Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB v. 6 n. 2

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB v. 6 n. 2
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB
v. 6 n. 2 julho/dezembro 2007Brasília
ISSN – 1518-5494
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor
Roberto Armando Ramos de Aguiar
Vice-Reitor
José Carlos Balthazar
INSTITUTO DE ARTES
Diretora
Suzete Venturelli
Vice-Diretora
Glêsse Maria Collet Araújo
Programa de Pós-Graduação em Arte
Coordenadora
Elisa de Souza Martinez
VIS
Editora
Elisa de Souza Martinez
Conselho Editorial
Ana Maria Tavares (USP), Elisa de Souza Martinez, Elyeser Szturm, Maria de Fátima Burgos, Maria Eurydice
de Barros Ribeiro, Sandra Rey (UFRGS), Soraia Maria Silva,Vera Siqueira (UERJ)
Capa
Regina Silveira
Projeto Gráfico
Christus Nóbrega
Revisão - Português
Rejane de Meneses
Yana Palankof
Agradecimentos: Leonardo Rodrigues, Flávio Araújo e Bárbara Duarte
V822
VIS
- Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte. v. 6, n2 2007. - Brasília: Editora PPG - Arte UnB, 2008.
110 p.
Semestral
ISSN: 1518-5494
Programa de Pós-Graduação em Arte
Universidade de Brasília
Campus Universitário Darcy Ribeiro
Prédio SG-1
Brasília, DF – 70910-900
Telefone: 55 (61) 3307-2656
Fax: 55 (61) 3274-5370
[email protected]
1. Artes Visuais. 2. Arte Contemporânea. 3. Interdisciplinaridade. 4. Arte no Brasil. 5. Processos Artísticos
CDU 7(05)
• Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio sem a prévia autorização de seus autores.
• Disponível também em: <http://www.vis.ida.unb.br/posgraduacao>
SUMÁRIO
5
EDITORIAL
HOMENAGEM
8
Derivações da 101 001
Maria de Fátima Burgos
PONTOS DE CONTATO
16
Desenho, coloração e coreografia em animação musical
32
Expressão&Tecnologia
45
Objetos híbridos
58
Tecnologias Contemporâneas no Ensino das Artes: um estudo de caso da EAD
na UnB/UAB
Aluizio Arcela
Analívia Cordeiro
Carlos Praude
Christus Nóbrega
68
WWWART.02: um breve balanço da primeira década da net arte
86
Espacialidades e Comunicação: espaços sensórios de ação
Claudia Giannetti
Luisa Paraguai Donatti
PERSPECTIVAS DE PESQUISA
98
Ostell Ungen: Entrevista com Wolf Vostell, 1984, Salzburg
Maria Beatriz de Medeiros
109
Estética, arte e tecnologia
Suzete Venturelli
124
Artes interativas e método relacional para criação de obras
Tania Fraga
DESDOBRAMENTOS
140
Arte, ciência e tecnologia: Lygia Sabóia - da gravura à arte digital
Maria Luiza Fragoso
147
DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO PPG-ARTE NO PERÍODO 2/2008
148
NORMAS PARA COLABORADORES
EDITORIAL
Uma boa parte da produção artística contemporânea se insere na interseção entre arte, ciência
e tecnologia. Denominada por alguns como arte eletrônica, por outros como arte computacional e por outros ainda como arte digital, essa produção abarca um universo de proposições
que vai desde a manipulação de imagens via softwares de edição até a arte genética; desde
uma peça de computação sônica com capacidade de gerar imagens bi e tridimensionais até uma
obra de realidade virtual e/ou ampliada; desde uma instalação composta por uma orquestra
formada por células auditivas até a arte locativa baseada em GPS; desde a teleperformance até
a arte robótica ou a gamearte.
Neste número da VIS, temos o prazer de apresentar os trabalhos de alguns pioneiros da área
de Arte e Tecnologia no Brasil, assim como as pesquisas de artistas mais recentes. São reflexões e práticas artísticas que vêm contribuindo para o desenvolvimento e para uma maior
aceitação/compreensão desse universo que une arte, ciência e tecnologia.
Nossa homenagem, naturalmente, será para o pioneiro da computação gráfica no país:
Waldemar Cordeiro, um artista que levou ao extremo a “aventura da razão”, a aventura do
sentir, a aventura do ser livre, assim como a aventura de contatar o “fluxo imagístico do inconsciente”, como defende Tania Fraga, outra artista pioneira que nos honra com seu trabalho na
seção Perspectivas de Pesquisa.
Em Pontos de Contato, apresentamos as pesquisas de outros dois pioneiros: Analivia Cordeiro
e Aluízio Arcela, além das investigações de artistas mais jovens, como Carlos Praude e Luisa
Paraguai Donatti. Trazemos também a história da ainda recente net art, escrita pela teórica e
doutora em novas mídias Claudia Giannetti.
Além de Tania Fraga, outras duas pioneiras nos honram com suas participações em Perspectivas
de Pesquisa: Maria Beatriz de Medeiros e Suzete Venturelli, ambas professoras atuantes na linha de
pesquisa Arte e Tecnologia, assim como a artista, pesquisadora e professora Maria Luiza Fragoso,
que em Desdobramentos faz uma bela homenagem à nossa querida amiga Lygia Saboia.
Por último, e não menos importante, contamos com a valiosa participação do doutorando de
nosso Programa de Pós-Graduação em Arte Christus Nóbrega.
Maria de Fátima Borges Burgos
Editora convidada
5
HOMENAGEM Waldemar Cordeiro
7
HOMENAGEM
Derivações da 101 001
MARIA DE FÁTIMA BURGOS *
Resumo
Waldemar Cordeiro é, sem quaisquer dúvidas, um dos mais importantes protagonistas da história da arte no Brasil.
Artista plástico, design, professor, intelectual e “ex-futuro cientista”, Cordeiro liderou artistas do Grupo Ruptura e
muitos outros concretistas e não-concretistas e trabalhou com uma equipe de matemáticos, físicos e engenheiros.
Pioneiro da arte computacional, nosso homenageado defendeu o uso do computador na arte, e na crítica de arte
também, [por saber que isso abriria] perspectivas imensas suscetíveis de atender a alguns dos anseios mais profundos
da humanidade, proporcionando a almejada arte ‘‘auto-consciente’’, interdisciplinar e operativa.
Palavras-chave: Waldemar Cordeiro, arte concreta, arte, ciência e tecnologia, Arteônica, arte computacional.
Abstract
Waldemar Cordeiro is, without doubts, one of the most important protagonists of the history of the art in Brazil. Visual artist,
design, teacher, intellectual and “former-future scientist”, Cordeiro was capable to lead so much artists of the Rupture (Ruptura)
group, and many other Concrete art sympathizers, as a team of mathematicians, physical and engineers. Pioneer of the
computer art, our honored defended the use of the computer in the art, and in the art critic also, [for knowing that would open]
susceptible immense perspectives of assisting some of the humanity’s deepest longings, providing her longed for art ‘’ solemnityconscious ‘’, interdisciplinary and operative.
Keywords: Waldemar Cordeiro, concrete art, arts, science and technology, Arteônica, computer art
Há exatos quarenta anos, mais precisamente de 2 de agosto a 20 de outubro de 1968, a curadora do Institute of Contemporary Arts (ICA), em Londres, Jasia Reichardt, juntamente com
Max Bense, promoveu a exposição Cybernetic Serendipity: the computer and the arts.
Embora não tenha sido a primeira exibição a apresentar trabalhos que mostravam uma
profunda interseção entre arte, ciência e tecnologia,1 a Cybernetic Serendipity tornou-se um
marco na história da arte computacional, entre outros motivos por apresentar trabalhos de
praticamente todos os pioneiros dessa nova arte que começava a se estabelecer. Dentre eles,
Charles Csuri, Michael Noll, John Whitney, Nam June Paik, John Cage e, representando o Brasil,
Waldemar Cordeiro2, que, acima dos debates entre concretos versus neoconcretos, sempre
soube que a estética nunca foi uma questão de teologia e sim de tecnologia, como dizia Julio
Plaza. Para esse autor, foram os concretos que previram a máquina como agente de instauração estética.
8
* Pesquisadora associada da Universidade de Brasília atua como professora do Programa de Pós-Graduação em Arte,
no qual desenvolve pesquisas sobre os aspectos constitutivos da cibercultura. Mestre em Arte e Tecnologia e Doutora
em Sociologia pela Universidade de Brasília. [email protected]
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Vindo da Itália para o Brasil em 1946, Cordeiro construiu uma trajetória que pode ser traduzida
como uma aventura da razão, conforme Anna Maria Beluzzo. No texto “Waldemar Cordeiro,
uma aventura da razão” (1986), a autora continua: “Os quadros, antes de mais nada, eram o
suporte da investigação e da reflexão sobre a arte e seu lugar nas sociedades urbano-industriais. A visão política da cultura marca sua perspectiva crítica da arte e a dimensão predominantemente ética de suas propostas”. Parece inegável que Cordeiro articulava com precisão a
estética de sua obra teórico-plástica e o seu posicionamento ético e social.
De natureza fundamentalmente cosmopolita, Cordeiro via seu trabalho inserido no âmago de
uma sociedade industrial, de um país que ansiava por um desenvolvimento econômico baseado
na industrialização. Do experimentalismo com linhas horizontais e verticais de 1949, passando
pela arte concreta, neoconcreta e o popcreto, ou arte concreta semântica, Cordeiro foi, naturalmente, um dos primeiros a compreender, e a defender, que o computador, ao permitir
traduções da realidade por meio de processos de simulação, poderia servir como instrumento
de transformação da sociedade. E da arte.
A arte moderna não é ignorância
A relação entre arte, artista e sociedade pode, às vezes, produzir uma poética racional e
matemática. A filosofia, a teoria social e a estética podem perpassar todo um trabalho teórico
e plástico que se propõe substituir um modernismo nacionalista por uma cultura articulada
ao processo de industrialização do país, uma vez que a arte não é a imitação de formas
preexistentes, mas, pelo contrário, é livre criação, é uma forma de conhecimento sensível,
puramente visual, como explica a teoria da pura visibilidade, de Konrad Fiedler, filósofo que
teve profunda influência no pensamento de Waldemar Cordeiro, assim como Piet Mondrian,
Antonio Gramsci, o construtivismo de Naum Gabo e Anton Pevsner, a teoria da Gestalt,
entre outros.
Se a arte é livre criação, se ela parte do imaterial e do abstrato para se elevar à figura e à
forma, se é uma forma de conhecimento sensível das linhas, das formas e das cores, se a arte
não significa, ela é, então, faz-se necessário forjar uma nova linguagem que possa “exprimir o
individual, o coletivo, o nacional e o universal a uma só tempo”.3
Para Cordeiro, a busca dessa nova linguagem teve início no final da década de 1940, quando
o abstracionismo entrou em rota de colisão com o realismo ou figurativismo, que, no Brasil,
cujos ideais artísticos ainda estavam calcados no modernismo de 22, era zelosamente defendido por artistas que reforçavam a idéia de que uma arte de figuração dos elementos da
cultura nacional, das coisas do Brasil, abria, naturalmente, espaço para a crítica social, destacando, assim, a função social da arte. Essa nova linguagem deveria, também, ignorar qualquer
aspecto hedonista ou sensual na obra de arte, já que sua presença denotava nada mais que um
artista individualista desligado das reais necessidades de sua época.
Embora tenha defendido e divulgado o abstracionismo tanto em termos de prática artística
quanto em suas críticas teóricas, o artista jamais incluiu seus trabalhos no campo da arte
abstrata, entre os artistas que usavam uma abstração construída com os meios da representação naturalista. Esses, para Cordeiro, eram os que criavam formas novas utilizando-se de
princípios velhos, conforme lemos no Manifesto Ruptura, de 1952. Seu processo de criação,
ao contrário, utiliza-se de princípios novos para dar origem a formas novas, uma arte concreta
onde subjazia um projeto social plenamente identificado com a civilização industrial.
9
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Para Fabrício Vaz Nunes, em Waldemar Cordeiro: da arte concreta ao “popconcreto” (2004),
A arte concreta será uma tomada de atitude na direção de uma arte
plenamente identificada com a civilização industrial, com suas características estruturais e produtivas – e daí que a obra de arte concreta
fosse tomada não como expressão, mas como produto, em todos os
seus sentidos: produto como coisa fabricada em série, como modelo
programático e operativo, por um lado, e, por outro, produto como
invenção espontânea do espírito humano, em acordo com o pensamento da “pura visualidade”.
A arte concreta, expressão usada pela primeira vez por Theo Van Doesburg, era, numa primeira
definição, toda arte que se tinha desvinculado totalmente da imitação da natureza, uma arte
não figurativa, daí ser vista inicialmente como sinônimo de arte abstrata. Entretanto, a partir
de 1936, Max Bill formula sua conceituação de uma arte construída objetivamente, uma arte
contemporânea fundada em problemas matemáticos, mas não a matemática em si mesma, a
matemática exata: “Trata-se, primariamente, de um uso de processos de pensamento lógico
para a expressão plástica de ritmos e relações em si mesma”.4 A arte concreta, baseada na
Teoria Geral da Forma (Gestalt), deveria proporcionar ao espectador uma fruição objetiva, ou
seja, aquilo que ele via era exatamente aquilo que o artista havia concebido em seu projeto
original. Era uma realidade que podia ser controlada e observada.
Vimos anteriormente que, seguindo o pensamento de Fiedler, Cordeiro defendeu a arte como
conhecimento. Agora, com as idéias de Bill, e também de Romero Brest, o primeiro a falar de
arte concreta no Brasil e a defender a objetividade racional na arte, e Tomás Maldonado, que
defendia uma dimensão ética, utópica e ideológica na arte concreta, incorpora em seus trabalhos, prático e teórico, as novas tecnologias da civilização tecnológica para a criação de obras
de fundo geométrico-matemático, de obras como produto, como forma do ser, inaugurando
uma nova realidade.
Uma nova realidade que deve levar em consideração, de forma absoluta, a linguagem, a
linguagem real das artes plásticas, a linguagem visual moderna. Respeitando tal proposição,
Cordeiro dividiu sua produção nos períodos sintático, pragmático e semântico. No primeiro,
estudavam-se as relações entre os signos; no segundo, as relações entre os signos e o intérprete; e, finalmente, no terceiro, as relações entre os signos e os significados.
Outro aspecto da maior relevância deve ser lembrado: se as dimensões de uma obra de arte
são o espaço e o tempo, se Cordeiro joga com a percepção do olhar, gerando uma dinâmicatempo no espaço, Décio Pignatari acrescentaria à discussão a questão do movimento mecânico, da cibernética e da automação.
A obra de arte não contém uma idéia, é ela mesma uma idéia
10
Em dezembro de 1952, com Geraldo de Barros, Lothar Charoux, Kazmer Fejer, Leopoldo
Haar, Luiz Sacilotto e Anatol Wladyslaw, e sob o impacto da I Bienal Internacional de São Paulo,
em 1951, e da vinda da delegação dos artistas construtivistas suíços, principalmente Max Bill,
Cordeiro liderou um projeto de reforma da cultura e da arte brasileiras com a exposição do
Grupo Ruptura no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
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Nessa exposição, os membros do grupo assinaram e distribuíram para o público o Manifesto
Ruptura, que afirmava, entre outras palavras de ordem, não haver mais continuidade com a arte
antiga, que foi grande quando foi inteligente, mas, graças ao salto qualitativo da história, hoje
nossa inteligência não é mais a de Leonardo, permitindo-nos diferenciar o novo do velho.Velho
é o não-figurativismo hedonista, novo é conferir à arte um lugar definido, considerando-a um
meio de conhecimento deduzível de conceitos, situando-a acima da opinião, exigindo para seu
juízo o conhecimento prévio.
Entretanto, a partir da I Exposição Nacional de Arte Concreta, em 1956, quando, pela primeira
vez, os trabalhos de artistas concretos paulistas e cariocas foram colocados lado a lado, surgem
as diferenças na interpretação e no entendimento do que seja essa arte. Para os paulistas,
as obras deveriam vir embasadas por determinados preceitos teóricos e pelo comprometimento com os ideais do grupo, enquanto os cariocas, que se aglutinavam em torno de Ivan
Serpa, compartilhavam um interesse comum pela abstração e pela geometria como linguagem
poético-formal sem qualquer envolvimento político, fazendo com que fossem considerados
pelo grupo paulista, segundo Mario Pedrosa, como artistas quase românticos.
Essas diferenças, aliadas às divergências cada vez mais acirradas principalmente com Ferreira
Gullar e com outros membros do grupo concreto paulista, como Decio Pignatari e Hermelindo Fiaminghi, faz com que Cordeiro se vá afastando dos “ideais” da arte concreta, como vista
até aquele momento, para a construção de uma arte concreta semântica, para o “popcreto”.
Enquanto Ferreira Gullar, Amílcar de Castro, Lygia Clark, Lygia Pape, Reinaldo Jardim e Hélio
Oiticica, entre outros, realizam, em 1959, a primeira exposição neoconcreta contra “a tendência
à racionalização cada vez maior dos processos e dos propósitos da pintura”, conforme Manifesto neoconcreto, Waldemar Cordeiro volta-se para o estudo dos fenômenos cromáticos,
para a relação entre as cores, cujas pesquisas continuam com a perspectiva geométrico-construtiva, mas sem os contornos rígidos e as complexas articulações geométricas e espaciais do
concretismo histórico, e para a limitação do suporte e sua relação com o espaço real, objetivando uma aproximação da obra com o espectador.
Afora essas questões “internas” dos movimentos concreto e neoconcreto, não é possível
historicamente ignorar o momento político que o país vinha atravessando, ou seja, do desenvolvimentismo democrático de Juscelino para a ditadura militar após a deposição de João
Goulart, em 1964. Se a sociedade como um todo estava se posicionando contra e a favor do
movimento ditatorial que começava a tomar conta do país, se os artistas se viam obrigados a
tomar uma posição explícita ante os acontecimentos, Waldemar Cordeiro, com sua formação
marxista e gramsciana, não poderia se esquivar, defendendo e fazendo, a partir de então, uma
arte engajada, uma arte que tratava diretamente das graves questões que ameaçavam o Brasil.
Mais uma vez nos reportando a Nunes,
O “popcreto”, assim, é o produto direto de uma nova atitude diante
das relações entre a arte e a vida social: Cordeiro abandona aqui,
definitivamente, uma arte que propõe um projeto utópico para o
futuro (herança do neoplasticismo e das correntes construtivas em
geral) para adotar uma arte de luta, de denúncia, uma arte que se
liga diretamente às condições da realidade. A arte concreta semântica buscava portanto assumir o seu lugar dentro do teatro social de
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VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
forma análoga à UNE, à CGT ou às Ligas Camponesas: o momento
não é mais o da projeção de uma nova ordem social e estética, mas o
da ação direta e engajada.
Essa nova atitude e a aproximação com os trabalhos de Umberto Eco fazem com que Cordeiro,
a partir dos primeiros anos da década de 1960, comece a se aproximar da teoria da informação
e da semiótica, adotando o novo pensamento científico contemporâneo, no qual as certezas
não são mais tão verdadeiras, fazendo-se necessário lidar com elementos do caos, da indeterminação, do aleatório, da ambigüidade e da desordem.
Ao detectar, mais uma vez, a obsolescência da comunicação da arte tradicional, que provocava a
perda da informação do ponto de vista da mensagem pretendida na origem, Cordeiro volta-se
para as linguagens artificiais e, naturalmente, para a mais nova ferramenta tecnológica, o computador. O uso dos novos meios eletrônicos e das telecomunicações serviria para integrar as lições
do construtivismo às demandas qualitativas e quantitativas da sociedade de massa, num processo
comunicativo interdisciplinar cada vez mais planetário. O artista, que via grandes semelhanças
entre a arte concreta e a arte por computador, esta sendo uma conseqüência natural daquela,
entendia que o futuro exige uma arte eletrônica que, respeitando as variáveis culturais, pode
alcançar milhões de pessoas ao mesmo tempo sem perder seu conteúdo informacional.
1001001 significa arte em linguagem binária
Relacionando arte e telecomunicações, fundindo o técnico, o estético e o teórico, e defendendo
o transnacional em arte, como destaca Ivana Bentes,5 Cordeiro não via o uso dos computadores na arte como uma moda passageira, pelo contrário, ele desejava entender em profundidade aquele novo instrumento, desejava explorar suas infinitas possibilidades, uma vez que
[...] extraordinária significação assume para a cultura a utilização do
computador do domínio da imagem com finalidades exclusivamente
técnicas e científicas, notadamente no campo da leitura, reconhecimento e interpretação automáticas de ‘’patterns’’, proporcionando
recursos imensos não apenas para a programação criativa como para
a programação de estudos críticos das mensagens artísticas.6
Para conceber um algoritmo para a produção de uma imagem por computador, Cordeiro
uniu-se ao físico Giorgio Moscati, então diretor do Departamento de Física da FFCL-USP, que
passaram a se encontrar periodicamente e a trocar informações sobre as possibilidades do
uso do computador na arte. Discutiram, nas palavras do próprio Moscati, sobre:
12
Televisão e as possibilidades de manipulação e geração de imagens;
música, nos aspectos de composição, análise, geração de sons, sua
modificação, filtragem e transformações e o processo de audição;
imagens, sua geração, transformações, efeito das cores, teoria das
cores, processo de visão etc.; pensamos em textos e o uso do computador para analisar textos, compor poesias a partir de regras e a
possibilidade de associar os aspectos plásticos e sonoros das palavras;
objetos tridimensionais e sua representação bidimensional e estereoscópica; as associações de várias técnicas para gerar ambientes que
excitariam vários de nossos sentidos e capacidades de percepção.7
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Dessa união nasceram as duas primeiras obras de computação gráfica no Brasil: a série Beabá,
também conhecida como Conteúdo Informativo de Três Consoantes e Três Vogais Tratadas por
Computador, um gerador de palavras ao acaso, com a sonoridade da língua portuguesa, e o
Derivadas de uma imagem, uma imagem figurativa que passaria por transformações sucessivas e
que seria, posteriormente, impressa. Esta imagem, para Cordeiro, deveria ser “uma imagem com
forte conteúdo humano e emotivo para ser transformada por uma ‘maquina fria e calculista’”. 8
Após esses dois trabalhos com Moscati, Cordeiro trabalhou com Ernesto Vita Jr., da Unicamp,
em Retrato de Fabiana, de 1970, com José Luiz Aguirre e Estevam Roberto Serafim, da USP, em A
mulher que não é BB, de 1971, e com Raul Fernando Dada e J. Soares Sobrinho, da Unicamp, em
Gente, de 1972/1973. Essas obras foram produzidas transformando o conjunto de retículas de
imagens fotográficas preexistentes em valores numéricos (técnica que depois seria chamada
de digitalização) e, em seguida, atribuindo a cada um desses valores numéricos uma letra equivalente, para permitir imprimir a imagem numa impressora de texto.
Na seqüência desses trabalhos, Cordeiro começou a pesquisar um novo processo utilizando um
plotter de quatro cores para produzir imagens coloridas. O resultado foi Pirambu, obra emblemática, na análise de Annateresa Fabris, que combina as preocupações estéticas e artísticas do
artista. Nesse trabalho, graças à tecnologia, Cordeiro apresenta o encontro do Brasil arcaico
com o Brasil moderno, propondo, de maneira utópica, a necessidade de mudanças rápidas que
não sejam indiferentes aos valores artísticos exigidos na construção de uma nova visualidade.
Uma nova visualidade que, nas palavras do crítico Jonathan Bell, em seu livro Science and technology in art today, “[...] é um começo na direção de trazer de volta as emoções humanas ao
mundo frio e cerebral do computador”. Encerramos esta homenagem fazendo nossas as palavras de Abraham Moles, para quem o trabalho de Cordeiro “situa-se destarte no campo dos
possíveis, mostrando que se pode ir longe na arte de fascinar. Pois se tais imagens me seduzem,
sei que, por trás de cada uma delas, existem variações que basta pesquisar”. 9
Notas
1. Em 1965, aconteceram duas exposições: uma na Wise Gallery, em Nova York, e outra em Stuttgart, na
Alemanha. Essas mostras foram montadas por cientistas e engenheiros. Em 1967, os artistas Billy Kluver
e Robert Rauschenberg criaram a EAT, Experiments in Art and Technology, para o desenvolvimento de
uma efetiva colaboração entre artistas e engenheiros.
2. Na realidade, os trabalhos de Cordeiro, os quatro gráficos de Derivadas, não foram expostos, pois
chegaram atrasados, conforme Giorgio Moscatti. http://www.visgraf.impa.br/Gallery/waldemar/moscati/
divulga_.htm.
3. Sacilotto, poeta da economia moderna. Folha de São Paulo, 15/05/1952. In:Waldemar Cordeiro (CD-ROM).
4. Max Bill. In NUNES, Fabrício Vaz.
5. In http://www.museuvirtual.com.br/targets/galleries/targets/mvab/targets/arthuromar/targets/ensaios/
languages/portuguese/html/arteetecnologia.html
6 . Em 1965, aconteceram duas exposições: uma na Wise Gallery, em Nova York, e outra em Stuttgart, na
Alemanha. Essas mostras foram montadas por cientistas e engenheiros. Em 1967, os artistas Billy Kluver
e Robert Rauschenberg criaram a EAT, Experiments in Art and Technology, para o desenvolvimento de
uma efetiva colaboração entre artistas e engenheiros.
7. http://www.visgraf.impa.br/Gallery/waldemar/moscati/discuss_.htm
8. Idem.
9 http://www.visgraf.impa.br//Gallery/waldemar/catalogo/problema.htm
13
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
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Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Pontos de Contato
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Desenho, coloração e coreografia em animação musical
Drawing, coloration and choreography in musical animation
ALUIZIO ARCELA *
Resumo
Apresenta-se um breve estudo sobre as relações entre a música e o desenho de seus elementos em tempo real, isto é,
desenhos que são traçados e coloridos ao mesmo tempo em que as notas são tocadas.Trata-se, mais especificamente,
de um tipo de animação musical cuja dinâmica espacial é discreta, isto é, não há a continuidade usual da animação no
movimento dos objetos, mas sim uma seqüência de poses que se desenham em sincronismo com as subdivisões do
tempo da música e se colorem em conformidade com os parâmetros das notas correspondentes. Em seguida a uma
descrição sucinta desse tipo de animação musical, mostram-se algumas cenas extraídas de um trecho do concerto em
ré menor de J. S. Bach e de três pequenas peças algorítmicas.
Palavras-chave: animação musical, desenho em tempo real, espaço de tons, sistemas de cores.
Abstract
A brief study on the relationships between music and the real-time drawing of its elements is presented, that is, drawings which
are traced and colored at the same time the notes are played. In this way, a specific kind of musical animation is described
where the spacial behavior of its characters is discrete, as opposed to the usual continuous movement found in common
animation, so that, instead of continuity, a sequence of postures is drawn in synchronism with the time divisions of the music,
being the objects colored according to the parameters of the corresponding notes. Following a brief description of this kind of
music interpretation, a few scenes extracted from a section of the J. S. Bach’s D minor Concerto as well as from three small
algorithmic pieces are shown.
Keywords: musical animation, real-time drawing, tone space, color systems.
1. Introdução
Quanto mais se pesquisa sobre uma relação profunda e coerente entre música e imagem,
mais se constata tratar-se de algo que, de uma maneira ou de outra, sempre esteve na agenda
de pensadores e de artistas em todas as épocas e, assim, sempre fez parte de cada etapa da
evolução do conhecimento. A dança, por exemplo, que é um tipo de expressão com o poder de
desenhar a música por meio das formas do corpo e de seus movimentos possíveis, é uma prova
disso porque data dos tempos primordiais da civilização. No tocante à relação entre as notas
musicais e as cores — que é talvez o tópico mais focalizado nos estudos acerca de imagens
musicais —, as considerações sobre uma possível correspondência entre elas se iniciaram em
Ptolomeu, no século II, e ressurgiram no século XVII em René Descartes e Isaac Newton (PEEL,
16
* Professor Associado do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília. Fundador da área
de Computação Musical na UnB, inicialmente instalada na Faculdade de Tecnologia em 1984 e, a partir de 1987, no
Instituto de Ciências Exatas. É colaborador do Instituto de Artes desde a criação de sua pós-graduação em 1994.
[email protected]
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
2006), entre outros.Algumas teorias sobre a luz valeram-se da comparação entre os fenômenos
da óptica e da acústica, como o tratado sobre a luz de Christiaan Huygens, que pressupunha a
existência de um meio material para tornar possível a propagação luminosa [MARTINS, 1986].
Fazia-se aí uma analogia entre a luz e as ondas que se propagam sobre as águas em círculos em
resposta ao choque de um objeto que lhes é atirado na superfície, como a conhecida situação
da pedrinha lançada sobre o lago. O assunto mereceu também a atenção de Johann Wolfgang
von Goethe, conforme o parágrafo 748 do seu tratado sobre as cores [GOETHE, 1973].
Para que não haja impropriedade nessa transformação entre as cores e os tons auditivos, não
se pode comparar a cor com o som, mas sim a cor com o tom. Ou seja, é preciso que se contraponha o equivalente psicofísico da luz, que é a cor, ao equivalente psicofísico do som puro (ou
senoidal), que é o tom, isto é, a sensação do som puro. Segundo, como há uma diferença significativa entre o que o intervalo de uma oitava representa para o tom e o que ele representa para
a cor, não se pode tratar a cor como uma entidade matemática de uma única dimensão, isto é, a
cor não poderá resumir-se à grandeza denominada comprimento de onda, sob pena de se inviabilizar a correspondência geral entre tom e cor porque a uma mesma cor estariam associadas
10 notas (ARCELA, 1992). A faixa de audição média nos seres humanos estende-se desde um
limite inferior de freqüência, nas imediações de 15 Hz, até o limite superior de cerca de 15.000
Hz. Dessa forma, existe uma razão de aproximadamente 1024:1, isto é, 210:1, entre a freqüência
do som mais agudo que se pode ouvir e a do som mais grave, de modo que 10 oitavas contíguas
se ajustam à extensão da faixa. Sendo assim, se forem contadas 44 oitavas, a partir da oitava
auditiva mais baixa, chega-se à primeira freqüência da oitava da visão, que é apenas uma única, e
não 10 como no som, pois a razão entre a freqüência do violeta mais à direita no espectro de
cores e o vermelho mais à esquerda é menor que 2. Mais precisamente, sendo o violeta uma
freqüência de 768 THz e o vermelho aproximadamente 394 THz, a largura da faixa de visão é
de 1155 centésimos, o que se aproxima do intervalo de uma sétima supérflua (64:125), segundo
a nomenclatura encontrada em A. J. Ellis [HELMHOLTZ, 1954].
Admitindo-se que em termos de poder de processamento de informações os sistemas auditivo e visual são equivalentes, uma estratégia para se obter uma transformação coerente de
notas em cores consiste em se organizar o espaço perceptivo de notas com base na lógica que
governa as cores. Dessa forma, a natureza do espaço de cor proposta por Thomas Young (1802)
e estruturada depois por Hermman von Helmholtz (1855), em razão de estabelecer a cor
como uma entidade matemática, mais precisamente como um elemento de um espaço vetorial,
constitui-se no primeiro passo decisivo da aproximação entre nota e cor.
E a própria cor, por sua vez, será apenas uma das dimensões da imagem musical, uma vez que
a ênfase da interpretação poderá ser uma dentre um conjunto de expressões artísticas que
atuam no domínio da percepção visual e que se prestam à representação da música, como a
pintura, a arquitetura e o cinema.
1.1Pintura
Quando se focaliza estritamente a relação da música com a pintura, destacam-se alguns nomes
entre os quais o de Paul Klee, pintor cuja formação interdisciplinar música/pintura a que teve
acesso marca o conteúdo musical de alguns de seus trabalhos, como a aquarela Ville de Rêve
(GROHMANN, 1968) feita segundo os preceitos da fuga, que é um tipo de composição musical
que produziu grandes resultados estéticos, especialmente os que se encontram na obra de J. S.
Bach. Certamente houve além de Klee outros pintores que se interessaram por esse caminho
17
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
fronteiriço com a música, excluindo-se as obras em que há uma menção explícita ao mundo da
música sem que tenham adotado no seu processo construtivo uma relação verdadeiramente
estrutural com a música. Vale dizer, os trabalhos de pintura que trazem a figuração de músicos
ou de instrumentos musicais, ou de ambos, não fazem parte da classe de obras pertencentes
à referida fronteira, mesmo que sejam obras que exploraram com grande maestria ambientes
e locações musicais ricos em formas, luzes e expressões corporais. Essas obras trazem uma
relação música/imagem explícita mas não uma relação estrutural, assim como em Klee.
Além disso, não faz sentido a idéia de um paralelismo histórico entre música e pintura, embora
acidentalmente possa haver uma correspondência entre elas que seria uma correspondência
inteiramente atemporal ou, o que parece mais provável, uma correspondência de âmbito
pessoal, isto é, em um mesmo indivíduo. Nas obras do Impressionismo — movimento criado
por pintores franceses do final do século XIX, entre os quais Claude Monet, Pierre Auguste
Renoir, Edgar Degas e outros —, a música exerceu apenas uma influência de clima e de estilo. E
sobre música, nada se encontra na biografia desses pintores, assim como nada consta sobre o
uso de técnicas da pintura impressionista em composições de Claude Debussy ou de Maurice
Ravel, os expoentes da música impressionista. Relativamente à pintura expressionista alemã,
consta que as óperas de Alban Berg são as únicas representantes do verdadeiro espírito expressionista na música. Entretanto, como a ópera é audiovisual por natureza, não se pode propriamente compará-la com a música pura, que prescinde do estímulo visual para deixar a cargo
da percepção do ouvinte a tarefa de construir uma imagem musical supostamente igual ou
semelhante à imagem formada nas outras mentes que ouvem a mesma música. Em música pura,
nem mesmo a palavra poderá participar, uma vez que o poder de induzir imagens na mente, que
é próprio delas, perturbará o processo natural de síntese de imagens, isso porque a imagem
sugerida por uma dada palavra é diferente para cada pessoa. Quando n pessoas ouvem a palavra
“casa” ao mesmo tempo, n diferentes casas serão visualizadas.
1.2Arquitetura
Há compositores que se identificam mais com uma concepção tridimensional para a música.
Nesse caso, é possível afirmar-se que o ponto de partida é a analogia segundo a qual a arquitetura equivale a uma música congelada — idéia esta atribuída a Arthur Schopenhauer. Dessa
forma, esses compositores levam em conta a relação música/espaço-arquitetônico ao invés
da relação música/cor, que é preponderante nos pintores. Nas performances do compositor
renascentista Giovanni Gabrieli, marcavam-se lugares na sala de concerto de onde os músicos
deveriam tocar seus instrumentos, isso com o fim de propiciar uma espacialização sonora
que pudesse atingir os ouvidos de todos os presentes. No século XX, os compositores Iannis
Xenakis, Edgard Varèse, entre outros, trouxeram a música para uma experiência mais efetiva
com a arquitetura (TREIB, 1996). A concepção tridimensional justifica-se sobretudo pela natureza da projeção acústica, que é em si tridimensional, de modo que esse tipo de construção
musical acaba por explorar a geometria euclidiana como que a buscar uma edificação arquitetônica feita de sons. VER FIGURA 1
18
Entretanto, nem tudo na interpretação musical tridimensional se refere à arquitetura. Nas
partículas que compõem a forma sônica (ARCELA, 1986), por exemplo, além de informações
estritamente musicais, existem dados geométricos, luminosos e cinemáticos interdependentes.
Dessa forma, podem-se construir mundos virtuais, isto é, programas de computador capazes de
reunir objetos tridimensionais, animação e sons, todos fazendo parte de um mesmo organismo.
Esses programas possibilitam uma interatividade em tempo real que é capaz de determinar
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Figura 1.
Cena de
Notas são cores.
(A. Arcela, 2005)
os caminhos a serem assumidos pela composição. Nesse sentido, a construção algorítmica da
música com as árvores de tempos (ARCELA, 2001) seguida da conversão delas em mundos
virtuais resulta em cenas como a que se reproduz na Figura 1. Teoricamente, essa categoria
permite ao espectador participar da obra com a sensação de fazer parte dela. Isto é, uma vez
que os mundos virtuais são capazes de conceder ao visitante uma maneira de imergir e navegar
na forma multimídia, ele terá, como espectador e participante, condições de visibilidade e de
audibilidade tanto para os detalhes da música quanto para a interdependência entre a forma, o
tempo e as cores. Evidentemente que tudo isso está sendo considerado em teoria, porque um
bom resultado estético dependerá da arte de programar, de modo que a ilustração da Figura 1
é um esboço da construção musical com os elementos descritos acima. A cada interação com
essas pequenas peças de curta duração, uma nova seqüência melódica é produzida juntamente
com as seqüências cinemática e cromática. Ao cabo de um certo número de interações, a peça
encerra-se, podendo ser retomada outra vez. E toda vez que for reiniciada, uma nova gênese
composicional será assumida pelo programa em função do momento exato da retomada e de
onde ocorre a interação.
1.3 Cinema
Em se tratando de animação musical, o cinema, desde seus primeiros dias, tornou-se a linguagem
mais utilizada em animação musical, não tanto pela via de seus conceitos, que são múltiplos
e vastos, mas pela acuidade técnica com que se consegue combinar o som com a imagem.
Contudo, não se pode creditar ao cinema o marco zero da animação musical justamente
porque, muito antes dele e de suas máquinas maravilhosas, outras tecnologias já haviam sido
desenvolvidas com a capacidade de produzir música visual ainda que rudimentarmente, como é
o caso do Ocular Harpsichord, que foi construído em torno do ano de 1730 pelo padre jesuíta
francês Louis Bertrand Castel na forma de um cravo (isto é, um instrumento musical de teclado
19
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e cordas) acoplado a um painel contendo sessenta janelinhas aparelhadas com cortinas que se
abriam e se fechavam por meio de um mecanismo de polias em resposta ao acionamento das
teclas do cravo (FRANSSEN, 1991; MORITZ, 1997). Cada uma dessas janelinhas continha por
detrás da cortina uma superfície de vidro colorido (iluminado à luz de vela) de tal modo que, ao
se executar uma peça musical no teclado desse cravo ocular, exibia-se no painel uma seqüência
de cores em sincronismo com as notas.
Com o cinema, conseguiu-se em primeiro lugar uma maneira de adaptá-lo à lógica das máquinas
de visualização da música iniciadas por Castel no século XVIII, lógica esta que se reduz ao
seguinte: toda vez que uma nota for tocada, um objeto com uma determinada cor deverá ser
visto simultaneamente em um certo lugar do espaço. Em seguida, tirou-se proveito da capacidade que o cinema tem de incluir imagens feitas a partir de diferentes técnicas e procedências,
isto é, os fotogramas podem ser produzidos tanto a partir da fotografia do desenho quanto a
partir do desenho da fotografia, incluindo-se neste último caso o traçado diretamente na película. Surgiram então os primeiros autores do século XX capazes de dominar aquela nova realidade tecnológica da animação musical, como Oskar Fischinger, especialmente na sua obra dos
anos 1920 (THE FISCHINGER ARCHIVE, 2008). Na literatura específica da animação musical
feita com a técnica do cinema convencional em película, encontram-se outros nomes que participaram como autores individuais da primeira fase de produções, quando praticamente tudo
era feito à mão. Logo em seguida, a produção passou a ser conduzida com o aparato industrial
do cinema, tanto que, em 1940,Walt Disney dirige Fantasia, filme de animação musical de longametragem ganhador de vários prêmios. Mais tarde, em 1967, Norman McLaren faz Pas des
Deux, filme de curta-metragem apresentando novas formas de aproximar a música da imagem
cinematográfica.
Em resumo, na procura por uma música que lhe seja uma espécie de alma gêmea, o cinema, se
comparado à pintura ou à arquitetura, está diante de uma tarefa muito mais natural, simplesmente
porque dispõe da dimensão do tempo. Dessa forma, quando se ajusta o tempo da animação ao
tempo da música, tem-se a sensação de uma correspondência legítima entre música e imagem.
E, de fato, existe um tipo de animação que se relaciona com a dimensão rítmica da música
com rigor absoluto, ainda que deixe as dimensões melódica e harmônica para uma elaboração
livre ou mesmo ausentes. A esse respeito, pode-se mencionar o episódio The cat concerto com
a dupla Tom e Jerry (dirigido por William Hanna e Joseph Barbera em 1947), em que Tom ao
teclado de um piano de cauda interpreta a dificílima Rapsódia Húngara n° 2, de Franz Liszt,
enquanto se Jerry diverte no interior do piano com os martelos e as cordas causando assim
sérios danos à performance virtuosística de Tom. Mesmo sendo um filme de curta-metragem,
trata-se de um clássico da animação musical tanto quanto ou mais que Fantasia.
2. Representação dos tons auditivos no espaço de cores
Para se proceder à interpretação cromática de partituras polifônicas — como as que se
descrevem na Seção 3 —, é preciso que se conheçam os métodos de coloração das notas. Para
isso, as equações que representam as coordenadas dos tons auditivos nos sistemas de cores
são apresentadas.
2.1 Um espaço para organizar os tons
20
Uma maneira de se organizarem os tons auditivos em um espaço matemático é por meio do
sistema de coordenadas QOL mostrado na Figura 2, no qual os tons são dispostos em páginas,
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isto é, semiplanos verticais dispostos angularmente ao longo da geratriz de um cilindro. Mais
precisamente, QOL é um espaço de tons a três dimensões, quais sejam, quociente, distância em
oitavas e loudness, onde os tons pertencentes a uma mesma página têm o mesmo quociente.
