavelmente chama-se a atenção dos espectadores para a conduta sexual dos personagens participantes, o mesmo acontecendo no ‘reality show’ exibido pela concorrência, a Casa dos Artistas. Bem, a intenção desse texto não é a de formular um juízo negativo sobre esse fascínio de muitas pessoas pelas estrepolias sexuais dos outros. Nem tampouco será analisar as atrações televisivas mais curiosas nos dias de hoje – para isso já temos aqui na Contracampo artigos específicos na nova seção de Televisão. O interesse desse artigo e de toda essa pauta é perceber pontos centrais da exuberante produção de filmes com tons eróticos, feitos num certo período do cinema brasileiro compreendido entre a década de setenta e o início da de oitenta. Especificando ainda mais, parece fundamental entender a relação estabelecida por este(s) gênero(s) de cinema e sua forma mais constante e representativa – a pornochanchada – e seu público. Mas não apenas aquilo que se convencionou chamar de "pornochanchada". Me parece evidente que precisamos olhar com novos olhos para o apelo que este cinema sedutor exerceu sobre a platéia, desde A Mulher de Todos, marco do cinema chamado Marginal – cujo sucesso nas bilheterias, que muito se deveu à generosa interpretação da estrela Helena Ignez, sugeriu um caminho a ser trilhado para vários produtores de cinema, sobretudo na capital paulista –, seguindo pelas comédias de costumes mais safadas, seguidoras de uma tradição próxima de um certo gênero italiano de cinema, até suas manifestações críticas e tardias, já em meados dos anos oitenta, incluindo nisso a conseqüente evolução de alguns realizadores e produtores para o cinema explicitamente pornográfico. Não sei se é do conhecimento de todos os leitores, mas, há cerca de dois anos, o lançamento do filme Tolerância foi envolvido por uma falsa polêmica em torno de suas cenas com situações sexuais – coisa semelhante já tinha acontecido com Um Copo de Cólera, mas nesse caso sem dúvida com uma conotação bem menos negativa. No caso de Tolerância, bastante tinta foi desperdiçada para criticar o fato do cartaz do filme (e equivalentes capas de vídeo e afins) exibir a atriz Maitê Proença, protagonista do filme, vestida com um sumário baby-doll. É o tipo da imagem que chama a atenção de um grande números de possíveis espectadores, e decerto isso pareceu "apelativo" para os que esperam que o cinema nacional tenha bons modos. Pois é. De alguma forma, ainda é preciso voltar a esse assunto. Em 2001 foram exibidos em telas brasileiras trinta e seis novos filmes nacionais e uma reprise. Não resisti a comparar as tabelas da virada dos anos setenta para os anos oitenta com a deste ano. Escolhendo 1978 à guisa de comparação, vemos que neste ano tivemos 81 filmes 4 lançados no ano – sendo que vinte e dois deles tinham contratos de co-produção ou distribuição com a Embrafilme. Num país com quase três mil salas de cinema, o número de espectadores dos filmes nacionais foi de quase 62 milhões de pagantes – representando 29% da venda de ingressos no ano. Peço licença aos leitores para seguir no emaranhado de números. (Antes de se eleger, George W. Bush fez do seu lema de campanha a frase: - Chega de números complicados!). Em 2001, 36 filmes foram lançados no ano, em sua maioria dependentes de grana vinda de renúncia fiscal, e tivemos pouco mais de 7 milhões de espectadores pagantes – representando 8,2% da venda de ingressos neste ano que acabou. Não custa lembrar, claro, que em 1999 foram lançados 26 filmes e em 2000 foram lançados 28 filmes. Observando as estréias de 2001, acho curioso notar que quase nenhum dos filmes recentes arriscou adicionar teores eróticos à trama apresentada - claro, é preciso mostrar a uma certa platéia que o tempo da nudez apelativa passou. Há exceções, decerto – Minha Vida em Suas Mãos ou Bufo & Spallanzani, talvez. Mas os dois filmes com pendores eróticos mais claros a serem exibidos no ano passado, ao que me parece, foram As Feras e Dona Flor e Seus Dois Maridos (relançamento). Curioso, não? Dois filmes que, tendo sido exibidos, no entanto parecem não pertencer ao ano que passou. As Feras, o estranho e irregular filme de Khouri, já foi finalizado há anos – fora o fato de que conta em sua trama com imagens feitas no início dos anos oitenta. E Dona Flor é Dona Flor, o filme com o maior registro de venda de ingressos na história do país - e, no entanto, naufragou em seu relançamento. Relançamento este que, diga-se, acrescentou à trama original elementos que tornam ainda mais clara a filiação (ainda que envergonhada) do filme à tão temida pornochanchada. Isso parece indicar que não há mais espaço garantido para o cinema erótico dentro deste formato de exibição de filmes que temos hoje nas salas de cinema, dentro de seus shopping centers bem-vestidos. O espectador do cinema erótico parou de ver seus filmes nas salas dos centros, refugiou-se em casa com seu vídeo (agora DVD). E com seu Quinto dos Infernos. Certo. Mas nada justifica que se aceite esta grotesca simplificação de que os filmes eróticos levaram o cinema nacional à falência, nem tampouco este mito pedante e broxante de que não há nada a se descobrir de criativo nos filmes dessa época. Não justifica que aceitemos o mito de que filmes que claramente dialogam com o formato da pornochanchada e procuram seu público sejam vistos à parte, como se fossem um corpo estranho a lidar sofisticadamente com a podridão. Necas, nada feito. Quando Joaquim Pedro fez Guerra Conjugal ou o curta Vereda Tropical, quando Person fez Cassy Jones O Magnífico Sedutor, quando Jabor fez Eu Te Amo – em todos estes momentos os diretores claramente flertavam com um público já predisposto a entrar nas salas para assistir aos filmes eróticos brasileiros (e, ao mesmo tempo, punham em crise os pressupostos do gênero, como mais tarde fez Reichenbach). 5 No entanto, cria-se essa bizarra diferenciação: Eu te Amo não é pornochanchada, é drama erótico – então o filme do Sílvio de Abreu, Mulher Objeto, então também passa a ser, não é? Dona Flor e Seus Dois Maridos não é pornochanchada, de fato é uma comédia erótica, mas tem grife, 'é bem-feito', Xica da Silva é filme histórico, não tem nenhuma relação com a pornochanchada... Bem, David Cardoso também produziu seus filmes históricos e suas adaptações ousadas de escritores brasileiros. Me parece que mais uma vez surgiu o preconceito contra o cinema que agradava ao populacho, e esse rótulo 'pornochanchada' não me parece ser mais firme, mais consistente, que o rótulo que o inspirou, 'chanchada'. Vale como definição grosseira de um certo formato histórico, entendendo-se por grosseira o fato de que esta definição (comédias eróticas, ocasionalmente dramas, de baixo orçamento feitos num certo período, certo?) será por demais imprecisa e limitada. Chamar um filme de 'pornochanchada' foi inicialmente, mais uma vez, uma maneira de desmerecer a priori um certo tipo de manifestação cultural que, provocando o interesse da plebe, não foi digerido de imediato por uma certa classe "bem-pensante". Como já disse um colega meu aqui da revista, quando se assiste a um filme, há quem ache obscena um cena de sexo que lhe pareça "gratuita", há quem ache obscena uma cena de assassinato que lhe pareça "gratuita" – a diferença estará no que cada um considera obsceno. Não que aqueles filmes que se pode chamar de ‘pornochanchadas’, com mais ou menos precisão e purismo de ocasião, sejam todos obras-primas incontestes ou que aquela produção de cinema seja um modelo a ser seguido. Não, decerto teremos muitos pontos problemáticos a notar em cada enfoque, em muitos filmes. Mas não importa aqui descobrir exatamente a quantidade de obras-primas e de filmes péssimos. Cabe, sobretudo, notar a chance de dialogar e produzir idéias que um certo formato histórico teve, a partir da descoberta de um viés de contato com seu público – o viés erótico, sem pudores. Tendo, eventualmente, seu tom machista ou reacionário, mesmo assim teve esse formato o mérito de exibir para nós um imaginário que despertou o interesse em seu público – o que significa que ao mesmo tempo retratou-o e ajudou a moldá-lo. Que este imaginário tenha se voltado ainda mais reacionariamente contra essa produção, essa é a ironia histórica suprema – não estaria de acordo com a realidade a idéia de que o "feio" cinema brasileiro só mostra palavrão e sacanagem só existe nas classes abastadas, creio eu. Compreender o percurso dessa mudança é ver como um mito se estabelece como um preconceito cultural – mas, mais do que compreender, é preciso tentar desmistificar. Já se falou bastante da função catártica da arte, da necessidade que todos temos em canalizar nossos sentimentos e desejos escondidos para personagens, estórias, imagens e sons. Fugindo um pouco de uma avaliação moralizante rastaquera, que poderia se indignar diante do oferecimento de mero circo à plebe, podemos tentar imaginar a riqueza do diálogo que se pode construir a partir daí – assim, ao mesmo tempo que sacia 6 a sede da sua platéia por espetáculos violentos, o narrador pode também despertar nela curiosidades e questionamentos até então inesperados ou ocultos. Isso acontece com filmes violentos diversos – e também acontece com o melhor do cinema erótico. Exemplos estrangeiros não faltam – para ficar em nomes conhecidos, temos os filmes de Borowczyk, Oshima, D'Amato, Tinto Brass – mas eles ficarão para outras ocasiões. Quanto aos exemplos brasileiros, nunca é demais descobri-los ou reentendê-los – e a Contracampo trata de destrinchar alguns desse período específico nessa edição. Daniel Caetano Contracampo Disponível em: http://www.contracampo.com.br/58/33.htm A rica fauna da pornochanchada Como todo gênero, a pornochanchada também erigiu seus personagens típicos. Nada da mãe mexicana do melodrama ou do cavaleiro solitário do western. Ancorou-se em personagens nossos, muito nossos, comuns na vida doméstica brasileira - vida essa que a pornochanchada como gênero conseguiu levar para a tela mais do que qualquer outra contribuição, seja de um autor ou de outro gênero. Aproveitando-se de não precisar de crivo moral, esse gênero sempre tão mal-olhado e pouco estudado pôde dar livre vazão a tudo que não era de bom tom e de que todavia o país esteve sempre cheio: machismo, assédio dentro da empresa, sexo como ascendência social ou moeda de troca, recalque sexual tanto de mulheres como de homens (um recalque que pode remeter ao recalque existencial terceiro-mundista do brasileiro ou ao recalque social e político de se viver numa ditadura), tudo isso profundamente enraizado em nossa cultura e geralmente muito pouco trabalhado – pensamos, de imediato, apenas em Nélson Rodrigues (sabiamente apropriado por diretores mais "eruditos" da pornochanchada) e Martins Pena que, sendo de outro século, serve pouco para captar as intrigas da classe média brasileira. A pornochanchada vai criar e/ou retrabalhar uma gama de personagens que permanece até hoje no nosso imaginário, seja pelo poder de evocação delas, seja pela reapropriação que delas fizeram os programas humorísticos dos anos 80 (Jô Soares, ator de pornochanchada, ou Manuel da Nóbrega e seu filho Carlos Alberto). Abaixo, seguem alguns mais típicos. O GARANHÃO CAFAJESTE Depois de uma breve experiência em 1961, com Os Cafajestes, a figura do garanhão cafajeste volta com força total a partir do final dos anos 60, na figura de dois atores-produtores-roteiristas: Jece Valadão e Reginaldo Faria. O modelo é simples: um malandrão que tem como única finalidade na vida correr atrás de um rabo de saia. Além de ser bom para os produtores-atores, é bom para o público, que fica inebriado pela profusão de garotas bonitas que passa pelas telas e pelas mãos dos galãs. O ano de 1968 é especialmente deflagrador: Os Paqueras (Faria) e As Sete Faces de um Cafajeste (Valadão). Enquanto os dois galãs brigavam para ver quem conseguia mais meninas por filme, em São Paulo surgia outro ator-produtor, o indefectível David 7 Cardoso. Só ele seria capaz de interpretar um dono de empresa de ônibus que cede um de seus carros gratuitamente para um colégio de freiras realizar uma excursão. Claro, é ele que vai como motorista. Os resultados são impressionantes. O nome do filme? Dezenove Mulheres e um Homem, de 1977 A VIRGEM PROFISSIONAL Herança de toda sociedade católica e particularmente da brasileira – onde a hipócrita religião oficial encontra-se com as poucas chances típicas do terceiro mundo –, a virgem profissional – ou a virgem como moeda de negócios – é a forma de uma família em apuros ter chances de ascendência social graças a um marido rico. Resta, então, como em Ainda Agarro Essa Vizinha, de deixar a pobrezinha e assanhada Adriana Prieto casta até que ela consiga um bom partido. Adriana Prieto, por sinal, se tornará a mais típica virgem profissional, pois repetirá o mesmo personagem em A Viúva Virgem. Ela é perfeita para isso: o rosto de menina com um pé tanto na inocência quanto na molequice, com aparência de anjo (era magra demais para ser uma gostosona) e olhos de menina experimentadora. Em Pintando o Sexo, uma espécie diferente de virgem profissional surge: a autoconsciente. Ela, junto com sua vovó, vivem de passar o golpe da falsa virgem nos velhos tarados. Aliás, só existe virgem profissional quando junto a uma vovó ou alguma aparentada, geralmente a titia malandrona. O VELHO TARADO Uma das primeiras ocorrências pré-comédia erótica desse personagem está em Crônica da Cidade Amada, de Carlos Hugo Christensen. É Oscarito, num esquete particularmente hilário em que, família a tiracolo, fica babando pelas menininhas na praia. A partir de então, o personagem do velho tarado (geralmente nem muito velho) será perfeito para os melhores comediantes exercerem seus tipos antológicos. Como Cazarré em Pintando o Sexo ou Costinha em suas inúmeras pornochanchadas e paródias, até Renato Aragão tira uma casquinha desse personagem para compor o herói ingênuo mas sempre afeiçoado a um rabo de saia, que recorrentemente jamais conseguirá. A FRÍGIDA GOSTOSA Da mesma forma que a figura da virgem profissional pertence por excelência a Adriana Prieto, a frígida gostosa tem por ícone maior Helena Ramos. É ela que dá vida a esse personagem em Mulher, Mulher (1977) e é depois catapultada à condição de estrela da novela das oito em Mulher Sensual (1980), quando é desejada pelo país inteiro mas não consegue ela mesma deixar florescer sua sexualidade. Sem sombra de dúvida, o perfil físico da atriz colabora. Apesar de ter um corpo extremamente bem-feito, seu rosto consegue transmitir um sentimento ao mesmo tempo gélido (pela imponência aristocríatica e pelo olhar distanciado) e cálido (pelas curvas do corpo e pelo rosto muito bonito). A frígida gostosa tem um padrão social bem definido: é geralmente muito rica, tem dinheiro sem ter precisado trabalhar. Tanto em Mulher, Mulherquanto em Império do Desejo, são viúvas de milionários. Se desde A Aventura de Antonioni é recorrente no cinema a idéia da burguesa entediada por estar absolutamente alienada do mundo, a pornochanchada contribui seu quinhão à evolução desse gênero de personagem. 