RENTISMO À BRASILEIRA: CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E
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RENTISMO À BRASILEIRA: CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 RENTISMO À BRASILEIRA: CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E CONTRARREFORMA AGRÁRIA NO CAMPO DO SÉCULO XXI Gustavo Francisco Teixeira Prieto Doutorando em Geografia Humana/FFLCH-USP [email protected] INTRODUÇÃO O presente artigo é resultado do andamento da tese de doutorado, intitulada Os conteúdos rentistas da questão agrária brasileira no século XXI: dinâmicas territoriais dos processos de constituição da propriedade privada e da desapropriação capitalista da terra, que se realiza no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo, financiada pelo CNPq, sob orientação do Prof. Dr. Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Na referida tese desenvolvemos a hipótese de que os conteúdos rentistas da questão agrária brasileira, quais sejam, a estrutura fundiária concentrada associada à mecanismos jurídicos de legalização de grilagem da terra, estão articulados a incisivos processos de combate à função social da terra, os quais podem ser interpretados como a continuidade de formas violentas de acumulação originária de capital atualizados no século XXI, com especificidades que demonstram peremptoriamente a barbárie moderna na periferia do capitalismo. Ou seja, compreendemos que existem dinâmicas territoriais do capitalismo rentista, possibilitadas pela fusão entre capitalistas e proprietários de terra, que se fundamentam na apropriação, desapropriação e grilagem de terras, para o qual a expansão do capitalismo necessita contraditoriamente de relações não-capitalistas para se produzir e se reproduzir, colocando o interesse sobre fronteiras não-capitalistas no centro das discussões. Diante disso, nosso objetivo na tese de doutorado é compreender os imbricamentos entre a constituição da propriedade privada capitalista da terra e a desapropriação capitalista como forma de constituição da aliança entre terra e capital no Brasil e as dinâmicas territoriais da acumulação de capital nesse processo. Constatamos que 485 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 a desapropriação de terras brasileiras é uma das formas capitalistas de sujeição da terra ao capital, visto que a desapropriação, em um conjunto de casos analisados, não é uma penalização aos latifundiários improdutivos que não cumprem a função social da terra, mas sim a garantia de retorno econômico lucrativo através de títulos da dívida agrária (mecanismo jurídico de indenização da propriedade e forma de pagamento da renda da terra ao proprietário de terra). Isto é, a desapropriação capitalista da terra é um mecanismo constitucional de preservação do direito absoluto à propriedade privada e a reprodução da utilização da terra como reserva de valor. As múltiplas estratégias utilizadas pelos proprietários de terra, como o recebimento de indenização por terras griladas, superindenizações em perícias, juros indenizatórios e compensatórios exorbitantes e utilização do INCRA para especulação de terras (através de perícias judiciais e laudos manipulados e/ou forjados) demonstram as dinâmicas territoriais da acumulação do capital, isto é, as facetas da barbárie moderna e capitalista no campo, no qual os camponeses (e também povos indígenas) estão convivendo e resistindo. Conclui-se desse movimento que o processo de acumulação originária do capital e a necessidade de territórios não-capitalistas para a expansão capitalista permanece no século XXI com tenacidade e violência ainda mais incisivas, o que gera conflitos, lutas e resistências1. Assim, chegando a metade da segunda década do século XXI e depois de mais de dez anos de administração federal petista nos parece fundamental contribuir com a crítica da economia política do capitalismo rentista brasileiro mantido e aprofundado sob a égide do Partido dos Trabalhadores, questionando o papel do governo de Luis Inácio Lula da Silva e do atual governo de Dilma Rousseff e suas políticas econômicas e agrárias. Busca-se, dessa forma, identificar os fundamentos articulados entre as questões econômicas e agrárias a partir do método marxiano do movimento progressivo-regressivo, pois Martins (1997) já afirmava que o tempo da questão agrária brasileira é longo e contraditório. O objetivo central do artigo é compreender as políticas agrárias durante o período dos dois mandatos de Lula da Silva (2003-2010) e do mandato de Dilma Rousseff (2011-2014) a fim de justificar que tais políticas estão de fato relacionadas à uma estratégia 1 Para o entendimento desses conteúdos rentistas compreendemos que a contribuição de Rosa Luxemburg é fundamental, especificamente nas suas teses sobre a relação dialética entre as condições históricas da acumulação do capital e a constituição de territórios não-capitalistas. Os desdobramentos luxemburguistas são decisivos para o estabelecimento de uma análise que verifique como a lógica do desenvolvimento capitalista moderno permanece calcada na fusão entre capitalista e proprietários de terras, movimento contraditório da forma rentista do capital, que se reproduz como conteúdo da acumulação capitalista no Brasil. Retomar o pensamento de Rosa Luxemburg e suas contribuições acerca das dinâmicas territoriais da acumulação do capital, prolongando suas reflexões e atualizando-as nos parece diante disso necessário e urgente. Expomos parte dessa argumentação em Prieto (2013). 