TEXTO PARA DISCUSSÃO: CIDADES E PATRIMÔNIO CULTURAL

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TEXTO PARA DISCUSSÃO: CIDADES E PATRIMÔNIO CULTURAL
TEXTO PARA DISCUSSÃO: CIDADES E PATRIMÔNIO CULTURAL.
André Fontan Köhler
Introdução.
A expressão “patrimônio cultural” baseia-se nas noções de acumulação de estruturas,
objetos, ofícios, saberes e fazeres e de passado comum, que suportam a construção de
uma memória e identidade nacional (CHOAY, 2006). Trata-se de um legado do
passado, apropriado no presente e que projeta um caminho futuro.
No Brasil, as missões patrocinadas pela UNESCO, na segunda metade dos anos 1960, já
defendiam a conjugação da preservação patrimonial com o desenvolvimento
econômico, através do turismo. Inclusive, o relatório seminal de Michel Parent, de
1967, intitula-se “Proteção e valorização do patrimônio cultural brasileiro no âmbito do
desenvolvimento turístico e econômico” (LEAL, 2008). Segundo o consultor francês,
tanto núcleos antigos de grandes cidades (Salvador, São Luís etc.) quanto cidades
patrimoniais (Ouro Preto, Olinda, Alcântara etc.) tinham grande potencial turístico.
Choay (2006, p. 210, grifos da autora) sintetiza as bases para o crescimento do público
para o patrimônio cultural, que guardam íntima relação com o crescimento do turismo
cultural:
[6] Finalmente, o grande projeto de democratização do saber,
herdado das Luzes e reanimado pela vontade moderna de erradicar as
diferenças e os privilégios na fruição dos valores intelectuais e
artísticos, aliado ao desenvolvimento da sociedade de lazer e de seu
correlato, o turismo cultural dito de massa, está na origem da
expansão talvez mais significativa, a do público dos monumentos
históricos – aos grupos de iniciados, de especialistas e de eruditos
sucedeu um grupo em escala mundial, uma audiência que se conta aos
milhões.
De acordo com a Organização Mundial do Turismo (OMT), o segmento de turismo
cultural já representava 37% do mercado turístico internacional, no início dos anos
1990, com crescimento médio anual de 15%, apesar de não haver informações precisas
sobre como se chegou a essa estimativa (RICHARDS, 1996). McKercher e du Cros
(2002) apontam que 33,3% dos turistas internacionais, que visitam Hong Kong, podem
ser classificados como “culturais.”
Apesar de massificado, o turismo cultural conta ainda com turistas com maior renda e
maior escolaridade do que a média do mercado turístico, que tendem a permanecer mais
dias e gastar mais no destino. Contudo, a não ser para destinos e atrações turísticoculturais singulares e excepcionais, que podem desenvolver planos e estratégias para
captar todo o espectro do mercado de turismo cultural, os países, regiões e cidades
tendem a se especializar no atendimento a determinado(s) nicho(s) de mercado,
focando-se em um conjunto limitado de mercados emissores (MCKERCHER; DU
CROS, 2002; APOSTOLAKIS, 2003).
As pesquisas de McKercher e du Cros (2002) (Hong Kong) e Richards (1996) (Europa
Ocidental) mostram que a maior parte dos turistas busca o relaxamento, o
entretenimento e a diversão como motivo principal para a visita e o consumo de bens
culturais. Além disso, chamam a atenção que todo o espectro do mercado de turismo
cultural apresenta um ponto comum: o consumo dos principais ícones culturais do
destino.
1. A promoção do desenvolvimento local através da cultura, lazer e turismo.
A construção de um destino turístico de sucesso depende de dois pontos aparentemente
contraditórios, a saber: a) infraestrutura e superestrutura turística de padrão nacional ou
internacional, altamente previsível e capaz de atrair firmas nacionais e/ou internacionais
– atração de turistas e da oferta turística; e b) especialização do destino em um
segmento ou nicho do mercado turístico nacional ou internacional, através de elementos
únicos e singulares, ou que, pelo menos, sejam vistos dessa maneira pelos turistas e
visitantes (RUSSO; BORG, 2002).
