Dignidade em cova rasa

Transcrição

Dignidade em cova rasa
Rio Grande do Sul
Dignidade em Cova Rasa
A história do programa que enterra por dia, em média, três pessoas gratuitamente
em Porto Alegre
Caetano Manetti e Felipe Frank
É uma imensidão triste de terra seca. É um
silêncio triste de presença de morte. Poucos,
talvez cinco ou seis, são os que esperam pela
chegada do corpo morto de Sandra da Silva ao
cemitério da Santa Casa naquela cinza tarde de
outono, terça-feira.
O corpo está dentro do simples caixão de pinus
que a Kombi branca já vem trazendo. Ele vem
do Hospital Cristo Redentor, zona norte de
Porto Alegre, onde a dona desse corpo morreu.
Cor: preta. Profissão: empregada doméstica.
Estado civil: casada com um papeleiro. Dois
dias antes, tinha sido levada ao hospital em uma
ambulância da SAMU. Fazia hemodiálise,
recebia remédios da Prefeitura. Morreu cedo,
com menos de 40 anos.
Os presentes lamentam, se abraçam, choram a
perda. Os que já estavam no cemitério parecem
choramingar por desesperança. O marido, que
chegou junto com o corpo, parece lacrimejar de raiva: achou um absurdo ter que vestir a
esposa já falecida.
O corpo de Sandra ainda descansa com o caixão aberto. Veste roupas simples, com
meias brancas, sem sapatos. Os mosquitos incomodam. Não há padres e ninguém reza
em voz alta.
O marido parece cansado do corpo morto da esposa e fecha o caixão. Ele, um dos filhos,
outro homem melhor vestido - provavelmente ex-patrão de Sandra - e mais um
funcionário do cemitério levam o corpo para perto do buraco. O mini cortejo devagar
segue passos atrás. O choro aumenta.
Chegam ao local reservado para aquele pobre corpo pelos próximos três anos. Ali, um
buraco não muito fundo e, ao lado, uma montanha de terra. Os dois coveiros descem o
caixão e executam o trabalho demonstrando tristeza, talvez por respeito à família, talvez
por pressentir os seus próprios pobres fins. O sepultamento traz novos sons: é o
trabalhar da pá. Ela empurra a montanha de areia para dentro do buraco. Uma angústia
de barulho contagia o ambiente: é o desmoronar da montanha, uma cachoeira seca que
vai guardando o caixão da mulher embaixo dos pés de todos. O marido tenta ajudar, faz
o último carinho na esposa:
joga um punhado de terra como
quem diz que estava ali ao
lado dela.
Todos observam atentos,
atônitos. O último momento:
uma pequena placa com o
número 142 é cravada na terra,
na altura dos olhos de Sandra.
O número se mistura com os
tantos outros.
No momento em que uma pessoa pobre morre na cidade de Porto Alegre, cuja família
não pode pagar pelo enterro, começa uma pequena jornada até ela ir, como Sandra, para
debaixo da terra.
Tudo começa no Atestado de Óbito. É ele quem afirma, tecnicamente, que uma pessoa
morreu. Costuma ser dado pelo médico, que aponta a causa da morte, no próprio
hospital onde o paciente faleceu. Caso ele não saiba o motivo, o corpo é enviado ao
Departamento Médico Legal (DML) para ser realizada a necropsia do corpo. Quando a
pessoa não morre no hospital, é encaminhada diretamente ao DML, para lá receber o
Atestado de Óbito.
A família do morto e o assistente social do hospital (ou do DML) entram em contato.
