Carlos Drummond de Andrade: “Cota Zero”

Transcrição

Carlos Drummond de Andrade: “Cota Zero”
Carlos Drummond de Andrade: “Cota Zero” e a Simbiose Homem-Máquina.
Carlos Drummond de Andrade: “Zero-Level” and the Man-Machine
Symbiosis.
Desirèe Mercer Guimarães
Universidade Tecnológica Federal do Paraná – Curitiba – Brasil - [email protected]
RESUMO
Carlos Drummond de Andrade, considerado o poeta mais influente da literatura brasileira em seu
tempo e referência da segunda geração modernista brasileira (1930-1945), merece uma atenção
especial entre as personalidades representadas no Modernismo. Neste artigo analisa-se o poema
“Cota Zero” e a simbiose homem-máquina, através da visão diacrônica, que nos permite
compreender com maior profundidade a opinião do escritor em relação à modernização e a
representação literária do universo da tecnologia e do trabalho nesta obra. Munido destes
conhecimentos, inicia-se a análise e a interpretação, visando especialmente verificar até que
ponto o autor é “filho de sua época”, reproduzindo as formas estéticas e os conteúdos ideológicos
do grupo e do movimento literário. Para entendermos como se dá a representação da Tecnologia
na Literatura, verifica-se na corrente filosófica contemporânea, as abordagens em que filósofos
com diferentes enfoques tratam esse tema. O estudo da literatura com o universo do trabalho e
tecnologia é relativamente recente, assim faz-se necessário uma análise crítica que nos ajuda a
reconhecer a tecnologia como dimensão da vida humana e não apenas como um evento histórico.
Na literatura, Drummond foi quem melhor soube descrever a simbiose homem /máquina, onde
havia o carro que deveria ser um artefato, porém virou símbolo de status, dependência e
condição social. A leitura do poema demonstra que o poeta estudado não foi insensível a
visibilidade do progresso técnico e que podemos partir da leitura de poemas e articular trabalho,
tecnologia e sociedade.
PALAVRAS-CHAVE
Tecnologia; Trabalho; Carlos Drummond de Andrade; Cota Zero; Poesia Brasileira.
KEYWORDS
Technology; Work; Carlos Drummond de Andrade; Zero-Level; Brazilian Poetry.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Nascido e criado na cidade mineira de Itabira, Carlos Drummond de Andrade levaria por
toda a sua vida, como um de seus mais recorrentes temas, a saudade da infância. Precisou deixar
para trás sua cidade natal ao partir para estudar em Friburgo e Belo Horizonte. Formou-se em
Farmácia, atendendo a insistência da família em graduar-se. Trabalhou em Belo Horizonte como
redator em jornais locais até mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934, para atuar como chefe de
gabinete de Gustavo Capanema, então nomeado novo Ministro da Educação e Saúde Pública.
Começou sua carreira como escritor em 1930 com a publicação do seu livro Alguma Poesia,
marcando o início da segunda geração modernista brasileira, conhecida como geração de 30.
Desde “Alguma Poesia” (1930)1, a primeira obra publicada, sua travessia poética pode
ser vista a partir de um impasse entre o homem e o mundo, a realidade interior e a realidade
exterior. Na condição de homem, de início sente-se um gauche – um desajeitado – e expressa sua
inadequação ironicamente, com um humor que lembra o orgulho mineiro, a sobriedade que não
deixa o coração transbordar, embora que o sinta maior que o mundo.
O poeta lança mão de duas armas já conhecidas nessa época, a ironia sarcástica e o
humor que não faz rir, mesmo que de forma contida. Entre suas obras da época estão: “Poema de
sete faces” e “No meio do caminho”, o qual encerra a fase do “coração mais vasto que o mundo”,
e parte ao encontro do mundo, resolvido a enfrentar a “pedra no meio do caminho”. Sendo este
momento representado pela sua obra “José”, a qual mostra um beco sem saída, é o real
degradado, caracterizado pela ausência de sentido que sem dúvida corresponde a modernidade. A
consciência da solidão e da falta de opções marca a segunda fase da travessia poética de
Drummond: o coração, que se julgava maior que o mundo, iguala-se a ele; ambos se equivalem,
porque para o poeta a “rima”, isto é, a mera capacidade de criar poesia, não se confunde com a
solução, é preciso unir poesia e vida, “re-unir” o homem e o mundo, o sonho e a realidade, sem
deixar de perceber “a pedra no meio do caminho”. Este constitui o desafio maior do poeta.
