Ripe 32 ok - Instituição Toledo de Ensino
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Ripe 32 ok - Instituição Toledo de Ensino
ISSN 1413-7100 32 REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS DIVISÃO JURÍDICA INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO Bauru/SP • agosto a novembro de 2001 INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS DIVISÃO JURÍDICA Edição quadrimestral Nº 32 - agosto a novembro de 2001 EDITE - EDITORA DA ITE - INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO Faculdade de Direito de Bauru Praça 9 de Julho, 1-51 - Vila Falcão 17050-790 - Bauru - SP - Tel. (14) 220-5000 DIRETORIA EXECUTIVA Pedro Walter De Pretto Diretor Educacional Edson Márcio de Toledo Mesquita Diretor Financeiro/Administrativo DIREÇÃO Pedro Walter De Pretto CONSELHO EDITORIAL Cláudia Aparecida de Toledo Soares Cintra, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Hélio Requena da Conceição, Iara de Toledo Fernandes, José Roberto Martins Segalla, Jussara Susi Assis Borges Nasser Ferreira, Luiz Alberto David Araujo, Luiz Antônio Rizzato Nunes, Lydia Neves Bastos Telles Nunes, Maria Isabel Jesus Costa Canellas, Maria Luiza Siqueira De Pretto, Murilo Canellas, Pedro Walter De Pretto. SUPERVISÃO EDITORIAL Maria Isabel Jesus Costa Canellas COORDENAÇÃO DE COMUNICAÇÃO Bento Barbosa Cintra Neto NOTA: Os trabalhos assinados exprimem conceitos da responsabilidade de seus autores, coincidentes ou não com os pontos de vista da redação da Revista. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS: Proibida a reprodução total ou parcial, sem a prévia autorização da Instituição, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos ou videográficos. Vedada a memorização e/ou recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de quaisquer partes desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e §§, do Código Penal, cf. Lei nº 6.895, de 17-12-1980) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 122, 123, 124 e 126, da Lei nº 5.988, de 14-12-1973, Lei dos Direitos Autorais). Editoração e revisão: EDITE - EDITORA DA ITE ISSN 1413-7100 32 REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS DIVISÃO JURÍDICA INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO Bauru/SP • agosto a novembro de 2001 Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos - Divisão Jurídica, nº 32 de agosto a novembro de 2001 - Instituição Toledo de Ensino Faculdade de Direito de Bauru - Bauru/SP Quadrimestral ISSN 1413-7100 1 - Direito - Periódicos. I. Instituição Toledo de Ensino. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos nº 32 p. 1-538 2001 Antônio Eufrásio de Toledo ÍNDICE Apresentação Maria Isabel Jesus Costa Canellas 11 VIDA DA FACULDADE Resumos de projetos e teses de docentes, apresentados em programas de mestrado e doutorado, e de trabalhos discentes em Iniciação Científica, da Faculdade de Direito de Bauru, Instituição Toledo de Ensino. 13 DOUTRINA NACIONAL Percalços da formação do federalismo no Brasil Gilberto Bercovici 39 Breves reflexões sobre a proteção da biodiversidade e do patrimônio genético na Constituição Dirigente de 1988 Pietro de Jesús Lora Alarcón 59 Direitos humanos, cidadania e educação: do pós-Segunda Guerra à nova concepção introduzida pela Constituição de 1988 Valerio de Oliveira Mazzuoli 81 A relativização do monopólio na exploração das jazidas de petróleo e a responsabilidade das empresas concessionárias Luciano de Souza Godoy 111 A tributação da propriedade imobiliária urbana na Costituição de 1988 Antonio Carlos Batista Martinez 117 IPTU - Imunidade tributária de imóvel - Propriedade do Município e cedida em comodato ou por contrato de concessão de uso a entidade privada Yoshiaki Ichihara 129 Lei nº 10.168/00: inconstitucionalidade na contribuição “de intervenção no domínio econômico” Luiz Fernando Maia 139 Os agentes políticos e a responsabilidade por culpa em face do art. 10 da Lei de Improbidade Administrativa Carlos Frederico Brito dos Santos 147 Invalidação dos atos administrativos Heraldo Garcia Vitta 161 Medidas Provisórias: visão lógico-sistemática Carlos Eduardo Lima Passos da Silva 179 Regimes políticos, regimes de governo e regimes ideológicos Reis Friede 185 O Ministério Público, o Poder Judiciário e a imprensa como instrumentos de controle do Estado Fernando Tourinho Neto 205 O novo regramento da propaganda eleitoral Edilson Pereira Nobre Júnior 217 A evolução do comércio internacional: reflexões sobre o protecionismo regulatório Danielle Annoni 257 O enriquecimento sem causa na Justiça do Trabalho José Jorge da Costa Jacintho 277 Teoria da aparência e a fraude à execução Gelson Amaro de Souza 295 Assistência de advogado no interrogatório e orientação prévia. Ausência: nulidade absoluta do processo Marcelo Cury 313 Direito à vida e inseminação artificial Edinês Maria Sormani Garcia 339 PARECER Concessão de serviços públicos de energia elétrica - teoria da imprevisão aplicável ao contrato entre geradoras e distribuidoras - fundamentos constitucionais - parecer. Ives Gandra da Silva Martins 349 NÚCLEO DE PESQUISA DOCENTE Kierkegaard disse: “para atingir a fé, a razão tem que dar um salto” Maria Isabel Jesus Costa Canellas 377 Perfil das tutelas de urgência no processo civil brasileiro Rossana Teresa Curioni e Glauco Gumerato Ramos 393 ESTUDOS JURÍDICOS Instituições Políticas e Constituição na Alemanha contemporânea Marcílio Toscano Franca Filho 421 A mundialização do Direito Laboral (o retorno high tech ao feudalismo) Rodolfo Capón Filas e Mario Antonio Lobato de Paiva 433 A liberdade de estabelecimento no Mercosul à luz do direito comunitário europeu Robson Zanetti 443 Aspectos do imposto sobre a transmissão de bens causa mortis e doação (ITBCMD) Valéria C. P. Furlan 451 A legitimação do Ministério Público do Trabalho na defesa dos interesses individuais homogêneos Carlos Henrique Bezerra Leite 457 Reflexões críticas sobre a argüição de relevância Laércio Becker e Edson Luiz da Silva dos Santos 467 Observações sobre competência jurisdicional. A natureza da competência dos juízos descentralizados - Varas estaduais regionais e varas federais do interior Walney Magno de Azevedo Silva 475 Código de Defesa do Contribuinte Francisco Ramos Mangieri 487 Cooperativa - Ação civil pública e outras questões afins Samuel Corrêa Leite 493 A relação jurídica processual (conceito, características, estrutura) Bruno Novaes Bezerra Cavalcanti 501 Do rito sumaríssimo - Lei nº 9.957, de 12.01.2000 Francisco Antonio de Oliveira 513 ATUALIZAÇÃO PENAL EVENTO - I Seminário de penas e medidas alternativas 523 O egresso do cárcere. Luíz Flávio Borges D’Urso 525 Liberdade antecipada só com méritos Umberto Luiz Borges D’Urso 527 Prisão especial não é privilégio. Luíz Flávio Borges D’Urso 531 Lei nova autoriza infiltração de policiais em quadrilhas Luíz Flávio Borges D’Urso 533 INFORMAÇÕES AOS COLABORADORES 537 APRESENTAÇão Uma luz em tempo de apagão !!! Simbolicamente, esse é o significado que a recente publicação da Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001, tem ocupado nas mentes daqueles que, há tanto tempo, vêm se preocupando com a multiplicidade de crises que assolam o nosso País. Como se não bastasse a atual conjuntura em que vivemos, essa angustiante fase tem sido, sistematicamente, agravada por várias crises que se sobrepõem, tais como a questão do desemprego, a alta do dólar, a crise política do governo federal, a crise no judiciário, a crise energética, a escassez de água a anunciar mais um provável racionamento e, ainda, a crise na vizinha Argentina que atinge diretamente os interesses nacionais. Dentro desse contexto, a instituição dos Juizados Especiais Federais têm representado muito mais do que uma possibilidade de solução rápida dos litígios. Vários serão os benefícios advindos dos Juizados Especiais Federais, conforme ressaltou o Dr. Flávio Dino de Castro e Costa (juiz federal, presidente da AJUFE – Associação dos Juízes Federais do Brasil), em recente publicação sobre o tema, na Folha de São Paulo, de 27.07 de 2001. Primeiramente, a exígua via recursal que limita a quantidade de recursos e os remete a julgamento para as Turmas Recursais, à semelhança do procedimento já adotado nos Juizados Especiais Estaduais, acelera a solução final dos litígios ao mesmo tempo em que desafoga os Tribunais Superiores (TRFs e STJ) com a redução dos processos a eles enviados. Outra importante característica dos Juizados Especiais Federais é a inexistência dos excessivos privilégios outorgados à Fazenda. Não há nesse sistema a prerrogativa dos prazos em quádruplo para contestar e em dobro para recorrer. Também não terá a Fazenda a seu favor a benéfice do reexame necessário quando vencida. Em fase recursal, há a previsão de um processo executivo mais simplificado onde inexiste a obrigatoriedade dos precatórios, para alívio das partes vencedoras que, fora desse sistema, amargam anos à espera de seu ressarcimento. Para os que necessitam de processos mais céleres com soluções rápidas para seus litígios, como os aposentados e pensionistas do Regime Geral da Previdência Social, mutuários do SFH, servidores públicos de menor renda e micro/pequenos empresários, a Lei nº 10.259 vem significar, inegavelmente, uma luz em tempo de apagão. Nesse cenário, a RIPE tem papel fundamental, uma vez que se consolidou não somente como um instrumento de pesquisa científica, mas se apresentando, hoje, como fonte de discussões e alertas, apontando caminhos e sugerindo soluções. Na atualidade, a RIPE vem significar muito mais que uma importante fonte de pesquisa para os estudiosos do Direito, pois, indubitavelmente, também tem se constituído num instrumento de fortalecimento da Democracia, uma vez que tem a preocupação de aproximar a realidade ao mundo das idéias em busca de uma vida melhor para todos. Este número da Revista saúda, de modo especial, a Instituição Toledo de Ensino e seu fundador, o educador Antonio Eufrásio de Toledo, pelo seu 51º aniversário de fundação. Comemora, por evidente, a concepção e a concretização de uma entidade educacional, atuante e flexível, em benefício da constante renovação, reiterando o compromisso de manter o farol sempre aceso - a iluminar nossos colaboradores e leitores que enriquecem o pensamento jurídico brasileiro. Novembro de 2001. Maria Isabel Jesus Costa Canellas VIDA DA FACULDADE Resumos de projetos e teses de docentes, apresentados em programas de mestrado e doutorado, e de trabalhos discentes em Iniciação Científica, da Faculdade de Direito de Bauru, Instituição Toledo de Ensino. Instrumentos de execução legislativa, inseridos na Constituição Federal do Brasil: Decreto Lei na C.F./1967 e Medida Provisória na C.F./1988 Aparecido dos Santos Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Direito Constitucional Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Wagner Balera Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino O A pesquisa se constituiu em verdadeiro desafio a um tema assaz, polêmico, que mexe com a argúcia e a inteligência dos estudiosos e dos mestres. Ela procurou investigar, com certa abrangência, a inserção dos instrumentos de exceção legislativa, no ordenamento jurídico brasileiro, através do Decreto-Lei, na C.F./1967 e Medida Provisória na C.F./1988 buscou realçar, assinalando: 14 instituição toledo de ensino A constitucionalidade, legalidade, necessidade e indispensabilidade dos institutos, para o Estado dos institutos, para o Estado Moderno de Direito, nas situações anômalas, excepcionais e emergenciais graves, nas quais o interesse público clama por relevantes e urgentes normatizações regulamentadoras. Aceitos por alguns, tolerados por outros, mas rejeitados por muitos, em sendo um mal necessário se utilizados com parcimônia e cautela, sob rígido e eficaz controle, revelam-se, nestes tempos conturbados da veloz tecnologia, instrumentos ágeis, eficazes, reclamados por situações extraordinárias e excepcionais de necessidade e de urgência relevante. Ser inaceitável os excessos e abusos por parte do titular da edição, em ambos os casos - Chefe do Poder Executivo - que tem expedido os instrumentos de exceção, sem atender aos pressupostos constitucionais, extrapolando o âmbito de sua competência, versando a respeito de matérias e situações que acabam irreversíveis, ocupando até, espaço que não lhe diz respeito, em autêntica usurpação de poder, além de, desrespeitar o caráter provisório dos instrumentos, buscando eternizá-los através de inaceitáveis, sucessivas e repetidas reedições. A Constituição Federal, ao responder aos anseios de toda a Nação, fundou a República Federativa do Brasil em um Estado Democrático de Direito, no qual a lei, como autodeterminação política, co-deliberação da maioria, ocupa a base e o centro da ordem social e jurídica. Assim, a esperança é no sentido, de que o Poder Judiciário, em especial o STF, guardião da Constituição, viabilizando o Estado Democrático de Direito, repila com firmeza, o abuso, excessos, no indiscriminado editar e reeditar dos institutos de exceção legislativa, obstando usurpação de competências e desrespeito às normas constitucionais, como marcadamente, está ocorrendo, respondo assim, as medidas de exceção, no seu verdadeiro lugar e função disciplinadora, tão somente de situações anômalas e emergenciais, extraordinária de necessidade e urgência. Processo legislativo de medidas provisórias Edson Freitas de Oliveira Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Wagner Balera Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino O presente trabalho foi desenvolvido com objetivo de estudar o processo legislativo das medidas provisórias, sucessoras na Constituição Federal do decretolei. Demonstra-se com o estudo ora sintetizado, que as medidas provisórias tornaram-se, depois de pouco mais de uma década da promulgação da nova Constituição Federal, em problema crônico do ordenamento jurídico brasileiro. O instituto vem sendo utilizado em larga escala pelo Poder Executivo, sem o devido controle do Legislativo e do Executivo. Daí a necessidade de aprofundar melhor os estudos no tocante ao processo legislativo, para contribuir cientificamente na busca de soluções, analisando-se os diversos aspectos que envolvem a tramitação da medida provisória. Excluídos os capítulos introdutórios e a conclusão, o estudo desdobra-se em três momentos principais: o surgimento da medida provisória no âmbito do Poder Executivo; a sua tramitação no Poder Legislativo - o processo legislativo propriamente dito -; e, por fim, os efeitos da medida provisória após a sua aprovação ou rejeição pelo Congresso Nacional. Inclui-se, ainda, um capítulo sobre a proposta de emenda constitucional que tramita no Congresso Nacional com objetivo de limitar a edição de medidas provisórias. Como a proposta já foi aprovada em ambas as Casas Legislativas, a inclusão de um capítulo sobre a mesma é imperiosa, até porque a emenda pode ser promulga- 16 instituição toledo de ensino da a qualquer momento. Conclui-se, ao final do trabalho, que o processo legislativo das medidas provisórias é falho quanto ao estabelecimento de regras, constitucionais ou infraconstitucionais, fato que acabou por facilitar a utilização inadequada e desastrosa da medida provisória. Além disso, as poucas normas editadas para regrar o processo legislativo da medida provisória não vêm sendo observadas pelo Executivo e pelo próprio Legislativo. Do processo legislativo Fábio Alexandre Coelho Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Instrumentos constitucionais de efetivação da cidadania Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Wagner Balera Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino Na dissertação são feitas considerações a respeito do processo legislativo, analisando-se os mecanismos de controle, com especial ênfase nos meios que asseguram a manutenção da supremacia da Constituição. O trabalho procurou também salientar a existência de regras jurídicas em todas as sociedades e demonstrar o desenvolvimento do controle das formas de exteriorização das regras de conduta. A compreensão do poder e o estudo das técnicas voltadas para seu controle foi outro tema analisado. A atividade legislativa mereceu especial atenção, assim como a representação popular no processo de elaboração legislativa. A função legislativa e a lei como resultado dessa atividade foram objeto de considerações, em razão da ligação com o processo legislativo. O exame das mais importantes classificações que as leis recebem mereceu especial apreciação. Destaque acentuado ocorreu quanto ao relacionamento entre o processo de produção legislativa e a noção de procedimento. O processo legislativo foi analisado sob diferentes ângulos, principalmente em relação à Constituição, e, em particular, quanto às formas de controle de constitucionalidade. Ao final, foi examinado o processo legislativo dos Estados e apreciada a Lei Complementar nº 95/98, que dispõe sobre a redação, a alteração e a consolidação das leis. Fechando o estudo, estão as conclusões extraídas do estudo realizado. Tutela monitória para ressarcimento Mariluci Cristina Stefanini Braga Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Olavo de Oliveira Neto Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino Notório neste começo de século que o movimento de acesso à justiça representa uma forma de cristalização de aspirações sociais e, ao mesmo tempo, enseja o questionamento acerca da introdução de tutelas dotadas de maior efetividade e eficácia na legislação processual vigente. O funcionamento regular do Judiciário pressupõe a atmosfera do estado de direito e, portanto, o balizamento de seus limites de atuação e possibilidades, mediante a adoção de instrumentos que viabilizem e justifiquem as expectativas da sociedade contemporânea e possibilitem a regular execução pelos magistrados de seu mister constitucional. Não se pode negar que o fator tempo é um dos grandes óbices à efetiva prestação jurisdicional, daí a busca de novos tipos de tutelas denominadas pela doutrina de diferenciadas ou diferidas, com destaque para a tutela monitória, inserida em nossa legislação processual civil, através da Lei nº 9.079 de 14 de julho de 1995, dentre os procedimentos de jurisdição contenciosa. A finalidade maior deste tipo de tutela é dar efetividade à prestação reclamada, tornando-a célere e eficaz, abreviando, no caso da tutela monitória, de forma hábil e inteligente o caminho para a formação do título executivo, sem a necessidade do moroso e caro procedimento ordinário. O objetivo do presente trabalho é justamente demonstrar a conveniência da adoção da tutela monitória, como técnica de tutela diferenciada, para ressarcimento do credor, especificamente voltada para soma em dinheiro, tendo em vista as experiências obti- 20 instituição toledo de ensino das com grande êxito nos países europeus, onde este instituto despontou como forte mecanismo contribuidor para efetividade da prestação jurisdicional a que se destina. No capítulo inicial, pretendeu-se abordar de forma genérica as noções acerca do acesso a justiça através da introdução de tutelas diferenciadas na legislação processual civil vigente, com o objetivo de acelerar e tornar efetiva a entrega da prestação jurisdicional (justiça tardia equivale muitas vezes a injustiça). Os capítulos seguintes foram dedicados exclusivamente ao estudo do procedimento monitório para ressarcimento do credor, iniciando-se na sua origem, precedentes históricos, características, finalidade, espécies, breve enfoque de sua aplicação no direito estrangeiro e é claro no direito brasileiro através da Lei nº 9.079 de 14 de julho de 1995. Por derradeiro, o capítulo final trata de questões controvertidas trazidas pela doutrina como o cabimento de reconvenção e intervenção de terceiros, sua aplicação no direito do trabalho, nos Juizados Especiais Cíveis e contra a Fazenda Pública, em razão das várias divergências oriundas da omissão deixada pelo legislador no texto de lei. A proteção da pessoa humana em face da poluição do ar atmosférico Silvia Conceição Rigonatti Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Celso Antônio Pacheco Fiorillo Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino O ar é indispensável, sendo necessário à sobrevivência do planeta. Os seres vivos conseguem viver horas ou dias sem alimento, no entanto, sem ar se vive segundos ou no máximo, poucos minutos. O ar é imprescindível à vida e um direito de todos, sendo um bem ambiental. Pelo fato do ar atmosférico nos cercar de todos os lados é considerado bem ambiental por excelência. Isso é revelado no significado da palavra ambiente. No meio social, o ar é é o próprio ambiente. Quando acontece a poluição deste ar atmosférico a pessoa humana sofre distúrbios, perdendo a boa qualidade de vida e o equilíbrio que é assegurado no artigo 225 da CF. O oxigênio que compõe o ar atmosférico é o gás fundamental para gerar a vida sendo via de conseqüência um bem difuso. Qualquer alteração em sua quantidade acarreta um desequilíbrio visível nos animais e nas plantas. A dignidade da pessoa humana está revelada na qualidade de vida que ela possui. A alteração do ar atmosférico abala a qualidade de vida e saúde da pessoa humana, fazendo desprender dela o estado de dignidade. A greve como instrumento de defesa da educação Maria de Lurdes Rondina Mandaliti Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Celso Antônio Pacheco Fiorillo Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino Este trabalho foi criado a partir da reflexão sobre o papel da greve como instrumento de defesa da educação. A greve é um fenômeno tão incontroverso que até mesmo o significado da palavra é motivo de polêmica, sendo uma das mais importantes manifestações coletivas da sociedade moderna.Neste