REPRESENTAÇÃO DO HOLOCAUSTO NA PEÇA “AFTER THE

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REPRESENTAÇÃO DO HOLOCAUSTO NA PEÇA “AFTER THE
REPRESENTAÇÃO DO HOLOCAUSTO NA PEÇA “AFTER THE
FALL1”, DE ARTHUR MILLER:
do Jardim do Éden aos campos de concentração2
autor: Alexandre Feldman
Palavras-chave: representação do holocausto, teatro norte-americano,
expressionismo, literatura bíblica, macarthismo
É consenso entre os críticos e estudiosos de teatro que o dramaturgo norteamericano Arthur Miller traz em suas peças alguns temas recorrentes que possuem
relação com acontecimentos históricos sem deixar de lado o indivíduo e suas
responsabilidades pessoais e coletivas. Em After the Fall, vários elementos
históricos permeiam o texto: macarthismo, a depressão dos anos 30, a bomba de
Hiroshima e o Holocausto. Sendo este último o foco de minha pesquisa, procuro,
seguindo um eixo literário e não o do ponto de vista do historiador, examinar as
imagens e significações da torre do campo de concentração e quais recursos são
utilizados para sua representação. A filosofia existencialista, o expressionismo,
questões de identidade, de memória e sobre o holocausto, bem como elementos
bíblicos judaicos, como por exemplo a interpretação da Queda, alusão à queda do
Paraíso, como um despertar da consciência e da responsabilidade, dão luz à
pesquisa.
Esta obra de Arthur Miller tem um potencial ainda muito grande a ser
explorado e divulgado ao público brasileiro, independentemente de sua característica
judaica, pois é fato conhecido que a bibliografia em língua portuguesa sobre o teatro
norte-americano é escassa, o que demonstra, segundo Iná Camargo Costa, “um
injustificável desinteresse pela história de um produto cultural extremamente
relevante em nossa experiência moderna e contemporânea”3.
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Depois da Queda.
Comunicação proferida no 5º Colóquio de Pós-Graduação de Língua Inglesa e Literaturas Inglesas e norteAmericanas FFLCH/USP, São Paulo, 2001. Publicado na Revista Vértices no. 5 Humanitas: USP (2004).
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Ao longo dos estudos sobre a Representação do Holocausto na peça After
the Fall, de Arthur Miller, demonstrou-se que o despreparo da crítica norteamericana e internacional em relação aos elementos e recursos do teatro
expressionista utilizados em larga escala nessa obra, contribuiu não apenas para um
fracasso de público, mas também para a incompreensão dos significados a que a
obra remete. Além desse despreparo foi possível detectar uma falta de interesse da
crítica em abordar as temáticas expostas na peça que eram polêmicas e gerariam
controvérsias. Esse “silêncio crítico” serviu aos interesses escusos de governantes e
poderosos que até se utilizaram de recursos do próprio estado para manipular
opiniões durante o período macarthista. Ao silenciar-se sobre o Holocausto,
silenciou-se também sobre o Comitê de Atividades Anti-americanas e sobre o
passado histórico de um país que se diz defensor da liberdade4. É interessante
observar que Arthur Miller havia oferecido à sua crítica quase que o material
completo em sua introdução à peça. É realmente digno de nota que os elementos ali
tão abertamente colocados e expostos suscitaram menos interesse do que
associações feitas à estrela de Hollywood e segunda esposa do dramaturgo, Marilyn
Monroe, e a questões autobiográficas. Miller havia deixado claro desde o princípio
que a peça After the Fall não era “sobre” algo, mas que ela própria era algo. Ela era
primeiramente um modo de ver o homem e sua condição humana como a fonte de
violência que tem chegado cada vez mais perto da aniquilação da espécie humana.