8 A MOÇA LIBERADA São os tempos de liberdade sexual e a pornochanchada, aproveitando-se da temática sexual de seus filmes, transforma a mulher liberada, egressa das barricadas de maio de 68, em um de seus persoangens mais recorrentes. Já em 1968, Os Paqueras apresenta uma moça que faz sexo simplesmente por fazer (como aponta Flávia Seligman numa das poucas coisas escritas sobre personagens de pornochanchadas, no caso os tipos femininos; o artigo chama-se "As Meninas daquela hora"). EmAmadas e Violentadas, de Jean Garrett, é a fotógrafa que tenta seduzir seu modelo, invertendo os papéis. Aliás, as moças liberadas estão volta e meia associadas à vida artística, onde os valores supostamente são mais questionados e, conseqüentemente, mais tênues. Mas o amor livre só é tema mesmo em Império do Desejo, de Carlos Reichenbach, sem dúvida a obra-prima do gênero, onde um casal hippie instala-se na casa de uma frígida gostosa e pratica quase todas as variações possíveis do sexo. O MARIDO INADIMPLENTE Omisso, sempre pensando mais em trabalho e dinheiro do que na vida sentimental/sexual do casal, o marido inadimplente faz a festa dos outros homens. E de suas esposas. O exemplar mais perfeito é o encontrado em Pintando o Sexo, inequivocamente chamado de Cornélio. A figura é cara e arquetípica: cabelinho boi-lambeu para trás, óculos enormes, e um grande fichário eivado de números que ele leva até para a cama. Enquanto a esposa (a deliciosa Meiry Vieira) espera na cama que a justiça seja feita, Cornélio repara que ela está nua e dispara: "Você está pelada? Você pode pegar um resfriado!" O marido inadimplente só existe em conjunto com a esposa em erupção. A ESPOSA EM ERUPÇÃO Segundo as leis do gênero, se o marido não coopera, a mulher vai encontrar quem o faça na porta ao lado. A lei é seguida à regra em Pintando o Sexo, onde Meiry Vieira, cansada de tentar novos golpes de sedução para restituir o desejo sexual ao marido Cornélio, acaba se entregando ao vizinho pintor, ou melhor, Paulo Hesse, num papel hilário. No mesmo filme, em outro episódio, Íris Bruzzi é Conchetta, a viúva dona de uma pensão. Guarda o celibato desde que se marido morreu, e conversa diariamente por horas a fio com um retrato dele que está preso em seu quarto. Até que um dos freqüentadores da pensão, apaixonado, decide jogar até a última carta na conquista da viúva. A resistência da virtuosa acaba por ser inútil, e o casal fará a "união de corpos" em frente ao retrato do marido defunto. A TITIA MALANDRONA Vigilante protetora da virgindade de sua sobrinha (ou netinha, conforme o caso), ela é na verdade uma das personagens mais hipócritas dentre todos os tipos da pornochanchada. Não preza tanto a pureza da sobrinha quanto uma bela conta bancária associada ao pretendente. Velha rapina da sociedade, é representada à perfeição por Lola Brah, atriz de porte aristocrático, em Ainda Agarro Essa Vizinha. Uma variação é a vovó de Pintando o Sexo, que estorque Cazarré ameaçando entregar a sua esposa as fotos do tórrido tête-à-tête desenvolvido entre sua netinha e ele. Sempre uma aura de mulher cândida travestida na pele de uma interesseira contumaz. 9 O SAFADO ENGRAVATADO Mais do que uma instituição, um verdadeiro esporte nacional, a traição conjugal é item mais do que repetido na pornochanchada. Num exemplar do começo dessa época, Um Uísque Antes ... e Um Cigarro Depois, de Flávio Tambellini pai (o filho aparece, mas como ator do último episódio, seduzindo e apalpando a priminha), a traição aparece duas vezes. Na primeira, um marido revoltado com as insinuações que o melhor amigo faz para sua esposa, decide dar o troco cantando a mulher dele. O que deveria ser o ajuste de contas acaba, no final, se resolvendo na cama: a mulher acaba cedendo facilmente a seus movimentos e os dois fazem amor. Na volta, a mulher, ignorando o acontecido, pergunta o porquê da desistência da vingança. O marido responde qualquer coisa, evasivo. Em outro episódio do filme, um advogado recebe uma cliente que diz ter sido seduzida e desvirginada pelo noivo. Sendo maior de idade, diz o advogado, não resta a ela nenhum tipo de ação na justiça. Porém, ele está interessado em outra coisa: em ser o segundo sedutor da menina. Em Os Paqueras, o pai de Reginaldo Faria, também um empresário bem-sucedido, passa a vida entre a casa e Irene Stefânia, uma jovem estudante universitária. Por fim, a traição conjugal mais comum, a com a secretária: em Pintando o Sexo, Cazarré, antes de conhecer a virgem profissional que mora ao lado, vive ligando para a esposa, avisando que vai fazer serão. O serão, claro, envolve em alguma medida a secretária. Melhor, em todas as medidas. Definitivamente, na classe média brasileira dos anos 70-80, sexo é um prato que não se come em casa. Ruy Gardnier Contracampo Disponível em http://www.contracampo.com.br/36/ricafauna.htm Amada Amante (1978), de Cláudio Cunha Amada Amante está longe de ser um filme convencional. O filme de Cláudio Cunha toma uma liberdade imensa das vulgas pornochanchadas da época – ao mesmo tempo em que brinca, e muito, com a questão da sexualidade, o cerne nunca deixa de ser o comportamento familiar. O roteiro de Benedito Ruy Barbosa deve muito à obra rodrigueana, em especial às suas famosas crônicas. A família como origem dos problemas – em todo seu pudor, conservadorismo e hipocrisia. Uma família pudica do interior paulista se muda para o Rio de Janeiro, quando o patriarca é promovido no emprego. O Rio de Janeiro dos anos 70 mostrado no filme é o Rio das imagens, em toda sua glória libertina – e não havia lugar mais ideal para se homenagear o grande Nelson Rodrigues -, nas praias, nas mulheres de biquíni, na 10 malandragem... O Rio que vemos é uma cidade liberal, desde o rapaz que paquera e persegue a moça na praia, até as meninas do prédio que trazem um interesse curioso pela atitude carola dos novos moradores. Aparentemente, filme não se mostra consistente para percorrer seu caminho – não sabe se é uma história de adolescentes fogosos e inexperientes, se é uma história de adultério, ou se é apenas um desfile de garotas de biquíni e de peitos de fora -, mas quando encontra seu ponto, e os relacionamentos se estreitam, Amada Amante se torna uma pequena obra-prima. Logo no começo há um momento bem simbólico para o que veremos na segunda metade do longa. Os jovens recém-chegados estão afoitos pela praia – dos três filhos, duas meninas e um menino, dois resolvem comprar trajes de banho da moda, biquíni e sunga – e saem do quarto com suas novas roupas. O pai os impede de sair de casa em tão pouca roupa. Na rua, a moça de maiô causa comoção numa mesa de bar: “nossa, não vejo uma roupa dessas desde as chanchadas da Atlântida.” Um tanto óbvio que o patriarca conservador, que não deixa os filhos usarem os trajes de banho que gostam, a ponto de serem humilhados – não acho que muitas pessoas gostam de ter seus biquínis comparados a filmes dos anos 40 e 50 -, será o primeiro a se contradizer nos seus valores de decência e moral. Quanto mais ele se aproxima da secretária, até sucumbir à sua sedução, mais o vemos distante da família – não é à toa, há toda uma repressão de si mesmo em burlar os valores em que acredita, e isso transparece quando é pego pela esposa. Porém, o desejo ainda é maior. Ele continua com aquilo, não consegue se livrar – a mulher mostrada como uma frígida e submissa dona de casa é para ele a razão do adultério, mesmo que pregue essa atitude como ideal para uma família “descente”. A psicose de ser alguém superior moralmente, principalmente com o adultério do qual não consegue se livrar, é gradual, e é o elemento coercivo do filme. É a psicose do pai que faz com que a família comece a extrapolar em seu comportamento sexual – a moça comportada que se apaixona pelo garanhão da redondeza, o rapaz que só perde o “respeito” pela moça quando é chamada de bicha e a mais nova que se vê tentada por uma garota. A mãe que simplesmente aceita o comportamento do marido sem nunca dele suspeitar é outro motivo de inconformação. Quando a filha mais velha pega o pai na pegação com a secretária, tudo cai. Toda a moral, toda a decência são lavadas. Ao término, quando o pai recebe uma homenagem da firma, o senso estético de Cláudio Cunha aflora, e faz uma forte e belíssima cena: ao fazer seu discurso, alternam-se os momentos paralelos com as três mulheres de sua vida (as filhas e a esposa), em cenas apaixonadamente quentes no ato sexual extravagante, que ele jamais aprovaria. PS.: Destaque para a excelente participação de Carlos Imperial como o tarado voyeur do prédio ao lado, que só se excita quando vê mulheres nuas na janela. Gabriel Carneiro 11 Revista Zingu! Disponível em: http://revistazingu.blogspot.com.br/2009/04/dcc-amadaamnte.html Cláudio Cunha conta como era gostoso o nosso cinema Na década de 1970, Cláudio Cunha foi um dos mais poderosos produtores da chamada “Boca do Lixo” paulistana, local onde se produziram os principais filmes do ciclo conhecido como “pornochanchada”. Entre os grandes sucessos do produtor e diretor estão títulos hoje pouco lembrados, mas que levaram milhões de brasileiros ao cinema, tais como “Snuff – Vìtimas do Prazer” (1977), “Amada Amante” (1978) e “A Dama da Zona” (1979). Afastado do cinema desde a metade dos anos 80, hoje, Cláudio Cunha, aos 58 anos, está no livro Guinness como produtor e ator do espetáculo teatral mais longevo do mundo: “O Analista de Bagé”, em cartaz nos teatros brasileiros desde 1983. Nesta entrevista exclusiva ao cinequanon.art.br, ele solta o verbo e diz o que pensa do passado, do presente e do futuro do cinema brasileiro. Fale um pouco sobre como você chegou ao cinema. Cláudio Cunha – Minha primeira participação no cinema foi como ator, num filme do Roberto Mauro chamado “As Mulheres Amam por Conveniência” (1972). Na época, eu tinha uns 20 e poucos anos, e estava dando os primeiros passos na carreira: trabalhava na TV Excelsior como assistente de estúdio, e tinha planos de me tornar ator. Mas, o mais curioso foi como cheguei a querer me tornar ator. Durante a segunda metade da década de 1960, eu era funcionário público, havia conseguido este cargo por que fiz um discurso para o Adhemar de Barros (governador da época) que me colocou na Caixa Econômica Estadual, na Carteira Hipotecária. Era um alto emprego. Mas, em 1967, fui baleado numa briga de rua, fiquei um ano no Hospital do Servidor Público com a bala alojada na coluna cervical e, deprimido, num certo dia, decidi me jogar pela janela. Então, o Nicolau, um cara que tinha se operado das amídalas e que dividia o quarto comigo, me puxou, e quase teve uma hemorragia de tanto gritar socorro. A história ficou famosa, tenho até algumas reportagens antigas que falam sobre isso... Pois bem, depois desse episódio, ainda no hospital, assisti a um filme (cujo título não lembro) que falava sobre um jogador de basquete que sofrera um acidente parecido, e esse filme me deu força para enfrentar todo o problema. Comecei, assim, a me interessar por cinema e, no hospital mesmo, já comecei a pedir livros sobre o assunto. E decidi: “se eu sair daqui, vou me meter na vida artística”. Então, quando saí do hospital, nunca mais voltei 12 para a Caixa Econômica: abandonei meu emprego e comecei a ser figurante da TV Excelsior. E como você chegou ao filme do Roberto Mauro? Na época, era muito comum essa migração da TV para o cinema? Cláudio Cunha: : Sim, era. Mas a minha entrada no filme se deu por intermédio de uma namorada, a Rejane Ritter, que estava escalada para o filme dele. Ela me apresentou ao Roberto Mauro, ele gostou de mim e me deu o papel. Mas eu continuava na Excelsior, onde fiz uma novela chamada “Meu Pedacinho de Chão” – que deu um ibope violento. Aí, um dia apareceu na TV um japonês bem picareta que tinha uma dessas agências de formação de atores e que me convidou para dar uma palestra pros alunos dele. Quando cheguei lá, notei um cara fotografando o evento com uma câmera maravilhosa, material de último tipo. No final da reunião, o japonês me apresentou pra ele: “esse aqui é o Pedro Faus, um maníaco por fotografia que fotografa aqui pra mim de graça”. Acabei ficando amigo do cara, e ele me convidou pra jantar na casa dele. Era uma tremenda mansão no Jardim América, com mordomo e tudo, e eu fiquei impressionado com toda aquela riqueza, pois sou um garoto de subúrbio, da Vila Guilherme. Então, quando o cara foi mostrar as fotos dele num enorme projetor de slides, perguntei: “Pedrinho, por que você não faz um filme, já que gosta tanto de fotografia?”