Para o assistente social a família declara, sem necessidade alguma de comprovação, que
não possui recursos suficientes para custear os serviços funerários do defunto. O
assistente social faz uma declaração por escrito de que a família necessita do serviço
conhecido como Enterro do Pobre. Entretanto, a família ainda tem que fazer o registro
jurídico de falecimento. Para isso, encaminha-se até um cartório com os documentos do
morto e mais o Atestado de Óbito. Este então vira Certidão de Óbito. De posse da
Certidão e da declaração da assistente social, a família deve se dirigir à Central de
Atendimento Funerário (CAF), que fica na avenida Santana 966. É somente lá que são
expedidas as Guias de Autorização para Liberação e Sepultamento de Corpos (GALSC).
Essa autorização é o documento necessário para qualquer movimentação daquele corpo
a partir de então. Os próximos passos dependem do dia da semana em que estamos.
Nos dias úteis, a CAF encaminha os familiares do morto à sede da Entidade Beneficente
União Pelotense, na rua Gal. Bento Martins, 306. Lá, com a GALSC em mãos, é a
família que divide o peso do simples caixão de pinus, doado pela própria organização, e
o colocam no carro funerário, uma simples Kombi doada pela Prefeitura de Porto
Alegre, assim como o combustível e o motorista. A Kombi vai ao hospital (ou DML)
buscar o corpo morto. Chegando lá, é a família que trabalha de novo. É hora de vestir o
cadáver. Vestir o corpo sem vida costuma ser missão complicada para familiares, e é
por isso que geralmente recebem ajuda voluntária de um funcionário do local. O corpo
entra no caixão.
Dentro da Kombi funerária, é
hora da última viagem
daquele corpo. Ao irromper
pelos portões dos fundos do
Cemitério da Santa Casa de
Misericórdia, no bairro da
Azenha, atinge o Campo
Santo, local já reservado para
os enterros do programa. O
veículo ainda percorre 50
metros perturbando o silêncio
da necrópole. Perto da
administração do local, o
motorista pára. Os familiares descem do carro e baixam o caixão, que vai para cima de
uma esteira, para baixo de um toldo. Ali, o caixão é destampado para que todos possam
dar o último adeus. Não há velório tradicional, não há ornamentos algum no local. Pode
até haver um padre ou equivalente religioso, mas nada que demore muito.
A essa hora, os coveiros já cavaram buraco e a cova já está pronta - cova rasa para
facilitar a retirada do corpo três anos depois. O caixão é tapado novamente, e os
presentes, com esforço para agarrar seus quatro puxadores, levam o corpo ao lado do
buraco. Dois coveiros, duas pás, dois ganchos, uma placa numerada e muita terra já
estão preparados. Os dois coveiros descem o caixão, auxiliados pelos dois ganchos;
muita terra tapa o buraco, e a placa é fincada na terra seca.
Já nos fins de semana e feriados, o processo é diferente. Com o descanso da União
Pelotense nesses dias, a CAF aciona uma das 28 funerárias de Porto Alegre, todas
ligadas ao sindicato da categoria. Dentro de um sistema de rodízio, são obrigadas,
quando chamadas, a providenciar os serviços funerários do Enterro do Pobre. A
funerária da vez pega o corpo no hospital (ou DML) e o coloca em seu caixão mais
simples, já destinado para o programa. Sem os serviços prestados normalmente ao
embelezamento do morto, a funerária carrega o corpo até o cemitério municipal São
João, zona norte de Porto Alegre. Lá, o carro funerário sobe a grande ladeira que separa
o portão de entrada das quadras de sepulturas.
O caixão desce do carro e é descansado sobre uma maca que já o aguarda ao lado da
cova. Os familiares e amigos chegam para o último adeus e se deparam com a cena:
dois coveiros, quatro ou cinco tampas, cordas e um carrinho de mão carregado de
cimento fresco. O simples caixão de madeira desce a um buraco mais profundo
auxiliado pelas cordas; o cimento e as tampas fecham o buraco.
Há muito tempo pobres são enterrados gratuitamente em Porto Alegre. O Campo Santo
da Santa Casa de Misericórdia, que hoje recebe aproximadamente mil pobres todo o ano
(874 em 2004 e 773 em 2005) já realizava serviço parecido com os escravos da região
em meados do século XIX.