Ele traça a conclusão, altamente influenciado pelas idéias existencialistas, ligando
sua visão de que não é procurando nas concepções sociais ou ideológicas que
encontraremos as raízes da violência. Ao contrário, ele vê o ser humano como o
denominador comum de toda a violência, deixando claro que nenhum povo ou
sistema político têm o monopólio sobre ela. Ao fazê-lo Miller traz ao homem a
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COSTA, Iná Camargo. Panorama do Rio Vermelho: ensaio sobre teatro americano moderno. Concurso de livre
docência FFLCH/USP, São Paulo, 2000.
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Na peça os recursos de iluminação indicados na rubrica deixam claro para o espectador a relação entre os
acontecimentos no período macarthista e o Holocausto, pois os dois estão cênica e textualmente entrelaçados.
Assim, quando um fato de traição (pessoal ou coletiva) está presente no diálogo, a torre do campo de
concentração é iluminada, relacionando o drama pessoal de Quentin, parentes e amigos ao da humanidade.
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responsabilidade por suas escolhas, ou melhor, condena-o, assim como Sartre à
liberdade, à consciência. Porém, essa consciência só pode existir depois que o ser
humano se liberta da inocência. Não apenas um desejo de ser inocente para não se
sentir comprometido com os outros, mas também um desejo de retorno a um tempo
em que o homem não era responsável pelos seus atos, ou seja, um retorno ao Éden.
Essa imagem é vividamente explícita em Miller e ao Gênesis ele retornará por várias
vezes ao longo de sua carreira como escritor e crítico. O dramaturgo consegue em
After the Fall demonstrar por associação como o assassinato de um único homem é
o assassinato de todo o mundo. Para ele a primeira história verdadeira da Bíblia é o
assassinato de Abel. Antes desse episódio há apenas um Paraíso descaracterizado.
Nesse Paraíso havia paz porque o homem não possuía consciência de si próprio. Se
seguirmos a linha existencialista para nos guiarmos nesse ponto de vista, veremos
que a escolha de um homem é uma escolha universal, ou seja, o homem ao escolher
escolhe por todos os homens. O despertar da consciência que liberta o homem de
sua inocência é que cria a possibilidade da escolha. A consciência de si mesmo, a
sexualidade e sua separação em relação as plantas e os outros animais surge apenas
depois que o homem come o fruto da Árvore do Conhecimento. Mas poderíamos ir
ainda mais longe nessa associação de imagem sugerida por Miller ao lembrarmos de
que foi dada a Adão a possibilidade de escolha antes de ele comer o fruto. Eva
apresentou a ele a escolha. E naquele momento, mesmo antes de morder do fruto do
conhecimento o paraíso já havia acabado, pois onde começa a “escolha” termina o
“paraíso” e com ele a inocência. Nesse sentido Miller constrói o paraíso como uma
metáfora da ausência de necessidade de escolha. Assim aquele lugar mentiroso cheio
de frutas de cera é o Éden, um lugar onde na verdade o homem não é livre. A
liberdade só se apresentou verdadeiramente “depois da queda”. Contudo, ao sair do
Éden, o homem se viu com duas alternativas: a de Caim e a outra que permeia todo
o texto bíblico bem como a história humana, ou seja, a tentativa de apaziguar e
pacificar os desejos destrutivos do homem e seus desejos por grandeza, riqueza,
amor. A peça, traz justamente à tona a questão se é possível atingir essa pacificação.
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Quentin entra em cena acreditando não haver mais nenhum sentido para o mundo e
para si. Seus dois casamentos fracassados bem como seu sucesso como advogado
são vistos apenas como resultado de seu próprio egoísmo e nada para além de sua
pessoa. Seu desespero o conduz à procura de sua própria responsabilidade por sua
vida. A tensão aumenta ainda mais porque Holga representa o amor que nele
renasce. Holga é para Quentin o que Eva apresentou a Adão: o fato terrível da
escolha. Assim, para poder escolher, o homem tem de se conhecer e ao fazê-lo
reconhece em si que o que havia era apenas uma pseudo-inocência, ou seja, a
cegueira leva o homem a acreditar em sua inocência não permitindo que ele
apreenda que mesmo os “inocentes” são responsáveis e até mesmo culpados,
inclusive daquilo que eles não optaram, pois mesmo escolhendo não optar o homem
já faz sua opção. Não há inocentes no círculo de vítimas e agressores. O homem ao
se defrontar com esse aspecto desesperador da escolha se sente completamente
desamparado e deseja retornar a um estado de inocência, a infância ou o paraíso.