Os limites dos parâmetros (AFP) dos tons, isto é, amplitude, freqüência e fase, são tais que as
freqüências podem variar de fmin até 210 fmin, em que fmin é o limite inferior da percepção melódica [PRESSNITZER et al., 2001], um valor abaixo do qual não se reconhecem os intervalos.
A faixa de audição tem uma abrangência de 10 oitavas; as amplitudes podem assumir qualquer
valor entre zero e o limite dado pela Equação (6); e as fases qualquer valor entre 0 e 360 graus.
Para cada tripla <a, f, p>, isto é, para cada tom com amplitude a, freqüência f, e fase p, existe
uma tripla correspondente <q, o, l > do espaço QOL, de modo que existe uma transformação
bijetora (ida e volta) entre os espaços AFP e QPL. O quociente (q) é uma razão de freqüências
no interior de uma oitava, isto é, 1 ≤ q < 2. Especificamente, o quociente de um tom é a razão
entre sua freqüência f e o valor obtido pela elevação da freqüência limite inferior fmin pelo
número de oitavas v existente entre fmin e f isto é,
em que v é dado por
Figura 2.
Superposição
entre o cubo RGB
e o cilindro QOL
21
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
O termo “quociente” aqui empregado encerra um significado semelhante ao de “croma”
(BACHEM, 1950) uma vez que ambos se referem à posicão do tom dentro da oitava. Por
exemplo, notas de mesmo nome têm o mesmo croma e o mesmo quociente, independentemente da oitava a que pertencem. Em teoria da cor, porém, o termo “croma” que foi introduzido no início do século passado (MUNSELL, 1912) tem um significado capaz de provocar uma
terminologia conflitante caso os espaços de tons auditivos e de cores sejam usados conjuntamente, tal como ocorre no presente artigo. Por essa razão, o termo “croma” é evitado aqui na
medida do possível.
A distância em oitavas (o) de um tom de freqüência f é uma quantidade dada pelo número de
oitavas que separa f de fmin acrescida de uma parte fracionária imposta pela fase p. Portanto,
a quantidade o situa-se na faixa 0 ≤ o < 10, sendo o número de oitavas v a parte inteira da
distância em oitavas, ao passo que a parte decimal é obtida pela razão entre a fase e a máxima
rotação possível, isto é,
O conceito de distância em oitavas é semelhante ao de tone height abordado em Bachem
(1950). Entretanto, quando se inclui o ângulo de fase, a distância em oitavas passa a se constituir em uma escala contínua de valores ao invés de discreta, isto é, aquela que conta apenas as
oitavas inteiras sem a parte fracionária.
Por fim, a dimensão loudness (l) é construída de acordo com a escala
em que imax é o limite superior da escala de loudness, isto é, um valor acima do qual o sistema
auditivo perde linearidade que é dado por
em que fmin é a freqüência correspondente ao limite inferior da altura musical, isto é, um valor
de freqüência abaixo do qual não se distinguem os intervalos melódicos, e amax é a maior amplitude possível no sistema auditivo sob condições de linearidade em fmin.
Se o teorema do equilíbrio (ARCELA, 2008b) for aplicado ao longo de toda a faixa de audição,
então a partir da Equação (5), a amplitude correspondente a uma dada freqüência (f) é tal que
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A unidade de loudness — denominada “lut” — para a escala l definida pela Equação (4) é decorrente da consideração de que um tom de freqüência fmin e amplitude amax tem loudness de
100 luts. Quer dizer, por exemplo, a cinco oitavas de fmin , um tom de 100 luts tem uma amplitude dada por (1/1024) amax.
Uma vez que o espaço QOL é semelhante ao sistema de cores HSV e aos seus análogos,
como, por exemplo, os descritos em Smith (1978), e Jo e Honda (1986), pode-se dispor de uma
aferição de cores para as notas.
Figura 3.
Diagonal
acromática (a) e
velas RGB (b)
3. Interpretação de peças polifônicas
Se o objetivo for a obtenção de uma imagem que absorva o conteúdo inteiro da música, será
preciso mais do que o simples conhecimento sobre a transformação de tons auditivos em cores,
a despeito de toda a importância que as cores têm na representação das notas, mesmo se este
conhecimento estiver completo e formalizado, como se supõe ser a descrição apresentada na
Seção 2. Nesse caso, será preciso ampliar o conhecimento formalizado de modo que se incluam
todas as dimensões da partitura mencionadas na Seção 1. Contudo, os tempos serão sempre as
primeiras grandezas a merecerem o respeito máximo, uma vez que a animação musical mínima
é aquela que procede com o desenho de um objeto e a devida coloração dele ao mesmo tempo
em que a nota correspondente surgir como um evento da partitura sob interpretação.
Se comparado à representação 3D, o desenho musical, que é a denominação utilizada neste
artigo para se referir à visualização da música no espaço 2D, encerra um maior grau de
abstração, talvez por ter de suprir ou substituir a dimensão ausente. Em outras palavras, ao se
considerar o espaço bidimensional para se projetar a música, é preciso verificar de que maneira
suas dimensões mais fundamentais, quais sejam, ritmo, melodia e harmonia, se acomodam nele.
Isso em primeiro lugar.
23
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Figura 4.
Dois compassos
do movimento
Allegro do
concerto em ré
menor BWV 1043.
(BACH, 1730]
Em seguida, para que se possa efetivamente dar materialidade à música, que é uma forma feita
exclusivamente de tempos, outras grandezas precisam ser definidas a partir das dimensões
fundamentais, como é o caso do timbre, que em parte é harmonia, posto que se trata de um
tom complexo, isto é, um agregado de tons puros, diferentes e simultâneos, e em parte é
melodia, uma vez que todo tom complexo encerra uma altura musical (pitch) que lhe é característica (PLOMP, 1967). Há nesse particular uma clara analogia com a percepção visual, considerando-se que a um estímulo visual contendo uma pluralidade de comprimentos de onda, isto
é, um estímulo provocado por uma luz policromática, corresponderá uma única cor percebida
(JUDD; WYSZECKI, 1975; ITTEN, 1970), que é justamente o resultado da mistura de cores. E
assim também toda superposição de tons auditivos puros resultará em um tom procedente da
mistura (ou soma vetorial) dos tons componentes.
Figura 5.
Cena do concerto
em ré menor
(J. S. Bach)
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Uma outra grandeza importante na materialização da forma musical é a dinâmica, ou seja, a
variável que diz respeito à evolução das intensidades (isto é, a potência do estímulo auditivo) na
seqüência de notas executadas. Na sua forma mais simples, a dinâmica consta de um padrão de
intensidades que se associa ao padrão de durações definidor do ritmo. Essa associação exerce
uma enorme influência na percepção da seqüência de alturas musicais e, portanto, tem implicações melódicas que acabarão por influenciar a coloração do desenho.
Figura 6.
Trecho do primeiro
movimento de
Three instances
(I. Sombria)
(ARCELA, 1989).
3.1 A construção do desenho musical
Um nível imediatamente acima da animação mínima é aquele que é capaz de conceder aos
objetos uma espécie de comportamento, que entrará em ação de acordo com o momento
específico da aparição do objeto, como por exemplo uma alteração de posição e uma transformação de aspecto serão funções do instante (isto é, o valor de tempo medido), de tal modo
que possam refletir com isso em qual dos tempos do compasso a nota está ocorrendo, já que
as subdivisões de compasso são identificadas pela audição.
25
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Embora sejam de formato livre, mais especificamente, bailarinas, cavalos, borboletas e colunas
jônicas, os objetos aqui determinados se engajam com as diferentes vozes da partitura como
se fossem instrumentos musicais, sendo a coloração deles próprios feita de acordo com as
equações descritas na Seção 2, sempre no mesmo timing da evolução melódica de cada uma
das vozes.
3.2 Coreografia
A distribuição de posições em que os objetos surgem na área da tela, assim como a seqüência
de poses e, ainda, suas múltiplas escalas de desenho, resulta de grandezas temporais da partitura,
de modo que há uma relação forte entre as divisões do tempo musical e as demarcações da
tela. Dessa forma, o emprego da palavra coreografia aqui neste artigo diz respeito a uma combinação espacial (entre os objetos presentes na tela e suas poses momentâneas) que retrate
certas propridades formais e métricas da partitura, como, por exemplo, o grau de simetria entre
as vozes, as modulações tonais e as demais transformações, que são comuns em peças tonais,
mas também aparecem em partituras provenientes de outros modelos composicionais.
Figura 7.
Cena do primeiro
movimento
(Three instances, 1.
Sombria)
26
As peças descritas a seguir estão disponíveis em Arcela (2008a), e as considerações que se
seguem dizem respeito a essa implementação online.
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3.3 Renderização de um concerto de Bach
O concerto em ré menor de J. S. Bach (BWV 1043) consta de uma peça polifônica a seis vozes
subdividida em três movimentos: 1.Vivace; 2. Largo ma non tanto; e 3. Allegro. Na interpretação
que se encontra em Arcela, (2008a), o primeiro movimento dura um total de 3’52”, o segundo
5’41” e o terceiro 5’01”. Para o primeiro movimento, que tem uma divisão quaternária (4:4),
serão necessárias 16 poses para cada uma das seis vozes, perfazendo um total de 96 desenhos
— o mesmo total necessário para o segundo movimento, que é também quaternário, embora
seja 57% mais lento que o primeiro. Já para o terceiro movimento, que tem divisão ternária
(3:4), conforme se observa nos seus quatro primeiros compassos mostrados na Figura 4, há
um total de três semínimas por compasso. E sendo a semicolcheia a menor duração de nota
que aparece, serão necessárias 12 poses para cada objeto para que se imprima uma sensação
visual de movimento em consonância com a sensação auditiva também de movimento que há
em toda música, mas que é notória neste concerto de Bach. O terceiro movimento é cerca de
8% mais rápido que o primeiro.
Em termos auditivos, o arranjo é feito de instrumentos puramente senoidais, estando as notas
de uma mesma voz em equilíbrio (ARCELA, 2008b).
3.4 Os parâmetros e a renderização da composição Three instances
Composição algorítmica subdividida em três instâncias (movimentos), quais sejam, I. Sombria, II.
Intervalar e III. Complexa, todas resultantes de aplicações do programa Carbon, que se baseia
nas estruturas musicais denominadas árvores de tempos (ARCELA, 1986).
3.4.1 Os parâmetros e a renderização da primeira instância (I. Sombria)
Consta de uma polifonia a 15 vozes, em que as durações das notas são organizadas por uma
hierarquia de tempos e dura um total de 1’55”. A discrepância entre as cores sombrias e as
muito claras refletem os extremos de alturas e de intensidades existentes nesta partitura:
algumas são muito graves enquanto outras estão mais para as regiões agudas.
Figura 8.
Outra cena da
primeira instância (I.
Sombria).
27
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
3.4.2 Os parâmetros da segunda instância (II. Intervalar)
Consta de uma polifonia a 2 vozes, em que os tempos são organizados por uma hierarquia,
conforme a Figura 9. Esta parte dura um total de 1’22” e consta de uma seqüência de dissonâncias e consonâncias intervalares, uma vez que as duas linhas melódicas seguem nota contra
nota do início ao fim da peça com uma perspectiva mais aberta do que a da primeira instância,
como mostra a Figura 10.
Figura 9.
Trecho da partitura da segunda
instância
(II. Intervalar)
Figura 10.
Cena da
segunda
instância
(II. Intervalar)
3.4.3 Os parâmetros da terceira instância (III. Complexa)
28
Como se mostra na Figura 11, esta terceira instância consta de uma polifonia a 12 vozes em
que os tempos e as durações, conforme as duas anteriores, se organizam por uma hierarquia de
tempos. O segmento tem uma duração de 51” e se caracteriza por uma convergência espacial
razoavelmente densa, resultando dessa forma em uma coreografia diferenciada e particular,
conforme a cena mostrada na Figura 12.
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Figura 11.
Trecho da
partitura
da terceira
instância (III.
Complexa)
29
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Figura 12.
Cena da terceira
instância (III.
Complexa)
30
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YOUNG, T. On the theory of light and colours. Philosophical Transactions of the Royal Society
of London, v. 92, p. 12-48, 1802.
31
Expressão&Tecnologia
Expression&Technology
ANALÍVIA CORDEIRO*
Resumo
Panorama das pesquisas da linguagem corporal no campo das novas mídias realizadas pela autora entre 1973-2007.
Palavras-chave: dança, notação de movimento, computer-dance, vídeo, história da arte.
Abstract
Corporal language & midia arts researches overview by the author between 1973-2007.
Keywords: dance; movement notation; computer-dance, video, art history.
Este artigo resume 35 anos de pesquisas que realizei no campo da expressão do movimento
humano & media arts, que tem como ponto central a expressão do corpo humano como organismo completo, quando recebe o mundo da mídia e modifica seu comportamento. Considero
que meu trabalho se divide em quatro fases: computer-dance, escrita dos movimentos, busca da
ciber-harmonia e unsquare dance.
A computer-dance
Minha primeira fase (1973-1976), computer-dance para vídeo (ou TV), iniciou-se com a obra
M3x3, apresentada, juntamente com sua conceituação teórica, no Festival Internacional de
Edimburgo. Foi muito bem recebida, dando incentivo para que eu prosseguisse produzindo
os vídeos 0=45, Cambiantes e Gestos1. Estes, dentro da computer-art da época, foram apresentados em ocasiões frutíferas, como retrata a colega Jeanne Beaman na correspondência
que trocamos na época2: “em geral, os músicos do público compreenderam o que você e eu
estamos fazendo, mas muitos dançarinos sentiram: porque preocupar-se com computadores” 3
(BEAMAN, 1976). A resistência e as críticas eram freqüentes, mas o conteúdo dessas pesquisas
foi sólido e profundo, influenciando fortemente nossa vida atual.
Como aponta Martin Tracy,4 “Uma abordagem interessante seria projetar uma gramática para
dança e permitir cada produção ser gerada por esta gramática… é nesta direção que o computador promete ser um instrumento poderoso para os pesquisadores de dança” (TRACY, 1976, p.1).
32
* Pioneira da videoarte no Brasil e uma das pioneiras mundiais da computer-dance, arquiteta pela FAU-USP, doutora
pela PUC-SP, dançarina e coreógrafa formada por Maria Duschenes (Brasil), Alvin Nikolais e Merce Cunningham (NY).
Para maiores informações, http://www.analivia.com.br
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Esse pensamento, que enfatiza o conhecimento da natureza humana, de seus processos criativos,
por meio da programação do computador, orientou toda a produção artística da época relacionada às novas mídias, neste caso exemplificada pela dança. Foi o fator que permitiu a relação
estreita entre arte e ciências, que constituiu uma das bases das pesquisas em AI5 e direcionou
muitos produtos atuais da indústria de games (como, por exemplo, o console de videogames Wii).
Exponho brevemente a teoria dessa fase para mostrar questões importantes da época, que
hoje já não tem tanta importância, mas conhecê-las amplia a compreensão da direção do
avanço das novas mídias e seu reflexo nas relações humanas. Também sacia a curiosidade de
saber como era a criação artística dos pioneiros, quando não existiam softwares disponíveis,
suportes gráficos ou e-mail. Tudo era primitivo, como todo início. O resumo é feito a partir do
artigo “O coreógrafo programador” 6 (CORDEIRO, 1976).
Falhas da coreografia tradicional: no trabalho com TV, a mensagem recebida pelo espectador é
função da movimentação dos dançarinos enquadrada pela câmera. Esta, pode-se dizer, é o olho
do espectador dinâmico. A relação dança–TV–espectador segue o fluxo:
Figura 1
Nesse processo, a ação do coreógrafo sobre a TV não é direta. Essa comunicação é falha, uma
vez que o diretor de TV interpreta subjetivamente as “intenções” do coreógrafo. As câmeras
atuam sobre os dançarinos sem que estes estejam conscientes dessa ação, a inter-relação
dançarino–câmera não existe. A comunicação coreógrafo–dançarinos se faz por metáforas: a
expressão verbal ou corporal vai induzi-los à movimentação. Mas “palavras não podem expressar
o grau exato de omissão ou perícia individual nos fatores da movimentação” (LABAN, 1974,
p.30). E se dançar, a imitação dos movimentos do coreógrafo limita a expressão individual
do dançarino. Existem, portanto, três fatores de deformação da mensagem nesse processo.
Proponho outra interação na qual câmera–diretor de TV–dançarino atuam em integração e o
computador intermedia essa relação, de acordo com o fluxo do processo criativo:
Figura 2
33
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
A programação do computador pode ser dividida em três etapas:
Na primeira etapa, selecionam-se os componentes da linguagem da dança e da TV. Para a dança
são: deslocamento no espaço, posições do corpo, força muscular, fluência de posições do
corpo e tempo. Para a TV são: ponto de vista, planos de enfoque, efeitos visuais e transição de
câmeras. Na programação, os componentes da dança utilizados são espaço, posições do corpo
e tempo. Os outros elementos não são mensuráveis e, portanto, não programáveis. Da TV são
utilizados todos os elementos.
Na segunda etapa, elabora-se o algoritmo gerador da coreografia, que resulta da estruturação
de um sistema interativo dança–TV baseado na seleção dos componentes e na definição das
relações formais entre eles. Para que esse algoritmo possa simular o processo criativo do
coreógrafo quando não utiliza o computador, o acaso foi introduzido porque as instruções do
programa não conseguem definir claramente a obra de arte resultante. Dá-se, então, um grau
de liberdade probabilística que gera múltiplas possibilidades, e o computador seleciona uma
delas. Na criação artística tradicional, essas indefinições são preenchidas intuitivamente. Um
exemplo da sub-rotina Tomadas de Câmera em “M3x3”, é ilustrado na figura 3 (ao lado).
Terceira etapa: a programação e o output. Após traduzir o algoritmo para linguagem Fortran IV, o
output é um script para interpretação de todos os participantes. Um exemplo: os dançarinos recebem,
Figura 4:
E o câmera e o diretor de TV recebem,
O cenógrafo tem a descrição técnica do vestuário e do cenário.
34
Interpretação e execução: a interpretação do script produz o objeto estético. Esse processo criativo é chamado computer assisted art (FRANKE, 1971, p. 57) ou computer aided art. Quando os
intérpretes executam os elementos dados, aqueles indeterminados são preenchidos pela criação
do intérprete.Ao dançarino são dados: tempo, posição do corpo de acordo com o ponto de vista
da câmera, deslocamento no espaço; e são indeterminados: força muscular, fluência e a ligação
entre as posições. A força muscular, a meu ver, caracteriza a individualidade, “é a capacidade de
produzir novas posições, encontros e percussões, possibilitando uma nova experiência tátil no
interior do corpo e na sua relação com o exterior” (LABAN, 1966, p. 93). Na figura 5 um exemplo
de interpretação de uma posição do corpo desenhada de acordo com o ponto de vista da câmera
de cima. Essa posição pode ser “dançada” de maneiras diferentes, dando o mesmo resultado visual
desenhado pelo computador (imagine você mesmo essas três posições vistas de cima).
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Figura 3:
O coreógrafo
programador
35
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Figura 5:
Possibilidades de
posições para se
obter a posição
determinada
Nos ensaios, os intérpretes criticam os elementos não interpretáveis sugerindo soluções.
Neste processo de criação, a programação e sua verificação real dinamizam o importante
binômio planejamento-aplicação prática.
Quando todos os participantes executam suas partes simultaneamente, o resultado programado é transmitido pela TV. Poucos espectadores de TV podem manifestar sua opinião.7 Como
o coreógrafo e os intérpretes também são espectadores, o que mais ocorre é a autocrítica.
“O ciclo da comunicação social na arte: o processo de realimentação da arte incorpora, na
fase de produção, um processo circular no qual o artista, deixando seu trabalho agir sobre si,
sucessivamente o aperfeiçoa, em termos de tentativa e erro” (FRANKE, 1971, p.57)
Vantagens deste processo coreográfico:
Com o output do computador, o coreógrafo não se comunica metaforicamente.
O coreógrafo comunica objetivamente as possibilidades de movimento no espaço–tempo,
fornecendo graficamente os componentes sintáticos do movimento.
O objetivo é programar os aspectos visuais do movimento. Para a TV, a câmera é o olho do
espectador.
A relação interpretação - programação pressupõe tanto elementos determinados quanto indeterminados. Não se pretende realizar um desenho animado com dançarinos reais. Na programação, o uso do acaso define relações criativas ainda desconhecidas ou não-programáveis.
Os intérpretes são conscientes de suas atuações, isto é, o câmera sabe como enfocar o
dançarino, e este sabe como é enquadrado pela câmera.
Este processo não é modelo único de dança para TV. Seu valor está no estudo das relações
dança–TV, que possibilita seu uso em diferentes estilos de criação/produção.
Em termos operacionais, seria frutífero usar este processo com uma equipe composta por
coreógrafo, diretor de TV, analista de sistemas, isto é, especialistas em dança, TV e computação.
A notação dos movimentos do corpo humano
Minha segunda fase de trabalho (1981-1994) foi a elaboração de uma notação dos movimentos
do corpo humano chamada Nota-Anna.8 Sua característica marcante é visualizar o rastro ou
trajetória espaço–temporal do movimento, mostrando a essência de sua expressão (fig. 6).
36
Esta idéia surgiu com base na avaliação da relação entre a interpretação do dançarino e o output
do computador na fase anterior. Percebi que os “bonequinhos” desenhados pelo computador
não atraíam os dançarinos e conduziam a uma movimentação com fluência interrompida. Pesquisando sobre trajetórias, descobri que essa visão do movimento não é nova: os gregos da Antiguidade definiam a dança como o desenhar no espaço. Laban dizia: “A nossa consciência da trajetória que traçamos pode tornar-se mais clara quando executamos os movimentos ou passos
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Figura 6:
Pulo com duração
de 1/3 seg. (17) e
passo (18) de dança
iemanita.
de olhos fechados, nos concentrando no fluxo formal da linha” 9 (LABAN, 1966, p. 85). Para os
gregos ou Laban, a trajetória era abstrata, mas com a nova tecnologia ela tornou-se visível.
Ao escrever a trajetória, Nota-Anna abre um novo universo ao movimento, similar àquele da
música, pois “o homem foi capaz de explorar o potencial da música somente quando começou
a escrever pautas musicais.” (HALL, 196, p. 13), como pode ocorrer com a dança.
A conquista da trajetória escrita oferece um enorme potencial. A trajetória é um registro não
antropomórfico do movimento, isto é, independe da aparência física do corpo (cabelo, roupa,
etc.) da pessoa que se move. A trajetória é isomorfa ao movimento real, mostrando-o puro.
Por isso é fácil ler, não requer estudo especializado.
Nota-Anna, baseada na trajetória, satisfaz os requisitos de uma boa notação: registra o movimento espaço-temporal de todas as partes do corpo; é econômica, legível e de fácil decodificação; possibilita criações e inovações coreográficas. Também pode induzir à expressividade
do intérprete, pois o movimento da dança comunica pela intenção gestual e pela sutileza
interpretativa, presentes nesta notação. Sua leitura é personalizada: as dimensões da stick-figure
e da trajetória podem ser redimensionadas nas medidas do corpo do usuário.
Tecnicamente, ela descreve os elementos do movimento: partes do corpo são o número de
trajetórias; desenho espacial é a linha em si; tempo é o comprimento da linha; e fluência é a
relação do desenho com a força de gravidade.
Seu uso prático segue as etapas: captura da imagem de input, digitalização/ tridimensionalização
do corpo e leitura da notação. As duas primeiras etapas estão no site http://www.notaanna.
com.br e no software livre http://notaanna.sourceforge.net .
Nota-Anna pode ser vista com multimídia10 no computador ou telão, com óculos de realidade
virtual11 ou dispositivos de telepresença12 em ambientes de realidade artificial13. No futuro
37
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
“imaginemos uma pessoa comprando uma interface cérebro-direta, baseada na nanotecnologia.... com a nanotecnologia o usuário aprenderá a vantagem de acumular um novo tipo
de percepção, um novo modo de raciocínio, uma nova maneira de pensar, comportar-se e
imaginar – aquilo que ainda não conseguimos imaginar hoje” (MINSKY, 1991, p. 143)
Avaliando vantagens e desvantagens da Nota-Anna, detectam-se duas desvantagens: o longo
tempo de input das imagens (3 min cada); e a câmera de vídeo fixa, que impede uso de imagens
com movimentos de câmera. Enumeramos 12 vantagens:
o custo baixo dos recursos de input;
a captura em VT, mantendo o corpo livre;xiv
o uso de uma câmera permite estudar filmes/vídeos antigos, possibilitando organizar uma
história da dança;
o desenho das articulações com os pontos de leveza e gravidade do corpo;xv
utiliza pouca memória;
tridimensionalização com dados de uma só câmera, caracterizando a simplicidade do
sistema;
porta o soft para máquinas populares e baratas como PCs, ampliando seu uso;
permite leitura imediata do movimento, sem necessidade de estudo prévio;
possibilita o conhecimento intuitivo e/ou sistemático da sintaxe dos elementos da linguagem
dos movimentos, útil para vários estudos;
custo baixo;
toca a poesia do movimento, “o que é dado aos olhos é a intenção da alma” (ARISTÓTELES
em May, 1992, p. 220),
última: é um instrumento de criação/aprendizagem aberto à capacidade imaginativa do
usuário, expressa com maestria por Fernando Pessoa (1972, p. 239):
O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco
qualidades ou condições sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto
para eles.
A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando,
e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete de sentir simpatia pelo símbolo que se
propõe a interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete
da primeira condição para poder interpretar.
A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por
intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do
símbolo, sem que se veja.
A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo:
tem, porém, de fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi que a condição da
erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que esta de acordo
com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isso se a simpatia não tiver lembrado esta
relação, se a intuição não a tiver estabelecido. Então, a inteligência, de discursiva que naturalmente é, tornar-se-á analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.
38
A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias
que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários símbolos,
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pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição
é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida.Assim,
certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o
entendimento de símbolos diferentes.
A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça falando a outros, que é a
mão do Superior Incógnito falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do
Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como
as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.
Seus usos incluem a fisioterapia, a reconstituição de danças históricas e o estudo antropológico do gesticular em várias culturas; os esportes, a criação coreográfica.
Reforço que Nota-Anna torna a aquisição do conhecimento fácil, mas não superficial, porque
atinge a plena capacidade física, mental e emocional, levando a pessoa a dançar com plenitude,
fazendo-a compreender que o sentir e o fazer caminham juntos. A expressão do movimento
não é exclusivamente racional: exige sentimento e instinto, e, às vezes, uma atitude de não
pensar. Uma fábula ilustra bem esse processo: uma barata pediu para a centopéia explicar
como conseguia mover suas cem patas com tanta elegância, facilidade e coordenação. A partir
desse instante a centopéia nunca mais foi capaz de andar.
Observo que a história caminhou na direção da escrita-trajetória do movimento, quando
estão disponíveis no mercado muitos softwares de captura de movimento, cujos resultados são
usados em animação e na confecção de games.
Busca da ciber-harmonia: duCorpo
A terceira fase de meu trabalho (2001-2004) propõe um diálogo entre a consciência corporal
e os meios eletrônicos16 formatado como uma prática corporal completa utilizando novas
mídias, cujos resultados estão disponíveis on-line.
Partindo da experiência prática e de uma reflexão sobre a influência dos meios eletrônicos em
todos os aspectos da vida das pessoas, esta proposta surgiu como uma necessidade. “Pensando
sobre nosso futuro polarizamos nossa atenção sobre invenções e descobertas que serão realizadas. Isso, no entanto, pode ser limitado. Precisamos ter uma visão mais ampla que posicione
futuras descobertas dentro dos tesouros que nos foram deixados por experiências, posses e
idéias passadas.” (ARNHEIM, 2000, p. 168)
Hoje, milhões de pessoas são afetadas pelo uso contínuo de instrumentos eletrônicos que
impregnam as relações humanas. A internet penetrou no trabalho e na vida pessoal como
namorar, criar projetos, fazer compras, conversar com amigos, expressar opiniões ou sentimentos.As pessoas “consideram acesso à informação e expressão de opinião um direito fundamental” (TAPSCOTT, 1998, p. 70). As pessoas desta geração vêem o indivíduo como pessoa
única e singular. “N-Geners17 vão causar uma profunda reformulação nas atitudes empresariais
relativas às questões humanas, intensificando o atual debate sobre o tratamento das pessoas
como capital” (TAPSCOTT, 1998, p. 215).
Analisando a relação corporal usuário–aparatos da nova tecnologia, isto é, a relação
corporal homem–máquina, ainda se seguem os padrões tradicionais em que o valor do
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VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
indivíduo como pessoa única e singular nunca foi primordial para o trabalho produtivo. Na
história, os inventores construíram máquinas e instrumentos incrementando a performance
do corpo humano em ações de intervenção na natureza e na sociedade. Esses instrumentos
e máquinas ditaram-lhe comportamentos físicos e obrigações emocionais, moldando-o, a
duras penas, ao longo de sua vida. Esses comportamentos, transformados em hábitos diários,
nunca foram objeto de conscientização de muitas pessoas, exceto quando provocaram dor18
ou morte.
Cientificamente, o corpo é uma estrutura óssea coberta de pele contendo vários tecidos,19
cujas características funcionais e emocionais se alteram, dentre outros fatores, com seu uso
diário. Precisamente: os tecidos do corpo são feitos para resistir a esforços mecânicos de
dobrar, torcer, rasgar, comprimir; mas seu uso pode modificar profundamente sua estrutura
e habilidade se forem solicitados, em excesso, por esforços repetitivos. Isso acontece com os
aparatos da nova mídia quando se fica horas jogando, pesquisando, namorando ou trabalhando
na frente do computador, usando intensamente os olhos e as mãos. O resto do corpo fica
“de qualquer jeito”,20 considerando-se que a imobilidade limita o corpo e compromete seu
desenvolvimento em todos os níveis de existência.21
Vários estudiosos pesquisam sobre este assunto, revelando: “Às vezes, a raiz de um problema
não é um acontecimento traumático, mas a acumulação de situações estressantes. Isso acontece geralmente em grandes centros urbanos, e conduz à doenças somáticas, problemas
de memórias ou descontinuidade de performance social.” (SHAPIRO, 2001, p. 383) “Na
fadiga mental, a capacidade de atenção é alterada. Na fadiga emocional, ocorre uma quebra
de ritmo nas respostas do organismo e uma alteração brusca no tônus da musculatura,
podendo contribuir para estados de depressão ou de excessiva excitabilidade” (TODD,
1975, p. 263). Concluo: os instrumentos tecnológicos atuais não respeitam a sensibilidade,
a estrutura fisiológica, anatômica e neurológica do corpo nem a história pessoal e única de
cada usuário.
Se os pesquisadores atuais considerassem as conseqüências de suas novas invenções, centrandose em respeitar o bom funcionamento biológico do corpo humano em detrimento de acrobacias tecnológicas ou sucesso comercial em curto prazo, deixaríamos de tratar nosso corpo
como uma máquina primária. Agiríamos com atitudes expressivas e conscientes, no trabalho
ou diversão com novos instrumentos tecnológicos. Seríamos respeitados como indivíduos
complexos, e teríamos hábitos favoráveis a nós mesmos.
Neste panorama, duCorpo propõe uma forma de equilibrar o dia-a-dia, integrando o uso da
tecnologia com procedimentos de introspecção. Acredito que quem conhece, mesmo superficialmente, práticas de meditação e convive intimamente com videogames, computadores, etc.
não tem dificuldade em unir essas duas atividades, sob orientação correta.22
Esse comportamento pode ser uma variável nova na história do autoconhecimento, pois, além da
proposta renovadora e muito útil, tem uma base sólida: quatro sistemas de consciência corporal
– métodos Laban e Feldenkrais, Eutonia e Endobiofilia – e Nota-Anna. duCorpo visa a:
40
combater a imobilidade do corpo;
proporcionar lazer, atuação lúdica, livre e leve, de alegria e prazer, com o aparato eletrônico,
abandonando a atitude de conquista obstinada para assumir uma atitude de prazer e autoconfiança, deixando fluir, com simplicidade, nossos desejos, necessidades e curiosidades. A atitude
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de conquista obstinada e/ou violência é conteúdo de muitos produtos da nova tecnologia,
de trabalho ou diversão, sendo uma tônica na atitude social de muitos consumidores desses
produtos, em qualquer faixa etária;
definir a estética, popularizando técnicas corporais, restritas a um público de alto poder
aquisitivo;23
saúde e exercício físico orientado para promover a elasticidade e o tônus equilibrado do
corpo.
Ressalto: duCorpo tem objetivos que tocam o futuro de nossa sociedade. É uma prática corporal
educativa e construtiva. duCorpo pretende contribuir para um corpo físico/emocional/mental
equilibrado, com práticas de relaxamento, elasticidade, tonificação muscular e diversão, ministradas por instruções audiovisuais via eletrônica.
Para sintetizar, um ditado chinês:
Eu ouço e esqueço.
Eu vejo e me lembro.
Eu faço e compreendo.
Esta proposta, complexa e profunda, tem como base a simplicidade e a restauração do movimento funcional e harmônico do corpo. duCorpo propõe práticas corporais para pessoas de
qualquer cultura, sexo ou idade. Sugiro que você experimente24 e, se tiver dúvidas, resolva com
a prática cinética do corpo. Não aconselho grandes acrobacias mentais, pois este assunto não
pertence ao universo exclusivamente racional.
O caminho que trilhei conduziu à democratização do conhecimento, longe das preocupações
puramente acadêmicas.25 Pretendi contribuir, na medida do possível, com as necessidades do
homem hoje. Limitações existem, pois como diz Bachelard (1994, p. 91), “quanto a psicologia
avançaria se pudéssemos conhecer a psicologia de cada músculo! E quanto de ser animal existe
no ser humano! Mas a nossa pesquisa não vai tão longe”.
Unsquare dance
Meu último trabalho retoma a trajetória, dando a ela vida e textura. Mais uma vez, as pesquisas
tentam atingir a riqueza do movimento humano natural. Em co-autoria com Luiz Velho, produzimos um exemplo de uso do software X-Motion e Choreographisms, que deve ser visto no site
http://www.visgraf.impa.br/unsquare-dance
Neste endereço estão todas as informações em movimento para que se aprecie a dança em si,
além do conteúdo teórico desta pesquisa de última geração.
Finalizo de uma maneira muito pessoal:
vou movimentar meu corpo um pouquinho,
diferente a cada dia que
sentir vontade;
para aquecer meu espírito,
para regar minhas idéias,
para alimentar meus sentimentos,
para adubar minha pessoa.
41
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
tornar o dia-a-dia mais significativo
viver e curtir os minutos do dia
de cada dia
de cada semana
de cada mês
de cada ano
isso mesmo, anos
anos podem se passar sem significado;
números e atos vazios
difíceis de lembrar
porque não marcaram
um passado fluido
sem espessura ou volume algum
movimentar para buscar no dia-a-dia
o sentimento
as idéias
o espírito
minha pessoa.
Notas
42
1. Para ver estes vídeos acesse o site http://www.analivia.com.br
2. Comentário sobre os trabalhos que apresentei no Dance Guild Conference, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), em 1976.
3. “in general musicians in attendance understood what you and I are doing but many dancers felt “why
bother with a computer”. Tradução nossa.
4. “An interesting approach would be to design a grammar for a dance form and let each production
be generated from this grammar…in its direction such as these that the computer promises to be a
powerful new tool for dance researches” . Tradução nossa.
5. Inteligência Artificial.
6. Para ler o artigo na íntegra consultar http://www.analivia.com.br em obras/escritos.
7. Nesta época não existia e-mail…
8. O texto sobre Nota-Anna é um resumo da tese de mestrado publicada no livro/DVD: Nota-Anna – a escrita
eletrônica dos movimentos do corpo humano baseada no Método Laban, Editora Annablume, SP, 1994. O
software é de autoria de Nilton Lobo.
9. “Our awareness of space-form actually being shaped can become more clear when we execute the
movement and steps with the eyes closed, concentrating on the formal flow of the line.” Tradução nossa.
10. Multimídia era diapositivos com fundo sonoro. Atualmente é um sistema interativo de comunicação
baseado no computador para criar, armazenar, transmitir, recuperar redes de informação em gráficos,
textos ou sons e rearranjar a informação. Brevemente será modificada, pois os equipamentos já reconhecem voz e são acionados por telas tácteis.
11. O dispositivo da realidade virtual combina um capacete, uma luva e um mouse ou joystick. O capacete
detecta o movimento da cabeça.A luva registra os movimentos das mãos.Todos os sensores em conjunto
detectam a posição do observador e transmitem a informação para o computador. O computador calcula
o mundo artificial do ângulo que o observador está olhando e desenha-o em três dimensões, como se
o observador estivesse dentro dele. Esta tecnologia ativa a imaginação, com vivências que transcendem
o cotidiano. O uso do capacete e o deslocamento virtual do aluno por espaços imaginários na tela induz
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em o corpo a fazer movimentos com a coluna vertebral e com os membros em todas as direções do
espaço. Esses movimentos usam os músculos interespinais e intervertebrais, grandes responsáveis pela
movimentação correta da espinha vertebral e pela boa manutenção de seus espaços articulares. Este tipo
de movimentação estimula a flexibilidade e a mobilidade do usuário, o que é saudável.
12. Telepresença, tecnologia criada pelos engenheiros da NASA, é um sistema no qual o usuário usa um
óculos conectado ao computador que mostra o ambiente que ele vai explorar. O corpo do usuário está
no centro de gravidade e é dele e para ele que tudo acontece. Todas as suas percepções atuam: visão,
percepção sonora, toque e sensações musculares. Assim: “A visão não é mais um ato de pensamento,
mas torna-se um ato de decisão intelectual voluntária... A telepresença não é um transporte de imagens,
mas a imersão corporal, a aparição de um meio de experiência física e mental” (Weissberg, 1991, p. 171).
Enquanto o “Real Time” é a resposta imediata à comunicação emissor-receptor, a telepresença e o “Real
Space” são a resposta imediata ao deslocamento do emissor no ambiente dentro do computador.
13. Realidade artificial: termo inventado por Myron Krueger, em 1973, para descrever ambientes controlados por computador, com abordagem estética na interface homem/máquina.“A realidade artificial percebe
a ação do participante em termos da relação do seu corpo com o ambiente gráfico, gerando respostas que
mantém a ilusão de que suas ações ocorrem dentro desse espaço não real. Assim, criam-se novas formas
de juntar as pessoas, mesmo que estejam fisicamente distantes. A realidade artificial é um conceito que
engloba a realidade virtual. Um dos objetivos da realidade artificial é permitir às pessoas interagirem com
a tecnologia livremente, com seu corpo todo. A primeira experiência nesse sentido foi feita em 1971 na
exibição “Psychic Space” na University of Winconsin’s Memorial Union Gallery, onde as pessoas andavam
num compartimento cujo chão continha centenas de sensores para pressão. Estes possibilitavam vários
tipos de interação, tanto visual quanto sonora, sempre através do chão. ( Krueger, 1992, p. 120).
14. A pessoa com adesivos ou fios no corpo perde a espontaneidade.
15. Articulações menores como mãos e pés não foram incluídas, mas podem ser acrescentadas, sem
prejuízo para o software.
16. Tese de doutorado sob orientação do prof. dr. Arlindo Machado, PUC-SP, 2004. Esta pesquisa inclui
exercícios práticos presentes em http://www.ducorpo.com
17. N-Geners ou Net Generation, “refere-se à geração de crianças que, em 1999, vão de 2 a 22 anos, e
não somente àqueles que estão ativos na Internet” (TAPSCOTT, 1998, p. 3).
18. Atualmente, usamos as mãos e/ou focamos os olhos em algo por longos períodos. Para cada um, as
conseqüências desses hábitos diferem. A medicina aponta síndromes e doenças para cada comportamento. Cito a síndrome do carpo, que atinge muitos digitadores de computador.
19. O corpo é composto de tecidos e substâncias com vários graus de densidade e fluidez: da água ao osso sólido.
20. Ouvem-se queixas de dores fortes na cervical e na lombar por parte de adolescentes e adultos.
21. Nessa situação, pontuo uma diferença entre conhecimento e informação: “Informação é a tradução
abstrata de um evento. Conhecimento é experiência, regozijo, significa tocar no ´corpo´ da coisa. Para se
conhecer, é preciso tempo, é preciso ter vivido, não basta se expor ao fluxo de informação” (BERALDI,
2000, p. 11). Concordo, após ensinar por vinte anos a arte do movimento: a criança ou adolescente que
não experiência a realidade com o movimento do seu corpo não descobre suas potencialidades individuais
para tornar sua vida rica em possibilidades mentais, motoras e emocionais. Como diz Wallon (1995, p. 120):
“A alegria nasce com a possibilidade de movimentos”.
22. “N-Geners tem um grande interesse pela imagem corporal e também pela saúde” (TAPSCOTT, 1998, p. 204).
23. Atualmente, a supervalorização do corpo requer atenções e investimentos. Vê-se um dualismo entre
uma vida com hábitos inadequados (sedentarismo, estresse, fumo, alimentação desequilibrada) associados
a inovações tecnológicas (que induzem à inatividade física) e a necessidade de construir um corpo que
possa ser exibido, mesmo que moldado por práticas artificiais, com lipoaspiração ou operações plásticas.
24. http://www.ducorpo.com
25. Apesar de não ter trilhado a carreira acadêmica, agradeço muito a todos aqueles que me apoiaram,
pessoas e instituições do meio acadêmico.
43
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
44
Referências
AIRES, M. de M. Fisiologia básica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1980.
ALEXANDER, G. Eutonia. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
ARNHEIM, R. Arte y percepción visual. Buenos Aires: Eudeba, 1971.
ARNHEIM, R. Editorial, Leonardo-Journal of the International Society for the Arts, Sciences and
Technology, v. 33, n.3, 2000.
