Uma Estética Bossa Nova - Rafa Ortman Design, Desenvolvimento
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Uma Estética Bossa Nova - Rafa Ortman Design, Desenvolvimento
uma estética bossa nova 2001.1 uma estética bossa nova Relatório • PPD Conclusão Rafael Ortman • 9514999-8 Orientador • Luis Antônio Coelho PUC-Rio • Desenho Industrial • Comunicação Visual agradecimentos Este projeto só se tornou possível graças a algumas pessoas que acreditaram nele e me deram todo o apoio necessário para concluir esta fase da minha vida. Devo agradecer a Luiz Antônio Coelho, orientador deste trabalho, por abrir minhas perspectivas em um momento em que eu estava sem saber o que apresentar como proposta de projeto e acreditar na pesquisa mesmo sem termos contato pessoal anterior. Agradeço muito a Jorge Luiz Rodrigues, mestrando em design pela PUC-Rio, que me acompanhou em todas as fases da confecção deste relatório, fornecendo subsídios importantíssimos à pesquisa. A Rita Couto, minha co-orientadora, agradeço pela compreensão e paciência em ler e sugerir modificações e correções neste trabalho e ajudar no levantamento de capas da época. A José Ricardo Cardoso, ex-professor desta instituição, de quem sou funcionário, que teve a bondade de reduzir minha carga horária na empresa e ler todo o material escrito, sugerindo novas idéias e adequações de vocabulário. A Taís Leal de Oliveira, que fez toda a correção de texto do material. Finalmente, à equipe do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, desde às estagiárias à diretora. O MIS-RJ forneceu todas as condições para a pesquisa e o registro de capas de disco que já não são hoje encontradas no mercado. 7 S U M Á RIO I ntrodu ção.........................................................................................................................11 Cenário para o apar e cim e n to da B ossa Nova .............................13 Um Brasil de sonhos ........................................................................................................15 Um Brasil de boleros .......................................................................................................18 A classe média inventa um Brasil para si...................................................................21 Modernismo e Bossa Nova.............................................................................................24 Bossa Nova: ascensão, transformação e imigração...................................25 A conquista do mercado................................................................................................27 O Brasil devora a Bossa Nova........................................................................................29 A Elenco................................................................................................................................32 Radicalização política e Bossa Nova: não podia mesmo dar certo...................34 Bossa Nova e design...........................................................................................................39 Pequena história da indústria fonográfica brasileira............................................41 Indústria e design gráfico brasileiro ..........................................................................44 Um design Bossa Nova?..................................................................................................49 Estrutura e ruptura............................................................................................................51 Análise gráfica do trabalho de César Villela . ..............................................53 O design da simplificação..............................................................................................56 Cinco capas de Villela.......................................................................................................60 a) O amor o sorriso e a flor (Odeon), João Gilberto: 1960.................................60 b) Maysa (Elenco), Maysa: 1963................................................................................62 c) Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia Telles:1963.......................................64 d) A Bossa Nova de Roberto Menescal (Elenco), Roberto Menescal :1963...66 e) Nara (Elenco), Nara Leão: 1964............................................................................69 Consideraçõe s F i n ais...............................................................................................71 Bibliografia.............................................................................................................................73 Anexo...........................................................................................................................................75 Imagens................................................................................................................................77 Entrevista..............................................................................................................................87 INTRODUÇÃO A Bossa Nova intriga e fascina até hoje, desde fãs japoneses a musicólogos contemporâneos. Movimento que tomou forma e corpo no final dos anos 50 e sobreviveu integrado em torno de um conceito muitíssimo definido apenas até o golpe de 64, quando a radicalização política praticamente exigia uma posição clara de todos, em especial do artista, a Bossa Nova talvez nunca tenha sido popular verdadeiramente. Contudo, estabeleceu para si uma estética e conceito tão representativos do momento vivido pelo Brasil da época que acabou permeando toda a sociedade brasileira, de presidente a eletrodomésticos. Este projeto pretende apresentar uma estética Bossa Nova, estabelecida graficamente a partir do trabalho de César Villela, capista da gravadora Elenco. César Villela promoveu uma ruptura no design de capas de disco no Brasil. Seu trabalho foi bem sucedido a ponto de as demais gravadoras acompanharem sua identidade visual. Mesmo impressos, cartazes, quase tudo que foi feito da Bossa Nova depois de Villela, seguiam o seu padrão. A Bossa Nova é a expressão de um Brasil entusiasmado com a modernidade, buscando adequar-se em diversos níveis às expectativas de uma ainda recente sociedade de consumo. Procuraremos delinear este Brasil moderno que gerou o movimento. A pesquisa histórica/musical foi realizada com base em três autores: Ruy Castro (Chega de Saudade), que faz um relato mais completo da história do movimento; Arthur da Távola (40 anos de Bossa Nova), que faz considerações de ordem social, cultural e artística; e Júlio Medaglia (O balanço da bossa), mais íntimo de questões musicais e do cenário da música brasileira do período. Teve papel importante também, tanto na coleta de imagens como na pesquisa do cenário político-econômico-social, a enciclopédia Nosso Século, fornecendo um pano de fundo para a análise estética do período. A pesquisa no âmbito do design/linguagem visual teve também três autores como referência: Rafael Cardoso Denis (Uma introdução à história do design), que faz um apanhado geral da história do design; Gus- 11 tavo Amarante Bomfim (Idéias e formas na história do design), que nos dá um panorama dos movimentos de vanguarda européia e da estruturação do conceito de “modernismo”; e Donis A. Dondis (Sintaxe da linguagem visual), que fornece a base para análise gráfica a ser empreendida nas capas de disco selecionadas. A carência de autores que apresentassem um cenário do design brasileiro até a década de 60, foi uma dificuldade enfrentada no trabalho. Para supri-la minimamente, utilizaram-se as pesquisas de Denis e Bomfim. Para a história da indústria fonográfica brasileira e do design de capas de disco no Brasil, a pesquisa de Egeu Laus, A capa de disco no Brasil: os primeiros anos, foi a fonte utilizada. A coleta de capas de discos pré-Bossa Nova teve como fonte as imagens publicadas do estudo de Egeu Laus na Revista Arcos, V. I, e na Mostra de capas de disco no Brasil – os primeiros anos: 1951 a 1958, editada pela ADG. As capas de discos da Bossa Nova foram coletadas no MIS-RJ. A primeira parte da pesquisa (levantamento de dados) se estabeleceu na leitura dessa bibliografia e reunião de outros títulos para referência e enriquecimento do trabalho, além da coleta de imagens realizada no MIS-RJ e nas publicações já comentadas. Paralelamente à análise do material, digitalizamos as imagens necessárias e iniciamos a redação do registro do processo, que prosseguiu até duas semanas antes da banca final. Finalmente, criamos um projeto gráfico e o encaminhamos para impressão. 12 CENÁRIO PARA O APARECIMENTO DA BOSSA NOVA 13 Um Brasil de sonhos A Bossa Nova foi uma das muitas forças modernizadoras que marcaram a transição entre um Brasil exportador de matérias-primas para uma nação industrial que acompanhasse o desenvolvimento de um novo capitalismo, inaugurado a partir da descoberta da sociedade de consumo como a saída para a depressão industrial que se anunciava nos Estados Unidos no final da década de 40.1 Tendo nascido, amadurecido e se diluído como movimento de meados dos anos 50 (quando alguns precursores do movimento já atraiam a atenção pela música moderna que executavam e compunham) a meados dos anos 60 (quando começa a se exigir do artista um posicionamento político mais definido), a Bossa Nova viveu um período conturbado na política brasileira. Exatamente os anos dos preparativos do golpe militar até sua efetiva concretização em 1964. 1 Denis, 1999 15 uma estética bossa nova cenário para o aparecimento da Bossa Nova O segundo governo Getúlio Vargas se impunha como meta, segundo as palavras do próprio ex-ditador,“transformar em nação industrial uma nação paralisada pela miopia de seus governantes aferrados à monocultura extensiva e à exploração primária de matérias primas” (Nosso Século, 1945/1960 V.II, 1980: 129). Contudo, Getúlio esbarrava na sua precária sustentação política, devendo inúmeros favores para conquistar alianças no pleito de 1950, e no receio que a classe militar tinha de suas “motivações anti-democráticas”. Ainda assim, pôde realizar projetos símbolos do seu desenvolvimentismo nacionalista, como o estabelecimento do monopólio sobre o petróleo, através da criação da Petrobrás. Isolado politicamente, porém, sem forças de sustentação na classe média e sem apoio na imprensa, Getúlio Virginia Lane foi pouco a pouco perdendo terreno para seus adversários. Alvo de uma campanha que o solapava diariamente em rádio, jornal e até na recente televisão, Getúlio só viu uma forma de impedir o golpe que se preparava contra ele: matou-se em 23 de agosto de 1954, gerando grande comoção popular e refreando o golpe militar por dez anos2 . Depois de Vargas, o otimismo desenvolvimentista e a crença na evolução do capitalismo brasileiro foram renovados na figura de Juscelino Kubitschek. Em seu projeto, o desenvolvimentismo e a modernização brasileira serviriam para “combater o comunismo e enfrentar a miséria com prosperidade” (Nosso Século, 1945/1960 V.II, 1980: 80). 2 Wainer, 1989 16 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova O marco definitivo seria a construção de Brasília, meta-síntese do programa de metas do governo JK. Longe da pressão direta das massas, a nova capital seria um diferencial na sua concepção urbana e na arquitetura arrojada. O projeto de Oscar Niemeyer procurou “formas novas, que surpreendessem pela sua leveza e liberdade de criação. Formas que não se apoiassem apenas no chão, rígidas e estáticas, como uma imposição da técnica, mas que mantivessem os palácios como que suspensos, leves e brancos nas noites sem fim do Planalto”, como escreve Oscar Niemeyer em seu livro Forma e Função na Arquitetura (Nosso Século, 1945/1960 V.II, 1980: 94). Além disso, no meio do cerrado brasileiro, obrigaria um esforço adicional na construção de estradas, alavancando a indústria automobilística que JK incentivou a se estabelecer no Brasil. Eram os anos da fé no consumismo e no potencial da nação brasileira. Também do glamour da época de ouro do cinema americano, exportando uma nova estética de Cadillacs e topetes lambusados de brilhantina para galãs bem comportados, e da indústria de beleza para o romance e devaneio das “moças casadoiras”. A rígida moral vigente foi aos poucos cedendo lugar para novos padrões de beleza estimulados por estrelas de formas generosas como Mamie van Doren, Jane Mansfield, Sophia Loren e Gina Lollobrigida. No Brasil, Wilza Carla, Virginia Lane e Mara Rúbia causavam furor como vedetes do teatro rebolado, enquanto as declarações apimentadas da atriz capixaba Luz del Fuego fazia corar até o mais espertalhão dos “estróinas”. De inúmeras formas, os anos 50 prepararam as revoluções de costumes que vieram a acontecer na década seguinte. Por mais ambíguo que possa parecer, porém, eram anos positivos que faziam crer no sucesso da sociedade de consumo e nos sonhos de felicidade ingênua em um casamento perfeito. 17 Um Brasil de boleros Assim como Caetano sugere que a Tropicália surgiu “por causa da Bossa Nova” (Velloso, 1997: 16), pode-se dizer que a Bossa Nova apareceu “por causa” do samba canção de contornos bolerísticos que imperava nos anos que a precederam. Se dissessem a Ronaldo Bôscoli que João Gilberto em algum momento de sua carreira iria gravar Besame Mucho, de Consuelo Velasquez, ele “negaria com a maior veemência”,como escreve Ruy Castro em Chega de Saudade as rádios despejavam nos ouvidos daqueles jovens “modernos” um festival de boleros e sambascanções derramados que vieram a ser uma “antiinspiração” para garotos como Carlos Lyra, Roberto Menescal e Bôscoli, líder daquela turminha de classe média que iria revolucionar a música brasileira. Se bem que, para arrepios do próprio Bôscoli, João Gilberto, o mentor intelectual dessa revolução, nunca negara a Antônio Maria admiração por Dalva de Oliveira e Anísio Silva, crooners que causavam aversão na turma. João Gilberto, entretanto, sempre deixou clara a sua independência em relação a quaisquer rótulos que lhe quisessem impingir. Afinal, ele próprio fora um crooner e seu ídolo máximo na adolescência era ninguém menos que Orlando Silva, “o cantor das multidões”. Mas multidão não era mesmo com a Bossa Nova. Repetidamente, Julio Medaglia, no ensaio O Balanço da Bossa Nova (publicado em conjunto com outros ensaios em Balanço da Bossa e outras bossas do autor/ organizador Augusto de Campos), a qualifica como “música de câmara” que chegara para aparar as arestas 18 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova da música popular e libertar o Brasil dos boleros e do romantismo melodramático. Para Medaglia, “[a Bossa Nova] era a negação do ‘cantor’, do solista e do ‘estrelismo’ vocal e de todas as variantes interpretativas óperotango-bolerísticas que sufocavam a música brasileira de então” (Medaglia, 1993: 75). Nos anos precedentes à Bossa Nova conviviam motivações modernizadoras na música popular com sambas canções de motivos trágico-românticos. O estupendo sucesso de “Ninguém me ama”, de Antônio Maria, é um bom exemplo dessa época. Descrevendo um Rio de Janeiro – mais especificamente, Copacabana – do princípio dos anos 50 como um antro “de mulheres sem dono, pederastas, lésbicas, traficantes de maconha, cocainômanos e desordeiros da pior espécie”, Antônio Maria parece não ter sido atingido pelos ares desenvolvimentistas e positivos do pós-guerra, e tanto menos pelo ingênuo romantismo com o qual nos acostumamos a recordar os “anos dourados”. Copacabana era a maior expressão de modernidade de um Rio de Janeiro que podia se considerar cosmopolita. Com 2.600.000 habitantes, quase a metade de imigrantes portugueses, espanhóis, árabes e brasileiros de todas as partes do país, a cidade irradiava para o resto do país o it carioca – importado do glamour das telas do cinema americano junto com a nova moda de “óculos Ray-ban e jeans desbotados, contrabandeados no cais do porto” (Tinhorão, 1979). Na mesma Copacabana caótica que Antônio Maria descrevia em suas músicas – embora talvez não nas mesmas boates – músicos como Johnny Alf todas as noites renovavam os ouvidos dos jovens músicos brasileiros que estavam inchados de tanto bolero. 