trabalho vamos analisar, da maneira mais adequada possível, a educação, a sociedade brasileira, a greve, os sindicatos, os servidores públicos, e em especial os professores, dando enfoque aos artigos 1º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 37, 39 e 205 da Constituição da República e às Emendas Constitucionais nºs 18, 19 e 20. Assim, no decorrer do tema, procuraremos responder que a greve constitui-se em instrumento de defesa da educação. A greve, como todo e qualquer fenômeno social, encontra ressonância no campo jurídico, pois o mundo do direito trata de todo e qualquer fato social que afete a vida do ser humano. Não é possível penetrar no âmago de um instituto sem que se conheça a estrutura de sua existência. O conhecimento de sua história, de sua natureza, constitui uma das pilastras mestras do instituto. Enfocamos a greve no Direito Comparado, no Direito Penal e na CLT, além do tratamento especial dado à Lei de Greve, aos sindicatos, aos servidores públicos, em especial aos professores. A proteção constitucional do idoso Lucia Peres Amorim Oliveira da Silva Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Celso Antônio Pacheco Fiorillo Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino Este trabalho estuda o direito destinado à proteção daquele que ultrapassa os 60 anos de vida em nosso país; tem o intuito de diminuir o descompasso entre o tratamento coletivo e individual, dado ao cidadão, indevidamente considerado pela sociedade capitalista somente enquanto força de trabalho ou quando portador de riquezas no campo econômico ou cultural. Objetiva, sobretudo, uma análise mais aprofundada do artigo 230 da Constituição Federal Brasileira de 1988. Esta dissertação é iniciada com as conceituações dos termos encontrados nas legislações brasileiras, relativos ao idoso e também da expressão terceira idade muito utilizada atualmente; prossegue com breve estudo sobre o idoso nas diferentes épocas da sociedade, comentando ainda o discrimem idade sob a luz do princípio da isonomia, tal como presentemente é entendido; faz comparação do discrimem idade quanto ao conteúdo dos artigos 6º, 201, 203 e 229 da mesma Constituição. Examina cada termo do caput do artigo 230 e seus parágrafos, adentrando o estudo da possibilidade de acesso à proteção individual e coletiva dos direitos garantidos; apresenta as legislações infra-constitucionais de integração dos direitos do idoso; utiliza a objetividade necessária no plano da norma regradora de comportamentos, com vista aos princípios da hermenêutica; procura dirimir dúvidas por meio dos consagrados métodos científicos da interpretação, tão importantes quando se estuda através de meios diferenciados e que compreendem análises gramatical literal ou 26 instituição toledo de ensino léxica, lógico-sistemática, teleológica e histórica, concluindo, através do método dedutivo, que o exercício da tutela contida na Constituição e legislações infra-constitucionais, que garante ao idoso o direito à vida, ao bem-estar social, à dignidade é necessário (em virtude das conseqüências psicossociais, e das dificuldades próprias do envelhecimento), para que o idoso venha a ser reconhecido, senão pela sua experiência de vida (eventualmente superada pela tecnologia), senão pelo fato de que toda evolução foi alcançada graças aos seus esforços passados, e, afinal, envelhecer é destino de todos nós. O direito constitucional da liberdade de expressão jornalística Maria Tereza Marques Oliveira Ghiselli Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Celso Antônio Pacheco Fiorillo Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino A necessidade de se obter informações sobre os acontecimentos relevantes da vida moderna de um lado e, de outro, a proteção à vida privada, à intimidade, à honra e à imagem como direitos fundamentais do cidadão, faz surgir, no seio da sociedade, o debate sobre o conteúdo, a importância e os limites da liberdade de expressão jornalística. É o que pretendemos explorar neste trabalho, embora sem a pretensão de esgotar o tema, sabedores de que a solução para o embate é tarefa bastante difícil, quiçá inatingível. Todavia, entendemos necessário trabalhar as vertentes do direito fundamental da liberdade de expressão, mormente da expressão jornalística, frente aos princípios norteadores da República Federativa do Brasil, dando ênfase à necessidade de convivência pacífica dos direitos eventualmente colidentes, com bom senso e razoabilidade. Motivou-nos, sobretudo, a defesa desse direito, de forma mais contundente, ante o fato de estarmos vivendo em um regime democrático bastante novo, já que a democracia foi restabelecida em nosso país através da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, a qual colocou termo ao estado de exceção em que vivíamos até então, que, no mais das vezes, sufocava a liberdade de expressão, com graves danos à sociedade brasileira. Desse modo, mesmo aceitando a relatividade dos direitos fundamentais, deixamos claro neste trabalho a supremacia do direito à informação, visto como base necessária para a plenitude de um estado democrático de direito. A saúde como objeto mediato da tutela ambiental artificial Claudio Luis Watanabe Escavassini Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Celso Antônio Pacheco Fiorillo Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino Nas últimas décadas, as questões ambientais assumiram um posto relevo na discussão mundial, especialmente pelo temor da inviabilidade futura da vida na Terra, já que ameaçada não apenas por guerras nucleares, químicas ou biológicas, mas também pela ação degradadora e indiscriminada do homem frente aos recursos naturais não renováveis. Sensível ao problema, a partir do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, o meio ambiente passou a ser tutelado como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Diante dessas duas características, o habita passou a ser tratado como um bem autônomo e de natureza difusa, fugindo da clássica divisão, privado e público, além do que, indicou que o meio ambiente, em todas as suas formas, deveria não apenas abrigar os seres vivos, mas também lhes proporcionar uma sadia qualidade de vida. O homem voltou a ocupar o centro das atenções e direitos fundamentais consagrados tiveram novos parâmetros de aplicação, baseados na dignidade da pessoa humana. Nesse sentido o presente trabalho foi realizado, ressaltando que as cidades, meio ambiente artificial, devem buscar o pleno desenvolvimento das suas funções sociais, garantindo o bem-estar de seus habitantes, o que importa em dizer, entre outras coisas, que a saúde é objeto mediato do atendimento das normas constitucionais relacionadas com o habita ecologicamente equilibrado. 30 instituição toledo de ensino Definir o alcance da tutela ambiental, a natureza desse novo bem e nele reconhecer e esclarecer o princípio da dignidade humana, buscando o direito material constitucional da saúde foi o objetivo dessa dissertação. As provas como instrumento de efetividade no processo civil Luciano Henrique Diniz Ramires Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Olavo de Oliveira Neto Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino Estuda a atividade jurisdicional e a melhoria na atuação do processo, apontando os problemas que impedem a realização deste objetivo, com a idéia de tornálo efetivo, a fim de que produza resultados satisfatórios à população. Dentro deste contexto, analisa importantes aspectos do direito probatório, no intuito de facilitar e contribuir para a atuação dos operadores do direito, quando da comprovação dos fatos alegados no processo. O estudo doutrinário e jurisprudencial foi realizado nesse sentido, na busca por soluções para os problemas apontados, comparando-se as diversas opiniões existentes em torno do assunto. Os recursos nos juizados especiais cíveis Enilda Locato Rochel Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Sistema Constitucional de Garantia de Direitos Nível de Mestrado Orientador: Profª. Drª. Iara de Toledo Fernandes Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino A pesquisa verifica os recursos que podem ser utilizados nos Juizados Especiais Cíveis. A proposta traçada enfrenta o cabimento nos juizados dos recursos previstos no Código de Processo Civil, uma vez que a Lei dos Juizados somente prevê expressamente o recurso inominado e os embargos de declaração. O tema é analisado à luz dos princípios constitucionais que balizam o processo e dos princípios processuais previstos na Lei dos Juizados. Aponta como principais resultados: a) o Código de Processo Civil se aplica subsidiariamente aos Juizados Especiais Cíveis naquilo que não contrariar os princípios norteadores dos Juizados; b) o recurso inominado previsto compartilha da mesma natureza do recurso de apelação, garantindo o duplo grau de jurisdição nos Juizados; c) o recurso de agravo deve ser admitido nos Juizados em regra na modalidade retido, e, em algumas situações excepcionais, na modalidade instrumento; d) os embargos infringentes são incabíveis nos Juizados; e) o recurso extraordinário deve ser admitido dos acórdãos proferido pelo Colégio Recursal; f ) o recurso especial é cabível dos acórdãos proferidos pelo Colégio Recursal; g) o agravo de instrumento é cabível da decisão do Presidente do Colégio Recursal, que não admite o recurso extraordinário e especial; 34 instituição toledo de ensino h) a reclamação é cabível no caso de ser obstada a subida do agravo de instrumento que impugnou a decisão degeneratória do recurso extraordinário ou especial; i) o recurso ordinário constitucional deve ser admitido na hipótese de decisão denegatória de mandado de segurança pelo Colégio Recursal; j) o recurso adesivo é compatível com os Juizados; k) a correição parcial é medida inconstitucional e não deve ser admitida nos Juizados. A pesquisa conclui que a maioria dos recursos previstos no Código de Processo Civil apresentam perfeita compatibilidade com os Juizados Especiais, demonstrando que o fato da Lei dos Juizados ter previsto expressamente somente dois recursos não implica necessariamente em exclusão aos demais. Os Juizados Especiais buscam uma justiça efetiva, pautada pela celeridade e simplicidade, mas em nenhuma hipótese desvencilhada das garantias constitucionais do processo. Arbitragem: a alternativa para descongestionar o Poder Judiciário Luiz Roberto Nogueira Pinto Programa de Pós-Graduação em Direito Área de concentração: Direito Constitucional Nível de Mestrado Orientador: Prof. Dr. Olavo de Oliveira Neto Faculdade de Direito de Bauru/SP - Instituição Toledo de Ensino O propósito fundamental do presente estudo é conseguir uma análise profunda do instituto da arbitragem, principalmente no direito brasileiro, e sua possível contribuição à aplicação rápida e eficaz da Justiça diante da atual fase de desenvolvimento globalizado das sociedades mundiais. A hipótese foi analisada com o fulcro de chamar a atenção, principalmente dos juristas, para a atual situação de sobrecarga de trabalho nos tribunais, o que contribui, num primeiro momento, para a queda da qualidade nas decisões judiciais e, num segundo, para o risco de não se conseguir a aplicação efetiva da Justiça nos litígios apresentados. A Arbitragem, como uma das modalidades da Justiça Privada, vem sendo tratada há muito tempo pelos estudiosos do direito internacional e brasileiro. Trata-se de um insituto essencial à pacificação social, através da composição de conflitos. A Arbitragem, assim como a mediação, é meio paraestatal de solução de litígios, através do qual, alivia-se o Poder Judiciário que poderá exercer melhor e mais rapidamente suas funções, uma vez que a valorização daqueles meios diminuirá, imensamente, a quantidade de processos jurisdicionais hoje existentes. Por fim, é inarredável que a valorização da Arbitragem é responsável pela valorização do próprio Poder Judiciário, já que sua utilização na resolução de conflitos de interesses à margem do próprio Estado, através da atividade da própria sociedade civil é, sem dúvida, mais benéfica para todos. doutrina Nacional Percalços da formação do federalismo no brasil Gilberto Bercovici Doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo O ESTADO UNITÁRIO IMPERIAL (1822-1889) A independência do Brasil, ocorrida em 1822, deu-se, ao contrário dos Estados Unidos e da América espanhola, sob a forma monárquica. Os conflitos entre o Imperador D. Pedro I e a Assembléia Constituinte culminaram com a dissolução desta, em novembro de 1823, e a outorga, em 25 de março de 1824, da Constituição do Império do Brasil, que serviu como instituidora e garantidora do unitarismo. Talvez o maior exemplo da falta de autonomia das Províncias (atuais Estados) se encontrasse no artigo 165: “Haverá em cada Provincia um Presidente, nomeado pelo Imperador, que o poderá remover, quando entender, que assim convem ao bom serviço do Estado”. As Províncias não podiam legislar sobre seus assuntos específicos. Foram previstos na Carta Imperial, inicialmente, os Conselhos Gerais de Província (artigos 71 a 89), que só podiam deliberar sobre os “negocios mais interessantes das suas Provincias, formando projectos peculiares, e accommodados ás suas localidades, e urgenciais” (artigo 81). Essas soluções seriam enviadas ao Presidente da Província, que as remeteria ao Poder Executivo. Caso a Assembléia Geral do Império (Câmara dos Deputados e Senado vitalício) estivesse reunida, as propostas seriam encaminhadas como projeto de lei. Se não estivesse, o Imperador, ao julgar que sua observação resultaria no “bem geral” da Província, as mandaria executar, senão seriam suspensas até a próxima reunião da Assembléia. Além disto, a Assembléia Geral deveria preparar um regimento para regular os Conselhos Gerais das Províncias. Também 40 instituição toledo de ensino não havia na Constituição qualquer menção à repartição das receitas entre o Governo Central, as Províncias ou Municípios. A única referência se encontra no artigo 36, I da Constituição Imperial, dando à Câmara dos Deputados a iniciativa privativa sobre impostos. A centralização fomentada pelo Imperador fez com que se reforçasse o sentimento autonomista que vigorava em várias Províncias, particularmente em Pernambuco. Em 2 de julho de 1824, foi proclamada a Confederação do Equador, baseada no exemplo norte-americano. Uniram-se para formar uma república federativa as Províncias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Foi feito um apelo às Províncias do Piauí, Maranhão e Pará para que aderissem, além das demais Províncias que quisessem ser regidas pela forma de governo a ser estabelecida pela futura Assembléia Constituinte. As forças imperiais, no entanto, rapidamente derrotaram a Confederação do Equador. Os seus líderes morreram em combate, fugiram do país ou foram presos, sendo alguns condenados, como Frei Caneca, à morte1. As forças centrífugas, entretanto, iriam se manifestar até o início do Segundo Reinado. Curiosamente, ao contrário do que possa parecer, a divisão da republicana América espanhola em vários países acabou por se tornar em forte estímulo à unidade, sendo sempre invocada como modelo a ser evitado pelo Brasil a qualquer preço2. Mas o mesmo consenso não ocorria em relação a D. Pedro I desde a cruel repressão à Confederação do Equador. Tido como despótico e absolutista, o Imperador era tratado de forma cada vez mais hostil pelos liberais brasileiros. As sucessivas crises entre a Câmara dos Deputados e D. Pedro I acabaram por indispor o monarca com a opinião pública. O fracasso dessa primeira tentativa de centralização consubstanciou-se com o 7 de abril de 1831, quando D. Pedro I foi forçado a abdicar. Como D. Pedro II era ainda uma criança, instalou-se uma Regência até a sua maioridade. Tentou-se criar uma espécie de “monarquia federativa” já em outubro de 1831, quando foi apresentado à Assembléia Geral o “Projeto Substitutivo Miranda Ribeiro”, que acabava com a vitaliciedade do Senado (tornando-o renovável na sua terça parte a cada legislatura); transformava os Conselhos Gerais em Assembléias Provinciais com duas casas; dividia os poderes tributários entre as Assembléias Geral e Provincial, além de discriminar as rendas públicas; instituía a autonomia municipal (o Governo Geral continuaria a nomear o Presidente da Província e as Assembléias Provinciais nomeariam os intendentes de cada Município); entre outras modifi1 Amaro QUINTAS, "A Agitação Republicana no Nordeste" in Sergio Buarque de HOLANDA (coord.), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, vol. 3, 6ª ed, São Paulo, Difel, 1985, pp. 227-233 e José Murilo de CARVALHO, "Federalismo e Centralização no Império Brasileiro: História e Argumento" in Pontos e Bordados: Escritos de História e Política, reimpr., Belo Horizonte, EdUFMG, 1999, pp. 163-164. 2 Sergio Buarque de HOLANDA, "A Herança Colonial - Sua Desagregação" in Sergio Buarque de HOLANDA (coord.), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, vol. 3, 6ª ed, São Paulo, Difel, 1985, p. 15 e José Murilo de CARVALHO, "Federalismo e Centralização no Império Brasileiro: História e Argumento" cit., pp. 161-163. instituição toledo de ensino 41 cações. Aprovado pela Câmara, não foi sequer discutido no Senado3. Às iniciativas da Câmara dos Deputados, opunha-se quase sempre o Senado vitalício e, na sua grande maioria, conservador. O impasse só foi superado com a Lei de 12 de outubro de 1832, determinando que os eleitores concederiam poderes especiais aos deputados para alterar os artigos e parágrafos da Constituição expressamente declarados como reformáveis: seria aprovado o Ato Adicional (Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834). Com o Ato Adicional, ocorreu uma certa descentralização. Embora sem autonomia, as Províncias foram dotadas de poder legislativo próprio e tutela sobre os Municípios. Foram criadas, em substituição aos Conselhos Gerais, as Assembléias Legislativas Provinciais, com prerrogativas de elaboração de projetos e leis ampliadas (artigos 10 e 11 do Ato Adicional). O Presidente da Província continuou, entretanto, um delegado da Corte, a ser nomeado pelo Poder Central. Nem todas as resoluções das Assembléias Provinciais precisariam mais ser aprovadas pela Assembléia Geral. As que eram especificadas no Ato Adicional poderiam ser enviadas diretamente ao Presidente da Província, que as sancionaria ou não. O paradoxo do alargamento das franquias provinciais foi o fato de ter sido feito às custas dos Municípios. A defesa da idéia de separar do Poder Central tudo aquilo que poderia ser resolvido em âmbito provincial não teve a sua contrapartida no tocante aos Municípios. As Assembléias Provinciais passaram a poder legislar sobre impostos, despesas e empregados municipais, além de criar ou revogar posturas municipais sem precisar esperar ou depender da iniciativa das Câmaras Municipais (artigos 10, IV a VII e XI e 11, III do Ato Adicional). De órgãos políticos, jurídicos e administrativos durante a Colônia4, as Câmaras, segundo o artigo 24 da Lei de 1º de outubro de 1828 (Regimento das Câmaras Municipais do Império), passaram a meras “corporações administrativas”. Segundo Victor Nunes Leal, a tutela das Câmaras pelas Assembléias Provinciais era justificada na época por dois motivos: o de cada Província estabelecer o regime municipal que lhe fosse mais conveniente e o do fortalecimento das Províncias em relação ao Governo Central através da unificação de sua política interna. Já historiadores como Sergio Buarque de Holanda, analisam essa decadência das instituições municipais como conseqüência do quadro mais largo da liquidação da herança colonial5. 3 Paulo Pereira de CASTRO, "A 'Experiência Republicana', 1831-1840" in Sergio Buarque de HOLANDA (coord.), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, vol. 4, 5ª ed, São Paulo, Difel, 1985, pp. 29-31 e José Murilo de CARVALHO, "Federalismo e Centralização no Império Brasileiro: História e Argumento" cit., pp. 164-165. 4 Sobre o importante papel político desempenhado pelas Câmaras Municipais durante o período colonial, vide especialmente Caio PRADO Jr, Evolução Política do Brasil - Colônia e Império, 19ª ed, São Paulo, Brasiliense, 1991, pp. 29-32 e 38-44 e Victor Nunes LEAL, Coronelismo, Enxada e Voto: O Município e o Regime Representativo no Brasil, 6ª ed, São Paulo, Alfa-Omega, 1993, pp. 60-73. 5 Sergio Buarque de HOLANDA, "A Herança Colonial - Sua Desagregação" cit., pp. 23-26 e Victor Nunes LEAL, Coronelismo, Enxada e Voto cit., pp. 76-78. 