BACHELARD, G. The poetics of space. Boston: Beacon Press, 1994.
BATESON, G. Mind and nature: a necessary unit. Londres: Fontana Paperbacks, 1979.
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Programa de Pós-graduação em Arte | IdA - UnB
Objetos híbridos
Hybrid objects
CARLOS PRAUDE *
Resumo
O texto descreve os principais conceitos e procedimentos envolvidos na criação de objetos para uma instalação
interativa composta de híbridos de ciência, arte e tecnologia. A instalação captura os sinais de sons, imagens e movimentos do ator traduzindo-os em desenhos vetoriais constituídos de coordenadas geográficas na forma de latitude
e longitude. As informações espaciais produzidas podem ser manipuladas por algoritmos de Sistemas de Informações
Geográficas (SIG), permitindo a manipulação e apresentação de formas diferenciadas por meio de sistemas de projeções geográficas.
Palabras clave: arte computacional, instalação interativa, híbridos de arte ciência e tecnologia.
Abstract
The text describes the most important concepts and procedures used in the creation of an interactive installation for hybrids of
art, science and technology. The installation captures the actor’s sounds, images and gestures and converts them into scalable
vector graphics drawings structured as geographic information with latitude and longitude coordinates. The resulting spatial
information is processed by GIS algorithms, allowing the projections of different space abstractions.
Keywords: software art, interactive installation, hybrids of art science and technology.
“Híbridos” é um sistema para instalação interativa constituído por três programas principais. O
primeiro, denominado “Quadro sonoro”, foi desenvolvido utilizando a tecnologia de Sistemas
de Informações Geográficas1 (SIG), conforme podemos ver na Figura 1, e permite a criação e
a manipulação de imagens com a possibilidade de apresentação de abstrações sistematizadas
por meio de sistemas de projeções geográficas.2
Um segundo programa simula as funcionalidades de um osciloscópio3 e permite a criação
de desenhos a partir de sons do ambiente. A utilização de microfones configurados na instalação permite que a voz ou os sons produzidos pelo ator4 sejam transformados em desenhos
vetoriais.5 O terceiro programa permite a captura de imagens digitais do espaço cênico6 ou a
incorporação de imagens raster7 existentes e disponíveis. Um fluxo de processos computacionais é executado, decodificando as cores principais dos bits em um conjunto de vértices. Cada
vértice, da nova imagem resultante, é transformado em um par de coordenadas8 geográficas,
ou seja, latitude e longitude. A Figura 2 ilustra um desenho vetorial criado por meio do processamento de uma imagem digital de uma pintura de Klint.
* Artista multimídia e pesquisador fez o curso de pós-graduação em qualidade no desenvolvimento de software e
graduação em tecnologia em processamento de dados. Pesquisa e desenvolve trabalhos nas artes visuais desde 2001.
Em 2007 foi contemplado com o 7º Prêmio Sergio Motta de Arte e Tecnologia e com o prêmio Itaú Rumos Cibernética (2006).Vive e trabalha em Brasília. E-mail: [email protected] - URL: http://www.carlospraude.com
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A Figura 3 ilustra como os mesmos dados podem produzir uma imagem diferenciada se
submetidos a um outro sistema de projeção geográfica.
Segundo Flusser, “a cultura ocidental como um todo pode ser considerada uma tentativa
progressiva de explicar” as imagens. A escrita linear permite que os pixels sejam “retirados da
tela para serem ordenados numa seqüência de pictogramas” submetendo as imagens bidimensionais “a uma crítica que enumera, que conta” (2007, p. 167).
As informações que constituem as imagens vetoriais são armazenadas em um banco de dados
espacial permitindo sua distribuição e manipulação por meio de procedimentos de simulações
e transformações espaciais no “Quadro sonoro”.
Por meio da apropriação e da combinação de textos híbridos, escritos em linguagem de programação, que são referentes às ciências cartográficas, às tecnologias SIG somadas à computação
gráfica e sônica, o sistema permite a transformação de uma coisa em outra, de um tipo de
dado em outro. Permite a transformação de um som, uma fala, um movimento, um gesto ou
uma fotografia em um desenho; a transformação dos números que representam a cor de um
elemento do desenho em um som. Literalmente, o termo (in + formação) corresponde ao
processo de dar forma a algo (CARDOSO in FLUSSER, 2007, p. 12). São textos que lidam com
a “codificação digital que permite que qualquer tipo de dado em qualquer formato seja traduzido para uma mesma linguagem” (SANTAELLA, 2003, p. 147).
As transformações, na visão de Flusser, se consideradas uma história da fabricação, podem ser
ordenadas em quatro movimentos – apropriação, conversão, aplicação e utilização –realizados
pelas mãos, pelas ferramentas, pelas máquinas e, por fim, pelos artefatos eletrônicos que ocorrem
em um aspecto evolutivo. Nesse contexto, as informações herdadas são ampliadas diante das
informações culturais adquiridas e estão relacionadas com a história da humanidade (2007, p.
36-37). Para o autor, as informações são “não coisas”, são imateriais e inapreensíveis e o nosso
interesse existencial desloca-se das coisas para as informações. O novo homem não lida mais
com as coisas, não é mais uma pessoa de ações concretas, mas um performer, quer vivenciar. “Por
não estar interessado nas coisas, ele não tem problemas”, tem programas (idem, p. 54-58).
Figura 1.
Exemplo de imagem
processada por
sistema de projeção
geográfica
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Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Processos de hibridação têm sido um assunto de relevante interesse na cultura digital e na
reflexão sobre arte e tecnologia (RIBEIRO, 2006, p. 32). Como assinala Santaella, atualmente
presenciamos uma revolução digital em que todo tipo de informação, som, imagem, texto, é
tratado com a mesma linguagem universal (2003, p. 70-71). Atualmente podemos observar a
integração de todas as artes e seus híbridos. Linguagens e meios que se misturam resultam
em uma sintaxe integrada capaz de instaurar novas ordens de sensibilidade (idem, p. 135-136).
Observamos ainda a hibridação entre “o universo simbólico dos modelos, feito de linguagem
e de números” e das técnicas, do “pensamento tecnocientífico” e do “pensamento criador,
cujo imaginário nutre-se num universo simbólico da natureza diversa, que os modelos nunca
poderão anexar”. (apud: PARENTE, 1993, p. 46-47).
Como destaca Juliana Monachesi, o termo hibridação vem sendo comumente utilizado para
descrever “qualquer tipo de mistura ou combinação”. Fazendo uma distinção conceitual,“hibridação” não é sinônimo de mistura ou composição de linguagens. Para descrever as funcionalidades deste trabalho, o processo de hibridação aproxima-se do termo “reconversão” de
um patrimônio configurando “novas condições de produção e mercado”, conforme proposto
por Canclini (RIBEIRO, 2006, p. 32). Na visão da autora, esse conceito relaciona-se com o de
“remediação”, desenvolvido por Bolter e Grusin,9 que é caracterizado pela capacidade das
novas mídias de herdar propriedades e características das mídias que a precederam ao mesmo
tempo em que chegam a forçar que essas mesmas mídias sejam remodeladas (idem, p. 34).
Figura 2.
Desenho vetorial em
projeção geodésica
Figura 3. (pag. 44)
Desenho vetorial em
projeção geográfica
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Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Correlacionando este pensamento com as práticas utilizadas na tecnologia da informação,
visando à análise das funcionalidades do sistema “Híbridos”, torna-se devidamente apropriada
a utilização do termo “reconversão” de um objeto em outro.
Na visão filosófica de Baudrillard, o objeto10 está relacionado com o conceito de funcionalidade.
O termo sugere que o objeto se “realiza na sua exata relação com o mundo real e com as
necessidades do homem”. O objeto adapta-se a uma ordem ou a um sistema (1973, p. 69-70).
A tecnologia apresenta-nos uma história rigorosa dos objetos, na qual as incompatibilidades
funcionais são resolvidas em estruturas mais amplas. A evolução contínua dos sistemas e a
síntese de funções fazem surgir um sentido objetivo, como uma linguagem comum, denominado tecnema. Assim, torna-se possível uma tecnologia que analise a organização concreta
desses elementos técnicos simples em objetos mais complexos, sua sintaxe e sentidos entre
os diversos objetos e conjuntos (idem, p. 12-13).
Para Flusser, a partir da escrita linear, o mundo dos objetos é entendido como um feixe de
processos no qual as regras são bem definidas permitindo o seu tratamento de forma técnica
e metódica (FLUSSER, 2007, p. 168).
O artista plástico Willys de Castro, em seu texto Objeto ativo, publicado em 1960, diz que os
requisitos técnicos de execução da idéia garantem o estado artístico da obra, impedindo seu
retorno à condição de matéria. Na visão do autor, o esforço principal encontra-se em buscar o
ponto onde as propriedades do objeto matéria e do objeto arte entram em concerto. A nova
obra de arte é potencializada quando o suporte de suas idéias entra no conjunto da obra como
parte dela. Ao se realizar no espaço, ela estabelece novas relações e concordâncias e coleta de
si mesma os dados necessários para se comunicar por meio de novas revelações. De forma
diferente das obras convencionais, contendo eventos dentro do seu próprio tempo – iniciados,
transcorridos e reiniciados –, o objeto inaugura-se como um instrumento emissor de formas
“auto-expressivas” significantes capaz de contar a si próprio (CONDURU, 2005, p. 154). O
texto, ao descrever o comportamento do objeto, suas propriedades, coleta de dados, realização
e eventos, tangencia, de certa forma, os conceitos da programação orientada ao objeto.
Na abordagem da engenharia de software, o objeto é a descrição das funcionalidades e das
propriedades de qualquer coisa existente no mundo que possua características e comportamentos. O enfoque orientado a objetos é uma abstração na qual podemos modelar o mundo
de um modo que nos permite compreendê-lo da melhor forma (PRESSMAN, 2002, p. 532).
O objeto, na tecnologia conhecida como programação orientada ao objeto, é composto pelas
suas propriedades e funções que o manipulam. Organizando os objetos em classes distintas,
a programação orientada ao objeto está fundamentada em uma série de conceitos e técnicas
como abstração, herança e polimorfismo que podem, em uma visão mais técnica, ser relacionados com os conceitos de hibridação citados neste texto.
Os programas, citados anteriormente, que compõem o sistema “Híbridos” foram escritos em
linguagem de programação orientada ao objeto aplicando técnicas de reutilização de objetos
ou algoritmos existentes e disponíveis na forma de texto ou código-fonte. As “colagens” de
cada objeto inserido no sistema são aplicadas por meio de novos textos, escritos em linguagem
de programação. Como destaca Parente, a linguagem, o inteligível, impôs o dado a ser representado pela imagem como objeto. “É a linguagem que faz da imagem um objeto” (1993, p. 29).
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Este texto tem o objetivo de descrever, de forma simples, as principais funcionalidades dos
objetos especificados no sistema e apontar possibilidades de futuras “reconversões” e “remediações” que surgem durante as apresentações do sistema ao público.
O corpo no espaço
Durante uma apresentação do sistema “Híbridos” no Upgrade São Paulo!11 em maio de 2008,
a atriz Rita de Almeida Castro realizou uma performance12 que elaborou desenhos vetoriais
enquanto se deslocava em um pequeno espaço cênico configurado para o evento. Os sistemas
de interpretação e de representação dos espaços são invenções da mente humana. Diferentes
concepções de tempo e espaço são criadas por meio de práticas e processos materiais que
servem à reprodução da vida social. Lidamos com diversas concepções de espaço e tempo.
(HARVEY, 1993, p. 187-269).
Durante a performance, a atriz deslocava-se no espaço portando um transmissor de sinais
eletrônicos para um receptor conectado ao sistema. Os dispositivos eletrônicos utilizados
no evento impunham uma restrição espacial de aproximadamente dois metros quadrados. Ao
iniciar a performance, o ator pode definir, no sistema, a criação de um novo desenho. O desenho
herda as coordenadas geográficas que proporcionam a representação do mundo. Diante das
limitações técnicas dos equipamentos utilizados até o presente, o espaço de performance é
semelhante às dimensões de um tatame. Assim o “tatame” assume uma representação espacial
do tamanho do mundo. O deslocamento do corpo do ator no espaço cênico permite a elaboração de desenhos como se ele estivesse medindo a terra ao compor formas geométricas.13 A
utilização da tecnologia na performance traz uma variação, uma renovação, na relação binária da
emissão e da recepção exercida pelo ator e pelo espectador no espaço (COHEN, 1989, p. 120).
O sistema também assume a condição de receptor e emissor. O ator, portando um objeto,
assume a função de emissor enquanto o programa assume o papel de receptor. O programa
recebe os sinais e calcula o posicionamento do objeto em um espaço cartesiano e em seguida
emite as imagens produzidas pela definição dos pontos identificados.
Desenvolvido em 1635 por Descartes, o plano cartesiano possui dois eixos perpendiculares
entre si. A localização de um ponto no plano é definida pelos valores do par de coordenadas abscissa, no eixo horizontal (x), e ordenada no eixo vertical (y). Os conceitos na obra
de Descartes permitiram o desenvolvimento de áreas científicas como o cálculo, a geometria analítica e a cartografia. O sistema propõe a utilização de equipamentos disponíveis no
mercado, como os já conhecidos “quadros interativos” com transmissores de sinais sonoros
ou luminosos. Os equipamentos com transmissores normalmente utilizam o método da triangulação14 para a obtenção da posição de um ponto de interesse. O objeto computacional
para o registro cênico armazena um conjunto de coordenadas x, y que definem uma forma,
um polígono. No “Quadro sonoro”, os elementos que compõem o desenho podem ser definidos como linhas, pontos ou polígonos. Esses diferentes tipos de elementos geométricos
foram modelados, intencionalmente, como um só – como polígonos. Internamente todos esses
elementos são definidos por meio do conjunto de pontos.
50
Flusser analisa essa forma de criação de imagens como um “gesto de ajuntamento de
elementos pontuais (algo calculado) para a formação de imagens”. Para o filósofo, é um gesto
que se concretiza de uma forma diferenciada do gesto figurativo. Não se trata de um gesto de
abstração, mas de um gesto que se concretiza, que se projeta, ao reunir elementos adimensionais para recolhê-los em uma superfície. A seqüência de imagens aparece como se tivesse
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se deslocado de dentro da cabeça para fora, para o computador, “como se pudéssemos ver
nossos próprios sonhos do lado de fora”.As imagens podem ser inesperadas e surpreendentes
e “com elas pode-se brincar quase infinitamente”. A resposta cartesiana afirma que “as linhas
são discursos de pontos e que cada ponto é um símbolo de algo que existe lá fora no mundo”.
O mundo é representado por linhas na forma de um processo. As novas imagens podem ser
fixadas, alteradas e encaminhadas para outros produtores de imagens. A nova imaginação “se
encontra num ponto de vista de abstração insuperável, a partir do qual as imagens podem
ser criticadas e analisadas. Feitas a partir de cálculos, e não mais de circunstâncias, podemos
observar o desdobramento de uma “estética pura” (2007, p. 171-173).
Os objetos dos tipos linha e ponto herdaram os atributos do polígono e, diante de uma
remediação, receberam o atributo espessura. Conceitualmente, no “Quadro sonoro”, a linha e
o ponto são polígonos remediados para constituir uma nova ordem visual. A intenção diante
dessa modelagem foi de simplificar a interface e a usabilidade do sistema, permitindo o preenchimento de qualquer tipo de geometria com imagens raster.
Em edições futuras, um objeto para o rastreamento do corpo cênico poderá ser modelado
com a incorporação de novos atributos como a identificação do ator (ID), a altura como
terceira dimensão do corpo na coordenada z e o tempo do evento em milissegundos. Com
o objeto renovado com esses atributos, torna-se possível a análise dos movimentos e dos
comportamentos de diversos atores no espaço em relação ao tempo no espaço. O SIG permite
a realização de operações espaciais entre os atores identificando a distância e a relação do
posicionamento entre eles. As imagens tornaram-se analisáveis. Podemos, a partir de nossa
imaginação, voltar a uma abstração absoluta e tratar os objetos por meio desse tipo de imaginação renovada (FLUSSER, 2007, p. 171).
Em futuras renovações do sistema “Híbridos”, o registro do posicionamento do corpo cênico
no espaço pode ser relacionado com a marcação do texto, com a fala ou com o som em função
do tempo. O tempo definido como uma propriedade índice. O conjunto dessas informações
pode ser reutilizado e apresentados em um procedimento de animação sistematizada com a
possibilidade de interações pertinentes aos programas de jogos e simulações. Outras renovações do programa permitiriam a utilização de outros dispositivos de mapeamento, como
o GPS ou controles de jogos eletrônicos que informam o posicionamento do objeto em um
plano tridimensional.
Transformação de sons em desenhos vetoriais
No sistema “Híbridos”, o programa que simula as funcionalidades de um “Osciloscópio”
captura os sinais de áudio representando-os em um plano cartesiano. O programa foi alterado
para transformar essas informações em coordenadas geográficas. O som ecoa um desenho
que simula a representação espacial do espaço do mundo. O sinal sonoro é submetido a uma
série de algoritmos que permitem a representação gráfica da freqüência, do volume e da amplitude sonora. As representações gráficas do som são mapeadas em blocos, do tamanho de um
buffer15 de memória definido para leitura de dados da placa de som. O objeto híbrido para
registro sonoro em desenho vetorial foi modelado com as mesmas propriedades do outro
citado anteriormente. O modelo atual registra a representação sonora em um desenho de
forma figurativa, pelo fato de estar diretamente relacionado com a interpretação dos aspectos
físicos do som.16 A Figura 4 ilustra uma representação gráfica de uma freqüência sonora em
projeção geocêntrica.
51
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Figura 4.
Freqüência sonora
em projeção
geocêntrica
Em edições futuras, constatando uma nova situação de remediação e renovação, o programa
poderá ser modelado para relacionar formas geométricas com sons diferentes de acordo com
as definições estipuladas pelo ator. Nesse cenário, uma freqüência sonora pode ser relacionada
com uma forma geométrica, e o sistema apresenta-se como um instrumento capaz de produzir
novos significados, facilitando a comunicação entre os diversos atores. Um outro atributo,
definido para registrar a identificação de um instrumento musical ou do ator, permitiria o
relacionamento do som ou fala com seu posicionamento no espaço em relação ao tempo.
Novos algoritmos permitiriam a definição de novas imagens compostas pela união das informações cartográficas do deslocamento do corpo no espaço e dos sons capturados ao longo
do tempo.
Remodelar, remediar são a realização de um “pensamento conceitual” que “permite codificar
textos e decifrá-los”. Na visão de Flusser, o pensamento conceitual é mais abstrato que o
imaginativo. Para o autor, “decifrar textos é descobrir as imagens significadas pelos conceitos.
A função dos textos é explicar imagens, a dos conceitos é analisar cenas. Em outros termos: a
escrita é metacódigo da imagem” (2002, p. 10).
52
As novas imagens são criadas para que se busque o inesperado, “de modo que a realização
desse inesperado é experimentada apenas como uma espécie de manifestação paralela que
ocorre quando tratamos do mundo dos objetos” (FLUSSER, 2007, p. 174).
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Objeto híbrido para desenhos
O mesmo objeto híbrido definido para registrar o deslocamento do corpo do ator no espaço
é utilizado para elaborar desenhos virtuais em um quadro interativo. O ator pode interagir,
criar e brincar com suas imagens, desenhando livremente no “Quadro sonoro” com os dedos
ou com um dispositivo eletrônico.
Fazendo uma analogia do sistema com a caixa preta, com o “aparelho” citado por Flusser, o
sistema não é um instrumento tradicional, mas sim um brinquedo no qual o ator brinca contra
ele, procurando esgotar todas as suas potencialidades. “O homem que o manipula não é trabalhador, mas jogador: não mais homo faber, mas homo ludens.” As potencialidades do programa,
do aparelho, devem exceder a capacidade do homem para esgotá-las. Deve ser impenetrável e
por isso pode ser chamado de caixa preta (2002, p. 23-24).
Diante de cada ação do ator, o sistema apresenta uma imagem renovada. O ator pode selecionar o preenchimento das formas geométricas com imagens raster ou cores que são atribuídas de forma aleatória pelo sistema. A cor localizada no centro de cada figura geométrica é
identificada, podendo, de acordo com a opção do ator, ser transformada em uma freqüência
sonora em tempo real. O sistema lida com as cores no modelo HSV, que é orientado ao ator,
à percepção do olho humano, ao contrário do modelo RGB, que é orientado ao hardware. O
modelo HSV é baseado no apelo intuitivo que os artistas utilizam para produzir as tintas, as
sombras e os tons. (FOLEY, 1990, p. 590). Cada imagem renovada apresenta uma seqüência
de sons que estão relacionados com a cor de cada elemento apresentado no desenho. O
ator pode configurar, no sistema, diversas amplitudes sonoras, permitindo a representação de
timbres diferentes. A área da figura geométrica é utilizada na definição do tempo de duração
do som. Em um cenário típico, as imagens resultantes das ações do ator são projetadas por um
projetor conectado ao sistema.
Uma renovação da edição atual seria a possibilidade de utilização de formas geométricas
como parâmetros na criação de freqüências sonoras considerando a cor como referência na
configuração do timbre sonoro. Uma forma geométrica qualquer poderia ser configurada para
estipular o silêncio. O sistema produz freqüências sonoras que mais se parecem com ruídos.
Na visão de John Cage, a utilização de ruídos do ambiente em composições está relacionada
com a “concepção da música sem propósitos, que remete à idéia da escuta em si como finalidade estética” (apud BAIRON, 2005, p. 31).
Cage chegou a sugerir a utilização do termo “organização de sons” como mais significativo
para o contexto da sua obra enfatizando que, para ele, a música experimental não tem propósitos, apenas sons (apud SAFATLE, 2006, p. 184).
A expressão “estética da indiferença”, cunhada por Bárbara Formis, segundo Safatle, está relacionada com a indiferenciação de todo tipo de material sonoro como próprio à música. Essa
estética está relacionada com a desafecção, impondo o regime da indiferença ao objeto a
ponto de Cage afirmar que o artista tem a responsabilidade de aperfeiçoar sua obra até tornála desinteressante (apud SAFATLE, 2006, p. 182-183).
A obra de John Cage não faz distinções entre ouvinte, intérprete e compositor, provocando
uma mudança na política da arte, com o espectador ganhando poderes semelhantes ao do
artista (RIBEIRO, 2007, p. 53). Cabe ressaltar que a apropriação não garante uma abordagem
crítica ou reflexiva considerando que a técnica passa a ser necessidade objetiva de os artistas
53
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
investigarem seu campo de atuação de forma crítica. Como assinala Brito, o lugar da arte
contemporânea é reflexivo (apud Ribeiro, p. 58).
Santaella assinala que o artista deve explorar os materiais e os meios do seu próprio tempo
para encontrar sua linguagem própria, reinventando as linguagens da arte (SANTAELLA,
2003:152). Na visão de Debray, cada novo material ou suporte gera uma inovação artística
com estilos e gêneros peculiares (idem, p. 278).
O sistema “Híbridos” foi testado como ferramenta de produção artística visando à exploração
de renovação e remediação dos materiais e suportes tradicionais. Experiências realizadas com
um pincel tradicional acoplado ao transmissor eletrônico indicam que é possível registrar, por
meio de coordenadas geográficas, os gestos do fazer artístico de um desenho ou pintura sobre
Figura 5.
Acrílica sobre
papel realizada
com pincel
“híbrido”
suportes tradicionais como a tela ou o papel. Os desenhos elaborados com os materiais tradicionais apresentam os sinais do fazer. Um rastro de tinta sobre o papel, definindo um gesto
realizado por meio de uma pincelada, é um sinal do fazer.
A Figura 5 apresenta uma imagem elaborada com tinta acrílica e um pincel tradicional acoplado
ao transmissor de sinais eletrônicos.
O sinal do fazer da obra na qual pode ser percebido permite o fluxo do olhar num espaço em
obra. Significa o fazer, mas não é o fazer. Diante das semelhanças visuais e perceptíveis, imita o
fazer. “O espaço em obra é o imitante. O fazer da obra é o imitado” (TASSINARI, 2001, p. 56).
54
Adicionando recursos tecnológicos aos materiais tradicionais, o espaço em obra resulta em
uma fatura múltipla. O desenho registrado pelo sistema, elaborado por meio da leitura e da
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Figura 6.
Desenho
vetorial em
projeção
geodésica
decodificação dos “sinais” eletrônicos, é outra obra. O espaço em obra desse desenho tecnológico é outra coisa. É um espaço imaterial com proporções que imitam uma representação do
mundo por meio de suas coordenadas geográficas. O sistema, ao realizar operações espaciais
com o conjunto de coordenadas que representam cada gesto, está calculando a apresentação
Figura 7.
Desenho
vetorial em
projeção
geocêntrica
55
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
de uma imagem diferenciada do mesmo objeto, que será constantemente atualizado e renovado diante de cada ação do ator. A materialização de uma instância dessa imagem em uma
impressão com papel fotográfico é outro produto. As Figuras 6 e 7 apresentam abstrações
dos mesmos sinais coletados durante o processo de elaboração da Figura 5, realizada com os
materiais tradicionais e o pincel “híbrido”.
A apresentação do desenho tradicional e a impressão de sua renovação tecnológica (abstraída
em um sistema de projeção diferenciado) levaria à compreensão de novos significados?
Esse mesmo recurso de produção de imagens deverá ser experimentado em suportes tradicionais como a litogravura e desenhos com carvão e bastão a óleo. Essas experiências lidam
com os aspectos da gambiarra e resultam em ferramentas híbridas que são remediadas e
renovadas produzindo novas imagens e sons. Outras áreas de atuação para a tecnologia aplicada no sistema seriam a de produção de imagens em movimento – a conversão de imagens
raster em desenhos vetoriais de personagens que assumiriam comportamentos e animações
sistematizadas por meio de algoritmos a serem escritos.
Lidando com o acaso e a indeterminação a produção das imagens com recursos híbridos pode
ser uma performance, remetendo à “pintura instantânea”, à action painting, transformando o ato
de pintar no tema da obra e o artista em ator (GLUSBERG, 2003, p. 28).
Para finalizar, as experiências realizadas induzem à reflexão sobre futuras remediações, renovações e desdobramentos que possam surgir com a prática dessa forma de expressão.
Notas
56
1. Sistema de informação espacial e procedimentos computacionais que permite a representação do
espaço e dos fenômenos que nele ocorrem (WIKIPÉDIA, 2006).
2. Meio matemático que permite transportar informações da superfície curva e tridimensional da terra
em um plano de duas dimensões, como a tela do computador ou uma folha de papel. Fonte: http://erg.
usgs.gov/isb/pubs/gis_poster/ Acesso em: 16 jun. 2008.
3. Instrumento de medida quantitativa do objeto de análise. Fonte:
http://www.ele.ufes.br/~sarcinel/Texto%20sobre%20Osciloscopio%20CEFET%20PR.pdf. Acesso em: 16 jun. 2008.
4. Ator representa os elementos externos ao sistema, que interagem com ele, como um usuário ou outro
sistema que troca informações com ele. Sendo externo, não pode ser alterado pelo desenvolvedor do
sistema (DEBONI, 2003, p. 203).
5. Imagem vetorial é um tipo de imagem gerada a partir de descrições geométricas de formas. Uma
imagem vetorial normalmente é composta por curvas, elipses, polígonos, que utilizam vetores matemáticos para sua descrição. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Desenho_vectorial. Acesso em: 29 jul. 2007.
6. Espaço real do palco onde evoluem os atores (PAVIS, 1999, p. 132).
7. Imagem raster (ou bitmap, que significa mapa de bits em inglês) é imagem que contém a descrição de cada
pixel, em oposição aos gráficos vetoriais. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Raster. Acesso em: 29 jul. 2007.
8. Sistema para se especificar uma seqüência ordenada de n elementos de cada ponto em um espaço de
várias dimensões. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sistema_de_coordenadas. Acesso em: 10 maio 2008.
9. Remediation: understanding new media, de Jay David Bolter e Richard Grusin, estudiosos e pesquisadores sobre as novas mídias.
10. “Etimologicamente, a palavra objeto vem do latim objectum, coisa que é colocada defronte, que é
exposta, que objeta” (CRISTÓFARO, 1999, p. 14).
11. Upgrade São Paulo! é um nó localizado na cidade de São Paulo dentro da rede global Upgrade
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
International(UI), que realiza um encontro mensal de artistas, curadores e o público dentro da comunidade de novas media. É um espaço onde artistas multimídia apresentam seus trabalhos em uma organização globalizada integrada pela internet. Referências: www.upgradesaopaulo.com.br
12. Expressão que poderia ser traduzida por “teatro das artes visuais”.A performance associa, sem preconceber
idéias, diversas formas de expressão artísticas (PAVIS, 1999, p. 284). Expressão cênica, uma função do espaço e
do tempo P = f (s,t); algo que acontece em um instante em um determinado local (COHEN, 1989:28).
13. Geometria (do grego geo = terra + metria = medida, ou seja,“medir terra”). Fonte: http://pt.wikipedia.
org/wiki/Geometria. Acesso em: 16 jun. 2008.
14. Método de localização de um ponto a partir de visadas de outros pontos, espacialmente controlados,
de forma a que, com duas visadas para dois pontos não dispostos em linha reta, se define a posição
topográfica do ponto de interesse que será o vértice de um triângulo. Fonte: http://www.unb.br/ig/glossario/verbete/triangulacao.htm. Acesso em: 16 jun. 2008.
15. Região de memória temporária utilizada para escrita e leitura de dados.
16. Seqüência de variações na pressão atmosférica produzida em um determinado ponto no espaço.
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57
Tecnologias Contemporâneas no Ensino das Artes: um estudo de caso da
EAD na UnB/UAB
Tecnologias Contemporâneas no Ensino das Artes: um estudo de caso da
EAD na UnB/UAB
CHRISTUS NÓBREGA *
Resumo
O presente artigo traz algumas reflexões analíticas sobre a interface do Moodle – ambiente virtual de aprendizagem
utilizado pela Universidade de Brasília (UnB) / Universidade Aberta do Brasil (UAB) em seus cursos de licenciatura
a distância. Desta análise extrairemos requisitos e parâmetros projetuais que nos servirá de base para o desenvolvimento de um novo design para este ambiente.
Palabras clave: Moodle. design de interfaces. EAD. tecnologia na arte.
Abstract
O presente artigo traz algumas reflexões analíticas sobre a interface do Moodle – ambiente virtual de aprendizagem
utilizado pela Universidade de Brasília (UnB) / Universidade Aberta do Brasil (UAB) em seus cursos de licenciatura
a distância. Desta análise extrairemos requisitos e parâmetros projetuais que nos servirá de base para o desenvolvimento de um novo design para este ambiente.
Keywords: Moodle. design de interfaces. EAD. tecnologia na arte.
1. Contexto Histórico da Universidade Aberta do Brasil (UAB): perspectivas para
democratização do ensino superior pela educação a distância
O crescente universo da cibercultura se expande progressivamente e em ritmo acelerado para
as diferentes frentes da sociedade, promovendo mudanças drásticas em suas bases. Economia,
arte, comunicação, entretenimento não são mais os mesmos, modificaram-se pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Porém, estas mudanças não se restringem a esses
campos da sociedade, se estendem para outras áreas, transformando, por exemplo, os modos
de pensar e fazer a educação. É isto o que mostra as iniciativas do Ministério da Educação
(MEC), através do projeto da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que é possível pensar
novos mecanismos de ensino a partir das tecnologias contemporâneas de informação e comunicação. Educação esta pautada em sistemas de construção colaborativa de conhecimento e
mais democrática1 por ser capaz de atingir grandes audiências até então marginalizadas.
58
* Doutorando e Mestre em Arte pela UnB, na linha de pesquisa Arte e Tecnologia. Possui graduação em Desenho Industrial
pela Universidade Federal da Paraíba (2000). Atuou como professor na Universidade Federal de Campina Grande e atualmente no curso de Desenho Industrial da UnB e no curso de licenciatura em Artes a Distancia no projeto da UAB/UnB.
Tem experiência na área de Desenho Industrial com ênfase em tecnologia apropriada e Artes com foco em High-Technology.
[email protected]
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
A Universidade Aberta do Brasil foi criada em 2005 pelo MEC com o objetivo de ofertar
cursos de graduação, na modalidade a distância2, para formação de professores nas diversas
áreas da Educação Básica. A prioridade da UAB é expandir e interiorizar a oferta de cursos e
programas de educação superior no País, ampliando o acesso à educação pública às diferentes
regiões do país. Regiões até então negligenciadas, seja pelo fato de ainda não possuírem cursos
de formação superior, seja porque os cursos ofertados não são suficientes para atender satisfatoriamente as demandas da comunidade local.
Apesar de trabalhar com educação superior a UAB não se legitima como uma nova instituição
de ensino, mas sim, como um sistema de fomento e de articulação de instituições já existentes.
Assim, para atingir seus objetivos a UAB promove a articulação entre Instituições de Ensino
Superior públicas (IES) e poderes estaduais e municipais das diversas regiões do Brasil. As
instituições que colaboram com a UAB são as Universidades Federais, Estaduais ou Municipais
e os Centros de Educação Tecnológica (CEFETs).
Em termos operacionais, para receber cursos da UAB, os municípios interessados devem
montar um Pólo para dar suporte aos alunos, equipado com laboratório de informática com
acesso a Internet, laboratórios das áreas específicas dos cursos requeridos e uma biblioteca.
Em articulação com os municípios compete as universidades públicas a elaboração dos cursos,
o desenvolvimento do material didático e pedagógico, pensados para a modalidade a distância,
bem como elencar um corpo docente para a supervisão das disciplinas. Assim, o Pólo mantido
pelos Estados e Municípios é o agente físico de apoio aos alunos de cada região onde os cursos
da UAB são ofertados e as universidades são as fomentadoras do ensino. Porém, compete ao
Ministério da Educação avaliar quais instituições ofertarão quais cursos e para quais pólos. A
articulação entre estes três vetores básicos configura-se a UAB.
Alguns dos atores que compõem este novo processo de educação são os professores conteudistas, que realizam atividade de criação de conteúdos para as disciplinas e disponibilizoos em espaço virtual; os professores supervisores, que coordenam as aulas realizadas pelos
tutores e realiza visitas aos pólos para aulas presenciais; os tutores a distância, que estabelecem o contato direto e cotidiano com alunos para apoio aos estudos; os tutores presenciais,
que estabelecem contato com alunos para apoio aos estudos in-loco; e, por fim, os alunos,
que acessam o curso a distância por meio de tecnologias informatizadas e utilizam o pólo
de apoio presencial para realizarem seus estudos, pesquisas e assistirem as aulas presenciais
previstas no currículo.
Segundo dados do próprio Ministério da Educação, em 2007 a UAB já havia atingido um total
de 291 pólos, refletindo diretamente na abertura de 46 mil vagas de ensino superior. Atualmente o programa continua em expansão e objetiva para 2010 colocar em funcionamento
mais de mil pólos, e, por conseguinte, alcançar um total de 300 mil novas vagas no sistema de
educação superior.
Como conseqüência de suas ações de democratização do acesso ao ensino através das novas
tecnologias de informação e comunicação, que vem facilitando o ingresso à educação superior
para camadas da população até então excluídas, a UAB acaba também por ajudar a desenvolver
a modalidade de educação a distância no País, na medida em que vem apoiando a pesquisa
em metodologias de ensino superior baseadas nas novas tecnologias, principalmente aquelas
pensadas para a Internet. Tais incentivos se refletem, por exemplo, no apoio a pesquisa que
resultou na criação da disciplina Tecnologias Contemporâneas na Escola I3 (TEC1), que é ofer-
59
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
tada para as Licenciaturas de Artes Visuais, Música e Teatro pelo Instituto de Artes da Universidade de Brasília4 para aproximadamente 400 alunos só em sua primeira edição. A oferta atinge
diretamente oito municípios no Acre (Acrelândia, Brasiléia, Cruzeiro do Sul, Feijó, Rio Branco,
Sena Madureira, Tarauacá e Xapuri) e dois municípios em São Paulo (Barretos e Itapetininga).
Neste contexto a disciplina Tecnologias Contemporâneas na Escola 1 pertence ao módulo de
disciplinas tronco comum às três licenciaturas e tem como objetivo o estudo introdutório das
abordagens teóricas que fundamentam o uso das tecnológicas contemporâneas na educação
refletindo sobre a construção de princípios e práticas pedagógicas concretizadas com o auxílio
das novas mídias.
2. A construção da disciplina:Tecnologias Contemporâneas na Escola I
As tecnologias contemporâneas atuam para a mudança do cenário tradicional da sala de aula.
O que antes era formado por um professor, um quadro, um caderno e um grupo de alunos
enfileirados agora ganha outra configuração sócio-espacial. Porém, muito mais do que criar
novos cenários, as tecnologias interferem também no roteiro e na forma de atuação dos
atores da educação, ou seja, modifica a performance dos professores e dos alunos, exigindo de
ambos novas habilidades e competências.
Nesta perspectiva os alunos não são mais meros expectadores de um espetáculo dirigido pelo
professor. Transformam-se em co-autores co-responsáveis pelo processo de aprendizagem. A
questão da atualidade é saber como estas novas tecnologias, que estão incorporadas ao cotidiano das sociedades contemporâneas, devem trabalhar para a melhoria do processo educacional. O que foi abordado na disciplina Tecnologias Contemporâneas na Escola 1 (TEC1) são
alguns aspectos dessa questão, porém, com foco no ensino e prática das artes.
Com a conclusão da disciplina era esperado que os alunos ampliassem sua competência
analítica para avaliar o impacto das novas tecnologias computacionais na sociedade contemporânea. Além disso, era desejado, especificamente, que os alunos desenvolvessem habilidades introdutórias para a concepção de projetos pedagógicos na área de arte-educação
com uso do computador, articulando métodos de uso da informática como recurso didático
para pesquisa em arte. Também era pretendido introduzi-los nas técnicas computacionais
para expressão artística, bem como de difusão de informações relacionadas à arte. Assim,
foram estudados e discutidos textos sobre a cibercultura e educação, realizadas atividades
de visitas em museus virtuais e estudada suas possibilidades pedagógicas. Artisticamente os
alunos foram estimulados a criarem desenhos e ilustrações em softwares editores de imagem
digitais (Gimp) e para divulgação de suas idéias e criações artísticas aprenderam e criaram
um blog e um site (galeria virtual).
Após definido os conteúdo e roteiro da disciplina a próxima questão a ser resolvida era a forma
como esta deveria ser apresentada, ou seja, o design de sua interface. Para tanto tínhamos como
pré-requisito que este tivesse um caráter amigável e estimulasse o aluno ao estudo.
2.1 Em busca de um design de interface amigável
60
A UAB/UnB utiliza o Moodle, um Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA), como espaço
central para realização de suas atividades acadêmicas. O Moodle possibilita a criação de um
espaço digital para fins educativos se fazendo valer das principais tecnologias computacionais
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
de informação e comunicação existentes na Internet. Construção de texto em formato wiki,
fórum, chats, relatórios de dados, dowload and upload de conteúdo são algumas das possibilidades da plataforma. No Moodle permite-se integrar múltiplas mídias que facilitam a interação
social entre alunos e alunos professores, bem como destes com os objetos de conhecimento.
Além de suas possibilidades de funcionalidade, a plataforma se destaca por ser um software
aberto, ou seja, é um Open Source. O fato de ser aberto implica, em outras palavras, que apesar
de possuir direito autoral, seus inventores estimulam que o software seja copiado, adaptado e
aperfeiçoado para as diferentes necessidades, desde que o programador concorde em também
disponibilizar as melhorias no código-fonte para outros, mantendo sempre o caráter livre dos
objetos derivados (MOODLE, 2008). A filosofia do Open Source se estabelece como uma alternativa mais democrática quando comparada a dos softwares proprietários e se mostra como a
alternativa mais viável quando pensada no contexto da esfera pública.
Por o Moodle ser aberto e oferecer a possibilidade de redesign de sua interface, e tendo em
vista que o curso em questão é direcionado para as artes e aspectos relativos à qualidade
da linguagem visual e diversidade de experiência estética são fundamentais para a formação
dos alunos, pensou-se em pesquisar, desenvolver e implementar uma nova interface para a
disciplina diferenciada da adotada como padrão pelo Moodle, que viesse a ajudar também
na educação visual dos estudantes. Por isso, foi proposto um novo modelo de interface que
explorasse mais profundamente os elementos visuais, mais amigável e também fosse, fundamentalmente, baseada na intuição para navegação haja vista o perfil dos cursistas que em sua
maioria era leigo ou possuía apenas noções introdutórias de uso do computador.
Para o projeto da interface da disciplina levou-se em consideração as recomendações de
Jakob Nielsen (2000). Segundo o pesquisador a usabilidade de um site precisa basear-se, principalmente, na simplicidade e obedecer a alguns princípios básicos. Deve-se tratar as informações respeitando sua hierarquia de importância e agrupá-las por algum critério lógico
de similaridade. Visualmente, é desejável criar esse agrupamento aplicando uma mesma cor,
forma e direção nos elementos informativos, para assim caracterizá-los como grupo. Para a
escolha das cores estas devem ser selecionadas dentro de um contexto geral, definindo uma
palheta cromática relacionando-a sempre com a funcionalidade e hierarquia de informação
que seu elemento informativo terá no site. É imprescindível pensar no conforto de leitura e
para isso as cores do texto necessitam ter bom contraste com o fundo e, preferencialmente,
deve-se optar por cores monocromáticas e corpos de texto capazes de gerar manchas
gráficas uniformes. Para atrair o olhar do usuário para um determinado ponto da interface é
importante priorizar o uso de cores e ícones, já que este é aliciado por elementos cromáticos
antes que por elementos pretos e brancos e por imagens antes que por texto. Também não
se deve desperdiçar espaço no layout com o preenchimento de elementos redundantes, priorizando sempre a simplicidade e áreas de descanso para os olhos, deixando sempre espaços
vazios ou zonas onde não haja excesso de informação. Por fim, e não menos importante, é
preferível evitar o uso de novíssimas tecnologias na produção de páginas para a Internet, pois
os usuários demoram a atualizar seus navegadores e o site pode não funcionar corretamente
em algumas máquinas.