486 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 de contrarreforma agrária que é desencadeada por um partido de histórico viés de esquerda na política brasileira. Parte-se, nesse sentido, da interpretação de que a propriedade fundiária não pode ser entendida como um entrave à expansão das relações capitalistas de produção no campo, conforme argumenta criticamente Oliveira (2010), mas como contradição fundamental do modo capitalista de produção e suas formas de poder e controle da economia, da sociedade e da política. Assim, relembremos que no Brasil há uma alta concentração fundiária nas mãos de uma diminuta quantidade de grandes proprietários que a utilizam como reserva de valor, como meio especulativo e reserva patrimonial. A elite agrária brasileira é mais rentista que produtiva, conforme Oliveira (1997; 2007), Martins (1981; 1994; 1997) e Silva (1997; 2008) verificaram densamente. Oliveira (2007) demonstrou a lógica da barbárie do campo brasileiro explicitada exemplarmente na estrutura fundiária concentrada. O autor verifica que mais de 2,4 milhões de imóveis (57,6%) ocupavam cerca de 6% da área (26,7 milhões de hectares) e menos de 70 mil imóveis (1,7%) ocupavam uma área igual a pouco menos da metade da área cadastrada no INCRA, ou seja, mais de 183 milhões de hectares (43,8%). Oliveira (2007) conclui também que se tal órgão fizesse cumprir os preceitos da desapropriação de latifúndios improdutivos, teria 115.054.000 hectares (20% da área total) passíveis a tal processo. Segundo Oliveira (2007), analisando o Atlas Fundiário Brasileiro publicado pelo próprio INCRA, há apenas 28,3% dos imóveis cadastrados como produtivos e, 62,4% da área dos imóveis cadastrados foram classificadas como não produtivas (improdutivo), ou seja, passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária. Essa dentre outras razões explicam a expectativa na sociedade brasileira quando ocorreu a eleição de Lula no final do ano de 2002. Pela primeira vez na história do Brasil um partido forjado na luta dos trabalhadores com clara identificação com os setores populares e militância histórica de esquerda chegava à dominação do poder político nacional. Todavia, desde que assumiu, em janeiro de 2003, o governo Lula praticou uma política econômica de inclinação inequivocamente liberal, confirmando o que muitos esperavam, alguns com angústia, outros com alívio (PAULANI, 2008). Na avaliação de Boito Júnior (2005) os membros da equipe governamental não tocaram na herança neoliberal de FHC: a abertura comercial, a desregulamentação financeira, a privatização, o ajuste fiscal e o pagamento da dívida, a redução dos direitos sociais, a desregulamentação do mercado de trabalho e a 487 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 desindexação dos salários. Paulani (2008) argumenta que as afinidades do governo Lula no plano econômico se fundamentam em uma política ortodoxa baseada nos interesses dos mercados internacionais de capitais (e realizado pelas frações de classe em âmbito nacional), quais sejam, elevada taxa de juros, mudança no mercado cambial com a consequente facilitação do envio de recursos para o exterior, melhoria dos ambientes de negócio (defesa dos direitos dos credores via nova Lei de Falências) e desregulamentação do mercado de trabalho (a famigerada flexibilização das leis trabalhistas, isto é, perda substancial de direitos) e nas políticas compensatórias de renda (as políticas agrárias e sociais efetivas são postas em segundo plano). A determinação econômica de base neoliberal é o fundamento e a ortodoxia da mundialização do capitalismo baseado na financeirização das relações sociais e da determinação do econômico sobre o político. O primeiro mandato do governo de Lula da Silva (2003-2006) foi um momento inicialmente histórico de esperança na realização da reforma agrária. Oliveira (2007; 2010; 2011) afirma, porém, que a marca do primeiro mandato é a efetivação da não reforma agrária, isto é, a criação do II Plano Nacional de Reforma Agrária não efetivou a pauta histórica dos movimentos sociais da distribuição de terras, mas justamente o oposto: a reforma agrária acoplou-se à expansão do agronegócio no Brasil. Segundo Oliveira (2011) a esperança foi desaparecendo com o não cumprimento das metas de assentamento de novas famílias e, pela divulgação enganosa dos números das Relações de Beneficiários emitidas. Assim, a política de reforma agrária do governo do PT no primeiro mandato foi marcada por dois princípios: não fazê-la nas áreas de domínio do agronegócio e, fazê-la apenas nas áreas onde ela pudesse contribuir com as estratégias econômicas, políticas e territoriais do agronegócio. Assim, durante o governo Lula, as principais políticas agrárias não tem a reforma agrária como mote, muito menos um debate aprofundado sobre a função social da terra. Há, sobretudo, o incentivo à expansão da exportação de commodities, política voltada para atender o processo de formação de amplas reservas internacionais, fundamentais para a consolidação da internacionalização da economia, políticas de incentivo aos investimentos internos, organizado através da consolidação do complexo sucroenergético e o conjunto de medidas provisórias, consolidadas no Programa Terra Legal, que realizam a regularização fundiária da grilagem de terra (OLIVEIRA, 2011). Esse é o movimento da contrarreforma agrária, o esvaziamento dos sentidos políticos e econômicos da questão agrária no segundo 488 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 mandato do governo de Lula (2007-2010). Dilma Rousseff (2011-2014) aprofundou as estratégias de contrarreforma agrária, o que pode ser explicitado pelos menores índices de assentamento de camponeses sem-terras desde a década de 1990, pela ampla expropriação e violência aos posseiros e indígenas a partir de megaprojetos estatais de desenvolvimento econômico e pela manutenção de profundas relações político-ideológicas com os setores dirigentes do agronegócio brasileiro, inclusive com a aprovação do novo Código Florestal. Diante disso, é no desenvolvimento desses conteúdos do rentismo no século XXI, manifestado pela contrarreforma agrária que esse trabalho versa. CAPITALISMO RENTISTA À BRASILEIRA: PRESSUPOSTOS MARXISTAS Partimos de alguns pressupostos para compreender a propriedade privada da terra no Brasil. Nossos fundamentos são de que a lógica do desenvolvimento capitalista moderno está calcada no processo que se realiza de forma desigual e combinada e de que a forma rentista do capitalismo brasileiro se substancia na fusão na mesma pessoa do capitalista e do proprietário de terras. José de Souza Martins (1981; 1994; 2010; entre outros) discorre amplamente sobre tal aliança entre terra e capital. Conforme salienta Oliveira (1997; 2007), a terra na sociedade brasileira é uma mercadoria especial funcionando ora como reserva de valor, ora como reserva patrimonial. Ou seja, há no Brasil um monopólio sobre a propriedade privada da terra através primordialmente da grilagem e da venda de terras griladas para realização da produção de capital. Diante disso, constata-se que a formação territorial brasileira é conseqüência do processo através da qual o capital submeteu a terra à sua lógica econômica da exploração (OLIVEIRA e FARIA, 2009) vide, por exemplo, a Lei de Terras de 1850 2 e o Programa Terra Legal3, (programa de regularização fundiária de terras até 1.500 hectares na Amazônia Legal) de 2009, exemplos de legalizações da grilagem de terras no Brasil. 