42 instituição toledo de ensino A Regência não conseguiu montar um esquema de estabilidade com um núcleo hegemônico de Províncias, como ocorreria durante a Primeira República. As abundantes revoltas do período buscavam não a desagregação, mas uma melhor participação no poder. Elas traduzem o anseio de conquistar uma maior integração no comando político para a conquista de mais poder de decisão e beneficiar a economia local. O grupo de Províncias que deu a principal base para a Independência, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, não se revoltou, pois possuía vantagens políticas superiores ao seu poder econômico, numa época em que o centro dinâmico da economia concentrava-se na Bahia, Pernambuco e Maranhão (locais de maior arrecadação tributária do período). As revoltas eclodiram nas áreas que se sentiam espoliadas com a partilha do poder então vigente (Rio Grande do Sul e Bahia) ou com o afastamento das lideranças locais na política regional (Pará), além das disputas pelo poder provincial (Maranhão). A separação era reclamada ou imposta como tática de luta, sob a promessa de retorno à unidade assim que a causa pela qual os revoltosos lutavam fosse vitoriosa (exemplos patentes foram o da Sabinada baiana e o da Revolução Farroupilha gaúcha)6. O início de descentralização promovido pelo Ato Adicional teve vida curta. As condições políticas geradas pela constante instabilidade do período regencial fizeram com que maioria conservadora instalada no Legislativo, autodenominada “Regresso”, aprovasse a Lei de Interpretação do Ato Adicional (Lei nº 105, de 12 de maio de 1840). Esta lei de interpretação reforçou o centralismo, retirando várias prerrogativas dadas às Províncias, concentrando mais o poder na Corte e nas mãos do Imperador: ampliaram-se as prerrogativas dos Presidentes de Província às custas das Assembléias Provinciais. Os liberais reagiram à onda conservadora estimulando o chamado “Golpe da Maioridade”. Vitoriosos, foram convocados pelo novo Imperador, D. Pedro II, então com apenas 14 anos de idade, para organizar o primeiro gabinete do Segundo Reinado. Logo apeados do poder, os liberais tentaram mudar a situação, provocando mais duas revoltas provinciais, a de 1842 (conhecida por Revolta Liberal, baseada em São Paulo e Minas Gerais) e a de 1848 (novamente em Pernambuco, conhecida como “Revolução Praieira”). Em ambas, o Governo Central tomou logo controle da situação. Com a derrota da Revolução Praieira, terminou o ciclo de revoltas do período imperial. A próxima crise interna do regime, entre 1870 e 1889, seria também a última. Durante o Segundo Reinado, os Presidentes das Províncias ficavam no cargo, na maioria das vezes, apenas durante o tempo necessário para garantir o predo6 Caio PRADO Jr, Evolução Política do Brasil cit., pp. 71-81 e 86-89; Raymundo FAORO, Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro, 8ª ed, São Paulo, Globo, 1989, pp. 315-316 e 320-321; Paulo Pereira de CASTRO, "A 'Experiência Republicana', 1831-1840" cit., pp. 50-53 e José Murilo de CARVALHO, "Federalismo e Centralização no Império Brasileiro: História e Argumento" cit., pp. 165-167. instituição toledo de ensino 43 mínio de seu partido (que era o do gabinete) na Província. Para obter sucesso nas eleições, o Presidente da Província escolhia chefes políticos para decidir a sorte das eleições nos colégios eleitorais, manobrava postos da Guarda Nacional, perseguia e afastava elementos oposicionistas ou suspeitos à situação, removia ou nomeava autoridades policiais, etc. Assim que concluísse sua tarefa, deixava o cargo para seu substituto legal. Quando o Presidente da Província também era deputado à Assembléia Geral, exercia o cargo, normalmente, apenas durante o recesso parlamentar ou quando não tivesse nada de mais importante para fazer na Corte. Freqüentemente, o mesmo homem ocupava durante a sua carreira a presidência de várias Províncias. A alta rotatividade de Presidentes era também extremamente prejudicial às Províncias, pois atrapalhava toda a sua administração. Para resolver este problema, foram propostos vários projetos que modificavam a nomeação do Presidente da Província, alguns prevendo, inclusive, a eleição direta. Em 1860, foi proposta a Reforma Almeida Pereira, que criava no serviço público uma carreira de “Presidente de Província”. De acordo com esta proposta, os gabinetes escolheriam pessoas de sua confiança em um quadro de servidores públicos apartidários e dotados de conhecimentos especializados7. Nenhuma das reformas apresentadas foi aprovada, perdurando a questão dos Presidentes das Províncias, particularmente a da sua eletividade, até a República. A primeira contestação republicana ao regime monárquico desde o fim das revoltas provinciais foi o Manifesto Republicano de 1870, que exigia, entre outros temas, a implantação da Federação, nos moldes norte-americanos. A solução para as novas aspirações e conflitos surgidos com as transformações econômicas e sociais da segunda metade do século XIX parecia estar no federalismo. A centralização passou a ser vista como um entrave ao desenvolvimento do país. O unitarismo durou enquanto houve identificação do poder econômico com o poder político, além da ausência de grandes conflitos entre as elites dirigentes. Com o deslocamento do centro dinâmico da economia após 1850, o desequilíbrio criado entre o poder econômico e o poder político deu novo vigor à aspiração federalista. As regiões fornecedoras da maior parte dos estadistas do Império, o Norte açucareiro e os núcleos cafeicultores do Rio de Janeiro, estavam em crise. O novo centro econômico era o oeste paulista. Alçado a condição de motor do desenvolvimento do país, São Paulo se sentia prejudicado e discriminado pela centralização. Dessa forma, de todas as Províncias, São Paulo era aquela em que os republicanos estavam em maior número e melhor organizados. No caso paulista, a defesa do republicanismo com federalismo tinha como motivo o desejo de aumentar seus recursos: os republicanos defendiam uma redistribuição das rendas para que São 7 Raymundo FAORO, Os Donos do Poder cit., pp. 377-379; João Camilo de Oliveira TÔRRES, A Formação do Federalismo no Brasil, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1961, pp. 112-114 e Simon SCHWARTZMAN, São Paulo e o Estado Nacional, São Paulo, Difel, 1975, pp. 106-109. 44 instituição toledo de ensino Paulo pudesse financiar os custos de sua economia em expansão, baseada no café. A primeira vitória eleitoral republicana no país, inclusive, foi a eleição de três deputados republicanos para a Assembléia Provincial de São Paulo, já em 1877 e, em 1881, foram eleitos seis deputados republicanos para a mesma Assembléia. Os primeiros, e únicos, deputados republicanos eleitos para a Assembléia Geral foram Prudente de Moraes e Manuel Ferraz de Campos Sales, de São Paulo (futuros Presidentes da República), e Álvaro Andrade Botelho, de Minas Gerais, em 18848. Ao contrário do crescimento do sentimento republicano no Sul, reinava a indiferença no Norte. Na Bahia, os republicanos eram ignorados. Nunca a Bahia conseguiu formar um partido republicano forte. Os dois principais políticos baianos da Primeira República, Rui Barbosa e José Joaquim Seabra, eram ambos originários dos velhos partidos monárquicos. Pernambuco, por sua tradição revolucionária, reunia maiores condições para a propagação dos republicanos. Entretanto, o partido republicano era fraco, e, talvez para compensar essa fraqueza, muito radical, se dissociando da grande maioria republicana do resto do país. Os republicanos históricos de Pernambuco, devido aos vários choques entre as diversas facções políticas, não teriam força para assumir o governo com a Proclamação. Após um período turbulento, este iria para um antigo membro do Partido Conservador, Francisco de Assis Rosa e Silva. A razão dessa suposta lealdade do Norte à monarquia pode ser tirada das péssimas condições econômicas vigentes, com o preço dos principais produtos caindo no mercado internacional. Ao invés de se revoltarem contra o regime, aquelas Províncias viam no auxílio do Poder Central a sua única esperança9. A REPÚBLICA, O CORONELISMO E O PODER DOS ESTADOS (1889-1930) Proclamada a República, o federalismo foi instituído pelo Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889. As antigas Províncias foram transformadas em Estados. O federalismo da Constituição de 1891, moldado no federalismo dualista clássico10, praticamente ignorou a cooperação entre União e entes federados. O artigo 5º desta Constituição11 restringia o auxílio federal aos Estados exclusivamente aos casos de 8 Raymundo FAORO, Os Donos do Poder cit., pp. 452-466; Simon SCHWARTZMAN, São Paulo e o Estado Nacional cit., pp. 79-80 e 112-114; Sergio Buarque de HOLANDA, "O Manifesto de 1870" in Sergio Buarque de HOLANDA (coord.), História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, vol. 7, 4ª ed, São Paulo, Difel, 1985, pp. 265-267; Renato LESSA, A Invenção Republicana: Campos Sales, as Bases e a Decadência da Primeira República Brasileira, São Paulo/Rio de Janeiro, Vértice/RT/IUPERJ, 1988, pp. 41-42 e José Murilo de CARVALHO, "Federalismo e Centralização no Império Brasileiro: História e Argumento" cit., pp. 170-172. 9 Sergio Buarque de HOLANDA, "O Manifesto de 1870" cit., pp. 267-268. Sobre as relações entre as Províncias do Norte e o Governo Imperial, vide, especialmente, a obra de Evaldo Cabral de MELLO, O Norte Agrário e o Império, 1871-1889, 2ª ed, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999. 10 Cf. Dalmo de Abreu DALLARI, “Os Estados na Federação Brasileira, de 1891 a 1937”, Revista de Direito Constitucional e Ciência Política nº 3, Rio de Janeiro, Forense, julho de 1984, pp. 103-105. instituição toledo de ensino 45 calamidade pública. Em 1897, o Governo Federal regulamentaria o artigo 5º de forma minuciosa, especificando os casos em que os Estados poderiam receber auxílio da União, além de determinar que, junto com a solicitação formal do pedido, a ajuda federal dependeria de comprovação documentada de que os recursos disponíveis do Estado solicitante foram totalmente exauridos sem êxito para debelar a calamidade que o atingiu. Para evitar os pedidos de auxílio dos Estados, o Ministro da Justiça de Prudente de Moraes, Amaro Cavalcanti, declarou, em Circular aos Governos Estaduais, de 22 de março de 1897, que só seriam atendidos os pedidos de auxílio financeiro para atender a situações de calamidade pública quando o Governo Federal julgasse cabível12. Paradoxalmente, foram as calamidades públicas, mais especificamente as secas no Nordeste, que justificaram as primeiras medidas de relações intergovernamentais tomadas sob o federalismo dualista do regime de 1891, especialmente com as obras contra as secas levadas a cabo durante o Governo de Epitácio Pessoa (1919-1922). O resultado desse sistema foi a manutenção de desigualdades gritantes entre os vários membros da Federação. Os três Estados economicamente mais fortes (São Paulo, Minas Gerais e, em menor grau, Rio Grande do Sul) dominavam a República. Não é coincidência terem sido esses Estados os únicos que não sofreram intervenção federal13, sob qualquer pretexto, até 1930. Podemos considerar como periféricos, mas sem poder efetivo, os Estados do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Todos os demais dependiam diretamente da União, que, por sua vez, era dominada pelos jogos de alianças dos três grandes Estados. No sistema político implantado com a República, o Poder Executivo sobrepunha-se aos demais. A “Política dos Governadores” era a subordinação do Congresso Nacional aos interesses das oligarquias estaduais aliadas ao Presidente da República. A sucessão presidencial era o grande momento do regime, constituindo a origem 11 Artigo 5º da Constituição de 1891: “Incumbe a cada Estado prover, a expensas proprias, ás necessidades de seu governo e administração; a União, porém, prestará soccorros ao Estado que, em caso de calamidade publica, os solicitar”. 12 A reprodução do texto da Circular de 1897 encontra-se em SERVIÇO DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA (SENADO FEDERAL), “O Auxílio da União aos Estados nos Casos de Calamidade Pública”, Revista de Informação Legislativa nº 7, Brasília, Senado Federal, setembro de 1965, pp. 252-253. Vide também Raul Machado HORTA, “Problemas do Federalismo” in Raul Machado HORTA (org.), Perspectivas do Federalismo Brasileiro, Belo Horizonte, Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1958, pp. 25-27 e A Autonomia do Estado-Membro no Direito Constitucional Brasileiro, mimeo, Belo Horizonte, Tese de Titularidade (Faculdade de Direito da UFMG), 1964, pp. 285-287; SERVIÇO DE INFORMAÇÃO LEGISLATIVA (SENADO FEDERAL), “O Auxílio da União aos Estados nos Casos de Calamidade Pública” cit., pp. 252-258 e Dalmo de Abreu DALLARI, “Os Estados na Federação Brasileira, de 1891 a 1937” cit., pp. 119-121. 13 Sobre o regime da intervenção federal previsto na Constituição de 1891 (até a Reforma de 1926), vide Enrique Ricardo LEWANDOWSKI, Pressupostos Materiais e Formais da Intervenção Federal no Brasil, São Paulo, RT, 1994, pp. 59-69. 46 instituição toledo de ensino de, praticamente, todas as crises que ocorreram durante a vigência da Constituição de 1891. Como a escolha do Presidente era decisiva, a grande vantagem ficava com os três grandes Estados, de maior população e melhor sistema educacional, pois os analfabetos não votavam. Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul sobrepujavam os demais Estados em eleitorado, representando cerca de 50% dos votos nas eleições presidenciais. Mas, mesmo nestes Estados, a fraude eleitoral corria solta. A estabilidade da sucessão era garantida pela aliança entre o PRP (Partido Republicano Paulista) e o PRM (Partido Republicano Mineiro), a famosa aliança do “Café-comLeite”, que impunha o seu candidato ao resto do país. As disputas só ocorriam quando as duas máquinas partidárias estaduais divergiam, abrindo espaço para os dois elementos autônomos das decisões políticas nacionais: o PRR (Partido Republicano Rio-grandense) e o Exército. O sistema político da República Velha não mobilizava o eleitorado, graças ao controle político dos coronéis, no âmbito municipal, e das máquinas partidárias, no âmbito estadual. Quando ocorreu a mobilização do eleitorado (em 1910, 1922 e 1930), o sistema chegou ao limiar da ruptura. O Presidente da República distribuía as verbas federais entre os seus aliados nos Estados, podendo utilizar o Exército para depor qualquer governo estadual que se opusesse a sua política. As exceções novamente eram Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul, cujas forças militares estaduais numerosas e bem armadas garantiam a autonomia do Estado, juntamente com a coesão política em torno de um partido político estadual forte, que englobava praticamente todos os grupos políticos do Estado (com a exceção gaúcha, onde dois partidos se digladiavam com armas na mão, apesar do predomínio indiscutível do PRR)14. O fenômeno do coronelismo é típico do período republicano que se inicia em 1889, embora vários dos seus elementos, dados pela clássica definição de Victor Nunes Leal15 fossem determináveis durante o Império e a Colônia. Isto decorre, basicamente, da abolição da escravatura, do aumento do contingente eleitoral e da 14 A causa das disputas políticas no Rio Grande do Sul, que chegaram efetivamente à guerra civil em 1893 e 1923, era a sua Constituição Estadual, inspirada no positivismo de Augusto Comte, elaborada por Júlio de Castilhos, a partir do projeto apresentado (e rejeitado) por Teixeira Mendes e Miguel de Lemos ao Marechal Deodoro. A Constituição gaúcha contrariava inúmeros dispositivos da Constituição Federal de 1891: o presidente (governador) do Estado poderia ser reeleito, desde que obtivesse maioria de 2/3; o vice-presidente era escolhido pelo presidente, a não ser que a maioria das câmaras municipais votasse contra a indicação e a assembléia legislativa possuía competência apenas em matéria orçamentária e tributária, além de reconhecer a eleição do presidente e de processá-lo nos casos de crime de responsabilidade. O Poder Legislativo estava nas mãos do presidente, que deveria dar ampla divulgação aos seus projetos de lei. Os projetos poderiam receber sugestões durante o prazo de 3 meses, cabendo ao presidente aceitá-las ou não, promulgando a lei como quisesse. A lei só não entraria em vigor se a maioria de 2/3 dos municípios a recusasse. 15 “Como indicação introdutória, devemos notar, desde logo, que concebemos o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constitui fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em instituição toledo de ensino 47 adoção do federalismo. O voto dos trabalhadores rurais, após a extinção da escravidão e a extensão do direito de sufrágio, passou a ter importância fundamental na Primeira República. A influência política dos donos de terras (os “coronéis”) aumentou graças à dependência dessa grande parcela do eleitorado causada pela estrutura agrária e fundiária. A adoção de um regime representativo mais amplo que o do Império, juntamente com a existência desta estrutura social e econômica arcaica, acabou por vincular os detentores do poder político aos donos de terras. Os dirigentes políticos interioranos deveriam garantir os votos de seus dependentes ao governo nas eleições estaduais e federais, consolidando, em troca, sua dominação política local. Com o federalismo e a existência, então, do governo estadual eletivo (não mais nomeado pelo Poder Central, como no Império), tornou-se necessária a implantação de máquinas eleitorais nos Estados, baseadas no poder dos coronéis. Essa máquina, além de garantir o compromisso coronelista, acabou por determinar a instituição da chamada “Política dos Governadores”16. Os Municípios não dispunham de grandes recursos para poder implementar as políticas necessárias ao bem-estar de sua população e ao seu desenvolvimento. Praticamente todos dependiam financeiramente do Governo Estadual. Desta forma, os Estados só liberavam verbas para os Municípios onde os aliados do Governador estivessem administrando. Se o governo municipal não apoiasse o estadual, não receberia o vital auxílio financeiro e, conseqüentemente, perderia o apoio de sua base eleitoral. Assim explica-se o “governismo” de praticamente todas as situações municipais durante a Primeira República. Apesar da falta de grande autonomia legal, os chefes municipais, que custeavam todas as despesas do alistamento e das eleições, poderiam ter ampla autonomia “extralegal”, isto é, sua opinião prevaleceria no Governo em tudo o que dissesse respeito ao seu Município, mesmo no tocante a assuntos de competência exclusiva da União ou dos Estados, como a nomeação de certos funcionários considerados “estratégicos” para a manutenção do poder local (delegados, juízes, promotores, professores, etc.). Além disto, as autoridades estaduais e federais costumavam fechar os olhos para quaisquer arbitrariedades e violências cometidas por seus aliados nos Municípios17. virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa. Por isso mesmo, o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil. Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder público, e isto se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável.” in Victor Nunes LEAL, Coronelismo, Enxada e Voto cit., p. 20. 16 Victor Nunes LEAL, Coronelismo, Enxada e Voto cit., pp. 253-254. 17 Victor Nunes LEAL, Coronelismo, Enxada e Voto cit., pp. 35-36, 45, 51-52 e 177-180 e Raymundo FAORO, Os Donos do Poder cit., pp. 620-622, 629-639 e 646-654. 48 instituição toledo de ensino A manipulação do voto pelos coronéis e a dependência econômica dos Municípios em relação aos Estados resultou no domínio dos votos pelo Governador, que decidia a composição da sua bancada estadual no Congresso Nacional e qual candidato à Presidência da República seria eleito no seu Estado. O compromisso firmado entre o Governo Federal e os Governos Estaduais deu origem à famosa “Política dos Governadores”. Esta política foi institucionalizada pelo Presidente Campos Sales (1898-1902), evitando uma série de intervenções federais nos Estados. No Império, se houvesse conflito entre o Presidente da Província e o Governo Central ou o Imperador, aquele era simplesmente removido. Já na República, com Governadores eleitos, resolvia-se o conflito através da intervenção federal ou da revolução. Para evitar que a situação política chegasse a um limiar de ruptura, Campos Sales selou um acordo com os Governadores dos Estados detentores das maiores bancadas no Congresso. Modificou-se o regimento da Câmara na parte referente à verificação de poderes: seria a “depuração” ou “degola” dos oposicionistas. Até então, no início da instalação da nova Câmara, o parlamentar mais idoso, entre os supostamente eleitos, ocupava a Presidência da Câmara dos Deputados e nomeava cinco outros deputados para formar a Comissão de Verificação de Poderes. Feito o reconhecimento dos demais, eram sorteados os encarregados de julgar as reclamações dos não-eleitos. Com a mudança do regimento, o mesmo Presidente da Câmara da legislatura anterior continuaria na Presidência para nomear a Comissão de Verificação de Poderes. Garantia-se, assim, a continuidade na direção política da Câmara dos Deputados. O diploma eleitoral passava a ser a ata geral de apuração da eleição, assinada pela maioria da Câmara Municipal do Município sede do distrito eleitoral. Desse modo, as eleições já vinham decididas desde a expedição dos diplomas pelas juntas apuradoras, controladas pelas situações dos Estados. A Comissão de Verificação de Poderes passou a servir como mais uma garantia para impedir o acesso de adversários e oposicionistas ao Congresso. O Congresso Nacional tornou-se, assim, a expressão da direção política dos Governos Estaduais. Os diplomas dos amigos, afilhados, aliados e apaniguados das situações estaduais seriam reconhecidos pela situação federal. Em troca, os Governadores exigiriam a fidelidade dos deputados e senadores de seu Estado à política do Presidente da República. A rotina da República Velha resumia-se aos acordos firmados pelo Presidente com os Governadores e a atuação do Poder Legislativo conforme o decidido naquelas alianças. Nas negociações para a sucessão presidencial, o sucessor era legitimado por consultas do Presidente aos chefes estaduais, particularmente do PRP e do PRM. Essa estabilidade foi arranhada em 1910 e 1922 e quebrada em 1930, quando ocorreram as únicas eleições competitivas da Primeira República. Estas eram as bases do regime político implantado após a Proclamação da República: coronelismo e “Política dos Governadores”. As eleições tinham como instituição toledo de ensino 49 principal característica as mesas eleitorais com função de junta apuradora. Desta forma, ocorria a chamada fraude do “bico-de-pena”: nomes eram inventados, mortos ressuscitados, ausentes votavam. Os mesários faziam verdadeiros milagres durante a elaboração das atas eleitorais. Caso não se conseguisse evitar a eleição do adversário através das atas falsas, restava a “degola”. O Poder Legislativo cassaria o mandato daqueles que não interessavam à oligarquia dominante18. ENTRE O FEDERALISMO COOPERATIVO E A CENTRALIZAÇÃO (1930-1945) Os choques entre as oligarquias estaduais19 e a cisão nas Forças Armadas20, aliadas à forte crise econômica que se iniciou com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, causaram, através da Revolução de 3 de outubro de 1930, a queda do regime da Constituição de 1891. O desmonte da máquina política da Primeira República teve início com o Decreto nº 19.398, de 11 de novembro de 1930, que instituía e regulamentava as funções do Governo Provisório formado pelos revolucionários vitoriosos. Em todos os Estados haveria Interventores nomeados por Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório, e estes nomeariam Prefeitos para todos os Municípios, sempre assistidos por um conselho consultivo. Este sistema era extremamente hierarquizado, dada as suas condições de governo de exceção 18 Victor Nunes LEAL, Coronelismo, Enxada e Voto cit., pp. 229-230 e 244-248; Raymundo FAORO, Os Donos do Poder cit., pp. 563-569 e Renato LESSA, A Invenção Republicana cit., pp. 105-110 e 138. 