19 A classe média sonha um Brasil para si A juventude de classe média dos anos 50 não poderia escolher aquelas músicas de “dor de cotovelo” com mulheres cruéis e traições sangrentas que os crooners bradavam como sinfonia dos dias ensolarados da zona sul do Rio de Janeiro. É preciso que se diga, porém, que não só de sambas canções e boleros vivia a rádio brasileira. Havia programas como “Ritmos do Tio Sam” e “Midnight Serenade”, em estações alternativas como a Roquette Pinto, que tocavam as bandas de jazz mais badaladas da época e cantores modernos como Frank Sinatra, Nat King Cole e Julie London, considerada grande influência da Bossa Nova. E se a música cantada em inglês não satisfizesse os mais nacionalistas, havia Dick Farney e Johnny Alf Lúcio Alves (este, um cantor de voz pequena, chamado de “o cantor das multidinhas”3, em contraste a Orlando Silva), que tinham até fãs clubes rivais. E havia Johnny Alf e seu piano precursor. E Garoto e seu violão ainda na ativa. Enfim, nem tudo estava estagnado. Desde o final dos anos 40, com os citados Alf e Garoto, já se ensaiava uma evolução harmônica na música brasileira. Jovens músicos, como os pianistas de boate Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça e o também acordeonista João Donato, já se espelhavam nas harmonias alteradas do cool jazz para compor e executar suas canções. Alguns, como Tom, conseguiram ter suas músicas gravadas por ícones da época como Dolores Duran. Mas ainda não conseguíamos nos livrar da tragicidade das canções: Dolores e, pouco depois, Maysa, transformaram suas vidas artísticas em folhetins, para o deleite da imprensa, deixando claro, através de suas interpretações com fortíssima carga dramática, que devia ser muito pior do que poderíamos imaginar estar na pele delas. Castro, 1990 3 20 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova “Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar/ Rio de Janeiro a montanha, o sol, o mar”, Bossa Nova? Sim. E não, já que são frases de Billy Blanco para a música de Tom “Sinfonia do Rio de Janeiro”, um retumbante fracasso de 1954. Gravada com sofisticado arranjo de cordas do maestro Radamés Gnatalli e músicos de estúdio de primeira linha, já trazia presente dois elementos fundamentais do movimento: a harmonia moderna somada à temática e construção coloquial da letra. Arthur da Távola e Julio Medaglia explicitamente situam as composições de Cartola e Noel Rosa nos anos 30 como canções identificadas, especialmente nas letras, com um modernismo urbano que ficou adormecido por duas décadas até o advento da Bossa Nova. Para Medaglia, “‘ah, se ela soubesse que quando ela passa’ [“Garota de Ipanema” – Tom Jobim e Vinícius de Morais] (...) e ‘fotografei você na minha Rolleyflex’ [“Desafinado” – Tom Jobim e Newton Mendonça] (...) nada mais é que versões atualizadas de um mesmo humor, uma mesma gente, uma mesma bossa” que “’seu garçom faça o favor de me trazer depressa’ [“Conversa de Botequim” – Noel Rosa]” (Medaglia, 1993: 81), apesar da procedência diversa – a Bossa Nova da orla da zona sul e Noel da Lapa. O marco, portanto, da retomada da evolução lírica nas letras ficou sendo o encontro de Tom e Vinícius nas composições de Orfeu da Conceição, este já um sucesso de público e crítica em 1956. A partir daí, segundo Arthur da Távola, se estabelece “a palavra como expressão concisa, econômica de acordo com os padrões de uma sociedade que começa a sepultar de vez o romantismo e a se tornar científica e tecnológica” (Távola, 1998: 75). Prossegue Távola: “À descontração das letras soma-se a crítica aos temas, grandiosos, fatais ou grandiloqüentes. Aparecem, então, os conteúdos de aparência simples, portátil, quase 21 uma estética bossa nova cenário para o aparecimento da Bossa Nova descartáveis, descontraídos, intranscedentes” (Távola, 1998: 75). Já João Gilberto, com as músicas “Hô-ba-la-lá” e “Bim-bom”, praticamente negava “qualquer pretensão literária às letras” (Távola, 1998: 76). A coisa realmente aconteceu quando João Gilbertoreapareceu no Rio de Janeiro e bateu na porta de Roberto Menescal em Ipanema. Depois de temporadas em Porto Alegre, Diamantina, Juazeiro e Salvador, para se restabelecer do fracasso de sua carreira no Rio, João trazia algo “diferente” para aquela turma de músicos jovens da Zona Sul. Era uma nova batida, uma nova forma de tocar e se acompanhar ao violão em um ritmo que simplificava toda a batida do samba. Segundo Ruy Castro, quando Menescal e, logo depois, Ronaldo Bôscoli, o ouviram, entenderam tudo:“João Gilberto era a realidade encarnada do que, até então, eles estavam procurando às cegas” (Castro, 1990: 138). Além disso, nunca tinham o visto cantar daquele jeito: baixinho (como fazia Mário Reis em sua época), quase como se falasse, escandindo as sílabas e distendendo ou contraindo a melodia de acordo com seu desejo, valorizando ao máximo cada nota individualmente. Quando João Gilberto, depois de uma rápida aparição como instrumentista em duas faixas de Canção do amor demais, de Elizete Cardoso, cantando músicas de Tom e Vinícius, gravou o seu Chega de Saudade em 1959, já estava tudo ali: a evolução lírica a que Arthur de Távola se refere, com Vinícius de Morais e Newton Mendonça4 , as harmonias alteradas de Tom Jobim e a batida revolucionária que ele inventara. Conforme Castro:“Chega de Saudade oferecia, pela primeira vez, um espelho aos jovens narcisos. (...) Na época não se tinha consciência disso, mas depois se saberia que nenhum outro disco brasileiro iria despertar em tantos jovens a vontade de cantar, compor ou tocar um instrumento. Mais exatamente, o violão” (Castro, 1990: 197). Ou segundo Arthur da Távola, “a classe média ascendente da zona sul carioca encontrava, na Bossa Nova, o seu canal de expressão” (Távola, 1998: 66). 4 A Newton Mendonça costumam ser creditadas as letras e a Tom Jobim, as músicas. Dupla injustiça, já que ambos tomavam parte em música e letra. 22 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova 23 Modernismo e Bossa Nova Távola e Medaglia dedicam páginas e páginas a uma suposta adequação modernista na música brasileira através da Bossa Nova. Enfatizam o aspecto de retomada que a Bossa Nova imprime na música brasileira, conforme destacado anteriormente. Mas de uma forma muito mais clara nas suas intenções. É quase o “forma segue função”,paradigma do design modernista cristalizado nas atividades da Bauhaus segundo o qual “a forma ideal de qualquer objeto deve ser determinada pela sua função” (Denis, 1999: 123). Eliminando os excessos, os adereços, a carga dramática, a Bossa Nova é simples, objetiva, concisa, essencial. Ao mesmo tempo que é elaboradíssima rítmica e harmonicamente – como nunca antes na música brasileira. Para Távola: [A Bossa Nova] está para a música popular como, na literatura, o modernismo esteve para o parnasianismo. (...) À expressão moderna chamou-se Bossa Nova. (...) Ao tempo da Bossa Nova, do ponto de vista da criação de condições para algum movimento renovador estavam maduras as seguintes pré-condicões: vontade de renovação nas letras; idem na escritura musical das melodias, com incorporação de dissonâncias; idem na harmonia (...); vontade de renovação na instrumentação e na junção de pequenos conjuntos. (...) Finalmente havia a vontade de renovação no modo de cantar e a melhora qualitativa dos processos de gravação e reprodução sonoras. (Távola, 1998: 69). A tudo isso Julio Medaglia acrescenta um elemento antropofágico que é mais comumente associado à Tropicália (e certamente mais intencional), destacando os “artifícios extraídos da literatura de vanguarda – particularmente da Poesia Concreta” na letra de “Lobo Bobo” de Ronaldo Bôscoli, segundo ele, uma “sátira ao playboy com fome de donzela, onde, em tom de gozação e aparente ingenuidade, é ironizada a sua antropofagia” (Medaglia, 1993: 86). A antropofagia, característica latente da obra do modernista Oswald de Andrade, também é sugerida na forma como a Bossa Nova “devorou” o jazz americano, dando-lhe os contornos que convinham ao movimento. 24 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova BOSSA NOVA: Ascensão, Transformação e Imigração 25 uma estética bossa nova 26 cenário para o aparecimento da Bossa Nova A conquista do mercado A segmentação do mercado de música popular propiciada pela evolução dos métodos de gravação, possibilitou o advento de uma música sofisticada e renovadora como a Bossa Nova. Artur da Távola ressalta a importância da gravação em alta-fidelidade para a inspiração de músicos mais exigentes e para a criação de um mercado consumidor mais sofisticado: A reprodução de sons em alta fidelidade começou a aguçar o ouvido dos músicos da época.(...) A ampliação de recursos sonoros abriu caminho para músicos criativos, cansados de repetir harmonias tradicionais e instrumentação conservadora. Determinou, igualmente, a criação de um consumidor capaz de diferenciação e sofisticação sonora. A Bossa Nova viria a ser uma das respostas à exigência de segmentos sofisticados do mercado consumidor e do uso adequado (estético/mercadológico) dos novos recursos sonoros. (Távola, 1998: 30) Além disso, é importante lembrar que, antes da introdução do sistema eletromagnético de gravação, nos anos da reprodução mecânica, era necessária grande potência de voz para o registro vocal dos cantores. Como a Bossa Nova apostava em um tipo de interpretação e impostação de voz mais intimista, pode se dizer que o Hi-Fi foi uma pré-condição técnica para acontecer o movimento. No disco Canção do amor demais, de Elizete Cardoso, em 1958, já estavam presentes as músicas de Tom e Vinícius e até o violão magnético de João Gilberto em duas faixas. Mas para que João Gilberto conseguisse gravar seu 78rpm4 com todas as características bossanovistas foi preciso uma verdadeira blitz sobre o diretor artístico da Odeon, Aloysio de Oliveira. Aloysio, que voltara depois de anos nos Estados Unidos, achava que cantores deviam cantar para fora, exibindo seus dotes vocais, e considerava “que cantores com voz centimetrada podiam ser a tetéia dos intelectuais, mas não tinham a menor possibilidade comercial”. (Castro, 1990: 181). Mas a argumentação de Tom 5 Os discos de 78 rotações por minuto foram os precursores do LP de 33 1/3 rpm. 27 uma estética bossa nova B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o Jobim, André Midani, descobridor de talentos da gravadora, e Ismael Corrêa, diretor comercial, acabaram por convencê-lo. O aval de Dorival Caymmi, foi “o golpe de misericórdia na resistência de Aloysio”. Emfim, depois de conturbadas sessões de estúdio devido ao “perfeccionismo maníaco” de João, o acetato foi gravado, chegando às lojas do Rio de Janeiro em meados de 1958. O período, porém, não podia ser menos propício: o Brasil acabara de conquistar sua primeira Copa do Mundo e tudo o que tocava nas rádios era “A Taça do Mundo é nossa”. Mas Ismael Correa acreditava que aquela música nova podia ir de encontro aos anseios do público jovem e esperou a euforia da conquista esportiva passar para lançar o disco em São Paulo. Como conta Castro, “São Paulo já era o principal mercado e tinha a maior cadeia de lojas de discos do Brasil, as Lojas Assumpção” que, sozinhas, eram capazes de ditar o sucesso de um disco, “se este fosse bem trabalhado” (Castro, 1990: 181). Logo, Oswaldo Gurzoni, influente diretor da gravadora em São Paulo, encarregado por Correa de trabalhar o disco, teve em Álvaro Ramos, gerente de vendas das Lojas Assumpção, seu alvo principal. Ramos, que a princípio tivera ojeriza do disco, não resistiu a um encontro planejado pela direção da Odeon com o sedutor João Gilberto e autorizou o “trabalho” do disco. Isto consistia na reprodução maciça nas filiais e sua difusão através de um programa de rádio que as Lojas Assumpção patrocinavam. Aliada ao empenho da Odeon, que providenciou visitas a emissoras de TV e rádio do Rio de São Paulo, a estratégia acabou dando resultado: O 78 de ‘Chega de Saudade’ chegou às paradas de sucesso de Radiolândia e Revista do Rádio no final daquele ano, disputando no olho mecânico com Celly Campello em ‘Lacinhos cor-de-rosa’. (...) Com arranque dado em São Paulo e, finalmente, sua descoberta pelo mercado carioca, ‘Chega de Saudade’ vendeu 15 mil 78s de agosto a setembro de 1958 [quando cantores já estabelecidos como Lúcio Alves e Silvinha Telles ficavam entre cinco e dez mil cópias]. (Castro, 1990: 190). Com o sucesso do primeiro 78 rpm, que continha “Chega de Saudade” e “Bim-bom”, João Gilberto grava o seguinte (“Desafinado” e “Hô-ba-la-lá”), surgindo as condições para sair seu primeiro longplaying individual, aquele que mudaria os rumos da música popular brasileira e “influenciou toda uma geração de cantores, instrumentistas e compositores”, como escreve Tom Jobim na contracapa do LP Chega se Saudade. 