A primeira etapa do projeto foi a criação da interface da disciplina nos moldes da página
padrão gerada pelo Moodle (fig.1), para análise e identificação dos aspectos para melhoria.
Sob a ótica dos preceitos propostos por Jakob Nielsen foi feita uma avaliação deste layout
onde foi verificado que alguns elementos poderiam ser otimizados. Descritivamente, o layout
61
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
da página é organizado em três colunas. A primeira coluna agrupa informações administrativas,
com dados sobre a licenciatura como um todo. A segunda apresenta o conteúdo específico
da disciplina e é organizada em blocos que obedecem a uma hierarquia temporal, ou seja,
o primeiro bloco refere-se a primeira etapa de aprendizagem, o segundo a próxima fase e
assim sucessivamente. E, por fim, a terceira coluna que oferece informações suplementares
sobre a disciplina, tais como calendário, notícias, verbetes técnicos, etc. Apesar de possuir relativa organização em termos de agrupamento informacional este layout poderia ser explorado
por outros preceitos estéticos e funcionais, baseando-se nos critérios propostos por Jakob
Nielsen, com o objetivo de criar um ambiente mais amigável e intuitivo, e, por conseguinte,
mais estimulante para o estudo.
Primeiramente, observa-se que nesta interface há uma grande carga de informação distribuída
ao longo dos espaços da tela, com uma ampla parte dos espaços ocupados por informação
textual. Para torná-la mais ergonômica e amigável seria desejável que esta interface tivesse
mais espaços limpos e mais imagens. Percebe-se que há priorização do uso do texto como link
quando este poderia ser substituído em grande parte por imagens. Na página, apesar de haver
uma palheta de cor predominante, no caso uma variação de tons laranja, estas poderiam ser
mais bem exploradas quanto ao agrupamento informacional. Percebe-se também que no layout
não há uma hierarquia de informação clara, já que todos os textos são escritos praticamente
com o mesmo tamanho, caixa e na mesma cor. Porém, a diferenciação de largura entre as três
tabelas propicia o destaque do conteúdo central, informação principal para o aluno.Apesar disso,
o acúmulo de informações laterais tende a distrai o foco do olhar e torna infecundo o destaque
de uma zona secundária de comunicação. Esteticamente a interface pode se tornar mais lúdica
e valorizar mais questões como o jogo, a descoberta e a pesquisa, aspectos fundamentais à
educação. Além disso, como é destinada a um curso de arte é desejável que a interface explore
mais o uso de imagens ampliando o universo visual e a educação estética de seus alunos.
Fig. 1.
Interface padrão do
Moodle da disciplina Tecnologias
Contemporâneas
na Escola 1
(antes do redesign)
62
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
A partir destas observações partiu-se para o desenvolvimento de novas soluções de interfaces
chegando ao resultado apresentado na figura 2.
Para a tela de entrada da disciplina optou-se pelo uso de uma imagem que propusesse metáforas do mundo concreto. A fotografia que faz alusão a uma possível mesa de estudo é o ponto
de partida para acessar os conteúdos e atividades da disciplina. Há nesta imagem um paradoxo,
pois na medida em que a disciplina propõe-se a tratar de questões da imaterialidade contemporânea, ou seja, das novas tecnologias computacionais, todos os ícones de acesso são extremamente concretos. Porém, após uma observação mais atenta, percebe-se que há uma moldura
ao redor da foto que faz alusão as molduras que uma imagem recebe quando é aberta em um
programa gráfico de edição de imagem bitmap. Simbolicamente esta imagem emoldurada pode
ser lida como o mundo concreto sendo capturado, manipulado e editado pelas novas tecnologias. Esta sutileza que torna a leitura da imagem um pouco mais complexa foi propositadamente
proposta para que esta tela/imagem também fosse trabalhada como conteúdo da disciplina.
A imagem é uma metáfora, e como metáfora induz à imaginação, à reflexão, à criação. Por
possuir elementos referentes ao mundo simbólico e concreto do universo dos cursistas a
interface se torna mais intuitiva, ou seja, as imagens sugerem o que os alunos irão encontrar
ao clicarem sobre elas. Assim, ao clicar nos livros tem-se acesso a documentos de texto da
disciplina (fig.3). Ao clicar sobre a xícara o aluno é dirigido a um chat chamado sala do café; um
espaço de socialização onde ele pode tratar de assuntos diversos com seus colegas e tutores.
Ao clicar sobre o CD os alunos tem acesso a uma lista de músicas que podem ouvir enquanto
estudam (fig.4). Todas as músicas trazem letras referentes ao conteúdo estudado. No Pendrive
há uma série de arquivos para download e nos Post-it os alunos podem acessar os conteúdos
específicos de cada unidade (fig.5). Nota-se que para cada unidade priorizou-se uma cor, destacando-a e diferenciando-a das antecessoras.
Fig. 2.
Interface da
disciplina
Tecnologias
Contemporâneas
na Escola 1
(após redesign)
63
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Fig. 3.
Ao clicar sobre
a imagem dos
livros os alunos
acessavam esta
interface onde
tinham disponível
todos os textos
da disciplina
Fig. 4.
Ao clicar sobre
a imagem do
CD os alunos
acessavam esta
interface onde
tinham disponível
uma listagem
de músicas que
poderiam ouvir,
ver o clipe e ler
as letras
64
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Fig. 5.
Ao clicar sobre
a imagem dos
post-it os alunos
acessavam
esta interface
onde estão
disponíveis todas
as informações
referentes a cada
unidade. Para
diferenciar uma
semana da outra
tornando-as mais
dinâmica optouse por escolher
uma a cor para
cada unidade.
Retomando os preceitos de Jakob Nielsen percebe-se que a nova interface atende as suas
diretrizes projetuais nos aspectos de simplicidade, metáfora, hierarquia de informação e legibilidade. O uso de poucos objetos na tela e o equilíbrio entre imagem e espaços em branco
favoreceu a criação de uma interface coesa e leve. A criação de ícones baseados em elementos
pertencentes ao mundo concreto dos alunos (CDs, livros etc.) proporcionou uma navegação
amigável e intuitiva para o site. Quanto à hierarquia de informação, nos preocupamos em
sempre representar elementos conceituais semelhantes com os mesmos aspectos gráficos
tanto de cor, quanto de tamanho, direção e localização o que facilita a organização e a acessibilidade aos conteúdos da disciplina.Também é importante destacar que todo o site foi desenvolvido em HTML (HyperText Markup Language), sendo testado nos mais populares browsers
sem perda de nenhuma de suas funcionalidades. Assim, como possuíamos um perfil bastante
heterogêneo de alunos conseguimos ter a mesma peformance do projeto gráfico nas mais
variadas configurações de máquinas. O uso desta linguagem se justifica também pela sua leveza
haja vista que ainda há relativa lentidão nas conexões de Internet na maior parte das cidades
onde são ofertados os cursos.
Avaliando o feedback que obtivemos dos usuários da disciplina pudemos concluir que a
proposta de interface foi bem recebida pelos grupo de alunos e tutores que a avaliaram como
65
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
organizada, inovadora e agradável visualmente. O projeto nos mostra que é possível pensar
novas estruturas gráficas para educação a distância baseadas principalmente na comunicação
visual, com o uso predominante de imagem como elemento comunicacional. Além disso, nos
parece fundamental conceber estruturas gráficas que privilegiem os aspectos lúdicos e que
favoreçam a imaginação dos alunos, e assim facilitar e motivar o processo de aprendizagem.
Porém, entendemos que a criação de interfaces amigáveis não só atua como um facilitador
do processo de educação a distância, vai além, tornando-se fundamental, já que esta se realiza
essencialmente por meio da interface. É através dela que os alunos têm contato com os conteúdos, com seus pares e com seus tutores.
Interfaces confusas ou demasiadamente complexas confundem os alunos desestimulando-os.
O estresse causado pela demora em encontrar uma informação e a sensação de frustração
em não achá-la pode gerar grande desmotivação. A desmotivação quando recorrente pode
acarretar no aumento dos índices de evasão da educação a distância, que como sabemos já são
altos. Para ajudar a diminuir esses índices é preciso criar mecanismos que facilitem a aprendizagem, proporcionando aos alunos um ambiente harmônico e acolhedor para o estudo.A UAB,
na medida em que demanda ações de pesquisa para o desenvolvimento de interfaces digitais,
vem se mostrando como um rico campo de investigação para profissionais da área. Cabendo
também a nós, arte-educadores, propor, implementar e validar possíveis caminhos.
Nota
¹ O acesso a cursos ofertados pela UAB obedece ao mesmo processo de seleção de cursos de graduação presenciais; ou seja, o vestibular. Sendo exigido basicamente do candidato sua formação no ensino
médio.
2
Alunos formados em cursos de graduação, na modalidade a distância, terão direito a diploma equivalente ao dos cursos de graduação presenciais, sendo ele emitido pela IES ofertante do curso. Tal fato é
previsto no decreto presidencial nº 5.622 assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 20 de
dezembro de 2005.
3
Foram tutores da disciplina no período 2008.1 Carla Cristie de França Silva, Camila Cavalheiro Hamdan,
Carlos Henrique Silva Bittencourt, Eliseu Amaro de Melo Pessanha, Elza Gabriela Godinho Miranda, Frank
Nely, Cristina Maria Carvalho Valadares, Beatriz dos Santos Tavares Lopes, Patrícia Maragno, Raquel de
Castro Botelho,Vinicius Pinto Correa e Renato Berlim Fonseca.
4
Atualmente são ofertados pela UnB/UAB oito cursos de licenciatura nas áreas de Artes Visuais, Biologia,
Educação Física, Geografia, Letras, Música, Pedagogia e Teatro.
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66
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SANTOS, Maria Lúcia. Do giz a era digital. Porto Alegre: Zouk, 2003.
67
WWWART.02
Um breve balanço da primeira década da net arte 1
A brief review of the first decade of net art
Claudia Giannetti *
Resumo
Um breve histórico dos principais artistas e movimentos da arte desenvolvida na e para a Internet, desde suas origens
com a ARPANET, em 1969, até o momento atual.
Palabras clave: webart, arte na e para a internet, interativo, hiper-espaço.
Abstract
An abbreviation historical of the main artists and movements of the art developed in and for the Internet, from their origins with
ARPANET, in 1969, until the current moment.
Keywords: webart, internet art, interactive, hyper-space.
1. Alguns antecedentes e contextualização
Em um sistema informático, os links (ligações, vínculos ou âncoras) são instruções que conectam
um programa ou documento com outro, permitindo a execução contínua entre os programas
e os documentos. A era do link, sem dúvida a época em que estamos vivendo atualmente, é a
era das interconexões, do acesso livre aos bits de informação através dos meios informáticos e
telemáticos, da possibilidade de superar a unidimensionalidade e a linearidade da comunicação
analógica. A era do link aponta para a atual cultura digital e para as idéias do hiper-espaço,
do hipertexto e da interatividade, cujas características consistem na nova relação espaço–
temporal inerentes à virtualidade, à temporalidade e à ubiqüidade de dados; na substituição da
relação distância–tempo pela instantaneidade; e no vínculo entre usuário e universo técnico.
Mesmo que uma parte representativa da aplicação dessas noções esteja relacionada com
a expansão da Internet, não podemos esquecer que uma série de projetos precursores de
investigação já expressava a idéia de interconexão de diferentes fontes de informação e de
processamento hipertextual através de uma rede. O mais pioneiro foi concebido pelo belga
Paul Otlet (1868-1944), que escreveu o Traité de documentation: le livre sur le livre (1934)
e fundou o Mundaneum, um instituto de documentação cujo objetivo central era resolver o
problema do acesso à informação arquivada de grande parte dos conhecimentos do mundo
para o maior número de pessoas, utilizando, para isso, sistemas de hipervínculos, classificação
*
68
Doutora em História da Arte pela Universidade de Barcelona, em Estética Digital. Especialista em media art, teórica e
escritora, é curadora e promotora de exposições e eventos culturais. Mora em Barcelona. [email protected]
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
distribuída e uma máquina de pesquisa automática em rede, antecipando, assim, a idéia básica
da World Wide Web e inclusive da Web semântica, que até hoje não conseguiu una aplicação
realmente funcional. Vannevar Bush (Memex, 1945), Douglas Engelbart (On Line System, com
interface gráfica e mouse, 1968) ou Theodor H. Nelson (Xanadu, 1968) foram outros precursores do sistema hipertextual aplicado por internet.
As origens técnicas da Internet estariam vinculadas à rede de computadores Arpanet, iniciada
em setembro de 1969 pela Agência de Projetos de Investigação Avançada do Departamento
de Defesa dos Estados Unidos (Arpa). Em seus dois primeiros anos de funcionamento, essa
rede chegou a unir 15 centros universitários de pesquisa. Esse fato demonstra que a criação
de uma rede telemática de comunicação não era um interesse exclusivamente militar (alcançar
a superioridade militar no mundo e gerar um sistema de comunicação capaz de resistir às
armas nucleares), mas aglutinava também o mundo acadêmico. Assim, em 1980, começaram
a formar-se redes telemáticas de comunicação como a Usenet News, para usuários do Unix,
e em 1981 a Bitnet, para usuários da IBM; em 1983, o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos criou sua própria rede, desvinculando-se da Arpanet, que passou a atender unicamente
à investigação acadêmica, sob o nome de Arpa-Internet.
Apesar dessas experiências precursoras de formação de telerredes de informação colaborativas delinearem os caminhos iniciais, a implantação da Internet como rede de comunicação
pública de acesso mundial e livre se produziu, de fato, com a criação da World Wide Web, em
1990, por Berners-Lee, e sua divulgação pública em 1991, assim como com o lançamento do
navegador Mosaic (NCSA, 1993), e, posteriormente, do primeiro navegador comercial, o Netscape Navigator, em 1994, que passou a usar a estrutura de uma linguagem de programação
específica (Java), e de outros navegadores de livre acesso para os usuários.
Entretanto, as possibilidades de teletransmissão de informação não atraíram apenas os âmbitos
universitário e empresarial, mas também o mundo da arte. Na verdade, nas primeiras décadas
do século XX, alguns artistas dadaístas e construtivistas, e, na segunda metade, as manifestações em torno da Mail-Art, do Fluxus, das performances, ou da arte conceitual estabeleceram
uma série de projetos que demonstravam uma preocupação precoce na utilização criativa dos
meios de comunicação a distância (telefone, fax, televisão, satélite, vídeo). A partir da década
de 1970, teleações como Cadaqués Canal Local (Antonio Muntadas, 1974), Seven thoughts
(Douglas Davis, 1976), O mundo em 24 horas (Robert Adrian, 1982), projetos via satélite como
Nine minutes live (Nam June Paik, 1977) ou Two way-demo (Sharp; Bear; Grace; Loeffler, 1977),
foram tentativas de transformar a tecnologia da telecomunicação em um meio participativo
e criativo, e podem ser considerados, sob o ponto de vista contextual, como antecedentes da
arte para Internet2.
Na década de 1980 e princípios da de 1990, paralelamente ao desenvolvimento técnico da
Internet, o mundo da cultura, não apenas na Europa e nos Estados Unidos, mas também na
América Latina, na Ásia ou na África, descobriu as potencialidades das redes telemáticas. Modelos
de arte e telecomunicação foram desenvolvidos por artistas ou grupos pioneiros, como a rede
em torno de Roy Ascott,Terminal Consciousness (1980), os projetos baseados em redes participativas, teleconferências, mailboxes ou TV interativa, como Electronic Cafe Internacional (Kit
Galloway e Sherrie Rabinowitz, 1984); ArtCom Electronic Network-ACEN (C. Loeffler, 1986);
Bionic (Rena Tangens e Padeluun, 1989, BBS-mailbox); pARTiciFAX (1984, com participantes
da Ásia, da Austrália, da África, da América e da Europa); Ponton/Van Gogh TV (Ponton Media,
Documenta 9, 1992, que utilizaram, entre outras tecnologias, o Sistema de Boletins Eletrônicos
69
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
via modem), Fax Station (Marisa Gonzáles, Circulo de Bellas Artes de Madrid, 1993), o Telage
(Carlos Fadon Vicente, 1994, com conexão via modem e programas como MicroPhone ou
SmartCom, que uniram São Paulo, Campinas, Recife–Brasil e Lexington–EUA).
Em geral, os principais objetivos desses projetos eram estabelecer novas formas de interação
a distância e gerar espaços virtuais que pudessem servir como plataforma para a criação de
obras artísticas, muitas delas com forte apelo social, em que os usuários desempenhavam um
papel fundamental. Por exemplo, Electronic Cafe International, o evento sócio-artístico criado
por Galloway e Rabinowitz, tinha por objeto possibilitar o encontro e o diálogo tanto entre
pessoas fisicamente remotas, por meio de teleconferência, como entre os grupos que costumavam reunir-se nos cafés do bairro. O projeto pode ser considerado o primeiro protótipo
do hoje tão difundido modelo comercial do ciber-café.
Paralelamente ao desenvolvimento da tecnologia, foram concebidos novos conceitos e uma
terminologia específica. O termo ciberespaço, proveniente do romance de ficção científica
Neuromancer, de William Gibson, 1984, que alude a um mundo artificial onde as pessoas
navegam por espaços de dados, chegou a ser sinônimo deste novo universo telemático de
circulação de informação. A possibilidade de interatividade, a superação de fronteiras geográficas físicas por meio da conexão em uma escala global (espaço imaterial, hiper-espaço) e a
viabilidade de gerar ubiqüidade e telepresença (corpo virtual) se converteram em aspectos
próprios do mundo virtual em rede. Cibercultura, ciberpunk, ciborgue, cibercapitalismo, cibercidade, ciberfeminismo e uma série de outras derivações passaram a fazer parte do vocabulário cotidiano da rede.
A netcultura gerou também processos específicos. Entre outros, a “colonização” do ciberespaço gerou uma segmentação entre o mundo institucional, a esfera política, os interesses
corporativos, os interesses privados e a contracultura. Porém, apesar da diversidade de interesses, na primeira etapa de implantação todos compartilhavam, em geral, um grande otimismo
(em alguns casos, deixando-se levar por uma torpe ingenuidade) em relação ao enorme potencial, considerado democratizante e emancipador da rede. Mediante uma série de manifestos
pretendia-se definir – de forma mais ou menos utópica – os princípios da Internet. John Perry
Barlow e Mitch Kapor criaram a Electronic Frontier Foundation para defender a liberdade
da Internet ante as constantes ameaças governamentais de “intervencionismo”. Em 1996, sua
“Declaração de independência do ciberespaço” foi uma clara reação neoliberal às propostas
de reforma e controle das telecomunicações do governo norte-americano. Em 1991, o Cyberfeminism Manifesto for the 21th Century, do grupo australiano VNS Matrix, criticava a práxis
multimidiática, em sua maioria definida por usuários masculinos, não só no contexto da cultura,
mas também nas esferas sociopolíticas e econômicas. O caráter conservador e neo-imperialista foi proporcionado pela Magna carta for the knowledge age (1994), redigida pelos norteamericanos George Gilder, Alvin Toffler, Esther Dyson e George Keyworth, que viam na união
do capitalismo e da tecnologia um salto para a evolução (sic) da humanidade. Entretanto, ciberativistas e hackers defendiam a abertura do código-fonte, elaboravam protestos, sabotagens e
mobilizações sociais em e através da rede.
70
Tal processo não passou despercebido pela comunidade artística. Com a difusão da www, um
número maior de criadores começou a explorar o uso da rede para a geração de projetos
artísticos relacionados com a investigação da linguagem específica ao meio. De um lado,
formaram-se grupos em torno das comunidades virtuais. Em 1991, o já legendário projeto
The thing3 entrou em rede, em Nova York, em formato BBS (sistema de boletins eletrônicos
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ou mailbox) como plataforma para os artistas e a cultura contemporânea, e popularizou o
lema “the users are the network”. Seus objetivos eram fomentar e revitalizar o discurso da
arte, atuando como espaço para a comunicação, a distribuição e a produção em rede de novas
formas artísticas. Em 1995, The thing já contava com outra “filial” em Viena, com fóruns de
discussão na web, um jornal online (Journal of Contemporary Art), mostras online, serviços de
e-mail, banco de dados, etc.
Com base em perspectivas mais pessoais, os artistas se interessaram pelo uso da Internet
como meio para gerar obras específicas que trabalhassem com a noção de rede e de um
possível diálogo aberto, estabelecendo, assim, as bases do que se chamaria, posteriormente, de
net arte ou web arte. A artista holandesa Merel Mirage conta que “em 1993, quando comecei
a explorar a tecnologia da internet, havia algo muito novo: o public browser, que se chamava
X-Mosaic. Eu comecei a estudar na Academia de Mídia e Arte de Colônia e todos estávamos
muito impressionados: ‘Há algo novo que se chama Internet. O que é isso?’”4. Nesse mesmo
ano, Mirage criou Poem*Navigator5, um dos primeiros projetos para Internet, que propõe
a noção de viagem hipertextual com base em um poema, seus elementos e detalhes que
retratam a cultura chinesa. A metáfora da “viagem”, como veremos mais adiante, transformarse-ia em arquétipo do espaço hipertextual e passaria a ser um dos temas mais recorrentes nas
obras de net arte. O projeto Handshake, também de 1993, realizado por Barbara Aselmeier,
Armin Haase, Karl Heinz Jeron e Joachim Blank, apostava na interatividade com os usuários,
mas seus criadores viram-se circunscritos à realidade do momento. “Quando começamos
nossas atividades na Internet nos deparamos com o problema de que somente muito poucas
pessoas conheciam o meio e praticamente não eram capazes de entender o que fazíamos na
Internet. Em vista disso, tivemos que transformar Handshake, uma obra de net arte específica
para a rede, em instalação”6.
Uma série de artistas que já trabalhavam com meios eletrônicos, como Julia Scher, Antonio
Muntadas, Paul Garrin ou David Blair, se interessaram pela experiência na rede. Em 1994, destacaram-se oito projetos para a Internet que marcam, junto com as obras de 1993, a primeira
etapa da produção online: o primeiro projeto de um filme hipertextual na Internet, Waxweb,
de David Blair7; a Digitale Stad Amsterdam e a Internationale Stadt Berlin8 (a primeira com um
forte acento ativista e de mobilização sociopolítica, a segunda com o propósito de criar uma
cidade virtual como ponto de encontro público e privado); o projeto participativo de Antonio
Muntadas, The file room, uma espécie de tele-arquivo contra a censura, no qual qualquer
usuário pode descrever e documentar seu caso individual, assim como buscar informação
sobre outros casos9; Fluxus online, de Paul Garrin; Hotpics, um projeto de fotografia online do
www-Art Center de Moscou, de Alexei Shulgin; a criação de ada’web por Benjamin Weil e John
Borthwick, uma plataforma de apoio para a criação online que, junto com The thing, serviu de
modelo para uma série de futuras galerias virtuais; e o projeto Electronic Carnival, do grupo
*.*, formado por Artemis Moroni, Paulo Cohn e José Augusto Mannis, apresentado no fórum
eletrônico internacional, ISEA’94, em Helsinki, que articulava o diálogo entre pessoas ao redor
do mundo e a construção de personagens a distância.
A rede era explorada simultaneamente como espaço de criação e como espaço para a criação,
fato que determinou duas vertentes principais: a arte para Internet e a arte na Internet.
Enquanto a primeira define claramente as obras cuja idiossincrasia principal é se inserir e se
apropriar da plataforma telemática como contexto, como meio e como linguagem própria
(net arte), a segunda engloba todas aquelas manifestações que utilizam a Internet como tecnologia de comunicação catalisadora para a arte e a cultura (galerias virtuais, listas de discussão,
71
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
revistas online, etc.). Joachim Blank, um dos criadores da Internationalen Stadt Berlin, sugeriu
o conceito de context systems para definir esse tipo de comunidades virtuais. Como comprovaremos mais adiante, a partir dessas duas formas de utilização da Internet surgiram vários
matizes e desdobramentos.
As comunidades virtuais, como The thing, Bionic ou Ada web, desempenharam um papel importante na ampla disseminação da net arte a partir de 1995, tanto em relação à difusão como à
produção. Mailing lists como o Nettime, criado por Geert Lovink e Pit Schultz em 1995, ou
Syndicate, criada por iniciativa do centro V2 de Rotterdam em 1996, ajudaram a formar uma
rede de interessados e a fomentar um ponto de vista crítico contra as ideologias que se aproximavam do estilo da Wired.
Portanto, o período entre os anos de 1995 e 1998 pode ser considerado o “ponto álgido” da
experimentação criativa com Internet. Foi o momento em que se configurou um novo perfil
de net-artistas, que trabalhavam de forma praticamente exclusiva com Internet, como Joachim
Blank, Jodi, Alexej Shulgin, Holger Friese, etc. Também foi uma época tanto de questionamento
por parte dos próprios criadores da denominação “arte” em relação a seus projetos para
Internet como de um novo delineamento da funcionalidade e do determinismo do meio.
Os experimentos de desconstrução tecnológica, como os trabalhos de Jodi, estavam – como
eles mesmos afirmam – “contra o high-tech. Nós lutamos também em nível gráfico contra a
máquina, […] investigamos o computador por dentro e transferimos este processo para a
rede”10. Os ataques aos navegadores perpetrados pelo artista esloveno Vuk Cosic expunham a
anormalidade ou o erro como ação estética. Paralelamente, proliferaram os projetos ativistas,
como The Digital hijack, criado pelo grupo etoy em 199611. A obra consistia em captar usuários
por meio dos serviços de busca. Uma vez dentro do site do etoy, os usuários eram “seqüestrados” e recebiam a ameaça: “Não se mexa, este é um seqüestro digital”. O êxito da obra
– até 17 mil seqüestros por dia, mais de 600 mil no total – obrigou o grupo a suspender o
experimento (“muitos queriam ser seqüestrados voluntariamente”). Com este trabalho, o etoy
procurou demonstrar as deficiências do acesso à www e lançar uma “crítica ao uso passivo e
desorientado dos novos meios”, como afirmou Martin Kubli, um dos membros do grupo.
O netativismo gerou movimentos interessantes e efetivos, originando uma metodologia de
atuação em grupo e um posicionamento político crítico baseado em uma “desobediência civil
eletrônica”. Este conceito, introduzido pelo grupo de ativistas zapatistas mexicanos em 1994 e
difundido pelo grupo Critical Art Ensemble alguns anos depois, serviu de lema para uma série
de ações ativistas ou hacktivistas, como FloodNet, do grupo Electronic Disturbance Theater
(EDT), que, com um software para a invasão massiva de páginas web, colapsou o servidor do
governo mexicano com perguntas e buscas na base de dados (as palavras “direitos humanos”
foram repetidamente introduzidas no sistema de busca da web, que várias vezes dava como
resultado not found).
72
Os posicionamentos críticos em relação às questões tanto sociopolíticas quanto às relacionadas ao estabelecimento, no próprio contexto, dos efeitos e das idiossincrasias da tecnologia,
produziram, e seguem originando, contribuições especialmente estimulantes na rede. Para citar
alguns exemplos: Refugee Republic, de Ingo Günther12, deixa entrever que, na era telemática,
em que se fala de globalização ou de “desmaterialização” das fronteiras no ciberespaço, a realidade geográfica patente nos problemas de imigração continua sendo uma questão de poder
territorial. Technologies to the people, de Daniel García Andújar13, parte da reflexão em torno
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do uso “democrático” das tecnologias e atua como uma provocação pública, na medida em
que se apresenta como uma empresa virtual que, ainda que só exista como projeto artístico,
funciona de maneira real no contexto da sociedade.
Além de incluir essas tendências, a segunda etapa também se caracterizou pela realização
dos primeiros eventos, mostras e publicações diretamente vinculados com a net arte ou as
comunidades virtuais. Mythos information - Welcome to the Wired World foi o tema da Ars
Electronica 95, organizada por Peter Weibel, que reuniu grande parte da comunidade artística
ativa na Internet e em projetos de telecomunicação (Muntadas, Knowbotics Research, Eduardo
Kac, David Blair, Public Netbase tO, etc.), assim como teóricos das mídias que criaram as
bases para o redelineamento do tecnodiscurso (Paul Virilio, Florian Rötzer, Friedrich Kittler,
Pierre Lévy, Slavoj Zizek, Geert Lovink, Saskia Sassen, etc.)14. Principalmente a partir de 1996
começou a difundir-se o termo net.art, utilizado no primeiro encontro de artistas europeus
que trabalhavam com a Internet, o The next five minutes.
No Brasil, as idéias de Waldemar Cordeiro sobre uma conexão global e um amplo acesso
livre do público à obra através da telecomunicação anteciparam a proposta da arte em rede
e as noções de ubiqüidade e interatividade15. As manifestações mais representativas de arte e
comunicação se desenvolveram na década de 1980. Natural de Madri, mas residente no Brasil
desde a década de 1960, Julio Plaza (1938-2003) – artista cuja produção abarca desde a poesia
visual, a videopoesia e a holopoesia, até a copy art e a arte telemática – coordenou eventos
pioneiros neste campo, como o projeto Arte pelo telefone, realizado em São Paulo em 1982,
e no ano seguinte, a exposição Arte e videotexto, organizada para a 17ª Bienal Internacional
de São Paulo, composta de oito núcleos, com a participação de artistas de diferentes áreas,
por exemplo, o próprio Julio Plaza, Regina Silveira, Vera Chaves Barcellos, Wagner Garcia, Jac
Leirner, Mário Ramiro, Alex Flemming, Ana Maria Tavares, Carmela Gross, Nelson das Neves,
Lucia Santaella, entre outros. A estas primeiras propostas se seguiu uma prolífica atividade em
torno da integração dos meios de comunicação e a arte, como os projetos de Mário Ramiro
(Clones – uma rede de rádio, televisão e videotexto, junto com Wagner Garcia, São Paulo,
1983), Eduardo Kac e Carlos Fadón Vicente; exposições como a retrospectiva de obras de arte
e comunicação Arte: Novos Meios/Multimeios – Brasil 70’-80’, na Fundação Armando Álvares
Penteado (Faap), São Paulo, 1985; ou a criação do Instituto de Investigação em Arte e Tecnologia (Ipat), que reuniu um grupo de artistas e teóricos, como Julio Plaza, Carlos Fadón Vicente,
Artur Matuck, Milton Sogabe, Paulo Laurentiz, Anna Barros, Arlindo Machado, Gilbertto Prado,
Wagner Garcia, entre outros, para pesquisar e organizar eventos de arte e comunicação, utilizando inicialmente slow-scan television, videotexto e fax.
Na Espanha, talvez a primeira obra de net arte que tenha conseguido o apoio de um museu
seja Sísif (1995), de Antoni Abad, que consistiu em dois sites, um instalado na web do Museu
de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba), e outra na web do Museu de Wellington, na
Nova Zelândia. A dupla representação de Sísifo puxando penosa e interminavelmente a corda
em seus dois extremos aludia ao vínculo simbólico (mas igualmente enredado) no espaço
virtual. Abad também conseguiu vender a primeira obra de net arte na Espanha, 1.000.000, no
contexto da Arco 1999.
LohHumano y lo invisible16 (de novembro de 1996 até janeiro de 1997) foi a primeira mostra
de web arte organizada na Espanha e uma das primeiras realizadas no mundo, dado que a
primeira exibição de arte para Internet com projeção internacional foi a organizada na Documenta X de Kassel, em 1997.17 Este projeto conjunto de ACC L’Angelot e Connect-arte,18
73
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
ambos de Barcelona, contou com a participação, em sua maioria, de artistas convidados a
explorar o meio como nova forma de linguagem ou a criar obras específicas para o evento,
como Bressemer, Bernardo Tejeda/Nilo Casares, Sylvia Molina/Juan Milhares,Victor Nubla, Marc
Palau, Carles Pujol, Myriam Solar,Yolanda Segura e Zush, mas também participaram netartistas
que, naqueles momentos, começavam a desenvolver um trabalho pessoal para Internet, como
o casal Jodi (Dirk Paesmans e Joan Heemskerk).
Em 1997, Robbin Murphy e Remo Campopiano organizaram a mostra Port: navigating digital
culture, na galeria do MIT List Visual Arts Center, de Cambridge, Massachusetts. A preocupação
dos organizadores do projeto com a solução da apresentação física fez com que optassem por
critérios expositivos destinados tradicionalmente a obras de videoinstalação (os trabalhos
online eram projetados em quatro grandes telas que pendiam do teto; nas paredes reproduziase uma série de textos explicativos e didáticos sobre a mostra, etc.); dessa maneira, seguiu-se
dando ênfase, ainda que carecesse de coerência, à representação do espaço expositivo físico, e
se relegou a um segundo plano o caráter online e interativo das obras.
Em 1998, Ricardo Ribenboim e Ricardo Anderáos fizeram a primeira curadoria de web art no
Brasil, organizada para a 24ª Bienal Internacional de São Paulo. Concebeu-se uma interface que dava
acesso, mediante enlaces, a vários projetos de web art de artistas brasileiros e internacionais.
Em 1999, a mostra Net_Condition reuniu pela primeira vez a maioria das obras de net
arte produzidas internacionalmente até aquele momento, assim como obras novas. Como
evento multilocal e interconectado, foi apresentado na rede e, simultaneamente, em quatro
centros de diferentes países: ZKM Center for Art and Media, em Karsruhe (Alemanha), que
promoveu o evento; Intercommunication Center (ICC), Tokio (Japão); Media Centre d’Art i
Disseny (MECAD), de Sabadell/Barcelona; e o festival steirischer herbst, em Graz (Áustria).
Cada um dos centros participou em nível local (apresentando exposições “físicas”) e em nível
telemático, produzindo obras específicas para a mostra e colaborando na seleção global dos
projetos, realizada por Peter Weibel, curador junto com a autora deste ensaio, Jeffrew Shaw
e Toshiharu Ito, que podiam ser acessados na web do ZKM. A importância da mostra não se
apoiou somente no alcance quantitativo das obras participantes ou em seu caráter multilocal,
mas também na transcendência das reflexões geradas por ocasião do evento por intermédio
do simpósio organizado em Karsruhe, da apresentação e do debate público no MECAD e
em Graz, da edição do catálogo Net_Condition (uma obra de referência obrigatória) e dos
diversos materiais publicados nos meios de comunicação.
2. O século XXI. Reflexões atuais em torno da arte para Internet
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Sob a perspectiva contemporânea, parecem muito distantes os momentos de euforia idealista
que prevaleceram na fase inaugural da Internet, ainda que apenas uma década nos separe.
Agora, mais do que nunca, surgem interrogações a respeito da arte para Internet. Não poucos
teóricos e artistas questionam as atuais tendências na rede, sobretudo pelo caráter cada vez
mais lúdico e banal das produções. Igualmente, a maneira genérica e indiscriminada com que se
atribui a denominação “arte” a qualquer tipo de produção online provoca confusão e desconcerto. Distintas interrogações são formuladas cada vez mais freqüentemente no contexto da
net arte. “Entretenimento ou arte na www?” (Gottfried Kerscher). “Disneyificação da rede?”
(Eva Wohlgemuth).“Foi bom conselho inserir os criadores para Internet no contexto artístico?
Manterá a net arte seu vigor e individualidade ante o crescente interesse dos museus? Resistirá
à institucionalização?” (Tilman Baumgärtel). Estamos experimentando e pondo em prática as
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idéias de Lucio Fontana e, posteriormente, de Beuys, que defendiam que toda pessoa é um
artista, neste caso, no ciberespaço?
Como em outros campos da criação, a produção para Internet também está tomando dois
rumos distintos: a generalização apoiada na técnica e o distanciamento dos estereótipos. Não
faz muito tempo, assim que os artistas plásticos descobriram a Internet como meio de difusão
de suas obras, começaram a digitalizar e a inserir em suas páginas web imagens de desenhos,
aquarelas e, inclusive, pinturas, e a afirmar que também eram artistas digitais. Algo parecido
está acontecendo com o uso de alguns softwares, como o Flash, que desenvolveu uma estratégia de marketing persuasiva dirigida a grupos de aficionados, que rapidamente agregaram à
marca corporativa a designação de “arte”, como se esta avalizasse sem reservas a qualidade.
Agora, qualquer animação ou passatempo dinâmico realizado com essa ferramenta recebe a
“denominação original” de Flash Art. A apropriação do termo arte serve, assim, para justificar
o uso de softwares comerciais. Resta saber se essa estratégia de mercado gera mais vendas, ou,
ao contrario, estimula a pirataria das ferramentas.
Paralelamente, têm surgido manifestações opostas a essa tendência mais prosaica e generalizante, que destacam a necessidade de manter independência em relação aos produtos comerciais, como, por exemplo, por meio dos recursos de programação, e de apostar na criatividade
e no conceito. Os projetos que trabalham nessa linha se caracterizam por uma estética peculiar ao meio telemático, que incide no dinamismo, na desconstrução e, muitas vezes, no inesperado. Em geral, esses “programadores” não querem ser qualificados como “artistas”, tampouco
consideram suas intervenções na rede como obras de arte, apesar de, em muitos casos, o
mundo da arte acabar por absorvê-los. Projetos que investigam, em particular, a dinâmica da
rede passam a ser automaticamente considerados experimentos artísticos. Um exemplo claro
é a concepção de um prêmio no contexto do festival Transmediale, de Berlim, dedicado ao
“software arte”, que a cada ano seleciona uma série de propostas de programas, como Nebula.
M81 Autonomous, de Netochka Nezvanova, ou retroYou, do espanhol Joan Leandre.19
Nesta linha de investigação incide o projeto de Alexej Schulgin, Refresh (1996), que motiva os
usuários da Internet a empregar um comando html pouco difundido, o refresh, por meio do
qual se envia o navegador, depois de um certo tempo, a outras páginas html distintas. Depois
de um mês na rede constituiu-se uma cadeia sucessiva de homepages interconectadas em
todo o mundo, ainda que a maioria dos participantes não conheça cada uma individualmente.
Outro exemplo é Schredder 1.0, de Mark Napier, que considera ser o navegador um órgão
de percepção que filtra e organiza uma grande massa de informações estruturada e pelo qual
entendemos a rede, enquanto as páginas web são imagens gráficas temporais criadas quando
o software do navegador interpreta as instruções em html. Ma o que acontece se essas instruções forem interpretadas de uma maneira diferente da prevista? The Schredder investiga a
potencialidade da estrutura global a partir de uma visão anárquica e irracional. Alterando o
código html antes que o navegador o leia, a obra de Napier se apropria dos dados da web e os
transforma em uma web caótica paralela.20
A diversidade de tipos de produções online tem dado margem a freqüentes equívocos interpretativos ou classificações ansiosas. Nos últimos anos, sobretudo os teóricos da media art têm
tentado pôr um pouco de “ordem” no vocabulário impreciso utilizado indiscriminadamente,
assim como estabelecer certa distinção entre os diferentes tipos de criação. Em linhas gerais,
pode-se diferenciar entre network e net work (como propõe Baumgärtel), ou entre net arte e
web arte. Net work ou web arte se referem a obras realizadas para a www, que usam o formato
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VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
de página web ou são net-specific. Neste âmbito é possível distinguir as obras interativas (netspecific) daquelas de web arte, cuja essência funcional consiste na navegação hipertextual
mediante links ou conexões entre páginas, que não permitem a intervenção direta do usuário
na obra, ou cuja ação de clicar provoca alterações pré-programadas. Uma parte representativa
das obras produzidas nos últimos anos segue essa tendência e, talvez, a maioria seja menos
experimental como linguagem e mais trivial no que concerne à navegação do que muitas das
obras da primeira fase. Há de se ter em conta que o meio por si só não muda a linguagem, uma
vez que são as formas de utilização do potencial deste meio que implicam uma transformação.
Muitas obras de web arte seguem usando a tela e a estrutura em rede como se fosse um livro
de papel (lembrando que também as publicações físicas podem ser folheadas aleatoriamente
ou de forma não linear)21: o clique não corresponde a outra coisa que a um simples passar de
página, uma vez que se considera a pessoa que a folheia um leitor corrente, não mais ativo ou
passivo que o leitor de um livro. Neste caso, ainda que o meio digital seja outro e suas potencialidades sejam outras, vale-se das mesmas formas convencionais ou analógicas de uso e transmissão de informação.A tendência estetizante informal converte a tela em mero campo no qual
se disponibilizam atrativos jogos visuais. São obras fechadas e, conseqüentemente, muitas delas
podem ser visualizadas off-line ou copiadas em outro formato digital (CD-Rom, disquete, etc.)
O caráter net-specific é uma das peculiaridades das obras da net arte ou net work participativa
e interativa. Por um lado, os projetos de net arte interativa são conceitual e funcionalmente
dependentes da rede e da atuação do usuário, que pode provocar mudanças tanto no sistema
como no processo mediante recursos de Java Script ou applets, formulários ou campos para a
introdução de dados, CGI-Scripts, etc. (como o projeto Good Browser/Bad Browser, de Blank e
Jeron, 199722). No contexto deste tipo de obras, as pessoas assumem uma dupla função: são usuários e espectadores, mas são, também, participantes e atores. Isso implica desempenhar um duplo
papel: como observadores do que sucede ou consumidores da informação que circula, e como
integrantes deste espaço virtual e impulsionadores de trocas na informação. A segunda versão
de Z, obra de net art de Antoni Abad23, joga com as possibilidades de interação com a mosca
virtual, que se desloca da web para a área de trabalho do computador do usuário. A mosca na
tela funciona como um elemento ativo, fora de contexto e fora de controle, como um elemento
que subverte as funções (pré)-estabelecidas da Internet. A impossibilidade de controlar completamente o meio e seus significados, que estão dispersos de forma caótica na rede (da mesma
forma que o vôo caótico da mosca pela tela), reflete-se no comportamento do inseto. Por isso,
neste projeto, “voar” e “navegar” são duas ações que adquirem certa analogia.