19 Minas Gerais foi preterida por São Paulo na sucessão do Presidente Washington Luís, também paulista, que rompeu com o pacto do “Café com Leite”. Os mineiros se aliaram à Paraíba e ao Rio Grande do Sul e lançaram a candidatura do Governador gaúcho Getúlio Vargas à Presidência da República, em oposição ao Governador paulista Júlio Prestes, apoiado pelos outros Estados e pelo Presidente da República. Vide Boris FAUSTO, A Revolução de 1930: Historiografia e História, 14ª ed, São Paulo, Brasiliense, 1994, pp. 92-99 e 102-104. 20 Inúmeros setores das Forças Armadas (intitulados “tenentes”) revoltaram-se contra o Governo Federal em 1922 (Rio de Janeiro) e 1924 (São Paulo e Rio Grande do Sul). Nesta última revolta, os tenentes, liderados por Luís Carlos Prestes formaram uma coluna revolucionária (a “Coluna Prestes”), que percorreu o interior do Brasil até 1927, quando se internou na Bolívia, sem nunca ter sido derrotada pelas forças governistas. O tenentismo, enquanto movimento, foi política e ideologicamente difuso. As primeiras revoltas têm a característica de uma tentativa insurrecional independente de setores civis, vistos com desconfiança. Apesar da indefinição ideológica, o tenentismo possuía vários pontos de concordância entre seus membros. Eles, os "tenentes", seriam os responsáveis únicos pela regeneração nacional e pela pureza das instituições republicanas. A verdade da representação deveria ser assegurada através de eleições honestas, com voto secreto, regularização do alistamento eleitoral e reconhecimento dos resultados pelo Poder Judiciário. A revolução deveria ser feita de forma autônoma ao povo, que não soube romper com sua passividade para derrubar as oligarquias e o Exército seria a proteção da nação contra a eventual indisciplina popular. A grande prevenção dos "tenentes", entretanto, se dava com os políticos (e vice-versa). Essa prevenção não impediria a aliança do tenentismo com setores oligárquicos dissidentes para promover a Revolução de 1930, embora fosse a causadora de uma série de problemas no período pós-revolucionário. A proposta que congregava todo o movimento era a de centralização. A crítica ao liberalismo passava pela excessiva autonomia dos Estados, transformados em “20 feudos”, sob a hegemonia paulista. Cf. Boris FAUSTO, A Revolução de 1930 cit., pp. 57-58, 61-69 e 75. 50 instituição toledo de ensino transitório. O Governo Provisório propôs, ainda, a centralização da arrecadação tributária por parte da União e a proibição dos Estados contraírem empréstimos externos sem sua autorização. Como contrapartida, todas as dívidas estaduais passariam à União. A Assembléia Constituinte foi instalada em 15 de novembro de 193321. Havia na Constituinte um consenso em torno da manutenção (ao menos nominal) do federalismo. Não foi apresentada nenhuma proposta abertamente unitarista. O que se procurou foi uma definição mais precisa de federalismo, que podemos denominar cooperativo22, de acordo com seu artigo 9º: “É facultado á União e aos Estados celebrar acordos para a melhor coordenação e desenvolvimento dos respectivos serviços, e, especialmente, para a uniformização de leis, regras ou praticas, arrecadação de impostos, prevenção e repressão da criminalidade e permuta de informações”. O artigo 10 da Constituição de 1934 fixou, pela primeira vez na história constitucional brasileira, a repartição das competências concorrentes, dando ênfase à solidariedade entre a União e os entes federados. Já a cooperação propriamente dita foi inaugurada com os artigos 140 e 177 da Constituição de 1934, que tratavam do combate às endemias e às secas no Nordeste23. Curiosamente, a principal influência dos constituintes de 1933-34 foi a Constituição alemã de 1919, a célebre Constituição de Weimar, o que demonstra, ao nosso ver, um desenvolvimento em direção ao federalismo cooperativo praticamente simultâneo dos federalismos norte-americano e brasileiro. O debate e as disputas políticas se desenrolaram nos anos 30 entre os liberais, "tenentes" e adeptos do autoritarismo. O ideário liberal de defesa da autonomia estadual e de independência dos agrupamentos políticos de “notáveis” foi utilizado 21 Mesmo com as eleições para a Constituinte marcadas, a oligarquia de São Paulo, sob o pretexto de exigir a imediata reconstitucionalização do país, se levantou em armas na auto-denominada “Revolução Constitucionalista”, em 9 de julho de 1932. Aderiram ao movimento a Força Pública, alguns batalhões do Exército sediados em São Paulo e poucos militares sediados em Mato Grosso, sob o comando do General Bertoldo Klinger, além dos voluntários civis. O Governo Provisório mobilizou todos os outros Estados e combateu os revoltosos pelo sul e pela divisa mineira. Após 3 meses de lutas, os rebeldes foram derrotados, rendendo-se em 1º de outubro de 1932. Foi a última vez que um Estado se levantou em armas contra a União. 22 Raul Machado HORTA, “Problemas do Federalismo” cit., pp. 21-22 e A Autonomia do Estado-Membro no Direito Constitucional Brasileiro cit., pp. 175-183 e 291-292 e Dalmo de Abreu DALLARI, “Os Estados na Federação Brasileira, de 1891 a 1937” cit., pp. 108-110. 23 Ana Maria BRASILEIRO, “O Federalismo Cooperativo”, Revista Brasileira de Estudos Políticos nº 39, Belo Horizonte, UFMG, julho de 1974, pp. 95-97 e Dalmo de Abreu DALLARI, “Os Estados na Federação Brasileira, de 1891 a 1937” cit., pp. 121-122. instituição toledo de ensino 51 como proteção contra a centralização e devido ao temor da crescente participação popular. A timidez cada vez maior do liberalismo da década de 1930 fez com que cedesse espaço ao pensamento autoritário. Isso ocorria em um contexto de passagem da política de notáveis à de massas, dos partidos representativos das oligarquias estaduais ou parcelas das classes dominantes para partidos fundados em interesses sócioeconômicos. O momento era de perplexidade dos liberais diante da radicalização ideológica e do ingresso das camadas populares urbanas no sistema político. Com a inexistência de um partido nacional, com exceção da fascista Ação Integralista Brasileira e do Partido Comunista do Brasil (na clandestinidade, representado pela Aliança Nacional Libertadora), as forças revolucionárias se desestruturaram após a Assembléia Constituinte. Os conflitos ocorridos entre 1934 e 1937 foram causados pela tentativa de institucionalizar um poder pós-revolucionário sobre a estrutura política baseada novamente na política dos Estados. O cerne das discussões continuou a ser centralização contra autonomia estadual. A radicalização da luta entre os integralistas e os comunistas acabou por facilitar a reunião das camadas dominantes e dos setores revolucionários, que se aliariam no apoio à ditadura do Estado Novo. Com a instauração do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937, foi decretada a intervenção federal em todos os Estados. Cabia aos interventores nomear os Prefeitos de todos os Municípios (artigo 27 da nova Constituição, outorgada em 10 de novembro de 1937). Os interventores serviriam como interligação entre os Estados, Ministérios e o Presidente da República. Para evitar o surgimento de máquinas políticas autônomas em Estados fortes, como São Paulo e Rio Grande do Sul, foi realizado um verdadeiro “rodízio” de interventores. O interventor só se mantinha caso dispusesse da confiança total do Presidente Getúlio Vargas. O novo sistema político do Estado Novo conjugava as interventorias e sua assessoria, realizada por órgãos burocráticos subordinados ao DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público), ambos sujeitos ao Presidente. A centralização também se manifestava com órgãos técnico-administrativos que estudavam matérias específicas ou setores da atividade econômica, como os inúmeros institutos e autarquias criados nessa época. Além do controle da economia através da intervenção estatal, havia também o controle militar, efetivado pelo crescimento e reestruturação das Forças Armadas. O DASP, criado em 1938, controlava todo o sistema administrativo do país, sendo o responsável pela elaboração anual do orçamento e pelo controle de sua execução. Nos aspectos técnicos, os ministérios deveriam se sujeitar ao DASP, mas mantinham a hierarquia tradicional nos demais assuntos. Nos departamentos estaduais do DASP, o seu chefe deveria aprovar previamente os decretos-leis dos interventores e Prefeitos. Em casos de divergência, a decisão seria do Presidente da República. O interventor realizaria a coordenação política dos Estados, o Departamento Administrativo cuidaria dos assuntos técnicos, como se fosse uma espécie de 52 instituição toledo de ensino “legislativo”. A relação entre os interventores e os Departamentos Administrativos variava em cada Estado, havendo aqueles interventores que controlavam tudo o que fosse referente a seu Estado (como Benedicto Valladares, em Minas Gerais) e os que não tinham jurisdição sobre o Departamento Administrativo (como Adhemar de Barros, em São Paulo). Durante todo o Estado Novo, não sobrou nenhuma esfera legislativa para que os Estados atuassem sem a permissão do Poder Central24. FEDERALISMO, DESENVOLVIMENTISMO E A QUESTÃO REGIONAL (1945-1964) A Constituição de 1946 consolidou a estrutura cooperativa no federalismo brasileiro, prevista já em 1934, com grande ênfase na redução dos desequilíbrios regionais, favorecendo, apesar do reforço do poder federal, a cooperação e integração nacional. Foi sob a vigência desta Constituição, na década de 1950, que a Questão Regional ganhou importância no debate político nacional, com a concepção de que a atuação estatal e o planejamento eram elementos essenciais para o desenvolvimento, de acordo com as diretrizes elaboradas pela recém-criada CEPAL. Desde então, todas as constituições brasileiras têm a preocupação de tentar consagrar instrumentos para a superação das desigualdades regionais. A política estatal desenvolvida em “regiões-problema”, como o Nordeste e a Amazônia, voltou-se no sentido de reduzir os desníveis existentes entre as várias partes do país, evitando a acentuação dos desequilíbrios regionais. Buscava-se a harmonização interna do desenvolvimento nacional. Os vários órgãos criados (como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE) tinham por função dinamizar as forças produtivas das suas áreas de atuação e integrá-las ao sistema nacional. Nos Estados, muitos Governadores criaram seus próprios órgãos de planejamento (o melhor exemplo é o do Plano de Ação 1959-1963 do Governador Carvalho Pinto, de São Paulo, criado pela Lei nº 5.444, de novembro de 1959), visando ao estímulo à expansão industrial, agropecuária e extrativista nos seus territórios, tentando obter uma rearticulação mais independente em face o Centro-Sul ou o exterior. Em termos de consolidação da unidade econômica, neste período, particularmente durante a Presidência de Juscelino Kubitschek, acelerou-se a industrialização do Sudeste, criaram-se grandes incentivos para investimentos no Nordeste (com a SUDENE), integrou-se mais efetivamente a Amazônia ao sistema nacional (através da Belém-Brasília) e incorporou-se o Centro-Oeste ao centro dinâmico com a instalação da capital em Brasília. O sucesso dessa intervenção estatal diferiu nas suas várias áreas de atuação, de acordo com a configuração específica de cada região. A SUDENE conseguiu se 24 Victor Nunes LEAL, Coronelismo, Enxada e Voto cit., pp. 92-94; Maria do Carmo Campello de SOUZA, Estado e Partidos Políticos no Brasil (1930-1964), 3ª ed, São Paulo, Alfa-Omega, 1990, pp. 86-98 e Enrique Ricardo LEWANDOWSKI, Pressupostos Materiais e Formais da Intervenção Federal no Brasil cit., pp. 75-77 e 135. instituição toledo de ensino 53 inserir dinamicamente no Nordeste, inovando o processo de desenvolvimento com sucesso até a ruptura de 1964. Já a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), criada de acordo com o artigo 199 da Constituição, que destinava 3% das receitas federais à execução de um plano de valorização econômica da Amazônia, foi absorvida pelo sistema político local, colaborando para a preservação do status quo (não ocorrendo nenhuma mudança desde então, mesmo com a sua transformação em Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, realizada pelo regime militar). Talvez o motivo tenha sido o da forma como a análise dos problemas regionais foi realizada. Durante o período democrático, a atuação da SPVEA foi baseada em análises desarticuladas, que esfacelaram a realidade amazônica, impedindo uma atuação eficaz. Já a atuação da SUDENE ocorreu com base em análises regionais bem estruturadas, colaborando para a efetiva promoção do desenvolvimento regional, interrompida bruscamente com o golpe de 196425. A política durante o período democrático da Constituição de 1946 tornou-se mais abrangente do que até então fora. Com a extensão da cidadania e ampliação do voto, embora os analfabetos continuassem a não votar, amplos setores inferiores das classes médias e um contingente respeitável de trabalhadores, pela primeira vez, participaram do processo político-eleitoral. A partir de 1930, o proletariado passou a poder participar das políticas de massa. Depois de 1945, a sua importância se tornou fundamental no jogo de sustentação e modificação do poder político consubstanciado no populismo. Essa ampliação da participação popular conjugada com a urbanização e industrialização crescentes no período marcaram a transição para a democracia de massas no Brasil. A dispersão eleitoral se acentuou e os votos dos vários Estados ganharam peso numa balança de poder cada vez mais dependente dos mais diversos apoios. Os candidatos à Presidência da República precisavam de uma imagem nacional, não sendo mais suficiente apenas o apoio do seu Estado de origem. A porcentagem do eleitorado do Sudeste cresceu, dando a essa região, a que se modernizava mais rapidamente, a preponderância na eleição presidencial, além de, com o passar do tempo, alterar a força relativa dos partidos no Congresso Nacional. Os partidos tornaram-se efetivamente nacionais, embora fossem mais fortes em algumas regiões, como o PSD (Partido Social Democrático) em Minas Gerais e o PTB (Partido Traalhista Brasileiro) no Rio Grande do Sul. Curiosamente, nenhum dos três grandes partidos (PSD, PTB e UDN - União Democrática Nacional) era forte em São Paulo. 25 Vide especialmente Celso FURTADO, A Operação Nordeste, Rio de Janeiro, ISEB (MEC), 1959 e Celso FURTADO, A Fantasia Desfeita, 3ª ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, sobre a experiência brasileira de combate às desigualdades regionais entre 1959 e 1964. Ainda sobre a Questão Regional, vide Gilberto BERCOVICI, "Constituição e Superação das Desigualdades Regionais" in Eros Roberto GRAU & Willis Santiago GUERRA Filho, Direito Constitucional - Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo, Malheiros, 2001, pp. 74-107. 54 instituição toledo de ensino Neste Estado, o sistema partidário era diverso do resto do país, disputado pelas lideranças populistas de Adhemar de Barros e o seu Partido Social Progressista (PSP) e de Jânio Quadros e sua mística apartidária. O crescimento do PTB, identificado com as massas urbanas, foi contínuo, chegando a ultrapassar a UDN e a se aproximar do majoritário PSD em 1962. Esse crescimento pôs em xeque o papel do Congresso como um freio conservador do Executivo inovador, acabando por se tornar uma das causas que desaguariam na reação conservadora e no golpe de 1964. Essa reação esboça-se desde 1945, com a ampliação da participação. As pressões para a efetivação de uma democracia de massas passaram a assustar a cada vez mais as oligarquias e as classes médias, temerosas de perder o seu poder de barganha política com a ascensão popular. As resistências à incorporação maior das massas se refletiram na proibição do voto dos analfabetos que, se fosse permitido em 1945, alteraria radicalmente o sentido e a forma de atuação do sistema políticoeleitoral brasileiro. As reações adversas das elites nacionais e de boa parte das classes médias (representadas basicamente pela UDN), acabaram por provocar o ambiente de instabilidade propício ao desferimento do golpe militar26. NOVA CENTRALIZAÇÃO (1964-1985) Com o golpe militar, o Congresso Nacional, antes principal ator no cenário político, deixou de ser a base da legitimação dos governos. Estes passaram a ser legitimados pelo poder militar, conforme foi explicitado pelo Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964. O aval de grupos civis desapareceu gradualmente até o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, quando não era mais necessário. A exclusão da participação no processo eleitoral foi se dando por partes. Em primeiro lugar, suprimiram-se as eleições diretas para a Presidência da República (Ato Institucional nº 2, de 1965), instituindo-se o Colégio Eleitoral, que sacramentaria o próximo general-presidente. Depois, as eleições para o Governo dos Estados (Ato Institucional nº 3, de 1966), deixando-se ao Poder Central a escolha dos Governadores, referendada pelas Assembléias Legislativas. Finalmente, extinguiramse as eleições para Prefeitos das capitais e cidades de “segurança nacional” (Constituição de 1967). A última exclusão ocorreu em 1977, com a criação do “senador biônico” através da Emenda Constitucional nº 8, que determinava que um terço do Senado fosse eleito indiretamente pelas Assembléias Legislativas. O voto não foi totalmente eliminado, continuando a haver eleições para o Legislativo. Entretanto, 26 Octavio IANNI, Estado e Capitalismo, 2ª ed, São Paulo, Brasiliense, 1989, pp. 138, 140 e 148-156; Simon SCHWARTZMAN, São Paulo e o Estado Nacional cit., pp. 109 e 136-162 e Aspásia CAMARGO, ”La Federación Sometida. Nacionalismo Desarrollista e Inestabilidad Democrática” in Marcello CARMAGNANI, (coord.), Federalismos Latino Americanos: México/ Brasil/ Argentina, México, Colégio de México/ FideicomissoHistoria de Las Américas/Fondo de Cultura Económica, 1993, pp. 335-336. instituição toledo de ensino 55 foi desvalorizado enquanto moeda de popularidade e fonte de legitimidade. O poder militar terminou por se legitimar, com os atos institucionais, pela negação do caos, comunismo, subversão ou corrupção, vistos pelos militares como características da democracia do regime deposto. A racionalidade e a eficiência econômicoadministrativa também se tornaram instrumentos de legitimação do regime junto às classes médias. Com os militares, o Governo Central passou a enfeixar uma série de poderes e atribuições, ocasionando forte centralização na esfera da União. O federalismo, praticamente, desapareceu neste período, apesar de nominalmente estar previsto nas Cartas outorgadas de 1967 e 196927. Como modo de matizar a total falta de autonomia dos entes federados, criaram-se eufemismos como o “federalismo de integração”28. A elaboração teórica do “federalismo de integração” é de Alfredo Buzaid, então Ministro da Justiça do General Médici, que considerava o desenvolvimento e a segurança nacional como fundamentos do novo “federalismo”29. Sob o pretexto da “integração nacional”, todos os instrumentos de promoção do desenvolvimento econômico deveriam ser centralizados na esfera da União30. Para Buzaid, o “federalismo de integração” iria além do federalismo cooperativo, atribuindo à União os poderes necessários para dirigir a política nacional, evitar conflitos com as unidades federadas e promover o desenvolvimento econômico com o máximo de “segurança coletiva”31. Realmente, o “federalismo de integração” foi tão além do federalismo cooperativo que praticamente extinguiu o sistema federativo brasileiro, sempre com a justificativa da “segurança nacional”. Em síntese, sob a denominação “federalismo de integração”, procuraram os juristas ligados à ditadura militar esconder a supressão do federalismo naquele período. 27 Com a ditadura militar, através da Reforma Tributária de 1965 e as mudanças posteriores, houve forte centralização de recursos na órbita federal, com diminuição das transferências para Estados e Municípios, tornando-os extremamente dependentes da União. Vide Fabrício Augusto de OLIVEIRA, Autoritarismo e Crise Fiscal no Brasil (1964-1984), São Paulo, Hucitec, 1995, pp. 18, 27-30, 41-48, 61-64, 112-113, 125 e 149-151. Para este autor, apenas com a Emenda nº 23, de 1º de dezembro de 1983, já nos estertores do regime, tentou-se reestabelecer o federalismo fiscal no Brasil in idem, pp. 149-151 e 177-179. Vide também Francisco Luiz C. LOPREATO, "Um Novo Caminho do Federalismo no Brasil?", Economia e Sociedade nº 9, Campinas, Instituto de Economia da UNICAMP, dezembro de 1997, pp. 95-97. 