. Ele ficou interessado, e eu falei que poderia fazer um orçamento e um roteiro e que o custo ficaria em torno de uns cem mil. Ele aceitou! Fiquei tão empolgado que, naquela mesma noite, bolei o argumento de “O Poderoso Machão”, que era copiado do modelo de comédias eróticas italianas que faziam muito sucesso por aqui. De alguma maneira, então, já pensando em termos do que depois seria chamado de pornochancada? Cláudio Cunha: Sim. O que se chama de pornochanchada era o cinema italiano que a gente copiava. O cinema brasileiro da época tinha perdido o público da chanchada e era esse público que a gente queria trazer de volta. Então, a gente copiava os filmes italianos de sucesso, que eram baratos e tinham apelo de público por causa do erotismo. O argumento de “O Poderoso Machão” era baseado no “Super-Macho” do Orlando Buzanca, aquele filme sobre um cara que tinha três culhões. Minha história era a seguinte: um cara que morava na pensão da noiva tinha o hábito de espiá-la trocando de roupa. Um dia, enquanto a espiava, conferia pelo rádio o resultado da Loteria Esportiva. Aí, à medida em que ela ia tirando a roupa, ele ia acertando os jogos e, quando ela tirava a calcinha, ele cravava os 13 pontos. Por causa disso, ele acabava adquirindo um 13 priapismo permanente. O argumento era muito engraçado, escrevi o roteiro com o Sílvio de Abreu que tinha uma escola de cinema. E quem dirigiu o filme? Cláudio Cunha: Pois é, chamei o Roberto Mauro e disse: “descolei um boi” (“Boi” era como a gente chamava os caras que bancavam os filmes, geralmente em busca de conseguir mulher, o que não era o caso do Pedrinho). Perguntei por quanto ele faria o filme e ele disse que tudo sairia por uns 80 mil. Era perfeito, porque a gente faria o filme, pagaria nossas dívidas e dividiria o que sobrasse. Ainda por cima, o Pedrinho daria 50% do filme pra nós! O cara simplesmente havia caído do céu. A gente não acreditava. No dia de assinar o contrato, eu ainda não tinha apresentado o Roberto Mauro pros caras, pois ele tinha medo de estragar tudo (ele era daqueles pessimistas que andam sempre com uma nuvem preta na cabeça, então já viu, ele achava que alguma coisa ia dar muito errado). Chegamos ao escritório do Pedrinho no Anhangabaú, o Roberto morrendo de medo, subimos e, quando chegamos, a secretária falou que o senhor Pedro não poderia nos atender. Foi suficiente para o Roberto dizer: “Tá vendo? Eu sabia que isso não ia dar certo”, e tal. Mas no final fomos atendidos pelo advogado, que nos recebeu com o contrato e o cheque. O Roberto quase desmaiou. Abrimos uma conta conjunta no banco, pagamos nossas dívidas e fizemos o filme, estrelado pelo Ewerton de Castro. O filme fez sucesso? Cláudio Cunha: Não exatamente, nós sofremos muito por causa da censura, muitas partes foram cortadas. O filme foi lançado em 1976, bem depois da produção. Inclusive o Pedrinho se aborreceu com a gente, acabou vendendo a parte dele para um cara que tinha um laboratório cinematográfico aqui em São Paulo. Apesar de tudo, posso me orgulhar de ter lançado, nesse filme, a atriz Matilde Mastrangi, musa do cinema brasileiro nos anos 70. E como foi sua estréia na direção, com “Clube das Infiéis” (1974)? Cláudio Cunha: Esse filme um amigo meu bancou. Eu tinha um posto de gasolina, ele também. Quase fali meu posto para fazer o filme. O roteiro era do Marcus Rey, que 14 trabalhou em muitos filmes nos anos 70. Nesse filme, eu também lancei outras duas moças que se tornaram musas do cinema brasileiro. Como a gente não tinha dinheiro para pagar atrizes, eu convidei a Helena Ramos que era telemoça do Sílvio Santos e a Aldine Miller que tinha recém chegado do Sul. E você já se sentia seguro como diretor de cinema? Cláudio Cunha: Sim, mas eu era totalmente intuitivo, nem sei explicar exatamente como eu fazia. Não tinha story board e mesmo a decupagem das cenas era pensada na hora da filmagem, durante o ensaio. Acho que, por ter passado toda a minha infância lendo gibis, eu tinha alguma noção de enquadramento e de encadeamento das cenas que vem das histórias em quadrinhos, o que facilitava muito, pois quadrinhos e cinema são artes que têm muito em comum. No seu filme seguinte, “O Dia em que o Santo Pecou” (1975), você foi só diretor contratado. Como foi a experiência? Cláudio Cunha: Esse filme foi bem mais complicado. A idéia foi do Benedito Ruy Barbosa. Ele ficara impressionado com meu trabalho em “O Clube das Infiéis” e me disse assim: “Se com um roteiro de merda do Marcus Rey você fez esse filme, imagino o que você vai fazer com o meu roteiro”. Achei isso uma injustiça, pois o Marcus Rey sempre foi um roteirista de cinema, enquanto o Ruy Barbosa é mais um novelista. Mas, topei, claro, e fomos fazer o filme. Era um projeto pretensioso, caro, um filme de época. Além disso, não era eu que produzia: os produtores eram o próprio Benedito, associado ao Laudo Natel que era governador de São Paulo na época e tinha uma dívida moral com o Benedito por causa de alguns problemas com uma novela dele na TV Cultura. As filmagens foram infernais, pois eu era apenas um diretor contratado, com o roteirista do lado me enchendo o dia inteiro. A coisa foi tão longe que um dia o proibi o Benedito de aparecer no set. Mas, foi uma experiência importante, tive que me impor em cima de todo mundo e até lancei a mulher dele como atriz, contra a vontade dele (ela pediu um papel). Mas, apesar do título, esse filme não tinha relação com a pornochanchada, não é? 15 Cláudio Cunha: Pois é, o argumento é em cima de uma lenda que existe em São Sebastião. Segundo a história que se conta por lá, um dia, foi encontrado morto em frente à igreja da cidade um cidadão que era visto como herege por ofender o santo padroeiro da cidade em procissões. Aí, quando chega o Delegado para investigar, todo o povo diz que o assassino foi o Santo e, como naquela época entidades sobrenaturais podiam ser condenadas, o Santo acabou sendo condenado pelo Juiz como assassino do valentão. Então, a relação desse filme com as pornochanchadas existe apenas no título, que acabou sendo interessante para atrair o público. Até dei uma apimentada no filme, pois sabia o que estava rolando na época, mas foi muito pouco. Agora fale um pouco sobre “Snuff – Vítimas do Prazer” (1977), sua parceria com Carlos Reichembach que se tornou um dos maiores sucessos do cinema brasileiro de todos os tempos. Cláudio Cunha: Esse filme eu dirigi e produzi. O Carlão fez o roteiro. Contava a história de dois americanos que chegam ao Brasil para filmar um snuff-movie (filme em que as pessoas são assassinadas de verdade). A divulgação que a gente fez foi bem pensada: o filme tinha um trailer em que entrevistávamos pessoas sobre o que elas achavam de um filme em que os atores morrem de verdade. A curiosidade gerada foi grande, claro. Mas, quando lançamos o filme, não tínhamos idéia de como seria a recepção. Então, houve a estréia. Foi no Cine Marabá, um dos maiores da cidade, numa segunda-feira. Curioso para ver como seria o primeiro dia (que era decisivo para medir o sucesso dos filmes), cheguei à avenida Ipiranga, vi um tumulto, e pensei “caralho, estragou minha estréia, o que será que houve?”. Parecia estar havendo uma passeata bem em frente ao cinema. Só quando me aproximei é que percebi que o tumulto era por causa do meu filme. E não era nenhuma passeata contra o filme? Cláudio Cunha: Não, era fila, mesmo! E não era pra menos: na entrada no Marabá, em letras garrafais, uma faixa anunciava: “Snuff – O filme em que as atrizes foram estupradas e assassinadas de verdade”; “Snuff - O filme assassino” e coisas desse tipo. Como eu sabia que o filme teria impacto, eu também havia me precavido: contratei duas mulheres para gritarem na primeira sessão. Eram umas professoras que ganhavam um salário de merda, viajavam com a cópia para gritar e controlar a bilheteria. Foi uma loucura, as matines lotavam, e eram aquelas lotações gigantes, com mais de mil pessoas por sessão. O filme dobrou varias semanas nesse pique, talvez tenha sido o filme mais lucrativo que eu produzi, mas como eu era muito ingênuo, não controlei direito a bilheteria, devo ter perdido um dinheirão ali. 16 Seu filme seguinte como produtor e diretor, “Amada Amante” (1978), também causou polêmica, mas por outras razoes. Como foi essa história? Cláudio Cunha: Eu tinha o título “Amada Amante” registrado na Biblioteca Nacional desde que o Roberto Carlos lançara a música. Um dia, eu comentei numa distribuidora que estava tentando levantar fundos para um filme com esse título. Só que o Luiz Carlos Barreto estava por lá, cresceu o olho e, na semana seguinte, já tinha comprado os direitos da música do Roberto para fazer um filme com o mesmo nome, sem saber que eu já o tinha registrado. Aí aconteceu algo inusitado: os dois filmes começaram a ser filmados ao mesmo tempo, e na mesma cidade – Rio de Janeiro, para onde eu viajei com a equipe. Era meu primeiro filme com elenco de peso (Sandra Bréa, Luis Gustavo), e eu queria muito filmar no Rio, pois a história era a de uma família que se mudava do interior de São Paulo para lá. E, enquanto a gente filmava, a briga na justiça corria solta por causa do título. O Barreto chegou a dar uma entrevista em que me acusava: “Cláudio Cunha é um gangster da Boca do Lixo”, ele disse. Até entrei com processo na Lei de Imprensa, fiz ele se retratar e tal. Depois de muita polêmica, fiquei com o título e ele com a música. Essa briga toda é citada no livro do Walter Clark (página 240), em que ele conta: “Perdemos a briga de ‘Amada Amante’ para o Cláudio Cunha; o filme dele fez dois milhões de espectadores, enquanto o nosso fez apenas 200 mil. Esses Barretos não entendem nada de cinema”. Adoro essa passagem, mas tenho uma correção a fazer: “Amada Amante” não fez dois milhões de espectadores, e sim 8 milhões. Depois, em 1979, você produziu um dos clássicos do cinema da Boca, “A Dama da Zona”, e também arrumou briga... Cláudio Cunha: Esse foi um filme que eu produzi de bronca. A história é a seguinte: em 1978, eu tinha feito o filme “Um Sábado Alucinante”, com a Sandra Bréa, naquele clima de discoteca que estava na moda. Mas, logo em seguida, o Aníbal Massaini lançou “Embalos Alucinantes”, abrindo uma concorrência que era péssima para o meu filme. Eu fiquei puto, pedi para ele mudar o título, mas não teve jeito. Aí eu falei para o Ody Fraga (um dos principais diretores e roteiristas da Boca,e certamente o mais versátil): “Ody, vamos começar a filmar essa semana um concorrente para ‘O Caçador de Esmeraldas’ que o Massaini está produzindo. O nosso vai se chamar ‘O Caçador da Esmeralda’, vai ser sobre um português chamado Fernão Dias que está apaixonado pela mulata Esmeralda. Nós vamos fuder esse cara”. O Ody topou, e nós fizemos o roteiro. Aí, depois, com os filmes prontos, o velho Osvaldo Massaini me chamou no escritório 17 dele, pediu pra eu mudar o nome do filme, e eu acabei cedendo. No final, o título “A Dama da Zona” também ficou muito bom. Pelo que você descreve, havia um clima de amizade, mas também de concorrência entre os produtores da Boca... Como era a convivência entre você, David Cardoso, Antônio Pólo Galante, Aníbal Massaini, Fauzi Mansur e outros produtores da Rua do Triunfo? Cláudio Cunha: Acho que todos tínhamos em comum um grande zelo pelos nossos filmes e o fato de usar tudo o que ganhávamos para fazer mais filmes. E dava muito dinheiro, todos nós ficamos ricos na época e também falimos exatamente por continuarmos investindo em cinema até o fim. É lógico que havia uma competição, mas era saudável. Por exemplo, assim que chegava a cópia, você chamava logo os colegas para assistirem. Era o momento do parto, no laboratório da Líder, na Prestes Maia. O pessoal assistia, todo mundo ia pro bar e começava a discutir o filme. Às vezes, saía até porrada, mas porque todos éramos absolutamente apaixonados pelo que fazíamos. E vocês conseguiam saber, nessas primeiras sessões, se os filmes teriam sucesso de público? Cláudio Cunha: Não, era uma incógnita. O que matava mesmo era a primeira semana em cartaz. Por exemplo, quando você colocava um filme no Marabá, que era um dos maiores cinemas do centro de São Paulo, ao meio dia estava todo mundo ligando para a gerente para saber como fôra a primeira sessão da manhã. Por essa sessão, chamada de “vesperal”, é que você podia prever se o filme seria um sucesso ou não. Exatamente como aconteceu com “Snuff – Vítimas do Prazer”. Depois daquele tumulto na sessão da manhã, eu sabia que tinha acertado o alvo. Depois de “A Dama da Zona” veio um filme menos polêmico, mas que mexia com um assunto importante da época: o divórcio. De onde veio a idéia de “O Gosto do Pecado”, que você produziu e dirigiu? 