Nos projetos de net arte participativa, o usuário é convidado a colaborar ativamente no processo
enviando informação ou dados que passam a fazer parte da obra (como File room, de Muntadas, ou
The longest sentence of the world, de Douglas Davis, para citar dois projetos já “clássicos”).24
As obras de network ou, como propôs Joachim Blank, context-systems consistem em projetos
que criam uma rede colaborativa e existem com base na participação de múltiplos usuários, que
não necessariamente produzem “arte”, mas atuam nesta plataforma comum (como os mailing lists
Syndicate, nettime, Rhizome, etc., ou as comunidades virtuais, como Public Netbase tO,Viena25).
76
Entretanto, devemos relativizar a literalidade dessas definições, já que muitas obras são um híbrido
entre umas e outras. Por exemplo, a obra What you get, de Roberto Aguirrezabala, co-produzida
pelo MECAD para a mostra Net Conditio26, é um híbrido entre network e net work ou net arte:
enquanto os usuários navegam pela web, seus deslocamentos são registrados em uma base de
dados que permite identificar o perfil da pessoa (uma paráfrase dos estereótipos gerados pelos
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chamados serviços de busca “inteligentes”). Os usuários não são conscientes desse processo,
mas, no final dessa primeira etapa, têm acesso a uma comunidade virtual povoada por outras
pessoas (visitantes anteriores da web) que compartilham o mesmo perfil. Nessa comunidade
podem estabelecer-se diferentes formas de convivência que geram intercâmbios entre os participantes e transformam esse sítio em uma plataforma de encontro virtual.
As obras online que usam tecnologias de vida ou inteligência artificial, assim como sistemas
robóticos, costumam ser híbridas, visto que podem basear-se na participação do usuário, mas
adquirem muitas vezes formas autônomas por meio de seus códigos pré-programados ou algoritmos (banco de dados, algoritmos genéticos, etc.). Em vários casos, o hibridismo se produz
tanto em relação ao formato, dado que combinam a proposta online com uma presença física
real em forma de instalação ou intervenção pública, quanto ao tipo de interatividade. A obra de
vida artificial online e em formato de instalação (ICC InterCommunication Museum de Tokio), de
Christa Sommerer e Laurent Mignonneau, Life Spacies27, correlaciona as contribuições dos visitantes reais no espaço da instalação com as dos usuários em rede. Mediante um sistema de codificação que traduz textos em formas segundo os códigos genéticos, os participantes podem criar
sua própria criatura artificial por meio do envio de um correio eletrônico com uma descrição
escrita. A partir da recepção do e-mail, a criatura é gerada formalmente e começa a “viver” no
ambiente virtual. O “criador” do ser virtual recebe um curriculum vitae e uma imagem de “sua”
criatura e é informado de seu tempo de vida, seus descendentes e clones gerados.
Enquanto nesse tipo de obras predomina a noção de habitat artificial e imaterial, as obras
telerrobóticas costumam apropriar-se de um espaço físico no qual geralmente está instalado o sistema robótico, ao qual se vincula um espaço virtual que permite ao usuário a interação a distância com a máquina. Stelarc, Eduardo Kac e Ken Goldberg, entre outros, criaram
obras telerrobóticas baseadas na noção de “usuários remotos”, que enviam através da rede
instruções de funcionamento das estruturas robóticas: no caso de Stelarc, para manipular seu
próprio corpo em obras de telepresença (Ping Body, 1997); no caso de Kac, para controlar a
distância telerrobôs (Ornitorrinco, 1989-1996; Rara Avis, 1996); e, em Goldberg (TeleGarden,
1995), para cultivar um jardim a distância. Em 1992, Eduardo Kac apresentou no Siggraph Art
Show, em Chicago, seu projeto Ornitorrinco in Copacabana, que envolvia duas localidades
distintas: o Rio de Janeiro e uma estação pública de telepresença no McCormick Place, de onde
se podia controlar o Ornitorrinco, mediante telefone e videofone de controle remoto, em um
ambiente especialmente criado na School of the Art Institute of Chicago. O TeleGarden28 foi
instalado fisicamente no Ars Electronica Center, em Linz, Áustria, e consistiu em um pequeno
jardim real de calêndulas, pimentões e petúnias no qual qualquer usuário da rede que estivesse disposto a dar a conhecer seu endereço eletrônico ao coletivo de tele-horticultores
adquiria o direito de plantar e regar o jardim, usando para isso o braço robótico manipulado
a distância. A sobrevivência da planta ficava a cargo da pessoa que a havia plantado, que devia
regá-la e cuidá-la usando sua extensão mecânica29. A segunda experiência, o work-in-progress
TeleZone30, oferecia a possibilidade aos usuários de construir uma pequena cidade virtual
mediante o controle de um robô através da Internet, que deslocava por uma plataforma física
instalada no Ars Electronica Center os elementos ou estruturas segundo as indicações do
“arquiteto” virtual. A idéia era criar um conjunto arquitetônico construído de forma coletiva e
compartilhado no espaço virtual (VRML) e no contexto real (sala de exposição).
O controle remoto online de ações que podem ser observadas em espaços físicos é uma das
características das obras que pretendem intervir em um contexto público. Rafael LozanoHemmer, em Alzado vectorial elevation (1999-2000), instalou focos de luz controlados teler-
77
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
robóticamente no centro histórico da cidade do México,31 o Zocalo, cujos movimentos diretos
podiam ser determinados pelos usuários da rede. Esses exemplos de hibridismo demonstram
o desgaste da rígida fronteira entre as noções tradicionais de arte e não arte. De fato, vários
projetos para Internet embaralham ambas as noções, e muitas vezes a intenção última de seus
realizadores (experimentar a potencialidade da rede, jogar com a interatividade online, etc.)
não corresponde à classificação que lhe é atribuída pelo meio artístico. Como declara Olia
Lialina: “Eu não era uma artista antes que me convertessem em netartista. Talvez seja por isso
que, desde o princípio, me concentrei na linguagem da Internet, em suas estruturas e metáforas”32. Ou, segundo constata Jodi: “O rótulo ‘arte’ não está aderido ao nosso trabalho. No
meio em que atuamos ninguém se preocupa com tais etiquetas. Mas quando exibimos nosso
trabalho numa galeria, então se lhe atribui o rótulo ‘arte’ e nós temos de inventar um ‘método
artístico’ para poder apresentar nosso trabalho”.33
3. Metáforas / NETáforas34
Da mesma maneira que não se pode tratar a media art isolada da arte contemporânea,
tampouco é possível entender (como muitos autores já apontaram) a net arte como um novo
“ismo”, uma corrente independente da produção artística atual. O próprio questionamento
constante da arte não é uma tendência exclusiva no contexto online, mas que emerge no seio
da arte ao longo de todo o século XX. A necessidade de desenvolver uma linguagem criativa
própria, adequada às idiossincrasias das técnicas, das tecnologias ou do meio, é também uma
constante em todos os processos emergentes. Grande parte dos netartistas ou networkers
(utilizaremos os neologismos por carecer de um conceito mais global) é consciente de que o
trabalho para a rede não implica a adaptação e o ajuste de modelos de produção do passado
ou de outros meios – estratégia muito apreciada pela retórica pós-moderna–, mas implica criar
novos modelos específicos para o contexto de Internet.
Em muitos dos projetos de web arte, a inexistência de um caminho prefixado ou delimitado,
ou de um conhecimento preciso do objetivo final, reforça o conceito de navegação. O observador é transformado em um viajante que pode determinar o trajeto, mas não conhece seu
destino e está exposto às aventuras “performáticas” oferecidas pela obra. A viagem como
forma de percurso hipertextual é, talvez, uma das metáforas mais exploradas pelas produções
online. Desertesejo35, de Gilbertto Prado, consiste em um ambiente virtual interativo multiusuário construído em VRML que permite a presença simultânea de até cinqüenta participantes.
Mesmo que brinque com a idéia de extensão geográfica, o viajante experimenta o espaço
como infinito, formado por diferentes ambientes, aos quais pode aceder ativando ícones e
assumindo um avatar. Os trajetos podem ser percorridos solitariamente ou atuando com
outros usuários que estejam presentes no mesmo meio via chat 3D.
78
Em muitas obras, esse estilo de navegação se associa à forma de participação lúdica. Alguns
autores vinculam o aspecto lúdico dos novos meios a fenômenos marginais de comportamento orientados ao tempo livre, e não ao núcleo de uma relação próxima e cada vez mais
ostensiva com os artefatos técnicos. Entretanto, é fácil constatar que, na era digital, a tríade
ação–interface–jogo deixou de ser, há muito tempo, uma manifestação marginal de comportamento para passar a ser um dos fenômenos socioculturais mais amplos na atualidade. (E
não nos referimos unicamente aos jogos por computador ou videogames, já que podemos
extrapolar essas idéias a outros âmbitos de nossa cultura: aos meios de comunicação de massa,
à política, à economia.) A aplicação das estratégias de jogos nas obras para Internet constitui
hoje um dos recursos mais recorrentes. O fato de atuar no terreno do virtual (o como se)
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produz uma cisão com a realidade circundante. O conjunto de regras criado a propósito de
cada jogo gera uma (pseudo) realidade simbólica, isto é, um contexto virtual. Por meio da ação
e da relação direta mediante a interface, os usuários sentem-se integrados no universo do jogo
e em seu “vocabulário” visual lúdico.
O fato anteriormente apontado manifesta-se de forma tangível em obras de web arte como La
intrusa, de Natalie Bookchin, e [Relaciones de incertidumbre], de Dina Roisman36. A estrutura
aberta e hipertextual, o dinamismo, a relação espaço-temporal e a ação constituem suas características essenciais. Enquanto o conceito central de La intrusa consiste em pesquisar o uso da
linguagem própria dos jogos de computadores para a construção de uma narração hipertextual
de um conto de Jorge Luis Borges, [Relaciones de incertidumbre] utiliza a estrutura formal do
jogo para gerar um labirinto de imagens e conteúdos através do qual o usuário deve navegar ou
se perder. Nessas duas obras, o jogo e a interface gráfica são o elo estratégico que une os conteúdos da obra, o usuário e a ação. No Brasil, o grupo do Laboratório de Pesquisa em Arte e Realidade Virtual da Universidade de Brasília, coordenado por Suzete Venturelli, pesquisa essa relação
entre arte e jogo. As contribuições de Venturelli e Mario Maciel ao chamado game-art, com a
exploração de interfaces não convencionais para jogos de computador, têm especial destaque
no panorama da produção brasileira da arte online, software art ou arte interativa baseada em
experiências sensório-motoras. No campo da net art, Paula Perissinotto, na obra As we may
feel, envolve o usuário num jogo de perguntas sem respostas com um operador telefônico. Uma
sátira aos pseudo-diálogos que oferecem os serviços assistenciais a distância e à “catalogação”
dos sentimentos e conflitos existenciais próprios da sociedade de consumo atual.
As experimentações com a geração de narrativas hipertextuais têm criado um gênero específico na Internet. Uma das primeiras experiências foi levada a cabo pela famosa exibição
organizada por Jean-François Lyotard no Centre Pompidou de Paris em 1985, Les immateriaux, que demonstrou a capacidade dos escritores para se adaptarem a um novo tipo de
texto colaborativo e em rede. Mais de vinte escritores, artistas e intelectuais receberam uma
estação Minitel que permitiu a interconexão e o desenvolvimento de um colóquio em rede.
Em obras online mais atuais, a reconstrução da história costuma depender do percurso eleito
pelo usuário, como, por exemplo, nas obras da artista russa Olia Lialina (My boyfriend came
back from the war, 1996)37 ou nos poemas visuais de Postales, da argentina Gabriela Golden.38
Outros tipos de hipertextos apostam na participação do usuário, que deve contribuir com
conteúdos e ajudar, assim, a construir a narrativa. A obra The exquisite corpse, de Sharon
Denning39, propõe a criação coletiva da estória como processo colaborativo entre os usuários.
A partir de uma base de dados de possíveis estórias, os leitores/partícipes geram uma rede de
rotas que podem conduzir a muitos finais potenciais ou à ramificação infinita de possibilidades
de enfoque dentro da cada capítulo40.
Se navegarmos por diferentes projetos artísticos na Internet, damo-nos conta de que as questões de identidade, gênero e corpo são, sem dúvida, alguns dos temas mais tratados pelos
web-artistas. Bodyscan, de Eva Wohlgemuth,41 é um exemplo contundente do questionamento
da noção de corpo virtual: a imagem do corpo digitalizado da artista adquire “vida” na medida
em que permite o acesso livre dos visitantes ao seu interior. Além disso, a transformação do
corpo numa zona topográfica virtual, num campo de exploração, está em consonância com as
propostas pós-biológicas cultivadas e propugnadas por diversos artistas. Quando o performer
Stelarc propõe a utilização do corpo como anfitrião de outros agentes remotos, está sugerindo
uma nova concepção de identidade e consciência de realidade pessoal: o corpo como objeto e
como sujeito ao mesmo tempo; o corpo já não como um sistema funcional fechado, mas como
79
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
um meio receptor e de interface entre sujeito e usuário, entre sujeito e meio. A identidade
torna-se suscetível a mudanças e transformações. O ciberespaço permite viver experiências
sensoriais sui generis, na medida em que tornam possível transpassar (virtualmente) a pele
e imergir no mundo orgânico imaterial. É o caso de Epithelia, de Mariela Yeregui,42 uma obra
de net arte na qual o corpo virtual sem gênero e neutro de outro usuário se abre à navegação, que molda o corpo de dados como construção textual coletiva, anônima, sem mediação
temporária ou material. Construir o corpo desejado pelo usuário em três dimensões (VRML)
é um dos objetivos da obra de Vitória Vesna, Bodies (c)INCorporated, que reúne mais de 5 mil
modelos de avatares personalizados.43
Mesmo que autores como Gottfried Kerscher, referindo-se à constante renovação e à imensa
velocidade de desenvolvimento inerente à tecnologia telemática (novas versões de navegadores e softwares, ampliação da largura de banda, recursos de vídeo streaming, etc.), costumem
afirmar que “a net arte não tem passado, só vive no presente”,44 uma das preocupações atuais
atém-se precisamente à preservação das obras que conformam essa “breve” história.
Muitas produções da primeira fase já não podem ser exibidas online por causa das dificuldades
técnicas: incompatibilidade de navegadores ou programas, tipo de programação, etc. Centros
especializados na conservação de obras de media art, como Montevideo em Amsterdã, estão
desenvolvendo estratégias para manter “vivas” muitas das obras para Internet mais antigas,
ameaçadas de deterioração e da completa decomposição. No entanto, ainda que se preservem
os softwares e os hardwares, a maioria não pode funcionar mais, já que depende de condições
já inexistentes na rede. Como constata Baumgärtel, praticamente nenhuma das homepages
históricas de 1994 sobreviveu ao ano 2000.45 A obsolescência tecnológica já é uma realidade
na Internet: muitos navegadores ou linguagens de programação já não existem, como o Mosaic
1.0, Hot Java, Mosaic Netscape, etc. O caráter efêmero e temporário inerente às criações
processuais online volta-se contra elas mesmas e leva ao rápido desaparecimento de algumas
produções memoráveis da net arte. O meio digital costuma ser exaltado por permitir um
grande avanço quantitativo na preservação do conhecimento, mas paradoxalmente resultam
frustradas as estratégias técnicas online de preservação da memória.
4.Vídeo e Internet46
Ambas as tendências, de arte para Internet e arte na Internet ou context systems, manifestamse também no âmbito do audiovisual na Internet. Enquanto a maioria dos projetos que incluem
a instalação telemática audiovisual e a teleperformance online são concebidos especificamente
para o meio, o vídeo na Internet segue utilizando, em sua maioria, os recursos telemáticos
como forma de distribuição, mantendo a linguagem linear própria das obras monocanal.
Algumas exceções, como os projetos de Antoni Abad47, Sitio Taxi,48 Cuco Fusco, Life under
surveillance, e de Fran Ilich, Being Boring,49 pesquisam, além de uma narração dinâmica não
linear, formas inovadoras para envolver o usuário na criação da obra.
80
A teleperformance de Cuco Fusco, por exemplo, permitia a participação ativa do usuário no desenvolvimento da performance “física”. Realizada em colaboração com Ricardo Domínguez, Dolores
from 10 to 22 consistiu numa atuação da artista durante 12 horas, privada de todo contato exterior,
encerrada em um espaço vigiado por um guarda (Domínguez) e por três câmeras de vigilância, cujas
imagens eram transmitidas online. Os usuários conectados podiam debater entre eles e interagir
com o guarda, enviando-lhe ordens. A implicação social e política da “normalização da vigilância na
sociedade contemporânea e a cultura da rede” eram o foco de atenção da obra.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
O net-film colaborativo do mídia-artista mexicano Fran Ilich, Being Boring, gira em torno
da vida cotidiana de um grupo de jovens que fica sem televisão durante uma semana e deve
propor como preencher seu tempo. O usuário pode, mediante sistema de votação, eleger o
curso da narração e as cenas que deseja que sejam filmadas. Dessa forma, a história tem uma
estrutura inicial, mas o autor não sabe como continuará e qual será o seu final, subordinado
às decisões do usuário. O uso de meios telemáticos permite, segundo o autor, “que não sejam
as editoras nem a indústria cinematográfica que decidam as narrativas dominantes, isto é, as
histórias que dão algum sentido a nossas vidas”.
A vida cotidiana é também o tema de Sitio*Taxi, de Antoni Abad. Proposto para um coletivo
de táxis da Cidade do México, este projeto de comunicação audiovisual celular em rede reuniu
um grupo de 17 taxistas aos quais Abad proporcionou telefones móveis com câmera de vídeo
integrada e baseados em sistema de GPRS. O objetivo era que esses usuários construíssem
uma memória de seus trajetos e experiências ao longo do dia, desde o momento em que
saíssem de suas casas e durante as 24 horas de circulação pelas ruas da cidade. Suas visões
pessoais e inquietudes eram transmitidas online, oferecendo ao visitante do site uma oportunidade insólita de acompanhar a vida cotidiana de um taxista na grande capital mexicana,
registrada sob seu próprio ponto de vista.
Com o desenvolvimento da tecnologia do media streaming online, a partir de princípios deste
século, está-se produzindo uma tendência específica no âmbito da criação audiovisual online,
cuja principal característica é o uso de recursos narrativos hipertextuais que, além dos aspectos
multimídia, são também participativos.
A tecnologia streaming permite comprimir a informação de áudio e vídeo e enviá-la como um
fluxo (stream) contínuo de pacotes TP através da rede para serem executados mediante um
software editor de multimídia. Isso permite escutar e visualizar os arquivos de forma sincronizada enquanto ainda estão sendo descarregados, de maneira que se alivia o processo e se evita
o longo e duplo procedimento empregado até agora, que consistia, primeiro, em descarregar
o arquivo inteiro no computador e, depois, executá-lo. O uso de servidores streaming permite
também a transmissão de eventos audiovisuais ao vivo e a intervenção de vários usuários
simultaneamente. Esses recursos têm influência no grau da importância crescente que essa
tecnologia vai adquirindo e na viabilidade de desenvolvimento de novas utilidades. Projetos
inovadores como os de Mariela Yeregui, Topografías desmesuradas, e Iván Marino, In death’s
dream kingdom,50 são bons exemplos das novas linguagens baseadas no audiovisual participativo que podem se desenvolver usando essa tecnologia. Em sua obra, Marino estabelece
uma dicotomia entre a construção da narração pelo usuário e a desconstrução da linguagem
e da percepção das pessoas, proposta nos vídeos. A realização fez-se com base em registros
de vídeo tomados num hospital psiquiátrico argentino. Através da navegação, o usuário pode
construir um novo sentido narrativo audiovisual, ainda que se confronte com imagens da deterioração da consciência humana, da degeneração do corpo, do irracional.
5. Webcam e outros fenômenos51
Um caso específico constitui os projetos de webcam. Segundo os dados históricos, o primeiro
uso de uma câmera em rede aconteceu em 1991 na Universidade de Cambridge, quando dois
estudantes conectaram uma câmera de vigilância a um computador a fim de controlar em rede
o que sucedia no espaço da cafeteria, especificamente com a máquina de café.52 A videovigilância mediante webcam converteu-se num dos temas mais explorados pelos artistas, como as
81
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
obras performáticas do grupo norte-americano Surveillance Camera Players.53 Com suas ações,
pretende manifestar sua condenação do uso indiscriminado de câmeras de videovigilância nos
espaços públicos, que violam o direito à privacidade dos cidadãos. Seus projetos caracterizam-se
pela performance ou representação diante de câmeras de videovigilância e webcams na cidade.
“Improve self policing with further absented police force” é a mensagem que transmite a página
inicial do projeto CCTV A world wide watch,54 de Heath Bunting. A idéia de transformar o
usuário num cidadão-polícia, que vigia a cidade com as webcams que captam a vida nas ruas, é
uma maneira de atrair a atenção sobre a justificativa dos sistemas de videovigilância mediante a
pretendida “segurança cidadã”. Quatro webcams estão instaladas em quatro cidades e ruas de
diferentes países. Se o usuário denuncia algum crime observado por meio das imagens transmitidas por uma webcam, este entra diretamente no “catálogo de crimes” do site. De observador
passivo ou simples voyeur o usuário converte-se em agente colaborador do sistema. O artista
reflete, assim, sobre a facilidade com que se pode passar da transgressão ao cooperativismo.
Dois projetos de webcam-arte marcam outras tendências do emprego artístico de webcams. Por
um lado, The multicultural recycler,55 de Amy Alexander (1996), considerada hoje uma obra já
“histórica”, busca uma forma de participação do usuário e pesquisa a relação entre obra de arte e
aleatoriedade dos meios. GhostWatcher (1997),56 de June Houston, recorre à marcada tendência
voyeurista dos usuários da Internet mostrando a progressiva intromissão e vulnerabilidade do
espaço privado. Nesta obra, a artista diz-se ameaçada por fantasmas e instala várias live-cams em
pontos estratégicos de sua casa – embaixo da cama, no sótão, etc.–, de forma que os usuários
possam vigiar qualquer acontecimento suspeito, que deve ser avisado via e-mail a Houston.
O fenômeno na Internet em torno do weblog, ou simplesmente blog (diário de bordo da web),
apareceu no final da década de 1990. Os blogs são uma versão atualizada das antigas listas de
enlaces (What’s new, etc.) ou dos diários online. Como sugere o termo em inglês, consistem de
anotações, os hipervínculos ou o histórico de navegação pelos lugares da rede que propõe um
usuário. Podem ser considerados uma espécie de “diário pessoal” que o usuário torna público
na Internet. O atual boom de diferentes tipos de blogs (fotologs, audiologs, videologs) devese, sobretudo, à facilidade de manejo: através de servidores gratuitos de blogs (como blogger.
com) e seguindo algumas instruções simples, qualquer usuário pode colocar rapidamente seu
weblog na rede. Seus conteúdos são os mais diversos: desde diários íntimos, passando por
percursos de viagens pessoais, histórias de família, até fontes de informação, jornalismo individual ou manifestos contraculturais.
O chamado vlog ou vblog – abreviação de videoblog – é outra manifestação recente na Internet.
Neste, o principal meio utilizado é o vídeo digital. Seguindo a idéia mais sofisticada e coletiva da
Web TV, os vlogs são uma versão mais modesta que disponibilizam vídeos, também chamados
videoposts, de criação mais “caseira” e pessoal. Alguns tendem a uma forma de jornalismo
individual online, outros a difundir suas próprias produções ou vídeos familiares. Trata-se, sem
dúvida, de um fenômeno que está crescendo a grande velocidade e que pode chegar a oferecer
propostas interessantes e criativas.
Notas
82
1. Este artigo é uma versão atualizada do texto publicado em 2003 em http://reddigital.cnice.mecd.es/3/
sumario.html, revisada para a edição em português em 2008. A denominação wwwart aparece no projeto
de Alexei Shulgin Hotpics.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
2. Sobre os antecedentes da net arte ver: Claudia Giannetti, Introdução, em: C. Giannetti (Ed.), Ars
telematica - telecomunicación, internet y ciberespacio. Barcelona, ACC L’Angelot, 1998, p. 7-10; Peter
Lunenfeld, Em busca da ópera telefônica, no mesmo livro, p. 50-57. Cfr. Tilman Baumgärtel, Net art. On
the history of artistic work with telecommunications media, no catálogo Net condition. Art and global
media. Karlsruhe/Cambridge, ZKM/The MIT Press, 2001, p.152-161.
3. http://www.thing.or.at
4. Merel Mirage em entrevista com Irmela Schneider e Peter M. Spangenberg, Internetkommunikation,
Emotionalität und Neugier, em: VV.AA. Formen interaktiver Medienkunst. Frankfurt, Suhrkamp Verlag,
2001, p. 354. N. da A.: a versão Beta-2 do Mosaic 1.0 foi o primeiro navegador da www, apresentado
publicamente em 27 de setembro de 1993.
5. http://www.khm.de/~merel/
6. Joachim Blank em entrevista com Gottfried Kerscher, Brave new city, em: VV.AA. Kritische Berichte Zeitschrift für kunst- und Kulturwissenschaften 1/1998. Bochum, Ulmer Verein für Kunst- und Kulturwissenschaften, 1998, p. 11.
7. A obra remonta ao filme de Blair Wax or the discovery of television among the bee, de 1991. Cenas
deste filme foram misturadas com imagens, sons e textos, criando uma rede de associações e referências,
na qual já não é possível propor uma história linear. O usuário deve construir uma nova narrativa e gerar
outras possibilidades de roteiro.
8. De Digitale Stad: www.dds.nl. O projeto Ciudad internacional Berlín foi finalizado em 1998.
9. www.thefileroom.org. The File Room utilizou inicialmente a tecnologia W3 e o programa Mosaic e foi
concebida para ser apresentada como uma instalação com conexão online.
10. Jodi (Joan Heemskerk e Dirk Paesmans) em entrevista com Tilman Baumgärtel,We love your computer,
em:VV.AA. Kritische Berichte - Zeitschrift für kunst- und Kulturwissenschaften 1/1998, op. cit., p. 22.
http://www.jodi.org
11. www.etoy.com; http://www.hijack.org/
12. http://www.refugee.net
13. http://www.irational.org/tttp/primera.html
14.Ver catálogo Ars Electronica’ 95. Peter Weibel e Karl Gerbel (Ed.).Viena, Nova York, Springer Verlag, 1995.
15. Ver Waldemar Cordeiro (Ed.). Arteônica – o uso criativo de meios eletrônicos nas artes. São Paulo,
Editora da Universidade de São Paulo, 1972.
16. A mostra propunha uma reflexão sobre o conceito do invisível (próprio do meio imaterial telemático), confrontando-o com a interpretação do sociólogo e etnólogo francês Jean Servier. No livro
L’homme et l’invisível, Servier põe em dúvida alguns dos dogmas nos quais se funda a atual civilização
ocidental. Jean Servier desenvolve uma interessante teoria sobre a constante preocupação humana pelo
Invisível: pela vida e a comunicação para além dos limites do corpo e da matéria. “Cada homem é real ou
virtualmente um altar do Invisível”, afirma Servier. A ciência ocidental propõe um Eu e um não-Eu: um
sujeito pensante e um objeto pensado.A ciência nas civilizações tradicionais enuncia, ao invés, um mundoem-mim e um mundo-no-mundo. “Só para nós, os ocidentais, a epiderme separa duas regiões heterogêneas: o mundo e o eu.” Com base nas teorias de Jean Servier com respeito ao Invisível, por um lado, e
das noções de neocolonialismo, por outro, a idéia central da mostra consistia em atualizar suas propostas
e as contrastar com a cultura telemática, analisando sobretudo as estratégias da conquista digital: entre
a apologia, a euforia e o despotismo. Durante um longo período, a meta do chamado Primeiro Mundo
foi “dividir o tempo e o espaço das demais civilizações em fragmentos ocidentais” (SERVIER). O século
XXI confirmará a separação definitiva, segundo o controle de dados, entre um “Primeiro Mundo” na era
digital e “Terceiros Mundos” na era analógica? A direção técnica da mostra e o desenho do site estiveram
a cargo de Yoonah Kim; a autora deste ensaio foi a curadora. Cfr.Work in progress 1993-1997, Barcelona,
ACC L’Angelot, 1997, p. 61-63.
17. Hans Dieter Huber, Tilman Baumgärtel e outros autores consideram que a primeira mostra de net
arte foi organizada por Simon Lamuniere para a Documenta X de Kassel (21 de junho a 28 de setembro
83
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
84
de 1997). Cfr. Hans Dieter Huber, Digging the Net, em: Kai-Uwe Hemken (Ed.) Bilder in Bewegung.
Colonia, DuMont, 2000, p. 171; Tilman Baumgärtel, catálogo Net condition, op.cit., p.158. Uma cópia
“pirata” da mostra pode ser consultada em http://www.ljudmila.org/~vuk/dx .
18. Connect-art, Barcelona, teve o mérito de realizar um trabalho pioneiro na Espanha como revista online
dedicada à arte e à cultura contemporâneas. ACC L’Angelot nasceu em 1993, de iniciativa privada, apoiada
principalmente pelo artistas Thomas Nölle e pela autora, com o objetivo de criar um ponto de encontro,
investigação, divulgação e realização de atividades relacionadas com o campo da arte e das novas tecnologias: exposições, mostras de videoarte, arte digital e telemática, música contemporânea, performance,
conferências, debates, publicações e outras atividades relacionadas com a proposta multidisciplinar do
espaço. Tratava-se, então, da primeira proposta com tal enfoque em Barcelona e na Espanha.
19. http://www.transmediale.de
20. http://www.potatoland.org/pl.htm
21. Por exemplo, em Poème en mouvement (1961), de Agustín Larrauri, as folhas do livro de poemas
participativos podem ser reordenadas segundo a vontade do leitor.
22. http://sero.org/bad_browser
23. www.zexe.net (A primeira versão foi co-produzida pelo MECAD para a mostra Net_condition e
pode ser visitada na galeria virtual em www.mecad.org
24. http://ca80.lehman.cuny.edu/davis/Sentence/sentence1.html
25. http://www.t0.or.at/t0
26. www.mecad.org em Galeria Virtual
27. http://www.mic.atr.co.jp/~christa/. Ver monografia sobre os artistas em www.mecad.org/e-journal
(número 3, em Archivo ou http://www.mecad.org/e-journal/archivo/numero3/reindex.htm).
28. http://www.usc.edu/dept/garden/. Criado por Goldberg junto com Joe Santarromano, George Bekey,
Steven Gentner, Rosemary Morris, Carl Suffer e Jeff Wiengley.
29. Cfr. Jullian Burt, Sombras y residuos: el arte telerrobótico en Internet de Ken Goldberg, em ArstTelematica -telecomunicación, internet y ciberespacio. Barcelona, ACC L’Angelot, 1998, p. 138-142
30.TeleZone foi criado por Erich Berger, Peter Purgart,Volker Christian e Ken Goldberg. http://telezone.aec.at.
31. www.alzado.net
32. Entrevista com Tilman Baumgärtel em http://www.internet.com.uy/vibri/artefactos/index2.html
33. Kritische Berichte, op. cit., p. 19
34. Título das mostras online em v. 1 e v. 2. www.mecad.org/netaforas.htm
35. http://www.itaucultural.org.br/desertesejo
36. Ambas as obras produzidas com apoio do MECAD.Ver Galeria Virtual em
http://www.mecad.org
37. http://will.teleportacia.org
38. http://postal.free.fr
39. http://www.repohistory.org/circulation/exquisite
40. Cfr. Claudia Giannetti, Estética digital - sintopía del arte, la ciencia y la tecnología. Barcelona, ACC
L’Angelot, 2002, p. 122-130.
41. http://thing.at/bodyscan/
42. http://hypermedia.ucla.edu/epithelia/index
43. www.bodiesinc.ucla.edu
44. Kritische Berichte, op.cit. p. 29
45. Uma exceção é Poem*Navegator, citada anteriormente.
46. Parte deste subcapítulo foi escrita e publicada para o projeto Video_Online, da Mediateca de Caixaforum – Fundació “la Caixa” em: http://www.mediatecaonline.net/videonline
47. http://www.hangar.org/sisif/indexv.htm
48. Antoni Abad, Sitio Taxi: http://www.zexe.net/TAXI . Eugenio Tisselli foi o criador do sistema informático e da programação.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
49. Cuco Fusco, Dolores from 10 to 22: http://www.kiasma.fi/www/viewresource.php?id=3LoIv9aQpOf
VH9Z0&lang=en&preview
Fran Ilich, Being Boring: http://delete.tv/being_boring/
50. Mariela Yeregui,Topografías desmesuradas; Ivan Marino, In death’s dream kingdom: http://www.mecad.
org/playingfield.htm; ambas as obras foram realizadas com o apoio do MECAD/ESDi, no contexto
de Playing Field, um projeto conjunto com o Netherlands Media Art Institute, Amsterdam, e o IMG/
Institut für Mediengestaltung und Medientechnologie, de Mainz (Alemanha), com o apoio do programa
Cultura2000, da Comunidade Européia.
51. Parte deste subcapítulo foi escrita e publicada para o projeto Video_Online da Mediateca de Caixaforum – Fundació “la Caixa” em: http://www.mediatecaonline.net/videonline/
52. www.cl.cam.ac.uk/coffee/ qsf/coffee.html
53. http://www.notbored.org
54. http://irational.org/cgi-bin/cctv/cctv.cgi?action=front_page
55. http://recycler.plagiarist.org/
56. http://www.ghostwatcher.com/
85
Espacialidades e Comunicação: espaços sensórios de ação
Spatialities and communication: sensory spaces of action
Luisa Paraguai *
Resumo
A presença, cada vez mais crescente, de dispositivos móveis de comunicação na sociedade instigou esta reflexão, uma
vez que se reconhecem a dimensão e as influências no processo de construção cultural. Após uma breve contextualização sobre o computador vestível, procura-se refletir sobre o agenciamento diferenciado que propõe na relação
entre ação e espaço, diante da sua característica mobilidade e monitoramento. Dessa situação espacial, campos
perceptivos são determinados pela movimentação simultânea do usuário por espacialidades híbridas distintas que
propõem outra ordem do real. Os processos comunicacionais envolvidos são determinantes para a compreensão da
virtualização do corpo em ato.
Palabras clave: espacialidades, processos híbridos, comunicação móvel, corpo-espaço, computadores vestíveis.
Abstract
The crescent presence of communication mobile devices in the society evoked this reflection by considering their dimension and
influences at the actual process of cultural construction. After a brief contextualization about wearable computer, this text is
concerned with the reflection about its different agency proposed on the relation action and space, considering its characteristic
mobility and control. From that specific spatial condition, perceptive domains are determined by the user simultaneous movement through the hybrid spatialities that have proposed another organization of the real.The involved communication processes
are responsible for the comprehension of the body virtualization in acting.
Keywords: spatialities, hybrid processes, mobile communication, bodyspace, wearable computer.
Introdução
O homem vem instituindo suas organizações políticas, econômicas e sociais a partir da relação
estabelecida com a técnica, em um processo dinâmico de construção e apreensão do espaço;
este, por meio dos sistemas de comunicação e de transporte, vem sendo redefinido historicamente, ganhando outras representações e limites, que ora se apresentam diluídos pelas
trocas realizadas em rede. A cultura, entendida como formas operativas compartilhadas pelos
indivíduos, constrói-se nas relações sociais, cada vez mais complexificadas e diferenciadas por
processos comunicacionais que validam espaços e tempos múltiplos e a aceleração da velocidade
dos fluxos de informação. Essa condição contemporânea de existência e apreensão do mundo
contextualiza este texto, que pretende refletir sobre os dispositivos móveis de comunicação,
especificamente os computadores vestíveis, como um meio potencializador de experiências e
86
* Engenheira civil, com especialização em Computação no ICMSC-USP; Mestre e Doutora no Departamento de
Multimeios, Instituto de Artes, Unicamp; docente no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, Universidade de Sorocaba; reviewer da Leonardo Digital Review; pesquisadora visitante convidada no Planetary Collegium,
Universidade de Plymouth, Inglaterra. [email protected]
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
vivências, em que uma nova estrutura material e funcional condiciona diferentemente a relação
do corpo e/no espaço. Evoca-se uma nova situação espacial, determinada pela movimentação
simultânea dos indivíduos por espacialidades distintas e mediada por objetos técnicos.
De forma breve, apresenta-se o computador vestível a partir da afirmação de Bass (1997), que
propõe cinco características funcionais para diferenciá-lo de outros dispositivos computacionais:
[...] Deve ser usado enquanto o usuário está em movimento; Deve ser
usado enquanto uma ou ambas as mãos estão livres, ou ocupadas com
outras atividades; Existe dentro do envelope corpóreo do usuário,
isto é, não deve estar meramente ‘atachado’ ao corpo, mas tornarse uma parte integrante do vestuário do usuário; Deve permitir ao
usuário manter controle; Deve exibir constância, isto é, permitir ao
usuário estar constantemente disponível. (BASS, 1997).
Segundo Mann e Niedzviecki (2001), os dispositivos vestíveis caracterizam-se pela possibilidade de ampliação da capacidade humana e de comunicação a partir dos modos operacionais
descritos a seguir: constância – o computador trabalha continuamente, sempre pronto para
interagir, uma interface constantemente operacional; ampliação – os processos computacionais contrariam os paradigmas mais tradicionais baseados na idéia de que são exercidos pelo
usuário como uma atividade central e única. Nessa situação, assume-se que o usuário está
realizando várias atividades simultaneamente ao processamento computacional; mediação
– em um processo de encapsulamento, o usuário cria filtros para bloquear ou modificar as
informações e os acessos.
Viseu (2003), ao enfatizar uma abordagem sociotécnica, entende os computadores vestíveis
como o produto de vários contextos: “[...] ubiquitous computing1 – a relação ambiente/rede,
wearable computing – a relação corpo/tecnologia e personal computing – a relação corpo/rede”.
Essa autora nomeia esses dispositivos como “bodynets – corpos com comunicação constante
em rede”, reafirmando-os não como uma interface validada apenas pela capacidade tecnológica,
mas, antes, pela utilização em um contexto social; a potencialidade em estender e (re)projetar
as atividades e as relações humanas no tempo e no espaço e de sintetizar assim algumas
tendências contemporâneas como mobilidade, acesso contínuo à informação, personalização,
controle, trabalho em rede.
Negroponte (1995) afirma que “a modulação de sinais de processamento a partir de acessórios vestíveis pode construir o bodynet, uma área pessoal de comunicação em rede que
estabelece conexões através do próprio corpo”. Tem-se então um corpo em uma realidade
física e tecnologicamente mediado no ciberespaço e/ou no espaço remoto, elaborando suas
atividades, que ora se apresentam local e/ou remotamente, em um constante justapor de
dimensões que não se referenciam.
Construção objeto-ação-espaço
Citando De Sa (2004):
[...] ao tentar entender a materialidade destes objetos móveis, nas
suas relações com o corpo e espaço, pode ser uma forma de compreender como se forja a noção de meio de comunicação – que pode
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VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
ser pensada como a estabilidade de uma variedade de forças sociais e
tecnológicas num dado período.
Um objeto técnico2 nasce assim de uma série de operações intelectuais, técnicas, materiais,
sociais e políticas que convergem para sua produção. É o que Simondon (apud SANTOS,
1999) chama de “operações de convergência”. O objeto técnico possui diferentes graus de
complexidade, quanto a sua estrutura, repertório de elementos, funcionalidade, que devem
ser devidamente contabilizados a partir dos contextos social e espacial em que se encontra
– um artefato funcional que atua como um vetor de transformação do corpo, o qual, em atos
singulares constrói relações de trabalho, entretenimento, comunicação e existência no mundo.
O objeto torna-se, assim, um mediador, marcando relações e demarcando situações, estabelecendo laços de poder, criando classes sociais, construindo valores.
Abordando-se agora especificamente os objetos computacionais, pode-se dizer que são
artefatos com capacidade de processar e compartilhar informação, onde os softwares, ferramentas metafóricas, determinam forma e ações a partir de operações lógicas. Como diz Claval
“os objetos são ‘informação’ e não apenas movidos pela informação”. Como outras ferramentas materiais, os objetos informacionais são capazes de gerar modificações em diferentes
contextos, sejam eles físico ou digital, formalizando assim um evento, seja ele conceitual ou
físico. Os computadores vestíveis apresentam uma integração funcional entre os objetos informacionais e os físicos do cotidiano (ferramentas, acessórios, vestuário), e dessa configuração
híbrida algumas propriedades importantes emergem, como modularidade (a combinação pela
adição ou subtração de elementos), conectibilidade constante e interatividade baseada em
redes locais ou não (bluetooth, wifi). A possibilidade de funcionamento sistêmico representa
uma distribuição de processamento computacional por diversos outros objetos/componentes,
o que traz uma complexificação de funções e procedimentos, que por sua vez vêm requisitar
novos comportamentos dos usuários. Essa integração de atividades e processamentos computacionais gera então uma sobreposição de contextos e arranjos espaciais – uma coerência
baseada no acesso e na circulação de informação em rede.