28 Luís Roberto BARROSO, Direito Constitucional Brasileiro: O Problema da Federação, Rio de Janeiro, Forense, 1982, pp. 50-55; José Afonso da SILVA, “Federalismo e Autonomias no Estado Brasileiro (Federalismo Nominal e Federalismo de Regiões)” in I Simposium Internacional de Derecho Constitucional Autonómico, Valencia, 1985, pp. 54-56; Fernanda Dias Menezes de ALMEIDA, Competências na Constituição de 1988, São Paulo, Atlas, 1991, pp. 47-48; Enrique Ricardo LEWANDOWSKI, Pressupostos Materiais e Formais da Intervenção Federal no Brasil cit., p. 21. Vide também Fernando Luiz ABRUCIO, Os Barões da Federação: Os Governadores e a Redemocratização Brasileira, São Paulo, Hucitec/Departamento de Ciência Política da USP, 1998, pp. 70-71. 29 Alfredo BUZAID, O Estado Federal Brasileiro, Brasília, Ministério da Justiça, 1971, pp. 31-34. 30 Cf. Alfredo BUZAID, O Estado Federal Brasileiro cit., pp. 34-38. 31 Alfredo BUZAID, O Estado Federal Brasileiro cit., pp. 40-41. 56 instituição toledo de ensino Apesar de terem sido criados outros órgãos de desenvolvimento regional, como a SUDAM (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), a SUDECO (Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro-Oeste) e a SUDESUL (Superintendência do Desenvolvimento da Região Sul), nos moldes da SUDENE, a experiência iniciada em 1959 foi totalmente desvirtuada. Todos esses órgãos passaram a ser meros garantidores de benesses para oligarquias dóceis e fiéis ao regime, reforçando o clientelismo, a concentração de renda, a estrutura fundiária excludente, em nada contribuindo para a diminuição dos desequilíbrios regionais, antes auxiliando a mantê-los, quando não a agravá-los. Em vários momentos, o regime militar procurou “solucionar” os problemas regionais através de paliativos, como as obras faraônicas desenvolvidas com a construção da Transamazônica, vista pela ditadura como forma de resolver as tensões do hiperpovoado Nordeste com a transferência de mão-de-obra para a pouco povoada Amazônia. DILEMAS E PERSPECTIVAS DO FEDERALISMO COOPERATIVO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Com a redemocratização da década de 1980, abriram-se novas perspectivas para o federalismo brasileiro. A nova Constituição, promulgada em 5 de outubro de 1988, restaurou a Federação desde o seu artigo 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”. A grande inovação foi a inclusão dos Municípios como componentes da Federação. Até 1988, todas as nossas constituições outorgavam governo próprio e competência exclusiva aos Municípios no tocante à sua autonomia, remetendo aos Estados o poder de criar e organizar os Municípios, desde que respeitassem a autonomia assegurada constitucionalmente (por mais que, como vimos, na prática não ocorresse bem assim). Agora as normas instituidoras de autonomia dirigem-se diretamente aos Municípios, pois a Constituição de 1988 deu-lhes também o poder de auto-organização. A consagração desse poder está no artigo 29, que determina a todos os Municípios que elaborem sua própria Lei Orgânica, uma verdadeira Constituição Municipal32. A Constituição de 1988 institui expressamente, em seu artigo 23, o Federalismo Cooperativo, elencando uma série de matérias cuja competência é comum entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Entretanto, prescreve o parágrafo único desse artigo: “Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”. Lei complementar esta que (como a grande maioria das leis complementares previstas na Constituição) até hoje não foi elaborada. As matérias que competem à União, Esta32 Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional, 7ª ed, São Paulo, Malheiros, 1998, pp. 311-322. instituição toledo de ensino 57 dos e Distrito Federal legislar concorrentemente estão no artigo 24, ressalvando-se a limitação da União em estabelecer apenas normas gerais e dos Estados e Distrito Federal de, desde que não contrariem a lei federal, adaptá-las a suas especificidades. Os Municípios não foram situados na área de competência concorrente do artigo 24, que lhes outorgou competência para suplementar as legislações federal e estadual no que lhes couber. A Constituição seguiu a técnica tradicional do direito americano, enumerando as competências da União (e, no nosso caso, dos Municípios também), e deixando aos Estados os poderes remanescentes, de acordo com o artigo 25, §1º. No tocante às desigualdades regionais, a Constituição de 1988, em seus artigos 3º, III, que trata dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, e 170, VII, que enumera os princípios constitucionais da ordem econômica, considera imprescindível a redução das desigualdades regionais e sociais. Cabe também à União articular o desenvolvimento e a redução das desigualdades regionais, através da criação de regiões administrativas, incentivos e da ação de organismos regionais (artigo 43). A existência das regiões poderia ser um avanço na estrutura federalista do país. Entretanto, a sua criação compete exclusivamente à União, sem qualquer participação dos Estados33. Apesar de sua origem e fundamento oligárquicos, como vimos, com a Constituição de 1988, existe a possibilidade de renovação das estruturas federais no Brasil, com sua ênfase na cooperação federativa e na superação das desigualdades regionais. A restauração da Federação foi vista por alguns autores, no entanto, como um ressurgimento do “federalismo estadualista”, sem, no entanto, a formação de um núcleo hegemônico de Estados como na Primeira República. Este “federalismo estadualista” se caracterizaria pelo controle das bancadas de deputados federais pelos Governadores e pela competição predatória entre os Estados por mais recursos, por meio da guerra fiscal34. Discordamos desta avaliação, que acaba vendo na restauração de um sistema federal em que os Estados e Municípios têm poder político efetivo (não apenas nominal) um ressurgimento da “Política dos Governadores”. Há inúmeras falhas no modelo federal implantado com a Constituição de 1988, mas denominar o seu sistema federativo de “federalismo estadualista” é, certamente, um exagero. No entanto, a prática do federalismo sob a Constituição de 1988 tem sido bem diversa do previsto no texto constitucional. Um exemplo, conseqüência direta da falta de uma política nacional de desenvolvimento, é a “guerra fiscal”, travada entre os Estados para a atração de novas indústrias. O único resultado da “guerra fiscal” é o comprometimento ainda maior das já combalidas finanças estaduais. Com a desculpa da geração de empregos, os Governos Estaduais fazem uma série de concessões, reduzindo ainda mais as receitas antes destinadas à realização de políticas 33 Apesar de sua instituição ser de competência da União, as regiões administrativas nunca saíram do papel. Vide Paulo BONAVIDES, Curso de Direito Constitucional cit., pp. 323-326. Para a crítica da solução adotada no artigo 43 da Constituição de 1988, vide Gilberto BERCOVICI, "Constituição e Superação das Desigualdades Regionais" cit., pp. 87-88 34 Cf. Fernando Luiz ABRUCIO, Os Barões da Federação cit., pp. 22-24, 106-108, 170-188 e 226-227. 58 instituição toledo de ensino públicas. Ao invés de investirem na sua população, os Estados passaram a subsidiar empresas (a maioria multinacionais), sob o beneplácito, quando não a cumplicidade (como no caso da transferência de uma fábrica da Ford do Rio Grande do Sul para a Bahia) do Governo Federal35. A crise do endividamento dos Estados, culminada com a decretação, em 1999, da “moratória” do Estado de Minas Gerais, apenas tornou pública a própria crise da Federação no Brasil. De nada adiantam as políticas agressivas de obtenção de mais recursos ou indústrias para as áreas menos desenvolvidas (a “guerra fiscal”), sem que haja uma política de desenvolvimento e reorientação do gasto público em todos os níveis, voltada para a melhoria das condições de vida da população. A solução dos problemas do federalismo brasileiro é política, não meramente técnica36. As constantemente propaladas reformas fiscal e tributária não resolvem o problema fundamental: o modelo de desenvolvimento desejado, sob pena de corrermos o risco real de fragmentação nacional37. A Federação atualmente existente no Brasil está, na realidade, ameaçada, assim como a própria Constituição de 198838. O desafio que se nos apresenta é o de coordenar a cooperação entre a União e os entes federados, como maneira de combater a centralização excessiva e o desmonte do Estado, requisitos essenciais para a manutenção do federalismo e da ordem constitucional democrática entre nós. 35 Vide, especialmente, Andrés RODRÍGUEZ-POSE & Glauco ARBIX, “Estratégias do Desperdício: A Guerra Fiscal e as Incertezas do Desenvolvimento”, Novos Estudos nº 54, São Paulo, CEBRAP, julho de 1999, pp. 55-71. 36 Uma das propostas mais inovadoras de solução institucional dos problemas do federalismo brasileiro, notadamente a questão das desigualdades regionais, é a defendida por Paulo Bonavides: a transformação da Região em ente federativo, consubstanciando uma quarta esfera de governo e de competências. Com a implantação do Federalismo Regional, os Estados e Municípios poderiam se articular de forma a não se manterem tão dependentes da União, interrompendo as tendências centralizadoras dos últimos anos. Vide, especialmente, os artigos reunidos em Paulo BONAVIDES, A Constituição Aberta: Temas Políticos e Constitucionais da Atualidade, com ênfase no Federalismo das Regiões, 2ª ed, São Paulo, Malheiros, 1996. Vide também Gilberto BERCOVICI, "Constituição e Superação das Desigualdades Regionais" cit., pp. 89-93. 37 Tania Bacelar de ARAÚJO, “Planejamento Regional e Relações Intergovernamentais” in Rui de Britto Álvares AFFONSO & Pedro Luiz Barros SILVA (orgs.), A Federação em Perspectiva: Ensaios Selecionados, São Paulo, FUNDAP, 1995, pp. 479-480, 482, 487-488 e 490-491); Wilson CANO, Desequilíbrios Regionais e Concentração Industrial no Brasil, 1930-1995, 2ª ed, Campinas, UNICAMP-IE (Instituto de Economia), 1998, pp. 41-42, 300-301 e 309-310 e Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida, 2ª ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, pp. 12-13. A necessidade de uma articulação entre as várias esferas de governo é destacada por Rui Britto Álvares AFFONSO, “A Federação no Brasil: Impasses e Perspectivas” in Rui de Britto Álvares AFFONSO & Pedro Luiz Barros SILVA (orgs.), A Federação em Perspectiva cit., pp. 67-69 e por Gilberto BERCOVICI, "Constituição e Superação das Desigualdades Regionais" cit., pp. 77-81. 38 Sobre a campanha travada contra a Constituição de 1988 e a sua desfiguração através das emendas patrocinadas pelo Governo Fernando Henrique Cardoso, vide Paulo BONAVIDES, Do País Constitucional ao País Neocolonial: A Derrubada da Constituição e a Recolonização pelo Golpe de Estado Institucional, São Paulo, Malheiros, 1999; Fábio Konder COMPARATO, “Réquiem para uma Constituição”, Revista Trimestral de Direito Público nº 20, São Paulo, Malheiros, 1997, pp. 5-11 e Gilberto BERCOVICI, “A Problemática da Constituição Dirigente: Algumas Considerações sobre o Caso Brasileiro”, Revista de Informação Legislativa nº 142, Brasília, Senado Federal, abril/junho de 1999, pp. 35-51. Breves reflexões sobre a proteção da biodiversidade e do patrimônio genético na constituição dirigente de 1988 Pietro de Jesús Lora Alarcón Advogado em São Paulo, mestre e doutorando em Direito do Estado na PUC-SP, Professor de Direito Constitucional na PUC-SP e na Faculdade de Direito de Bauru INTRODUÇÃO A luta entre os homens pelo domínio da natureza é de longa data, podendo sintetizar-se como o resultado das contradições ocasionadas pelo controle dos recursos que dela provêm. Apesar de antigas, nos últimos quinze anos, as discussões neste terreno começaram a ir além da tradicionais controvérsias causadas pela aparente dicotomia entre desenvolvimento industrial e proteção do meio ambiente, para converter-se em uma polêmica que envolve aspectos como genética e biotecnologia, constituindo hoje a questão ambiental uma esfera particular de relacionamento entre os Estados. Assim, no crepúsculo do século XX, podem observar-se nas fronteiras das ordens política e jurídica, posturas diferenciadas com relação à preservação e finalidades de uso da biodiversidade e do patrimônio genético, especialmente entre os que pretendem incorporar tais bens à lógica do mercado, e os que consideram que estes recursos, propriedade dos povos em cujo território se encontram, devem ser alvo de proteção especial pela normatividade jurídica, levando-se em conta, dentre outros, argumentos de soberania, do superlativo peso que adquire na orbita inter- instituição toledo de ensino 60 nacional o Estado proprietário desta riqueza, no marco das negociações políticas, e pela abertura da possibilidade real de desenvolvimento econômico estrutural. Acreditamos que no Brasil as reflexões da Ciência do Direito sobre este interessante embrulho são por demais pertinentes, dado que com a promulgação da Carta Magna de 1988, a preservação da biodiversidade e do patrimônio genético incorporou-se ao direito constitucional, ligando-se intimamente a dispositivos que se ocupam da organização dos elementos essenciais do Estado e, especialmente, os voltados à defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana. De igual forma, é obrigação de quem realiza estudos constitucionais, comprometer-se com uma caracterização do modelo de Estatuto Fundamental que consagra o tema sobre o qual deseja discorrer. No caso, dentre as diversas classificações oferecidas pela doutrina, temos optado por tentar demonstrar que a Constituição Federal de 1988 é uma Constituição dirigente, para, posteriormente, debruçar-nos por sobre as implicações que traz este modelo constitucional para a preservação da biodiversidade e do patrimônio genético. 1. AS CONSTITUIÇÕES DIRIGENTES A ordenação sistemática das constituições, segundo as semelhanças e característicos comuns, diferenças e particularidades, tem sido um exercício freqüente pela doutrina jurídica. A intenção é de apresentar classificações que facilitem a compreensão do conteúdo das Cartas Magnas. Assim, fala-se em constituições escritas e não escritas, conforme estejam reduzidas a um único texto ou, pelo contrário, constem de vários textos esparsos, sedimentados nos costumes seculares dos povos; constituições rígidas, flexíveis e semirígidas ou semi-flexíveis, observando-se a maior ou menor dificuldade para a modificação de suas normas, tendo como parâmetro o processo de elaboração das leis ordinárias; promulgadas e outorgadas, a partir da análise da participação popular no seu processo de elaboração.1 Na verdade, examinado atentamente, o sentido histórico do vocábulo constituição, como conjunto de normas organizadoras da sociedade política, pode conduzir, e infelizmente observamos isto com relativa freqüência - , a um reducionismo indesejável entre a idéia de Lei Fundamental como instrumento formal e processual de garantia para o exercício das liberdades públicas ou direitos humanos e a de registro momentâneo do equilíbrio do conjunto de forças econômicas e sociais que interagem na luta pelo poder do Estado (constituição como soma dos fatores reais de poder).2 1 José Afonso da Silva em seu Curso de Direito Constitucional Positivo, apresenta vários modos de classificar as constituições, advertindo não haver uniformidade de pontos de vista sobre o assunto. Consulte-se a 18a edição, revista e atualizada nos termos da reforma constitucional. Malheiros. P. 42-44. 2 LASALLE, Ferdinand. Que es una Constitución. 2a ed. Bogotá: Temis, 1997. P. 35 e subs. instituição toledo de ensino 61 Na doutrina portuguesa, José Joaquim Gomes Canotilho, aborda o assunto, manifestando : “A fundamentação da ordem jurídica da comunidade pode limitar-se à definição dos princípios materiais estruturantes (princípio do Estado de Direito, princípio democrático, princípio republicano, princípio da socialidade, princípio pluralista) ou estender-se à imposição de tarefas e programas que os poderes públicos devem concretizar (...) Da articulação destas várias funções se deduzirá que o problema da constituição não é hoje o de escolher entre uma constituição-garantia (ou constituição quadro) e uma constituição dirigente (ou constituição programática), mas o de optimizar as funções de garantia e de programática da lei constitucional”3 O conceito de Constituição dirigente foi aprofundado pelo mesmo Canotilho em sua tese de doutorado, intitulada "Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador - contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas", onde pergunta-se: "Deve uma Constituição conceber-se como 'estatuto organizatório', como simples 'instrumento de governo', definidor de competências e regulador de processos, ou, pelo contrário, deve aspirar transformar-se num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e define fins?"4 Destarte, a opção jurídico-política por reformular o conteúdo constitucional, de maneira que não apareçam tão somente critérios padronizados, como a consagração dos elementos estruturais do Estado acompanhada de uma declaração, que pode ser curta ou prolixa, de direitos fundamentais, senão também de uma redação que procure, oriente e dirija uma interação entre povo e Estado, na qual se determinam finalidades específicas e, em conseqüência, tarefas, planos e programas a seguir, é a que identifica às constituições dirigentes. Neste sentido, o povo soberano, neste tipo de Cartas, atuando como constituinte primário, expressa seus valores finalísticos, outorgando razão de ser ao Estado. Tais valores, exprimidos como fins e tarefas, quando efetivados, outorgam a dignidade e o reconhecimento da legitimidade à constituição. Assim, a constituição reproduz um conjunto de valores e dela se cobra sua legitimidade.E, também por isso, as constituições tem um espírito, uma ideologia, fortemente cimentada nas finalidades constitucionais.5 3 CANOTILHO, JJ Gomes. Direito Constitucional. 6a ed. Revista. Almedina: Coimbra. 1993. P.74 CANOTILHO, JJ Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra. 1994 P. 11. 5 “Se o território e o povo representam os elementos materiais do Estado e o poder de império do Estado representa o seu elemento formal, a finalidade constitui o seu elemento espiritual, fazendo-o viver no tempo em um contínuo trabalho para atingir metas cada vez mais altas” diz Alexandre Groppali em sua Teoria do Estado. São Paulo. Saraiva. P. 141. 4 62 instituição toledo de ensino Indubitavelmente, estas considerações vão influenciar na interpretação da constituição, porque além do intérprete não ser uma figura neutra no contexto da tarefa hermeneútica, a constituição, como produto dos valores finalísticos do povo, também não é neutra, senão comprometida com um projeto visível do justo comum e de direção justa.6 Logicamente, a Constituição é e deve ser entendida como uma unidade de sistema, um todo harmônico no plano técnico-jurídico, onde os fins do Estado, precisamente, outorgam sentido integral. De maneira que parece-nos não ser possível, nos limites da Constituição dirigente, fazer um exercício de interpretação longe das expectações criadas pelo próprio povo, constituinte primário, e inseridas no corpo constitucional. Com a Constituição dirigente, o sentido de unicidade e harmonia constitucional ganha espaço sob o manto da finalidade, em um processo de recuperação da razão de ser do Estado, que no sentido de Alexandre Groppali, como afirma Dalmo de Abreu Dallari, se sintetiza no chamado bem comum.7 O conceito de bem comum varia conforme as categorias de tempo e espaço. Causa final da sociedade política, consiste na plena realização espiritual e física do homem. Isto, obviamente, implica que o Estado se preocupe permanentemente pela criação e recriação de condições econômicas, sociais, culturais, ambientais e de toda ordem, que garantam a justiça e a dignidade necessárias para o desenvolvimento humano. Este é precisamente o mandato da Constituição dirigente. Logo, então, uma “crise constitucional” de legitimidade se instauraria quando ocorresse uma perda ou “déficit” do Estado para responder às demandas populares nestes aspectos, ou seja, quando corre o risco de descumprir o mandato para acelerar a evolução social8. Pode-se afirmar também que a concretização das finalidades e imposições da constituição dirigente exigem uma participação popular a grande escala e simultaneamente uma presença do Estado na economia e na sociedade sem antecedentes na história.9 Em tempos de globalização, não teria jamais cabimento, conceber as constituições como mero instrumento de governo, porque a vinculação deste teria sentido apenas como exigência de regularidade a “formas” e “processos” constitucionalmente plasmados10. Para a Constituição dirigente, a liberdade, os fatores que ocasionam o crescimento econômico, a distribuição justa da renda, a proteção do meio ambiente, as 6 CANOTILHO, JJ Gomes. Constituição Dirigente... P. 474 DALLARI, Dalmo de Abreu. Teoria Geral do Estado. São Paulo. Saraiva: 1996. P. 20 e subs. 8 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 3a ed. São Paulo: Malheiros. 1995. P.219 9 Ibid. P. 219. 