18 Cláudio Cunha: Esse filme teve roteiro meu e do Inácio Araújo, que hoje é crítico da Folha de São Paulo, mas trabalhava muito na Boca do Lixo ligado à turma do Carlão Reichembach (que fez a fotografia desse filme). Eu já o conhecia porque ele havia feito a montagem de “O Dia em que o Santo Pecou”. O filme era sobre um homem recém descasado que sofre com a solidão, com o ciúme que tem da ex-mulher, com a vontade de saber com quem ela está transando e tal. A história que nós escrevemos tinha tudo a ver com o momento que eu estava passando, pois estava terminando meu primeiro casamento. Depois de ”O Gosto do Pecado”, você voltou ao Rio de Janeiro (onde filmara “Amada Amante”), pra fazer o filme “Profissão: Mulher” (1982). Como foi essa experiência? Cláudio Cunha: Esse filme me quebrou. Gastei uma fortuna com ele, era meu trabalho mais pretensioso. Também me faltou sorte na censura: o filme ficou um ano preso, pois a diretora da censura implicou com ele de uma forma violenta, a ponto de o filme ser liberado pelo Conselho Superior de Censura e ela entrar com recurso. Acho que o filme deve ter batido em algum problema pessoal dela, sei lá. O título talvez não tenha ajudado, também. Aí eu quebrei. Você se referiu muitas vezes à censura. Seus filmes enfrentaram muitos problemas com os censores do Regime Militar? Cláudio Cunha: Sim! Aliás, é importante ressaltar que, ao contrario do que se diz por aí, o grupo da pornochanchada não foi apoiado pelo Regime Militar. A gente foi muito sacaneado, na verdade, e nunca ganhamos um centavo do dinheiro público. A gente incomodava por ter tido a habilidade de reconquistar o público popular para o cinema brasileiro, pois a gente fazia filme para o cara que pegava o metrô pra ir trabalhar e não para o estudante da USP. Qual era a nossa fórmula, então? Colocar umas mulheres peladas pra atrair esses caras. Eram filmes que tinham a nossa cara, a realidade do homem comum, e esses filmes agradavam. A gente também se beneficiava da Lei da Obrigatoriedade: se o filme dobrava a primeira e a segunda semana com público bom, ele só saía de cartaz com a anuência do produtor. Isso, para as multinacionais, era um transtorno. Imagina um filme com mídia mundial, que ganhou Oscar e tal, ter que esperar o filme do Cláudio Cunha, do David Cardoso ou do Tony Vieira sair depois da sétima, oitava semana. Eles não se conformavam com isso. Então, foi iniciada uma guerra contra os filmes brasileiros e as multinacionais tinham dois aliados poderosos: a censura, encarregada de acabar com a indústria que a gente criou, e a banda podre da mídia, encarregada de nos desmoralizar diante do público. Então, pra essa mídia, todo o 19 filme que nós fazíamos era “pornô-alguma coisa”. “Amada Amante” era pornodrama, “Sábado Alucinante” era pornodiscoteca, “Vítimas do Prazer” era pornoterror, “O Dia em que o Danto Pecou” era pornoluxo”, e assim por diante. Aí, quando houve de fato a virada para o sexo explícito no começo dos anos 80, imposta pela indústria americana, eu resolvi “pornocudeles” e fiz “Oh, Rebuceteio!”, meu único filme de sexo explícito. Que é o seu filme mais famoso internacionalmente. Cláudio Cunha: Pois é. Descobri recentemente que “Oh, Rebuceteio!” é considerado pelos experts como um dos dez melhores do mundo. Já houve três documentaristas que me procuraram para falar nele. E a origem desse filme é curiosa: eu tinha falido com “Profissão: Mulher”, talvez justamente porque o filme foi lançado numa época em que os filmes de sexo explícito eram a prioridade absoluta dos exibidores e de grande parte dos produtores. Então, já estava em cartaz com a peça “O Analista de Bagé”, inicialmente estrelada pelo Paulo César Pereio e depois por mim. Aí pensei: “eu já fui tantas vezes chamado de pornodiretor, que agora vou fazer um filme realmente de sexo explícito”. O título veio de uma brincadeira com aquele espetáculo “Oh, Calcutá!” e de uma palavra que eu já tinha usado no roteiro de “O Poderoso Machão” e de “A Dama da Zona”: rebuceteio. Como “O Analista de Bagé” estava em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, a gente filmou “Oh, Rebuceteio!” lá mesmo, pois a história se passa num teatro. Quando o elenco do “Analista” ia embora, pelas 11 horas da noite, o pessoal do “Rebu” já estava lá esperando para filmar. A gente varava a madrugada lá, eu ia dormir todo dia às nove horas da manhã. Curiosamente, não foi um filme muito lucrativo: eu estava viajando com a peça e não pude cuidar da bilheteria, então o filme deu muita evasão de renda. E, no final das contas, é um filme engraçado, um “meta-pornô”, com o perdão do trocadilho. O filme tem trilha-sonora do Zé Rodrix e do Miguel Paiva (o cartunista). Acabou sendo meu último filme. E você tem planos de voltar a fazer cinema? Cláudio Cunha: Tenho, mas é muito difícil. Hoje tenho filhos pequenos, vivo do meu trabalho, que é viajar com a peça, e pra fazer cinema tem que ter muita grana na mão – hoje, mais do que antes. E também ainda existe uma muita discriminação com o pessoal da pornochanchada. Quando fui fazer o programa do Jô Soares recentemente, ele começou a me apresentar assim: “Estamos aqui com o ex-seminarista Cláudio Cunha, que virou diretor de filmes pornô”. E aquilo me bateu mal, porque eu fiz muitos filmes, como ator, produtor e diretor, e só um foi pornô – mesmo assim, uma brincadeira com o pornô. 20 Mas há algum projeto em vista? Cláudio Cunha: Uma idéia que eu tenho é de fazer um filme chamado “O Maníaco do Parque” (título que registrei na Biblioteca Nacional), mas não se trata propriamente de um filme sobre ele, e, sim, sobre a exploração sensacionalista da imprensa em torno no caso. Lembro de ter ficado impressionado, na época, com a postura dos apresentadores de TV diante dos pais dele que estavam vivendo um drama tão grande quanto o dos pais das vítimas. E “O Analista de Bagé” pode virar filme? Cláudio Cunha: Essa história é mais complicada, porque eu escrevi o roteiro, que foi dificílimo de fazer. Levei quatro anos para terminá-lo, porque o personagem que o Verissimo criou é de anedotas, então é difícil segurar um filme com ele (tanto que, quando procurei o Benedito Ruy Barbosa para escrever, ele disse: “É impossível, o Analista de Bagé não dá roteiro”). Só que, quando procurei o Veríssimo com o roteiro pronto, ele não quis. Foi terrível, porque viajei para Porto Alegre já para legalizar as coisas, ele havia me dado o sinal verde quatro anos antes e quando eu cheguei lá ele disse: “Mudei de idéia, não quero o Analista no cinema”. Ele nem quis ler. Era um dia particularmente constrangedor, porque havia uma repórter com ele fazendo aquelas matérias bobas de “um dia com o escritor”... A coitada ouviu toda a conversa, e eu estava puto, porque depois de 20 anos fazendo o personagem no teatro, que é uma coisa efêmera, eu queria registrá-lo no cinema. Ele falou que então tudo bem, mas que eu não usasse o nome, que colocasse “O Gaúcho Erótico”, “O Analista de Livramento”, qualquer coisa, menos “O Analista de Bagé”. Acho que na época ele estava aborrecido por causa do filme “Ed Mort” e eu acabei pagando o pato, pois ele nem leu o roteiro. Então, estou pensando em fazer um roteiro sobre essa história, sobre um cara que faz um personagem há décadas, mas entra em conflito com o autor original, que sonha com a Academia Brasileira de Letras e tal... E quem seria o ator nesse filme? Cláudio Cunha: Desta vez, eu mesmo. Sabe, nunca me achei um bom ator no tempo que eu fazia cinema. Eu me achava um bom diretor, mas não ator. Só fui me descobrir como ator quando substituí o Paulo César Pereio no “Analista” e, depois de 25 anos de teatro, 21 acho que sou um bom ator, pelo meu timming e pelo meu domínio de platéia. Digo que aprendi a ser ator no exercício do palco, assim como aprendi a ser cineasta fazendo cinema. Então, agora, se eu for fazer um filme, quero me dirigir, atuar nos meus filmes. Laura Cánepa e Remier Lion Edição: Laura Cánepa Cinequanon Disponível em http://www.cinequanon.art.br/entrevistas_detalhe.php?id=4 22 23 Trecho da entrevista com Cláudio Cunha na revista Zingu!: AMADA AMANTE (1978) Z- Cláudio, vamos falar do Amada Amante. Como você decidiu fazer aquele filme? CC- Depois do Snuff, eu queria fazer um filme no Rio de Janeiro. Amada Amante é bem isso. Apesar do roteiro ser do Ruy, o argumento é bem as minhas impressões do cara descobrindo o Rio de Janeiro. É uma história de uma família... Z- Por que você quis fazer um filme sobre uma família do interior? CC- O argumento eu fiz com o Ruy e ele que elaborou todo o roteiro. Ele é um cara criativo, um grande escritor. Por isso, eu deixei ele fazer e ele me entregou tudo e eu parti pra filmagem. A idéia do Amada Amante era contar uma boa história, era isso. Eu gostava bastante da história. Só me faltou dinheiro no final pra fazer o garoto de hare krista vendendo incenso no trânsito (risos). Eu queria fazer esse final, mas não tive grana pra isso. Mas seria genial... Z- Eu sempre achei que o roteiro parece muito as coisas do Nelson Rodrigues. Vocês chegaram a pensar nisso? CC- Não. Eu passei muitas coisas pro Ruy baseado nas coisas que eu vivia com o meu pai. O meu velho era um cara muito enérgico. O Ruy era um bom observador e conseguia transcrever esse tipo de coisa. O Augustinho parece muito com o meu pai. A minha mãe é muito daquela personagem da Neuza Amaral. Meu pai era como o cara do filme: severo em casa e quando a gente descobriu uma amante dele, a casa caiu. Então, eu acredito que o Ruy tenha muito absorvido essas minhas coisas e botou no roteiro. Quando eu fui escolher o elenco procurei uma pessoa que lembrava meu pai. Z- Curioso. Porque são dois filmes seus com traços da sua vivência pessoal, porque O Gosto do Pecado tem muito isso. 24 CC- Sim. O Amada Amante tem muito a fase da separação do meu pai com a minha mãe. A minha mãe descobrindo os amantes do meu velho. Na vida real, a minha mãe era muito aquela mulher do filme. Uma vez uma das minhas namoradas contou pra minha mãe que eu queria comer a bundinha dela e a minha mãe ficou escandalizada (risos). Falou pra mim: “Como você quer uma coisa dessas?”. Minha mãe ficou escandalizada. Z- O elenco do Amada Amante é muito bom. CC- Sim, foi surpreendente. Eu sempre fui um bom diretor de atores. Acabo dirigindo muito ator e mesmo com os medalhões eu faço questão de trabalhar. Sempre gostei de lapidar atores, trabalhar vários detalhes dos personagens. Z- Como era trabalhar com a Sandra Bréa? CC- Maravilhosa. Ela era uma pessoa muito extrovertida, divertida, brincalhona. A Sandra não parecia em nada com a personagem do Amada Amante,. Na vida real, ela sempre foi uma vamp, uma mulher glamourosa. Não tinha nada haver com a garota recatada de interior que nunca foi beijada. Mas ela está muito bem e fez legal. Mas na época, ela já era uma pessoa problemática, tomava muito remédio. Um dia na bolsa dela eu achei um calmante forte e um vidrinho de whisky. No Amada Amante ela me deu uns probleminhas na parte da dublagem. Eu pagando um estúdio caríssimo no Rio de Janeiro e ela ficava brincando e não fazia a dublagem. Por isso, chamei uma dubladora para fazer a voz dela. Ela ficou muito chateada, mas eu tive o cuidado de achar uma dubladora que tinha a voz muito parecida com a dela. Z- E o Luiz Gustavo? CC- Muito gente boa. Inclusive, na época das filmagens ele estava passando por alguns problemas de ordem pessoal, mas foi um cara muito tranqüilo de se trabalhar. Z- Você é um cara de São Paulo. De onde vem essa vontade de fazer um filme no Rio? 25 CC- Eu achava que os cariocas tinham maior prestígio na crítica e na imprensa especializada. Quando o filme vinha do Rio, eles abriam mais espaço. Nós da Boca sempre fomos os primos pobres (risos). Mas eu também achava a cidade muito bonita, tinha uma cenografia natural. Por isso, eu fiz depois eu dois filmes seguidos no Rio: Amada Amante e Sábado Alucinante. Z- Como foi a sua briga com a família Barreto? CC- Eu tinha registrado o título Amada Amante na Biblioteca Nacional. Ignorando o direito do meu registro, eles foram em cima do Roberto Carlos e compraram os direitos da música Amada Amante. O Bruno Barreto queria fazer um filme com o mesmo título que o meu. No Rio de Janeiro, ao mesmo tempo tinham duas equipes fazendo o Amada Amante: eu e o Bruno Barreto. Poxa, a gente pegava as quentinhas no mesmo restaurante inclusive (risos). Porém, somente eu tinha o título na Biblioteca Nacional. A imprensa já estava falando: “Dois filmes com o mesmo título”. Z- Mas a imprensa deu mais voz pro Bruno. CC- Lógico, ele era do Rio de Janeiro. O elenco me pressionando: “Mas o Bruno também está fazendo Amada Amante”. O Bruno Barreto deu uma entrevista pro Última Hora falando que eu era um gangster da Boca do Lixo. Eu entrei com um processo em cima dele e ele teve que se retratar no mesmo jornal. Na Justiça, eu acabei ganhando porque eu tinha o título registrado. O filme dele entrou como Amor Bandido e é engraçado porque toca a música Amada Amante. No trailer do meu filme, eu coloquei todas as manchetes: “Amada Amante. Um filme de Cláudio Cunha ou Bruno Barreto?”. No fim, a polêmica acabou colaborando no sucesso comercial da fita. Snuff, Vítimas do Prazer foi meu primeiro sucesso. Mas Amada Amante foi fantástico... Z- Foi o teu filme que mais te deu bilheteria? CC- Sim, foi um estouro. Foram mais de seis milhões de espectadores... Entrevista: Matheus Trunk Zingu! 