Considerando a afirmação de Santos (1999) de que “os objetos, enquanto formas materiais,
atuam como contorno para as ações ao mesmo tempo em que são estas que definem os
objetos”, reconhece-se a relação objeto/ação como uma constante tensão, uma construção
na qual as interferências ocorrem mútua e constantemente. Retomando os objetos computacionais, o sistema de ações torna-se mais complexo, uma vez que a própria funcionalidade do
objeto lhe garante alguma autonomia sem uma interferência direta e consciente do usuário.
Como diz Baudrillard (1968), no período mecanicista “o homem projetava nos objetos seus
gestos, sua energia, suas necessidades corpóreas, enquanto hoje é a autonomia de sua consciência, seu poder de controle, a sua própria individualidade”, sempre pensando em modificar a
própria existência.
88
Stanley (apud KERN, 1983) conclui que o “espaço não é cheio de coisas, mas as coisas é que
são espacializáveis”, e nessa lógica o espaço pode ser visto como uma organização estruturada
de objetos e usos que ao instalar certa ordem implica a construção histórica desses agentes,
assegurando a sua continuidade. Para Santos (1999), o espaço é hoje o local de encontro
de “dois sistemismos: o sistemismo dos objetos impele ao sistemismo das ações e o condiciona”. O espaço virtualizado, invadido por vetores de tendências e forças, termina por sofrer
transformações em sua estrutura e fisiologia e, conseqüentemente, remodelar o sistema de
relações de seus ocupantes. Esse mesmo autor reflete sobre a relação das novas técnicas da
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informação com o espaço geográfico e propõe o que chama de um meio “técnico-científicoinformacional” como somatória. Esse entendimento procura tratar do momento no qual a
incorporação pela sociedade de novos objetos técnicos define novas condições espaciais e
relações sociais; aborda, portanto, a maneira com que os objetos são usados na construção da
história e do território, na percepção do tempo e do espaço.
Todo período histórico afirma-se então por uma série de novas técnicas e conseqüentemente
por uma série de novos objetos correspondentes – isso implica novas ações, novos padrões,
novos comportamentos. Nessa intrínseca relação, os objetos e as ações estão dinamicamente
atuando em conjunto e redefinindo as realidades espaciais que segundo Werlen “não são causa,
mas condição e conseqüência necessária da ação humana”. Considerando o espaço a partir
das relações estabelecidas entre o sistema de objetos e o de ações – resultado da forma e da
função, da produção técnico-científica e das relações de uso e experimentação – este assume
novas espacialidades. Essas condições relacionais não decorrem apenas do novo, mas também
da possibilidade de variação de funções dos objetos correntes – o que implica diferentes
atribuições e significados mesmo sem haver mudanças morfológicas.
O espaço deixa de ser representação e assume-se como processo de construção pela experiência, e como afirma Ferrara (2007), um lugar fenomênico a ser preenchido pelas ações – a
formatação de um espaço conexão.
Resgata-se Hall (1981) afirmando que “o que determina as diferenças entre um espaço e outro
é o que se pode fazer nele e como este pode ser experienciado pelas pessoas” e MerleauPonty (1999) quando elabora a percepção espacial como um fenômeno estrutural que só se
compreende no interior de um campo perceptivo, que motiva e ancora o sujeito por inteiro.
[...] Ter a experiência de uma estrutura não é recebê-la em si passivamente: é vivê-la, retomá-la,
assumi-la e reencontrar seu sentido imanente.
Pensando sobre os sistemas vestíveis e suas propostas de outra estrutura espacial de relações
entre corpos e objetos – físicos e digitais –, cria-se uma expectativa de que novos campos
perceptivos são gerados na dependência do entendimento e respostas, do engajamento e
comportamento dos usuários.
Espacialidades e processos híbridos
O computador vestível vem colocar uma nova situação ao valer-se do próprio espaço físico
e/ou do espaço corpóreo do usuário enquanto superfície para apresentar informações de
diferentes dimensões espaciais e formalizar aí perspectivas múltiplas – muitas realidades. Reconhece-se uma condição dinâmica de atuação em que distintos níveis de desconexão e interconexão acontecem de forma cíclica. Isso significa afirmar que os dispositivos móveis, da mesma
forma que desconectam os indivíduos de seus contextos físicos atuais, também trazem outras
pessoas e informações remotas para o ambiente em torno.
A possibilidade de conexão constante permite a estabilidade da comunicação durante e
independentemente de qualquer deslocamento físico dos usuários. Estes permanecem de
alguma forma presentes/atuantes no seu espaço físico em torno enquanto as informações são
acessadas e/ou transmitidas. A diluição dos limites entre espaços físicos e a possibilidade de
compor com os contextos informacionais vêm sugerir outras dimensões para a interação; esta
relação entre percepção e ação apresenta-se como uma experiência fenomenológica, na qual
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VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
o indivíduo e o ambiente estão implicitamente considerados. Pode-se pensar que esse espaço
híbrido de atuação se apresenta então como um “local de comunicação”, e, como afirma De
Souza e Silva (2004, p. 151):
A realidade híbrida não se opõe ao físico nem ao virtual, mas antes
inclui o virtual dentro do escopo do real. [...] Tecnologias nômades,
pequenas interfaces e sensores wireless estão incorporando a realidade virtual nos espaços públicos, não apenas por causa da conexão
com a Internet enquanto os usuários estão em movimento, mas porque
estas interfaces redefinem realidade ao promover a emergência de
possíveis e distantes realidades dentro do contexto próximo.
Essa situação espacial foi representada graficamente pelo autor McCullough (1998) e apresenta-se a seguir, na Figura 1, que formaliza suas afirmações. As relações entre ciberespaço
e espaço físico para Anders (2003) podem ser “distintas, congruentes e sobrepostas”. Na
maioria das situações há “espaços distintos”, e isso ocorre quando a estrutura lógica de um
sistema computacional ou de rede não possui nenhum ponto em comum com o espaço físico,
pois o objetivo é gerenciar dados, e não desenvolver um espaço informacional de navegação.
Tanto os sistemas de monitoramento e rastreamento por satélite como os de segurança
demonstram a condição de “congruência” entre os dois modos de espaço, pois o ciberespaço
é praticamente mapeado em cima do espaço físico, o que reduz, no entanto, sua característica
fluidez. Já a relação de “sobreposição”, quando apenas uma parte do ciberespaço e do espaço
físico torna-se comum a ambos, pode ser exemplificada por muitos contextos de teleconferência e telepresença; nesses contextos o espaço físico apresenta-se como uma imagem, e
em específicas condições habilita-se também o controle remoto. Esta última condição espacial parece representar com maior propriedade as relações entre os espaços potenciais dos
sistemas vestíveis, uma vez que cada um possui contornos diferentes, sem qualquer intenção
de conduzir o usuário a estágios de imersão em algum específico.
Diante dessas considerações de vários autores, propõe-se uma categorização na qual as relações espaciais formalizadas são diretamente construídas por meio das conexões realizadas pelo
usuário, sejam elas pessoais ou sociais. Isso implica dizer que as informações disponibilizadas pelos
dispositivos vestíveis potencializam diversos espaços de atuação que requerem apropriações
perceptivas, motoras e/ou cognitivas específicas do usuário para a transmissão e a apreensão da
informação em qualquer contexto. Sendo assim, quatro categorias, denominadas de corpóreo,
local, remoto e em rede, são propostas neste texto e descritas a seguir como premissas para a
compreensão desse novo (re)arranjo híbrido entre corpo, tecnologia e espaço:
Espaço corpóreo – espacialidade que implica ações dentro dos limites corpóreos íntimos e
pessoais do usuário.
90
O conceito de “espaço incorporado” apresentado por Low (2003) determina um modelo
de compreensão para a criação do espaço por meio da “orientação espacial, do movimento
e da linguagem” das pessoas, e cabe aqui neste trabalho perfeitamente para dar conta das
interferências sugeridas pelos dispositivos vestíveis. Esse conceito coloca o corpo como parte
integral da análise espacial e diz que o fato de este existir no mundo já implica a construção
da realidade do espaço; ao considerar que os movimentos e os comportamentos diários
das pessoas definem constantemente relações territoriais, o espaço deixa de ser um local
fixo e estabelecido para incorporar a dinâmica das relações e das práticas corpóreas na sua
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Figura1.
Relações de
conexão entre
o espaço físico
e o ciberespaço segundo
McCullough (1998).
determinação. A percepção do espaço está então relacionada com a ação vivida, isto é, com
o que pode ser feito em um determinado espaço. Ao falar então sobre orientações espaciais
é impossível deixar de nomear Edward Hall, que criou a teoria Proxemics3 para designar as
observações inter-relacionadas e as teorias sobre o uso do espaço do homem como uma
elaboração especializada da cultura.
“Espaço local” – espacialidade física associada ao usuário e às suas ações locais; este contexto
coloca uma certa proximidade física que a princípio não implicaria a necessidade de nenhum
processo comunicacional mediado.
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VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
“Espaço remoto” – espacialidade física não acessível diretamente e que, portanto requer
algum sistema comunicacional de mediação para sua atualização, projetando assim o usuário e
suas ações em outros espaços físicos distantes.
“Espaço em rede” – sem relação direta com a espacialidade física do usuário, determina a
busca e o acesso em contextos sintéticos, em banco de dados, que podem gerar atualizações
tanto no espaço físico, local e remoto, como no corpóreo do usuário.
O “espaço em rede” caracteriza-se pela descontinuidade, pela não linearidade e por uma
topologia que não possui mais referências métricas, dimensionais. Durante as transmissões em
tempo real, os pontos geográficos conectados (observador e observado) ficam sobrepostos,
e a relação estabelecida entre eles acontece a partir de uma medida temporal: o tempo de
acesso. O ciberespaço estabelece-se como um espaço de trocas, em situações de compartilhamento, em que as condições determinantes e limitantes dessas trocas são dadas pelas possibilidades de acesso. Laurel (apud RHEINGOLD, 1991) afirma que as ocorrências – os eventos
– no ciberespaço não requerem mais o espaço real como premissa e sim a “experiência das
pessoas presentes em um endereço URL ou em diferentes locais físicos – móveis ou fixas, mas
conectadas em tempo real”.
O ciberespaço, como outra estrutura de organização que comporta interações sociais, termina
por gerar comportamentos específicos em seus participantes, como afirma Anders (2003):“Ele
é um artefato independente das mentes de seus usuários... É um novo espaço social coletivo,
culturalmente específico em sua tecnologia e não por razões de geografia ou de contexto
social”. Como manifestação cultural, carrega todas as representações e significações presentes
em cada indivíduo participante, construindo territórios que, como afirma Ferrara (2007, p. 18),
“já não são mais apenas físicos, mas perceptivos e comunicantes”.
Para Anders (2003), o ciberespaço é um meio baseado na metáfora e que, além de propiciar
diálogos entre as pessoas e criar contextos compartilhados, se vale de uma estrutura que habilita relacionar processos computacionais à cognição humana. A tecnologia digital tem trazido
uma dissociação entre dados, forma, informação e aparência. Os dados apresentam-se como
um fluxo de binários inicialmente sem forma, no qual a forma passa a ser gerenciada pela
representação. A informação torna-se então um padrão percebido depois de ter sido lido pela
representação de um código ou esquema e emerge por meios da interação de dados com a
representação. Essa dissociação torna-se extremamente clara quando diferentes representações permitem diferentes correlações ao se tornarem aparentes – ganharem forma, a partir
do mesmo corpo de dados (NOVAK, 2001). Essa fluidez do digital na sua formalização pode
apresentar uma questão positiva para a proposta de criação de uma nova ordem do real,
quando o “ciber” de cibernético, o “e” de eletrônico, configuram novas conotações na sua
conjunção com significantes conhecidos, como “mail, espaço, organismo”. Como afirma Kim
(2004), esses contextos assim reconfigurados terminam por desafiar as categorias tradicionais
de interpretação da realidade.
92
Ao afirmarem que a tecnologia digital não necessariamente requisita uma desincorporação
do usuário, Bolter e Gromala (2003) falam de uma “[...] filosofia do design digital – design
da interação, design sensorial, design experimental, que reconhece o lugar dos computadores
no mundo e a importância do espaço físico dentro e em torno da própria interface”. Nesse
sentido, o desenvolvimento dos sistemas vestíveis não apenas incorpora a fisicalidade do
espaço como também do próprio corpo do usuário.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
O importante é reforçar que a movimentação do usuário por esses contextos diferentes
acontece pela simultaneidade de diálogos entre atividades, aplicações, serviços, acesso à base
de dados, que terminam por integrar concomitantes experiências virtuais e físicas, habilitando
conhecimento, organizando conteúdo e promovendo a transmissão de informações. Essas
ocorrências espaciais justapõem-se dinamicamente evocando uma constante reavaliação do
que é interno e externo, quando existem sensores respectivamente monitorando o usuário
com suas características vitais e o espaço físico com suas qualidades sensórias.
Fica clara então a importância do corpo e do espaço local e o reconhecimento destes como
planos de acontecimento para as ações, as situações e as experimentações potenciais do
usuário; ao assumi-los como superfícies de ocorrência, passam a ser rearranjados dinamicamente e transformam se pela incorporação de informações de dimensões espaciais diferentes.
Contrariando algumas tendências e autores de desterritorialização do corpo e do espaço,
reafirma-se que essa tecnologia configura uma situação concomitante de várias espacialidades,
em que cada uma pode ser vista como um campo perceptivo potencial, direta ou indiretamente relacionado ao corpo-ação do usuário, agora transformado e ampliado.
Algumas considerações finais
A reconfiguração de uma unidade física, mental, emocional, a partir da incorporação de uma
nova ferramenta, implica a necessidade, nas pessoas, de aprender gestos, adquirir reflexos, criar
comportamentos. Como diz Lévy (1996), “mais que uma extensão do corpo, uma ferramenta é
uma virtualização da ação”. Essa idéia parece tratar com grande propriedade a potencialidade
dos computadores vestíveis em virtualizar o corpo em ato –- distintas referências espaciais, o
que potencializa as situações de ausência e de presença do usuário. Então, tem-se um corpo
ampliado, mediado, que passa a operar em situações paralelas – diferentes códigos que não se
referenciam e atuam como várias dobras de existência. Os dispositivos vestíveis, ao integrarem
dinamicamente ações físicas, conexões virtuais e percepções espaciais, propõem deslocar as
sensações corpóreas e sugerem outras manifestações para os sentidos, outras condições de
contato e outras geometrias para o corpo. Não diferentemente de outro sistema de objetos,
os sistemas vestíveis também são ao mesmo tempo dispositivos de projeção e de controle.
Como dispositivo de mediação entre usuário e sociedade, o computador vestível torna-se,
como diz Lévy (ibid), “o operador da passagem recíproca do privado ao público, do local ao
global”. Diante da possibilidade de operação customizada em rede, pode inserir na dinâmica
tirânica do global algumas instâncias de pertencimento locais do usuário. Assim, algumas minorias têm ganhado voz e espaço para manifestação, valendo-se de suas estruturas materiais e
conceituais específicas.
Considerando a tensão entre a fisicalidade e a imaterialidade, que operam simultaneamente
no sistema vestível e em seus intrínsecos modos operacionais, aponta-se a emergência da
virtualidade, que congrega vários padrões de informação – computacional e corpóreo – e
integra a materialidade do corpo, do espaço físico e das ações. Hayles (1999) parece se dar
conta disso quando escreve que a “virtualidade não implica viver no domínio imaterial da
informação, mas sobre a percepção cultural de que objetos materiais são interpenetrados por
padrões de informação”. Essa afirmação implica ainda uma constante dualidade definida de um
lado pela materialidade e de outro pela informação. A afirmação “percepção cultural” implica
a formalização de uma relação com a tecnologia – a percepção facilita o desenvolvimento das
tecnologias, que são por sua vez reforçadas pela percepção. A construção dessa dialética mate-
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VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
rialidade/informação tem no entendimento do corpo contemporâneo um bom exemplo – o
corpo é expresso por padrões genéticos hoje quase integralmente codificados, mas apresenta
sua materialidade determinada na presença corpórea. A informação, então, para existir e as
pessoas terem acesso, não pode estar divorciada de um meio material.
Essa condição espacial acontece cada vez mais intrusiva no cotidiano das pessoas na forma de
celulares, pagers, palmtops, mas ainda há muito por fazer pelos dispositivos de entrada e saída
de dados, como os teclados e displays, sem contar a vida útil das baterias. Os celulares, segundo
Agnelli e Drori (2004), na verdade, camuflam um processo de “ultra-individualização da comunicação” – esse processo segue um caminho similar quando a medida de tempo se deslocou
da torre do relógio para o pulso das pessoas. Na bolha individual criada pelo celular, o usuário
controla totalmente suas atividades comunicacionais – ou sente-se lisonjeado pela atenção que
alguém manifesta por sua pessoa. Celulares materializam uma forma de atenção, endereçam as
necessidades de comunicação e criam a ilusão de serem potencialmente necessários e requisitados em qualquer lugar, a qualquer hora. Mas, como afirmam Mann e Niedzviecki (2001),
[...] nós estamos sendo tragados para um ciclo de realimentações,
não importando como você deseje conceituar o mundo, nós todos
teremos que passar por isso (chame de ciberespaço, ‘cyborgspace’,
mídia, virtual, realidade ampliada ou mediada). Como Grey Marcus
tão sucintamente percebeu, uma realidade que já está imposta a nós.
O desafio agora é fazer tal realidade subjetiva e planejar como usar
a tecnologia de forma que garanta nosso direito às realidades individuais e em comunidade em uma época na qual nós já vivemos perpetuamente inseridos (Mann; Niedzviecki, 2001).
Notas
1. O termo ubiquitous computing ou ubicomp, também denominado mais recentemente de pervasive
computing, pode ser literalmente entendido como “computadores em todo lugar”. A idéia é ter muitos
computadores disponíveis dentro do ambiente de maneira imperceptível – integrá-los para que a interação do usuário com os dispositivos aconteça o mais intuitivo e natural possível. O ubicomp pode ser
qualquer objeto ou estar acoplado a uma ferramenta, acessório, roupa, estando interligado em rede para
promover interações entre todos. Essa característica permite que o mesmo dispositivo possa então ser
compartilhado por diferentes usuários, diferentemente do computador vestível, que possui um caráter
pessoal e privado. Assim, é importante afirmar que nem todo ubicomp é um computador vestível, mas
todo computador vestível pode ser entendido como um ubicomp.
2. Este conceito de objeto técnico, proposto por Simondon, dimensiona o valor de utilidade do próprio objeto
juntamente com o seu valor intrínseco; o objeto é elaborado em um processo de concretização pela compreensão das leis da natureza a partir do pensamento humano – naturalização do objeto concreto.
3. Segundo Hall (1982) existem três tipos básicos de espaço,“[...] o primeiro é o espaço de características ‘fixas’,
que constitui os objetos imóveis como as paredes e as salas em construções convencionais. O segundo é o de
características ‘semi-fixas’ ou objetos móveis – como as mobílias de uma casa. O terceiro é o ‘espaço informal’,
que é o território pessoal de um indivíduo em torno do seu corpo”.
94
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PERSPECTIVAS DE PESQUISA
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OSTELL UNGEN: entrevista com Wolf Vostell, 1984, Salzburg 1
OSTELL UNGEN: entrevista com Wolf Vostell, 1984, Salzburg
Maria Beatriz de Medeiros *
Resumo
Entrevista inédita com Wolf Vostell realizada como parte do trabalho de dissertação de D.E.A. para a Universidade Paris
I, Sorbonne, em 1984. A entrevista questiona os trabalhos de Vostell, dé-coll/ages e happenings, que continham reflexões
semelhantes aa dos trabalhos que Bia Medeiros e Suzete Venturelli, em grupo, realizavam em Paris naquele momento.
Palavras-chave: Wolf Vostell, dé-coll/age, happening.
Resumé
Interview inédite avec Volf Vostell presentée comme partie du rapport de D.E.A. pour l’Université Paris I, Sorbonne, en 1984.
L’interview met en question les oeuvres de Vostell, dé-coll/ages et happenings, qui dégagent des reflexions semblables à celles
des oeuvres de Bia Medeiros et Suzete Venturelli, realisées en groupe, à Paris à cette époque.
Les clefs: Wolf Vostell, dé-coll/age, happening.
Introdução
Em 1982 me mudei para Paris como bolsista do governo francês para realizar mestrado e
Diplôme d’Études Approfondies (D.E.A.) em Artes, na Universidade Paris I - Sorbonne. No
Brasil, como artista plástica, realizava intervenções urbanas colando litografias, ou impressos,
nas ruas.Ao chegar a Paris defrontei-me com seus imensos cartazes publicitários que tornavam
meu trabalho uma agulha num palheiro. Fui levada, então, a confrontar essas publicidades,
ampliando as intervenções urbanas, e visto que não poderia reproduzir meu trabalho em
dimensões comparáveis às dos cartazes, tornei-os meu próprio material artístico, arrancandoos, recolando-os sobre outros. Isto na calada da noite, ou melhor, de madrugada.Trabalhei com
diversos artistas e amigos – precisava inclusive de seguranças – , e fiz um trabalho maior com
Suzete Venturelli2 (Fig. 1 , 2 e 3 - pág.100). Em galerias fazíamos performances, onde vivíamos,
comíamos, vestíamos cartazes publicitários: antropófagas de imagens publicitárias, antropófagas de signos e de símbolos. Naturalmente este trabalho foi comparado com o dos artistas
Hains e Villeglé, Rotella e Wolf Vostell, sendo este último o que mais nos interessou, por sua
estética pesada, sua preocupação social e seu caráter performático.
Por isso, realizei um dos trabalhos de meu D.E.A. sobre Vostell sob a forma de entrevista.
Nosso primeiro contato deu-se por carta. Vostell me informou que estaria em Salzburgo em
* Maria Beatriz de Medeiros obteve seu doutorado na Universidade Paris I – Sorbonne, em 1989. Orientador: Bernard
Teyssèdre. Atualmente é professora na Universidade de Brasília, representante adjunta para a área de Artes na CAPES.
Pesquisadora do CNPq 1C. [email protected]
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Figura 1.
Intervenção urbana
sobre cartazes
publicitários, Rua Gay
Lussac, Paris, por Bia
Medeiros e Suzete
Venturelli, 1983. 4/30 m.
Figura 2.
Performance sem título,
Universidade Paris 1,
Saint Charles, por Bia
Medeiros e Suzete
Venturelli, 1984.
Figura 3.
Performance
Antropofagia, Galeria
J. J. Donguy, Paris, por
Bia Medeiros e Suzete
Venturelli, 1984.
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Figura 4.
Página de parte de
trabalho de D.E.A.
datilografada sobre
cartaz rasgado da
exposição de Vostell
em Salzburgo.
(pag. 101)
agosto oferecendo um curso na Sommerakademie e realizando uma exposição. Marcamos a
entrevista para 16 de agosto de 1984.
Chegando à cidade de Salzburgo, alguns dias antes da entrevista, deparei com uma cidade
linda, exótica para olhos brasileiros, coberta de cartazes da exposição de Vostell colados em
todos os cantos. Que contradição! Vostell falava em dé-coll/ages para referir-se aos seus trabalhos: descolagens. Impossível resistir! A dissertação de D.E.A. foi toda datilografada sobre seus
cartazes rasgados (Fig. 4, pág. 101).
Vostell falava um bom francês, embora por vezes procurasse as palavras. Alegando dificuldades
em falar francês, solicitou-me que o tratasse por tu para facilitar a conversação. No auge de
meus vinte e poucos anos, dirigir-me a ele usando tu me perturbava – não bastasse sua fama,
sua altura e largura eram impressionantes – e, ao mesmo tempo, trazia uma cumplicidade inesperada para quem estava tratando todos os seus professores de vous há dois anos. Falávamos
também, por vezes, em espanhol (que ele arranhava por causa de sua esposa, Mercédes).
Entrevista
O dé-coll/age é uma manifestação de violência (MERKERT, 1974, p. 18).
Maria Beatriz de Medeiros: No catálogo editado pela ARC 2, por ocasião de tua
exposição no Museé d’Art Moderne de la Ville de Paris, em 1974, seus dé-coll/ages
são apresentados como uma “manifestação de violência”. Nós, Suzete Venturelli
e eu, rasgamos cartazes publicitários, arrancamos, colamos sobre outros... e nós
acreditamos que essas ações não são um ato de violência, mas, sim, um ato de
legítima defesa.
Wolf Vostell: Não disse que os dé-coll/ages são uma manifestação de violência. Os dé-coll/ages
são como a vida, isto é, a vida é um processo de dé-coll/age. Como quando eu falo com você,
e você está aí, e que nós gastamos energia, e eu envelheço, e você envelhece, e nós nos modificamos... Isto é um processo de dé-coll/age, e a forma representa a vida dos objetos.
Vostell se opõe com coerência àquilo que ele chama “agressão urbana”,
à qual ele opõe uma “agressão artística (POPPER, 1997, p. 230)
MBM: Mas Frank Popper afirma que você opõe a uma “agressão urbana”, uma
“agressão artística”. A arma contra a violência é o riso ou a agressão?
VW: Não conheço este texto. Você poderia fotocopiar e me enviar? A contestação deve ter a
mesma estrutura que a vida, a mesma estrutura da agressão que sofremos. Ela deve ser feita
de todas as formas que nos incomodam: o excesso de informação, a estrutura burocrática, a
repetição... são meios de ação que provocam.
MBM: Nós dizemos que, com o nosso trabalho, nós intensificamos a publicidade
até o limite do tolerável.
WV: Sim, é isto. Estou de acordo. Mas é preciso ir além de um comentário decorativo.
102
MBM: No catálogo editado pela ARC 2 do Museu de Arte Contemporânea da
cidade de Paris (MERKERT, 1974) temos a impressão de que você pensa que o
artista é um privilegiado. Você afirma que o artista deve “fazer compreender”,
que ele deve “revelar”, como se ele soubesse mais, como se ele conhecesse mais
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que os outros seres humanos. Se “cada homem é uma obra de arte”, como pode
o artista ser um ser privilegiado?
WV: Sim, o artista é um privilegiado. Mas isso não é importante. O privilégio é um estatuto
não praticável. O artista é um privilegiado, a natureza fala por intermédio dele. O talento
implica privilégio, o privilégio implica responsabilidade. Existem artistas e teóricos da arte que
afirmam que todos os homens podem ser artistas, isso é hipócrita. Todos podem ser artistas,
mas haverá sempre alguns que serão mais fortes. O sistema sensível deles é mais desenvolvido.
Quando eu digo “cada homem é uma obra de arte”, isso é uma fórmula. De fato existem ultrasensíveis como existem ultra-feios, assim como entre as obras de arte. Existem diferenças.
MBM: Nuances?
WV: Sim, mas é preciso ressaltar que quando eu declaro que todo homem é uma obra de arte
eu excluo as formas criminais, pois a vida é santa. Os happenings são a santificação da vida. No
entanto, a arte é o espelho e a memória desta vida e, como tal, ela é um espelho das formas
destrutivas. Mas o Acionismo Viennense, Nitsch, isso eu não gosto.
Se uma pessoa tem o sistema nervoso desenvolvido, se ela produz arte, ela é artista. A obra
de arte, assim como o homem, é um sistema complexo. É preciso mudar a sensibilidade das
pessoas para que elas levem suas vidas como arte. A psicanálise, por exemplo, é um instrumento da arte. Eu estudei muito a psicanálise, a psico-estética. A verdadeira revolução na arte
será quando pudermos ver aquilo que uma pessoa pensa em uma tela, sem que para isso
tenhamos necessidade de uma câmera.
De fato, existe uma grande confusão sobre minha obra. Isso me incomoda.
MBM :Você declarou “a vida encontrada como arte”, no entanto tenho a impressão
que os dé-coll/ages, assim como os cartazes rasgados de Villeglé, já que eles, agora,
pertencem a coleções particulares, que eles são a vida parada, a vida petrificada,
transformada em objeto de consumo de luxo para iniciados.
WV: A arte é um comentário sobre a vida. Parei com os dé-coll/ages em 1964. Abandonei os
cartazes publicitários em 1964 pois eles não representavam a sociedade. A publicidade é como
uma droga, ela acalma.
Acredito que descolar cartazes durante toda a vida é tedioso. Por exemplo como Marcel
Duchamp, que passou toda sua vida voltando ao urinol. Eu o critico, mesmo que ele muito
tenha me ajudado.
Eu, eu urinei no urinol. A urina é arte. A urina é fenomenológica. Isso aconteceu na Espanha
em 1966. Era um happening que se chamava: Detras del Árbol. Duchamp no comprendio
Rembrandt. Era um happening sobre a gravura de Rembrandt chamada Detras del Árbol, onde
ele havia desenhado um homem mijando, e sobre o urinol de Duchamp. Este happening tratava
de quatro líquidos: a urina, a água, o sangue e o perfume.
O público não é formado pela sorte, tratava-se agora de participantes
em número limitado. [...] Um outro happening realizado por Vostell, de
16 a 21 de março de 1966, em Nova York e Long Island, chamava-se
‘Dogs and chinese not allowed’. Sua estrutura mais complexa, que para
começar não admitia a participação de pessoas que já tinham vivenciado três dos cinco pré-happenings (MERKERT,1974, p. 40 e 44).
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MBM: Será que você poderia me falar sobre a participação do público nos happenings?
Limitar o número de participantes em um happening não é uma atitude elitista?
WV: Somente dois artistas fazem happenings com a participação do público: Kaprow e eu. Para
mim, o happening é a participação. Participação implica que uma parte da realização deste é
transmitida ao público. Em Fluxus era diferente, não havia participação do público, e é por isso
que chamo as ações Fluxus de concertos: concertos Fluxus.
MBM: À absurdidade das situações quotidianas, aos comportamentos estereotipados propostos pelo sistema, às instituições, você opõe modelos de comportamento. Não são estes de certa forma também alienantes? (A pergunta se referia às
partituras para a participação do público em happenings de Vostell nos concertos
Fluxus, partituras nas quais se encontravam instruções sobre o comportamento
apropriado para a ação, em que Vostell propunha modelos de comportamento).
WV: Eu proponho modelos de comportamento porque é necessário que todos estejam de
acordo. Se existe alguém que quer fazer algo diferente, discutimos. Mas é necessário seguir
as partituras.
A intenção do artista deve ser de criar uma situação. Para mim, o happening de Ulm foi o
happening ideal.3 Todo tipo de gente participou. Algumas pessoas tiveram fome durante o
happening, outras tiveram pequenos problemas, como, por exemplo, ter de telefonar, e eles não
sabiam como resolver, outros se tornaram agressivos. Uma pessoa me insultou muito durante
o happening, mas ela não o abandonou. Uma outra pessoa, que se mostrara contra o happening, enviou-me uma carta seis meses depois me fazendo uma declaração de amor.
Na arte nada é definitivo. Um happening é misterioso. Criamos uma situação e devemos
esperar que as pessoas reajam com suas sensibilidades triviais.
O happening é uma forma de jogo, uma maneira de se liberar. Não é como o esporte, ou como
a escola, que são competitivos. O happening não é competitivo. E a arte não é elitista. Se a
arte fosse elitista nós estaríamos perdidos. Os dé-coll/ages, por exemplo, são um desvio da
realidade e da vida em quatro níveis: sociológico, psicológico, estético e jornalístico. Eles são
uma mudança do cartaz.
Minha primeira ação foi Le théâtre est dans la rue, em Paris. Nessa época eu estava interessado
por poesia, e a ação consistia em tomar o cartaz rasgado como uma partitura, uma partitura
para o comportamento humano. Era preciso ler os fragmentos de cartazes (letras e imagens)
como poesia.
Eu fui aluno de Cassendre, que foi o inventor dos grandes cartazes, nos anos 1920. Eu parti,
para este happening, do título de seu livro: Le théâtre est dans la rue. Eu parti dos cartazes
rasgados, pois eu percebi, na época, que eles eram mais fortes que toda a arte que se encontrava nas galerias. Assim também os acidentes de carro, ou as coisas destruídas, que são muito
fortes porque eles foram momentos fortes e porque eles são autênticos. Um carro destruído
produziu tragédia.
Eu me formei contra a estética da Escola de Paris, contra a arte abstrata, contra o gosto burguês.
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Eu trabalhei fora da Paris durante os anos 1960, pois a sociedade nos Estados Unidos e na
Alemanha eram mais provocantes e as pessoas se interessavam mais pelo meu trabalho. É
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preciso dizer que Paris descobriu a arte dialética mais tarde. Entre 1961 e 1970 eu não fiz
exposições em Paris.
A superposição de níveis diferentes da realidade, de conteúdos
aparentemente sem ligação entre eles revela, uma vez mais, a alienação e as causas dessa alienação (MERKERT, 1974, p. 24).
Essa aproximação, das formas e dos conteúdos a partir da obra
mesma, é dialética. Ela não conhece verdade única que representaria
as coisas, mas ela procura a verdade na contradição, na terceira possibilidade (MERKERT, 1974, p. 67).
MBM:Teu trabalho se identifica com a “dialética negativa” de Adorno?
WV: Eu admiro Adorno, admiro a fantasia dualística. Eu admiro a filosofia crítica e analítica. Mas
tenho uma observação a fazer. Quando Marcuse e Adorno falam de cultura, eles sempre falam
de teatro e de música. Eles não conhecem a pintura.4
Minhas idéias vêm de minha prática. São causalidades e meu gosto, ao mesmo tempo. As
formas trágicas, eu as tomo emprestadas da vida, que é positiva e negativa. Como filósofo, eu
citaria Spinoza, que descobri recentemente e que é muito importante para mim. Ele disse, por
exemplo, que quando uma pessoa abre uma janela, que o sol entra e esquenta o quarto, muitas
vezes a pessoa pensa que é ela que o esquenta. Mas, ao contrário, é o sol que o esquenta. O
homem se acha mais importante que a natureza. E ele não vê que abrir a janela é um processo
divino, aquele da vida.
MBM: Eu adoro seus carros cimentados. Eu penso que eles sintetizam e tornam
evidente vários aspectos da vida atual.
WV: Obrigado.
MBM: Mas o carro que foi cimentado diante da galeria Intermédia (Circulação
bloqueada, Cologne, 1969), sobre um platô com rodas, me parece muito limpo,
muito comportado. Ele não atrapalha. Não seria necessário realmente incomodar,
sabotar, cimentar o carro na rua e realmente bloquear a circulação?
WV: Fiz três carros até agora. Eu penso em fazer um quarto. Ele se chamaria El tango de béton.
Ele seria a realização de um de meus sonhos, que era de fazer uma escultura invisível. O carro
cimentado deveria ser enterrado em um lugar desconhecido. Ele seria um grande carro, cheio
de jornais de todo o mundo, intactos, e do mesmo dia. Como escultura seria uma homenagem
aos desaparecidos na Argentina. Eu fiz o projeto sobre fotografias dos campos na Argentina,
mas não se verá nada. Os desenhos do projeto são somente para que eu encontre os meios de
realizá-lo. É preciso sempre encontrar os meios de pagar os happenings, é preciso encontrar
um mecenas. É um problema, pois é preciso uma pessoa séria, que não irá procurar saber onde
está o carro, que não o irá desenterrar.
Se não for possível realizar este projeto na Argentina, eu o farei no Brasil. Ou, ao extremo, à
Anvers, na bienal da escultura. Lá existe um terreno onde eu posso enterrá-lo, e ele estaria lá,
mas ninguém saberia exatamente onde. É preciso que não haja marcas. Eu o enterraria, depois
eu plantaria árvores por cima, no terreno - Vostell desenha o projeto (Fig. 5, pag. 107).
106
Depois desta entrevista ainda estive outras vezes com Vostell e com Mercédes. No entanto,
ele estava sempre cercado de alunos, do diretor da escola, havia o crítico de arte Amnon
Figura 5.
Desenho feito
por Vostell
durante a
entrevista
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Barzel, Allan Kaprow, fãs... Foram jantares com enormes mesas, divertidos, e sempre trilíngües.
Algumas vezes Vostell pode, de certa forma, continuar nossa entrevista, e transcrevo aqui
algumas de suas falas, soltas.
WV: Você deveria ver o catálogo de minha exposição em Portugal (editado pela Fundação
Gulbenkian). Os portugueses têm uma maneira completamente diferente de ver a coisa. E
os espanhóis também. Na Espanha, eles fizeram um livro sobre meu trabalho cujo título é
Vostell, arqueólogo contemporâneo. Os alemães jamais teriam compreendido meu trabalho
dessa forma.
WV: Nossos trabalhos se parecem, pois nós vivemos, pela primeira vez na história, a ação, a
destruição, o acidente de carro, o transbordamento de informações, o engarrafamento.
WV: Ser artista não é fácil. Existe muita coisa a ser vista, a controlar. Primeiramente é preciso
construir o mito, depois é necessário construir um reino em volta de si mesmo.
Meus momentos com Vostell não foram suficientes para esclarecer todas as dúvidas que tinha
sobre seu trabalho. Mas talvez, como queria Mercédes – assim ela se exprimiu-, El enigma
Vostell deva continuar.5
Notas
1. Extraído da dissertação de D.E.A. em Artes Plásticas (técnica e criação):Wolf Vostell, realizada em 1984,
professora do seminário Germaine Cizeron, orientador: Jean Rudel, Universidade Paris I - Sorbonne.
2. Suzete Venturelli obteve seu Doutorado na Universidade Paris I – Sorbonne em 1988. Orientador:
Bernard Teyssèdre. Atualmente é professora e diretora do Instituto de Artes da Universidade de Brasília.
Pesquisadora do CNPq 1B.
3. Vostel se refere ao happening À Ulm, près dÚlm, autour d’Ulm, 1964, happening de oito horas de
duração no aeroporto militar perto de Ulm. Participantes: trezentas pessoas e três aviões supersônicos.
4. A afirmação é confirmada por Marc Jimenez, in Vers une esthétique négative. Adorno et la modernité.
Paris: Le Sycomore, 1983: “Adorno […] só dedica às obras pictóricas esporadicamente algumas notas
fragmentadas” (p. 345) e nota 13 de “Anatrépico”: “Adorno, em 1958, no Jeu de Paume, ‘rabisca’ algumas
notas sobre o impressionismo [...] estas breves considerações [...] não são nem mesmo, de fato, esboços.
No fim destas notas fugidias, Adorno se indaga [...] ‘Eu o ignoro’, confessa Adorno, ‘em música eu o
saberia’ (Jeu de Paume Gekritzelt, p. 47), (p. 421).
5. Referência ao livro de Mercédes Guardado Olivenza Vostell El enigma Vostell, Extremadura: Edición
Sibéria Extremena, 1982, realizado por ocasião dos 50 anos de Vostell, no qual muitos artistas e personalidades prestam homenagem a ele.
Referências
JIMENEZ, Marc. Vers une esthétique négative: Adorno et la modernité. Paris: Le Sycomore, 1983.
MERKERT, John. Vostell. Chronologie: 1954/1974. Vostell. Environnements. Happenings.
1958/1974, catálogo da exposição de Vostell no Museé d’Art Moderne de la Ville de Paris,
ed. ARC 2, 1974.
POPPER, Frank. Art, Anti-art, ville. Revue d’esthétique, L’art de masse n’existe pas, no ¾.
Paris: U.G.E., coll 10/18, 1977. p. 215 - 230.
VOSTELL, Mercédes Guardado Olivenza. El enigma Vostell. Extremadura: Edición Sibéria
Extremeña, 1982.
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Estética, arte e tecnologia
Aesthetics, art and technology
SUZETE VENTURELLI *
Resumo
O texto tem como meta analisar a importância da Estética para a cultura, assim como, avaliar algumas das suas características no contexto da arte e tecnologia.
Palavras-chave: estética, endofísica, imagens, arte computacional.
Abstract
The goal of this text is to analyze the importance of the Esthetics for the culture, as well as, analyze some of his characteristics
in the art and technology context.
Keywords: aesthetic, endophysics, images, computer art.
A qualidade da obra de arte depende essencialmente do grau de seu feiticismo,
da veneração que o processo de produção professa por aquilo que se faz por
si mesmo, pelo sério que aí esquece seu prazer. (ADORNO, 1970, p. 375)
Elie During,1 ao escrever para a revista Art Press sobre o livro de Jacques Rancière Malaise
dans esthétique, disse que, desde sua origem, a estética esteve situada entre duas concepções,
ou seja, a lógica da arte cujo preço para se manter viva é desaparecendo como arte (lógica da
heteronomia acentuada pela transformação da arte em «serviço público») e a lógica da arte
que faz da política sua condição expressa de não estar a serviço de nada (lógica da autonomia,
incorporada pelo teórico Theodor W. Adorno).
Sobre o conceito, no livro Teoria Estética, escrito nos anos 1960, o filósofo Theodor W. Adorno
disse que o conceito de estética ser tão antiquado como o de sistema ou de moral é muitas
vezes menosprezado, pois parte de pressupostos inseguros. Citando um exemplo, o autor
destaca que a estética como disciplina filosófica é descrita como um cata-vento, que gira a cada
pensamento filosófico, cultural, tecnocientífico. Suas teorias voltam-se ora para a metafísica,
ora para o empirismo, é normativa num momento e descritiva num outro, vista agora pelo
olhar do artista e em seguida pelo olhar do público (ADORNO, 1970, p. 365).
A estética, desde os meados do século 19, vive um dilema, que reside, para Adorno, citando
Moritz Geiger (1970, p. 365), na dificuldade e até mesmo na impossibilidade de tratar a arte
em geral por meio de um sistema de categorias filosóficas; por outro, na dependência das
* Doutorado em Artes e Ciências da Arte pela Universidade Sorbonne Paris I, em 1988, e Mestrado em Histoire de
l’Art et Archeologie na Universite Montpellier III - Paul Valery, França, em 1981. Professora e pesquisadora da Universidade de Brasília, atualmente é diretora do Instituto de Artes. [email protected].