2 Martins (1997) argumenta que a Lei de Terras funde os direitos de posse e domínio. O referido autor afirma que o Estado brasileiro, que dominava todas as terras, abre mão desse direito e literalmente realiza a doação aos proprietários particulares. Tal lei estabelece um regime de propriedade que impede o direito de propriedade da terra a quem não tivesse dinheiro acumulado para comprá-la, mesmo que a terra fosse pública ou devoluta. 3 Para Oliveira (2011) o Programa Terra Legal é o principal instrumento da contrarreforma agrária realizada durante o segundo mandato do governo de Luis Inácio Lula da Silva. As Medidas Provisórias 422 e 458, antecedentes do Programa, já apontavam a ampliação das possibilidades de regularização da grilagem da terra pública rural e urbana na Amazônia Legal (OLIVEIRA, 2010; 2011), realizando a manutenção jurídica da barbárie capitalista (PRIETO e VERDI, 2009). O Incra, então, não realizou o terceiro plano de reforma agrária e o Ministério do Desenvolvimento Agrário criou o Programa Terra Legal para regularizar as terras públicas do Incra, griladas pelo agronegócio colocando em mesmo estatuto jurídico posseiros e grileiros de terra. 489 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 A terra é um bem natural e não pressupõe trabalho na sua constituição, fundamento que a estabelece como equivalente de capital. Nomeia-se renda ao rendimento que deriva da mera propriedade, ou seja, é rentista todo aquele que tem direito a uma parcela do valor socialmente produzido pelo mero fato de ser proprietário (PAULANI, s/d), ou seja, há uma modalidade de apropriação de riquezas apropriada por proprietários de terra que produzem nela ou não, mas que recebem tributos sociais pela posse da terra nua, a renda da terra. Diferentemente de David Ricardo que afirma que a renda fundiária provinha da diferença natural, ou seja, da existência de terras de fertilidade distintas, para Marx o que explica a questão da renda fundiária é a condição da terra ser monopolizável. Segundo Marx (1985), a propriedade de terras por parte de uns, o que implica a não-propriedade por parte de outros, é o fundamento do modo capitalista de produção. O capital não pode existir sem a propriedade de terras, pois faltaria um elemento para a produção do capital. O latifúndio possui na propriedade do solo (condição para a renda absoluta) e na diversidade natural dos tipos de solo (condição para a renda diferencial) um título que lhe permite embolsar uma parte desse mais trabalho ou dessa mais valia. O capital cria uma forma particular de riquezas, o valor baseado no trabalho (ROSDOLSKY, 2001). Porém, existe “o valor dos agentes naturais” (terras agricultáveis, quedas d’água, minas, etc.) que não são produtos do trabalho, mas que são objetos de apropriação, tendo por isso valor de troca, entrando assim nos cálculos dos custos de produção. Explica-se esse valor através da teoria da renda. A moderna renda da terra é uma criação específica do capital, a única criação que faz surgir um valor diferente de si mesmo, de sua própria produção. Desse modo, para Oliveira (2007) o desenvolvimento contraditório do modo capitalista de produção, particularmente em sua etapa monopolista, cria, recria, domina relações não-capitalistas de produção como, por exemplo, o campesinato e a propriedade capitalista da terra. A terra sob o capitalismo para o referido autor tem que ser entendida como renda capitalizada. O advento da propriedade privada foi retratado particularmente por Marx (1985) na Inglaterra e por Martins (2010), Oliveira (1997; 2007), Silva (2008), Mota (2008) dentre outros no caso brasileiro. Nos autores supracitados, destaca-se fundamentalmente, a instituição da Lei de Terras em 1850 e seus desdobramentos, por exemplo, os inúmeros casos de grilagem de terras que acompanham a história fundiária brasileira do período colonial à contemporaneidade, da terra como domínio público (sesmarias) ao seu domínio privado. 490 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 Com os cercamentos dos campos no caso inglês, transfigura-se a terra de um recurso comum de uso comunitário em um bem privado, ou seja, a “cerca” (ou a instituição da propriedade privada) tem o objetivo de excluir o restante da sociedade do seu uso (TEIXEIRA, 2007). No caso do Brasil, com a instituição do cativeiro da terra, ou seja, na passagem da renda capitalizada no escravo para a renda territorial capitalizada, recriam-se as condições de sujeição do capital ao trabalho, engendrando os mecanismos sucessórios da coerção física e da coerção econômica articuladas e o imaginário da ascensão social pelo trabalho (MARTINS, 2010; 1997). Para Martins (2010), se no regime sesmarial da terra livre o trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre a terra tem que ser cativa. Silva (2008) argumenta que uma das características da constituição da propriedade da terra no Brasil é que a propriedade territorial se constituiu fundamentalmente a partir do patrimônio público, e a autora esclarece as condições da passagem das terras públicas para o domínio privado. Silva (2008) argumenta ainda sobre as articulações entre os proprietários de terra e o Estado demonstrando que a Lei de Terras (1850) normatizou o processo de aquisição de domínio sobre as terras e que tal lei formou o arcabouço jurídico dentro do qual se constituiu a moderna propriedade fundiária. Esse processo de consolidação da propriedade privada é mediado pelo Estado e vinculado à