Tudo começou com o Hospital
da Santa Casa, fundado em 1803.
Durante décadas, os mortos eram
enterrados nos fundos da catedral
do hospital, no centro da cidade.
Aos poucos começaram a surgir
problemas, devido ao acúmulo
de corpos, ao declive do morro e
à erosão provocada pela chuva.
Isso acabava "deixando a
população aflita com os
cadáveres 'a céu aberto',
enquanto os cães expunham pelas ruas partes dos mesmos", conforme relato do
Arquivo Histórico da Santa Casa.
A solução surgiu quando o Barão de Caxias (depois tornado Duque) resolveu transferir
o cemitério para o alto da região da Azenha. Uma região considerada "extra-muros" por
ficar além dos limites de Porto Alegre. Em 23 de maio de 1850, o cemitério é
inaugurado, dando origem ao núcleo de cemitérios que depois viriam ali a surgir. Nas
primeiras três décadas, cerca de 30.000 pessoas foram enterradas - quase 7.000 destes,
escravos. Os sepultamentos "de escravos" e "livres" já eram feitos em locais distintos.
1934 é um ano marcante para se entender a evolução do enterro de pessoas carentes em
Porto Alegre. Foi quando um grupo de 'senhoras e senhoritas', que estavam na parte
nobre do Cemitério da Santa Casa em função da morte de um conhecido, presenciou um
sepultamento no Campo Santo. Um carro oficial aproximou-se de uma cova, abriu a
porta traseira, e dali foram despejados cadáveres de pessoas miseráveis. A brutalidade
da cena chocou essas mulheres, que decidiram se reunir para prover aos pobres um
enterro minimamente honrado.
Fundava-se, assim, a União Pelotense São Francisco de Paula. O nome escolhido veio
da coincidência de todas as fundadoras serem ligadas à cidade de Pelotas e radicadas em
Porto Alegre. A entidade funcionava via doações de sócios, que contribuíam à maneira
que lhes conviesse. Com o dinheiro arrecadado, as senhoras tratavam de garantir os
serviços básicos que dignificassem o enterro de pobres. Compraram veículos para o
transporte, forneciam os caixões às famílias e organizavam, através dos cemitérios, os
procedimentos de preparação da cova e sepultamento. É assim que atua, desde 1934, a
União Pelotense. Ainda são senhoras que cuidam da entidade, a qual, infelizmente, vem
perdendo força ao ver o número de contribuintes e, conseqüentemente, o número de
enterros diminuir ano a ano.
Enquanto a União Pelotense se consagrava no sistema de enterros gratuitos, a
concorrência entre funerárias do circuito tradicional crescia década após década. Um
problema em especial começou a assolar todo o sistema de sepultamentos. Os "papadefuntos", a serviço de funerárias particulares, abordavam, nas próprias casas de saúde,
famílias de recém falecidos em busca de clientela.
Aconteceu que as próprias funerárias, por desgosto das atitudes das concorrentes ou
mesmo por perda de clientela, decidiram regulamentar as suas atividades. Desse modo,
através do Sindicato dos Estabelecimentos Funerários (SESF), criou-se, em 2001, a
Central de Atendimento Funerário. A CAF, como é chamada, é órgão ligado,
primeiramente, à SESF e, secundariamente, à Prefeitura. Ela é, hoje, responsável pela
organização e pela
regulamentação dos
sepultamentos. Todo enterro que
acontece em Porto Alegre passa
necessariamente pelos
funcionários da CAF. Ela
funciona como uma
intermediária entre o público e as
funerárias: as famílias, no difícil
momento do falecimento de
parentes, vêem um processo
regulamentado e esclarecido.