1
Tomou-­‐se a obra de Carlos Drummond de Andrade, 1930. 2 MOMENTO HISTÓRICO DA SEGUNDA GERAÇÃO MODERNISTA BRASILEIRA
(1930 – 1945)
Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes e
Jorge de Lima integram a geração de 30, cuja produção poética tem como característica
fundamental a conciliação entre elementos da tradição e elementos de modernidade,
nacionalismo e universalismo. Essa característica marca o amadurecimento da poesia modernista
brasileira. Em 1942, numa espécie de “balanço” da Revolução Modernista de 1922, Mário de
Andrade ressalta três grandes conquistas dela decorrentes: “O direito permanente à pesquisa
estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência
criadora nacional.” Por outro lado denuncia, como ponto negativo, uma distância entre o fazer
literário e as multidões, a realidade político-social do Brasil. É necessário lembrar que nosso
primeiro Modernismo estava comprometido fundamentalmente com a implantação de uma nova
postura na literatura brasileira, contra a rotina de imitação dos modelos europeus e do
academicismo que imperava no final do século XIX. Entre estes acontecimentos, ocorreu uma
série de inovações técnicas: a descoberta da eletricidade, a invenção de Bessemer para a
transformação do ferro em aço, o surgimento e o avanço dos meios de transporte (ampliação das
ferrovias seguida das invenções do automóvel e do avião) e mais tarde dos meios de
comunicação (invenção do telégrafo e do telefone), o desenvolvimento da indústria química e de
outros setores. Esse conjunto estabeleceu uma nova dinâmica às sociedades da época e ficou
conhecido como Segunda Revolução Industrial. O uso do petróleo, graças à maior potência e
eficiência dessas fontes de energia, permitiu a intensificação e diversificação do
desenvolvimento tecnológico. Schwarcz (2005), descreve:
“Nesse ambiente chamava a atenção o animado movimento de veículos. [...] Em
1887, existiam sete linhas com 25 quilômetros de trilhos, 319 animais e 43
carros, que transportavam 1,5 milhão de passageiros por ano. De fato, a
exploração de bondes elétricos só começou na década de 1890, sem que os
velhos modelos tenham sido substituídos de pronto. A grande novidade do início
do século atual eram, no entanto, os primeiros automóveis, que apesar de poucos
e muito barulhentos, causaram verdadeiros tumultos na cidade."
Assim, os manifestos, as revistas e as propostas programáticas muitas vezes
predominaram em relação à produção literária propriamente dita, que adquiriu um caráter de
3 experimentalismo e de pesquisa estética, inevitáveis num contexto de desbravamento de novos
caminhos. Esses fatores permitem entender a crítica de Mário de Andrade ao seu próprio tempo:
a euforia pelo novo, necessária àquele momento vivido, acabou gerando experiências literárias
que muitas vezes se mantiveram restritas ao pequeno círculo de jovens modernistas,
distanciando-se da realidade da qual pretendiam se aproximar. Nesse sentido, a segunda geração
do Modernismo brasileiro, denominada geração de 30, constitui um prolongamento da primeira,
pois aprofunda as propostas e realizações de 22, promovendo a consolidação do Modernismo em
nosso país. Os anos de 1930 e 1945 são tomados como marcos temporais da segunda geração
modernista. Do ponto de vista histórico e político, o ano de 1930 inaugura um novo período no
Brasil. Com o desgaste da política café-com-leite, que caracterizou a Primeira República, os
conflitos gerados pelas insurreições militares (Tenentismo e Coluna Prestes), a crise política das
oligarquias e a “quebra” da Bolsa de Nova Iorque (1929), entre outros fatores, deflagra-se a
Revolução de 30 e, com ela, abre-se um espaço de mudanças. É o início da Era Vargas, marcada
pela preocupação em promover a conciliação entre os setores agrários e os urbanos e em
diversificar o capital, até então concentrado no café. A tendência à industrialização acentua-se,
remodelando nossa estrutura econômica agroexploradora. A modernização dos engenhos
açucareiros do Nordeste faz parte desse quadro geral de mudanças e constitui um dos grandes
temas da prosa neo-realista da época. Em termos culturais amplos, trata-se de um momento de
busca de novos caminhos: filosóficos, sociais, políticos, existenciais. Na Literatura, a segunda
geração do Modernismo é a expressão desse momento.