consolidação do Estado nacional brasileiro. O capital expande a produção capitalista no campo, mas gera também o latifúndio e a reprodução dos camponeses. Essa lógica de desenvolvimento é explicitada por uma característica que o capitalismo no Brasil configurou: o predomínio dos latifúndios não é um entrave para o capital (OLIVEIRA, 2010), mas a possibilidade via especulação de se produzir capital fora dos circuitos produtivos, demonstrando peremptoriamente sua faceta rentista. A terra não é reprodutível quanto maior for a demanda social pela sua utilização produtiva, maior será seu processo de valorização. Tal valorização converte-se em renda, pois dela vai depender a disposição da classe dos proprietários de terra em atender as exigências sociais crescentes, a partir da ampliação dos cultivos ou na transferência de frações de terras ociosas para quem queira produzir (PAULINO; ALMEIDA, 2010). Em países do capitalismo central, ao dividir-se a terra e gerando uma ampliação dos que os detêm, diminui-se o poder de classe dos proprietários em definir os parâmetros de retorno econômico para promover o seu uso produtivo no campo e na cidade. Essa 491 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 racionalidade capitalista convém as demandas de expansão para a consolidação do mercado interno e para o desenvolvimento da prevalência do lucro em detrimento da renda (PAULINO; ALMEIDA, 2010), visto que a renda é um tributo social paga pelo conjunto da sociedade em função de seu monopólio da terra por parte da classe dos proprietários de terra Contraditoriamente aos países capitalistas centrais, no Brasil não houve significativos conflitos entre proprietários de terra e burguesia, visto que a própria burguesia emerge do seio do latifúndio, de fato o que ocorre é uma soldagem dos interesses de classe. Paulino e Almeida (2010: 12) enfatizam: (...) no modelo clássico, a burguesia constitui-se como força contra-hegemônica às estruturas de poder remanescentes da ordem feudal, ao passo que no Brasil, constituído sob a égide do capitalismo comercial, parte relevante da riqueza sob controle dos agraristas envolvidos com a economia agroexportadora foi direcionada para as atividades urbano-industriais, a princípio justamente como estratégia para aumentar os ganhos da atividade agrícola. Com isso, alguns personificaram duas situações de classe: proprietários fundiários e, ao mesmo tempo, empreendedores urbano-industriais, burgueses enfim. É por isso, que a consolidação da economia urbano-industrial prescindiu de intervenções profundas na estrutura de propriedade, a despeito do caráter inconciliável entre renda e lucro. Mas isso teve um preço, que a sociedade brasileira conhece tão bem: o da desigualdade, uma das mais pronunciadas do planeta. O capitalismo rentista brasileiro fundamenta-se então nessa soldagem da oligarquia latifundiária e a burguesia, no qual a concentração fundiária e a manutenção dos mecanismos de concentração fundiária são os motores de sua existência e natureza capitalista específica. A barbárie capitalista substanciada nos conflitos no campo e no deslocamento da fronteira capitalista no Brasil demonstram a violência como conteúdo de legimitação politica. O conflito, portanto, é o motor desse processo contraditório de expansão capitalista, no qual, em inúmeros casos, o papel do Estado em associação às forças repressivas de proprietários de terras e empresas capitalistas substancia a violência da ocupação (a marcha para o oeste brasileiro, a expansão do agronegócio, os projetos de colonização na Amazônia, os grandes projetos nacionais hidrelétricos, etc.). O movimento de expansão do capitalismo rentista reproduz-se a partir de mecanismos dialeticamente relacionados: a necessidade de expansão sobre territórios não-capitalistas e a busca por mercados externos, tanto no movimento de expansão capitalista dos Estados nacionais 492 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 quanto na expansão do comércio e das relações de troca no interior das unidades políticas nacionais. A compreensão aprofundada do rentismo á brasileira apresenta um papel central na formação territorial brasileira e desvenda seus conteúdos no século XXI é tarefa fundamental, afinal capitalismo produz conflitos e por onde atravessa gera resistência e escombros. Partimos agora para apresentação de resultados parciais da avaliação dos novos conteúdos rentistas: a reprodução e aprofundamento econômico da soldagem de classe (terra e capital) com a centralidade do agronegócio e a contrarreforma agrária e a consolidação política da tese do fim do campesinato a partir da vulgarização do conceito de agricultura familiar CONTEÚDO RENTISTA DA QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA NO SÉCULO XXI: REPRODUÇÃO E APROFUNDAMENTO ECONÔMICO DA ALIANÇA DE CLASSE (TERRA E CAPITAL) – A CENTRALIDADE DO AGRONEGÓCIO E A CONTRARREFORMA AGRÁRIA Segundo a avaliação crítica das políticas econômicas e agrárias de Filgueiras e Gonçalves (2007), o primeiro mandato do governo de Lula da Silva (2003-2006) desenvolveu um processo de adaptação passiva e regressiva do país ao sistema econômico internacional e ao sistema mundial de comércio, em particular. A maior competitividade internacional centrou-se nos produtos intensivos, em recursos naturais e, nos aspectos centrais, prolonga o modelo liberal periférico desenvolvido na década de 1990 por Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e profundamente por Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). As políticas voltadas para o agronegócio são característicos da forma subalterna e marginal de entrada brasileira no mercado internacional. Assim, Carvalho Filho (2013) constata que adotando esse modelo econômico, a condição colocada foi a centralidade da pauta de exportação de commodities em vultosas quantidades a fim de equilibrar a balança comercial. Essa estratégia retrógrada (FILGUEIRAS; GONÇALVES, 2007) substanciou enormemente o poder político dos latifundiários e fez dos governos petistas duplamente aliados e reféns da bancada ruralista do Congresso e do Senado Federal e dos interesses agroexportadores do Ministério da Agricultura