Um ponto importante é a construção de uma imagem forte à cidade, que, na seara da
cultura e do patrimônio, pode-se ligar aos seguintes pontos:
a) uma atração principal (flagship attraction), caso do Museu Guggenheim de
Bilbao, reconhecido internacionalmente;
b) uma estrutura excepcional, caso de Chesterfield (Inglaterra), com sua catedral de
espiral retorcida;
c) a ligação com um setor visto como promissor, casos de Nottingham (design) e
do Rio de Janeiro (cinema);
d) uma civilização passada, casos de York (vikings) e de Chester (romanos);
e) um grande evento turístico-cultural;
f) o conceito de capital cultural regional ou nacional, renascida após um período de
decadência, cujo exemplo principal é Barcelona.
A construção de um destino como cultural passa por uma série de projetos e iniciativas,
dos quais os mais comuns são os seguintes: a) a construção de atrações primárias; b) a
criação de precintos urbano-turísticos; c) a montagem de passeios, rotas e roteiros; e d)
festivais e eventos.
Como visto, a visita e o consumo dos principais ícones culturais do destino turístico é
algo comum a todo o mercado de turismo cultural (MCKERCHER; DU CROS, 2002).
Isso explica, em grande parte, o investimento feito por cidades ao redor do Mundo para
criar grandes atrações culturais destinadas ao consumo turístico, com o objetivo de
promover a cultura local, tornar o destino nacional ou internacionalmente conhecido, e
capturar parcela do segmento de turismo cultural. Geralmente, isso é feito através das
seguintes linhas:
a) promoção de atrações e ícones já existentes, adaptando-os à demanda turística
(por exemplo, interpretação patrimonial atrativa e iluminação noturna);
b) investimento em grandes equipamentos culturais, inclusive através de franquias
internacionais e nacionais (Museu Guggenheim de Bilbao, Imperial War
Museum North [Salford], Tate Liverpool etc.);
c) contratação de prédios e outras estruturas icônicas de arquitetos do star system
mundial (Calatrava, Foster, Libeskind, Farrell etc.).
A atração principal e/ou ícone arquitetônico costuma servir de base para a remodelação
total do espaço urbano a ser redor, que contempla, via de regra, residências de alto
padrão, hotéis, bares e restaurantes sofisticados e amplas áreas pedestrianizadas. A
gentrification, em muitos casos, é um objetivo implícito desse tipo de projeto.
A maior parte das cidades não tem a capacidade de contar com uma atração principal,
pela questão da falta de elementos locais excepcionais, pensando-se em uma audiência
nacional ou internacional, e pela falta de recursos financeiros. Nas últimas décadas, dois
desenvolvimentos muito comuns foram adotados por pequenas cidades e regiões rurais.
Primeiro, a criação de centros de interpretação patrimonial que, ao invés de se
centrarem em um acervo, trabalham um tema, a exemplo da própria comunidade local,
no mais das vezes apresentada como uma entidade coesa e delimitada temporalmente,
geograficamente e, às vezes, etnicamente (DICKS, 1999). É uma solução adotada por
muitas cidades do País de Gales, cuja principal atividade econômica até um passado
recente, a mineração, deixou um estoque de estruturas redundantes e um modo-de-vida
particular. No Brasil, o grande exemplo de centro patrimonial fica em Orleans, Santa
Catarina, onde se preservam antigas máquinas e equipamentos nos quais os habitantes
locais e turistas conseguem compreender o fabrico de uma série de produtos regionais.
Segundo, a criação de parques temáticos com temas e atavios patrimoniais, quase
sempre em parceria com firmas privadas e organizações não governamentais (ONGs).
Provavelmente, o Jórvík Viking Centre, em York (Inglaterra), é o exemplo
paradigmático disso, inclusive por seus conceitos terem sido transferidos para outras
atrações na Europa, Ásia e Estados Unidos da América (EUA). A atração combina a
exposição de objetos vikings provenientes de uma escavação arqueológica, onde hoje
fica a atração, com a reconstrução dessa escavação, logo no salão de entrada.