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proposições estéticas em relação às teorias cognoscitivas,2 que lhe servem de referências.
Adorno considerava a situação da disciplina desencorajante na Academia.Analisando a questão,
percebe que a desconfiança acadêmica perante a estética é, antes de tudo, o temor da ciência
institucionalizada perante o que é incerto e contestável, pois Hegel (2000) e Kant (1976) foram
os últimos filósofos que puderam escrever uma grande estética sem nada compreenderem de
arte. A arte de que falam os filósofos se orientava por normas universais (globais), que não
eram questionadas por uma obra em particular. Ou seja, as reflexões estéticas estavam em
concordância com a arte, ao reduzirem ao conceito o caráter universalista, em conformidade
com o pensamento filosófico e artístico, presumidamente ainda não separados um do outro.
Adorno (1970, p. 368) avalia que a estética só foi produtiva enquanto respeitou a distância à
empiria e penetrou com o pensamento no conteúdo da arte; ou quando, numa proximidade,
ela avalia desde o interior da produção artística, como ela ocorre para o artista, importante
não pela sua relação pessoal com a obra de arte, mas porque percebe, sem recorrer ao
observador, algum elemento perceptível da experiência da coisa. A dificuldade da estética de
se tornar mais do que uma disciplina reanimada consistiria, quando desaparecidos os sistemas
idealistas, em juntar o processo de produção com os fenômenos conceituais, não submetidos
a conceitos genéricos.
Para o autor, na prática artística dos anos 1950 e 1960, é vã a tentativa de refletir sobre a arte
com o que se poderia chamar de estética empirista, isso porque reter-se-ia – por classificação
e abstração – apenas algo de fluido que não agüentaria comparação com categorias científicas.
Às suas dificuldades objetivas acrescenta-se subjetivamente a resistência da Academia.
Resistência que não tem fundamento, pois para o autor as especulações teóricas e as pesquisas
científicas sempre se amalgamaram com a arte, algumas vezes a precederam; e os artistas mais
reconhecidos foram aqueles que diante delas não recuaram. Cita como exemplo a invenção
da perspectiva aérea por Piero della Francesca, ou ainda a técnica impressionista baseada
na análise científica. O autor diz também que a arte às vezes compreende mal o desenvolvimento científico, como no caso da eletrônica, sem prejuízo do impulso produtivo proveniente
da racionalidade.
Para alguns a arte é supérflua e, incrivelmente, para Adorno, é essa resistência que faz com
que ela se interesse em exprimir-se: “Pois ela percebe o interesse da natureza oprimida e
dominada na sociedade cada vez mais racionalizada e submetida à socialização” (ADORNO,
1970, p. 369).
Apesar das críticas, Adorno (op. cit., p. 375) disse que a estética se revela como necessária e
não pode ser considerada ultrapassada em função da própria necessidade da arte para a existência humana, pois só pela cegueira da obra de arte perante a realidade de que ela mesma é
parte é que a obra transcende o sortilégio do princípio da realidade.
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Nos anos 1960, época da não-conciliação da estética tradicional e da arte, citando Nietzsche,
Adorno diz que, primeiramente, a filosofia da arte não tem outra escolha senão pensar numa
negação em relação às categorias estéticas. O que restaria como forma estética é a dissolução concreta das categorias estéticas correntes. Em segundo lugar, diz que se o artista se
sente constrangido a refletir constantemente, e que esta não deve prejudicar sua produção.
Por último, avalia com sabedoria que ninguém deveria abandonar-se ingenuamente ao parti
pris tecnológico da arte, pois essa tendência harmoniza-se demasiado bem como a tendência
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global da sociedade, porque os fins, a organização racional da humanidade, são ocultados, a
fim de que os meios, a produção pela produção – o pleno emprego e tudo o que daí depende
– possam ser divinizados (ibidem, p. 376).
Nessa perspectiva, a necessidade da arte não consiste em prescrever normas pela estética, mas
em desenvolver na estética a força da reflexão. Ou seja, se a era da arte ingênua (ADORNO,
idem) passou, então ela deve integrar em si a reflexão, que deixaria de ser assim um elemento
estranho – eis o que Adorno denominou de estética hoje.
Como um eco, seu pensamento encontra na filosofia do francês Mikel Dufrenne, especificamente no texto “Les Métamorphoses de l’Esthétique” (1976, p. 13-48), publicado no livro Esthétique et Philosophie (tomo 2), algumas respostas. Dufrenne verificou primeiramente que publicações sobre estética não discorrem, muitas vezes, sobre a história da estética, cuja instauração
é oficialmente recente. Ele menciona que algumas publicações apresentam uma livre reflexão
sobre alguns dos problemas que se colocam à estética no século 20, principalmente nos anos
1960 e 1970, apresentando mais questões do que respostas. Alguns dos problemas levantados
perpassam toda a história da estética, entretanto outras questões das atualidades do século
20 se colocam, ou modificam as existentes. As atualidades a que se refere são as políticas,
principalmente. Observa que a estética foi muito contestada, pois a maioria dos jovens artistas
se perguntava para que refletir sobre a arte? Diziam que o melhor era fazer e ter prazer com
a arte. Havia uma razão para essa desconfiança, pois a estética tradicional é normativa. Com
o advento da arte moderna renunciou às normas tradicionais, entretanto manteve consigo o
termo “belo”, cujo uso incomodava os artistas.
Nos anos 1970, a estética começa a retomar sua importância na arte, modificada; ela não mais
evoca o “belo” como transcendental, que necessitasse autoritariamente ser definido. A estética passa a refletir como os homens acham mais bonitos certos objetos ou eventos, ou seja,
como têm prazer. Além disso, é na universidade que ela é discutida e aparece como disciplina
da filosofia. Suas reflexões estão também inseridas nos pensamentos de historiadores, artistas
e outras áreas, como a da política, ou seja, onde se discute sobre arte.
Dufrenne (1976, p. 14) disse que toda a filosofia ocidental já discutiu sobre ela, sem a nomear,
até o filósofo Alexander Gottlieb Baugarten,3 que lhe deu o nome. O único traço singular é
a característica do discurso reflexivo, mesmo quando ele está estritamente associado, quer
dizer, subordinado, a uma prática. Para o autor, o novo interesse sobre a estética vem do fato
de ela se politizar. Isso quer dizer que ela se politiza na medida em que a arte se politizou e se
popularizou, engajou-se no cotidiano, transformando seus próprios modos de produção e de
consumo. Ao mesmo tempo, a prática artística pensa sobre si mesma. Desapareceu a imagem
do gênio inspirado e inconsciente; o artista é um trabalhador, um engenheiro ou inventor;
ele é também muitas vezes um esteta. Nem sempre sua obra é conhecimento, por exemplo,
quando se aproxima das teorias estruturalistas e semióticas, mas muitas vezes reivindicam de
ser conhecimento. O esteta é então diretamente solicitado pela arte, caso o artista não seja o
próprio esteta, religando o artista ao seu trabalho de reflexão.
Reflexão sobre o quê? pergunta Dufrenne (1976, p. 15). Sobre a prática artística é a resposta.
Em seguida, completando, amplia o espectro da reflexão, pois tudo o que concerne a aisthesis,
como o sentir e o sensível, o gosto e o que é experimentado, interessa à estética. Ampliando,
ainda, o campo da estética, o autor diz que o gosto não torna o objeto arbitrariamente estético, ele responde a uma solicitação do próprio objeto.
111
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As mutações da estética: um mundo se cria ao mesmo tempo em que é descoberto
Como analisado, a estética tradicionalmente é definida como uma disciplina da filosofia, que
trata do conhecimento sensorial e que tem por meta refletir sobre a produção artística. Com
base nos pressupostos de Theodor Adorno e Mikel Dufrenne, compreende-se que a estética é mais produtiva quando respeita a distância da empiria. Posição questionável atualmente
quando o objeto de estudo é certo tipo de produção artística proveniente da relação entre
arte, ciência e tecnologia. Veremos a seguir como novas teorias oriundas de pensadores e
cientistas contemporâneos avaliam a criação artística e a necessidade da reflexão estética com
base em novos estudos tomando como alicerce teorias oriundas da física e da psicobiologia.
Uma das teorias mais estudadas atualmente no meio artístico de arte e tecnologia é denominada de endofísica,4 que é uma ciência que investiga o aspecto de um sistema quando o
observador faz parte dele. O artista, filósofo e engenheiro Peter Weibel (2000, p. 23) descreve
até que ponto a realidade objetiva depende necessariamente do observador. Desde a introdução da perspectiva no Renascimento, sabe-se que os fenômenos do mundo dependem da
posição do observador. Entretanto, tão-somente fora de um universo complexo é possível
dar a descrição completa dele. Para a endofísica, a posição de um observador externo só é
possível, como modelo, fora de universo complexo, e não no interior da realidade mesma, pois
fazendo parte dele o observador modifica com sua presença o mundo do qual faz parte. Nesse
sentido, a endofísica oferece uma aproximação de um modelo geral da teoria da simulação
(assim como as realidades virtuais da era do computador). Como explica Weibel, a endofísica desenvolveu-se com base na teoria do caos e da física quântica, introduzindo na física
o problema do observador. A endofísica aporta uma dupla possibilidade de aproximação do
observador em relação ao mundo, que se difere da física clássica: o acesso direto ao mundo
real mediante a interface dos sentidos, e uma segunda possibilidade de observação baseada
em uma posição imaginária do observador. Pergunta: será a chamada realidade objetiva tão
somente o lado endo de um mundo exo? (op. cit., p. 24).
Mas em que exatamente essas questões relativas ao campo da ciência contribuem para se
pensar a arte e a estética hoje?
Estética e teorias científicas
Tendo por base o modelo da endofísica, termo cunhado por David Finkelstein, a estética, quando
analisa as imagens informáticas que possibilitam interações em tempo real entre pessoas e
computadores, encontra ressonância em Peter Weibel,5 da Universidade de Nova York (1998),
que propõe o mundo como interface, onde o sujeito é o observador interno e externo do
mundo do qual faz parte. Nesse contexto, o sujeito é o interagente que atua no real e no
espaço virtual. Weibel, ao pensar a respeito de instalações informáticas interativas, entende-as
como tecnologias do presente expandido; um presente entendido como modos de transcender
o horizonte local dos acontecimentos, destacando, assim, o quanto as tecnologias podem nos
libertar de instâncias de realidade, abrindo possibilidades instigantes para uma ação visionária.
112
As implicações da cultura industrial, ainda segundo Weibel, baseada na máquina, e pós-industrial, baseada nas informações, nas mecanizações, nas novas mídias, na simulação, na sintetização, nas semioses, na realidade virtual, integram-se em um novo discurso. Essa aproximação
aporta um marco teórico para descrever e compreender as condições científicas, técnicas e
sociais do mundo eletrônico. Para o autor, desde a realidade do observador, a representação e
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a não-localização, até o mundo concebido como mera interface, são importantes questões de
uma civilização eletrônica e telemática.
Analisa que a realidade e a contingência relativas ao observador trazem valiosas formas de
discurso para a estética da auto-referência (o mundo intrínseco dos sinais da imagem), a virtualidade (o caráter imaterial das seqüências das imagens) e a interatividade (a relatividade da
imagem em relação ao observador). Para Weibel, a endoaproximação na eletrônica implica que
a possibilidade de experimentar a relatividade do observador depende de uma interface, e que
o mundo se pode descrever como uma interface calcada na perspectiva de um observador
interno explícito. Assim, a arte tecnológica desloca a arte do estado centrado no objeto para
um estado direcionado ao contexto e ao observador, em que se convertendo em um motor
de troca leva da modernidade à pós-modernidade, ou seja, ocorre uma transição de sistemas
fechados para sistemas abertos, não definidos e incompletos; desde o mundo da necessidade a
um mundo de variáveis manipuladas pelo observador, desde a monoperspectiva à perspectiva
múltipla, desde a hegemonia ao pluralismo, do texto ao contexto, do lugar ao não-lugar, da
totalidade ao particular, da objetividade à relatividade do observador, da ditadura à subjetividade do mundo imanente da máquina.
A arte computacional pode levar o observador para dentro do sistema, assim como ocorre
tradicionalmente nas artes plásticas, mas traz como diferença a possibilidade de levar o observador, por meio de uma interface, a observar o sistema de fora e pensar na interface como
algo que se estende em terminais nanométricos e endofísicos, pois passamos a formar como
seres humanos parte de um mundo que também somos capazes de observar. (WEIBEL, 2000,
p. 25). Só assim nos liberamos da prisão das coordenadas de espaço e tempo descritas por
Descartes e passamos a ser superobservadores. A realidade virtual, as instalações computacionais interativas, a endofísica, a nanotecnologia, etc. são tecnologias do presente expandido,
modos de transcender o horizonte local dos acontecimentos. Tudo isso constitui para o autor
uma tecnologia que nos libera de instâncias da realidade. Nenhuma concepção da realidade
virtual (RV) e de ciberespaço pode ser localizada até os anos 1960, sua tecnologia só se tornou
acessível nos finais dos anos 1980, como veremos posteriormente nos exemplos de artistas
brasileiros e outros reconhecidos pelo meio.
Como citado anteriormente, Adorno observa que apesar das críticas em relação à arte e à
estética elas são consideradas necessárias para o ser humano. A ciência parece agora estar
interessada em saber por que elas são tão necessárias.
A arte e a estética têm interessado também a cientistas biólogos, especialmente do campo
da psicobiologia, como, por exemplo, Steven Pinker. Para este autor, nosso gosto estético foi
configurado pela evolução, alicerçado na biologia, e tem como função primária nos atrair
para ambientes e parceiros sexuais desejáveis. Gostamos instintivamente da harmonia. Enfatiza o autor que os artistas que fazem uma arte chocante e reclamam da “incompreensão
do público” estão enganados. Eles é que não compreenderam o funcionamento da mente
humana.6 Considerando o senso estético como componente genético, pergunto se somente
a cultura influencia os artistas ou a arte se levanta calcada em uma base psicobiológica inata
sobre a qual se constroem as influências culturais? Ou ainda: como uma receptividade intensificada ou a criação artística contribuíram para a existência do ser humano?
Para Pinker,7 numa entrevista concedida ao jornalista Carlos Graieb, da revista Veja, a mente
humana atingiu sua forma atual graças à seleção natural. Ela evoluiu biologicamente no decorrer
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de milhares de anos, e seus traços gerais são determinados por nossa carga genética. Isso não
significa, entretanto, que sejamos marionetes indefesas nas mãos de nosso DNA. Para o autor,
nossas emoções são as mesmas de nossos ancestrais, mas as respostas a elas passaram a
ser diferentes, porque se a mente humana evoluiu com base nas leis da seleção natural, hoje
obedece também a regras da sociedade e da cultura.A arte é considerada subproduto de várias
capacidades, pois o sentido “estético” tem a função de nos atrair para ambientes benéficos e
pessoas desejáveis. Exemplifica dizendo que gostamos de altitudes de onde podemos observar
um belo panorama, gostamos de paisagens com água e vegetação. Conseqüentemente, a arte
pode ser vista como a produção de estímulos artificiais que visam a fornecer o mesmo prazer
que ambientes naturais nos dariam.
Steven Pinker diz ainda na entrevista que a arte é mais uma daquelas atividades que, do ponto
de vista de nossos genes, são pura idiotice. Por exemplo, os chamados vanguardistas impulsionados por uma psicologia diferente, na maioria das vezes, buscam o que é impopular apenas
para se diferenciar da massa. O caso do escritor irlandês Oscar Wilde, que gostava de ofender
para se sobressair, é um típico caso. Visando à arte contemporânea, Pinker afirma que essa é
uma dinâmica que pode ser notada em várias formas de expressão artística contemporânea, e
uma das razões para isso é que neste século muitas pessoas podem pagar por objetos antes
exclusivos de uma minoria. Que, além disso, ficou mais difícil se diferenciar do resto da humanidade, e quem deseja fazê-lo é obrigado agora a procurar caminhos alternativos, como fazer arte
que ninguém entende ou fustigar as pessoas. Para concluir, Pinker diz que há muito a explorar
na mente humana, entretanto, apesar da nossa cultura e tecnologia evoluírem drasticamente, é
bastante provável que tenhamos atingido nosso limite biológico. Como a evolução biológica é
um processo que envolve muitas e muitas gerações, num período longuíssimo, nenhum de nós
estará aqui para ver o salto evolucionário. Só os heróis das histórias em quadrinhos ganham
superpoderes de repente, finalizou Pinker na entrevista.
A estética pós-humana
O termo pós-humano surgiu notadamente nos campos da ciência-ficção e da arte tecnológica
e está estritamente relacionado com a utilização das novas tecnologias, a partir da Segunda
Guerra Mundial, e com a biotecnologia, em particular. Com a invenção da informática começam
a surgir imagens de humanos conectados com próteses de todo tipo, metade homem, metade
máquina. Nós entramos numa nova fase, em que o futuro do ser humano (psicológico, biológico, cultural, mental, espiritual e social) está condicionado pela tecnologia.
O processo de criação dos artistas na era pós-humana está relacionado com experimentação
combinando arte, ciência e tecnologia. Considera, muitas vezes, um modo de operação de
descobrir, inventar e criar, simultaneamente. Para designar o processo de criação do artista,
recorre-se ao termo serendipity, como um dos conceitos que melhor representam a maneira de
relacionar arte, ciência e tecnologia pelos teóricos da era pós-biológica. O termo que designa
a importância do acaso nas invenções e nas descobertas científicas, tecnológicas e artísticas
resume como se pode encontrar aquilo que não se está procurando, de modo intuitivo.
114
Para demonstrar como a estética pós-humana surge da relação entre arte, ciência e tecnologia,
subdividimos a análise em três categorias principais, destacando primeiramente a ciberarte,
em seguida a arte computacional, envolvendo a interação humano-computador, por meio de
interfaces naturais não convencionais. E, por último, destacamos a bioarte. Em todas essas
categorias os seres vivos e as máquinas são as entidades visadas pela arte pós-humana.
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A arte pós-humana vem-se multiplicando na medida das invenções técnicas e das práticas
artísticas. Cronologicamente, nos anos 1960 aparece a arte cibernética, que tem como
mérito definir a estética cibernética, não pela técnica, mas pelo conceito artístico. Nos
anos 1970 e 1980 discute-se sobre arte informática (computer art), arte computacional, arte
eletrônica, englobando diversas práticas. Os anos 1990 lançam os termos multimídia, ciberarte e bioarte.
Os anglo-saxões, grandes criadores de palavras e neologismos, introduziram o termo media
art e new media art, os franceses, arts médiatiques, no Brasil, novas mídias ou mídia arte, como
forma de arte que utiliza a eletrônica, a informática e os novos meios de comunicação. O
termo surge no meio da explosão do uso da Internet.
A extensão das redes telemáticas possibilita uma realidade misturada, com trabalhos compartilhados, reuniões a distância, superabundância de informações, num mundo globalizado. A arte
pós-biológica utiliza equipamentos eletrônicos e computacionais como meios artísticos (nota:
meios ou mídias designam atualmente duas coisas: as mídias eletrônicas e as computacionais).
As mídias numéricas e eletrônicas apóiam-se na informática e nos computadores e nas novas
tecnologias de informação e comunicação, além da biotecnologia.
Destacamos como artistas da ciberarte aqueles que utilizam a rede internet para a realização
de trabalhos interativos. A interação é fundamental na ciberarte, assim como desenvolver
poéticas utilizando linguagens de programação.
A ciberarte possui todas as características da arte computacional, entretanto os trabalhos da
arte computacional não estão necessariamente em rede, numa interação social. Essa categoria,
ao se aproximar de questões relacionadas à interface humano-computador, como as atingidas
pela realidade virtual, mostram uma visão bem particular, que leva a pesquisa nesse campo
em direção ao desaparecimento das interfaces mediante a elaboração de sistemas de acoplamentos diretos, de tradução, de imersão completa e de conseqüente não-distinção entre a
realidade da máquina e a realidade humana. Inventam-se os meios de comunicação tangíveis
bio-adaptáveis. Para a teórica Cláudia Giannetti (2002, p. 131), poderíamos considerar bioadaptador como uma versão funcional do que o filósofo Friedrich Nietzsche dizia a propósito
da redução da realidade a uma “fábula”, com a diferença que aqui esta se constrói com base
no exterior, por um computador. As questões de fundo que se apresentam estão relacionadas
com a percepção e o conhecimento que temos do mundo, como a diferenciação entre as
realidades natural e simulada, a objetividade da realidade, o papel do observador e a relação
entre o observador interno e o externo.
Historicamente, nos anos 1980 e 1990, mesmo não utilizando os equipamentos de realidade
virtual, os artistas exploravam com modos diferentes de processos criativos a interação numérica. Em vez de sensações de imersão, tinham-se experiências multimodais. Nessas instalações os
equipamentos eram compostos por um computador, um projetor multimídia e caixas de som.
Por exemplo, Paul Garrin, com sua instalação The white devil (1992), ilustrava a atmosfera de
terror que ameaça a vida dos americanos. O visitante de sua instalação deparava com um
enorme portão de ferro fechado diante uma luxuosa mansão. A propriedade está queimando,
e o visitante curioso se aproxima para ver melhor. Mas logo que ele se aproxima um cachorro
furioso o ataca, perseguindo-o à medida que se movimenta. O cachorro é uma seqüência de
imagens de vídeo pré-armazenadas num computador e controladas por um programa compu-
115
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tacional que faz com que o observador tenha a impressão de que o cachorro se desloca por
meio dos vários monitores dispostos no ambiente da instalação.
A imagem de vídeo controlada numericamente, tentando entrar com contato com a realidade
também foi tema do trabalho de Bill Spinhoven denominado I/Eye. Disposto no alto de uma
passagem, um monitor mostra uma imagem de olho humano num close. O olho está imóvel,
mas quando percebe, por meio de sensores, alguém passando segue a pessoa com precisão.
Sensores de presença detectam a passagem das pessoas e informam o computador por meio
do programa que gerencia a mudança dos vídeos.
A inserção da realidade virtual nas instalações interativas data dos anos 1990, ao lado dos
cientistas que buscavam enriquecer e acelerar a interface humano-computador. As instalações
são bastante complexas e mostram a tendência de mergulhar as pessoas, metaforicamente, em
ambientes de síntese, onde as imagens digitalizadas do real quase não eram valorizadas.
Não temos muitos trabalhos artísticos com realidade virtual. Citaremos como exemplo
pesquisas do Laboratório de Pesquisa em Arte e Realidade Virtual, do Instituto de Artes,
em conjunto com o Laboratório de Imagem da Engenharia Elétrica, ambos da Universidade
de Brasília, que elaboraram um trabalho denominado Contato, grupo composto por Mario
Maciel, Ricardo Queiroz, Rafael Galvão e Suzete Venturelli, apresentado na exposição Humanopós-humano, em 2005, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília. Baseado num sistema
composto por projeção, computador, programas de digitalização de posição, de ambiente 3D
e câmera digital, o sistema possibilita que ocorra interação entre interatores e imagem de
síntese, ou seja, ao se deslocarem diante da câmera, que digitaliza suas posição nos eixos X e Y,
as pessoas movimentam uma imagem tridimensional de partículas que se espalha virtualmente
por causa do deslocamento provocado.
Outro trabalho do grupo é baseado na biblioteca de programação ARToolkit, que possibilita
a fusão entre imagens em movimento do real capturadas por uma câmera em tempo real e
imagens de síntese criadas em VRML, que se deformam à medida que ocorre a interação com
o atuador. O resultado é uma terceira imagem que agrupa num determinado espaço-tempo
único as duas realidades. Estamos procedendo da seguinte maneira: após a modelação em
linguagem VRML, na qual foram criados várias modelos tridimensionais, testamos os resultados na biblioteca de programação ARToolkit. Numa primeira fase, foi necessário calibrar a
câmara para que houvesse exatidão na imagem. Posteriormente, criamos padrões que foram
associados aos objetos VRML, modelados na fase anterior. Por último, procedemos com a visualização desses objetos 3D no mundo real. Como dito anteriormente, essa pesquisa artística
inclui a criação de um sistema baseado na biblioteca de programação ARToolkit. Esclarecemos
que o conceito de sistema aqui se refere a um conjunto de componentes que interagem para
resolver um problema. Neste caso, estamos elaborando um programa cuja interface é o corpo
do interator que controla a simulação de imagens virtuais e de vídeo em tempo real.
Bioarte
116
Na bioarte, os artistas criam obras inspiradas pela ciência e em particular pela biologia sobretudo pela genética –, ou em geral pelos mecanismos da vida (como os seres vivos se
organizam, se desenvolvem, evoluem e se adaptam ao ambiente). A forma como a natureza
funciona influencia alguns artistas para usar essas idéias e produzir arte, como Leonel Moura,
artista português que criou um robô pintor, ou Harold Cohen, pioneiro que reside nos Estados
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Unidos da América, muito considerado no meio porque foi o primeiro a criar um robô artista
nos anos 1970. Outro artista interessante é Casey Reas, um jovem autor de um programa com
características de vida artificial que produz pinturas e desenhos.
A bioarte busca simular matematicamente processos biológicos por um computador com o
intuito de se aproximar da pesquisa científica. A bioarte é híbrida e mutante, em razão das
transformações constantes da arte e do ambiente no qual ela está inserida. Exemplo de bioarte
são as imagens da DNA11, a companhia que cria dispositivos artísticos a partir do DNA de
cada cliente. A bioarte está em constante rematerialização, não de seus códigos, mas do
seu confronto fenomenológico com a tecnologia. Jens Hauser, curador do Ars Electronica-Lins,
apresenta algumas linhas-mestras da bioarte na atualidade: a) em vez de descrições gráficas ou
simulações, a bioarte trabalha hoje mais com processos de transformação que tenham características performáticas; b) ela está cada vez mais conectada e preocupada com suas relações
estruturais com a body art; c) como um meio, a bioarte não pode ser facilmente definida por
procedimentos e materiais empregados em sua realização. A manipulação dos mecanismos
da vida envolve um leque amplo de formatos que dizem respeito tanto ao discurso quanto
à técnica. Como disse Peter Weibel, diretor do ZKM (Museu de Arte e Mídia, da Alemanha),
“a tarefa de criar vida pode ser abordada em duas direções: pelo hardware e pelo software”.
Os artistas usam cada vez mais seus próprios corpos para explorar temas e problemáticas
geralmente conectados à biociência. Como, por exemplo, o duo francês Art Orienté Object, que
planeja uma transfusão filtrada de sangue de panda a um ser humano. Hauser defende que o
uso de procedimentos biotecnológicos como meio de expressão na bioarte não tem necessariamente uma função descritiva primária.
A bioarte é uma arte de transformação contínua que manipula material genético em pequena
escala (células, proteínas, genes) e cria displays para possibilitar a participação da audiência
nesse processo. Nessa categoria se encaixa o experimento “A dimensão artística de uma rã”
(Disembodied Cuisine, 2004). Nele, músculos de rã foram cultivados com biopolímeros para
promover seu crescimento extracorpóreo, visando a um eventual consumo humano.
Hauser afirmou que após um período em que a vida foi concebida como um código, uma
linguagem ou uma espécie de software imaterial, artistas como Natalie Jeremijenko apresenta
obras que usam materiais orgânicos concretos para criticar o uso fetichista da engenharia
genética. No seu projeto Feral Robotic Dog ela trabalha com estudantes de ensino médio para
desmontar brinquedos eletrônicos, na verdade pequenos robôs, e remontá-los com uma
estética e comportamento diferentes. Ela adiciona sensores e funções. O Feral Robotic Dog é
armado com sensores de poluição e busca toxinas presentes nos aterros e nas cidades; o robô
é armado para buscar poluentes usados na fabricação dele mesmo, chamando atenção para
este aspecto da indústria high-tech. Enquanto os brinquedos normais dançam, pulam, cantam
e falam, o Robotic Dog tem uma função ambiental, social e cultural. Além disso, são baratos e
democráticos; são open-source, quer dizer, ela dispõe o código e as partes usados para que
sejam refeitos por quem quiser.
O trabalho de Natalie também tem um aspecto educacional, que mostra às crianças como
montar e redefinir a tecnologia que está sempre ao seu redor de forma predeterminada. As
crianças aprendem a questionar o uso da tecnologia e a entender seu desenvolvimento.
Muitos artistas atualmente optam por apresentações performáticas que estabelecem inter-relações entre a biotecnologia e suas implicações filosóficas, políticas, éticas e econômicas. Essa afir-
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mação seria previsível quando se leva em conta o entrosamento dessa manifestação artística com
a indústria agrária, a farmacêutica e a bélica e também quando se observa a criação e o desenvolvimento de extensivos bancos de dados de DNA nos países industrializados. Nesse contexto,
entende-se por que o trabalho “Origem” (Origin, 1999), do sino-americano Daniel Lee, foi escolhido como imagem oficial da mostra Ars Electronica, de 2006. “Origem” é uma série de fotos
manipuladas que descrevem a evolução humana. Lee propõe a existência de dez estágios nessa
evolução: desde um peixe, passando por répteis e macacos, até chegar a formas humanóides.
Durante a Ars Electronica, Daniel Lee apresentou pessoalmente ao público seu mais recente
trabalho, “Colheita” (Harvest, 2004). Para ele,
a ciência permitiu a possibilidade de estender nossas vidas, mas ainda não
saciou totalmente a cobiça humana. A substituição de órgãos doentes ou
velhos por novos órgãos saudáveis é a chave para a longevidade. Utilizando as técnicas de reprodução de células-tronco e a decodificação do
DNA dos animais, nós poderíamos transplantar seus órgãos em seres
humanos, o que nos propiciaria um novo e enorme nicho de doadores.
O resultado, lançado na Mostra Nichido de Arte Contemporânea, em Tóquio, em 2004, é
desconcertante, pela aparência irônica das criaturas híbridas de Lee.
A arte pós-humana enfatiza na maioria das vezes as implicações sociais desses dispositivos
computacionais e biotecnológicos. Possíveis subversões, em exposições dessa natureza,
evitando o elogio à técnica e à tecnologia sem a devida análise e reflexão. Um exemplo do
uso e da técnica para ampliar as discussões sobre a era pós-humana é o robô controlado
por baratas (Cockroach controlled mobile robot, Garnet Herz, 2005), que coloca as questões da
robótica e sua direta relação com as linhas de produção a resultados que podem vir a ser
monstruosos.
Outro trabalho muito interessante é o espanhol “Jogos Fronteiriços” (Bordergames, Medialab,
Madrid, 2005), que, utilizando a linguagem de jogos, discute e critica a vida difícil dos imigrantes
adolescentes e sua não-inclusão no mercado de trabalho dos países desenvolvidos. O game
coloca em discussão o conceito de vida e jogo para as minorias sociais que vivem em situações
conflituosas de sua própria realidade.
Um exemplo de bioarte no Brasil é a obra do brasileiro Alceu Baptistão e sua modelo virtual
Kaya (2001), que discute a necessidade de criação de seres artificiais tendo como referência o
próprio ser humano e a simulação de seu comportamento e existência.A arte computacional e
suas perspectivas pós-humanas fornece conceitos novos, incontroláveis pelo mercado, desafio
às tradições contemporâneas da arte, com programas inovadores, protestos contra o uso das
tecnologias para fins bélicos, propondo outras alternativas de interação humano–máquina,
mostrando possível aplicação e invenção de tecnologias que estimulem a sensibilidade e a
sensorialidade. Enfim, vimos surgir, nos últimos dez anos, imaginários com perspectivas não
conformistas, cujo resultado estético critica os rumos da civilização da imagem.
O desafio da arte computacional na experiência estética
118
Para o filósofo francês Marc Jimenez (1999)8, antes mesmo de falar do desafio que é para
a estética a arte tecnológica, ele comenta o desafio que é para ele mesmo falar do assunto.
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Esse desafio, confessa, é o do filósofo, formado na escola de filosofia tradicional da arte, que
pretende tratar das formas mais atuais produzidas pelas tecnologias em constante evolução.
Citando Jürgen Habermas, Jimenez (1999, p. 1) comenta que o filósofo e sociólogo alemão
inicia sua obra O pensamento pós-metafísico pela seguinte questão: até que ponto a filosofia
do século 20 pode ser considerada moderna? A questão, embora aparentemente ingênua, é
crucial para Habermas, que declarou estar inacabado o projeto da modernidade. Se compreendemos bem Habermas, diz Jimenez, tal projeto se tornou entretempo obsoleto, desqualificado
pelas diversas formas de modernidade, pelos aspectos do “positivismo” que constrangeu a
filosofia a se submeter aos efeitos do envelhecimento da modernidade. De modo muito significante, Habermas ousou um paralelo entre um pensamento filosófico ameaçado de esclerose
e o domínio artístico que, renunciando à inovação e à experimentação, se orientava, apesar
de tudo, em direção à decoração histórica e ao ornamento. Para Jimenez, essa referência à
arte e à cultura pós-vanguardista, um e outro vítimas de um tipo de síndrome pós-moderna,
não é inofensivo. O mal-estar que bate nas democracias ocidentais traduz a inquietude dos
contemporâneos diante de diversas crises de legitimação, afetando os valores, os critérios e os
alicerces tradicionais do pensamento, da ação e da criação. É então com muita pertinência que
para Jimenez o filósofo Habermas apóia sua demonstração sobre exemplos artísticos.
De fato, as controvérsias estéticas durante o século 20 mostram que a arte não escapou de
uma profunda avaliação por parte dos filósofos de sua definição e de seus fundamentos ontológicos e existenciais.
Sobre esses assuntos, a reflexão de Theodor W. Adorno (1995, p. 15) somente hoje parece,
após trinta anos de sua formulação, atingir sua plena significação, pois é evidente que tudo o
que concerne à arte, ela mesma e sua relação com o todo, não depende só dela, nem mesmo
seu direito à existência. Toda passagem de século engendra utopias, mas também morosidades na avaliação dos pontos positivos e negativos, utópicos e cépticos da modernidade e da
contemporaneidade artística.
Aqui no Brasil, diferentemente de outras partes do mundo, o debate da crítica de arte sobre
a arte contemporânea infelizmente não se inscreve na tendência de reavaliação crítica da
modernidade na arte, que se desenrola em muitas etapas. A controvérsia em países como a
França ou os Estados Unidos concerne à arte do século 20, em crise, a partir dos anos 1980,
pois qualifica-se a arte contemporânea como inútil e em conflito com o mercado de arte.
Segundo Jimenez (1999, p. 3), muitas vezes acusada de ser qualquer coisa, a arte contemporânea escapa às tentativas de avaliação, desafiando todo julgamento estético e todo critério
de apreciação em vigor; ela suscita do público apenas repulsão e indiferença. Incrivelmente,
nesses países, as críticas em relação à arte contemporânea nunca atingem a arte e a tecnologia.
Entretanto, a expressão arte e tecnologia, suscita desconfiança.
No meio brasileiro, a crítica não avalia com vontade de se posicionar criticamente, no sentido
estrito do termo, diante da arte contemporânea e quanto à arte e à tecnologia, concordo
com Jimenez, quando diz que os críticos atuais vêem uma irracionalidade da aproximação
filosófica, no sentido heideggerniano, da arte e da cultura pela técnica, esquecendo que os
gregos somente possuíam o termo techné para designar a atividade artística, e que falar
de arte e tecnologia é empregar um pleonasmo. Para exemplificar no contexto nacional, o
posicionamento dos críticos brasileiros, em realação à arte e à tecnologia, quando deparam
com exposições nacionais, como a exposição Cinético_Digital9, realizada no Itaú Cultural de
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São Paulo, pareceu que ficaram incomodados, conforme demonstraram na revista Bravo e no
jornal Folha de São Paulo.
Na revista Bravo, o texto dizia que supervalorizávamos a técnica em detrimento da arte. As
frases superficiais, como « se a técnica ajuda o homem a dominar a natureza e a obter resultados que lhe sejam úteis, cabe à arte manter a tensão e os antagonismos que a geraram»,10
pouco acrescentaram ao leitor interessado no assunto. A crítica promovida pela Folha de S.
Paulo11 foi igualmente frouxa no julgamento crítico das obras dos novos artistas brasileiros da
exposição, pois não conseguiu perceber que as formas mais atuais de criação, propostas no
evento, estão abertas sobre o futuro evidentemente desconhecido e largamente experimental.
Um fato curioso é que os críticos não ousaram questionar as obras dos artistas reconhecidos, também participantes da mostra, como Waldemar Cordeiro, Abraham Palatnik e Julio
Plaza, embora, tenho certeza, não as compreendam muito bem, que largamente utilizaram
os recursos tecnológicos em seus trabalhos. Parodiando Jürgen Habermas e Marc Jimenez,
pergunto a que ponto este tipo de crítica que ocorre no século 21 é contemporânea?
Jimenez disse ainda que um interessante pensamento encerra a obra de Ilya Prigogine e Isa­belle
Stengers A nova alinaça: a metamorfose da ciência (1984), na qual declaram os autores que no
final do século 20 o saber científico se descobrirá à escuta poética da natureza. A metáfora
musical assinala o final das pretensões de uma ciência clássica impondo à realidade a ordem e
a estabilidade de conceitos e categorias.
A nova aliança, referida anteriormente, define assim um modo novo de estar no mundo, um
modo dinâmico de circulação de conhecimento, assim como a consciência de interações entre
arte e ciência com renovação de modelos e o desaparecimento dos muros que separam as
disciplinas, assim como o surgimento de novos espaços de criação e invenção.
Abraham Moles, ao escrever sobre os rumos de uma cultura tecnológica nos anos 1960, já
discorria sobre os novos espaços que estavam sendo criados com base em trabalhos oriundos
da estética informacional, na qual o problema da criação artificial encontrava na estética condições de validade do produto substancialmente diferentes daqueles que deveria ter o produto
científico acabado e que parecem nitidamente mais fáceis de preencher (MOLES, 1973, p. 158).
Um outro saber, como citado por Jimenez (1999, p. 4), está em via de constituição e consolidação, que é modesto em relação à ciência clássica mas ambicioso nos seus processos. Está
em desenvolvimento nos espaços abertos às múltiplas experimentações livres das obrigações
secretas de sucesso; processos de invenção que não estão em contradição com a «obra».
Outra questão interessante que Jimenez levanta em seu texto ele denomina de estética
nômade, ao se referir às mutações que percebemos desde o século 20 em relação à arte, que
além de recusar o consenso do gosto, ao integrar os conhecimentos da ciência e da técnica,
inventa outras coisas fora do meio tradicional, transgredindo o sistema dominante. Além disso,
uma parte da arte tecnológica contemporânea, principalmente a que utiliza a tecnologia de
comunicação computacional, produz uma estética nômade.
120
Sugere Jimenez que devemos adotar diante das tecnologias novas uma distância razoável de
toda desconfiança, do sentimento de apego ao passado, assim como do entusiasmo exagerado
gerador de utopias, pois acredita que elas são antes de tudo lugares de investigação, e no atual
estado de evolução esperamos, no lugar de obras acabadas, estímulos para o desenvolvimento da
pesquisa e a elaboração de processos cognitivos integrados num contexto cultural mais vasto.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Uma estética da arte tecnológica teria a função de avaliar o contexto cultural e artístico
das mutações que surgissem em todos os setores da pesquisa e da criação. Com a reflexão
estética, como herança direta dos movimentos de vanguarda, podemos interrogar sobre a
função política da arte, sobre ativismo e engajamento, sobre o papel entre a prática artística e a vida cotidiana. Essas questões, diz Jimenez, não estão ultrapassadas, mas se fecharam
na sua formulação original, de uma época onde a racionalidade científica e tecnológica – os
modelos tecnocientíficos, como podemos dizer – transformaram profundamente, estruturamente, nossa relação com os diferentes saberes. Ao empregar a palavra mutação, Jimenez está
imaginando uma estética que aceitaria a passagem, a transição, rica de imprevistos, que apoiaria
o desenvolvimento tecnológico.
Conclusão
Considerei que em alguns momentos específicos a estética pós-humana depara com o sublime
tecnológico, de Mario Costa, fazendo com que a experiência estética se desloque do interior
para o exterior, exteriorizando-se. Permite, assim, que o interior do sujeito assuma uma experiência com base no exterior, não no sentido onde o espírito se objetiva, mas no sentido onde
ele se apresenta como um estado de coisas.
A essência do produto artístico é renegada e tecnologicamente transferida ao exterior pelo
intermediário das interfaces mente–máquina, ou seja, máquinas sinestéticas. Na essência
da estética computacional a forma não tem tanta importância, pois ela se identifica com o
conceito, com a não-forma, com o aleatório, a sorte, com o efêmero, com o transitório, quer
dizer, com a chegada do fluxo dos eventos. Isso, para nós, parece ser o novo sentido que a
pesquisa estética está tomando sob o impulso das tecnologias computacionais do som, da
imagem, da comunicação, da espacialidade, da vida...
Notas
1. http://ciepfc.rhapsodyk.net/article.php3?id_article=77
2. A teoria cognoscitiva trata da aprendizagem que adquire o ser humano através do tempo mediante
sua prática ou interação com os seres de sua ou de outra espécie. É a teoria que trata da aprendizagem,
na qual o ser humano utiliza a sua própria experiência para obter uma nova aprendizagem.
3. Disse que ao contemplar uma obra de arte devemos nos ater às impressões, mas não tratá-las como
único fator. Esse filósofo foi o responsável por sistematizar a estética, liberando-a da lógica e da metafísica
tradicionais. A intuição, tão rejeitada pelos clássicos, para ele faz parte da criação, mas obedece a uma
certa lógica. Intuição nada mais é do que um cálculo inconsciente e inesperado baseado em experiências
anteriores. E as paixões, consideradas perturbações da alma pelos cartesianos, agora são o motor da
vida. Para Baugarten, não há como fazer arte sem paixão. Em seu trabalho Meditações filosóficas sobre
as questões da obra poética (1735) introduziu pela primeira vez o termo “estética”, que definiu como a
ciência que trata do conhecimento sensorial que chega à apreensão do belo e se expressa nas imagens
da arte, em contraposição à lógica como ciência do saber cognitivo.