e do Ministério do Desenvolvimento, da Indústria e do Comércio Exterior. No âmbito do primeiro mandato são aprovados a liberação do plantio de transgênicos na agricultura e um conjunto de medidas compensatórias para um câmbio valorizado. Além disso, no papel de protagonista político, o agronegócio efetivou uma política externa de negociações comerciais multilaterais no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC) no atendimento de interesses dos 493 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 setores sucro-energéticos, de produção de grãos e carnes. O segundo mandato de Lula da Silva (2007-2010), de acordo com Oliveira (2010) na contra-mão da história mas consonante aos governantes neoliberais da década passada, inicia-se sem que sequer a metade das metas das 540 mil famílias assentadas do II Plano Nacional da Reforma Agrária (PNRA) fosse atingida, além disso o governo não elaborou o III PNRA. Assim, a estratégia oculta do primeiro mandato revela sua real intenção no segundo mandato: iniciar a contrarreforma agrária. No contexto dos oito anos do governo de Luis Inácio Lula da Silva desenvolveu-se uma passagem econômica, territorial, social e sobretudo política da não-reforma agrária para a contrarreforma agrária, exemplarmente observável pelo projeto de regularização de terras griladas na Amazônia com o Programa Terra Legal (face central da contrarreforma agrária, isto é, a legalização de mais de 50 milhões de hectares na Amazônia Legal e a igualização jurídica de grileiros e posseiros), pela farsa do discurso da estrangeirização de terras no Brasil (OLIVEIRA, 2010) e também pelas tentativas de redução do tempo de resgate dos títulos de dívida agrária, fundamentado em uma política econômica ortodoxa e voltada para transformação do Brasil em plataforma de valorização econômica, baseada na servidão financeira4. O governo Dilma Rousseff aprofunda o processo de contrarreforma agrária sob o signo do desenvolvimento capitalista mundializado no país e, como se fosse possível, a bandeira da reforma agrária é suprimida do horizonte político conforme argumenta Oliveira (2010). Já no plano de governo de Dilma Rousseff há propostas de subordinação da reforma agrária ao plano de erradicação dos miseráveis da sociedade brasileira eufemisticamente denominados de "pobreza extrema". Durante o governo Dilma Rousseff (2011-2014), o INCRA passou a ter como principal prioridade fornecer assistência técnica aos assentamentos, ao invés da realização da desapropriação de terras. Em nome dos supostos interesses dos assentados, a reforma agrária é colocada em segundo plano, ou seja, o fundamental acesso à terra aos camponeses e a função social da terra são sumariamente descartados. Carvalho Filho (2013) enfatiza que a argumentação governamental toma por base teórica e ideológica a pobreza como sinônimo dos índices de baixa produtividade dos 4 Segundo Paulani e Pato (2005) e Paulani (2008), para compreender a servidão financeira e os fundamentos econômicos que nos prendem ao centro do sistema é preciso analisar mais que o consentimento à dominação, como apontam as discussões no âmago da teoria da dependência de Cardoso e Faletto (1970) dentre outros, mas a instituída relação de produzir uma servidão. Há nesse momento uma dependência não mais consentida, mas desejada, com um regime de acumulação sob dominação financeira internacional (CHESNAIS, 1998) confirmado pela doutrina neoliberal desencadeada na década de 1990, iniciadas nos governos Collor-Itamar Franco, fundamentalmente desenvolvidos no governo FHC e referendados e potencializados no governo Lula. 494 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 assentamentos e o suposto atraso tecnológico (e também histórico) dos camponeses. Delinearam-se, então, medidas políticas de bloqueio à obtenção de terras em vista de políticas de melhoria dos precários assentamentos (apelidados pelo ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria Geral da Presidência da República, de "favelas rurais"). Para a política de combate à “pobreza extrema”, uma das ações de governo foi a inscrição de assentados no Cadastro Único de Programas Sociais (que possibilita, por exemplo, o direito ao recebimento do programa Bolsa Família), outra decisão do governo Dilma foi que dentre os fatores para a escolha das áreas para reforma agrária, foram priorizadas as áreas com "densidade de população em situação de pobreza extrema" e a "existência de ações no âmbito do plano Brasil sem Miséria". Segundo Carvalho Filho (2013) esse discurso pseudomodernizador é falso, pois ignora que reforma agrária implica um conjunto de políticas que inclui desapropriação, produção, saúde e educação. Além disso, o governo Dilma é o que menos desapropriou imóveis rurais para fazer reforma agrária nos últimos 20 anos. Gráfico 1. A desapropriação de imóveis rurais por decretos presidenciais (1985-2012). Fonte: Folha de São Paulo / INCRA, 2013. As aprovações do Novo Código Florestal e os megaprojetos de desenvolvimento, como hidrelétricas na Amazônia brasileira, reforçam os interesses do pacto de classes dominantes no Brasil balizado na soldagem de classes (terra e capital) e na centralidade dos 495 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 interesses do agronegócio. O saldo desse processo é que a reforma agrária fica no esteio das políticas públicas e a massa de camponeses sem terra sem acesso à terra de trabalho para a reprodução de seu modo de vida e reprodução econômica. Vejamos agora como os principais candidatos a presidência da Republica no ano de 2014 tratam a questão agrária e aprofundam outros conteúdos rentistas. CONTEÚDO RENTISTA DA QUESTÃO AGRÁRIA BRASILEIRA NO SÉCULO XXI: A CONSOLIDAÇÃO POLÍTICA DA TESE DO FIM DO CAMPESINATO A PARTIR DA VULGARIZAÇÃO DO CONCEITO DE AGRICULTURA FAMILIAR Analisando as propostas de programa de governo dos principais candidatos a presidência da República brasileira para as eleições de 2014, quais sejam Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT), Aécio Neves do Partidos Social Democrata Brasileiro (PSDB) e Eduardo Campos do Partido Socialista Brasileiro (PSB), verifica-se peremptoriamente