Após o salão, o cliente – explicitamente tratado dessa forma – embarca em um pequeno
carro, que o leva para a reconstrução do acampamento viking, em um conceito similar
ao encontrado na atração Piratas do Caribe, em Walt Disney World. Há sons, cheiros,
luzes; os habitantes falam um dialeto nórdico incompreensível, e o passeio interrompe
um viking defecando, que reclama da impertinência. Tudo é feito para parecer o mais
real possível, mas tudo, tudo mesmo, é falso e simulado. Aberto há mais de 30 anos, o
Jórvík Viking Centre é um grande sucesso de mercado, e gera receita para que o York
Archaeological Fund desenvolva suas atividades na cidade e arredores.
A criação de precintos urbano-turísticos de base cultural é outro desenvolvimento
bastante comum, sendo inclusive recomendado por consultorias. Segundo Hayllar,
Griffin e Edwards (2008, p. 9, tradução nossa), o precinto urbano-turístico é:
Uma área geográfica distinta dentro de uma área urbana maior,
caracterizada por uma concentração de usos do solo, atividades e
visitação relacionados ao turismo, dentro de fronteiras razoavelmente
bem definidas. Esses precintos geralmente tem personalidades
distintas em virtude de seu composto de atividades e usos do solo,
como restaurantes, atrações e vida noturna, seu acervo físico ou
arquitetônico, especialmente a predominância de edificações
históricas, e sua conexão com uma cultura ou grupo étnico particular
dentro da cidade. Essas características também existem em conjunto.
A participação do poder público é fundamental para a criação e consolidação de muitos
precintos. Eles cumprem três funções básicas, a saber:
a) a função de facilitação: trata-se de prover ao turista recém-chegado um lugar
preparado para recebe-lo, com informações turísticas, serviços básicos e
presença de outros turistas. Alguns precintos podem tornar-se um ponto de
referência para a cidade, de onde os turistas e visitantes consigam conhecer
outros espaços urbanos. Os precintos também possibilitam ao turista e visitante
com pouco tempo disponível na cidade uma experiência “comprimida,” ou seja,
conhecer atrações e participar de atividades que tornem proveitosa a rápida
passagem pelo local;
b) a função de ligação externa: trata-se de ajudar o turista a compreender, apreciar e
se interessar em conhecer o restante da cidade ou, mais especificamente, outros
precintos urbano-turísticos. Nesse sentido, o precinto pode tornar-se uma
caricatura, sendo construído em cima da imagem turística que o destino
apresenta;
c) a função de turistificação: trata-se de fazer com que o turista sinta-se, digamos
assim, mais turista. Sendo um viajante em busca de novas experiências
prazerosas e voltado ao entretenimento, é importante que o precinto estabeleça
um contraste com o restante da cidade. Os turistas não se interessam em
conhecer profundamente a cidade na qual chegaram, mas sim “submergir” no
destino imaginado pelo qual viajaram e gastaram tanto para visitar. Atrações
turísticas, ritmos mais lentos de caminhar e apreciar a paisagem e presença de
outros turistas; em suma, o precinto deve possibilitar ao turista afirmar-se como
turista.
As políticas públicas de turismo de Manchester, Inglaterra, baseiam-se na divisão do
centro e de alguns bairros da cidade em mais de uma dezena de precintos urbanoturísticos, que contam com gestão e interpretação particular, em pontos que vão desde a
promoção até a sinalização turística. Chinatown e The Gay Village apoiam-se em
identidades coletivas particulares. A criação de distritos desses tipos é comum em várias
cidades ao redor do Mundo, como Nova Iorque, San Francisco e Boston (EUA).
The Gay Village, além de concentrar bares, restaurantes e casas noturnas identificadas
com o público LGBT, recebe uma série de eventos e festivais, ao longo do ano, dentro
dessa temática. O maior deles, o Manchester Pride, conta com uma parada e 11 dias de
exposições de arte, cinema e outras reuniões. Sua principal praça é dedicada a Alan
Mathison Turing, “pai” das ciências da computação e herói nacional, cuja opção sexual
levou-o ao cárcere, em 1952, e ao suicídio, em 1954. O poder público tenta promover
um clima de tolerância social, alegria e vida noturna; as bandeiras do movimento LGBT
estendem-se por todo o precinto.