4. Otto Rössler, matemático, químico e físico, contribuiu desde 1975 com o desenvolvimento da ciência
endofísica. Seu pressuposto se opõe à idéia clássica de que o observador cartesiano reside no interior
do mundo objetivo, observado como separado e radicalmente distinto de sua mente. Além disso, Otto
Rössler, assim como o físico Karl Svozil, pensa que as suspeitas de que o universo talvez seja algum
tipo de máquina ou algoritmo existindo “na mente’’ de um number cruncher (processador numérico)
simbólico, e que existe em diferentes culturas, talvez tenham procedência. Embora popular, as formas
mais radicais desta idéia nunca foram comprovadas. Desenvolvimentos modernos em física e informática
121
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
apóiam a tese, entretanto evidências empíricas são necessárias para que ocorram mudanças na nossa
visão contemporânea do mundo (SVOZIL, 2005, p. 1). Sobre o assunto ver GIANNETTI, Claúdia. Estética
digital: sintópia del arte, la ciencia y la tecnología. Barcelona: L’Angelot, 2002.
5. Um dos pioneiros na experimentação entre arte e novas tecnologias. Em suas performances ele explora
não apenas a linguagem corporal e midiática, mas também filme, vídeo, áudio e ambientes eletrônicos
interativos, analisando criticamente suas funções na construção da realidade. Além de tomar parte de
projetos com membros do Viennesse Actionism, em 1967 ele desenvolveu, junto com Valie Export, Ernst
Schimdt Jr. e Hans Scheugl o chamado Expanded Cinema. Inspirado pela American Expanded Cinema, ele
mostrou as condições ideológicas e tecnológicas da representação cinemática.
6. O cientista canadense defende a tese de que a mente é uma espécie de computador programado pela seleção natural.
7. http://www.genismo.com/psicologiatexto44.htm. Acessado em janeiro de 2008.
8. Marc Jimenez, «Le défi esthétique de l’art technologique», Le Portique, Numéro 3 - 1999, Technique
et esthétique, 1999, [En ligne], mis en ligne le 14 mars 2005. URL : http://leportique.revues.org/document293.html. Consultado em 27 de janeiro de 2008.
9. Curadoria Mônica Tavares e Suzete Venturelli.
10. Revista Bravo, agosto 2005, n. 95, ano 8, www.bravoline.com.br, 151.
11. http://itaulab.blogspot.com/2005/07/onde-esto-os-cronpios-da-arte.html.
122
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123
Artes interativas e método relacional para criação de obras 1
Interactive Arts and relational method for creating works
Tania Fraga *
Resumo
Este ensaio realiza uma reflexão sobre o processo criativo e delineia um o método para a criação de obras artísticas
que nascem de relações entre o interator, o computador e o objeto material ou virtual estimulável.
Palavras-chave: interator, programação, realidade virtual, arte interativa.
Abstract
This essay accomplishes a reflection on the creative process and it delineates a method for the creation of artistic works that
are born of relationships among the interator, the computer and the stimulating material object or virtual.
Keywords: interactor, programming, virtual reality, interactive art.
IIntrodução
Os matemáticos não estudam os objetos, mas as relações entre
os objetos, portanto lhes é indiferente substituir esses objetos por
outros, desde que as relações não mudem.A matéria não lhes importa,
mas, unicamente, as formas. Henri Poincaré (1988, p. 34).
Este ensaio realiza uma reflexão sobre o processo criativo e delineia um método para a
criação de obras artísticas que nascem de relações entre o interator, o computador e o objeto
material ou virtual estimulável. As artes que possibilitam o estabelecimento desse tipo de relações são aqui denominadas interativas. Elas possibilitam, muitas vezes, a tomada de consciência
da percepção 4D enquanto a ação ainda se processa. Assim, ocorre como que uma amplificação do processo sensorial pelo fato de acontecerem correspondências isomórficas entre
os estados perceptivos de quem está criando e os estados potenciais imanentes do campo
criado, os quais afloram durante o processo de interação, induzindo a emergência de repertórios inovadores. Neste caso, o criador é também o interator. Quando a obra é disponibilizada
para performers ou para o público, estes passam a assumir o papel de interator e mudam as
características dessas relações, fato analisado em outros ensaios.
A programação de códigos computacionais e o método de abordagem norteador dessa
programação é parte intrínseca do processo criador, assim como o é a compreensão das
124
* Artista e arquiteta, doutora em comunicação e semiótica pela PUC/SP, foi professora do Instituto de Artes da UnB.
Tem publicado e participado de exposições e espetáculos nacional e internacionalmente. Trabalha com arte computacional interativa, através do uso de tecnologias de realidade virtual. [email protected]
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possibilidades matemáticas existentes no que hoje se conceitua, nas ciências físicas e matemáticas, como espaço-tempo. A apreensão e a cognição de fenômenos ilusórios e a não-correspondência entre eles com nossas referências habituais da realidade física, as quais moldam
a experiência humana quotidiana, provocam experiências incomuns. Interessa-me identificar
os campos do conhecimento nos quais tais experiências podem ocorrer. A seguir, é preciso
desvelar os interstícios entre essas áreas, geralmente dispersas em domínios interdisciplinares diversos, para, em seguida, traçar estratégias que permitam explorar suas possibilidades
poéticas. Denomino o amálgama dessas diversas possibilidades como método relacional de
criação por aproximações sucessivas. Esse método possibilita-me tecer e expandir processos não
lineares, estabelecendo padrões múltiplos em direção a estruturas cada vez mais complexas;
ele propicia o aglutinamento de signos em novos significados, despertando sensibilidades, instigando curiosidades, estimulando ações para mim e para os demais, trazendo situações paradoxais para serem vivenciadas.
Contextualização
Simulações tridimensionais, estereoscópicas e interativas (FRAGA, 1995), comumente designadas de realidades virtuais, permitem experimentar qualidades relacionadas com a sensação de
profundidade – denominada de estereopsia ou “visão sólida” (LIPTON, 1982) – e possibilitam
tornar visíveis dados virtuais, transformando-os num domínio tridimensional quase tátil. O
fenômeno que possibilita ver em profundidade as simulações interativas de objetos tridimensionais confronta as pessoas com uma sensação paradoxal, pois torna acessível aos sentidos
simulações que são estruturas imateriais, luminosas e intangíveis (ver figura 1).
Para perceber o espaço em sua tridimensionalidade é preciso cruzar o olhar até três imagens
surgirem no campo visual e então concentrar a atenção nessa terceira imagem central.
Imergir nesse espaço virtual ilusório é como oscilar em universos flexíveis e múltiplos. A consciência cognitiva de fatos sensíveis induz a organização de nossos esforços perceptivos em
diferentes espaços e tempos, fazendo-nos apreender, assim como transformar, nossas sensações descontínuas, possibilitando reconhecê-las como novas realidades, embora intangíveis
(FRAGA; TAUNAY, 1992).
A apreensão desses fenômenos virtuais ilusórios deixa-nos atônitos em razão da magia resultante da não-correspondência entre eles com nossas referências habituais de realidade física.
Em um pólo temos a experiência humana moldada pelo aprendizado quotidiano realizado
no mundo físico, sujeita a fatores mecânicos e gravitacionais; no outro encontramos mundos
virtuais plasmados nos domínios imaginários dos sonhos, das quimeras e dos devaneios.
Os mundos tridimensionais estereoscópicos ocorrem na mente como ilusões (JULESZ, 1971),
e embora possibilitem uma forte experiência sensorial como formas sólidas nem sempre
podem representar objetos materiais.
A busca de dar forma ao imponderável e inefável tem sido uma das características do meu
trabalho como artista programadora de códigos computacionais. É fato esses mundos tridimensionais oferecerem-se às experiências sensoriais, mesmo existindo no mundo físico apenas
como fenômenos luminosos imateriais. Sua natureza como coisa feita de matéria é improvável,
pois a maioria deles não tem estruturas que lhes possibilitariam existir em universos sujeitos
às leis gravitacionais sem perder sua forma tridimensional.
125
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Apesar dessa improbabilidade, tenho atualmente pesquisado, intensivamente, modos de manufaturar em borracha alguns dos objetos desses mundos e movê-los com sistemas cinéticos
que garantam sua fluidez, criando um conjunto de objetos que denomino BOTO (Behavioral
Organic Technological Objects – ver figura 2). Um deles destina-se a existir em sua plena tridimensionalidade apenas em ambientes sujeitos à gravidade zero ou em microgravidades (ver
figuras 3, 4 e 5). Ele faz parte do projeto para a instalação Gravity fluxion: pulsations, proposta
que está sendo realizada com os artistas Frank Pietronigro (USA) e Gavin Adams (UK), cujo
objetivo é criar em terra situações de desorientação similares às vivenciadas em gravidade
zero (ver figuras 6 e 7).
126
Esses objetos tridimensionais, sejam eles materiais ou virtuais (estereoscópicos), visam a
provocar experiências incomuns naqueles que os vivenciam. Procuro, por meio deles, acirrar
emoções, fazendo aflorar qualidades afetivas, seguindo a linha de pesquisa denominada
computação afetiva desenvolvida pela cientista Rosalind Picard (PICARD, 2000). Tais experiências suspendem a crença racional na existência de uma realidade única. Elas despertam a
curiosidade sobre o mistério de a mente e a consciência serem capazes de criar realidades
contendo coisas quase táteis que agenciam o impulso para serem apalpadas, embora sejam, ao
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mesmo tempo, inefáveis; ou coisas quase orgânicas e flexíveis que se movem caoticamente e Figura 1.
Simulação estese acendem (reagem à luz negra) na presença do interator.
O método relacional de criação
O método de criação desses objetos, denominado aqui de método relacional de criação por
aproximações sucessivas, resulta de um encadeamento probabilístico e aleatório de idéias visuais
organizadas e construídas topológica, geométrica e aritmeticamente (POINCARÉ, 1988, p. 30).
Chamo-o de probabilístico porque a construção dos objetos resulta de escolhas racionais
relacionadas com a aplicação de leis matemáticas e aleatório porque as escolhas que realizo
derivam de processos de associação de idéias que emergem na mente como imagens mentais,
insights e sonhos (FRAGA, 1995).
Ao examinar as diversas espécies de hipóteses, as características dos enunciados e das
convenções do próprio rigor matemático, assim como o caráter dos raciocínios empregados
naquela ciência, o matemático Henri Poincaré constata que os matemáticos agem construindo
“combinações cada vez mais complicadas”. Em seguida, pela análise dessas combinações,
reoscópica para a
instalação Raízes
Gigantes (trabalho
em processo).
127
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Figura 2:
Membrana
estimulável,
instalação criada
para a exposição
Emoção Artificial 2,
Instituto Cultural
Itaú, 2004
voltam aos conjuntos e seus elementos primitivos. Apreendem então relações existentes
entre os elementos para deduzir as relações mais gerais entre os conjuntos. Essas construções possibilitam generalizações que, quando agrupadas com outras análogas, formam “espécies de um mesmo gênero”. Procuram a seguir “demonstrar as propriedades do gênero sem
ter de as estabelecer, sucessivamente, para cada uma das espécies”. Esse tipo de raciocínio,
denominado indução matemática, possibilita a criação, o estudo e a evolução das ciências
(POINCARÉ, 1988, p. 31).
E no campo das artes interativas? O que acontece quando esse tipo de processo racional
complementa-se com o um processo no qual sincronicidades2 acontecem e trazem para o
contexto fatores tais como emoções, sensações, intuições e insights? Observando meu próprio
processo criador durante a elaboração de mundos virtuais, de arquiteturas, de instalações e de
desenhos (materiais ou virtuais), percebo que organizo os pensamentos abstratos por meio
da tomada de consciência da ocorrência de sincronicidades e seu permanente registro em
pequenos croquis e com descrições sumárias. Durante o processo, analiso constantemente as
conexões não causais que emergem como eventos sincrônicos em relação a sonhos, imagens
mentais e insights, como citado anteriormente, e as transformo em condições para a ação, para
fazer coisas (HEIDEGGER, 1988).
À medida que o material vai sendo colecionado, essa análise possibilita-me estabelecer diferentes frentes temáticas, e desse modo coloco certa ordem no caos. Algumas idéias levam
dezenas de anos para se concretizar; outras apenas alguns meses; e outras talvez nunca venham
a se concretizar. Não importa, o que interessa é que elas formam um manancial sempre disponível a alimentar o processo fervilhante de estabelecer conexões entre dados, permitindo-me
extrair desse processo algo, um produto, seja ele uma obra ou um texto.
128
A habilidade de detectar conexões entre dados dispersos durante o processo de criação é uma
faculdade difícil de ser explicada em palavras, pois resulta de sensações nebulosas. Sensações
que ocorrem como bolhas esparsas, emergindo e flutuando na mente, e que finalmente afluem
como idéias inteligíveis. Denominei de “pensar pensamentos líquidos” (FRAGA, 2003, p. 301308) a essa faculdade que conduz a agenciamentos sucessivos de possibilidades. Ela me permite o
explorar de fronteiras, aglutinando o pensamento lógico – linear, fragmentado, analítico, preciso
e disciplinado – com o pensamento sensorial – não linear e sintético, que se apresenta como
blocos, como totalidades perceptivas – com emoções e sensações livres e aparentemente indis-
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Figura 3:
Protótipos de
BOTO criados
para interação em
ambientes microgravitacionais em
vôos parabólicos
Figura 4:
BOTO criado
para interação em
ambientes microgravitacionais em
vôos parabólicos
Figura 5:
Layout do
ambiente para
interação no
vôo parabólico
e simulação de
interação entre
Frank Pietronigro
com BOTO no
ambiente microgravitacional do
vôo parabólico
129
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Figura 6a e 6b:
Simulações de
possibilidades
organizacionais do
espaço externo
para a instalação
terrestre Gravity
fluxion: pulsations
Figura 7:
Simulações de
possibilidades
visuais internas
do espaço
caótico da instalação terrestre
Gravity fluxion:
130 pulsations
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ciplinadas. Durante o processo de criação, os dados numéricos – com suas funções, relações e
operações lógicas – são entretecidos com os padrões flexíveis das sincronicidades.
O produto resultante desse processo é uma “matéria-prima” abstrata, composta de números,
princípios conceituais, imagens e modelos que mudam constantemente, adquirindo novas significações. Esse produto caracteriza-se por sua mutabilidade, pois as transformações ocorrem
quase ao mesmo tempo em que as idéias emergem. Por causa da rapidez existente entre uma
manipulação qualquer nos códigos computacionais e o resultado experimental dela decorrente
(desde que não se crie algo conflitante com a lógica computacional), ocorre um processo de
aprendizado perceptivo (LLINÁS, 2002, p. 197 – ver figuras 7 e 8) que induz e instiga especulações, desvelando mananciais poéticos que organizo em repositórios:
repositório de objetos geométricos;
repositório de objetos relacionados ao uso e ao comando dos objetos virtuais e materiais;
repositório de objetos para a interface gráfica do usuário, GUI;
repositório de objetos para compor e controlar a GUI;
repositório de objetos para definição de utilitários;
repositório de objetos para definição de luzes;
repositório de objetos para definição de materiais;
repositório de objetos para definição de comportamentos relacionados com animação, com
interação, com navegação e com sonorização da GUI;
repositório de objetos para composição de cibermundos;
repositório de objetos relacionados à configuração de propriedades parametrizadas dos
cibermundos, da GUI e do conjunto de dispositivos usados no conjunto que compõe o
ambiente tecnológico da obra;
repositório de imagens fixas e animadas, desenhadas, sintetizadas, fotografadas e de vídeo a
serem utilizadas como ícones, texturas, botões, sprites e topologias;
repositório de sons, falas e músicas;
repositório de programas desenvolvidos por outros pesquisadores e licenciados para distribuição;
repositório de desenhos e textos colecionados.
131
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
Os pensamentos líquidos derivam, portanto, do amálgama das qualidades racionais, afetivas,
intuitivas, sensoriais, emocionais e transcendentes extraídas desses repositórios. Eles articulam
e congregam essas qualidades por meio da ação de criar campos de eventos. As qualidades
racionais possibilitam o controle consciente dos procedimentos lógicos e analógicos; as qualidades sensoriais evocam sensações e emoções; as afetivas permitem-me avaliar, discriminar
e julgar o material caótico que aflora no decorrer do processo criativo; as intuitivas trazem
para a consciência as associações sincronísticas e não causais que ocorrem na teia da vida; e as
transcendentes podem conduzir a estados alterados de consciência.
A palavra “caótico” é usada aqui em sua conotação científica contemporânea. Ela se refere à
interconectividade latente que existe em eventos aparentemente aleatórios. A ciência do caos
foca padrões ocultos, nuances, e a “sensibilidade das coisas e das ‘regras’ relacionadas ao modo
como o imprevisível conduz ao novo”. (PEAT; BRIGGS, 2000, p. 2).
Como disse anteriormente, construo e exploro formas que emergem em sonhos, imagens
mentais, devaneios, sincronicidades e insights após inventariá-las, analisá-las e relacioná-las, procurando compreendê-las como signos e compô-las em sistemas morfológicos para poder codificálas computacionalmente. A codificação computacional desse sistema de repositórios tem-me
possibilitado criar um universo de famílias de mundos virtuais que denomino de cibermundos.3
Para não me perder, nem me dispersar perante a complexidade desse universo de possibilidades, sinto necessidade de definir limites conjunturais como estratégia criativa. Tais limites
são selecionados e definem etapas do processo criador. Sendo contingentes, podem ser dissolFigura 7:
exemplo de script
em VRML com
o cibermundo
gerado e sua
aplicação no
espetáculo Aurora
2001/3 (interator
Joseph Mills)
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vidos, expandidos e restaurados de acordo com as necessidades que progressivamente se
desvelam durante esse processo. Sendo flexíveis, eles orientam a ação criativa enquanto me
possibilitam navegar num complexo sistema de escolhas e decisões. Às restrições ao processo
experimental, auto-impostas e flexíveis, adicionam-se outras relacionadas aos recursos materiais, às linguagens computacionais disponíveis, assim como pelas minhas limitações individuais
de aprendizado para manuseá-las. A flexibilidade e a liberdade são fatores de extrema importância para mim. O engessamento impede o fluir do processo criador. Como nadadora, sei que
ir contra a corrente é um modo fácil de exaustão, enquanto ser levada por essa mesma corrente
pode significar a sobrevivência e até mesmo a possibilidade de viver uma possível aventura.
Assim, como um guia condutor para minha própria ação, estabeleço premissas diversas para
orientar-me. Primeiramente resolvo como agrupar idéias e procedimentos, desenhandoas, construindo pequenos modelos ou descrevendo-as, se são verbais. A seguir estabeleço
as etapas necessárias para encaminhar a ação e possibilitar a realização de uma produção
contínua, isto é, elaboro um programa de ação para cada projeto, realizando estudos que se
aprofundam sucessivamente, construindo protótipos até chegar a uma solução poética para o
problema inicialmente formulado.
As premissas visam a explorar possibilidades de pesquisa dispersas num domínio interdisciplinar que requer a colaboração de profissionais de diversas áreas do conhecimento. Interessa-me identificar possibilidades poéticas nos interstícios entre essas áreas. A convergência
de interesses entre áreas aparentemente desconexas mostra que existem superposições em
campos muitas vezes considerados antagônicos. A justaposição dos métodos – os analíticos
Figura 8:
exemplo de
programa Java3D
com o cibermundo gerado
e sua aplicação*
no espetáculo
Karuanas, SESC
Consolação,
2006 (interatores
Andréa Fraga e
Marines Calori)
133
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
usados nas ciências com os modos de atuação utilizados pelos artistas – permite a emersão de
novas estruturas e morfologias e geram estratégias úteis e instigantes. Essa atitude engendra
expertise e permite a criação de obras de arte que tecem e expandem processos não lineares,
estabelecendo padrões múltiplos em direção a estruturas cada vez mais complexas.
Exploro variações, especulo configurações e assim descubro agenciamentos poéticos sem objetivar outros resultados práticos que não sejam exercitar minha própria liberdade e a sensibilidade de quem se dispõe a experimentá-los. Assim, aglutino signos dando-lhes novos significados,
despertando sensibilidades, instigando curiosidades, estimulando ações para mim e para os demais,
trazendo situações paradoxais para serem vivenciadas. Os objetos virtuais são criados ou como
arquivos do tipo scripts4 (ver figura 7) ou como programas codificados em linguagens computacionais (ver figura 8) que descrevem os diversos procedimentos para sua criação. Os resultados
que tenho obtido com a manipulação desses objetos e dos objetos materiais que atualmente
tenho estado construído são exemplos das incontáveis situações que se apresentam.
Como disse anteriormente na introdução, denomino ao amálgama dessas diversas possibilidades de método relacional de criação por aproximações sucessivas. Esse método possibilita-me
tecer e expandir processos não lineares, estabelecendo padrões múltiplos em direção a estruturas cada vez mais complexas; ele propicia o aglutinamento de signos em novos significados,
despertando sensibilidades, instigando curiosidades, estimulando ações para mim e para os
demais, trazendo situações paradoxais para serem vivenciadas.
A programação de códigos computacionais é parte intrínseca desse método, assim como o
é a compreensão das possibilidades matemáticas existentes no que hoje se conceitua, nas
ciências físicas e matemáticas, como espaço-tempo. As possibilidades geométricas, aritméticas
e topológicas das formas complexas existentes nesses domínios aumentam exponencialmente
as alternativas de remanejamento, de combinação e de articulação das formas, permitindo
construir novos repertórios que poderão vir a originar morfologias e estratégias de produção
mais adequadas aos instrumentos e às ferramentas de que dispomos hoje. Esses repertórios
sucessivamente realimentam o processo criador possibilitando que relações sejam elaboradas,
exploradas, reelaboradas e metamorfoseadas. As obras inacabadas por opção estética ganham
vida e transformam-se, em sua contínua reciclagem, numa poética do permanente devir.
Ressonâncias
Como efeito do método descrito anteriormente, tenho produzido objetos estimuláveis5 e
jornadas virtuais6 não lineares que permitem ao interator vagar por conjuntos de escolhas
diversas.7 Defino como objetos estimuláveis – BOTO – os organismos artificiais orgânicos
que estou construindo e cujos comportamentos exploram algumas possibilidades poéticas
ligadas à criação de produtos materiais visando a estabelecer uma relação biunívoca entre a
simulação computacional e o domínio material. Talvez fosse melhor considerar essa relação
como triunívoca. Embora nunca tenha ouvido esse termo entre os matemáticos, talvez seja
tempo de estabelecer tal terminologia no campo das artes interativas, uma vez que os atores
dessa interação são: o interator (podendo este ser tanto o criador como aquele que manipula
a obra), o computador e o objeto material que incorpora o micro processador em sua estrutura e dialoga com ambos: o interator e o computador.
134
Os resultados do método anteriormente descrito vão-se construindo em operações cujo desvelar
é progressivo e acontece conjuntamente com outros pesquisadores, performers, engenheiros,
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técnicos programadores e músicos. O processo abre um curso de ação com enorme potencial para a reelaboração e a metamorfose sucessiva das obras anteriormente criadas, gerando
famílias de repositórios dinâmicos que são reciclados continuamente, possibilitando variações e
recombinações diversas. As características do método fazem com que os trabalhos sejam mutáveis e metamorfoseáveis, tanto para mim como para os interatores que os manipulam.
Figura 9:
Nano_shelters:
arquiteturas visionárias, mutáveis,
vestíveis, metamorfoseáveis.
É provável que a dificuldade de falar sobre tais obras se deva ao fato de estas se encontrarem
ainda num estágio bastante preliminar de pesquisa e construção, sendo imensas as dificuldades
técnicas e financeiras para sua realização. Num futuro, quem sabe não muito remoto, a idéia visionária de arquiteturas fluidas, metamorfoseáveis e mutáveis (ver figura 9) talvez não nos pareça tão
estranha: basta lembrar que o tatu não só carrega sua casa, assim como a tartaruga e o caramujo
também o fazem, mas é capaz de enrolá-la, transformando-a numa bola. Enquanto tais possibilidades especulativas e visionárias não se concretizam, podemos vivenciá-las em performances
e instalações de arte. Talvez, ao sonhar com esse ideal, concebendo tais arquiteturas e dando
os primeiros passos em direção à sua concretização, seguindo o exemplo do professor Walter
Zanine e “nunca tendo medo de ousar,” estejamos caminhando para sua futura realização.
Notas
1. Esta reflexão iniciou-se com um ensaio, A Collaborative Method for Art Projects, apresentado na conferência Bridges II, e prosseguiu com outro ensaio, Thinking Liquid Thoughts, apresentado na conferência
CarbonxSilicon, ambas promovidas pelo Banff New Media Centre, Canadá, 2002 e 2003, respectivamente.
2. Este termo aqui é compreendido em seu sentido junguiano de coincidências não causais significativas
ocorrendo num mesmo instante (PEAT, 1988).
3. Existem versões simplificadas de algumas dessas obras nos endereços eletrônicos: www.unb.br/vis/
lvpa/xmantic/, www.lsi.usp.br/vis/~tania/ e http://paginas.terra.com.br/arte/lvpa2002/.
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4. As linguagens denominadas de scripts possibilitam a descrição textual das operações geométricas,
trigonométricas, de iluminação e de finalização (rendering) que são realizadas com os objetos. Desde
1987 todos os meus trabalhos foram realizados com linguagens similares (Prograf, Rayshade, YODL,
VRML). Desde 2002 venho utilizando a linguagem Java. Isso aconteceu quando consegui construir o
primeiro protótipo de interface em Java3D com recursos do prêmio para realização de projetos pelo
programa Transmídia do Instituto Cultural Itaú (2001/2002).
5. Membrana estimulável foi o primeiro objeto desse gênero que produzi. Ele foi comissionado para
uma instalação para a exposição Emoção Artificial 2, realizada pelo Instituto Cultural Itaú (2004). Criei
recentemente outro organismo para ser manipulado num vôo parabólico que será realizado junto com o
artista americano Frank Pietronigro. Atualmente estou desenvolvendo uma série de objetos estimuláveis
baseados em leis de crescimento e movimento que denomino Caracolomóbiles.
6.As obras criadas com essas características foram: Poéticas em Devir I (1997), Rede Xamântica – Xamantic
Web (1997 – 1998), Poéticas em Devir II (1998), ActBolus: Athos em Pedaços (1998), Jornada Xamântica – Xamantic Journey (1999), ArchiTecTopos (1999), The Goddess Domain (1999), Ofertas, instalação
multiusuário realizada com Suzete Venturelli (2000); Fertilidade: o devir do ser (2001); os cibercenários
para a performance Fertilidade: duas estações (2001) e para o espetáculo de dança Aurora 2001: fogo
nos céus realizado pelo grupo de dança Maida Withers Dance Construction Company em Trompso, na
Noruega, e em Washington (2001), que, com o nome de Aurora 2003, foi apresentado em São Petersburgo
e Arcângelo, na Rússia (2003); está sendo criado o espetáculo Hekuras, Karuanas e Kurupiras, cujas partes
têm sido apresentadas em pequenos espetáculos, ensaios abertos e instalações artísticas, que recebeu o
prêmio para realização de projetos pelo programa Transmídia, do Instituto Cultural Itaú em 2001-2002;
os cibermundos estereoscópicos interativos m_branas foram criados para a instalação de mesmo nome
montada na exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília (2004); os cibermundos
estereoscópicos interativos Via_bolus01 foram criados para instalação de mesmo nome executada para
exposição CinéticoDigital no Instituto Cultural Itaú (2005); recentemente foi criado um jogo, denominado
Brasília e os caminhos do Brasil moderno, para a Fundação Israel Pinheiro, em Brasília.
7. As jornadas buscam alterar o universo cognitivo do interator, levando-o a viver conceitos e situações abstratas que são inacessíveis aos sentidos no mundo físico. Elas conduzem às seguintes situações:
oferecem percursos não lineares por domínios poéticos alegóricos (FRAGA, 2000, p. 59-64); oferecem
mergulhos para dentro de conceitos científicos, tais como os vórtices de plasma ejetados pelo sol,
magnetosfera, vento solar, tempestade de prótons ou ainda serapilheira (o solo da floresta amazônica)
e metabolismo da floresta, superfícies branas: supercordas de espessura quase inexistente, dimensões
variadas e densidades infinitas (HAWKINS, 2003); e ofertam possibilidades educacionais e lúdicas.
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Referências
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HEIDEGGER, Martin. A coisa. In: SOUZA, Eudoro. Mitologia 1. Brasília: Universidade de
Brasília, p. 121-131, 1988.
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Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
desdobramentos
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Arte, ciência e tecnologia: Lygia Sabóia - da gravura à arte digital
Art, science and technology: Lygia Sabóia – of the engraving to digital art
MARIA LUIZA FRAGOSO *
Resumo
Homenagem póstuma a Lygia Sabóia, ex-professora do Departamento de Artes Visuais.
Palavras-chave: interação, programação, arte computacional, matemática.
Abstract
Posthumous homage to Lygia Sabóia, former-teacher of Visual Arts Department.
Keywords: interaction, programming, computer art, mathematic.
Em 2004, foi realizado em Brasília o evento ≥4D (Maior ou Igual a 4D),1 para comemorar
os dez primeiros anos da Pós-Graduação em Arte do Instituto de Artes da Universidade de
Brasília. Foi a primeira exposição brasileira de arte computacional interativa, e fizeram parte
das diversas atividades reunidas no evento artistas e pesquisadores brasileiros e estrangeiros,
dentre eles Lygia Saboia, integrante do corpo docente do referido programa. Apenas três anos
mais tarde, Lygia vem a falecer, deixando a todos nós, além do exemplo de dedicação e seriedade praticado durante quase três décadas de magistério na UnB, uma significativa contribuição
para a pesquisa em arte e o fortalecimento da área de Arte e Tecnologia. Nesta nova edição da
revista do PPGA, propus-me a escrever este artigo em sua homenagem. Homenagem esta que
está assinada por todos aqueles que trabalharam e conviveram com Lygia.
Formada em Economia pela UFRJ e em Desenho e Plástica pela UnB, Lygia Saboia dedicou-se
à gravura durante quase duas décadas. Lecionou diferentes técnicas de gravação e impressão
nos cursos de licenciatura e bacharelado do Departamento de Artes Visuais da UnB.
Nos final dos anos 1970, fez curso de capacitação no Tamarind Institute (University of New
Mexico – EUA) e assumiu a disciplina de litografia transmitindo seus conhecimentos para uma
geração de gravadores no DF. No início dos anos 1980, tive a oportunidade de ser uma de suas
alunas e de desenvolver meu projeto de conclusão de curso sob sua orientação. Já naquela
época, Lygia abordava a pesquisa e a produção artística associadas ao conhecimento científico
e tecnológico. Segundo ela:
As tecnologias contemporâneas sempre estiveram ao alcance dos artistas.
Exemplos que comprovam tal afirmação podem ser facilmente encontrados quando se estuda a história da arte. A impressão de gravuras artís-
140
* Mestrado em Fine Arts Printmaking, pela George Washington University (1993) e doutorado em Multimeios pela
Universidade Estadual de Campinas (2003). Atualmente é professora adjunta do Departamento de Artes Visuais da
Universidade de Brasília. [email protected]
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
ticas, por exemplo, sempre esteve associada a equipamentos, desde os
mais simples [...] até as prensas manuais ou elétricas que permitem as
impressões de litografias até os dias de hoje (SABOIA, 2005, p. 82).
Sua paixão pelos números, manifestada durante seu primeiro curso superior em economia, é reacendida no encontro com as tecnologias digitais e as novas possibilidades de geração de imagens.
Com o advento de novas tecnologias, os artistas puderam dispor de
equipamentos que permitiram a criação de obras que adquiriram novos
formatos expressivos, na medida em que a própria tecnologia pode interferir e determinar os resultados alcançados (SABOIA, 2005, p. 82).
Como professora do Departamento de Artes Visuais, colaborou para a criação do Mestrado
em Arte e Tecnologia. Foi nesse mesmo espaço que desenvolveu sua pesquisa de mestrado
que culminou no trabalho Elaboração de imagens em PostScript: curvas, padrões, texturas, tintas
e superfícies (1996). Naquele mesmo período, Lygia dava prosseguimento a estudos sobre
fundamentos da linguagem visual, buscando suas referências na Bauhaus. Podemos observar
na sistematização da sua pesquisa e nas opções estéticas da produção a clara influência
das propostas da escola alemã. Paralelamente ao trabalho em programação computacional,
surgiam pinturas e aquarelas abstratas que pareciam servir de contraponto à produção digital.
Em 2005, na exposição Humano-pós-Humano2, mostrou o trabalho Homenagem à Rosácea,
um grupo de impressões coloridas que fazem referência ao trabalho de Albers. Em 2006, para
a exposição Provocações, na galeria Espaço Piloto na UnB, Lygia apresentou três aquarelas
referentes a esse período que segundo ela representavam seu lado de artista plástica.3 Era
comum observar na sua obra o exercício de estabelecer relações concretas entre os princípios de composição e linguagem advindos da Bauhaus e o momento contemporâneo de
incorporação das tecnologias digitais.
De forma corajosa e ousada, Lygia defendeu a interação entre linguagens, a aplicação de fundamentos das linguagens visuais a criações computacionais, a necessidade de compreensão e
capacitação do artista em linguagens de programação e a criação de obras que adquiram novos
formatos expressivos. Com Tania Fraga e Suzete Venturelli, reforçava o movimento na UnB em
prol de uma formação artística que pudesse fortalecer e subsidiar técnica e cientificamente o
artista contemporâneo.
O reencontro com o poder criativo dos números e a aproximação com tecnologia que possibilita a geração de imagens a partir da programação computacional serviu para revelar um universo
inédito na expressão gráfica de Lygia. Sua obra ganhou espaço na abstração geométrica, aproximando esta, ainda mais, de suas fontes teóricas e práticas, como mencionamos anteriormente.
Essa correlação entre momentos históricos surpreendia pela naturalidade com que os processos
de criação das imagens foram concebidos e direcionados para uma produção extremamente
poética e, ao mesmo tempo, tecnológica. Lygia não apenas acreditava nessas relações, mas
tornou-se, em muito pouco tempo, um expoente da pesquisa nessa área, além de um exemplo
de postura para o artista contemporâneo, engajado na pesquisa em arte, ciência e tecnologia.
Com a elaboração da dissertação de mestrado, foram produzidas algumas séries de gravuras,
impressas em serigrafia com as imagens resultantes da programação em PostScript. São paisagens compostas de grandes pixels que denunciam sua matriz numérica. Dois anos depois, Lygia
inicia seu curso de doutoramento na Unicamp, na área de Multimeios. A nova etapa teve início
141
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
com um estudo minucioso da história dos números, da matemática, até o desenvolvimento das
matrizes numéricas que nos desvendaram o potencial da computação.
Na junção de todos esses elementos, ou seja, números, matrizes, múltiplos, cromatismos e impressões, a artista imergiu no universo da arte
computacional, explorando padrões e simetrias, os seus 17 tipos e suas
translações, elaborando belas instalações (VENTURELLI, 2005, p. 48).
Sua trajetória percorreu séculos de cálculos, mas foi
[...] na retomada de percursos da memória [...] que se recorreu a simetrias,
geometrias, arabescos e grades presentes nas construções, azulejos e pisos
encontrados no Brasil e observados de longa data. (SABOIA, 2005, p. 79).
Durante a elaboração de sua tese, Lygia desenvolve o que ela mesma cita como pesquisa
interdisciplinar entre arte, ciência e tecnologia na criação de uma poética em arte digital.
Embora dissociados de propósitos religiosos, são criados padrões por meio de algoritmos
que seguem metodologia usada pelos cientistas islâmicos. Naquele momento, a obra artística
deixou de ser identificada com uma alternativa gráfica mecânica ou artesanal para sua apresentação. A impressão eletrônica passou a corresponder às formas criadas a partir de programas
de linguagem PostScript, também gerados pela artista. O desenvolvimento tecnológico da
impressão eletrônica possibilitou a expansão das imagens para espaços expositivos ampliados.
Por exemplo, a obra Simetrias (2001) foi exposta na Galeria de Arte da Unicamp (Campinas,
SP) e no Museu de Arte de Brasília (MAB) no formato de instalação, onde longas faixas de
acetato, impressas com padrões, sugeriam ornamentações no espaço arquitetônico.
Figura 1.
Padrão de
Simetrias
142
Ainda é possível perceber a relação entre o resultado eletrônico e soluções gráficas que
remetem à gravura tradicional. No entanto, a gravura “expandida” faz seu salto para um novo
paradigma da criação computacional, para uma estética intermediária. Segundo Priscila Arantes
(ARANTES, 2005, p. 116)
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Philippe Quéau desenvolve sua estética intermediária, estabelecendo
paralelos precisos entre a arte digital e os processos vivos e naturais.
Influenciado pela metafísica aristotélica e pelas discussões filosóficas do
devir no pensamento grego, o filósofo desenvolve a idéia de que o movimento, a metamorfose e o devir constantes seriam a característica definidora da arte digital.
A versão de Simetrias criada para a exposição Arte Computacional Interativa que fez parte
do evento ≥4D (Maior ou Igual a 4D), é um belíssimo exemplo de harmonia e composição
plástica entre a arte computacional e os processos naturais. Além disso, a obra ganha novas
dimensões ao ser planejada para oferecer uma real e natural interação com o público. As
simetrias aparecem como luz projetada e refletida sobre um espelho d’água. Os padrões são
organizados em seqüências, utilizando a fusão como passagens, obedecendo critérios de claro
e escuro. A tensão apresenta-se no contraste entre a simetria geométrica dos padrões refletidos sobre o espelho d’água e o movimento da água provocado pela interação do público.
É uma obra em constante devir. O natural e o racional, o biológico e o sintético, o acaso e o
cálculo encontram-se num balé de formas, luz e movimento – uma poesia visual que revela a
força da ação conjunta entre arte, ciência e tecnologia.
Figura 2.
Simetrias, Expo
≥4D , no CCBBDF 2004
A pesquisa de Lygia por uma linguagem artística que expresse essa interação ou mesmo a
interdisciplinaridade entre as três áreas serviu de exemplo e inspiração para várias turmas de
alunos e artistas que buscam realizar seus projetos a partir desse novo paradigma. Percebo no
trabalho de Lygia a capacidade de somar valores, agregar qualidades e superar as diferenças
na construção de uma produção artística contemporânea engajada na tríade da arte digital.
143
Figura 3.
Rosácea, projeto
para
144relevo seco,
gravura em meta
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Ao mesmo tempo, o exercício do diálogo e da interação faz-se com a leveza e a sobriedade
que marcaram toda a sua trajetória como pesquisadora e professora na UnB. Cito ainda um
último exemplo dessa capacidade de somar e inovar: seu último projeto em gravura, Rosácea.
Segundo a artista:
A imagem proposta é uma derivação da curva algébrica de alto grau
denominada Rosácea ou Rodônea. Na verdade, sua configuração surgiu
da manipulação de códigos de linguagem computacional (PostScript) e da
utilização de equações baseadas na equação de Rosácea, mas com seus
parâmetros alterados. [...] A proposta atual tem como objetivo a criação
de uma gravura em relevo, sendo este relevo seco, impresso manualmente ou por meio de máquinas comerciais.4
A imagem foi impressa, eletronicamente, sobre adesivo, recortada sobre chapa de cobre,
gravada em ácido, impressa em relevo seco, medindo 30 x 30 cm. O projeto foi apresentado
para o edital que selecionava propostas para compor o livro Brasília em Gravura 2006.5 O livro
foi impresso artesanalmente, com edição de cem exemplares, nos laboratórios e na gráfica do
Departamento de Artes Visuais da UnB. Segundo os curadores convidados para a seleção dos
projetos, Teresa Miranda, Ana Gonzáles e Sebastião Pedrosa,
Lygia Saboia propõe um processo que oferece uma lacuna em meio as
dificuldades do atual contexto mundial – uma “Rosácea” gerada por uma
equação matemática coloca-se como um dispositivo capaz de acionar
um estado hipnótico semelhante aos que produzem as composições
com arabescos na cultura islâmica: um estado de suspensão e equilíbrio
mentais (FRAGOSO, 2006).
Suspensão e equilíbrio: harmonia e beleza. À nossa querida Lygia Saboia.
Notas
1. Evento realizado no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, com curadoria de Tania Fraga e
Wagner Barja, que envolveu um simpósio, uma exposição, um programa educativo e diversas publicações.
2. Exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, com curadoria de Suzete Venturelli.
3. Imagens dos trabalhos e depoimento da artista estão registrados no catálogo multimídia da Galeria
Espaço Piloto, referente ao ano de 2006.
4. Texto extraído de projeto apresentado para o Edital Brasília em Gravura, 2006.
5. Livro publicado pela Editora Universidade de Brasília em 2006, edição limitada de cem exemplares,
contendo sete gravuras inéditas e originais.
146
Referências
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(Org.). (Maior ou igual a 4D): arte computacional no Brasil. Brasília: Universidade de Brasília,
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VENTURELLI, Suzete (Org.). Humano-pós-humano. Brasília: Universidade de Brasília, Programa
de Pós-Graduação do Instituto de Artes, 2005.
Programa de Pós-Graduação em Arte | IdA - UnB
Dissertações defendidas no PPG-ARTE no período 1/2008
FERREIRA, Matias Monteiro. Infans – (im)pertinências do infantil na imagem. 28/03/2008.
Orientador: Geraldo Orthof Pereira Lima
147
VIS | Julho/Dezembro de 2008 Ano 8 nº 2
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