a construção de um consenso entorno da manutenção e institucionalização de proteção e absolutização dos interesses de classe dos grandes proprietários de terra e da propriedade privada capitalista da terra. Os três candidatos tocam na questão da reforma agrária. Nas Diretrizes gerais do plano de governo especificamente no item Segurança alimentar e nutricional saudável, o programa da coligação Muda Brasil (PSDB, DEM, PTB, SD, PMN, PTC, PTdoB e PTN) encabeçada pelos candidatos Aécio Neves (PSDB) e Aloysio Nunes (PSDB) lê-se: “Apoio à reforma agrária e ao fortalecimento da agricultura familiar de base agroecológica, como base para emancipação familiar” (DIRETRIZES GERAIS DO PLANO DE GOVERNO – AÉCIO NEVES: 28). É esclarecedor perceber o que a coligação interpreta como emancipação e a análise sobre os assim chamados pequenos produtores rurais. No item Desenvolvimento sustentável da agricultura familiar uma das diretrizes centrais apresentadas é: Apoio aos investimentos, por parte de estados e municípios, na formação e capacitação dos pequenos produtores rurais, de forma a promover a melhoria tecnológica e permitir sua emancipação sociopolítica, livrando-os da dependência histórica e inserindo-os de forma proativa na agenda do desenvolvimento (DIRETRIZES GERAIS DO PLANO DE GOVERNO – AÉCIO NEVES:13, grifos nossos). Em perspectiva ideológica semelhante, a Coligação Unidos pelo Brasil (PSB, PPS, PRP, PSL, PPL) que apresenta a candidatura de Eduardo Campos e Marina Silva nas Diretrizes 496 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 do Programa de Governo da Aliança afirma no item Economia para o desenvolvimento sustentável a sua interpretação sobre a reforma agrária: (…) é preciso retomar e qualificar a reforma agrária, que promova o desenvolvimento do campo com justiça social, garanta o acesso a terra e bem-estar para as famílias de pequenos produtores no meio rural, especialmente com ações voltadas ao apoio técnico e financeiro à produção nos assentamentos e desenvolvimento educacional as crianças e aos jovens assentados (DIRETRIZES DO PROGRAMA DE GOVERNO DA ALIANÇA – EDUARDO CAMPOS E MARINA SILVA:18, grifos nossos). A questão do desenvolvimento do campo e do progresso tecnológico aparecem como pressupostos ideológicos da questão agrária: É essencial, ainda, qualificar tecnologicamente nossa agropecuária, compreendidos os produtores empresariais, de suma relevância para o adequado desempenho da economia brasileira, bem como a agricultura familiar, fundamental para as estratégias de enfrentamento da pobreza, geração de emprego e renda no campo. É possível dobrar a produção de alimentos sem reduzir a área de cobertura vegetal natural (DIRETRIZES DO PROGRAMA DE GOVERNO DA ALIANÇA – EDUARDO CAMPOS E MARINA SILVA: 17-18). Em consonância ideológica aos pressupostos da questão agrária levantadas pelos outros candidatos, o programa de governo Mais mudanças, mais futuro da coligação Com a força do povo (PT, PMDB, PDT, PCdoB, PP, PR, PSD e PROS) dos candidatos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (PMDB) enfatizam que de 2003 até hoje: No campo, 771 mil famílias tiveram acesso à terra por meio da Reforma Agrária, com acesso a crédito fundiário. Entre 2003 e 2013, 51 milhões de hectares foram incorporados pelo programa de reforma agrária. Fizemos da inclusão social um fator de dinamização da economia brasileira e os resultados são extraordinários: mais emprego, mais renda, mais futuro para todos os brasileiros (PROGRAMA DE GOVERNO – DILMA ROUSSEFF, 2014: 19, grifos nossos). Enfatizando aspectos relacionados ao credito agrícola o programa realiza a seguinte leitura das politicas agrárias desenvolvidas no período. Foram adotadas também políticas consistentes e continuadas de apoio ao agronegócio e à agricultura familiar. A produção de grãos saltou de 96 milhões de toneladas em 40 milhões de hectares, na safra 2001/2002, para 191 milhões de toneladas em 56 milhões de hectares, na safra 2013/2014. Tamanho aumento da capacidade de produção e da produtividade foi possível pela expansão do 497 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 crédito e das políticas de apoio à produção e será ainda mais impulsionada pela conclusão de obras estratégicas de infraestrutura. Para a safra de 2014/2015, estão previstos R$ 156,1 bilhões para financiar o agronegócio. Como resultado da política de fortalecimento da agricultura familiar, com crédito, seguro-safra e políticas de comercialização, a renda no campo aumentou 52%, em termos reais, nos últimos quatro anos. Para a safra 2014/2015, o crédito para agricultura familiar será de R$ 24,1 bilhões (PROGRAMA DE GOVERNO – DILMA ROUSSEFF:10, grifos nossos). Compreendemos que o campesinato é tomado nas três propostas como agricultor familiar, embora soem como sinônimos, Bombardi (2003) alerta-nos que por trás dessas definições teóricas há uma distinção diametralmente oposta entre essas duas formas de analisar o campo, as relações sociais dos sujeitos, seu modo de vida e sua produção econômica. O conceito de agricultura familiar é difundido no bojo de políticas econômicas de caráter neoliberal e no momento do propalado fim da história a partir da queda do muro de Berlim (1989) e do fim do socialismo soviético (1992). Hugues Lamarche a partir das obras A Agricultura Familiar: uma realidade multiforme ([1991] 1993) e A Agricultura Familiar: do mito a realidade (1998) fruto de um estudo comparativo internacional com a participação de 15 pesquisadores em analises sobre cinco países Brasil, Canadá, Tunísia, Polônia e França é um dos parâmetros acadêmicos centrais para a produção dessa linhagem de interpretação do campo e da questão agrária. No Brasil, Maria de Nazareth Baudel Wanderley - que participou da pesquisa capitaneada por Lamarche entre 1988 e 1989 - , Ricardo Abramovay (1992) e José Eli da Veiga (1991) são os principais veiculadores de tal conceito, que difunde-se e vulgariza-se nas políticas públicas, pesquisas acadêmicas e parte dos movimentos sociais no decorrer das décadas de 1990, 2000 e 2010. Analisando essas produções em um sentido transversal constata-se as preocupações desses autores na questão do