28 O Brasil devora a Bossa Nova Antes do sucesso nas rádios, o violão e a voz de João já eram cultuados e faziam escola através da reprodução de gravações caseiras ou de pequenos saraus em apartamentos da zona sul do Rio de Janeiro. A batida e modo de cantar de João Gilberto, como já foi salientado no primeiro capítulo, ofereceram um caminho a seguir para os jovens músicos que participaram daquelas reuniões e escutaram aquelas fitas. No primeiro semestre de 58, aconteceu o primeiro show no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, que acabou por, involuntariamente, dar nome ao movimento: “Hoje: Silvinha Telles e um grupo bossa nova”. Nele, além de Silvinha, estavam presentes vários dos discípulos de João, entre outros, Chico Feitosa, Nara Leão, Carlos Lyra, Luizinho Eça, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, apresentando o show. Depois do batismo no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, a Bossa Nova ganhou os jornais numa polêmica envolvendo a PUC-Rio. O ano era 1959, o DCE organizara o “1o Festival de Samba-Session”, contando com a presença de grande parte do elenco do primeiro show mais as ilustres presenças de Antônio Carlos Jobim e, para o desespero do reitor da universidade, Padre Laércio Dias de Moura, que já autorizara a realização do evento, a vedete do teatro rebolado, Norma Bengell. Padre Laércio previu a péssima repercussão que a apresentação de Norma poderia trazer junto aos membros da congregação que sustentava a universidade e fincou o pé: com Norma Bengell o show não se realizaria. Os músicos, por outro lado, se revoltaram com a proibição e devolveram:“Sem Norma, não haverá show”. O entrevero acabou vazando para os jornais, com o Diário de Notícias à frente, 29 uma estética bossa nova B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o publicando a seguinte manchete em primeira página: “Norma no Index”. Nem assim, porém, o reitor voltou atrás na decisão. A solução encontrada pelos organizadores do evento foi transferir a apresentaçãopara o anfiteatro da Faculdade Nacional de Arquitetura, na Praia Vermelha. Esta, realizada no dia 22 de setembro daquele ano, impulsionada pela polêmica, ganhou status de show proibido e o público, formado essencialmente de universitários, lotou o anfiteatro. No show seguinte na Escola Naval, “bossa nova” já deixara de ser um adjetivo para se tornar designação de um movimento, motivando Ronaldo Bôscoli, mais uma vez como apresentador, a tentar defini-la: “É o que há de mais moderno, de totalmente novo e de vanguarda na música brasileira”. Através do ativismo de Bôscoli na Revista Manchete, o nome se popularizou e motivou diversas polêmicas com os baluartes da geração anterior como Antônio Maria e Silvio Caldas, acumulando admiradores e adversários. Conforme Castro: Em todas as entrevistas a que eram solicitados – e, nos primeiros tempos, isto parecia acontecer de 15 em 15 minutos – Bôscoli, Menescal e o próprio Tom acusavam a música do ‘passado’ de ser macambúzia e meditabunda, além de francamente derrotista. Para eles a Bossa Nova vinha nos libertar do ‘Não, eu não posso lembrar que te amei’ (‘Caminhemos’, de Herivelto Martins) com a afirmação máscula e decidida de Vinícius de Morais em ‘Eu SEI que vou te amar/ Por toda a minha vida eu VOU te amar’. O exemplo a não ser seguido, e que elas adoravam lembrar, era o inevitável ‘Ninguém me ama/ Ninguém me quer’, de Antônio Maria. (Castro, 1990: 240) Como percebeu o Diário de Notícias, polêmica vende jornais. E toda a celeuma em torno do movimento acabou fazendo com que tudo de novo e moderno no Brasil fosse Bossa Nova. De tal forma que Carlos Lyra sugeriu a Bôscoli que registrassem o nome, o que acabaram por não fazer. Logo, um novo modelo de gela- 30 B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o uma estética bossa nova deira da Brastemp era o “Príncipe bossa nova”,“rádios, vitrolas, enceradeiras, aparelhos de barbear e demais cacarecos que se começavam a ser produzidos no Brasil, novos estilos de sapatos, gravatas e até edifícios, eram lançados sob a chancela de ‘Bossa Nova’”. (Castro, 1990: 280). A Bossa Nova não era “apenas” utilizada para fins propagandísticos. A modernização gráfica realizada nos jornais e revistas da época, uma vitória do Flamengo com um gol contra sobre o invencível Santos de Pelé, a bancada jovem da UDN, tudo e todos, enfim, queriam tirar uma “casquinha” da idéia, conceito, de “bossa-nova”. Juca Chaves aproveita a onda para fazer “Presidente Bossa Nova”, referindo-se, evidentemente, a Juscelino Kubitschek: Bossa Nova mesmo é ser presidente Desta terra descoberta por Cabral. Para tanto, basta ser tão simplesmente, Simpático, risonho, original (...) Voar da Velhacap pra Brasília Ver o Alvorada e voar de volta para o Rio Voar, voar, voar Voar, voar pra bem distante. Mandar parente a jato pro dentista Almoçar com a tenista campeã (...). Isto é viver como se aprova, É ser um presidente bossa-nova. E devia ser mesmo já que os convidou para compor uma canção para a inauguração de Brasília. “Brasília, sinfonia da alvorada” acabou não sendo executada no espetáculo de inauguração da cidade, a 21 de abril de 1960, em função do que JK chamou de “uma mudança de estilo” do show. Tom Jobim e Vinícius de Morais em Brasília 31 A Elenco A escalada meteórica da Bossa Nova fez com que Aloysio de Oliveira (aquele mesmo que não gostava de cantores de voz pequena), entusiasmado com a abertura para o mercado americano com o show no Carneggie Hall em novembro de 1962, tivesse a idéia de criar uma gravadora só sua. E só de Bossa Nova. Criada em 1963, mesmo ano da fundação da ESDI, a Elenco foi a única gravadora a que os consumidores procuravam pelo nome. E seus discos, sob o projeto gráfico de César Villela, uma verdadeira ruptura no design de capas no Brasil, compostos basicamente em preto e branco com detalhes em vermelho, podiam ser reconhecidos à distância. O projeto de Villela, tão adequado ao movimenAloysio de Oliveira e Nara Leão to, acabou por ser copiado pelas demais gravadoras que apostavam em Bossa Nova (Phillips e Odeon). Como um contraponto às capas da Elenco, havia as capas da Forma, outra pequena gravadora que investiu no público da Bossa Nova. Diferia da primeira no sentido que seus discos eram explicitamente de luxo,“com capas encorpadas e duplas, ilustradas com pintura moderna” (Castro, 1990: 341). A idéia não resistiu financeiramente e a gravadora passou imprimir capas menos dispendiosas. Sob o selo da Elenco gravaram Tom Jobim, Sylvinha Telles, Dick Farney, Lúcio Alves, Sérgio Mendes, João Donato, Sérgio Ricardo, Baden Powell, Roberto Menescal, Quarteto em Cy, Nara Leão, Edu Lobo, Rosinha de Valença, Sidney Miller, Billy Blanco, Maysa, Lennie Dale, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Odete Lara e 32 B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o uma estética bossa nova Norma Bengell, todos sem contratos com a gravadora, que, não podendo pagá-los, distribuía royalties aos músicos. Utilizando a RCA-Victor para imprimir seus discos e com o crônico problema da falta de dinheiro, suas tiragens jamais passaram de dez mil exemplares. A frágil estrutura econômica gerou lendas de que o projeto gráfico da gravadora, com apenas duas cores, era produto dessa dificuldade, o que Villela desmente com veemência: “Se eu quisesse um disco com mil cores, o Aloysio ia se virar para produzi-lo” (Villela, 2001: Anexo). Aloysio, considerado um mestre do estúdio, mas uma lástima como administrador, nos três anos em que esteve a frente da gravadora, seu período de maior sucesso, lançou cerca de 60 discos de Bossa Nova de qualidade no Rio de Janeiro. Com francas dificuldades na distribuição e demorando-se no lançamento da Elenco em São Paulo, onde havia fértil mercado para o gênero, Aloysio, endividado, praticamente dá a gravadora para a Phillips em 1966. Apesar do vanguardismo da Elenco, a maior fatia do mercado ficou mesmo com as grandes gravadoras, em especial a Phillips, que atingiu a marca dos 100 mil discos com Jorge Ben e seu LP Samba esquema novo, de 1963. 33 Radicalização política e bossa nova: não podia mesmo dar certo... A Bossa Nova começou a cindir no “divórcio” de Carlinhos Lyra e Ronaldo Bôscoli no princípio de 1960. Suspeitava-se, no polarizado clima da época, que o politizado Lyra teria descoberto que Bôscoli era de direita. Contudo, segundo Castro, o problema fora a impaciência de Lyra com a Odeon que prometera gravar a turma estrelada por ele e liderada por Bôscoli (Menescal, Nara Leão, Normando Santos, Osvaldo Castro Neves, e outros), mas relutava levá-los para o estúdio. A Phillips ofereceu-o um contrato e Lyra rompeu com a Odeon. A reação da multinacional Odeon foi imediata: transformou o projeto Turma da Bossa Nova em compacto duplo com o conjunto de Roberto Menescal. Isso fez com que alguns participantes aderissem à Phillips, uma companhia de capital binacional (holandês-brasileiro), juntando-se a Carlinhos. A batalha teve seu auge quando as duas gravadoras patrocinaram shows propositadamente no mesmo dia: um na Faculdade Nacional Roberto Menescal pesca em Cabo Frio 34 de Arquitetura (Odeon), outro na PUC (Phillips). B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o uma estética bossa nova Isso foi apenas um aperitivo do que estava por vir. Enquanto Lyra participava da fundação de uma célula do Partido Comunista em São Paulo, se comprometendo a falar de assuntos menos alienados em suas músicas, e ajudava na criação do CPC (Centro Popular de Cultura, que seria CCP, não fosse a sua intervenção dizendo que fazia música burguesa e não samba de raiz), Menescal pescava meros em Cabo Frio. Mas a grande cisão aconteceu mesmo através de Nara Leão, que começava a adicionar conteúdos sociais ao seu repertório, cantando músicas de compositores como Cartola, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho. Nara Leão toma contato com essa velha guarda freqüentando o restaurante Zicartola, cujo nome é uma junção de Cartola e Zica, sua mulher. Levada por Lyra, Nara, conforme conta Roberto Menescal, estava rompida com Ronaldo Bôscoli, seu ex-noivo, e decide mudar os rumos de sua carreira (Seminário Da Bossa Nova à Tropicália, 2001). O “renovado” repertório foi gravado em no seu disco Nara, da Elenco, sua estréia em 1964. O disco desagradou a Aloysio de Oliveira, mas foi bem assimilado pela Bossa Nova. “Os conservadores é que avançaram de tacape contra Nara, para dizer que ela estava assaltando a pureza da autêntica música popular ao intrometer-se nela”. (Castro, 1990: 347). Mas quando Nara voltou de uma temporada internacional em 1964, já com os militares no poder, ela já sabia que caminho seguir. Nara gravou um disco que iria causar feridas mortais à Bossa Nova, Opinião de Nara. Em entrevistas, deixaria claro o que pensava agora de seus ex-colegas e da música que produziam: “Chega de Bossa Nova. Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo.” Os ventos mudavam. A Bossa Nova e sua temática feliz já não serviam mais para expressar o que sentiam os jovens daquele período, envolvidos em polêmicas nacionalistas e radicalização política. Para Roberto Menescal, porém, o mundo ainda parecia um mar de rosas. Desligado de política a ponto de não perceber o motivo pelo qual seus músicos não compareceram ao estúdio naquela quarta-feira. Era 1o de abril de 1964, data da golpe militar. 35 uma estética bossa nova B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o Nara integrou-se ao engajado show Opinião, de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, com direção de Augusto Boal. Neste, Nara se apresentava junto ao compositor nordestino João do Vale e Zé Kéti, oriundo da periferia dos morros cariocas. E continuava batendo na Bossa Nova através dos jornais. O patrulhamento ideológico era de tal ordem que os jovens irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, integrantes da segunda geração da Bossa Nova, que contava ainda com Francis Hime, Dori Caymmi, Nelsinho Motta, Eumir Deodato e Edu Lobo, fizeram uma música de protesto “ao contrário”: A resposta (Marcos e Paulo Sérgio Valle) Se alguém disser que o teu samba não tem mais valor Por que ele é feito somente de paz e amor Não ligue não, que essa gente não sabe o que diz Não pode entender quando o samba é feliz O samba pode ser feito de céu e de mar O samba bom é aquele que o povo cantar De fome basta a que o povo na vida já tem Pra que lhe fazer cantar isto também? Mas é que é tempo de ser diferente E essa gente Não quer mais saber De amor Falar de terra na areia do Arpoador Quem pelo pobre na vida não faz um favor Falar de morro morando de frente pro mar Não vai fazer ninguém melhorar A música dos jovens compositores, que já tinham feito “Terra de ninguém” de forte conteúdo social, fez com que “Edu Lobo e outros velhos amigos passassem algum tempo sem falar com eles” (Castro, 1990: 357). Só não esperavam a reação de Nara: foi a única a querer gravar a música. 36 Marcos Valle e Roberto Menescal B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o uma estética bossa nova Segundo Castro, no segundo semestre de 1965, apareceu o termo MPB, que viria substituir Bossa Nova, tão identificada com uma postura alienada que perdera definitivamente espaço no contexto brasileiro da época: A sigla não queria dizer música popular brasileira (...) mas uma determinada música popular brasileira – que podia ser tudo menos determinável. A MPB (...) não tinha compromissos com o samba e queria flertar à vontade com outros ritmos, temas e posturas. E queria, principalmente, ser nacionalista, para purgarse dos excessos de influência do jazz na Bossa Nova. (Castro, 1990: 377). O estabelecimento da sigla MPB divide opiniões. Sérgio Cabral situa como marco o disco Nara, da Elenco. Tárik de Souza sugere que a transição se deu através da consagração de Elis Regina, em 1964, no I Festival da Música Brasileira, promovido pela TV Excelsior, cantando “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Morais (Seminário Da Bossa Nova à Tropicália, 2001). Se o mercado da Bossa Nova estava estreito no Brasil, se escancarava nos Estados Unidos e no mundo. A partir do sucesso no já citado show no Carneggie Hall, em novembro de 1962, surgiram várias oportunidades para a disseminação da Bossa Nova nos EUA. João Gilberto e Tom Jobim lançaram discos americanos, respectivamente Getz/Gilberto e The composer of Desafinado. Vários músicos brasileiros excursionavam com sucesso pelos EUA, com destaque para o conjunto de Sérgio Mendes, Brasil ’65, que chegaria ao auge no ano seguinte, quando mudou o nome para Brasil ’66. O grande marco da internacionalização da Bossa Nova foi o disco que Frank Sinatra gravou em 1967 com Tom Jobim. Os Estados Unidos escancaravam definitivamente suas portas à Bossa. 37 uma estética bossa nova B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o Tom Jobim e Frank Sinatra no estúdio 38 B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o uma estética bossa nova BOSSA NOVA & DESIGN 39 40 Pequena história da indústria fonográfica brasileira Uma breve abordagem do desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira se faz importante para compreender a introdução do long-playing individual como carro chefe das gravadoras e o design que se estruturou em torno dele. Presente no Brasil desde 1902, o disco só foi ter uma fábrica instalada em território nacional em 1913. Antes disso, através da liderança da International Talking Machine GmbH, os discos eram gravados aqui (com o auxílio de um técnico de som da companhia), mas prensados na Alemanha. Estabelecida com o nome de Disques Odeon, a fábrica da International Talking Machine foi líder na produção de discos até o final da década de 20, época em que se confirmou o potencial do mercado consumidor brasileiro6. Prensavam-se até 125 mil discos mensais em formatos de 10, 12 e 14 polegadas naqueles anos da reprodução mecânica no Brasil. A grande revolução da indústria fonográfica se deu com a chegada do sistema eletromagnético de gravação que trazia uma melhoria geral da qualidade do som gravado. No Brasil, a partir de 1927, a gravação elétrica propicia o surgimento de “uma nova vaga de cantores com interpretação mais natural, sem necessidade de altos volumes vocais” (Laus, 1998: 117). Segundo Laus, nos anos 30 se definem os caminhos da indústria fonográfica brasileira, com o estabelecimento das empresas que viriam a dominar o mercado até os dias de hoje. Também é partir dos primeiros anos dessa década que podemos “olhar para o disco com a visão do designer gráfico” (Laus, 1998: 119). Laus, 1998 6 41 uma estética bossa nova Bossa Nova e Design O estudo de Egeu Laus publicado na revista Arcos é de fundamental importância para este levantamento histórico. Suas pesquisas indicam 1946 como o ano da impressão da primeira capa de disco personalizada. Até então, os discos eram acondicionados em um envelope de “papel pardo semelhante ao Kraft”, com fina gramatura, vazado de ambos os lados à altura dos rótulos, sem qualquer tipo de identificação individual. Os rótulos eram o único contato do consumidor com o artista gravado. Segundo Laus: Nesses rótulos, as informações (...) indicavam o nome do artista, nome das músicas, autores, o estilo musical e alguma informação complementar além do número de catálogo de cada disco. Geralmente, a parte superior do rótulo era totalmente tomada pela logomarca da casa gravadora, que somada à cor plana do fundo identificava as séries dos discos bem como as companhias fonográficas. (...) As gravadoras se esforçavam a tornar os rótulos atrativos e (...) [chegaram] a utilizar a foto dos artistas impressa no próprio rótulo. (Laus, 1998: 120). Nos envelopes fazia-se propaganda das casas gravadoras (ou de equipamentos de reprodução associados a elas), que também, no início, vendiam os discos.