TECNOLOGIA, TRABALHO E LITERATURA
Para entendermos como se dá a representação da Tecnologia na Literatura, verifica-se na
corrente filosófica contemporânea, as abordagens em que filósofos com diferentes enfoques
tratam esse tema. Mario Bunge (1919), filósofo da ciência, com enfoque analítico, Albert
Borgman (1937), filósofo americano, fenomenológico.
Para Bunge2, não existe tecnologia onde o homem se limita a aplicar um saber-fazer, ou a
servir-se de artefatos sem se perguntar pela sua base teórica nem procurar o seu aperfeiçoamento.
2
Bunge é bem conhecido como filósofo da ciência. Ensinou na McGill University (Canadá). Na sua vasta produção destaca-­‐se o Treatise on basic philosophy em 8 volumes. 4 A tecnologia, para ele, nem sempre foi benéfica, sendo que o desenvolvimento tecnológico tem
causado inúmeros males e problemas em que muitas invenções vistas como positivas comportam
circunstancialmente consequências negativas.3
Como depende em sua produção e controle dos seres humanos, Bunge rejeita a ideia de
que seja autônoma. A tecnologia está assim sujeita aos mais variados interesses e propósitos.
Muitos dos excessos e extravios da tecnologia são para ele derivados do código moral nela
implícito. Trata-se de um código que separa o homem do resto da natureza, autorizando-o a
submetê-la e isentando-o de responsabilidades (cf. Bunge, 1980, p. 203).
Ele considera particularmente nefasta a noção, tão difundida, de que a tecnologia seja
axiologicamente neutra. Para combatê-la, Bunge defende uma ética que aponte as
responsabilidades naturais e sociais da inovação tecnológica. E, sobretudo, defende a
necessidade de uma democracia integral, participativa e cooperativa (holotecnodemocracia), em
que o desenvolvimento tecnológico pudesse estar verdadeiramente a serviço de todos (cf. Bunge,
1989).
Para Borgmann4, a tecnologia é o modo tipicamente moderno de o homem lidar com o
mundo, um “paradigma” ou “padrão” característico e limitador da existência, intrínseco à vida
quotidiana.
A tecnologia e seus problemas nunca serão compreendidos enquanto forem considerados
como consequências de fatores sociais, políticos ou ecológicos. Os produtos e seu consumo
constituem “a meta declarada do empreendimento tecnológico”, assegura Borgmann. Essa meta
foi proposta pela primeira vez no início da Modernidade, como expectativa de que o homem
poderia dominar a natureza. No entanto, essa expectativa, convertida em programa anunciado
por pensadores como Descartes e Bacon e impulsionado pelo Iluminismo, não surgiu “de um
prazer de poder”, “de um mero imperialismo humano”, mas da aspiração de libertar o homem
(da fome, da insegurança, da dor, da labuta) e de enriquecer sua vida, física e culturalmente. Sem
3
O automóvel aumentou enormemente a poluição ambiental e reforçou o individualismo; a “revolução verde” ampliou a distância entre pobres e ricos; a televisão torna as crianças passivas etc. (os exemplos são de Bunge). 4
Borgmann é professor da Universidade de Montana (EUA), e autor de outras obras com Crossing the postmodern divide (1992) e Holding on to reality: the nature of onformation and turn the millennium (1999). 5 levar em consideração esse afã de libertação não se pode entender o padrão da tecnologia que, à
maneira de um molde, foi dando forma à sociedade humana nos países industrialmente
desenvolvidos. Não basta, portanto, para entender a tecnologia, atentar para o seu aspecto de
natureza dominada, nem à sua associação com a ciência. O avanço científico e sua aplicação a
finalidades práticas são imprescindíveis para que exista a maioria das invenções tecnológicas,
mas a ciência, por si mesma, não pode fornecer-lhe um rumo nem explicar por que a tecnologia
tem chegado a ser um modo de vida. A vida, conforme o paradigma tecnológico, tem um
glamour que explica em parte a sua propagação. A tecnologia promete-nos alívio de tarefas
penosas, esperança de termos uma relação mais rica com o mundo graças à afluência de
dispositivos; ela responde a nossa impaciência com coisas que exigem cuidados e reparação, ao
nosso desejo de fornecer aos nossos filhos o melhor desenvolvimento, e à vontade de nos
afirmarmos na existência adquirindo bens que inspiram respeito. Mas tudo isso vai acompanhado
de sentimentos de perda, de pena e uma espécie de traição (a um outro tipo de vida), pois as
realizações que representavam libertação “parecem ser contínuas com a procura de frívola
comodidade”. Dá-se inclusive uma sensação de impotência, pois tudo ocorre como se os
instrumentos tivessem acabado por definir os fins. Borgmann não acha que o homem seja
simplesmente arrastado pela tecnologia, para ele, o que existe é uma certa cumplicidade, ou
“implicação”, do homem com a tecnologia (Borgmann, 1984, p. 105).