26 Disponível em http://revistazingu.blogspot.com.br/2009/04/dossie-claudio-cunhaentrevista-com.html Amada Amante - Uma Batalha Curiosa "Não faço pornochanchadas e não tenho o direito de julgar quem as faz". Com essa declaração ao jornal Última Hora, em 14 de abril de 1978, o diretor e produtor Cláudio Cunha parecia querer resumir o grande dilema da maioria dos diretores populares nos anos 70. Capturados pelo slogan de “pornochanchadeiros”, filmavam dramas de costumes, comédias, policiais, mas padeciam no saara das acusações: a de usarem sexo como chamariz, atendendo à pressão insuportável de um público que exigia crescentes inserções do belo esporte. Àquela altura de 78, o novo projeto de Cunha utilizava o título de uma antiga canção de Roberto Carlos, do lp de "Detalhes". Mas, estranhamente, "Amada Amante" (1978) não tinha qualquer coisa a ver com Roberto, nem a história trazia paixão visceral entre os protagonistas. Por outro lado, Bruno Barreto estava pronto para dar o mesmo nome ao futuro "Amor Bandido" (1979). Comprara os direitos da canção e a colocara em várias cenas de Cristina Aché e Paulo Guarnieri. Quando descobriu a artimanha de Cunha teve um chilique e chamou o colega de "gângster da Boca do Lixo", em reportagem do Última Hora. Cunha devolveria dizendo que “meus filmes são dirigidos por mim, não pelo filho do meu pai”, em clara alusão ao progenitor de Bruno, o produtor Luiz Carlos Barreto, complementando: “Não tenho pai empresário, nem político de cinema”. Ironia é que, meses depois, a crítica desancaria "Amor Bandido" rebaixando-o a "pornopolicial" – Rubens Ewald Filho, Estado de São Paulo, 14/11/78 – e contextualizando-o exatamente como subproduto de um artificialismo mercantilista, similar aos da Boca. Claro, todos estavam errados: Cunha deveria trocar o nome da sua obra; Barreto não precisaria engrossar o caldo contra Cunha; e "Amor Bandido" sobreviveu para continuar representativo do grande cinema policial brasileiro dos anos 70. "Amada Amante", diga-se de passagem, não ficou atrás. Partindo do argumento de Benedito Ruy Barbosa, Cunha montou outro de seus intrincados novelos rocambolescosociológicos, observando uma família do interior que se muda para o Rio de Janeiro, mais precisamente para a Av. Vieira Souto, em Ipanema. 27 Instalada no endereço mais nobre da cidade, uma chegada de carro – no estilo "Família Buscapé" – é talvez o maior deslize do casal Augusto (Rogério Fróes) e Tide (Neuza Amaral), além dos filhos Fátima (Sandra Bréa), Marita (Petty Pesce) e Zequinha (Maurício Lessa). Graças, porém, ao tosco passeio vemos as obras do metrô na Av. Presidente Vargas e o prédio do Jornal do Brasil – Av. Brasil, 500 – tilintando de novo. O resto é a inadaptação e conseqüente degradação familiar. Augusto, gerente de uma fábrica de calçados, redescobre o sexo com a secretária. Fátima – Bréa, linda até de cabeça pra baixo – enamora-se do playboy Tuca (Luiz Gustavo). Já Marita não tarda em arrumar uma companheira lésbica (??!). Observando Bréa e Pesce, uma participação de Carlos Imperial, como voyeur na janela do prédio ao lado. Cunha sempre teve domínio de certo modelo narrativo, que aqui utiliza de forma satisfatória o bastante para o espectador nunca desgrudar os olhos das idas e vindas entre a praia, o escritório de Augusto e o apartamento. Mas sua principal manipulação é outra: a do imaginário caipira e deslumbrado sobre o Rio. Nem a Globo (ou a Riotur) faria melhor no passeio ao Cristo Redentor, nas panorâmicas da orla e na caracterização simplória dos cariocas como povo liberal e folgazão, em contraponto à "seriedade" e aos princípios hipócritas dos interioranos, que se dissolvem no turbilhão balneário. Esse choque e atração cultural, retraduzido na briga pelo título, seria bem esmiuçado por Carlos Alberto Mattos em texto na Tribuna da Imprensa, de 31/08/78. Mattos aponta inteligentemente a incompreensão entre Barreto e Cunha espelhada também no olhar caricatural e redutor do paulista sobre a dolce vita carioca. Em defesa de Cunha note-se que, durante as filmagens, decidiu pelo batismo provisório de "Os Caretas de Copacabana". Quando mudou de idéia, cumpriu os trâmites legais, inclusive informando-se com a Sociedade Brasileira de Autores e Compositores Musicais sobre a possibilidade de uma canção dar nome a filme, sem custo aos produtores. Como não havia disposição contrária, inscreveu "Amada Amante" na Embrafilme. Barreto tivera idéia parecida e comprara os direitos com o empresário de Roberto Carlos, Marcos Lázaro, provavelmente ao custo de 5% da renda e mais 400 mil cruzeiros, preço cobrado antes a Cunha, que recusara. Mas, ao tentar registrar sua produção, quase finalizada, esbarrou com registro anterior de Cunha, o processo 01330/77, que tirou seu sono. Cláudio Francisco Cunha realizaria em seguida mais dois filmes no Rio -- "Sábado Alucinante" (1979) e "Profissão Mulher (1982) -- repisando o olhar ingênuo, conflituoso e, por que não dizer?, adorável sobre seu objeto de paixão e oportunismo. A senha para entendermos tal trilogia passa ainda por esquecer qualquer má vontade e preconceito, e aceitarmos que, fazendo cinema com seu próprio dinheiro, Cunha mantinha-se honesto ao público da Av. Ipiranga e dos cinemas do Brasil profundo. Era naquela Ipanema lúdica, burlesca, que o povo das sessões do meio-dia gostava de 28 acreditar, em contraponto ao realismo competente de “Amor Bandido”, criado por Barreto, exímio conhecedor da cidade. Andrea Ormond Estranho encontro Disponível em http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2010/11/amada-amante-notassobre-uma-batalha.html A dama do lotação (1978), de Neville de Almeida A DAMA DO LOTAÇÃO Não é fácil explicar por que este filme se tornou um fenômeno de público desde a estréia. Mas tentarei — e minha hipótese é que Sônia Braga foi a peça-chave. Em A dama do lotação, Sônia Braga deveria sair do universo "progressista" e sociológico de Jorge Amado para encarar o mundo "reacionário" e psicológico de Nelson Rodrigues. No papel de Solange, ela se transformaria, de virgem tímida e esposa frígida, em uma mulher insaciável, que devora desconhecidos pelas ruas do Rio de Janeiro. O roteiro do filme teve colaboração do próprio Nelson que o adaptou de uma das narrativas de A vida como ela é... Mas é preciso assinalar o quanto o filme revolucionava o universo moral rodriguiano, como lembrou na estréia o crítico Ronaldo Noronha. Solange retorna ao casamento não como uma prostituta arrependida, como gostaria a sociedade patriarcal, mas como uma mulher razoavelmente liberada e conciliada com o seu desejo. É menos a trama, porém, que desestabiliza a regra culpabilizadora e muito mais a mise-enscène, com sua constante afirmação da força libertária do desejo, no caso, do desejo de uma mulher, exposto sem muitas amarras. Posso estar enganado, mas esta foi a primeira encenação em que uma personagem feminina de Nelson Rodrigues conseguia escapar positivamente do labirinto espiritual do escritor, com suas armadilhas de ressentimento, remorso e frustração sexual. Se o sexo era o motor da libertação de Solange, o erotismo do filme era a bomba que implodia o espiritualismo pequeno-burguês do enredo. É justamente o erotismo exarcebado de A dama do lotação que deixa patente, aos olhos do espectador, a positividade do desejo feminino. É certo que o filme nos converte em voyeurs de seu exibicionismo, mas, ao mesmo tempo, perversamente, nos faz testemunhar tudo pelo viés da mulher, que passa a agente da ação sexual, submetendo sucessivos machos ao seu gozo. Naquele contexto preciso, da década de 70, tal filme representou uma visão bastante revitalizadora da pesada herança rodriguiana, feita com aval do próprio dramaturgo. 29 Neville D'Almeida, oriundo do cinema underground, realizou A dama do lotação com um olhar debochado, antiteatral e anticulpabilizador, que encarava parodicamente a dramatização entre quatro paredes da dialética entre sexo e remorso, contrapondo a isso um cinema livre e irreverente, que corria pelas ruas atrás do desejo de uma mulher. Tal liberdade de estilo e desprendimento moral não teriam tido, porém, tanto impacto não fosse o filme a culminância da carreira de uma atriz e, mais do que isso, do processo de construção de uma nova figuração da mulher no imaginário brasileiro — processo esse que competiu a Sônia Braga protagonizar, como se ela atendesse a um misterioso desígnio de nossa história cultural. Alcino Leite Neto Portal do cinema brasileiro Disponível em http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/nelson/obra%20adaptada/cinema/02_01_1 0.php Neville, popular e de vanguarda Neville D’Almeida, que ganha retrospectiva no Sesc Santo Amaro (de hoje a 8 de julho), é uma curiosa persona, mista de artista experimental e cineasta de grande público. Mineiro de BH e radicado no Rio de Janeiro, Neville fez filmes radicais e “malditos” no início dos anos 70, foi amigo e parceiro de Jorge Mautner e Hélio Oiticica e, como tal, detém carteirinha de sócio remido no restrito clube da contracultura brasileira. Por outro lado, é responsável por grandes sucessos na época áurea da Embrafilme, como A Dama do Lotação (1978) e Os Sete Gatinhos (1980), duas adaptações de Nelson Rodrigues. Segundo dados da própria Embrafilme, Dama fez 6,5 milhões de espectadores, até hoje a terceira maior bilheterias de um filme nacional, superado apenas por Tropa de Elite 2 e Dona Flor e Seus Dois Maridos. Como o próprio nome diz, a retrospectiva Neville D’Almeida não se limita à atividade do artista nas telas, pelo menos não apenas as do cinema. Procura também revelar seu insuspeitado lado multimídia através de uma série de atividades paralelas. Por exemplo, com a exposição Kayapoemas, trazendo intervenções de urucum e jenipapo sobre fotos dos índios Kayapos, do Sul do Pará. A série é inspirada nas Cosmococas, parceria entre Neville e Hélio Oiticica na Nova York dos anos 1970. Nesta, ícones pop como Marilyn Monroe, Yoko Ono e Jimi Hendrix eram desenhados com, adivinhe só, cocaína. Com os anos, mudaram a mentalidade, personagens e materiais usados nas intervenções. 30 Há também outras atividades, como workshops, peças de teatro, palestras, happenings. Entre as oficinas, uma, sobre o Cinema Marginal, será ministrada pelo crítico Christian Petermann. Outra, pelo bamba do desenho de cartazes de cinema Fernando Pimenta, autor dos pôsteres de filmes como Os Sete Gatinhos, Bye, Bye Brasil (Cacá Diegues) e Eu Sei Que Vou te Amar (Arnaldo Jabor). Haverá música também, com Jorge Mautner e Nelson Jacobina tocando temas de Jardim de Guerra (1970) e André Abujamra de A Dama do Lotação. A pluralidade de eventos reflete a diversidade de interesses do artista, cuja face mais pública de cineasta faz algum tempo não vem à cena. Daí o interesse em rever seus filmes. Além dos já citados, alguns que fizeram furor à sua época, como Rio Babilônia (1982), com sua violência urbana e a cena de sexo explícito na piscina. Ou Matou a Família e Foi ao Cinema (1991), releitura da obra-prima de Julio Bressane. Neville, que sempre gostou dos marginais, também adaptou para o cinema Navalha na Carne (1997), a peça de Plínio Marcos, dramaturgo santista da ralé portuária. No papel da prostituta Neusa Suely, a bela Vera Fischer, e, no do seu gigolô, o cubano Jorge Perugorría (de Morango e Chocolate). E daí, talvez, o interesse maior dessa retrospectiva de muitas faces – a apresentação do inédito Mangue Bangue (1971), filme experimental que se tornou mito em certo meio brasileiro por nunca haver sido exibido comercialmente por aqui. Obra finalizada por Neville em Londres, onde vivia exilado, Mangue Bangue era dado como perdido. Foi encontrada uma cópia, no MoMA, em Nova York, que a emprestou para ser exibida pela primeira vez no Brasil. Luiz Zanin Oricchio (Caderno 2 - Estadão - 17.maio.2012) A Dama do Lotação Ao contrário de Arnaldo Jabor, que partiu da experiência de condensar “O Casamento” – romance de mais de 200 páginas –, Neville D’Almeida teve que expandir o enredo de “A Dama do Lotação” (1978) – pequeno conto originalmente publicado em “A Vida Como Ela É...”, coluna assinada por Nelson Rodrigues em “A Última Hora” entre 1951 e 1961. Antes de virar série de televisão nos anos 90, “A Vida Como Ela É...” aproximou o escritor de um publico heterogêneo, acostumado tanto a Dostoievski quanto a embrulhar peixe no jornal da véspera. Essa frugalidade do material jornalístico – assumida sem traumas por outro mestre da literatura, Rubem Braga – não impediu o refinamento cada vez maior dos textos de 31 Nelson, um jovem senhor àquela época, no auge dos seus quarenta e tantos anos de idade, acostumado a teclar na máquina Remington com os dois dedos indicadores. Em “A Dama do Lotação” Solange e Carlinhos, namorados de infância, casam-se e o marido começa a suspeitar da esposa. Ficamos sabendo detalhes das famílias, do melhor amigo de Carlos, Assunção, e das rotinas de Solange, interessada a entregar-se todos os dias ao primeiro homem que visse no “lotação” – sinônimo antigo para os ônibus do perímetro urbano da antiga capital federal. Frágil e recatada com Carlos, Solange recusa-se a deitar com ele. Acreditando-se pura, sem qualquer indício de culpa, preserva o amor de Carlos acima de todas as coisas, deixando a parte “suja” aos homens quaisquer. Na versão adaptada e dirigida por Neville D’Almeida, há a intenção clara de dar caras e