“Mais adiante, outras lojas iriam revender os discos e passam então a imprimir seus próprios envelopes, substituindo os originais e aproveitando para anunciar outros produtos”. (Laus, 1998: 120). Sem qualquer interesse para o consumidor, os envelopes eram comumente descartados e os discos acondicionados em álbuns sem qualquer relação com a indústria fonográfica, onde começam a aparecer os primeiros projetos gráficos. Esses álbuns podiam conter até 12 discos e vieram a emprestar o nome aos invólucros dos LPs até a chegada do CD. Quanto ao tratamento gráfico dos envelopes, aos poucos foram aparecendo, junto ao texto impresso, ilustrações e vinhetas. Persistia, porém, a característica inferior do material:“papel sem branqueamento, tipo kraft, (...) com impressão em preto ou tinta especial”. Conforme Laus: [As fotografias] aparecem no momento em que os envelopes passam a divulgar o repertório em catálogo dos artistas. (...) Ainda não era uma capa personalizada, visto que os envelopes eram intercambiáveis, podendo o disco de um Francisco Alves ser vendido com a relação do repertório de um Orlando Silva, por exemplo (Laus, 1998: 121). 42 Bossa Nova e Design uma estética bossa nova A primeira capa personalizada, por volta de 1946, segundo as pesquisas de Laus, só vai aparecer, isoladamente, na série infantil da Continental, com Branca de Neve. Somente em 1950 estariam maduras as condições para a capa de disco se estabelecer como a conhecemos hoje: Seguindo a tendência dos álbuns importados, algumas gravadoras preparam álbuns de três ou quatro discos com artistas de sucesso e com vendagem garantida. Neles, sobre a capa standard em cartão rígido do álbum, era colada uma lâmina impressa com tudo o que caracteriza uma capa de disco: fotos, desenhos, nome do artista, título do disco, logo da gravadora etc. (Laus, 1998: 125). LP de Noel Rosa: uma das primeiras capas de disco brasileiras Com a substituição a partir de 1951 do disco de 78 rpm pelo long-playing de 33 1/3 rpm,“surge um novo mercado para as artes gráficas no Brasil”. Os primeiros capistas saíram das agências de propaganda. Como lembra César Villela em entrevista a Jorge Luiz Rodrigues7 (Villela, 2001: Anexo), a publicidade era área do ilustrador, então foram ilustradores que produziram as capas por longo tempo,“até que o lançamento de astros consagrados da música começa a exigir o trabalho de um fotógrafo”. (Laus, 1998: 125). O formato definitivo do LP, com 12 polegadas para música popular, se firma em 1958, só sendo desbancado muitos anos depois com o advento do CD. Jorge Luís Rodrigues é mestrando em design pela PUC e está elaborando sua tese: Anos fatais: a estética tropicalista e seu reflexo no design gráfico nos anos 70. 7 43 Indústria e design gráfico brasileiro Não temos a intenção de tecer um relato completo e preciso do cenário do design brasileiro nos anos 50. Para tanto, seria necessário um projeto de pesquisa voltado exclusivamente para este tema, já que a bibliografia sobre o assunto é escassa e carente de autores. O intuito é tão somente indicar antecedentes e influências importantes do período, abordando mais objetivamente o que César Villela aponta como referências para a criação do projeto gráfico para a gravadora Elenco. É importante tecer um breve histórico das décadas predecessoras no que diz respeito à indústria e ao design, visto que foi o grande desenvolvimento econômico e industrial experimentado nesses anos que ditaram o ritmo das transformações posteriores. O nacionalismo econômico e a crise do café impulsionaram a indústria brasileira do período entreguerras e fizeram com que o país voltasse seus olhos para o mercado interno. Sob o projeto do Estado Novo, percebe-se um Estado profundamente comprometido com a identidade nacional, como pode ser comprovado pela criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) para tutelar a imprensa e produzir material de divulgação do ideário político do governo. Interessado em interferir e ditar os rumos da sociedade brasileira, o Estado passa a utilizar o design para instrumentalizar a construção de uma identidade A música popular, vivendo sua época de ouro, com valores como Pixinguinha, Ary Barroso e Noel Rosa, também foi percebida como fator de integração, fazendo com que intelectuais e governantes procurassem transformá-la em símbolo de uma identidade brasileira (ver Laus). 8 44 Bossa Nova e Design uma estética bossa nova nacional8 . Guardadas as devidas proporções, é interessante traçar um paralelo com a Deutsche Werkbund (Liga Alemã do Trabalho). Fundada em 1907, a Deutsche Werkbund visava à criação de uma linguagem estética objetiva, substituindo o conceito de “belo” por “qualidade”. Em seu programa constavam a estetização dos produtos para socializar a arte, formando uma cultura alemã e unificando “o gosto popular de acordo com os interesses da indústria” (Bomfim, 1998: 92). No Estado Novo, não havia essa consciência estética, quanto mais um projeto artístico. Contudo, os laços se estabelecem na propagação de uma ideologia industrial e na influência exercida pelo projeto de uma estética objetiva que as idéias da Deutsche Werkbund ajudaram a formular e viriam a se cristalizar na Bauhaus. Exemplos da influência dessas idéias modernas são os cartazes de propaganda do Estado Novo, como relata Denis, ao comentar o trabalho do cartazista Ary Fagundes: “As obras de Fagundes refletem bem as tendências modernas da época, sem se encaixarem abertamente no paradigma modernista.” (Denis, 1999: 130). Gustavo Amarante Bomfim percebe o incremento do capitalismo brasileiro entre as décadas de 30 e 50 Cartazes de Ary Fagundes para o Estado Novo 45 uma estética bossa nova Bossa Nova e Design como uma oportunidade de atualização em relação ao que se produzia na Europa, uma vez que até então ainda “vigoravam os princípios difundidos pela semana de Arte Moderna de 1922” (Bomfim, 1998: 121): A modernização econômica refletiu-se rapidamente no plano cultural, pois o incremento das relações comerciais com outros países permitiu à burguesia nativa contatos mais intensos com os movimentos artístico-culturais das nações européias. (Bomfim, 1998: 120). O esvaziamento do DIP com a deposição de Vargas em 1945 refreou a propaganda política agressiva do Estado. Contudo, os projetos desenvolvimentistas foram retomados no segundo governo Vargas e nos anos JK. Citando Denis: No compasso das políticas nacionalistas e desenvolvimentistas dos governos acima citados (...) o design brasileiro se viu levado a gerar soluções à altura dos grandes desafios sociais e culturais da época. Os designers da segunda fase modernista se viram divididos entre o nacionalismo e o internacionalismo, entre a tradição artesanal e o progresso industrial. (Denis, 1999: 162). Emblema da FAB Em meio à febre de modernização que se vivia no Brasil, surge, junto a intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo, o desejo de desenvolver novas concepções estéticas, baseadas no neo-positivismo do governo e numa racionalização e socialização da arte. O movimento, que ficou conhecido como Concretismo, atingiu diversas áreas da produção artística brasileira: das artes plásticas à poesia, passando pela arquitetura. O Concretismo acabou por afinar o Brasil com o discurso funcionalista em voga na Europa. O programa do Concretismo defendia o desenvolvimento de uma linguagem geométrica que promovesse a união entre arte e produção industrial. Com esse princípio os participantes do movimento lutavam contra outras tendências artísticas européias (surrealismo, dada, expressionismo) e contra a “arte mural” latino-americana, que seguia o realismo socialista. Ironicamente, os artistas concretistas procuravam se libertar do domínio da arte européia, aceitando uma teoria estética pretensamente universal. (Bomfim, 1998: 122). 46 Bossa Nova e Design uma estética bossa nova Teoria estética universal, mas engendrada na Europa. Como reação à tendência de incluir elementos decorativos que procuravam esconder a procedência industrial nos objetos (historismo), diversos movimentos procuraram uma adequação estética aos novos meios de produção fabril. A adequação estética vinha a reboque da pulsão ideológica moderna. No início do século, vivia-se grande otimismo na utopia da criação de uma sociedade igualitária e na capacidade produtiva do Estado industrial. Segundo Bomfim: O impressionismo abriu caminho para duas grandes correntes na prática estética. De um lado se alinharam os movimentos que defendiam a liberdade da arte e se posicionaram contra os valores estabelecidos pela cultura artística da sociedade burguesa. Esses movimentos – expressionismo, futurismo, cubismo, dada, surrealismo, etc – declararam a separação definitiva entre religião, arte e ciência, cada uma delas com sua própria categoria de valores. De outro lado, existiam as correntes construtivistas, funcionalistas e produtivistas que pretendiam a união entre arte e produção industrial. Esses movimentos almejavam a construção de uma nova sociedade, onde a racionalidade aplicada ao desenvolvimento dos meios de produção conduziria à superação das contradições sociais, políticas e econômicas. (Bomfim, 1998: 78). O ideal de se unir arte e indústria caminhou no sentido de criar um “Estilo Internacional”, segundo o qual existe uma forma perfeita para cada objeto a se projetar. Desenvolveu-se a partir das atividades da Bauhaus, fundada em Weimar Capa do almanaque da Escola de Arte Wchutemas El Lyssitsky: Moscou, 1927 (Construtivismo russo) em 1917, e teve seu apogeu na Escola Superior da Forma, fundada em Ulm, 1953. 47 uma estética bossa nova Bossa Nova e Design O racionalismo estético teve ressonância no Brasil do progresso industrial: em 1950, o curso experimental ministrado pela arquiteta Lina Bardi no Instituto de Arte Contemporânea do MAM de São Paulo buscava “formar jovens que se sintam ligados à arte industrial e que sejam aptos para desenhar objetos, nos quais a racionalidade da forma e o gosto correspondam ao progresso e à mentalidade atual” (Bomfim: 1998, 125). Antes da fundação da ESDI em1963– primeiro curso superior de design da América do Sul –, Max Bill, ligado à escola de Ulm, propõe em 1956, durante conferência no MAM do Rio de Janeiro, a instalação de uma Escola Superior da Forma no museu. Problemas políticos e econômicos inviabilizaram a escola no MAM-RJ, que acabou por ser fundada anos depois nos arcos da Lapa. Paralelamente ao embate estético e às tentativas de instalação de um curso de design no Brasil, faziam-se prementes modernizações no campo gráfico brasileiro no final dos anos 50, visando à adequação das novas tecnologias. Alguns dos destaques da renovação na mídia impressa da segunda metade da década de 50 são a editora Civilização Brasileira, o novo Jornal do Brasil, o projeto arrojado da revista Senhor e o desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira “lançando talentos (no design de capas de disco) (...) como a dupla Joselito e Mafra (...) e (...) César G. Villela, autor de projetos antológicos na época da Bossa Nova.” (Denis, 1999: 162). 48 Um design Bossa Nova? Já foi sugerido na primeira parte da pesquisa que o projeto estético da Bossa Nova podia ser enquadrado no paradigma modernista “forma segue função”. Em uma música que se adequava às novas tecnologias de gravação e reprodução, tudo se pretendia moderno: a letra exata, podada de excessos; a interpretação limpa, sem personalismos; o violão minimalista que simplificava toda a batida do samba. César Villela, quando perguntado sobre sua intenção ao produzir um design de capa de disco tão diferente do que se fazia na época, afirma que queria “simplificar”. Donis A. Dondis relaciona a simplicidade como uma característica da “funcionalidade”,uma das categorias de estilo que ele propõe para a linguagem visual. Para Dondis, a funcionalidade é um método compositivo “estreitamente ligado à regra da utilidade e a considerações de ordem econômica” (Dondis, 1973: 178), não sendo, portanto, exclusivo das vanguardas européias das primeiras décadas do século XX. O funcionalismo, porém, acabou ficando estreitamente ligado ao design moderno, e sua formulação como uma das maiores expressões da Bauhaus. Tudo leva a crer portanto, concluindo uma retórica circular, que vamos inserir o trabalho de César Villela como capista da Elenco no contexto do funcionalismo da Bauhaus. Isto fica especialmente tentador se relacionarmos o aspecto de retomada moderna na música popular brasileira através da Bossa Nova (a que Távola e Medaglia se referem) com o design “modernista” de suas capas. Dadas as inúmeras referências estéticas e técnicas compositivas que parecem se concretizar em seu trabalho, seria até cômodo fazê-lo. E, como já foi destacado anteriormente do texto de Denis,“os designers da segunda fase modernista se viram divididos entre o nacionalismo e o internacionalismo” (Denis, 1999: 162). Sem dúvida, os postulados funcionalistas ainda pairavam nas cabeças dos artistas gráficos do período, mas seria leviano propor uma adesão total de Villela àquele contexto. Por algumas razões. Uma delas é que o autoditada Villela não percebe seu trabalho como uma extensão do funcionalismo, sugerindo até motivos místicos para a utilização de determinado elemento. Uma segunda razão é que há uma expressividade e 49 uma estética bossa nova análise gráfica do design do designer césar villela liberdade de utilização de formas que não é característico daquela escola. Podemos ainda citar o certo desprezo com que Villela se refere aos designers advindos da recente ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial), fundada em 1963, cuja filosofia de ensino era inspirada nos modelos funcionalistas da escola de Ulm: “começou um festival de logotipos. Era compasso, régua e esquadro os instrumentos” (Villela, 2001: Anexo). De qualquer maneira, se o design de Villela não era tão somente funcionalista, teve uma metodologia funcional. Em sua entrevista a Rodrigues, Villela afirma que o impulso criativo de seu projeto foi “a grande poluição visual” que eram as vitrines das lojas de disco da época, fazendo com que ele se entusiasmasse em criar um projeto que se destacasse dos demais pela simplicidade e pelo uso do preto e branco. Na década de 60, segundo Villela, não havia interesse por parte da mídia não especializada em divulgar o disco de um artista. Para os jornais, era como “vender um peixe” que não era seu. De forma que as capas dos discos eram o verdadeiro chamariz dos consumidores. Villela era consciente dessa realidade e assumiu nas suas capas a característica de display que elas teriam quando fossem às lojas. A capa de disco naquela época era o display, era o ponto de venda na loja, ela tinha de ser atrativa, ela é que vendia. Então as lojas expunham nas vitrines as capas, um monte de capas. Eu já tinha observado que era uma poluição visual muito grande: mesmo as minhas ficavam confusas junto com as outras. Eu já tinha pensado em simplificar para aparecer mais determinadas capas. (...) Então eu disse: “eu tenho de vencer essa barreira visual”. (Villela, 2001: Anexo). As capas da Odeon e da Phillips passam a seguir o projeto de Villela para a Elenco 50 ruptura e estrutura Até este momento, pretendeu-se apresentar em que cenário surge a Bossa Nova, suas inspirações, aspirações e características. Propôs-se uma analogia ao paradigma modernista e sugeriram-se pontos de contato entre o movimento brasileiro e o axioma do Estilo Internacional. Em seguida, discorremos a respeito do design brasileiro do período e suas influências mais significativas. Finalmente, falamos Cartaz de Herbert Mayer, 1926 (Funcionalismo) das idéias funcionalistas e como Villela se colocava nesse contexto. Desde a introdução, nos referimos a uma “ruptura no design de capas de disco”,promovida pelo trabalho de Villela, como a motivação principal de nossa pesquisa, bem como a identidade visual do movimento que se estruturou em torno daquele design. Persistem duas perguntas básicas ainda sem resposta: 1) Que ruptura foi esta e porque assim se configurou? 