A literatura, como qualquer outra arte, é uma criação humana, por isso sua definição
constitui uma tarefa tão difícil. O homem, como ser histórico, tem anseios, necessidades e
valores que se modificam constantemente. Suas criações – entre elas a literatura – refletem seu
modo de ver a vida e de estar no mundo. Assim, ao longo da história, a literatura foi concebida
de diferentes maneiras.5
Fazendo um levantamento de artigos que relacionam a literatura com o universo do
trabalho e tecnologia, percebe-se uma escassez nessa área de pesquisa, sendo este tipo de análise
relevante.
5
A arte da literatura existe há alguns milênios. Entretanto, sua natureza e suas funções continuam objeto de discussão principalmente para os artistas e seus criadores. 6 Carlos Drummond de Andrade foi o escritor que acompanhou o processo de
desenvolvimento da sociedade, incorporando em seus poemas o grito dos excluídos.6
O poeta, através das vozes sociais que se instauram no seu dizer, evidencia tensões que se
estendem de um lirismo íntimo ao social político, de uma voz que, centrada no eu poético,
protagoniza o dizer engajado em comunhão com o ‘sentimento do mundo’, com o indivíduo
‘gauche’, desajustado e desarticulado diante do sistema materialista e mecanicista da época.
Segundo os estudos de Simon (1978, p. 52), “[...] a luta contra o fascismo, a guerra da Espanha e
a Guerra Mundial favoreceram o desenvolvimento da literatura participante em todo o mundo”.
Nesse contexto, os princípios de humanização conflituam com o autoritarismo capitalista; a voz
do povo se contrapõe à ditadura burguesa; o mundo do ser sofre os impactos do mundo do ter e
assim, seguimos na construção de homens-máquina cegados pelo sistema ou na projeção de
sujeitos que, imersos nesse contexto, procuram ressurgir enquanto seres humanos.7
Apesar de negar que seus poemas tivessem caráter combativo não aceitando quando
jornais e revistas ou mesmo críticos literários referiam a sua poesia de 30 e 45 como poética de
engajamento e luta social, a poesia de Drummond apresenta a reflexão dos problemas do mundo
diante dos regimes totalitários da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria. Em alguns versos
ressurge a esperança, mas logo se acrescenta a descrença diante dos acontecimentos. Nega a fuga
da realidade e por isso volta-se ao tempo presente8.
Para entender as ideias do autor dentro da sua época é fundamental contextualizá-las
historicamente, pois os indivíduos e grupos concebem a sociedade em que vivem por meio dos
pensamentos que emergem das tradições, do universo religioso, das raízes filosóficas e do
conhecimento científico9.
O contexto histórico em que os poetas estão inseridos, mostra que o escritor é o homem
do seu tempo e da sua criação, como se pode apreciar na citação de Machado de Assis (1873):
6
Consultar A rosa do povo, através da poesia Consideração do poema, Andrade (2002), p. 116 7
Consultar Artigo URI -­‐ Nas malhas da Polifonia: O dizer poético drummondiano co-­‐habitado por tensões sociais Carina Dartora Zanin (Mestranda em Literatura Brasileira na Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS), Trabalho apresentado no IV Congresso Internacional das Linguagens 8
Carlos Drummond de Andrade: olhar sobre a poesia social (Antônio Donizetti da Cruz e Clair Lima Vasconcelos) UNIOESTE -­‐ 2° sem. 2005. 9
TOMAZI, Nelson Dacio. Sociologia para o ensino médio. 1ª edição. 5ª reimpressão. Atual Editora: São Paulo, 2007. 7 "Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir
do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no
espaço” .