A criação e promoção de festivais e eventos culturais é outra forma popular de atrair
turistas e visitantes, inclusive através de visitas repetidas. Michel Parent já apontava, em
1967, que o aproveitamento do patrimônio histórico e artístico nacional (PHAN)
passava pelo complemento do patrimônio material com o patrimônio imaterial. Segundo
ele, Salvador destinava-se a ser o grande destino turístico-cultural brasileiro, pois, ao
lado de monumentos e conjuntos antigos excepcionais, contava com uma cultura
afrodescendente particularmente interessante, com destaque para a capoeira e o
candomblé. Para as cidades patrimoniais – ele cita Ouro Preto e Olinda –, Parent
recomendava a criação e fomento de festivais, baseados na cultura local e em tradições
passadas (LEAL, 2008).
Em York, o poder público local promove o Viking Festival, na baixa estação turística,
que, por um lado, promove palestras e debates acadêmicos sobre a presença viking na
Inglaterra, e, de outro, contempla representações e simulações de batalhas e rituais
vikings, cujo ápice é a queima de uma réplica em tamanho natural de um barco viking,
em pleno Rio Ouse. Trata-se da espetacularização da história em um evento facilmente
“consumível” para turistas e visitantes, que reforça a imagem de York como a cidade
viking por excelência da Inglaterra.
A estruturação de rotas, passeios e roteiros é outra forma de aumentar e melhorar a
oferta turístico-cultural de um destino. Isso é particularmente útil quando o núcleo
antigo de uma cidade tem uma grande quantidade de atrações dispersas, que não ficam
tão longe entre si. Outra aplicação é a criação de um roteiro tematizado (por exemplo,
antigos engenhos da Zona da Mata pernambucana) entre várias cidades, até pela falta de
recursos financeiros e de atrações suficientes em cada cidade isolada.
Já Lisboa formatou uma série de passeios a pé, tanto em regiões turísticas quanto em
partes pouco visitadas da cidade, para que o turista, visitante ou residente local conheça,
dentro de um roteiro pré-estabelecido, uma série de monumentos históricos e conjuntos
antigos da cidade.
2. Considerações finais.
Por fim, cabe abordar dois pontos específicos particularmente importantes para o
desenvolvimento do turismo, para os quais a ação do poder público é fundamental:
A participação da comunidade local no processo de desenvolvimento do turismo
(cultural) precisa ser um ponto central na agenda do poder público local. Isso precisa ser
feito em três linhas principais, a saber
a) como fazer com que os residentes locais participem dos benefícios econômicos
do turismo (emprego e renda)? Basicamente, há três caminhos: i. financiamento
à abertura de pequenos negócios turísticos (microcrédito); ii. treinamento e
capacitação para o emprego em negócio turístico (guias, cozinheiros, camareiras
etc.); e iii. treinamento e capacitação para a produção associada ao turismo (por
exemplo, artesanato);
b) como fazer com que os residentes locais participem do processo de
desenvolvimento turístico? Vital aqui é elaborar ações para aumentar a
capacidade de participar, para que a população local não fique restrita à simples
consulta;
c) como fazer com que os residentes locais também aproveitem e participem da
construção da oferta turístico-cultural? Trata-se, aqui, de sensibilizar a
comunidade local para o valor de sua cultura e de seu patrimônio, e de acessar o
conhecimento dos moradores, inclusive através da história oral.
Cumpre direcionar parte dos gastos turísticos para a preservação patrimonial, o que não
acontece em muitos destinos turísticos, inclusive nas principais cidades patrimoniais
brasileiras. A cobrança de uma taxa socioambiental sobre a hospedagem parece ser a
solução mais adequada, com parte dela sendo revertida para projetos e ações de
preservação patrimonial e de educação patrimonial.
APOSTOLAKIS, Alexandros. The convergence process in heritage tourism. Annals of
tourism research, v. 30, n. 4, p. 795-812, 2003.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade:
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DICKS, Bella. The view of our town from the hill: communities on display as local
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LEAL, Claudia Feierabend Baeta (Org.). As missões da Unesco no Brasil: Michel
Parent. Rio de Janeiro: IPHAN, COPEDOC, 2008.
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2002.
RICHARDS, Greg (Ed.). Cultural Tourism in Europe. Wallingford: CAB
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RUSSO, Antonio P.; BORG, Jan van der. Planning considerations for cultural tourism:
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