corpos aos conflitos subentendidos por Nelson, narrados no tempo em que não havia motéis, pílulas anticoncepcionais e o máximo de bestialidade que chegava ao público eram as curras de jovens consumidores de lança-perfume. Assim, a atmosfera ultra-naturalista do filme, de suor, calor e sexo, está refletida em muitas criações do diretor. O episódio em que Assunção (Paulo César Peréio) e Solange (Sônia Braga) flertam com os pés debaixo da mesa do jantar, é ambientado no show das mulatas de Sargentelli, o “Oba-Oba”. Na crônica, o momento servia de mero gancho, no qual Carlos (Nuno Leal Maia) percebia o algo mais entre os dois. Idem a clássica cena do banho de cachoeira com o motorista de ônibus, Bacalhau (Roberto Bonfim) – amigo do trocador Mosquito (o impagável e saudoso Ivan Setta) –; o psicanalista entediado (Cláudio Marzo) –; o affair com pai de Carlos (Jorge Dória), chicoteado pelas roupas da nora; os coitos no meio do cemitério – enquanto passa o cortejo de sepultamento –, na praia, com um vadio (Paulo Villaça) ou no mato, com um ex-funcionário do marido. O caso entre a falecida mãe de Carlos e uma amiga de colégio (Yara Amaral), merece consideração especial. No filme a carta bombástica, escrita pela última e entregue ao viúvo, parece ter saído das páginas de “Suzana Flag” – pseudônimo de Nelson, nos tempos de conselheiro sentimental –, apesar de não existir no conto original de “A Dama do Lotação”. Mas quando Carlos descobre as aventuras de Solange e declara-se morto para o mundo, trajado de cadáver sobre a cama, as mãos fixas, entrelaçadas sobre o peito, voltamos às sensações do texto em estado bruto. O fim revela o realismo quase-fantástico de Nelson, na imagem da morte imponderável, carregada nas tintas até para o próprio recreamento do escritor. Na ocasião do filme, a estrela Sônia Braga estampava as telenovelas, as revistas “Amiga”, e os produtos de exportação internacional, como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”. Encarou o desafio de encarnar a neurótica com grande talento, a ser 32 considerado sem os preconceitos que rondam atrizes bem fornidas. Delicada ou fora do eixo, uivando no encontro com Dória, transtornada entre os bancos do ônibus, a Solange de Sônia Braga não é diminuída na comparação com a ficcional. Ressalte-se também a qualidade da trilha sonora de Caetano Veloso, assobiada por dez entre dez pessoas depois da projeção. Se Neville D’Almeida empenhasse uma porcentagem da energia gasta em suas produções, para a consagração como diretor “sério”, poderia se deitar em berço esplêndido, com medalhões de louvor. O trabalho em “A Dama do Lotação” deve ser visto com calma por suas referências inter e extra-textuais, além de alcançar a sexualidade feérica, objetivo óbvio. Nelson co-produziu “A Dama do Lotação” – como de praxe nas adaptações de seus filmes nos anos 70, levando consigo a família Rodrigues, irmã e filho, para participar da equipe técnica. Nas entrevistas, repetia a máxima conhecidíssima, rebatendo comentários sobre o excesso de cenas picantes em adaptações para sua obra. Ouçam ao fundo aquela voz inconfundível, emitida num fiapo de força, antes de cair o pano: “Mas afinal o que vocês queriam do filme? Meu doce de coco, um filme não é um bombom de cereja!”. Andrea Ormond Estranho encontro Disponível em http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2006/01/dama-do-lotao.html A Dama do Lotação, de Neville D´Almeida A Dama do Lotação é quase um filme imbatível. Para atingir a massa popular que freqüentava o cinema brasileiro nos anos 70, a protagonista era Sônia Braga, atriz muito em alta na época por participar com grande repercussão de novelas na Globo. O chamariz “Sônia Braga pelada” foi fundamental para o alcance e repercussão que o filme conseguiu quando exibido comercialmente. Por outro lado, o longa adaptava (e ampliava) um conto de Nelson Rodrigues e trabalhava algumas referências que garantiam o lado “prestigioso” do longa-metragem, ajudando-o a se “justificar” como produto audiovisual relevante junto a qualquer patrulhamento que pudesse sofrer, fosse da parte da crítica, fosse de alguma parcela de público supostamente mais letrada – e bem menos liberal. Sendo assim, A Dama do Lotação atraiu aproximados 7 milhões de espectadores, o que o deixava como o segundo colocado no ranking brasileiro da época, atrás apenas de Dona Flor e seus Dois Maridos (feito dois anos antes e também com “Sônia Braga pelada”). Visto mais de três décadas depois, o filme de Neville D’Almeida perdeu boa parte de suas cartadas: a atriz é motivo de chacota desde quando foi tentar carreira 33 internacional e o uso de Nelson Rodrigues como baliza de reconhecimento já ficou para trás. E justamente por essas faltas é que A Dama do Lotação nos parece ainda tão fascinante: sem estes sustentáculos que o tempo tratou de explicitar, o filme continua surgindo muito forte na tela, ainda cheio de questões relevantes sobre a falsidade das relações sociais e como retrato, à base de acidez e ironia, da sexualidade tipicamente brasileira. Ora, Solange (Sônia Braga) agrega dois aspectos que parecem se contradizer e funcionam como retrato de duas facetas de boa parcela da população: a esposa recatada e sexualmente reprimida, e por isso uma boa esposa (“Era santa porque era fria”, diz o personagem de Jorge Dória, ao relembrar sua falecida mulher); e, ao mesmo tempo, a devassa sem um pingo de arrependimento ou moralismo, que se deita rotineiramente com o primeiro homem com quem se encontra ao andar de ônibus. Em cada camada de Solange, repousa uma série de valores e contradições muito facilmente identificáveis na sociedade, mas poucas vezes colocada à tona ou à prova – a não ser nos consultórios terapêuticos, dos quais Neville oportunamente faz joça. O que o filme vai desenvolver de modo despudorado (e, por isso mesmo, de maneira tão eficiente) é invadir as entranhas de uma falência familiar em que a ordem parece ter se invertido. Se o sogro da noiva valoriza a mulher carola e “pura”, a geração seguinte (a de seu filho, encarnado por Nuno Leal Maia) terá que se deparar cara a cara com a verdadeira face e conseqüência dessa carolice – ao mesmo tempo em que o próprio entusiasta desse tipo de comportamento (o pai) descobrirá uma intimidade até então desconhecida de sua própria esposa. É por conta disso que uma revelação que, à primeira vista, parece não se encaixar muito bem no filme (a carta revelando a antiga relação lésbica da mulher do pai) é tão primordial para o efeito que A Dama do Lotação provoca dentro do universo retratado na tela. É uma teia de segredos que sempre estiveram ali, apenas aguardando ser descobertos. Inserir questões como essas dentro de uma estética algo vagabunda, realmente sem vergonha, em que a nudez e o erotismo espreitam cada cena, é uma esperteza e tanto de Neville D’Almeida. Se é para falar de repressão e liberação, que os corpos nus façam as vezes de receptáculos das angústias dos personagens. O corpo é tão forte dentro do filme que, ao testemunhar a confissão das traições da esposa, o marido simbolicamente se suicida, pousando o corpo na cama sem perspectivas de sair dali. “Estou morto”, afirma categoricamente. E o espectador, mesmo vendo Nuno Leal Maia falando e respirando, acredita na sua morte, porque o que lhe importava era ter a mulher toda para si (mesmo “fria e santa”). Ao se deparar com o extravasamento físico de Solange, a única solução, na sua concepção, é se retrair e abandonar o mundo. Solange, por sua vez, continuará a figura errante que consegue prazer com rostos desconhecidos, e sua maior dificuldade será lidar com o não-comprometimento de suas próprias atitudes. O corpo e o ardor da paixão, assim, continuarão sendo maiores que a mente. 34 Marcelo Miranda Filmes Polvo Disponível em http://www.filmespolvo.com.br/site/eventos/cobertura/690 Os bons tempos voltaram - vamos gozar outra vez (1984), de Ivan Cardoso e John Herbert A fala a seguir foi extraída do livro “O mestre do terrir”, de Remier Lion. É um depoimento sobre Os bons tempos voltaram - vamos gozar outra vez (1984), de Ivan Cardoso e John Herbert Capítulo XXVI Os Bons Tempos Voltaram – Vamos Gozar Outra Vez Quando voltei ao Brasil, cheguei a ter várias reuniões com o Enzo Barone e o Renato Grecchi, em São Paulo, para tentar fechar o negócio de As Sete Vampiras. O Barone era mais produtore comercial e os atrativos que eu tinha para seduzi-lo eram – além do sucesso, da repercussão e dos prêmios obtidos com O Segredo da Múmia – a possibilidade de ter a Carla Camurati e o Mário Gomes, dois astros globais, como protagonistas do filme. Mas, infelizmente, o negócio acabou gorando porque o Barone teve um problema e foi obrigado a viajar para Honolulu. O concurso da Embrafilme foi se aproximando e me vi forçado a arranjar outro produtor de qualquer maneira. Acabei procurando o Aníbal Massaini, que topou entrar no negócio, mas com uma condição. Ele queria que eu o ajudasse a terminar uma comédia baseada em histórias de sexo entre primos. O Massaini já tinha um primeiro episódio pronto, dirigido pelo Walter Hugo Khoury, chamado As Primas, e queria fazer mais dois episódios, de 30 minutos cada. Imediatamente fui para sauna do Jóquei Clube. Li um monte de contos eróticos da revista masculina Ele & Ela e bolei um argumento de arrepiar, intitulado Sábado Quente. Convidamos o Daniel. Más para fazer o roteiro. O Daniel tinha prestígio enorme em São Paulo. Ele era editor da Vogue e também tinha escrito novelas para a TV Tupi. 35 Na época, ele tinha acabado de escrever um Caso Especial para a Globo e estava voltando a militar nessa área. Foi legal, porque o Aníbal aceitou, além do Daniel como roteirista, o Óscar Ramos na direção de arte e o Carlos Egberto Silveira como fotógrafo e câmera. Egberto vinha do Menino do Rio e de outros filmes da LC Barreto. Era um fotógrafo que já tinha passado pelo cinema paulista e havia estudado na Inglaterra, na The London Film School. O Egberto é o melhor iluminador que eu conheço. O Daniel Más era uma língua muito ferina. Um jornalista que revolucionou o colunismo social, ou melhor, sexual. Foi uma espécie de precursor do besteirol, embora não tenham lhe dado esse reconhecimento. O Daniel era muitopervertido e fez um roteiro, cheio de palavrões e de sacanagem, que satisfazia plenamente as taras do Aníbal. Embora eu próprio tenha feito o argumento, roteiro para mim é apenas uma série de indicações. Caminhos para eu compor as imagens que me fascinam. Eu até gosto de, no decorrer das filmagens, aumentar os papéis dos atores que estão mais afinados e criando o filme comigo. Reconheço que isso seja um problema para a produção. No sentido que acabo filmando coisas que não estavam previstas, mais de qualquer jeito isso sempre funcionou. Os Bons Tempos Voltaram lançou vários atores no cinema: meu primo Pedro Cardoso, o Alexandre Frota, a Karina Cooper, o Paulo César Grande, a Karen Accioly e o André Felipe Mauro, que era neto do Humberto Mauro. Essa fita também foi sensacional porque eu tive a oportunidade de trabalhar com vários atores veteranos que já tinham participado de outras produções da Cinedistri – como a Consuelo Leandro, o John Herbert, a Zezé Macedo, o José Lewgoy, o Tião Macalé, o Colé e o Wilson Grey. Completam o elenco, a deliciosa Tânia Bôscoli, a versátil Maria Gladys e a escultural Matilde Mastrangi – uma verdadeira deusa do sexo da Boca do Lixo. Os Bons Tempos Voltaram não é um filme de terrir, é uma comédia. Mas eu também já havia feito várias comédias em Super 8. Além disso, sempre fui fascinado pelo mundo kitsch do cinema erótico e era um espectador assíduo das pornochanchadas. Vi que a Múmia havia funcionando e queria fazer mais filmes. Os Bons Tempos foi filmado em 83, logo em seguida à Múmia. O filme foi lançado em 84, um ano fraco para o cinema brasileiro, mas teve muito mais bilheteria que a Múmia. Acho também que o ciclo da pornochanchada estava acabando. Mesmo assim, a fita ficou no terceiro lugar de 36 bilheteria daquele ano. Fez perto de 1 milhão de espectadores. Só devo ter chegado atrás dos Trapalhões e de mais outro filme pornô. Pela primeira vez, eu tive a possibilidade de filmar com duas câmeras. O Aníbal é um excelente produtor. E quando ele está no set, faz tudo: sobe em escada, acende refletor, bate claquete, etc. O Massaini tem uma vitalidade incrível. Pela primeira vez, vi uma pessoa que tinha mais energia do que eu. Tive até problemas com ele por causa disso. A gente tinha acabado de ter uma reunião. E quando eu chegava em casa, o telefone já estava tocando. Era o Aníbal, que já tinha mudado isso e aquilo. Ele era incansável na produção e tinha muita disciplina. É o sistema de produção mais parecido com o do Júlio Bressane que eu já vi na minha carreira. Só que totalmente voltado para o comércio e com muito mais bala na agulha. O Júlio não tinha produtor. E o Aníbal tinha o seu irmão caçula, o Oswaldinho, sempre com a sua mala 007 cheia de dinheiro, pagando todo mundo na hora e fazendo as coisas acontecerem no set. Foi uma pena porque, no final, por uma série de contingências, a gente não pôde concluir a filmagem dentro do plano previsto, que eram duas semanas. O Carlos Egberto passou mal no dia que a gente ia filmar a cena em que o Pedrinho Cardoso desvirgina a Carla Camurati, que era sua prima na história. Era o clímax do filme. Talvez o resultado dos Bons Tempos pudesse ter sido ainda melhor se a cena