Fanini,
10
(1999 apud FEENBERG), compartilha a reflexão que existe uma constante
preocupação e questionamentos sobre o homem na sociedade e que, portanto “não há dissociação
entre trabalho e tecnologia à medida que os artefatos tecnológicos criados pelo homem são
originários de sua capacidade de trabalho no anseio de produzir, reproduzir, manipular, ordenar e
alterar o ambiente social e natural”.
Para Irlan Von Linsingen (2007), assim como a ciência, associamos o termo tecnologia
com coisas que de alguma maneira já conhecemos. Assim, tecnologia tem a ver com a TV, o
automóvel, os espaços urbanos, os edifícios, os remédios, os sistemas de comunicação e
informação. Enfim, com todos os objetos e artefatos produzidos pelos humanos. Mas não são os
objetos em si que são “a Tecnologia”. Eles são produtos da Tecnologia, ou seja, os resultados
decorrentes de uma rede de relações humanas e não humanas (reúne aspectos organizacionais,
técnicos, sociais e culturais) que faz com que os objetos se materializem e adquiram relevância e
valor. Isso quer significar que os objetos e artefatos carregam em si toda a carga da humanidade
que os constitui. As idiossincrasias, os interesses, as limitações historicamente constituídas, os
valores dos grupos de interesses dominantes etc. Os objetos e artefatos são, desse modo,
ontologicamente impregnados de humanidade e se constituem como políticos.
Karl Marx (1974) interessou-se em estudar as condições de existência de homens reais na
sociedade em que indivíduos devem ser analisados de acordo com o contexto de suas condições
e situações sociais, já que produzem sua existência em grupo. O indivíduo isolado só apareceu
efetivamente na sociedade de livre concorrência, ou seja, no momento em que as condições
históricas criaram os princípios da sociedade capitalista, produzindo seus meios de subsistência,
os homens produzem indiretamente sua própria vida material.
10
FANINI, Angela Maria. Representações da Tecnologia em alguns poemas da Literatura Brasileira. Anuário de Literatura, ISSNe: 2175-­‐7917, vol. 15, n. 1, 2010, p. 98
8 Partindo da noção de que não existe discurso neutro, indiferente, desintencionado,
buscar-se-á observar como os acontecimentos tecnológicos foram representados na poesia de
Carlos Drummond de Andrade.
Cota Zero
STOP.
A vida parou
Ou foi o automóvel?
(Carlos Drummond de Andrade – 1930)
Em “Manifesto Futurista”, Marinetti11 (1909), para negar a estética passadista, afirmava
que o mundo “enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de
corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito
explosivo....um automóvel rugindo, que parece correr sobre metralha, é mais bonito do que a
Vitória de Samotrácia (escultura que representa a deusa Atena Niké, cujos fragmentos foram
descobertos em 1863 nas ruínas do santuário dos deuses de Samotrácia – ilha do Mar Egeu. Em
seu “Manifesto”, o poeta italiano a desprezou, no momento em que a descoberta ainda ecoava na
Europa, analisa Régis Bonvicino (2004). Valendo-se da onomatopeia, o futurista tenta definir o
som do automóvel – rugir – típica de um leão, que evidencia a novidade. É importante lembrar
que o século XX foi o século do louvor exacerbado ao automóvel, na vida e na arte. Mário de
Andrade (1922)12 foi o primeiro poeta a citar o automóvel em seus poemas, em termos estéticos,
de modo consistente. Mário afirma: “Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho
pontos de contato com o futurismo. Oswald de Andrade, chamando-me de futurista, errou. A
11
Consistia em 11 itens que proclamavam a ruptura com o passado e a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século. 12
Paulicéia Desvairada, primeira obra de poesia modernista no Brasil e matriz de muitos processos poéticos do Movimento. 9 culpa é minha. Sabia da existência do artigo e deixei que saísse. Tal foi o escândalo, que desejei
a morte do mundo. Era vaidoso. Quis sair da obscuridade [...]”.
A menção é importante porque Mário – um poeta, digamos, maior menor – iria dialogar
com o primeiro Drummond – um poeta maior, com todas as letras, e mais novo, sujeito a
influências. Foi Mário quem escreveu uma das mais finas estrofes sobre o automóvel na lírica
brasileira.