A última mudança importante deu-se nos primeiros meses de 2003. Denunciaram-se
irregularidades, como cadáveres não sepultados além do tempo permitido, nos enterros
das pessoas carentes abrangidas pelo programa. Tudo porque o cemitério da Santa Casa
- que é privado e provém o espaço por caridade - não tinha condições de enterrá-los nos
feriados e finais de semana. Desse impasse, foi decidido que também o Cemitério
Municipal São João participaria do Enterro do Pobre, abrindo seus espaços para
sepultamentos aos sábados, domingos e feriados, com o objetivo de impedir o acúmulo
de mortos na Santa Casa nos fins-de-semana. Agindo assim, o cemitério São João
cumpre o que está disposto no artigo 13 da lei municipal número 373: "1º - Os
cemitérios mantidos pelo Poder Publico Municipal deverão destinar parte de seu quadro
de sepultura para o sepultamento de pessoas comprovadamente carentes, conforme
solicitação do órgão designado pelo Poder Executivo".
É bom lembrar que os indigentes encontrados mortos que forem levados ao DML e não
forem identificados, nem reclamados por ninguém dentro de um prazo máximo, não
entrarão no programa do Enterro do Pobre. O enterro deles fica a cargo, então, do
próprio Departamento Médico Legal e da Prefeitura da Cidade de Porto Alegre.
Todo o trâmite que envolve as operações de enterro de corpos na cidade de Porto Alegre
parece estar bem assegurado na legislação. As funerárias são permissionárias do serviço
público. Sua regulamentação, antes obscura, agora é claramente definida, segundo
consta na lei municipal complementar 373: "É vedado às empresas funerárias (...)
efetuar, acobertar ou remunerar o agenciamento de funerais e de cadáveres, bem como
manter plantão e oferecer serviços em hospitais, casas de saúde, delegacias de polícia e
Instituto Médico Legal (IML), até o perímetro de 500m, por si ou por pessoas
interpostas, ou através de funcionários de quaisquer instituições publicas ou privadas,
incluindo-se nesta proibição os atos de contratação, quaisquer que sejam suas extensões,
devendo tais procedimentos terem cursos nas empresas, diretamente e por livre escolha
dos interessados na sua contratação".
A Central de Atendimento Funerário é quem fiscaliza o cumprimento dessas normas.
Ela, por sua vez, também é fiscalizada pela chamada Comissão de Serviço Funerário,
órgão formado pelas secretarias municipais de Saúde (SMS) e de Meio Ambiente
(SMAM), entre outras.
Há também leis que asseguram o enterro de pessoas pobres. Toda pessoa enterrada pelo
Enterro de Pobre, por não ser perpetuante (dono de uma sepultura) tem o direito a
permanecer três anos na cova temporária. Esse é o tempo mínimo permitido, e é o
necessário à decomposição do corpo. Após o prazo, a família do falecido tem duas
opções: pagar por uma vaga nos ossários particulares (mediante um pagamento de
aproximadamente R$50,00 a cada três anos) ou optar pelo Ossário-Geral, no qual os
restos mortais são guardados sem identificação.
As funerárias também são obrigadas por lei a oferecer preços acessíveis a famílias de
baixa rende que acabem por não optar pelo Enterro do Pobre. Padrão simples: valor
máximo R$ 209,00. Padrão especial: valor máximo R$ 369,00. Esses são os preços dos
serviços mínimos disponibilizados pelas funerárias, que ficam bem abaixo dos seus
valores habituais. Um serviço funerário padrão que conta com auxílio para obtenção de
Certidão de Óbito, transladações do corpo, preparação para o sepultamento,
tamponamento, providências junto aos cemitérios e às floriculturas, entre outros, não
custa menos de mil reais.
A solidão aumenta a dor daqueles que se despedem
Fotos: Caetano Manetti e Felipe Frank
Fonte:
http://www6.ufrgs.br/ensinodareportagem/cidades/covarasa.html
www.cemiteriosp.com.br – Setembro/2010 – São Paulo – SP - Brasil

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