10 CANOTILHO, JJ Gomes, Constituição Dirigente...P.476 7 instituição toledo de ensino 63 garantias sociais e os instrumentos de defesa destas garantias, são valores transcendentes. O anterior permite assinalar que é através das constituições dirigentes que vislumbra-se a perspectiva de atingir um Estado Democrático de Direito, na prática. Sendo assim, a constituição dirigente transforma-se em ferramenta para resolver os problemas do ser humano, de forma que conceitos como povo, cidadania, dignidade da pessoa humana, bem-estar, dever do Estado, que aparecem regularmente em singulares planos constitucionais de abstração, se ligam a outros como ordem econômica, ordem social, direitos culturais, direito ao meio ambiente, aterrizando o Estatuto Fundamental ao homem comum, na sua cotidianidade. Entretanto, não podemos cair em um cego otimismo, que descuide um outro fenômeno, caríssimo as constituições dirigentes: a efetividade das suas normas. A Constituição adquire força normativa na medida em que se efetiva. E isto depende de possibilidades e limites de sua realização no amplo contexto de interdependência na qual se insere esta pretensão.11 As dificuldades começam pela pressão contra a função promocional da Constituição, radicalmente antagônica à tese de grau zero das normas constitucionais12. A pesar de difícil, a partir de imposições e mandatos ao Estado, da constituição dirigente emanam figuras que, sem a pretensão de serem ideais, são fruto da preocupação para remediar as conseqüências da inefetividade, nos referimos, entre outras, à ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção.13 Do anterior, deduz-se que uma constituição dirigente não abandona seu papel organizador dos elementos essenciais do Estado, muito pelo contrário, dá sentido teleológico aos tradicionais elementos - soberania, território e povo. Evidente que deve dedicar-se à estruturação do Estado, mas, sua real dimensão e validez no mundo de hoje, parte da orientação progressista que repousa nas suas normas e no convite ao avanço à frente do nosso tempo. 2. A CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE BRASILEIRA DE 1988 A Constituição de 1988 é, sem dúvida, uma constituição dirigente. Com efeito, um estudo detido da sua normatividade revela que não se trata de um mero estatuto jurídico e político, senão que avança no enunciado de metas, planos e programas fins. Quatro elementos bastariam para expressar o caráter dirigente da atual Carta Magna Brasileira: em primeiro lugar, seu preâmbulo expressa, claramente, a motivação do constituinte primário por criar um “Estado Democrático destinado a asse11 HESSE, Konrad. A Força normativa da Constituição. Porto Alegre. Sérgio Antonio Fabris Editor. P.16 JJ Gomes Canotilho. A Constituição Dirigente...P. 474 13 No presente artigo, não é nossa intenção deter-nos no estudo destas duas figuras constitucionais. No entanto nos permitimos recomendar o valioso estudo do Dr. Clèmerson Merlin Clève na sua obra: "A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro". 2a ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT. 2000. 12 64 instituição toledo de ensino gurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, puralista e sem preconceitos...” Em segundo lugar, para a reafirmação do seu conteúdo dirigente, as finalidades constitucionais foram elevadas à categoria de Princípios Fundamentais. Assim, o artigo 3o, constante do Título I da Carta, declara os objetivos do Estado brasileiro, mencionando as intenções de “construir uma sociedade livre justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e ainda, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Em seguida, podemos mencionar, ratificando os elementos da constituição dirigente, que a Lei Maior brasileira destacou Títulos especiais para a Ordem Econômica e Financeira (Título VII) e a Ordem Social (Titulo VIII). Ainda, preocupo-se o legislador constituinte por criar capítulos especiais para o tratamento particular de temas como o desporto (artigo 217), para a comunicação social (artigos 220 a 224), o meio ambiente (artigo 225), os índios (artigos 231 e 232), dentre outras matérias. Por último, as normas de garantias de efetividade constitucional se expressam na ampliação dos legitimados para a propositura de Adin, consagrada no artigo 103, incisos I a IX; na consagração da ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103 parágrafo 2º) e a criação do mandado de injunção (artigo 5º, LXXI) Como se percebe, a Constituição Federal de 1988 passou a ser o Estatuto Fundamental da ordem jurídica, mas também de toda a organização econômica e social brasileira, e com isso, as normas constitucionais vincularam a atividade dos órgãos do Estado e condicionaram toda a interpretação aos pressupostos de finalidade claramente estabelecidos. Descoberta a identidade da Constituição em vigor, passemos agora a verificar os conceitos de biodiversidade e patrimônio genético, temas escolhidos dentre os tantos que consagra o Estatuto Fundamental. 3. A BIODIVERSIDADE E O PATRIMÔNIO GENÉTICO 3.1. Conceitos de biodiversidade e patrimônio genético O conceito de biodiversidade refere-se, no biológico, ao conjunto de seres vivos, animais ou vegetais, não só a nível de organismos, senão também de comunidades e ecossistemas. E, por outro lado, a todo o que é material genético, a um nível intracelular (genes, cromossomos ...). Atualmente a este conceito se incorpora o de biodiversidade cultural, que corresponde às etnias e subculturas"14 14 HERNANDES, Jorge. "Biodiversidad, la forma del destino". Revista Prisma, ano IX, número 45, III-IV, trimestre 1993, Bogotá. P. 63. instituição toledo de ensino 65 Celso Antonio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria, lecionam que "Biodiversidade é a diversidade da vida, tanto para existência do planeta como para a sobrevivência do ser humano e este, enquanto foco principal dessa diversidade, hoje - e mais do que em todos os tempos - é o maior responsável pela sua preservação e pela manutenção da vida para o futuro da humanidade"15 De outro lado, o conceito de patrimônio genético está intimamente ligado ao de biodiversidade, pois patrimônio genético consiste em toda a gama de recursos envolvida com a variação e hereditariedade de todos os organismos vivos, ou seja, que fazem parte da própria biodiversidade.16 A Medida Provisória No. 2052 de 29.06.2000 que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético define este como: “informação de origem genética, contida no todo ou em parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, em substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticada, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional , na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva”.17 O estudo do patrimônio genético possui importância universal devido às possibilidades que as descobertas no campo da biotecnologia podem gerar para facilitar a solução dos problemas mais caros ao ser humano, dentre eles os relativos à compreensão e prevenção de doenças.18 Da análise conceitual dos temas em estudo, observe-se que o ser humano é ponto de convergência, como espécie de vida que faz parte do ecossistema e interage junto a ele. Nos marcos de uma Constituição dirigente, o enfoque da proteção da biodiversidade e do patrimônio genético, que tem como origem, meio e fim, o ser huma15 CF. Biodiversidade e patrimônio genético. São Paulo: Max Limonad. 1999. P. 22. THOMPSON McINESS, Willard. Genética Médica. 5a ed. Rio de Janeiro. Guanabara&Koogan. 1991. P. 2 17 Condições “in situ” são as “condições em que recursos genéticos existem em ecossistemas e habitats naturais e, no caso de especies domesticadas e cultivadas, nos meios onde tenham desenvolvido suas propriedades características”. Conservação “ex situ” é a “conservação de componentes da diversidade biológica fora de seus habitats naturais” A propósito, consulte-se a Leon Frejda Szklarowsky. Comentários à MP No. 2052 . Revista Consulex.- Ano 4 – Vol II – No. 43- Julho /2000. P. 30-34. 18 THOMPSON. Ob. Cit. P. 3 e subs. 16 66 instituição toledo de ensino no, nos permite trabalhar com segurança, pois, como sabemos, uma teoria democrática do Estado e da constituição não pode erigir-se sobre a base de uma estrutura fria do Estado, eminentemente formal, mas apenas no homem, na sua situação social e política, no problema do que é que lhe pode ser oferecido e do que é que dele se pode esperar.19 Todavia, a preservação da biodiversidade é tradicionalmente observada como o ângulo oposto ao desenvolvimento econômico do homem. Se bem é certo que o futuro de muitos elementos naturais que proporcionam condições para este desenvolvimento passam pelo uso racional da biodiversidade, na atual fase histórica, como veremos posteriormente, este uso vai determinado pelas formas de organização social, pelas regulações jurídicas de cada Estado, e pelos esquemas internacionais de dominação política de Estados economicamente mais poderosos. 3.2. A riqueza brasileira e a importância da biodiversidade e do patrimônio genético Não pretendemos fazer um estudo pormenorizado da biodiversidade brasileira. No entanto, é conveniente conhecer alguns índices importantes sobre o assunto, que justifiquem a necessidade de aborda-o com a maior delicadeza técnico-jurídica e ao mesmo tempo com o vigor necessário fornecido por uma constituição dirigente. Segundo Simone Sholze, assessora do CNTBio no trabalho "Das Leis de Propriedade Intelectual à Legislação de Biossegurança: as oportunidades da Biotecnologia e da Biodiversidade Brasileiras", os dados coletados sobre este tema no Brasil apontam ao seguinte: a) a floresta tropical úmida - que cobre aproximadamente 7% do planeta - contém, segundo estimativas, cerca de 50% da biodiversidade mundial; b) aproximadamente 70% da diversidade biológica da Terra encontra-se em 12 países: os países da megadiversidade: Brasil, Colômbia, Equador, México; Peru; China; Índia; Indonésia, Malásia, Madagascar, Zaire e Austrália. c) Estima-se que de 10% a 20% do número total de espécies do planeta estejam em Brasil; esse percentual sobe para 30% para as espécies vegetais. d) Dos produtos farmacêuticos atualmente vendidos nos EUA, estima-se que 25% sejam derivados de plantas. e) O valor do mercado mundial de produtos farmacêuticos fruto da biotecnologia é estimado em US$150 bilhões. f ) O mercado mundial de produtos farmacêuticos em 1994 chegou a US$ 345 bilhões, e estima-se que cerca de 40% dos medicamentos receitados sejam derivados de recursos naturais, sendo que a maioria desses seja de origem mais microbial de que botânica ou marinha. 19 SMEND in Deutsche Staatrechtswissenschfat, citado por CANOTILHO. A Constituição Dirigente...P. 31 instituição toledo de ensino 67 g) Sete países (EUA, Japão, Inglaterra, Alemanha, Suíça, França e Itália) respondem por aproximadamente 80% dos investimentos em P&D na área farmacológica. h) A maioria desses países concede incentivos fiscais para a indústria de base biotecnológica (EUA, Japão, Inglaterra, Alemanha, França, Canadá, Taiwan e Austrália). Nos Estados Unidos, a renuncia fiscal pode chegar aos 80% do valor dos investimentos empresariais em P&D em biotecnologia. Em conseqüência dos incentivos fiscais, os investimentos privados em P&D dobraram de 1980 a 1986, alcançando cerca de US$60 bilhões no período. i) Adicionalmente aos investimentos privados e à renuncia fiscal, apenas em 1990 o governo federal dos EUA investiu cerca de US$3,5 bilhões em P&D em biotecnologia. j) Em termos de estrutura e dimensão, os Estados Unidos dispõem da maior e mais diversificada indústria biotecnológica. A Ernst&Young estima que há mais de 1.300 empresas de biotecnologia nos Estados Unidos e aproximadamente 500 na Europa, sendo que dessas um terço é da Inglaterra. i) Cerca de 70% das empresas norte-americanas atuam na área da saúde e 8% na área agrícola; 16% das européias está envolvidas em pesquisa agrícola e 20% em química e aplicações ambientais, contra 9% das norte-americanas".20 Deduz-se do quadro apresentado que os recursos da biodiversidade estão hoje de um lado do planeta. E, de outro, estão os recursos biotecnológicos e os investimentos. Também parece válido afirmar que o quadro mostra uma relação direta e profunda entre a biodiversidade, o patrimônio genético e diversos setores da economia de um Estado. Isto é , questões como agricultura, geração de energia e produção de medicamentos dependem da biodiversidade, especialmente da diversidade genética do país. Por isso, não é absurdo expressar que a dependência ou independência do Estado, pode estar mediada pela forma como utilize e aproveite os elementos de sua biodiversidade. Assim impõe-se, naturalmente, para o Estado brasileiro, inventariar sua própria biodiversidade, conhecer seus domínios nesta área, e, desde logo, facilitar a compreensão da importância que tem para o conjunto do povo, ligando este conhecimento à ordem econômica e social do Estado, instigando o tratamento jurídico do tema, suscitando debates e experiências, harmonizando suas ações com as finalidades estabelecidas na Constituição dirigente brasileira.21 20 NASSIF, Luis. O Protocolo de Biossegurança. Folha de São Paulo. 19.01.2000. Seção 2-3. É importante mencionar o Seminário de Consulta da Biodiversidade na Amazônia, realizado em Macapá em setembro de 1999, que desenvolveu um mapa onde sinalizou 378 áreas para proteção da biodiversidade, das quais 64 têm total prioridade para a criação de novas unidades de conservação, como parques de florestas nacionais. As 64 áreas somam 586 mil quilómetros quadrados. As conclusões do Seminário apontam para a criação de uma reserva de 19,5% da maior floresta tropical do Mundo, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Ao respeito consulte-se o jornal Folha de São Paulo, 19.01.2000. Seção Ciência. P.8. 21 68 instituição toledo de ensino 3. A PROTEÇÃO DA BIODIVERSIDADE E DO PATRIMÔNIO GENÉTICO NA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE DE 1988 Temos visto, até este ponto, como a Constituição Dirigente coleta o conjunto de intenções populares, revestindo-se, em conseqüência, de um sentido histórico especial, do qual decorre ainda, sua legitimidade. Com relação à biodiversidade e ao patrimônio genético, podemos concluir, até o presente, que é tema estimulante e abrangente, e como veremos em breve, envolve aspectos de perpetuação da espécie humana; da soberania nacional; dos limites do direito de propriedade, e outros não menos relevantes. Nesta parte final, abordaremos a confluência entre o caráter dirigente da Constituição de 1988 e a proteção da biodiversidade e do patrimônio genético. Começaremos por lembrar que universalmente a preservação da biodiversidade em patamar constitucional aparece no seio da proteção do meio ambiente, num salto de qualidade na evolução dos direitos fundamentais, junto aos chamados direitos de solidariedade.22 Ressalte-se que é precisamente o caráter progressivo dos direitos fundamentais o elemento ampliador do espectro de reconhecimento dos seus titulares. Desta forma, atravessando séculos de história, verifica-se a passagem de uma significação individual e social, a dos direitos chamados de 1ª e 2ª geração, a uma visão mais totalizadora, direitos de cujo titular somos, simplesmente, todos, agrupamentos inteiros de indivíduos. Assim, a Constituição da Iugoslávia de 1974 incorporou a proteção do meio ambiente no seu artigo 192; também a Constituição Grega de 1975, no seu artigo 24, I , a Constituição portuguesa de 1976, no seu artigo 66, e a espanhola de 1978, no seu artigo 45, prestigiaram este novo direito.23 No Brasil, antes da Constituição Federal de 1988, foi editada a Lei 6.938 de 31.08.81, que traçou a Política Nacional do Meio Ambiente e que outorgou, no seu artigo 14, legitimação ao Ministério Público da União e dos Estados, para propor ação de responsabilização civil por danos causados ao meio ambiente. Um outro antecedente normativo importante o constitui a edição da Lei 7.347 de 24. 07.85, que disciplinou a ação civil pública como instrumento para defesa do meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos. A pesar destes valiosas ferramentas, a estratégia integral de proteção do patrimônio da biodiversidade brasileira inicia-se com a promulgação da Constituição dirigente de 1988. 22 Sobre esta evolução, consulte-se a transcrição da conferência ministrada pelo Dr. José Alcebíades de Oliveira Júnior “Uma concepção jus-filosófica do conceito de cidadania” in América Latina: Cidadania, desenvolvimento e Estado. Porto Alegre. Livraria do Advogado. P. 211-215 23 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 3a ed. São Paulo. Saraiva. 1999. P. 62-63 instituição toledo de ensino 69 É após a promulgação da Carta Magna, que se desencadeia o processo de reordenação do setor público ambiental, se cria o Ministério do Meio Ambiente e começam a edificar-se as colunas jurídicas mais relevantes para o Brasil assumir o desafio da preservação, nas fronteiras de uma estratégia nacional de proteção à biodiversidade e ao patrimônio genético. Destarte, a Constituição consagrou no artigo 225, parágrafo 1o, inciso II a proteção destes dois bens, no marco de capítulo especial dedicado ao meio ambiente, dentro do Titulo VIII, denominado Da Ordem Social. Diz a norma: Artigo 225: Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Par. 1O - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público I- (...) II- preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético O caput do dispositivo incorpora dois princípios jurídicos básicos recomendados pela Comissão de Peritos a Serviço da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - CMMAD - para orientar a tutela legal do meio ambiente, quais sejam, o de reconhecer que estamos perante um direito humano fundamental - Todos os seres humanos têm o direito fundamental a um meio ambiente adequado à sua saúde e bem-estar - em segundo lugar, a igualdade entre as gerações - os Estados deverão conservar e utilizar o meio ambiente e os recursos naturais para benefício da presente e das futuras gerações...24 O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que constitui o plano macro da proteção à biodiversidade e ao patrimônio genético, visto como direito fundamental, é direito de natureza análoga aos do Título II da Constituição Federal. Observamos, então, no artigo 225 da Carta, um dispositivo declaratório, que tem sua efetividade assegurada no mesmo patamar constitucional, por força do inciso LXXIII do artigo 5o , que consagra a ação popular, arma jurídica a serviço de qualquer cidadão, que pretenda anular ato lesivo ao meio ambiente. Revela-se, por ser direito fundamental, cujo titular somos “todos”, na feliz expressão do constituinte primário, o direito ao meio ambiente como direito difuso. 24 Lourenço Agostini de Andrade, A Tutela do Meio Ambiente e a Constituição. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul - AJURIS, 45, Ano XVI-1989, Março, pp.76/77 70 instituição toledo de ensino Na verdade, detecta Celso Antônio Pacheco Fiorillo, foi com o advento da Lei Federal 8.078/90, - Código de Defesa do Consumidor - que firmou-se o exato conceito de interesses difusos ou direitos difusos.25 Com efeito, o CDC expressa no seu artigo 81, parágrafo único, I: "...Interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para os efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato". Manifesta com propriedade o Prof. Fiorillo que os interesses ou direitos difusos são "transindividuais, ou seja, são direitos com uma dimensão coletiva, não unicamente individual, transcende esta fase de tutela e se dirige a tutelar o coletivo; são indivisíveis, ou seja, a satisfação de um implica, por força a satisfação de todos, assim como a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade; seus titulares são pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato, ou seus titulares são toda uma categoria de indivíduos unificados por uma situação, um fato" 26 Com relação ao tema, Kazuo Watanabe adverte como "Na prática, os operadores do direito tem fragmentado os interesses ou direitos 'difusos' (...), atribuindo-os apenas a um segmento da sociedade, como os moradores de um Estado ou de um Município. Assim agindo desnaturam por completo a 'natureza indivisível' dos interesses ou direitos transindividuais, atomizando os conflitos, quando o objetivo do legislador foi de submetê-los à apreciação judicial na sua configuração molecular, para assim se obter uma tutela efetiva e abrangente".27 Assim, visto que o direito fundamental ao meio ambiente é um direito tipicamente difuso, goza então de transindividualidade e indivisibilidade, ou seja, é insusceptível de fracionamento. 25 Cf. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no direito processual civil brasileiro. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1995. P. 93. 26 Ibidem. P.93. 27 WATANABE, Kazuo. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos autores do anteprojeto. 