fosse filmada naquela noite. E teria evitado uma série de aborrecimentos. Porque, aí, houve uma briga danada entre os atores e o produtor. Esta cena era a mais importante para a conclusão do roteiro que os atores haviam lido e aceitado encenar. Ai criou-se um impasse. Tentamos filmar mais duas vezes essa cena, lá no Pontal do Recreio dos Bandeirantes. Na primeira tentativa, o Pedro Cardoso pisou num prego, durante um ensaio de teatro. A cena era na praia e ele não poderia enfiar o pé machucado na areia. Então adiamos novamente a filmagem. Na segunda tentativa, a Carla Camurati arrumou um torcicolo – que é o tipo da desculpa clássica de atriz. O Massaini é um produtor que está acostumado a lidar com esse tipo de problema. Levou até um médico na casa dela. Só que ele estava acostumado a trabalhar com feras mais domáveis que a Camurati e o Pedro, estrelas que escaparam totalmente do seu controle. Isso foi muito ruim, porque desencadeou uma série de brigas e acabei perdendo o maior produtor com o qual já trabalhei. O filme também era co-produzido pela Embrafilme. O Carlos Augusto Calil, que era o diretor da estatal, felizmente gostou do material filmado 37 e conseguiu apaziguar a gente. Todas as partes assinaram um acordo e fui novamente contratado, pelo Massaini, para rodar a tal seqüência sem a qual Os Bons Tempos não se completaria. Só que a cena não ficou com a temperatura que o Anibal desejava. Eles fizeram uma cena romântica e o filme beirava a pornochanchada… Montei o copião com Éder Mazini, um excelente montador. Ele era muito ligeiro, nunca trabalhei com um editor tão rápido. Fiz um primeiro corte aqui no Rio, com o lendário Radar, na moviola do Pedro Rovai. E o filme foi para São Paulo, para o Éder fazer o acabamento. Fui lá só para colocar as músicas e dar o corte final. Depois que a fita estava pronta, o Anibal deu o pulo do gato, acrescentando – como era hábito em muitas pornochanchadas – cenas com dublê de corpo... Só que, aí, como os atores já tinham assinado um novo contrato, não houve jeito de reclamar. A principio, as cenas me chocaram. Depois, pensando melhor, vi que esses takes acrescentados também eram artísticos. Porque só o cara arranjar os dublês de corpo e fazer a falsificação já era uma coisa sensacional. Da minha parte, não me envergonho da obra. Pelo contrário, me orgulho bastante de Os Bons Tempos Voltaram – Vamos Gozar Uutra Vez. Acho que o filme tem planos sensacionais e muita coisa bacana. A fotografia do Egberto, por xemplo, é espetacular. A cenografia e os figurinos do Óscar também são de primeira. A própria Camurati está deslumbrante no filme. Mas, ao mesmo tempo que os atores reclamavam da presença de um produtor tão agressivo assim no set, o Aníbal também me dava muita liberdade em várias outras áreas. Por exemplo, no caso da contratação da jovem atriz Karina Cooper. A Cinedistri tinha a tradição de contratar ex-misses para papéis coadjuvantes e, a princípio, foi um choque para o Massaini a minha indicação da Karina, que não era exatamente um modelo de beleza, mas uma ótima comediante. Ela acabou roubando a cena nos Bons Tempos e foi muito ousada nas cenas de sexo com o André Felipe Mauro e o Paulo César Grande, na época um ex-jogador de basquete. Outro ponto alto do filme foi a recriação do antológico Os Brotos Comandam, programa de rock’n’roll que o Carlos Imperial fazia na Rádio Guanabara, no final dos anos 50. A locução, recriada pelo próprio Imperial, costura boa parte do filme e ficou muito legal. Eu tinha conhecido o Imperial nas filmagens de O Monstro Caraíba, do Júlio Bressane. Foi um reencontro maravilhoso que só foi possível também graças ao Aníbal, que era seu grande amigo. O meu incansável produtor também conseguiu os direitos de músicas da Cely Campelo, de vários roquinhos brasileiros dos anos 50 e do clássico It’s 38 now or never, de Elvis Presley. A trilha sonora dos Bons Tempos chegou a ser lançada em disco pela Fermata. Foi sensacional. Entrevista Remier Lion O mestre do Terrir - imprensa oficial Eu te amo (1981), de Arnaldo Jabor Eu Te Amo Com todas as suas características de personagem histriônico e opinólogo compulsivo, Arnaldo Jabor conseguiu um belo feito: manter-se à tona do debate intelectual por mais de quarenta anos. Cineasta querido pela classe-média nos anos 70 e 80, cronista e comentador político nos 90 e 2000, foi esperto o suficiente para compreender que a morte de certas vacas sagradas -- Nelson Rodrigues à frente -- deixava enorme lacuna no pasto da análise político-social brasileira. Largando o cinema, tentou preencher este espaço, beneficiando-se da fraqueza de seus pares, que dificilmente conseguem enfrentá-lo a não ser pela maledicência e histeria coletiva. Concorde-se ou não com ele, a verdade é que Jabor sempre teve charme, motivação e talento. No finalzinho da década de 70, inebriado pela abertura, escreveu e dirigiu "Tudo Bem" (1978) -- luta de classes em Copacabana -- e principalmente "Eu te Amo" (1981), catarse depressiva, que profetizava o corpo -- naquele momento cantado em prosa e verso na literatura, na pornochanchada e nos motéis da incipiente Barra da Tijuca -- em breve interditado, neurotizado e transformado em bode por conta da Aids e do neoconservadorismo jeca. O país que assistiu a Paulo César Peréio nu, de cueca verde, traçando uma Sônia Braga no auge da gostosura, ao som de Chico Buarque, se assustaria caso pudesse espiar-se dali a dez anos, governado por Fernando Collor de Mello, ouvindo duplas caipiras e transando de camisinha. Imitando descaradamente "Last Tango in Paris" (1972), Jabor conseguiu a proeza de mostrar um fim de festa, noite ilógica em meio aos raios de sol que entravam com a volta dos anistiados. "Só o desejo, o gozo não", propõe Mônica (Sônia Braga), ou melhor, Maria -- a falsa prostituta apaixonada pelo aviador cafajeste Ulisses (Tarcísio Meira) -- que esbarra com 39 Peréio, o Paulo-empresário-falido, que guarda em um apartamento fantasma caixas e caixas de lingerie e comunica-se com a ex-mulher Bárbara Bergman (Vera Fisher) através de fitas de videoteipe. Bárbara, filha de sueco, trocou o atormentado Paulo por um cardiologista cardíaco, eternamente entre a vida e a morte por conta de um marca-passo. Trinta e oito anos, aparentando cinquenta, Paulo acreditava que o Brasil estava maluco, não tinha sentimentos. E que não valia mais a pena trabalhar, somente conhecer "as coisas reais". Verborragias pseudo-filosóficas não fazem sentido sem sexo, e o tesão dialético estava personificado na morenice brejeira de Maria. Ela dá (às vezes come) por tédio. Mente, como mentem todas as mulheres infelizes. O encontro entre eles lembra a dança de Gloria e Robert em "They Shoot Horses, Don't They?", obra-prima de Horace McCoy, levada ao cinema por Sydney Pollack. Ou qualquer filme de casal discutindo relação, desde "Same Time, Next Year "(1978) até "The Only Game in Town" (1970), passando, quem sabe, por "Who's Afraid of Virginia Woolf?" (1964) e reinventado na angústia de baixo-orçamento "Real Desejo" (1990), com Peréio ainda no papel de Peréio e Ana Maria Magalhães no barato da fêmea indomável. Mesmo sem amálgamas, solto no ar como obra nenhuma consegue ser, ainda assim "Eu Te Amo" seria lindo. Ou, como diria Ibrahim Sued, "lindo de morrer". De tão marcante, o reconhecemos principalmente pela fotografia de Murilo Salles, e pela imagem das janelas do modernoso apartamento na Lagoa, devassando a cidade e protegendo-se pela distância. O sonho dos brasileiros do século XXI, trancados em condomínios, monitorados por tvs de plasma e esposas-troféu, de certa forma esteve profetizado no universo de Paulo. Até sua ridícula conversa ao telefone, quando finge poder e seus olhos denunciam humilhação, é acting-out semelhante à imbecilidade narcísica que tomaria o país nos anos seguintes. Caçando um travesti, rastejando por sombras cenográficas com Maria, tentando uma expressão incomunicável, o filme necessita de Peréio. Provável que Jabor quisesse transformá-lo em mito, eternizando o ator que já vinha de experiências fascinantes como “Iracema, Uma Transa Amazônica” (1977), “Chuvas de Verão” (1978) e a pornochanchada cult “As Aventuras Amorosas de Um Padeiro” (1975). 40 Para Sônia Braga restou o consolo da beleza plástica, de tigresa, além de alguns monólogos rodrigueanos, proferidos sem muita convicção. Bem mesmo está o travestipsicanalista (Vera Abelha), que tem por Paulo um amor de mãe. Falando em pornochanchada, não custa lembrarmos que, estreando em março de 81, durante algumas semanas “Eu Te Amo” competiu diretamente com “Giselle”, em final de circuito no Rio. Digo isso pelo prazer de exumar das drogarias, sapatarias e academias de ginástica os falecidos cinemas de Copacabana -- Art-Palácio, Bruni, Condor, Ricamar, Rian, Roxy – e imaginar dois gênios cariocas nos cartazes: Arnaldo Jabor e Carlo Mossy, em ápice memorável. Andrea Ormond Estranho encontro Disponível em http://estranhoencontro.blogspot.com.br/2010/04/eu-te-amo.html Tudo Bem, Eu te Amo e Eu Sei que Vou te Amar: Arnaldo Jabor e a trilogia do apartamento Através de um passeio pela filmografia do cineasta Arnaldo Jabor, podemos perceber traços marcantes da trajetória do próprio cinema brasileiro. Distanciando-se da polêmica em torno do jornalista e aproximando-se de seu cinema e de suas qualidades artísticas, é possível abrir uma discussão produtiva sobre diversos temas de interesse para o Brasil e sua arte. A obra do diretor, fortemente autoral, revela a cada filme um momento específico do cinema nacional e traz, de forma mais ou menos implícita, todo um contexto histórico, social, ideológico, artístico e – muito relevante para a discussão aqui proposta - de produção. Jabor começa sua carreira com O Circo (1965), curta-metragem que acompanha uma trupe mambembe nos arredores do Rio de Janeiro. Opinião Pública (1967), seu primeiro longa, é um documentário que vai às ruas e registra a classe média carioca, seus pensamentos, suas contradições, sua alienação, seu comodismo. Ambos são influenciados pelo cinema verdade (cinema verité, sobretudo com o impacto de Eu, um negro (1958), de Jean Rouch), por Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas, 1963), pelo neo-realismo italiano e pela nouvelle vague, movimentos marcados por uma maior liberdade de filmar proporcionada por certas inovações tecnológicas equipamentos mais leves e som direto. Jabor se desloca até seu objeto - o povo -, filma 41 em locações, ao ar livre, debaixo da lona do circo, respirando a poeira da cidade e a maresia da orla. Em 1970, o diretor filma Pindorama, um épico fortemente alegórico que retrata as origens do Brasil. O longa se relaciona com esta fase do Cinema Novo em que alguns cineastas, sob a ameaça da repressão do regime militar, encontram na alegoria uma via de expressão. Entretanto, muitas vezes os filmes são tão figurados e carregam tanto na metáfora, numa tentativa de disfarçar seu conteúdo diante da censura, que acabam perdendo a capacidade de comunicação com o espectador. Já o próximo filme, Toda Nudez Será Castigada, baseado em texto de Nelson Rodrigues, é sucesso de público. O dramaturgo carioca e Bertolt Brecht são algumas das principais influências de Jabor. É também baseado em texto de Nelson Rodrigues o filme seguinte do cineasta – O Casamento. Em ambos, o diretor realiza uma espécie de melodrama crítico da sociedade burguesa. Uma recorrência em sua obra é o passeio entre o público e o privado – a utilização de microcosmos como a família ou o casal para falar de toda a sociedade, dos costumes e até mesmo da política brasileira. E assim chegamos à chamada Trilogia do Apartamento, formada pelos filmes Tudo Bem, Eu te Amo e Eu Sei que Vou te Amar. Tudo Bem é uma comédia de 1980 que retrata uma família da classe média carioca enquanto esta convive com os operários que realizam uma reforma em seu apartamento, localizado em Copacabana. A partir dessa premissa simples, mas densa e abundante em aspectos a serem abordados e refletidos, assistimos às situações que se desenrolam quando a classe média alta e o povo se vêem forçados a compartilhar um espaço restrito. O confinamento, presente nesses três filmes, acaba por ser um catalisador da emergência de certas questões. Dentro de um espaço fechado, os personagens não podem fugir – mostram-se cada vez mais inteiros, sem defesas, loucos, desvairados, decadentes. Estão ali disponíveis para nosso olhar, para que possamos nos deter por duas horas sobre eles e observá-los em cativeiro. O confinamento, portanto, propicia não só o olhar do voyeur, como a afluência da loucura do confinado e, sendo assim, contribui para o espetáculo – serve ele mesmo como combustível para a ação pegar fogo. Em Eu te amo e Eu sei que vou te amar, favorece a intimidade, estabelece o cenário de confiança para que o que é latente se torne manifesto. As discussões de cada casal (Sônia Braga e Paulo César Pereio/ Fernanda Torres e Thales Pan Chacon) se tornam cada vez mais íntimas, com desejos, mágoas, arrependimentos e segredos mais expostos. O lar, representado aqui 42 modernamente pelo apartamento, é também o lugar da privacidade do casal – da nudez, do sexo. A exposição é literal, sobretudo em Eu te amo, considerado pelo próprio Jabor como um filme sobre a sexualidade. O diretor inclusive admite que carregou no erotismo diante da conjuntura: era 1981, a censura era mais branda e as pessoas tendiam a forçar a barra propositalmente