2) O que havia de tão excepcional no projeto de Villela para promover uma onda de capas inspiradas nas suas idéias? Tanto à primeira quanto à segunda pergunta, já se anunciaram possíveis respostas. Falemos, porém, primeiro da segunda pergunta, que indicará o caminho para a resposta da primeira. O que havia de tão excepcional no projeto de Villela para promover uma onda de capas inspiradas nas suas idéias? Villela foi muito bem sucedido ao captar a essência modernista do projeto da Bossa Nova: o clean, o essencial, o conteúdo, a expectativa do público jovem de classe média, carente de produtos feitos para ele 51 uma estética bossa nova Bossa Nova e Design e ávido por modernidade.“A Bossa Nova era simplicidade, a leveza do som e a clarividência musical de seus criadores”, diz Villela (Folha de São Paulo, 2000: D-9). Associou essas questões à estética modernista que pairava sobre as cabeças dos designers e da sociedade brasileira em pleno neo-positivismo industrial. Neste ponto, é importante frisar mais uma vez os pontos de contato entre a Bossa Nova, sofisticada música urbana de câmara, objetiva e sem acessórios desnecessários à sua música, com a estética funcionalista, cuja objetividade é sua característica principal. Assim como Menescal e Bôscoli viram em João Gilberto tudo aquilo que estavam procurando, Villela apresentou um projeto absolutamente adequado àquela música, àquele público e ao estado de coisas do Brasil pré-golpe militar. Que ruptura foi esta e porque assim se configurou? Parte desta pergunta foi respondida no parágrafo anterior. Villela trouxe ao design de capas de disco conteúdos da estética contemporânea que ainda não haviam tido penetração nesta área de projeto. Ao assumir o preto e branco, a simplicidade e a objetividade (característica dessa estética funcionalista), suas capas divergiram totalmente das demais. Villela deixa transparecer que a utilização dos elementos característicos do design funcionalista foi subordinada à sua intenção de simplificar e destacar seu projeto dos outros discos. Ingênua antropofagia? Outro ponto importantíssimo, como já foi abordado anteriormente, é a percepção da função de display que exercia a capa de disco. Ao projetar tendo em vista esta característica, Villela também foi pioneiro e visionário. Visionário de um Brasil que estava prestes a desaparecer: em breve, quem devorará será a mídia e as estruturas de poder. A capa-display perderia brevemente a função, com o incremento da mídia televisiva e a inserção do artista no cotidiano do leitor/ expectador. Villela iria para os Estados Unidos depois do golpe militar de 1964. A Bossa Nova iria para os Estados Unidos depois do golpe militar de 1964. A Escola de Ulm não iria para os Estados Unidos, mas, coincidentemente, também desapareceria depois do golpe de 1964. A utopia modernista cedia lugar a uma outra forma de se conceber e perceber o mundo: o pós-modernismo. 52 Bossa Nova e Design uma estética bossa nova CÉSAR Análise gráfica do trabalho do designer 53 54 A análise gráfica a ser empreendida nesta pesquisa será desenvolvida da seguinte forma: primeiramente, iremos fazer uma análise geral do projeto gráfico desenvolvido por Villela para a gravadora Elenco, a ser chamado, para referência, de design da simplificação. Destacaremos suas características fundamentais, as técnicas e partidos gráficos utilizados de acordo com os princípios sugeridos por Donis A. Dondis em seu livro a Sintaxe da linguagem visual e estabeleceremos comparações com as capas de disco de outras gravadoras do mesmo período. Em um segundo momento, analisaremos individualmente quatro capas representativas do trabalho de César: a) O amor o sorriso e a flor (Odeon), João Gilberto: 1960 – primeira tentativa de Villela em direção ao design da simplificação. b) Maysa (Elenco), Maysa: 1963 – uma das primeiras capas da Elenco e, talvez, a mais conhecida dentre todas elas. c) Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia Telles:1963 – interessante pela mudança na forma de representação da cantora. d) A Bossa Nova de Roberto Menescal e seu conjunto (Elenco), Roberto Menescal: 1963 – uma capa que foge bastante ao conceito empregado na Elenco. e) Nara (Elenco), Nara Leão: 1964 – disco considerado marco da transição Bossa Nova/MPB. 55 O design da simplificação A grande motivação de Villela, como já foi exposto anteriormente – e pode ser comprovado na sua entrevista – foi a “grande poluição visual” que eram as vitrines das lojas de discos da época. As capas dos discos, carentes de divulgação em outras mídias, tinham uma característica de display: era pela capa que o consumidor comprava o disco. As capas deviam, portanto, ser atrativas. Contudo, no momento em que eram expostas junto com as demais, o resultado era uma explosão de cores e estilos diversos que em nada contribuíam para a percepção de uma capa individualmente. Villela percebe a necessidade de diferenciar seu trabalho e começa a desenvolver o que ele chama de “simplificação”: toma o partido do monocromatismo, apresenta soluções tipográficas criativas, composições inusitadas e efeitos fotográficos ainda não utilizados comercialmente. Suas propostas podem ser observadas na capa do disco O amor, o sorriso e a flor, de 1960, de João Gilberto. A idéia, porém, não foi bem recebida pela gravadora Odeon, na qual trabalhava como freelancer, e ele teve de aguardar outra oportunidade para pô-la em prática. Villela afirma que havia uma prerrogativa de se utilizar nas capas dos discos a foto do artista. Pelo que se pode deduzir de seu depoimento e das capas coletadas na pesquisa durante o levantamento de dados, fotografias que apresentassem o artista de forma objetiva, sem interpretações estéticas. Aproveitava-se o artista que poderia ter apelo visual junto ao público feminino/masculino e escondiam-no atrás de uma paisagem, ou ilustração, no caso de serem “muito feios”: Havia por aqui uma espécie de cultura de “capa de disco”. Conheciam-se os conceitos básicos: num disco de cantor ou cantora, punha-se a foto do intérprete; num disco de orquestra (ou nos de cantores muito feios), apelava-se para uma paisagem ou para uma modelo. Era raro haver uma integração entre o estilo da capa e o tipo de música gravada no disco. (Folha de São Paulo, 2000: D-9). São exemplos interessantes desta “cultura da capa de disco” a que Ruy Castro se refere em reportagem sobre César Villela da Folha de São Paulo o disco Para ouvir amando, de Waldir Calmon (Gravadora Copacabana – não temos referência da data precisa do disco), com uma modelo recostada em um sofá, e o LP Carícia 56 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova (Odeon), capa de Villela para o disco Sylvia Telles em 1957. Portanto, talvez somente fosse possível uma transgressão a esses postulados em uma gravadora pequena, como a Elenco. E um designer que estivesse interessado em mudar os rumos das coisas e tivesse criatividade e inteligência para inovar. César, mesmo na Odeon, sempre trabalhara com total carta branca. Nem o artista, nem os diretores interferiam em seu trabalho. Muitas vezes, quando fugia muito dos padrões, ou propunha algo muito “ousado” para a época, pediam que não repetisse essas idéias, como no caso d’O amor o sorriso e a flor, de João Gilberto, e em uma outra oportunidade, em que ele usa o detalhe do seio descoberto uma mulher. “A Odeon pedia e a gente maneirava” (Villela, 2001: Anexo). Quando César chega à Elenco, em 1963, já tinha um conceito para por em prática e nenhum diretor comercial para tolher seus experimentos. Antes, porém, das capas, vieram as fachadas dos shows do Bon Gourmet, cujas fotos em alto contraste foram posteriormente utilizadas para os discos. Villela diz que seu trabalho na Elenco foi a primeira programação visual em disco (quem sabe a única, no sentido de padronizar os discos de uma gravadora) e afirma que não tinha influências de outros capistas. Não obstante, era interessado no que Piet Mondrian propunha para o De Stijl e no design da Bauhaus. Segundo ele, a “simplificação” que ele trouxe para as capas de disco, promovendo uma ruptura nesta área de projeto, não teve a intenção de “adequar” o design de capas à estética funcionalista. De muitas formas, contudo, as características do funcionalismo da Bauhaus parecem se concretizar em seus projetos. Recorreremos a Dondis para levantar estas características. Esta autora relaciona simplicidade, simetria, angularidade, previsibilidade, estabilidade, 57 uma estética bossa nova análise gráfica do design do designer césar villela seqüencialidade, unidade, repetição, economia, sutileza, planura, regularidade, agudeza, monocromatismo e mecanicidade como técnicas da funcionalidade. Das técnicas sugeridas, algumas são mais explícitas e intensas, enquanto outras parecem não se realizar de todo. Há ainda outras características presentes em estilos teoricamente opostos à funcionalidade que acontecem no trabalho de Villela. Dondis propõe espontaneidade e ousadia como técnicas do “expressionismo”. A ousadia, especialmente, parece estar presente nos discos da Elenco como um todo, citando os exemplos de Maysa, 1963, onde Villela capta a característica mais marcante da cantora, os olhos expressivos e dramáticos, e os estoura sob alto-contraste na capa, e a tipografia trabalhada no disco Nara, 1964 (além, é claro, de todo o trabalho fotográfico utilizado, desde o precursor O amor, o sorriso e flor). Quanto à espontaneidade, há o exemplo do disco A Bossa Nova de Roberto Menescal, 1963, onde há peixinhos quase rabiscados, casuais, na capa do disco. Como já foi relatado anteriormente, propor uma adesão total do autoditada Villela ao funcionalismo seria uma falha. Suas capas, porém, parecem buscar uma estética que vinha se desenvolvendo e ganhando adeptos fervorosos desde a fundação da Bauhaus, em 1919. Paralelamente, havia o interesse por parte do público jovem pela modernidade, inflamado pela construção de Brasília. Um design modernista, para um público moderno e uma música de vanguarda, era o que poderia haver de mais adequado (e desejável) para aquele momento. Em métodos e técnicas o resultado que ele atinge tem características explicitamente funcionais: na observação da situação de projeto, na simplicidade, equilíbrio e monocromatismo. Como características mais marcantes de seu projeto gráfico para a Elenco, além da supracitada simplicidade, são: Monocromatismo – plano branco com títulos e elementos gráficos pretos; Tipografia trabalhada – títulos estourados, em grandes proporções ou compostos de maneira inusitada, algumas vezes desenhada à mão, outras alteradas para obter resultado inesperado/ousado; Fotografias em alto-contraste – ou com efeitos de solarização, obtendo máxima atenção do observador e dramaticidade; 58 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova Quatro pontos vermelhos – esta é talvez a característica mais interessante: Villela afirma que esta idéia veio da criação do logotipo da Elenco, um spot com um ponto vermelho apoiado no N do nome da gravadora. Tendo que colocá-lo na capa do disco, ele insere mais três pontos da mesma cor, pois “quatro, esotericamente, significa harmonia” (Villela: 2001: Anexo), o que tinha a ver com a música gravada no disco. Os quatro pontos vermelhos também conferiam ritmo à composição e identificavam o trabalho de Villela na Elenco das demais gravadoras que vieram a copiar sua fórmula e até do capista (Eddie Moyna) que deixou em seu lugar quando foi para os EUA, em 1964. É ainda um diferencial claro do racionalismo estético presente nas idéias da Bauhaus e no design funcionalista que costuma ser percebido em suas capas. Quando deixa o Brasil na época do golpe militar, Villela deixa seu legado para ser repetido pelas demais gravadoras que gravavam Bossa Nova e seguido por designers como Eddie Moyna, que o substitui na maioria das capas da Elenco. Villela é um pouco duro com Moyna, afirmando que, ao incluir novos elementos, “as capas voltaram a ser como antes” (Villela, 2001: Anexo). Moyna dá prosseguimento à estética desenvolvida por Villela e, aos poucos vai tomando algumas liberdades, e conseguindo resultados interessantes, como em Lennie Dale e o Sambalanço Trio (Elenco), Lennie Dale, 1965. 