grau de dependência dos assim chamados agricultores familiares ao mercado e a identificação da lógica de organização da agricultura familiar. Fernandes (2004) constata que os teóricos da agricultura familiar apresentam uma série de argumentos e elementos para diferenciar o agricultor familiar do camponês, que enfatizam : a integração ao mercado, o papel determinante do Estado no desenvolvimento de políticas públicas e a incorporação de tecnologias. Wanderley (2003: 50) argumenta que 498 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 os mecanismos de subordinação e de enquadramento dos agricultores familiares provaram, pelo seu sucesso em todos os países, que eles podem demonstrar uma importante capacidade de investimento, tanto maior quanto mais efetivamente integrados aos mercados modernos. Abramovay enfatiza os limites da racionalidade econômica do campesinato enfatizando sua natureza incompleta, sendo assim, os camponeses são incompatíveis com economia capitalista na qual predominam relações mercantis e fundamentadas na troca. O “ambiente” de realização da agricultura familiar contemporânea asfixia o camponês obrigando-os ao despojamento de suas características constitutivas e destruindo suas bases objetivas e simbólicas de reprodução social. Na perspectiva de Abromavay (2007 [1992]) ao mesmo tempo em que o campesinato é aniquilado, se “ergue a agricultura familiar como sua principal base social do desenvolvimento” (ABRAMOVAY, 2007 [1992]: 142). Ao analisar os clássicos marxistas da questão agrária, Lenin e Kautsky, e segundo o Abramovay demonstrar a impossibilidade de um conceito “positivo e rigoroso de camponês no interior da teoria marxista” (ABRAMOVAY), o referido sociólogo olvida deliberadamente a contribuição de uma outra “marxista clássica”: Rosa Luxemburg. Consideramos que Rosa introduz uma tese crucial, ignorada por Abramovay: o pré-requisito extra-econômico para a produção de capital, ou seja, a acumulação originária, é um elemento inerente, constitutivo e contínuo das sociedades modernas e seu campo de ação se estende tendencialmente ao mundo inteiro. Diante disso, nos parece que Rosa prolonga a análise de Marx, visto que a autora supera a historicidade da análise da acumulação do capital (como proposta por Lenin5) para uma compreensão da espacialidade do processo, constatando a lógica da territorialização do processo histórico de produção do capital e a continuidade de relações sociais não-capitalistas no bojo do capitalismo 6. Consideramos, 5 Segundo De Angelis (2012) a interpretação de Lenin em O desenvolvimento do capitalismo na Rússia [1899] baseia-se na premissa histórica da acumulação originária do modo capitalista de produção como um processo que ocorre na gênese do desenvolvimento capitalista. Nesse sentido, Lenin argumentava que o desaparecimento dos camponeses e a expropriação de suas comunidades era uma condição para a criação de um mercado capitalista na Rússia. Lenin ([1899] 1982: 113) enfatiza que “o sistema de relações econômicas e sociais entre o campesinato (agrícola e comunitário) mostra a existência de todas as contradições próprias de qualquer economia mercantil e de qualquer capitalismo: a concorrência, a luta pela independência econômica, o açambarcamento da terra (comprada ou arrendada), a concentração da produção por uma minoria, a proletarização da maioria e a sua espoliação pela minoria que detém o capital comercial e emprega os operários agrícolas(...) não há nenhum fenômeno econômico no campesinato que não apresente essa forma contraditória exclusivamente própria do sistema capitalista”. De Angelis (2012) ressalta que Lenin compreendia esse processo como inevitável e de certa forma positivo. Em síntese, a acumulação originária para Lenin é um processo histórico e que se refere à gênese de produção capitalista ressaltando o caráter histórico específico desse processo. 6 Nos termos de Rosa: “(...) a acumulação capitalista depende dos meios de produção que são produzidos de modo não capitalista. Além do mais, basta lembrar o papel que representou para alimentação da grande massa europeia 499 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 então, que para Rosa há uma permanência do processo de produção do capital, que se realiza de modo violento e contraditório. Essa interpretação é possível, pois a autora realiza uma leitura das dinâmicas territoriais da acumulação (a questão da expansão da fronteira capitalista, a acumulação do capital como expressão territorial e a ação política das massas oprimidas como sujeitos potencialmente revolucionários frente à barbárie capitalista) possibilitando uma atualização de suas reflexões na realidade contemporânea, a partir de conteúdos, estratégias e resistências que Luxemburg apontou ao longo de sua obra e que se desenvolveram e se aprofundaram. O processo de mundialização da economia, e especificamente da agricultura capitalista atividade econômica da produção de commodities para o mercado mundial, e a necessária veiculação ideológica de visões de mundo (LÖWY, 2013) que sustentem os interesses das classes dos grandes proprietários de terra são as bases no qual se assentam o conceito de agricultura familiar. Nos termos de Oliveira (2007: 147) (...) vários intelectuais do estudo do mundo agrário voltaram suas produções acadêmicas para forjarem um novo conceito de agricultura de pequeno porte voltada, parcial ou totalmente, para os mercados mundiais e/ou nacional, e integrada nas cadeias produtivas das empresas de processamento e/ou de exportação. Nascia assim, uma concepção neoliberal para interpretar esta agricultura de pequeno porte, a agricultura familiar. O neoliberalismo invadia desta forma, o mundo da intelectualidade. E, como se isso não bastasse, invadiu também o mundo dos movimentos sindicais e sociais do Brasil. Julgaram os neoliberais do estudo agrário que era preciso tentar sepultar a concepção da agricultura camponesa e com ela os próprios camponeses. Os programas de governo dos três principais candidatos demonstram a vulgarização do debate sobre agricultura familiar e o (novo) fim do campesinato. Em um sentido teórico, acadêmico e conceitual a difusão