para testar os limites de até onde podiam ir. O apartamento de Eu te amo, com jogos de luz e espelhos, reflete os estilhaços do próprio casal – ambos recém-saídos de desilusões amorosas. A fotografia e a direção de arte são bem típicas de sua época e possuem até elementos disco – brilhos e fluorescências. A falência está presente não só nas relações anteriores dos personagens como no seu aspecto financeiro; Paulo é um executivo falido após o fracasso do milagre econômico, com a sala entupida de caixas do produto que vendia. Tanta a cenografia de Eu te amo quanto a de Eu sei que vou te amar favorecem uma leitura teatral, sugerida até mesmo por serem filmes essencialmente falados e concentrados num mesmo ambiente. Contudo, ultrapassam o teatro e se assemelham a uma instalação - espaços ícones da arte contemporânea. Nos cômodos, há televisões e telas exibindo imagens, trazendo para dentro do filme novas e externas dimensões, tanto de espaço como de tempo. Recursos como esses, além de alguns outros ainda por serem citados, evitam uma possível monotonia advinda do olhar constante para o mesmo objeto – o que pode ser abstraído para as relações de casamento, em que se convive no mesmo espaço com a mesma pessoa, acentuando-se assim a necessidade de criar e de se reinventar para poder prosseguir. As intervenções em vídeo ora representam o passado, ora pensamentos ocultos dos personagens, ora delírio, adicionando mais camadas de interpretação, ao mesmo tempo em que conferem aos dois filmes um certo ar de experimentalismo. Outro recurso que extrapola as paredes do apartamento é uma espécie de imaginação concretizada, como visto em Tudo Bem nos três companheiros imaginários/arquétipos brasileiros/alter-egos de Juarez (Gracindo). Há também elementos simbólicos espalhados, como o quadro de nudez e sua tensão sexual estampada na parede em Tudo Bem, e os manequins de Eu te amo e Eu sei que vou te amar, possíveis representações do Outro, fantasmas que volta e meia pairam entre os casais. Cada cena desses filmes sofre também a influência do cômodo em que ocorrem – algo que se dá na sala é diferente do que toma lugar na cozinha, no corredor, no quarto. Assim, a geografia do apartamento interfere na subjetividade do personagem e na ação. 43 O cinema de Jabor utiliza como ponto de partida e recorte de sua análise o microcosmo, situação entre poucas pessoas para poder ampliá-la em diversos níveis. O casal e a família num apartamento funcionam para falar de um bairro, da zona sul, da classe média, do Rio de Janeiro, do Brasil. Retrata relações amorosas e afetivas, mergulha na psicanálise, mas assim aborda poder, dominação, disputas quase políticas e aspectos sociológicos de uma nação. A convivência entre classe alta e baixa no apartamento de Tudo Bem alude à gritante desigualdade social no Brasil, com zonas nobres vizinhas de favelas e os diversos pontos de cruzamento entre as classes, bastante visíveis nos vínculos empregatícios – operários, empregadas domésticas. Em Tudo Bem a metáfora e sua amplitude são claras, escrachadas, dentro de um tom que está de acordo com a proposta de todo o filme. Entretanto, nem sempre a passagem do micro para o macro se dá de forma coerente e sentimos a transição abrupta. Em Eu te amo e Eu sei que vou te amar, muitas vezes os personagens se encontram concentrados em seus dramas e relações conturbadas quando, sem mais, alguém fala de Brasil e se lembra da existência de pessoas extra-apartamento. Thales Pan Chacon, no meio de uma discussão íntima, fala “o Brasil está devendo 100 bilhões de dólares, as multidões estão lá fora urrando de fome. E a senhora e eu nesse lero-lero de casal aqui. Pelo amor de Deus, isso não tem a menor importância pra vida humana!”, um comentário escrito de forma pedante e aparentemente tão desgarrado de seu contexto que causa uma sensação forte de estranhamento. A conexão do individual com o coletivo é essencial em Jabor, lembrando que duas de suas grandes influências são Glauber Rocha, um macro, e Nelson Rodrigues, um micro. Jabor ora fala do Brasil e seus problemas, ora fala do pequeno, do humano, dos devaneios de um par com dificuldades de relacionamento. Eu sei que vou te amar possui, em algumas outras cenas, essa mesma construção dos diálogos auto-importantes e um tom maçante, mas bastante amenizado no fechamento do filme com um enorme deboche. Não gosto de comentar finais, mas este é irresistível, principalmente levando em conta o nome do site em que escrevo: Fernanda Torres fala do polvo que está grudado no pé de Thales. Só que este não a ouve bem e fala “povo? Até que enfim alguém se lembrou do povo brasileiro!”. “Não, estou falando do poLLLvo, poLLLvo”. O diálogo surreal marca essa cisão do sujeito – a necessidade de levar as questões sociais e das massas a sério em conflito com um desejo egoísta de se preocupar apenas com seu umbigo e com o umbigo de quem se ama. E logo em seguida 44 o filme se fecha com um plano avacalhado, de um nonsense ainda mais saboroso, imagético, levando esse mal-entendido ao extremo. A dupla Eu te amo e Eu sei que vou te amar se insere num contexto em que alguns cineastas brasileiros começavam a perceber como ingênuas suas tentativas ambiciosas de revolucionar o mundo com seus filmes e abarcar toda uma complexa realidade. No livro O Processo do Cinema Novo, Jabor fala que com o tempo sua experiência “perdeu um pouco de seu caráter messiânico”. Segundo ele, o cinema voltou-se para o público numa atitude de humildade: “(o cinema) parou de desprezar o espectador, de paternizálo. Tentou de alguma forma encontrar um caminho de contato, um caminho mais fraternal”. Jabor, entre outros colegas, entra numa fase mais intimista, voltado para questões pessoais. No mesmo livro, Alex Viany diz: “Quando vem a violenta repressão de 1968, nós nos isolamos terrivelmente”. Walter Lima Jr., também participante da discussão, acredita que esse isolamento foi de certa forma positivo, pois cada um teve que procurar sua própria individualidade. Arnaldo Jabor concentrou-se no que sabia com mais profundidade – ele mesmo, seus dilemas, seus desencontros amorosos (já vinha de duas separações) e sua classe social. Até hoje, é um dos poucos cineastas brasileiros que falam da classe média. E esse interesse vinha desde o começo; se, devido à ditadura, era proibido falar sobre a miséria, criticar decisões políticas, mostrar o povo em sofrimento, em Opinião Pública resolveu filmar as pessoas que mantinham tal pobreza, sua estupidez, sua alienação – a classe média. Apesar da crescente pluralidade do cinema brasileiro, algumas matrizes temáticas ainda podem ser vistas com significativa recorrência enquanto outras, como esta que aqui se discute, encontram poucos representantes – Beto Brant, Domingos de Oliveira, Walter Salles, Sérgio Bianchi, entre poucos outros. É curioso perceber que a maioria dos cineastas de nosso país é proveniente da classe média, assim como a maior parte do público, mas que poucos filmes se debruçam sobre esse tema. Porque tão pouca gente está pensando a classe média? Seja para criticar costumes, preconceitos, comodismos, estreiteza de visão, seja para representar questões da vida, amores, profissão, preocupações financeiras, relações, intimidade, dilemas, liberdade, satisfação pessoal. Seriam essas questões menores? Não merecem espaço? Há muito se fala que o nosso cinema possui pouca força no que toca aos processos identitários com o público em geral. Quem vai ao cinema raramente se vê na tela, coisa que acontece mais freqüentemente quando nos deparamos com os cinemas europeu, 45 americano, argentino. Certamente temos questões mais urgentes, mas é importante pensar que refletir sobre a classe média não é abrir mão delas. Pelo contrário, é refletir sobre a raiz – e a manutenção - de vários de nossos problemas, mas por um novo ângulo. Goste-se ou não da figura de Arnaldo Jabor, goste-se ou não de seus filmes, não se pode negar que é um dos poucos que atenta para essa importante questão nacional e humana. Além disso, tem características altamente brasileiras e sabe como poucos juntar a fome com a vontade de comer – se influencia por vários movimentos da história do cinema e tira o melhor proveito das fases que viveu: se os equipamentos e o espírito da época permitem, vai às ruas; se a censura ameaça, cria metáforas; se a Embrafilme está falindo e a verba está curta, filma dois atores dentro de um apartamento. Jabor tem uma mistura de jogo de cintura com um oportunismo sadio, tirando o melhor de cada situação. E nos traz um pouco da reflexão autocrítica, esta sim uma coisa que não é lá muito farta no brasileiro. Mariana Souto Filmes Polvo Disponível em http://www.filmespolvo.com.br/site/artigos/close/210 Tudo o que Arnaldo Jabor filmou Há 40 anos, Arnaldo Jabor lançava seu primeiro longa-metragem, o documentário A Opinião Pública. Era época de Cinema Novo, quando os cineastas entendiam que haviam recebido um mandato popular. Falavam em nome do povo. Mas havia um enigma social: o que pensava a classe média, aquela que havia marchado ‘com Deus pela liberdade’, e aderira sem qualquer hesitação ao golpe militar que derrubou o presidente João Goulart? Era essa pergunta que movia o documentário que está agora completando quatro décadas e justifica a efeméride, comemorada pelo Centro Cultural Banco do Brasil com uma retrospectiva completa do cineasta. Sim, estão lá os sete longas-metragens dirigidos por Jabor, e mais dois curtas (O Circo, seu primeiro filme e o episódio Amor à Primeira Vista: Carnaval). Haverá ainda duas mesas de debates, uma delas, a de hoje, com o próprio Jabor, após a projeção de A Opinião Pública, programada para as 18h30. Neste e nos próximos dias, o público poderá conferir uma trajetória cinematográfica singular, e que se interrompe de forma prematura com as dificuldades que o cinema 46 brasileiro enfrentou no início da década de 1990. Foi então que Arnaldo Jabor deu início à sua atividade jornalística e tornou-se um dos colunistas mais conhecidos – e polêmicos – do País. Jabor escreve no Caderno 2 às terças-feiras e, numa de suas últimas colunas, anunciou que em breve retomará à carreira de cineasta, interrompida desde que dirigiu Eu Sei Que Vou te Amar, em 1986. Em seu segundo longa, Pindorama (1970), Jabor utiliza um tipo de retórica em voga na época, a alegoria. Para dizer como Guimarães Rosa, os cineasta eram alegóricos não por boniteza, mas por precisão. A idéia era burlar a censura, mas o preço a pagar era que se tornavam incomunicáveis e o público os rejeitava. Nessa história ambientada no século 16 para falar do presente, respira-se o ar de desespero do pós AI-5. Fizeram filmes assim também Ruy Guerra (Os Deuses e os Mortos) e Nelson Pereira dos Santos (Azyllo muito Louco). Em sacada feliz, como sempre, Paulo Emílio Salles Gomes, chamava-os de ‘filmes suicidas’. Seus dois longas seguintes são diálogos com a obra de Nelson Rodrigues – Toda Nudez Será Castigada (1973) e O Casamento (1975). O primeiro é mais bem logrado que o segundo. Aliás, Toda Nudez é uma das melhores versões para a tela de Nelson Rodrigues, com uma atuação iluminada, de entrega e visceralidade de Darlene Glória no papel da prostituta Geni. Já O Casamento foi feito propositadamente áspero, para épater, e, como diz o próprio Jabor, quando isso acontece, o público se vinga, deixando o cinema às moscas. Foi remontado pelo diretor, que aparou algumas arestas desnecessárias. Em ambos, o universo familiar pesado de Nelson Rodrigues, a burguesia, ou a pequena burguesia, com suas taras, suas obsessões sexuais, a dupla moral, a mesquinhez. É possível que aquela pesquisa sobre a classe média, que começara lá atrás com A Opinião Pública, tenha prosseguido na ficção, nessas adaptações de Nelson Rodrigues. Seu tom é o da ‘dicção apocalíptica’, na feliz expressão de Ismail Xavier. A cor saturada, as interpretações paroxísticas, a música intensa; enfim, universo de Nelson Rodrigues. Outro é o tom de Tudo Bem (1978), que Jabor considera seu melhor roteiro. Ele sintetiza as ambições totalizantes do Cinema Novo (que a essa altura já não existia mais), trazendo para dentro de um apartamento de classe média a totalidade da vida brasileira. Uma alegoria no microcosmo? Melhor talvez falar de uma meta-alegoria, que comenta a si mesma e de maneira nenhuma procura ser cifrada como a de Pindorama. 47 A sociedade de classes à brasileira, com suas contradições e abismos, é tematizada quando a família de classe média é ‘invadida’ pelos trabalhadores que fazem uma reforma no apartamento. É filme para ser revisto com atenção, pelo inventário e diagnóstico que faz esse desacerto social chamado Brasil. Novamente uma mudança de registro e preocupação com o díptico Eu te Amo (1980) e Eu Sei Que Vou te Amar (1984), imersões de um artista psicanalisado no difícil mundo do relacionamento, na questão do casal, na impossibilidade da relação total, para usar uma idéia de Lacan que ronda em especial esse diálogo corporal no abismo, cheio de som e fúria, que é Eu Sei Que Vou te Amar. Por ele, Fernandinha Torres ganhou a Palma de Ouro de interpretação feminina em Cannes. Qual um possível traço dominante, em obra tão variada? A tentativa permanente, e às vezes desesperada, de compreender esse quebra-cabeças chamado Brasil. Luiz Zanin Oricchio Blog do Estadão Disponível em http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/tudo-o-que-arnaldo-jabor-filmou/ 48