59 Análise gráfica de cinco capas de Villela a) O amor o sorriso e a flor (Odeon), João Gilberto: 1960 Esta é uma capa para o segundo disco de João Gilberto, contratado da Odeon. Representa a primeira tentativa de Villela em direção à simplificação das capas e um embrião do projeto gráfico que ele desenvolverá posteriormente para a gravadora Elenco. Difere do projeto da Elenco em alguns aspectos: •Na fotografia do artista é utilizada uma técnica fotográfica conhecida como solarização, ao invés do alto-contraste que seria emblemático nas capas da Elenco. Há, entretanto, entre as capas da Elenco a que tive acesso em minha pesquisa, uma na qual a solarização aparece. Porém, nesta capa de Lennie Dale e o Sambalanço Trio, (de Eddie Moyna) também se eliminam os meios-tons, de modo que também nesta é ulilizado o alto-contraste. Na capa de O amor, o sorriso, e a flor, ao contrário, os meios-tons estão presentes, dando uma textura quase metálica à foto. •Na titulagem, mais contida e intimista, além de a tipografia não sofrer alterações na ação do autor. •Na ausência dos pontos de cor que Villela utiliza nas capas posteriores. Esta ausência, no entanto, é de certa forma suprida pela repetição do nome do artista, também de forma não seqüencial, como ocorre com os pontos de cor da Elenco. O monocromatismo já se faz presente, assim como a simplicidade e economia de elementos. A capa está composta da seguinte forma: sobre o plano branco da capa, a fotografia solarizada do artista ocupa o canto inferior esquerdo, alcançando quase toda a extensão da altura do impresso, sangrando para a esquerda e para baixo. A foto é tirada do plano médio do artista de perfil, com o violão em posição diagonal. Do perfil do rosto artista, pode-se divisar tão somente sua face, já que a técnica utilizada na foto apaga por completo seu pescoço e parte de trás da cabeça. A foto mostra o cantor e instrumentista totalmente concentrado, com os olhos fechados. À altura de seus olhos, Villela posiciona o nome do artista, em caixa alta, sobre o título do disco, em caixa baixa, ambos com corpo 24, aproximadamente. A tipografia do título é uma fonte sem serifa bastante estendida, bem próxima de uma helvética. O designer repete o nome do artista 60 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova mais cinco vezes, com a mesma tipografia e em caixa baixa, mas com tamanhos e posições diferentes. Numa diagonal ascendente, formada com o braço do instrumento e o título do trabalho, estão posicionados em corpos senão iguais, muito semelhantes (18, provavelmente), duas dessas repetições. A primeira, do canto inferior esquerdo ao canto superior direito, aparece em posição normal, enquanto que a seguinte tem um giro de 180 graus. Alinhadas à primeira repetição do nome do artista, encontram-se mais duas repetições: uma a 90 graus em uma linha ortogonal vertical a partir da extremidade esquerda da primeira repetição, à altura da mão do violão, portanto abaixo; e uma outra sem giro algum em uma linha ortogonal horizontal, posicionada à esquerda da face do cantor, portanto aonde deveria estar sua cabeça. Estas duas repetições também parecem ter o mesmo tamanho de letra (em torno de 9). Em um corpo intermediário, possivelmente 14, há a última repetição nesta mesma tipografia, no canto superior esquerdo, sangrando à altura do “r” de gilberto. Há ainda a assinatura do cantor abaixo do título, à altura de sua mão esquerda, o que ajuda a equilibrar a composição. A logomarca da gravadora aparece alinhada a uma linha ortogonal vertical à extremidade esquerda do título do disco. O plano escuro que contém o “O” dobrado da Odeon sangra na extremidade superior do disco. Este posicionamento da logo, sangrando na extremidade superior, embora não na mesma localização, repete-se em discos posteriores da Odeon (João Gilberto, João Gilberto, 1961 e O cantor e compositor, Marcos Valle, 1965). Não se sabe, porém, se esta utilização da logo se estabelece a partir do redesenho da mesma (o disco Carícia de Sylvia Telles, 1957, apresenta uma logo mais antiga, que não permitia esta utilização, e o Chega de Saudade, 1959, não tem a logo impressa na capa), ou é inaugurada neste segundo disco de João Gilberto. 61 uma estética bossa nova análise gráfica do design do designer césar villela Percebe-se nesta análise morfológica a intenção clara do designer em estabelecer um alinhamento preciso dos elementos utilizados na capa, denotando uma preocupação com uma característica da “funcionalidade” a que Dondis se refere. O partido tomado com a utilização da diagonal posicionando elementos para estabelecer este eixo de composição, também é uma característica funcional. Dondis coloca a seqüencialidade, outra técnica da composição funcional como oposto do acaso. Talvez para o observador menos atento, a utilização do nome repetido do artista em posições e ângulos diversos fosse uma transgressão a esta regra. Depois da decomposição da capa, através da análise morfológica, fica claro que nenhum elemento é utilizado nesta capa por “acaso”. Todos obedecem a um sentido de composição objetivo, onde cada um tem sua função: seja para estabelecer o eixo diagonal, seja para equilibrar a composição. Na repetição do nome do artista, pode-se sugerir ecos da poesia concreta, movimento artístico brasileiro inspirado no Estilo Internacional. b) Maysa (Elenco), Maysa: 1963 Esta capa é uma espécie de síntese do design da simplificação de César Villela. É do primeiro ano da Elenco e sua composição é baseada em apenas dois elementos: o nome e os olhos da cantora. Sobre o fundo branco da capa, Villela estoura, sangrando para ambos os lados, MAYSA, em tipografia sem serifa, helvética ou semelhante, em corpo superior a 500 pontos. Em um LP de 12 polegadas, o título do disco ocupa quase a metade de sua altura (5,5 polegadas) e toda a extensão de sua largura. Está posicionado ½ polegada 62 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova abaixo da metade da altura do LP, deixando pouco menos de duas polegadas acima, onde ele posiciona a logomarca da gravadora. Abaixo do título, Villela se utiliza da característica mais marcante da artista: os olhos extremamente expressivos e carregados de dramaticidade. Em alto-contraste sobre o fundo branco, ocupando quase toda a extensão da largura da capa, a expressividade da foto alcança o máximo de intensidade, comunicando-se de imediato e diretamente com o expectador. Segundo Dondis, esta seria uma característica das mais importantes do estilo expressionista, sendo um diferencial à estética predominantemente funcional aplicada no trabalho de Villela. Os olhos da cantora estão em leve perspectiva, o esquerdo ligeiramente mais próximo do direito, conferindo movimento à composição. Esta sensação de movimento é intensificada em virtude dos olhos não estarem alinhados a uma linha ortogonal horizontal imaginária, como se a foto tivesse sido tirada naquele instante e o expectador estivesse sendo contemplado pela artista. O título preto e de grandes proporções pesa substancialmente sobre os olhos da cantora, estabelecendo mais um componente intenso à composição. Os três pontos vermelhos, que com o ponto utilizado na logo formam quatro, número esotericamente harmônico, estão dispostos de forma quase casual, também estabelecendo ritmo ao trabalho. Apoiado à extremidade superior da altura do “M”, no encontro da haste vertical com a diagonal da letra, um pouco à direita do ângulo agudo formado pelas duas hastes, aparece um ponto. Um “segundo” ponto forma um ângulo com o “primeiro” e está situado um pouco abaixo da extremidade inferior do “M”. Se dividíssemos a segunda diagonal do “M”, o centro de seu raio estaria situado exatamente na metade desta haste. O terceiro ponto se encontra abaixo do “A” e um pouco acima do olho esquerdo de Maysa, como um sinal. A logo da Elenco, com o quarto ponto esotérico, acima do título, está na bissetriz do “Y”. A carga dramática da composição é um paralelo à interpretação da cantora, que não tinha muitos pontos de contato com o modo de cantar dos intérpretes da Bossa Nova. Ainda assim, ela se insere no contexto da estética da Bossa Nova, assim como a linha de projeto que Villela se utiliza para criar a linguagem visual da Elenco. 63 uma estética bossa nova c) análise gráfica do design do designer césar villela Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia Telles:1963 Esta capa tem um interesse especial na medida que há uma diferença interessante na forma de apresentação da artista em relação a uma outra capa de Villela, de 1957. Além disso, é um trabalho ousado no qual os elementos gráficos utilizados parecem fazer pender a composição para o lado direito. Os elementos gráficos usados na composição interagem, atraindo o foco da atenção para a metade direita da capa de fundo branco. Um campo de força é formado em torno da fotografia da artista, intermediada por pontos de exclamação estilizados que indicam o nome do disco. À haste de um dos pontos citados a foto se apóia, exibindo a intérprete de corpo inteiro, cabelos curtos e roupa aderente ao corpo, com calças e blusa de gola rolê. Com estilo eminentemente moderno, a cantora, de microfone na mão, parece estar no palco, em ação. No alto-contraste utilizado nesta foto, as únicas áreas claras aparecem na face direita da intérprete, no seu antebraço esquerdo e em detalhes de sua mão direita e do microfone, sendo isto suficiente para a compreensão da silhueta e da expressão da cantora. Ocupa três quartos da altura da capa, a partir da extremidade superior, da qual tem um pequeno deslocamento de ½ polegada. O nome do disco, “Bossa, balanço, balada”, forma com o nome da intérprete uma elipse em torno da foto. As três palavras, em letra bastão condensada, aproximadamente corpo 60, orbitam em torno da cantora e se integram pela ação dos pontos de exclamação. “Bossa” aparece na altura do cotovelo da artista, alinhado à direita pela mediana da largura da capa. Partindo da órbita da elipse iniciada com “Bossa”, o nome da intérprete é o “satélite” a seguir, quase alinhado na extremidade superior da mediana da altura. Não comparece com o 64 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova mesmo peso, porém. Expresso em fonte estendida sem serifa, como na capa de O amor, o sorriso e a flor, corpo 24, é o elemento mais à esquerda do trabalho, o que acaba por equilibrar a composição pela característica singular da fonte adotada em relação às demais. Em seguida, aparece “Balanço”, deslocado à esquerda em relação à “Bossa” e à mediana da largura. Está alinhado pelo topo a uma linha ortogonal horizontal que passa pela quarta parte da altura e pelo pé da artista. Abaixo e à direita, está “Balada”, ocupando o quarto inferior direito da capa e concluindo a elipse. Os três “pontos de exclamação” têm o auxílio dos pontos vermelhos de Villela para indicar a direção da leitura. Todos os três apresentam a mesma proporção, em torno de seis polegadas, metade do quadrado que forma a capa do disco. Têm a forma de uma gota e cada um deles apresenta uma rotação particular. O primeiro aparece de ponta-cabeça ao lado de “Bossa”, com um ponto vermelho no interior de seu ponto preto, tangenciando à esquerda sua circunferência. Sua haste em forma de gota descai sobre o segundo, rotacionado a 270 graus, entre o círculo preto e sua haste. Neste, também um ponto vermelho se aproxima no interior do ponto preto à esquerda de “Balanço”. No terceiro, o único em posição natural, sua haste quase toca a haste do primeiro. Se os isolássemos, o segundo e o terceiro pontos de exclamação, seria possível estabelecer um ponto médio na altura total, de forma que a rotação dos dois elementos fizesse com que o ponto inferior recaísse exatamente sobre a posição do superior. Esta é uma característica simétrica interessante que pode passar despercebida na contemplação da composição como um todo. O ponto vermelho sobre o círculo preto do terceiro ponto de exclamação situa-se à sua direita, mais uma vez indicando a direção da leitura de “Balada”. A logo da Elenco aparece na quarta parte superior da capa, alinhada ao centro na mediana da largura. Uma das razões da escolha desse trabalho é um paralelo estabelecido com uma capa de César Villela para a mesma intérprete. Nesta capa, de 1957, a cantora, estudante de ballet, aparece vestida com um figurino de dança, sentada, como num palco, depois de um espetáculo, uma caracterização repleta de significados românticos e líricos. Seis anos depois, alinhada aos propósitos da Bossa Nova, a artista ganha uma interpretação totalmente moderna, inserindo-se perfeitamente na ideologia da nova música. Outro ponto 65 uma estética bossa nova análise gráfica do design do designer césar villela interessante a se abordar é a diferença desta capa em relação à capa com elementos expressivos de Maysa, cantora que acompanhou a “onda” Bossa Nova, diferentemente da capa menos emotiva de Sylvia Telles, que apostou no movimento desde o seu início. O recurso aos pontos de exclamação é uma particularidade desta capa. Eles conferem ritmo e intensidade a esta composição inusitada. d) A Bossa Nova de Roberto Menescal e seu conjunto (Elenco), Roberto Menescal: 1963 Este trabalho tem interesse pela sua característica lúdica e sua composição muito mais solta, menos aferrada aos princípios de uma estética funcionalista – muito embora as técnicas e os elementos essenciais da linguagem visual de Villela estejam ainda presentes: a capa de fundo branco; o monocromatismo; o altocontraste; os três pontos vermelhos auxiliares. Villela aproveitou a personalidade esportiva para criar a capa. O cantor, adepto da caça submarina, é fotografado sorridente, de roupa e máscara de mergulho, snorkels e pé de pato, com o violão apoiado a seus pés. O designer desenha peixes estilizados, que servem para abrigar o nome dos integrantes do conjunto de Roberto Menescal. A fotografia em alto-contraste de corpo inteiro do artista é colocada no segmento esquerdo da capa, à semelhança da de Sylvia Telles. Neste trabalho, a foto ocupa ¾ da altura. À sua direita, são caracterizadas, despreocupadamente, as linhas de contorno de quatro peixes. Delineadas como por um pincel ou outro instrumento de ponta grossa, as linhas determinam somente o contorno dos peixes e fazem alusão à sua boca, tendo um ponto escuro para situar o olho do animal. Os quatro peixes à direita da foto do artista têm aproximadamente metade da altura da capa, dos ombros do violonista aos seus tornozelos. A cabeça do primeiro e do terceiro apontam para a esquerda, enquanto que a cabeça do segundo e do 66 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova quarto se volta para a direita. Da boca de cada um deles sai uma linha ortogonal horizontal, não superior a 2 pontos, que vão se encontrar, duas a duas, às extremidades do plano da capa. As linhas emitidas pelo primeiro e terceiro peixe propagam-se para esquerda, passando por trás da foto, respectivamente à altura dos ombros e acima dos joelhos, reaparecendo do outro lado para encontrar a extremidade da capa. As linhas emitidas pelo segundo e quarto peixe vão no sentido inverso e servem para delimitar uma área vazia onde será colocada a logomarca da gravadora. Há um quinto peixe abaixo da foto. Menor do que os quatro primeiros, ele se posiciona no canto inferior esquerdo da capa. No espaço em branco dentro das linhas de contorno dos peixes, Villela escreve em letra bastão estendida, caixa alta e em corpo 12, o nome de cada músico do conjunto. A tipografia usada para escrever o título do disco é desenhada à mão e bastante informal, não apresentando rígido alinhamento horizontal das letras. Villela parece incorporar características de fontes serifadas sobre um padrão basicamente “bastão”. Nas letras sempre em caixa alta, em corpo superior a 180, há elementos que se repetem, como uma meia lua no “R” e no “B” que serve para compor a letra sem se integrar completamente ao seu desenho. “A”,“D”,“M”,“N”,“T” e “V” não incorporam elementos diferentes a seu desenho basicamente bastão, apesar da característica caligráfica. O “S” e o “C” têm um arremate serifado na extremidade superior, enquanto que na inferior terminam sem particularidades. O “O” é como um recorte onde a emenda não se faz perfeita e também apresenta um arremate nas extremidades. O “E” é a letra mais curiosa. Parece ser composta de um “F” com um “rabo” a seu pé. Além disso, apresenta também um arremate na haste horizontal do meio. O “L” tem um arremate na sua haste horizontal. O título do disco é separado em duas partes: “A Bossa Nova” e “de Roberto Menescal”. Dividida em duas linhas, “A Bossa Nova” ocupa um quadrado de 7 67 uma estética bossa nova análise gráfica do design do designer césar villela polegadas no canto superior direito do trabalho. O “A” aparece em corpo inferior, próximo a 72pt, deslocado à esquerda e um pouco acima de “Bossa”. Abaixo dele, há um ponto vermelho, à metade da altura do corpo de “Bossa”, que está deslocada da extremidade superior e muito próxima da extremidade direita. Abaixo dela, alinhada em relação ao “A”, está “Nova” deixando um espaço de mais de uma polegada para a extremidade direita. Abaixo de Nova, passam as linhas que delimitam a área vazia onde a logo está disposta. No outro segmento, embaixo da logomarca, “de Roberto Menescal” não ocupa uma área tão bem delimitada quanto à analisada anteriormente. “Roberto” é a palavra mais à direita, mas não está alinhada a nenhuma das duas palavras escritas no canto superior direito. Podemos dizer que está alinhado pelo topo a uma linha ortogonal horizontal imaginária que passa pela terça parte da altura da capa. À sua esquerda, alinhado pela base, “de” tem tamanho semelhante ao “A” de “A Bossa Nova”.