e a construção de um consenso politico industrial da Europa o abastecimento camponês de cereais – e do cereal que fora produzido de modo não-capitalista – para perceber quanto a acumulação capitalista está vinculada efetivamente, no tocante aos respectivos elementos materiais, a círculos não-capitalistas. (...) Vemos, no entanto, que o capital, mesmo em sua plena maturidade, não pode prescindir da existência concomitante de camadas e sociedades não-capitalistas. (...) Em função de suas relações de valor e de suas relações de natureza material, o processo de acumulação do capital está vinculado por meio do capital constante, do capital variável, e da mais valia às formas de produção não-capitalista. Essas formas constituem o meio histórico em que se desenvolve o desenrolar desse processo”. (LUXEMBURG, [1913] 1985a: 252, grifos nossos). Rosa, ao analisar a necessidade de territórios, setores e relações não-capitalistas de produção desenvolve uma análise que coloca a categoria espaço no centro de suas reflexões políticas, econômicas e filosóficas. A partir da totalidade dialética e baseada no materialismo histórico, compreendemos que Rosa Luxemburg produz importantes discursos geográficos sobre a dinâmica territorial da produção e reprodução do capital. 500 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 sob o conceito de agricultura familiar e o consequente aniquilamento do conceito de campesinato e seu entendimento como classe social é um conteúdo rentista da questão agraria brasileira no seculo XXI. Nos situamos a partir de uma outra compreensão, especificamente em uma corrente teórica da Geografia Agrária marxista que analisa o processo contraditório (portanto heterogêneo) da generalização progressiva das relações de produção especificamente capitalistas que constata que há um desenvolvimento geograficamente desigual do capitalismo, que pode ser percebido por uma diversidade de processos produtivos, nos quais as relações de produção especificamente capitalistas se desenvolvem mais em algumas regiões, fragmentos e setores do território do que em outros. (OLIVEIRA, 2004a; 2007; 2010; TAVARES DOS SANTOS, 1981). Tal combinação entre setores (e territórios) capitalistas e não-capitalistas - longe de ser uma debilidade do processo de acumulação do capital - pode ser analisada como a forma própria de se realizar a reprodução ampliada do capital, ou seja, a unidade dialética entre trabalho assalariado, expansão do latifúndio e territorialização do monopólio capitalista com relações de produção e territórios não-capitalistas: unidade camponesa, trabalho familiar camponês e resistências de modos comunitários de produção (OLIVEIRA, 2010). Na Geografia Agrária, especialmente aqueles que analisam a recriação de relações não-capitalistas de produção, verificam que contraditoriamente o capital se territorializa, expropriando a população camponesa e concentrando-a na cidade, utilizando sua força de trabalho na indústria e no trabalho assalariado no campo , mas também o próprio capital cria as condições para que as relações sociais camponesas se reproduzam fornecendo matérias-primas para as indústrias e viabilizando o consumo de bens industrializados no campo. Essa possibilidade desigual e combinada cria e recria a economia camponesa baseada em relações de trabalho familiar, e categoricamente define o campesinato como classe social. Fernandes (2004) argumenta que no Brasil, não foi o mercado que possibilitou a recriação do campesinato, mas sim a luta política desenvolvida por meio das ocupações de terra, que se tornou a principal forma de acesso à terra. Mas, os teóricos da agricultura familiar não têm referencial para compreender esse processo. Assim, ignoraram a parte essencial da formação dos camponeses brasileiros hoje: a luta pela terra. Nos parece que a critica desenvolvida por Fernandes (2004) não deve se realizar apenas aos teóricos, mas ao consenso entre os principais partidos políticos e suas politicas para o campo brasileiro. 501 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 REFERÊNCIAS ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalism agrário em questão. São Paulo: Edusp, 2007. mercado interno para a grande indústria. [1899]. São Paulo: Abril Cultural, 1982. BOMBARDI, L. O Papel da Geografia Agrária no debate teórico sobre os conceitos de campesinato e agricultura familiar. Geousp, São Paulo, v. 14, p. 107-117, 2003. LÖWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2013. DE ANGELIS, M. 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Investimentos e Servidão 503 http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014. ISBN: 978-85-7506-232-6 RENTISMO À BRASILEIRA: CONCENTRAÇÃO FUNDIÁRIA E CONTRARREFORMA AGRÁRIA NO CAMPO DO SÉCULO XXI EIXO 2 – Dinâmicas e conflitos territoriais no campo e desenvolvimento rural RESUMO O presente trabalho é fruto da análise que estamos desenvolvendo na tese de doutoramento em Geografia Humana na Universidade de São Paulo acerca da construção de uma crítica sobre os sentidos do capitalismo rentista no Brasil do século XXI. Busca-se, nesse sentido, identificar os fundamentos articulados entre as questões econômicas e agrárias a partir do método marxiano do movimento progressivo-regressivo, pois Martins (1997) já afirmava que o tempo da questão agrária brasileira é longo e contraditório. O objetivo central do trabalho é compreender as políticas agrárias durante o período dos dois mandatos de Lula da Silva (2003-2010) e do mandato de Dilma Rousseff (2011-2014) a fim de justificar que tais políticas estão de fato relacionadas à uma estratégia de contrarreforma agrária que é desencadeada por um partido de histórico viés de esquerda na política brasileira. Esmiuçamos na análise dois conteúdos rentistas da questão agrária no século XXI: a reprodução e aprofundamento econômico da aliança de classe (terra e capital) com a centralidade do agronegócio e com o movimento da contrarreforma agrária e a consolidação política da tese do fim do campesinato a partir da vulgarização do conceito de agricultura familiar. Palavras-chave: capitalismo rentista; questão agrária brasileira; contrarreforma agrária. 504