Entretanto, o fruto da Árvore do Conhecimento não pode ser colocado de volta, e
uma vez que começamos a enxergar, o desafio passa a ser enxergar mais e mais
longe. E, esse “enxergar” é reconhecer a responsabilidade por nossas ações. Assim
como na metáfora que Albert Camus faz sobre Jesus em seu livro A Queda,
mostrando Jesus não apenas como o amor irrestrito, mas como culpado por atos que
a ele precederam (imagem também evocada por Quentin), precisamos reconhecer a
influência de nossas escolhas sobre os outros. E não clamarmos nossa inocência.
Poderíamos também dizer que Quentin se libertou de sua “menoridade” que é para
Kant justamente a “submissão do pensamento individual ou de um povo a um poder
tutelar alheio”. Podemos ver, nesse sentido que foi com exímia maestria que Miller
demonstrou que o homem só atinge a sua “maioridade” quando desfaz a distância
que o separa de sua infância no sentido da procura do esclarecimento (Aufklärung).
Assim, pode-se identificar em Quentin o grito que perpassa as obras de Miller, um
grito dado por Kant em 1783 que ecoa ainda como uma necessidade a ser alcançada:
sapere aude! Ousar saber é a busca do esclarecimento e saída da “menoridade”, da
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qual o próprio homem é culpado. Porque no momento que não há ninguém que tome
a decisão em nosso lugar precisamos pensar. Indivíduos com pensamentos próprios,
estão sartreanamente condenados à liberdade e que depois de terem sacudido o jugo
da “menoridade”, podem (e devem) espalhar “em redor de si o espírito de uma
avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si
mesmo”. Para quem sabe um dia vivermos em uma “época esclarecida”
(aufgeklärten) na qual todos os homens tenham dignidade. Mas não se alcança tal
estado clamando-se inocente ou sonhando com um Éden pronto, mas sim semeandoo para que mais pessoas possam despertar como Quentin. A inocência é também a
ponte para o descaso ou simplesmente a não-aceitação da responsabilidade sobre o
próximo. Caim ao clamar inocência questionava claramente se era guardião de seu
irmão. A resposta que deveria ter brotado de sua própria garganta deveria ser a que
sim. A violência de Caim, manchou a terra de sangue assim como o Holocausto e o
Comitê de Atividades Anti-Americanas. Todas as torturas, extermínios e genocídios
foram feitos clamando-se por inocência, pois toda violência dela requer. Seja
verdadeira ou inventada é em nome da inocência que o sangue continua a ser
derramado. Portanto, Miller reconhece no homem as engrenagens sociais e as coloca
para funcionar de dentro para fora de modo que na peça Quentin é julgado: um
homem julgado por sua própria consciência, seus valores e ações. O advogado
Quentin julgado por si. Nenhum juiz a vista mas mesmo assim ele reconhece sua
cumplicidade no Holocausto, relembrando sua visita ao campo de concentração que
é a imagem final do mal de Caim. Mal que deixa todos desarmados fitando o
inexplicável, o silêncio preenchido que não consegue transbordar da garganta dos
sobreviventes. Todos sobreviventes ajudaram a construir as torres e os que chegaram
depois devem estar atentos para não reformá-las. O Holocausto penetra do social ao
particular e atinge a todos inclusive aqueles que nem sabem sobre ele. Quentin
impelido ao abismo que se cria olha para sua experiência e reconhece no passado,
em sua história, sua culpa a ponto de se dirigir a si mesmo (Ouvinte) para poder, ao
se enxergar, ter esperança e, acordar novamente com a vitalidade de um garoto. Do
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jardim do Éden aos campos de concentração, Miller traça um caminho girando
aleatoriamente a roda do tempo e da história dentro da mente de um típico homem
do século XX.
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