“Menescal” tem o quinto peixe a sua esquerda, como que apontando a direção da leitura. Ele deixa um espaço à sua direita: um quadrado de 2,2 polegadas de largura no qual está escrito “e seu conjunto”, em duas linhas centralizadas, fonte bastão, compensada, corpo 30. Os outros dois pontos vermelhos ainda não descritos se posicionam ao lado do pescoço do artista, no canto superior esquerdo, e acima do segundo “R” de Roberto, no canto inferior direito. Não têm qualquer função mais objetiva nesta composição, servindo mais para conferir ritmo ao trabalho. Esta capa destoa amplamente das demais escolhidas para análise. É mais complexa, contendo mais elementos e incluindo acessórios e recursos inexistentes nas outras. A diferença é ainda mais óbvia em relação à Nara e Maysa onde são utilizados somente os elementos essenciais do projeto gráfico da Elenco. Aproxima-se mais da capa de Bossa, Balanço, Balada, de Sylvia Telles, onde também existem acessórios e a utilização da foto é semelhante. Nesta, porém, os elementos gráficos são distribuídos por toda a área da capa, ao contrário da outra, onde o foco de atenção se volta para o lado direito da composição. 68 análise gráfica do design do designer césar villela uma estética bossa nova e) Nara (Elenco), Nara Leão: 1964 Esta capa é das mais simples, utilizando sobre o plano branco somente o nome da cantora (que também dá nome ao disco), uma foto em alto-contraste de seu busto, a logomarca e os três pontos auxiliares. O desenho e a forma de se compor o nome da cantora é o aspecto mais interessante deste trabalho. Com uma tipografia estendida sem serifa, de haste bastante grossa, Villela decompõe o nome em duas sílabas, alinhando-as pela esquerda. Funde o “N” com o “R” abaixo dele, de modo que a haste vertical das duas letras coincidam. O espaço horizontal do “N” é maior que o do “R”, possibilitando a utilização de uma mesma haste diagonal para desenhar os dois “As”. As hastes horizontais dos “As” dão estrutura para o desenvolvimento das duas outras hastes diagonais, que se expandem acima da altura da letra, terminando em uma seta. O resultado parece indicar o equilíbrio diagonal da composição. Este trabalho tipográfico é o elemento que comparece com mais peso na capa, com mais de 4 polegadas na altura das hastes unidas do “N” e do “R”, sem contar a expansão das hastes diagonais dos “As”. Está situado mais acima e à esquerda da foto da intérprete, que ocupa o canto inferior direito se expandindo um pouco acima da metade da altura da capa. A seta do “A” da segunda sílaba aponta a fotografia em auto-contrate da artista, de semblante tímido e com a cabeça girada sobre seu ombro direito. A foto sangra pela base, de modo que só fica representado o busto da cantora. Os três pontos vermelhos, quase alinhados em uma reta, indicam a diagonal inversa e o logo da Elenco está centralizado ao título do disco, situando-se acima do mesmo. O resultado alcançado por Villela nesta capa talvez seja um dos mais interessantes dentre todos os seus trabalhos pesquisados. As setas nas extremidades das hastes diagonais dos “As” tanto indicam o equilíbrio 69 uma estética bossa nova análise gráfica do design do designer césar villela diagonal da composição, como podem apontar para a cantora, então gravando seu LP de estréia, e sugerir sua ascensão meteórica. Ao mesmo tempo, podem sugerir os diferentes caminhos que Nara começa a tomar a partir deste disco (a cantora atravessa a Bossa Nova, chega à Tropicália, grava Roberto Carlos e standards americanos, para no final da vida voltar novamente à Bossa). 70 CONsiderações finais A ruptura no design de capas de disco promovida por Villela foi uma ilha nesta área de projeto. A função de display que as capas exerciam naquela época, motivação inicial no design de Villela, brevemente seria substituída pela inserção do artista numa mídia mais atenta às possibilidades de capitalização da música e artes em geral. No Brasil, mesmo com a imprensa sob a tutela do Estado pós-64, isto pode ser exemplificado na realização de diversos festivais musicais por emissoras de TV rivais, e na criação de programas voltados para a música, como, no âmbito da música popular, O Fino da Bossa e Esta noite se improvisa. A Bossa Nova e sua postura lírica e “alienada” perderia espaço no clima polarizado da época, fazendo com que aquela forma de se criar capas de disco, tão identificada com o movimento, acabasse sucumbindo junto com ela. No que diz respeito a uma “adequação modernista” no projeto de capas de disco, apresentamos um quadro no qual o design estudado se aproxima e se afasta de uma estética funcionalista. Se aproxima no uso do preto e branco, da limpeza, da simplicidade, no método; se afasta na independência do designer na aplicação de quaisquer recursos e técnicas que julga interessante incorporar ao seu trabalho, sem se fixar a um estilo ao qual ele nem reconhece sua adesão. Villela sublinha por diversas vezes sua total liberdade de criação, não sendo tolhido por diretores de gravadora ou artistas, que só tinham acesso à sua capa depois de impressa. É curioso observar que o axioma “forma segue função” presente na música bossanovista, e, de certa forma, no design que Villela projeta para ela, tem suas origens em uma ideologia de reconstrução social, “onde a racionalidade aplicada ao desenvolvimento dos meios de produção conduziria à superação das contradições sociais, políticas, econômicas” (Bomfim, 1998: 77). Paradoxalmente, os fundamentos da estética inspiradora do design de Villela tinham uma aspiração ideológica que, no acirramento dos ânimos na década de 60, acaba por soterrar a Bossa Nova. Os artistas que a sucederam não desejavam mais seguir seu projeto. Seja na sua temática, seja na sua forma. 71 A estética que Villela concretiza em suas capas e seus valores de limpeza, simplicidade, exatidão e objetividade perderiam espaço para a pluralidade de ritmos e conteúdos diversos que a MPB traz para a música brasileira. O violão sintético de João Gilberto, cujo ritmo era capaz de se moldar a qualquer tipo de música (analogamente, como o Estilo Internacional pretendia dar conta de qualquer área de projeto), já não era suficiente para abrigar o caldeirão cultural e político brasileiro. 72 BIBLIOGRAFIA BOMFIM, Gustavo Amarante. Idéias e formas na história do design. João Pessoa: Ed. Universitária, 1998. CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2000. CHEDIAK, Almir. Songbook Bossa Nova, V.I e V.II. Rio de Janeiro: Ed. Lumiar, 1990. DENIS, Rafael Cardoso. Uma introdução à história do design. São Paulo: Ed. Edgard Blücher, 1999. DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2000. Enciclopédia Nosso Século, 1930/1945 V.II, 1945/1960 V.I, 1945/1960 V.II. São Paulo: Ed. Abril Cultural,1980. LAUS, Egeu. “As capas de disco no Brasil: os primeiros anos”. In Arcos - Design, cultura material e visualidade. Rio de Janeiro: 1998. MAIA, Alexandre Barros. Bossa Nova – Relatório de PPD Conclusão. Rio de Janeiro: Departamento de Artes da PUC-Rio, 1998. MEDAGLIA, Júlio. “Balanço da Bossa Nova”. In: CAMPOS, Augusto. O Balanço da Bossa. São Paulo: Ed. Perspectiva S.A., 1993. MORAIS, Fernando. Chatô. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1994. Mostra de capas de disco no Brasil. São Paulo: ADG, 1999. MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Rio de janeiro: Ed. Objetiva, 2000. RODRIGUES, Jorge Luís. Anos fatais: a estética tropicalista e seu desdobramento no design gráfico nos anos 70 – Tese de mestrado. Departamento de Artes da PUC-Rio, por publicar. Seminário Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de janeiro, 2001. TÁVOLA, Arthur da. 40 anos de Bossa Nova. Rio de Janeiro: Ed. Sextante, 1998. TINHORÃO, José Ramos. In Jornal do Brasil. Rio de janeiro, 1979. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1997. VILLELA, César. Entrevista a Jorge Luís Rodrigues. Rio de Janeiro, 2001. WAINER, Samuel. Minha razão de viver. São Paulo: Ed. Record, 1989. 73 ANE X O 76 capas de disco As capas foram coletadas, basicamente, da pesquisa de Egeu Laus publicada na Revista Arcos V. I e do acervo do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. No caso das imagens tiradas da Revista Arcos, sofremos o problema de terem sido digitalizadas a partir de um impresso, o que por si só já compromete o resultado. As capas do MIS-RJ foram fotografadas em um ambiente que tinha apenas o mínimo de lumiosidade para o registro fotográfico e maioria delas tinha um invólucro plástico o que propiciava reflexos indejáveis. Infelizmente, nem todas as capas poderão ter todas as informações desejáveis disponíveis: no caso da pesquisa de Egeu Laus, ele nem sempre as disponibiliza. Não sabemos se por elas não estarem realmente impressas, ou porque o pesquisador optou por não utilizá-las. Podemos, no entanto, afiançar, baseado em sua pesquisa, que as capas datam de 1950 a 1958. Este problema poderia ser resolvido com uma entrevista com o autor, o que, desafortunadamente, não foi possível, apesar das nossas insistentes tentativas. No caso das capas coletadas do livro de Ruy Castro, não há a referência de autores; no entanto, podemos conferir datas na discografia que ele apresenta ao final do livro. Há uma situação curiosa no que diz respeito às capas de César Villela. Ele afirma (Villela, 2001: Anexo) que deixou o Brasil em 1964, tendo executado as 18 primeiras capas da Elenco. Segundo ele, utilizando sempre os três pontos vermelhos auxiliares. Curiosamente, existe a capa de A nova Bossa nova de Roberto Menescal e seu conjunto, na qual seu nome consta dos créditos. Como o disco é de 1963, suspeitamos de um engano de Villela quanto a esse aspecto. Há outras capas, no entanto, de anos posteriores à sua saída do Brasil, que também apresentam seu nome nos créditos. Essas, porém, não parecem ter sido feitas por este designer. O exemplo mais vivo deste enigma é a capa de Contrastes, de Odete Lara, de 1966. Mesmo assim, quando disponível, mantivemos o crédito expresso no disco. Outro enigma é a capa de Surf Board, de Roberto Menescal, do ano de 1964, cuja autoria ninguém parece concordar: Castro afirma que é de Villela; Villela diz que é de Eddie Moyna e na contra-capa do disco consta o nome de Rubens Richter como autor do layout. Uma útima curiosidade é a respeito dos discos verdes da Elenco (ex: Antônio Carlos Jobim com Nelson Riddle e sua orquestra: 1967). Segundo Achille, colecionador de discos que encontrei em minha primeira visita ao MIS-RJ, é um padrão adotado para os discos gravados no exterior. A informação procede, pelo menos no que diz respeito aos discos com esta característica coletados na pesquisa. 77 a) Capas de disco de 1950 a 1958 Noel Rosa (Continental), Noel Rosa: 1950 Ilustração: Di Cavalcanti Capa: Joselito • Foto: Mafra Boite (Musidisc), Nestor Campos e seu conjunto de boite: ? Carnaval do meu tempo (Polydor): ? Ilustração: F.K. Ilustração: Lan Eu vou p’ra Maracangalha (Odeon), Dorival Caymmi: ? Vamos dançar? (Continental): ? Capa: Páez Torrez Turma da Gafieira (Musidisc):? Capa: Joselito • Fotos: Mafra 78 Canções praieiras (Odeon), Dorival anexo uma estética bossa nova Caymmi: 1954 Ilustração: Dorival Caymmi (RCA Victor): ? Autor desconhecido ? Capa: Joselito • Foto: Studio Musidisc Fafá Lemos e seu violino com surdina The Ink Spots (Musidisc), The Ink Spots: Dorival Caymmi à interpretação de Jacques Klein (Sinter), Jacques Klein: ? Ilustração: Paulo Brèves Silva: ? Autor desconhecido Waldir Calmon: ? Foto: Avila Gafieira (Musidisc), Gadê e Walfrido Para ouvir amando... (Copacabana), A Patativa do Norte (Odeon), Augusto 79 uma estética bossa nova Calheiros: 1956 Autor desconhecido anexo Capa: Ronald • Foto: Diler Na batida do samba (Continental), Neuza Maria (Sinter), Neuza Maria: 1956 Nelson Golçalves (RCA Victor), Nelson Gonçalves: ? Autor desconhecido 80 Risadinha com Vadico e sua orquestra: 1956 Capa: Páez Torres Noel Rosa na voz romântica de Sucessos em desfile no2 (Odeon) Carolina Cardoso de Menezes: ? Autor desconhecido Sambas em desfile (RCA Victor):? Autor desconhecido Show Copacabana (Copacabana): ? anexo Autor desconhecido Autor desconhecido Ribamar ao piano (Columbia): ? Silvio Caldas (Columbia):? uma estética bossa nova Capa: Páez Torres Carícia (Odeon), Sylvia Telles: 1957 Capa: Villela 81 b) Capas de Bossa Nova de 1959 a 1968 Chega de Saudade (Odeon), João Gilberto: 1959 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira O amor o sorriso e a flor (Odeon), João Gilberto: 1960 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira João Gilberto (Odeon), João Gilberto: 1961 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Antonio Carlos Jobim (Elenco), Tom Jobim: 1963 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Maysa (Elenco), Maysa: 1963 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Telles:1963 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia A Bossa Nova de Roberto Menescal 82 anexo uma estética bossa nova (Elenco), Roberto Menescal:1963 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Vinícius & Odete Lara (Elenco), Vinícius & Odete Lara: 1963 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Um Sr. Talento (Elenco), Sérgio Ricardo: 1963 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira A nova Bossa Nova de Roberto Menescal e seu conjunto (Elenco), Roberto Menescal e seu conjunto: 1963 Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Bossa session (Elenco): s/r Capa: Villela Kaleidoscópio Elenco (Elenco): s/r Capa: Villela Kaleidoscópio 2 (Elenco): s/r 83 uma estética bossa nova anexo Capa: ? Capa: Villela • Foto: Chico Pereira Nara (Elenco), Nara Leão: 1964 Opinião de Nara (Phillips), Nara Leão: Surf Board (Elenco), Roberto Menescal: 1964 Capa: Rubens Richter • Foto: Chico Pereira Capa: Eddie Moyna • Foto: Chico Pereira Lennie Dale e o Sambalanço Trio (Elenco), Lennie Dale:1965 Rio capital de Bossa Nova (Elenco): ? Capa: Eddie Moyna • Foto: Chico 84 1964 Capa:? anexo uma estética bossa nova Pereira Capa: ? • Foto: Galdino Silva Capa: Eddie Moyna O cantor e o compositor (Odeon), Marcos Valle: 1965 Bud Shank, Donato, Rosinha de Valença (Elenco), Bud Shank, João Donato, Rosinha de Valença: 1965 Manhã de carnaval (Phillips), Nara Leão: 1966 Capa:? Contrastes (Elenco), Odete Lara: 1966 Capa: Villela Rosinha de Valença (Elenco), Rosinha de Valença: s/r Capa e foto sem registro Reencontro (Elenco), Sylvia Telles, Edu Lobo, Tamba Trio e Quinteto Villa Lobos: 1966 Capa e foto sem registro 85 uma estética bossa nova A 3a dimensão de Lennie Dale(Elenco), Lennie Dale:1967 Capa: Villela 1968 Capa: ? • Foto: Galdino Silva Tamba Trio (Phillips), Tamba Trio: 1968 86 anexo As músicas de Edu Lobo por Edu Lobo (Elenco), Edu Lobo: 1967 Capa e foto sem registro e sua Orquestra (Elenco): 1967 Capa: João Baptista Canto • Fotos: Ed Thrasher e Manchete Antônio Carlos Jobim com Nelson Riddle Viola enluarada (Odeon), Marcos Valle: Capa e foto sem registro Entrevista de CÉSAR VILLELA Esta entrevista foi concedida, em fevereiro de 2001, a Jorge Luiz Rodrigues, mestrando em design pela PUC-Rio. Qual foi sua formação? Você é autoditada? Como você definição do que ia ser como capa, então fomos ordenando. O chegou até a capa de disco? André Midani dirigia esse setor de publicidade da Odeon com Essas coisas acontecem na infância. Desde garoto já começava o Aloysio de Oliveira, que era o nosso diretor artístico fantástico, a rabiscar. Quando eu estava no Laffaiete, tinha um professor de e me apoiaram muito, me deram toda liberdade. história, o Passos, que tinha uma revista chamada Humanidades, para a qual eu já desenhava. Depois, tinha um outro professor Você tinha idéia do que se fazia lá fora? Você tinha influ- com uma revista chamada Gente Nova e eu desenhava também ência lá de fora? para essa revista. Depois criaram um jornal lá dentro, chamado Não tinha influências, como a nossa música era diferente da Nosso Jornal. Eu já venho dali. Eu fui estudando, mas fui sempre deles, eles tinham características diferentes. Aliás as capas da me envolvendo com desenho. Até que eu comecei a trabalhar Capitol da época marcaram: eram bonitas, muito bem feitas para a revista Tico Tico, Vida Infantil, essas revista infantis. Fazia graficamente. Eram as melhores capas. Mas as européias eram cartoon, histórias em quadrinhos. Na Rio Gráfica eu também muitos ruins. A Decca, aquelas capas inglesas, francesas, eram ilustrava as revistas infantis. O meu primeiro emprego foi em muito ruins, dentro do nosso ponto de vista. E nós começávamos publicidade na falecida Mesbla. E depois, naquela época, não a criar uma personalidade, porque não era só eu que estava existia faculdade de propaganda, de publicidade, de desenho, trabalhando naquela época. Na Musidisc, tinha o Joselito e o nada. As coisas eram passadas e repassadas de colega para fotógrafo Mafra, bom fotógrafo. Eu levei o Chico Pereira para colega. A gente trabalhava com os mais experientes e nós trabalhar comigo, tinha pretensões de criar, dirigia as fotos. íamos aprendendo, melhorando. Eu tive grandes colegas mais Chico era um excelente profissional, tecnicamente, fazia tudo velhos que foram grandes professores. Naquela época não havia muito bem feito. Ganhamos alguns concursos de capa até surgir nem faculdade de jornalismo. Quando eu entrei pr’O Globo a Elenco. A Elenco é que definiu. eu ilustrava Henrique Ponjetti, Lessa, os cronistas da época. O indivíduo precisava ter o cientifico, mas se ele tivesse cinco Como surgiu o design do preto e branco? anos de jornalismo, o dono do jornal podia registrá-lo como Há tempos eu queria fazer na Odeon uma mudança nas jornalista. Era praticamente uma faculdade. Nesse caso, o Ro- capas de disco. Antigamente não tinha televisão e os jornais berto Marinho, que nessa época ainda estava em um nível que praticamente não falavam de artistas, eles não eram notícias podíamos conversar com ele, me colocou como jornalista. Do como hoje. Se você quisesse fazer algum artista aparecer no Globo eu fui para a publicidade: a Standart Propaganda e outras jornal você tinha que pagar. O cara tinha que fazer um anúncio, agências, onde trabalhava como freelancer. Até cair em disco pois eles achavam que falar do artista ia vender disco. Então o no final de 1957. O LP estava embrionário ainda, não tinha uma Roberto Marinho, que não tinha TV, não tinha companhia de 87 uma estética bossa nova anexo disco, era especificamente o jornal, não queria falar nada. Só se as fotos em alto-contraste. Nós fizemos as fachadas da Maysa, o artista matasse alguém é que saía na primeira pagina. Depois do Lennie Dale, dessa turma que se apresentava lá e com as veio a Revista do Rádio e o Roberto criou a Radiolândia, então próprias fotos fomos fazendo as capas da Elenco. Tem um certo falávamos sobre o artista mais não se falava do disco. E o que folclore que o preto e branco era porque não tinha dinheiro. acontecia: a capa de disco naquela época era o display, era o Não era. Se eu determinasse “vamos fazer a cores”, seria, porque ponto de venda na loja, ela tinha de ser atrativa, ela é que ven- o Aloísio não estava nem aí. Não era por economia. dia. Então as lojas expunham nas vitrines as capas, um monte Foi na realidade a primeira programação visual em capas. Mas de capas. Eu já tinha observado que era uma poluição visual eu não fiz pensando em ser a primeira, eu fiz porque já vinha muito grande: mesmo as minhas ficavam confusas junto com pensando na simplificação. Eu usava quatro bolinhas vermelhas as outras. Eu já tinha pensado em simplificar para aparecer mais por causa do logotipo que eu tinha criado, onde o N formava determinadas capas. Hoje mudou muito o conceito. Tem tele- um spot com a luzinha vermelha. Então eu disse: “já que tem visão, rádio, clips, um monte de coisa, o ponto de vista é outro. que botar um pontinho vermelho, vou botar quatro”, porque, Os cds mudaram muito a concepção de capas. Então eu disse: esotericamente, quatro queria dizer harmonia, o que estava “eu tenho de vencer essa barreira visual”. O Chico era professor ligado à música. E assim ficou marcado. de fotografia na ABASF e havia excelentes fotógrafos fazendo coisas diferentes, que não eram usadas comercialmente. Aí Você tinha noções do “funcionalismo”? eu disse: “Chico, tem umas coisas aí que talvez a gente possa Eu me baseio muito em Mondrian para a minha pintura. Como pegar para mexer a coisa” e tal. A primeira tentativa é uma capa conceito, a Bauhaus tinha um desenho de simplificacão, porque solarizada de João Gilberto (O amor, o sorriso e a flor). Não era saiu da art noveau, da art deco. Era confuso. Você se lembra dos alto-contraste era solarização. Mas o departamento comercial postes de iluminação do Rio? Tinham uma saia toda bordada, da Odeon não gostou muito, eles queriam fotografias do artista cheia de voltinha, então industrialmente as coisas eram mais na capa. Aí, eu tive que dar uma paradinha. Mas logo surge a difíceis de serem feitas em produção. A Bauhaus criou uma oportunidade de lançar a Bossa Nova como movimento. Mas a concepção nova de simplificação para ajudar inclusive na Odeon não queria apostar na Bossa Nova, só o Aloyso de Oliveira produção, então os postes passaram a ser retinhos, limparam queria. Aí partimos... visualmente as coisas. E Mondrian sacou e simplificou. Foi Eu já tinha essa idéia da simplificação quando o Aloysio criou dentro desta concepção de simplificação que eu resolvi fazer a Elenco. Ele não tinha um tostão no bolso, saiu da Odeon, o meu trabalho. entusiasmou-se, e foi fazer a gravadora. Todos os artistas colaboraram com ele, ninguém estava a fim de dinheiro, nem Jobim, Como era a relação com a gráfica? e o Aloísio também era desorganizado à beça. Para ele, dinheiro Eu tinha o privilégio de ter como amigos o Aloyso e o André para ele era uma coisa espiritual, etérea. Eu e o Chico fizemos Midani. Eles eram funcionários da Odeon e eu trabalhava como as capas e nunca ganhamos um tostão, nunca recebemos um freelancer, o Chico também. Eu comprava tinha uma tabela, dinheiro. Mas antes das capas havia os shows da Bossa Nova cobrava X, e fim de papo. Eles tinham tanta confIança e mim no Bon Gourmet. Fazíamos a fachada e aproveitamos para usar que não queriam saber, me davam o nome do lançamento, o 88 anexo uma estética bossa nova nome dos discos, às vezes os trocávamos opinião, e eu saia só pronta. Ele me ligou para casa às 11 horas da noite e ficou me com aquilo. Eu tinha liberdade. Não precisava mostrar um layout explicando por que não gostou da capa, que era “tristezinha”. a eles, me viciei muito nisso. Eles iam ver depois, gostando ou Ele ficou até as 2 da manhã me explicando o que era tristezinha. não. Às vezes, eles não gostavam, mas não me impediam de eu Uma coisa de louco! Eu queria dormir e ele me explicando o continuar com a minha liberdade de trabalho. Eu fazia a arte que era tristezinha. Ele desenvolveu um termo sobre o que era final. Não existia fotoletra naquela época, não tinha computador tristezinha que eu até hoje não sei o que é tristezinha. Ele não para fazer fotocomposição, não existia nada. Então, eu pedi gostou da capa. para o André mandar vir dos Estados Unidos um catálogo de tipografia, fotografei-o todo e fiz fotoletras dali; fiz negativo e A tipologia desta capa já é uma coisa muito moderna. tirava várias cópias e montava-as. Por exemplo: eu pegava a foto Eu procurava fazer tudo muito alinhado. Mas tem um erro do Chico, o cromo, ampliava no prisma, marcava o lugar da foto, fotográfico: apareceu a sombra do flash lá atrás. Mas não tinha botava o título e mandava para São Paulo, onde era a gráfica. como, porque esta era a melhor foto. Já vinha pronto, não me perguntavam nada, não dava tempo. Às vezes mal impresso, às vezes bem impresso. As fotos eram feitas de comum acordo? Íamos para o estúdio e eu armava a situação. O Chico trabalhava Você não via nem o fotolito? com a Rolleyflex dele, eu olhava às vezes através do visor, dava Eu já via a coisa pronta, não tinha controle porque era em São ok, e o Chico disparava. Os artistas eram todos muitos carinho- Paulo. O departamento comercial não mexia no que eu fazia, sos com a gente. Também, naquela época, a gente não ouvia me respeitavam. Também havia umas questões moralistas. falar de maconha, cocaína. Se tinha, era uma coisinha ou outra. Naquela época as coisas eram difíceis. Uma vez eu botei uma Falava-se ligeiramente que o João era da esquadrilha da fumaça. mulher com o seio de fora, um detalhe, e choveram reclamações: Era um ambiente mais sadio, tinha aquela turma que saía para “como é que eu vou levar um disco desse para casa?”. A direção uma bebedeira, um chopinho, era mais tranqüilo. da Odeon pedia pra não fazer, a gente ia maneirando. Como foi a historia da capa do LP Surfboard? Como era a relação com o fotógrafo e com os artistas? Essa capa não é minha, o Ruy cita no livro, mas essa não é minha. Muito boa. O artista não dava palpite, ele não tinha acesso às Eu fiz as dezoito primeiras capas da Elenco, e resolvi ir para os capas dele. Depois quando surgiram os produtores indepen- Estados Unidos, já estava saturado. Começou a revolução de 64, dentes, cada artista tinha um produtor, e aí o artista escolhia o mercado começou a ficar difícil. Deixei um amigo do Chico quem faria a capa. Trazia o amigo e aí começou a ficar um pouco que era designer também, o Eddie Moyna, no meu lugar. O Eddie amador. Hoje em dia não, hoje já é mais profissional com o cd. que fez essa capa. O Eddie modificou as capas, incluindo novos O Gê da universal, Geraldo Alves Pinto, é um excelente capista, elementos, aí as capas voltam a ser como antes. ele já tem um grande controle, os artistas já não dá tanto palpite. Mas no meu tempo, eles nem sabiam, só iam ver a capa Dentre as suas capas qual a que você mais gosta? depois. Tanto que a capa do LP Chega de Saudade, o João só viu A Odeon tinha lançado uma espécie de capa de plástico, o es- 89 uma estética bossa nova anexo tereoplástico, não sei se você conhece. Era uma capa de papel tipo. Era compasso, régua, esquadro os instrumentos. envolvida em plástico que um japonês inventou e a Odeon comprou a patente dele. Então eu fiz uma capa original do Bola Você não usava esses instrumentos? Sete, o violonista. Era bem bolada porque ninguém tinha uma Usava, mas eles só usavam isso. A publicidade nasceu do ilus- capa igual à do outro. Eu botei em preto e branco Bola Sete e trador. Não eram designers, eram ilustradores. Na publicidade, a foto dele redondinha em preto impresso. Soltei seis bolas de quando um cara queria fazer um anúncio, chamava um dese- cores dentro, jogadas, de modo que você mexia e elas se mexiam nhista, ilustrador. Às vezes, o ilustrador mesmo fazia o texto. também. Essa capa é uma que se destaca pela originalidade. E, no Brasil, tivemos grandes ilustradores, e temos ainda hoje. Naquela época, tínhamos o Sami Mattar, um grande pintor, o Nessa época você tinha contato com outras pessoas que Benício, um grande ilustrador, o Lutz, o Gutenberg, que está estavam fazendo capa de disco? O que era design na época? nos EUA, Fernando Dias da Silva que está nos EUA, grandes Essa palavra era usada? ilustradores. E, antes disso, o J. Carlos. O ilustrador que dava Não, era desenhista, capista, ou então diretor de arte. Então, base à publicidade, fazia os layouts. Era tudo muito baseado eu era diretor de arte, mas eu nunca gostei do título, achava em ilustração. Quando veio a ESDI, começou a perder-se o ilus- pretensioso. Eu botava simplesmente layout de César, fotos trador, o cara já não precisava desenhar, precisava ter um ritmo de Chico. Não havia necessidade. As agências de publicidade diferente. E o ilustrador foi ficando à parte. Depois começou a estavam criando este termo art director. Mais tarde, eu vim a ser se dosar um pouco, o designer com ilustração. Hoje em dia, a presidente do Clube de Diretores de Arte do Brasil, mas muitas ilustração no Brasil caiu muito, por causa do computador. Quem coisas já tinham se sedimentado, já tinha voltado dos Estados sabe desenhar vai para o EUA. Unidos, foi outra coisa. Mas naquela época era isso. A idéia de design tinha sim, na Europa, mas para nós nada significava... Era desenhista. Em 63 é fundada a ESDI... Aquela primeira turma estava muito ligada à régua e esquadro, começou um festival de logotipos, todo mundo fazendo logo- 90 Este livro foi composto nas tipografias Myriad Roman e Alternate Gothic 2, impresso na Sir Speedy e encadernado na gráfica Dois Irmão LTDA.