- Abade Liszt da minha filha monja,
na Cadilac mansa e glauca da ilusão,
passa o Oswald de Andrade
mariscando gênios entre a multidão!...
Cota zero, poema-piada, que incorpora a concisão e a não-discursividade propostas pelas
vanguardas europeias, em especial o Futurismo, ao mesmo tempo que faz crítica irônica de seus
pressupostos ideológicos. Em vez da euforia pelo progresso, da adesão às máquinas, o texto os
coloca como formas de escravidão humana, num belo exemplo da postura “antropofágica”13
defendida por Oswald de Andrade, na década de 1920. Diante do contexto histórico da época,
onde as indústrias brasileiras voltaram-se principalmente à produção de bens de consumo nãoduráveis, como tecidos e produtos alimentícios, a indústria nacional nasceu dependente da
tecnologia estrangeira, analisa-se o “STOP” do poema à crise nos Estados Unidos que nos trouxe
desestabilidade e parou o movimento das máquinas, pois a crise internacional de 1929 agravou a
situação no Brasil, muitas fábricas fecharam e o café deixou de ser exportado. Houve
desemprego no campo e na cidade, além de fome e desamparo do Estado. O poema, a partir das
reflexões, manifesta uma enorme quantidade de informação e emoção. Descrevendo através dos
versos a crise financeira mundial vivida na época, bem como os sentimentos do poeta frente a tal
situação aliada ao impacto da tecnologia.
13
O termo foi usado pelos integrantes da subcorrente da primeira geração modernista liderada por Oswald de Andrade, usada como metáfora da devoração simbólica das influências européias. Consultar Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade. 10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intenção de escolher o poeta Carlos Drummond de Andrade como escritor da poesia
“Cota Zero”, foi pelo fato dele relacionar seus poemas aos acontecimentos, sentimentos e
desenvolvimento da tecnologia na sociedade em uma época de crise econômica. Na época em
que seu livro foi publicado a tecnologia e a utilização das máquinas estava em desenvolvimento,
porém o escritor coloca isso como uma forma de escravidão humana e não como progresso. As
transformações eram evidentes, utilizava-se a cultura e as tecnologias transmitidas pelas gerações
anteriores para criar novas formas de organização produtiva e política. Para os filósofos da
tecnologia, o progresso tecnológico é visto como positivo, mas com algumas contradições, ora
citam como alívio de tarefas penosas, ora como um modo tipicamente moderno de o homem
lidar com o mundo. Na literatura, Drummond foi quem melhor soube descrever a simbiose
homem /máquina, onde havia o carro que deveria ser um artefato, porém virou símbolo de status,
dependência e condição social. A leitura do poema demonstra que o poeta estudado não foi
insensível a visibilidade do progresso técnico e que podemos partir da leitura de poemas e
articular trabalho, tecnologia e sociedade.
11 REFERÊNCIAS
ANDRADE, Carlos Drummond de.Alguma Poesia. 10.ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
ANDRADE, Mario. Poesias Completas. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1980.
ANDRADE, Oswald. Revista de Antropofagia. Ano 1, n.1, maio de 1928.
ASSIS, Machado de. Instinto de nacionalidade. Machado de Assis: crítica, notícia da
atual literatura brasileira. São Paulo: Agir, 1959. p. 28 - 34:. (1ª ed. 1873).
BONVICINO, Régis. O poema antifuturista de Drummond. (Acesso em 26 /02 /2011).
BORGMANN, A. Technology and the character of contemporary life. A philosophical
inquiry. Chicago/Londres, The University of Chicago Press, 1984.
BUNGE, M. Treatise on basic philosophy. Dordrecht, Reidel, 1985b. Tomo 7:
Philosophy of science and technology.
FANINI, Angela Maria. Representações da Tecnologia em alguns poemas da Literatura
Brasileira. Anuário de Literatura, ISSNe: 2175-7917, vol. 15, n. 1, 2010, p. 98
LINSINGEN, Irlan Von. Perspectiva Educacional CTS: aspectos de um campo em
consolidação na América Latina. Ciência e Ensino. Vol. 1, número especial, nov. 2007.
MARX, & ENGELS. F. A ideologia alemã. Lisboa, Presença / Martins Fontes. 1974.
SANSEVERINO, Antonio Marcos Vieira. Formas e Mediações do Trágico Moderno.
São Paulo: Unimarco Editora, 2004.
12 

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