4a ed. São Paulo. Editora Forense. P.503 instituição toledo de ensino 71 Pois bem, voltando a nossa Constituição Dirigente de 1988, esta adaptou o direito difuso ao meio ambiente a uma mentalidade jurídica de vanguarda, progressista, convertendo a natureza, a biodiversidade e o patrimônio genético em bens jurídicos, que podem ser usados por todos os brasileiros, conforme os princípios e finalidades que ela consagra. Destarte, partindo da Ordem Social, a proteção constitucional destes bens liga-se logicamente à proteção do direito à vida, ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao direito ao desenvolvimento, ao tempo que se infiltra no domínio de campos como o da Ordem Econômica estabelecida pelo Estatuto Fundamental Como já relatado, o ponto de unidade entre a Constituição Dirigente e a proteção da biodiversidade e do patrimônio genético é o zelo com o ser humano. A Constituição Federal, já no artigo 1o, inciso III, nos demonstra esta preocupação com o homem, quando coloca como fundamento do Estado Democrático de Direito a “dignidade da pessoa humana”. Com efeito, não é possível, no marco de uma Constituição Dirigente como a Brasileira de 1988, que expressa tão valioso vector, despojar o homem , a pessoa humana, de seu caráter de ser atuante para a eficácia do direito, mas também de objeto onde se deve plasmar a efetividade do princípio. É dizer, a dignidade da pessoa humana não é um simples postulado, nem uma redução antropológica indesejável, senão que deve ser o resultado da concretização dos fins da Constituição Dirigente, seu triunfo efetivo. A preservação das formas de vida, dentre elas da própria vida humana, e das características que podem modificar-se ou variar-se com o passo dos ciclos de gerações, bem como os avanços biotecnológicos, devem respeito a este alicerce constitucional de dignidade do ser humano. Por isso, a hermenéutica constitucional em relação à proteção da vida, levará em conta o pressuposto orientador da dignidade. Neste diapasão, simultaneamente, a Constituição Dirigente obriga ao legislador infra-constitucional à construção de um sistema jurídico de garantias para a qualidade de vida do povo brasileiro, que ademais, deverá estar informado dos avanços do uso da sua biodiversidade e patrimônio genético. Note-se, ainda, que o fato do constituinte tutelar o meio ambiente, e com ele a biodiversidade e o patrimônio genético, no Título Constitucional referente à Ordem Social, determina claramente uma conotação de forte conteúdo humanístico. É mister ressaltar que em perfeita consonância com o exposto, a Constituição Dirigente promulgada em 1988 já ocasionou uma mudança de interpretação em toda a disciplina jurídica do meio ambiente, incluindo a biodiversidade e o patrimônio genético, quando observamos que o conceito de meio ambiente trazido pelo artigo 3º da Lei N. 6.938 de 31 de agosto de 1981, peca pela sua insuficiência. Com efeito, a Lei feita sob o império da Constituição de 1967 define o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, obriga e rege a vida em todas as suas formas". 72 instituição toledo de ensino Percebe-se que o conceito de meio ambiente, desenvolvido antes da Carta de 1988 não guarda relação nenhuma com o tratamento constitucional de hoje, precisamente porque não apresenta o centro da problemática ambiental, ou seja, o aspecto humano, e, por derradeiro, o aspecto social.28 No que concerne a este componente social, vale a pena tecer alguns comentários. É que a Constituição Dirigente de 1988 escolheu a proteção da biodiversidade e do patrimônio genético como indispensável instrumento do desenvolvimento econômico, o que, sem dúvida, tem repercussões de imediato no bem-estar da população. De início, é prudente mencionar o artigo 3o da Carta Magna, que, como sabemos, expressa as finalidades do Estado Brasileiro, dentre elas, nos incisos II e III, as de “garantir o desenvolvimento nacional” e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Pois bem, a compreensão exata da conexão entre a proteção à biodiversidade e ao patrimônio genético descansa na íntima e histórica relação entre riqueza natural e desenvolvimento. Hoje, mais da metade da economia mundial tem por base a utilização das espécies selvagens na agricultura, medicina e indústria. Os benefícios do turismo, do qual dependem numerosas ilhas do Mundo e que também constituem fonte de renda de muitos Estados- membros da federação brasileira, são impossíveis sem a natureza viva. Levando em conta estes pressupostos, o legislador constituinte elevou a proteção do meio ambiente a princípio geral da atividade econômica. Diz o artigo 170 da Constituição da República: Art. 170.- A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) VI – defesa do meio ambiente. (...) A importância da inserção deste elemento no elenco de princípios salta à vista para a preservação da biodiversidade, posto que por meio do desenvolvimento econômico fomenta-se o incentivo às pesquisas científicas para aprimoramento dos produtos resultantes das atividades exercidas.29 28 Pertinente, então, a crítica de Paulo de Bessa Antunes: "O conceito estabelecido na Lei da Politica Nacional do Meio Ambiente - PNMA merece crítica pois, como se pode perceber, o seu conteúdo não está voltado para um aspecto fundamental do problema ambiental que é, exatamente, o aspecto humano. A definição legal , considera o meio ambiente do ponto de vista puramente biológico e não do ponto de vista social que, no caso, é fundamental". Direito Ambiental. 2a ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro. Lumen Juris. P. 44. 29 Celso Antônio Pacheco Fiorillo e Adriana Diaféria. Ob. Cit. P. 25. instituição toledo de ensino 73 Uma outra questão de singular interesse para o mundo jurídico é a problemática da propriedade por sobre a biodiversidade e o patrimônio genético. A Constituição anexou ao mandato de preservação a idéia de que o meio ambiente é bem de "uso comum do povo". Sobre o particular, parece-nos que a Constituição Dirigente em vigor, no intuito do resguardo das finalidades estabelecidas no artigo 3o, rompeu com o entendimento tradicional de bens considerados públicos ou privados. Em outras palavras, que audaciosamente criou um outro tipo de bem, abrindo espaço a uma determinante, e sem dúvida, polêmica evolução nesta esfera do Direito. A lição de Pacheco Fiorillo merece ser transcrita: "O Direito Constitucional brasileiro criou em terceiro gênero de bem, denominado 'bem ambiental’. A característica fundamental desse bem ambiental é que ele envolve uma nova filosofia, concepção dos profissionais do Direito em face de sua estrutura. É um bem no qual as pessoas não se atrelam por meio do instituto da propriedade. A propriedade é baseada na idéia, tanto no campo público quanto no campo privado, de usar, gozar, fluir, dispor e fazer o que se bem entende a respeito daquele bem fundamental. Nosso legislador trouxe uma composição nova e importante a respeito da tutela do direito fundamental. Estabeleceu pela primeira vez um bem que não tem estrutura de propriedade e desatrelou um dos requisitos de instituto de propriedade, que é o uso, para vinculá-lo ao bem ambiental como de uso comum do povo, estabelece que o povo tem possibilidade de utilizá-lo, mas jamais de fazer dele uma estrutura de propriedade".30 Neste compasso, parece possível construir uma perspectiva jurídica que deslinde ao homem, pelo menos neste plano da biodiversidade e do patrimônio genético, da idéia de propriedade privada, que, em séculos de institucionalização em outras áreas, ainda não conseguiu demonstrar que tenha cobertura e mobilidade suficiente para conduzir ao bem-estar da humanidade. É sintomático que a Constituição Dirigente de 1988 inaugure esta nova forma de analisar o fenômeno da propriedade no caminho exato da proteção da vida das presentes e das futuras gerações. Prosseguindo nossa análise, o dispositivo do parágrafo 4º do artigo 225 qualificou como patrimônio nacional a várias regiões do vasto território do Estado Federal, a saber: a Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira. 30 Cf. Direito Ambiental Internacional e Biodiversidade. Revista CEJ. Brasília. N. 8. Maio/agosto 1999. P. 163 instituição toledo de ensino 74 Nos marcos da Constituição Dirigente, o conceito de patrimônio nacional se vincula à idéia de soberania. Paulo Bessa pensa tratar-se de mais "um conceito indeterminado, que deverá ser preenchido caso a caso; levando-se em consideração o conjunto de princípios que informam a própria Lei Fundamental. Eventualmente, em matéria ambiental, o sentido de patrimônio nacional implica em que há restrições à livre utilização dos recursos naturais, na medida em que esta utilização possa vir a ser gravosa para a natureza e a sociedade, independentemente da titularidade dos bens considerados isoladamente"31 Convenha-mos em que o elenco do patrimônio nacional do artigo 225, parágrafo 4º é meramente exemplificativo, ou seja, não é possível retirar a possibilidade de que outras regiões que apresentam características similares sejam também consideradas patrimônio nacional. Evidentemente que esta qualidade faz pensar em uma política especial de proteção, condizente com o cuidado à soberania plena do Brasil. Na verdade, o elenco de regiões estabelecido pela Constituição Dirigente em vigor, reforça o mandato de preservação da biodiversidade e do patrimônio genético, posto que estas zonas, não por coincidência, são de inestimável riqueza biológica. Didaticamente, unindo as expressões constitucionais “uso comum do povo”, e “patrimônio nacional” podemos inferir a necessidade de elaborar regras jurídicas sobre dois aspectos de relevância: em primeiro lugar, sobre o uso individual dos elementos da biodiversidade e do patrimônio genético e a necessária proteção que deve oferecer o Estado brasileiro a esta riqueza, que é de todos. Em segundo lugar, sobre a utilização que podem fazer os Estados com capacidade tecnológica para explorar a biodiversidade e o patrimônio genético presentes no território, e as utilidades para o povo, soberano destes bens. De fato, a discussão apresenta duas órbitas. De um lado, o povo soberano, em perfeito exercício de seu poder constituinte, determinou que o direito de propriedade, com suas limitações, são o cerne do modelo econômico-social do Estado Brasileiro. Assim se desprende do artigo 5o, incisos XXII, XXIII, XXIV, XXV. Entretanto, a biodiversidade e o patrimônio genético e, em geral, os bens ambientais, são de uso comum dos indivíduos membros do povo, consagrando evolução que estabelece distinção entre a propriedade do solo e a propriedade por sobre a biodiversidade. Confirmando o entrelaçamento conceptual, a Constituição Dirigente orientou um uso equilibrado da riqueza ambiental brasileira. E o fez para interferir na prote- 31 Paulo de Bessa Antunes. Ob. Cit. P. 45 instituição toledo de ensino 75 ção da vida e a dignidade da pessoa humana. Isto se comprova pela evidente harmonia entre o artigo 3o , que trata dos objetivos do Estado, o artigo 193, que inaugura as disposições gerais do Título VIII – da Ordem Econômica e Social – onde se determina que “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”, e o próprio artigo 225. Ora, já sabemos que com relação à biodiversidade e ao patrimônio genético, como bens ambientais, existe o uso, limite constitucional ao direito fundamental de propriedade estabelecido no artigo 5º, XXII. É que, como ensinam Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes, os direitos fundamentais não são absolutos.32 Sendo assim, o uso do ar e da água, que propiciam a vida, não se consolida como direito pleno de propriedade, porque bens comuns ao povo. Também entram aqui, exemplificativamente, o respeito aos direitos dos outros considerados tradicionalmente "proprietários". O entendimento obriga rever toda a legislação relativa às regras de vizinhança, a proteção da saúde pública e em geral as decorrências normais do direito de propriedade. De outro lado, atendendo à soberania externa, o povo brasileiro, exclui qualquer interesse de povo estrangeiro com relação ao domínio de sua biodiversidade e patrimônio genético. No plano do recente Direito Constitucional Internacional, resulta indiscutível que as exigências de proteção à biodiversidade e ao patrimônio genético recolocam a dificuldade de equacionar as relações recíprocas entre a propriedade soberana dos Estados por sobre seu território e o direito solidário à preservação de áreas consideradas patrimônio da humanidade, pois que dela depende a sobrevivência do ser humano. Do qual resulta um outro problema, não menos tormentoso, o da conformação jurídica das relações entre ordem jurídica nacional e normas internacionais e tribunais nacionais com jurisdição e tribunais internacionais. Sobre o primeiro tópico, observemos que a Convenção sobre Diversidade Biológica assinada no Rio de Janeiro em 05 de junho de 1992, ratificada pelo Decreto Legislativo N. 02 de 03 de fevereiro de 1994, reafirma no seu Preâmbulo, que “os Estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos” e consagra como princípio, de conformidade com a Carta das Nações Unidas, no seu artigo 3º, que cada Estado possui o “direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas políticas ambientais, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional”. Com referência ao patrimônio genético, o artigo 15 da Convenção consagra que “em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional”. 32 Cf. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Saraiva. 1998. P. 61 76 instituição toledo de ensino Fixa-se, por conseguinte, o direito soberano do povo brasileiro por sobre a biodiversidade e o patrimônio genético, imprescindível premissa para o desenvolvimento econômico-social. Na perspectiva ambiental contemporânea, e na esteira da aceitação da tese de que o domínio não mais se reveste de caráter absoluto e intangível, há quem pretende manifestar que a soberania do povo brasileiro deve ser relativizada em função da propriedade sobre sua biodiversidade . Dois aspectos, neste último ponto, podem ser matéria de análise: em primeiro lugar, a interpretação adequada do artigo 4º da Constituição dirigente de 1988, que determina os princípios que orientam o relacionamento internacional do Estado Brasileiro e consagra no inciso IX a “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”. Tal dispositivo pode traduzir-SE, no plano da biodiversidade e do patrimônio genético, como a obrigação, decorrente do conteúdo da Constituição Dirigente, de lograr um ponto de interseção entre soberania por sobre recursos naturais e patrimônios ambientais da humanidad. Ou seja, admita-mos que o direito de propriedade por sobre a biodiversidade e o patrimônio genético implica o ônus de manter estes bens, considerados necessidade pública universal. Daí surge, precisamente, a necessidade de harmonizar os direitos soberanos dos povos. Advertimos que vemos este dever do povo brasileiro mas como preservação e obrigação de colocar os eventuais benefícios da pesquisa brasileira por sobre estes recursos, antes que como sinônimo de reconhecimento de um efeito vertical direto de normatividades internacionais na ordem interna. Reafirme-se que outros princípios que orientam o relacionamento internacional Brasileiro internacional brasileiro, conforme o mesmo artigo 4º, são a autodeterminação dos povos e a não-intervenção (incisos III e IV ). Tendo em conta estes postulados, não vemos, por exemplo, como para efeitos de proteção de zonas especiais, v.gr. as consideradas patrimônio nacional, possa haver interferência, vez que cada um dos Estados é plenamente soberano para determinar estas zonas, o que implica reconhecer a intervenção normativa própria de cada Estado como e identificadora e definidora dos interesses primários convergentes na criação de áreas de reserva especial. A proporcionalidade jurídica, no âmbito das relações internacionais, indica que seria inviável que a ordem jurídica brasileira, no marco dos Estados soberanos, pudesse, arbitrariamente, atendendo a seus interesses exclusivos, resolver sobre questões que interessam a toda a humanidade na Amazonia, por exemplo. Mas, também expressa a idéia de não poderem ser aceitas pressões ou intromissões estrangeiras, de nenhum tipo, em assuntos que são da exclusiva órbita interna do Brasil. A Constituição Federal de 1988 não expressa que o Brasil não possa obrigarse internacionalmente. Todavia, se obriga em matéria de proteção a sua biodiversi- instituição toledo de ensino 77 dade e patrimônio genético, em termos de igualdade e cooperação - art. 4º da CF de 1988 - por isso, é perfeitamente possível, conforme o formato constitucional, manifestar que a Amazônia, ou a Mata Atlântica, são regiões que interessam à Humanidade e que o Brasil, utilizará soberanamente seu domínio por sobre estas regiões atendendo a seus interesses e os do conjunto da humanidade na perspectiva da paz e do progresso social, para o qual fará uma legislação aplicável. Um segundo aspecto, tem a ver com a incorporação dos tratados sobre a biodiversidade e patrimônio genético na ordem interna. A respeito, parece-nos indiscutível que o povo brasileiro, soberano, quando deseja comprometer-se internacionalmente, pratica atos, tratados ou convenções assinados pelo Chefe de Estado - artigo 84, VIII da Carta - e referendados pelo Congresso Nacional - artigo 49 da Constituição -, ingressam na ordem jurídica brasileira como decreto legislativo, espécie normativa do artigo 59, VI. Ora, os tratados e convenções subordinam-se aos interesses brasileiros. No momento em que se questione a soberania, o povo brasileiro ficaria impedido até de negociar o tratado, ou negociaria sujeito a pressões espúrias, descaracterizando-se a soberania. Seríamos os primeiros, em um mundo ideal, isento de ingerências, bloqueios, embargos, “assistências humanitárias” e pressões, em expressar que o Estado fosse limitado para obter um desenvolvimento global partindo do patrimônio genético universal. Mas, a atitude permanente das potências, ao que parece, a pressa em juridicizar a ingerência, não permite tal afirmação.33 Obviamente, a limitação externa opera na sua plenitude quando o Estado brasileiro se compromete, atendendo a seus interesses, a tratados de administração com outros Estados, para o uso de determinadas regiões ou convenções importantes para gerar um benefício concreto, como construção de estradas, por exemplo. Assim, o direito de propriedade do povo, sobre a biodiversidade, na dimensão de Confronto com outros Estados, ou seja, atendendo às necessidades do aspecto externo da soberania, não é um direito ilimitado. Mas, as suas limitações encontram-se previstas nos marcos da cooperação e da solidariedade, conforme o artigo 4º da CF e no mandato finalístico da Constituição dirigente consagrados no artigo 3º, e não nos marcos da renuncia à soberania ou propriedade sobre seu objeto. Desta forma, a Constituição Dirigente de 1988 compromete-SE com a proteção da biodiversidade e do patrimônio genético brasileiro e convida a sua plena efetividade, na perspectiva de um Estado Democrático de Direito. 33 SEITENFUS, Ricardo. Ingerência: direito ou dever. In América Latina: Cidadania, desenvolvimento e Estado. P. 11-35. 78 instituição toledo de ensino BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Lourenço Agostini de. A tutela do Meio Ambiente e a Constituição in Revista da Associação dos Juízes de Rio Grande do Sul: AJURIS, 45, Ano XVI -1989. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. ARAUJO, Luiz Alberto David, NUNES, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1.998. BARROSO, Luís Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil Anotada. São Paulo: Saraiva, 1.998. BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. Ciência Política. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 1995. CANOTILHO. JJ Gomes. 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Isto é, objetiva-se fazer um conjugado entre o processo de internacionalização dos direitos humanos e a nova concepção de cidadania introduzida pela Constituição Federal de 1988. Para tanto, num primeiro momento, buscou-se delinear, ainda que brevemente, o processo de internacionalização dos direitos humanos, cujo marco inicial foi a Declaração Universal de 1948, bem como a forma através da qual a Constituição brasileira de 1988 se relaciona com os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Num momento posterior, procurou-se redefinir o conceito de cidadania, a fim de dar-lhe operatividade e eficácia, verificando-se de que maneira a nova Carta * Estudo escrito em homenagem ao Prof. José Afonso da Silva, exemplo vivo de justiça e lealdade. 82 instituição toledo de ensino brasileira, rompendo com a ordem jurídica anterior, passou a comungar os direitos humanos internacionalmente consagrados com esta nova concepção – ou concepção contemporânea – de cidadania. Por fim, buscou-se esclarecer qual o papel da educação em direitos humanos, e quais as maneiras de se implementar, de forma sólida, uma cultura de direitos humanos, em nosso meio e em nossa sociedade. 2. A CONSAGRAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO A cidadania é um processo em constante construção, que teve origem, historicamente, com o surgimento dos direitos civis, no decorrer do século XVIII – chamado Século das Luzes –, sob a forma de direitos de liberdade, mais precisamente, a liberdade de ir e vir, de pensamento, de religião, de reunião, pessoal e econômica, rompendo-se com o feudalismo medieval na busca da participação na sociedade.1 A concepção moderna de cidadania surge, então, quando ocorre a ruptura com o Ancien Régime absolutista, em virtude de ser ela incompatível com os privilégios mantidos pelas classes dominantes, passando o ser humano a deter o status de “cidadão”, tendo assegurados, por um rol mínimo de normas jurídicas, a liberdade e a igualdade, contra qualquer atuação arbitrária do então Estado-coator. Com o aparecimento do Estado Social, nas primeiras décadas do século XX, as fronteiras da cidadania ampliaram-se ainda mais, aumentando as dificuldades de formulação de um conceito mínimo capaz de entender coerentemente esse novo fenômeno em construção. O conceito de cidadania, entretanto, tem sido freqüentemente apresentado de uma forma vaga e imprecisa. Uns identificam-na com a perda ou aquisição da nacionalidade; outros, com os direitos políticos de votar e ser votado. No Direito Constitucional, aparece o conceito, comumente, relacionado à nacionalidade e aos direitos políticos.2 Já na Teoria Geral do Estado, aparece ligado ao elemento povo como integrante constitutivo do conceito de Estado, contrapondo o conceito de nacional em face ao de estrangeiro. Dessa forma, fácil perceber que no discurso jurídico dominante, a cidadania não apresenta um estatuto próprio pois na medida em que se relaciona a estes três elementos (nacionalidade, direitos políticos e povo), apresenta-se como algo ainda indefinido.3 E a situação ainda mais se agrava 1 Cf. T. H. MARSHALL. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, pp. 63-64. Veja-se, nesse sentido, a definição de PEDRO NUNES para o termo cidadão: “Pessoa que goza dos direitos civis e políticos de um Estado, devendo, entretanto, obrigações atinentes aos mesmos. Cidadão brasileiro – nacional que usufrui esses direitos; o estrangeiro, quando naturalizado. Tal qualidade pode também verificar-se pelo jus soli, quando a pessoa nascida num Estado toma nacionalidade deste, ou em virtude do jus sanguinis, se se origina por vínculo de sangue e neste caso o filho segue a nacionalidade dos pais. (…) No passado, apenas os ricos e nobres eram considerados cidadãos em alguns Estados, e, noutros, excluíam também as mulheres. Diz-se também do habitante de uma cidade. Citadino.” (Dicionário de tecnologia jurídica, 12.ª ed. Rio: Freitas Bastos, 1994, p. 173). 2 instituição toledo de ensino 83 quando se sabe que o termo “cidadão” é também freqüentemente invocado, de forma descompromissada, no discurso e nos meios políticos de nosso tempo. Isto nos coloca, em tempos de globalização, diante da necessidade de redefinir o conceito de cidadania, a fim de dar-lhe precisão e operatividade em favor da camada mais carente da sociedade, retirando-o da abstração e dando-lhe um conteúdo valorativo ético, o que se mostra possível amoldando-o às novas exigências da democracia e dos direitos da pessoa humana. É a partir do século XVIII, com o movimento iluminista, que começa a ser definido os primeiros contornos do conceito de cidadania. Como resultado da Revolução Francesa, surge, então, a famosa Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen, de 1789, que, sob a influência do discurso jurídico burguês, lançou as primeiras bases da idéia de “cidadão”. A revolução burguesa pretendeu deixar claro – e o fez no Art. 16 da Declaração – que não há Constituição onde não se têm assegurada a garantia dos direitos individuais nem é determinada a separação dos poderes. Buscou-se, então, colocar em primeiro plano os direitos dos indivíduos, transformando os súditos em cidadãos, em repúdio à monarquia absolutista, sob o manto de uma “republica constitucional”.4 O que se denota da Declaração, entretanto, é a cisão que fez dos direitos do “Homem” e do “Cidadão”, na qual a expressão Direitos do Homem significa o conjunto dos direitos individuais, levando-se em conta a sua visão extremamente individualista, ao passo que o termo Direitos do Cidadão expressa o conjunto dos direitos políticos de votar e ser votado, como institutos essenciais à democracia representativa.5 A idéia de cidadão como participante da vida política do Estado, fica facilmente perceptível pela leitura do Article VI da Déclaration, que dispõe: “La loi est l’expression de la volonté générale; tous les citoyens ont droit de concourir personnelement, ou par leurs représentants à sa formation; elle doit être la même pour tous, soit qu’elle protège soit qu’elle punisse. Tous les citoyens étant égaux à ses yeux, sont également admissibles à toutes dignités, places et emplois publics, selon leur capacité, et sans autres distinctions que celles de leurs vertus et de leurs talents.” Mais à frente, a Declaração, no seu Article XIV, também privilegia os citoyens, nestes termos: 3 Cf. VERA REGINA PEREIRA DE ANDRADE. Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 17-28. 4 Cf. PAOLO BARILE. Diritti dell’uomo e libertà fondamentali. Bologna: Società Editrice il Mulino, 1984, p. 12. 5 JOSÉ AFONSO DA SILVA. “Faculdades de Direito e construção da cidadania”. In: Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 138-139. 84 instituição toledo de ensino “Les citoyens ont le droit de constater par eux-mêmes ou par leurs représentants la nécessité de la contribution publique, de la consentir librement, d’en suivre l’emploi et d’en déterminer la quantité, l’assiette, le recouvrement et da durée.” Na lição lapidar do Prof. JOSÉ AFONSO DA SILVA: “A idéia de representação, que está na base no conceito de democracia representativa, é que produz a primeira manifestação da cidadania que qualifica os participantes da vida do Estado – o cidadão, indivíduo dotado do direito de votar e ser votado –, oposta à idéia de vassalagem tanto quanto a de soberania aparece em oposição à de suserania. Mas, ainda assim, nos primeiros tempos do Estado Liberal, o discurso jurídico reduzia a cidadania ao conjunto daqueles que adquiriam os direitos políticos. Então, o cidadão era somente aquela pessoa que integrasse o corpo eleitoral. Era uma cidadania ‘censitária’, porque era atributo apenas de quem possuísse certos bens ou rendas”.6 A idéia de cidadão, que, na Antigüidade Clássica, conotava o habitante da cidade – o citadino – firma-se, então, como querendo significar aquele indivíduo a quem se atribuem os direitos políticos, é dizer, o direito de participar ativamente na vida política do Estado onde vive. Na Carta de 1824, por exemplo, falava-se, nos arts. 6.º e 7.º, em cidadãos brasileiros, como querendo significar o nacional, ao passo que nos arts. 90 e 91 o termo cidadão designava aquele que podia votar e ser votado. Estes últimos eram chamados de cidadãos ativos, posto que gozavam de direitos políticos. Aqueles, por sua vez, pertenciam à classe dos cidadãos inativos, destituídos do direito de eleger e ser eleitos. Faziam parte, nas palavras de JOSÉ AFONSO DA SILVA, de uma “cidadania amorfa”, posto que abstratos e alheios a toda uma realidade sociológica, sem referência política.7 6 JOSÉ AFONSO DA SILVA. Idem, p. 139. A esse respeito, a lição de GUILHERME WAGNER RIBEIRO: “Inicialmente, a igualdade limitava-se aos direitos civis, não estendendo sequer aos direitos políticos. Sustentava-se que o direito de votar e de ser votado estava restrito aos ‘homens bons’, entendendo-se como tal os cidadãos possuidores de renda. Esses liberais assistiram à passagem do capitalismo mercantilista para o capitalismo industrial e, com este, a formação da classe operária. Essa população, embora igual à burguesia perante a lei, vivia, quanto às condições materiais de vida, em situação de elevada desigualdade em relação aos burgueses. E foi a luta dessa maioria que fez com que, no interior do pensamento liberal, começassem a prevalecer aqueles que admitiam o direito de participação da classe trabalhadora no processo eleitoral. Tal noção foi-se ampliando até alcançar o sufrágio universal, o que ocorreu somente neste século” (“Os paradigmas constitucionais, o princípio da igualdade e o direito à educação”, in Revista de Informação Legislativa, ano 37, n.º 148, out./dez. 2000, p. 253). 7 Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA. Idem, ibidem. instituição toledo de ensino 85 Assim, os termos “homem” e “cidadão” recebiam significados diversos. É dizer, o cidadão teria um plus em relação ao homem, consistente na titularidade de direitos na ordem política, na participação da vida da sociedade e na detenção de riqueza, formando, assim, uma casta especial e mais favorecida, distinta do resto da grande e carente massa popular, por sua vez considerados como simples indivíduos.8 Esta idéia, entretanto, vai sendo gradativamente modificada, quando do início do processo de internacionalização dos direitos humanos, nascido com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Passa-se a considerar como cidadãos, a partir daí, não só aqueles detentores dos direitos civis e políticos, mas sim todos os que habitam o âmbito da soberania de um Estado e deste Estado recebem uma carga de direitos (civis e políticos; sociais, econômicos e culturais) e deveres, dos mais variados.9 Hoje, a preocupação maior é entender a cidadania não como mera abstração ou hipótese jurídica, mas como meio concreto de realização da soberania popular, entendida esta como o poder determinante do funcionamento estatal. O seu exercício, por sua vez, passa a não mais se limitar à mera atividade eleitoral, ou ao voto, para compreender uma gama muito mais abrangente de direitos – por sua vez oponíveis à ação dos poderes públicos –, e também deveres para com toda a sociedade. A Constituição brasileira, de 1988, consagra, desde o seu Título I (intitulado Dos Princípios Fundamentais), esta nova concepção de cidadania, iniciada com o processo de internacionalização dos direitos humanos. Deste modo, ao contrário do 8 Nas palavras de LORAINE SLOMP GIRON: “HEGEL demonstra que na nova sociedade o indivíduo não nasce cidadão, para tornar-se cidadão ele deve participar do mundo do trabalho. No mundo do trabalho livre a cidadania só é conquistada por aquele que pode participar da produção. Os que estão fora dos setores produtivos são apenas indivíduos e não cidadãos: condição de produtor e de participante de uma corporação (sindicato) é que garante ao homem sua condição de membro de um estado (sic), portanto de cidadão. O enfraquecimento do Estado Nacional corresponde – de uma certa forma – ao enfraquecimento da cidadania. O surgimento dos Mega Estados renova a dicotomia entre os direitos do indivíduo e do Estado. A antiga querela sobre o confronto entre o indivíduo e o estado (sic), que ocupou o pensamento iluminista, volta a atualidade. Na Comunidade Européia os cidadãos dos pequenos países – como os gregos e os portugueses – terão os mesmos direitos que os dos grandes países como aos da França e da Inglaterra? Dentro do NAFTA os cidadãos mexicanos terão os mesmos direitos que os norte-americanos? Ou alguns serão mais cidadãos que os outros?” (Prefácio ao livro de CHARLES ANTONIO KIELING, Manifesto da cidadania. Caxias do Sul: Maneco Livraria & Editora, 2001, p. 14). 9 À esses direitos e deveres, LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA acrescenta ainda um outro, que chamou de direito à res publica (ou direitos republicanos), consistente no direito que têm os cidadãos de que o patrimônio público – seja ele histórico, cultural, ambiental ou econômico – seja efetivamente público, ou seja, de todos e para todos, livre do arbítrio e da cobiça dos grupos dominantes, de que são exemplos, segundo ele, “os direitos do cidadão contra a corrupção nas compras públicas, contra a sonegação de impostos e contra o nepotismo”, além de outros relacionados a políticas de Estado “que pretendem ser políticas públicas, mas que na verdade atendem a interesses particulares e indefensáveis” (cf. “Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republicanos”, in Revista de Informação Legislativa, ano 34, n.º 136, out./dez. 1997, pp. 289-313). 86 instituição toledo de ensino que ocorria no constitucionalismo do Império, hoje, em face da Constituição vigente, aquela doutrina da cidadania ativa e passiva, não tem mais nenhuma procedência. Para bem se compreender o significado dessa nova concepção de cidadania introduzida pela Carta brasileira de 1988, entretanto, é importante tecermos alguns comentários sobre a gênese do processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado com o pós-Segunda Guerra, e que culminou na proclamação da Declaração Universal, em 1948. 3. O LEGADO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE 1948 AO PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Decorrido mais de meio século da proclamação da Declaração Universal de 1948, adentramo-nos hoje, ao que parece, na era internacional dos direitos, ou dos direitos internacionalmente consagrados. Testemunha-se, hoje, uma crescente evolução na identidade de propósitos entre o Direito Interno e o Direito Internacional, no que respeita à proteção dos direitos humanos, notadamente um dos temas centrais do Direito Internacional contemporâneo. A normatividade internacional de proteção dos direitos humanos, conquistada através de incessantes lutas históricas, e consubstanciada em inúmeros tratados concluídos com este propósito, foi fruto de um lento e gradual processo de internacionalização e universalização desses mesmos direitos. Os direitos humanos passaram, então, com o amadurecimento evolutivo deste processo, a transcender os interesses exclusivos dos Estados, para salvaguardar, internamente, os interesses dos seres humanos protegidos. Esta nova concepção, assim, pretendeu afastar de vez o velho e arraigado conceito de soberania estatal absoluta – que considerava como sendo os Estados os únicos sujeitos de direito internacional público –, para proteger e amparar os direitos fundamentais de todos os seres humanos. Os indivíduos, a partir de então, foram erigidos à posição central – de há muito merecida – de sujeitos de direito internacional, dotados de mecanismos processuais eficazes para a salvaguarda dos seus direitos internacionalmente protegidos. É, entretanto, somente a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que o Direito Internacional dos Direitos Humanos efetivamente se consolida. Nascidos dos horrores da era HITLER, e da resposta às atrocidades cometidas a milhões de pessoas durante o Nazismo, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos têm criado obrigações e responsabilidades para os Estados, no que respeita às pessoas sujeitas à sua jurisdição.10 10 Na lição de LOUIS HENKIN (et all.): “Subseqüentemente à Segunda Guerra Mundial, os acordos internacionais de direitos humanos têm criado obrigações e responsabilidades para os Estados, no que diz respeito às pessoas sujeitas instituição toledo de ensino 87 Neste contexto, marcado por inúmeras violações de direitos, e cujo saldo maior foram 11 milhões de mortos durante esse período, foi necessário que se construísse toda uma normatividade internacional de proteção, a fim de resguardar e amparar os direitos humanos, até então inexistente. Viu-se a comunidade internacional obrigada a dar ensejo à construção de uma estrutura internacional de proteção de direitos eficaz, baseada no respeito aos direitos humanos e na sua efetiva proteção, prevenindo para que atos bárbaros como aqueles não mais ocorressem em qualquer parte do planeta. O tema, então, tornou-se preocupação de interesse comum dos Estados, bem como um dos principais objetivos da comunidade internacional.11 Como bem explica a Prof.ª FLÁVIA PIOVESAN, diante da ruptura “do paradigma dos direitos humanos, através da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito”, passou a emergir “a necessidade de reconstrução dos direitos humanos, como referencial e paradigma ético que aproxime o direito da moral”.12 E, como resposta às barbáries cometidas no Holocausto, onde imperava a lógica do terror e do medo, e onde a vida humana nada mais era do que simplesmente descartável,13 a comunidade internacional começou a esboçar um à sua jurisdição, e um direito costumeiro internacional tem se desenvolvido. O emergente Direito Internacional dos Direitos Humanos institui obrigações aos Estados para com todas as pessoas humanas e não apenas para com os estrangeiros. Este Direito reflete a aceitação geral de que todo indivíduo deve ter direitos, os quais todos os Estados devem respeitar e proteger. Logo, a observância dos direitos humanos não é apenas assunto de interesse particular do Estado (relacionado à sua jurisdição doméstica), mas matéria de interesse internacional e objeto próprio de regulação do Direito Internacional” (International law: cases and materials, 3.ed. Minnesota: West Publishing, 1993, pp. 375-376). 11 Nas palavras de ANDRÉ FRANCO MONTORO, a barbárie cometida durante o período nazista “provocou a revolta da consciência mundial e a constituição de um Tribunal Internacional, em Nuremberg, para julgar os crimes contra a humanidade, violadores dos fundamentos éticos da vida social. E deu origem ao movimento impulsionado pelas aspirações da população de todo mundo, culminando com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que constitui um dos documentos fundamentais da civilização contemporânea. A Declaração abrese com a denúncia histórica dos ‘atos bárbaros, que revoltam a consciência da humanidade’. E afirma solenemente como valores universais, os direitos humanos básicos, como o direito à vida, à liberdade, à segurança, à educação, à saúde e outros, que devem ser respeitados e assegurados por todos os Estados e por todos os povos” (“Cultura dos Direitos Humanos”, in Direitos humanos: legislação e jurisprudência, vol. I, São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1999, p. 23). 12 FLÁVIA PIOVESAN. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, 4.ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 129. 13 Nas palavras de CELSO LAFER: “Um dos meios de que se valeu o totalitarismo para obter esta descartabilidade dos seres humanos foi o de gerar refugiados e apátridas. Estes, ao se verem destituídos, com a perda da cidadania, dos benefícios do princípio da legalidade, não se puderam valer dos direitos humanos. Assim, por falta de um vínculo com uma ordem jurídica nacional, acabaram não encontrando lugar – qualquer lugar – num mundo como o do século XX, totalmente organizado e ocupado politicamente. Consequentemente, tornaram-se de facto e de jure desnecessários porque indesejáveis ‘erga omnes’, e acabariam encontrando o seu destino e lugar nos campos de concentração” (Trecho da mensagem do Min. das Relações Exteriores, CELSO LAFER, por ocasião da abertura da exposição “Visto para a vida: diplomatas que salvaram judeus”, no Centro Cultural Maria Antonia da USP. São Paulo, maio de 2001). 88 instituição toledo de ensino novo – e até então inédito – cenário mundial de proteção de direitos, que pudesse servir, na busca da reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a nova ordem mundial.14 Aflorou-se, a partir daí, todo um processo de internacionalização dos direitos humanos, com a criação de uma sistemática internacional de proteção, mediante a qual tornou-se possível a responsabilização do Estado no plano externo, quando, internamente, os órgãos competentes não apresentarem respostas satisfatórias na proteção dos seres humanos protegidos. Um passo concreto foi dado, quando, no início do ano de 1945, em Chapultepec, no México, os vinte e um países da América se reuniram firmando a tese de que um dos principais objetivos das Nações Unidas seria a elaboração de uma Carta dos Direitos do Homem, razão pela qual a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de 1945, ficara impregnada da idéia do respeito aos direitos fundamentais do homem, desde o seu segundo considerando, onde se afirmou “a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos de homens e mulheres e das Nações grandes e pequenas”.15 Assim, a partir do surgimento da Organização das Nações Unidas, em 1945, e da conseqüente aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o Direito Internacional dos Direitos Humanos começa a aflorar e a solidificarse de forma definitiva, gerando, por via de conseqüência, a adoção de inúmeros tratados internacionais destinados a proteger os direitos fundamentais dos indivíduos. Trata-se de uma época considerada como verdadeiro marco divisor do processo de internacionalização dos direitos humanos.16 Antes disso, a proteção aos direitos do homem estava mais ou menos restrita a apenas algumas legislações internas, como a inglesa de 1684, a americana de 1778 e a francesa de 1789. As questões humanitárias somente integravam a agenda internacional quando ocorria uma determinada guerra, mas logo mencionava-se o problema da ingerência interna em um Estado soberano e a discussão morria gradativamente. Assim é que temas como o respeito às minorias dentro dos territórios nacionais e direitos de expressão política não eram abordados a fim de não se ferir o até então incontestável e absoluto princípio de soberania.17 14 Cf. FLÁVIA PIOVESAN. Temas de direitos humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 49. JOSÉ AFONSO DA SILVA. “Impacto da Declaração Universal dos Direitos Humanos na Constituição brasileira de 1988”, in Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição, São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 190-191. 16 Como destaca CARLOS WEIS: “A recente sistematização dos direitos humanos em um sistema normativo internacional, marcada pela proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, representa tanto o ponto de chegada do processo histórico de internacionalização dos direitos humanos como o traço inicial de um sistema jurídico universal destinado a reger as relações entre os Estados e entre estes e as pessoas, baseando-se na proteção e promoção da dignidade fundamental do ser humano” (Direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 21). 17 Cf. ANA FLÁVIA BARROS-PLATIAU e ANCELMO CÉSAR LINS DE GÓIS. “Direito internacional e globalização”, in Revista Cidadania e Justiça da Associação dos Magistrados Brasileiros, ano 4, n.º 8, p. 35. 15 instituição toledo de ensino 89 Surge, então, no âmbito da Organização das Nações Unidas, um sistema global de proteção dos direitos humanos, tanto de caráter geral (a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), como de caráter específico (v.g., as convenções internacionais de combate à tortura, à discriminação racial, à discriminação contra as mulheres, à violação dos direitos das crianças etc.). Revolucionou-se, a partir deste momento, o tratamento da questão relativa ao tema dos direitos humanos. Colocou-se o ser humano, de maneira inédita, num dos pilares até então reservados somente aos Estados, alçando-o à categoria de sujeito de direito internacional. Paradoxalmente, o Direito Internacional feito pelos Estados e para os Estados começou a tratar da proteção internacional dos direitos humanos contra o próprio Estado, único responsável reconhecido juridicamente, querendo significar esse novo elemento uma mudança qualitativa para a comunidade internacional, uma vez que o direito das gentes não mais se cingiria aos interesses nacionais particulares. Neste cenário, o cidadão, antes vinculado à sua Nação, passa a tornar-se, lenta e gradativamente, verdadeiro “cidadão do mundo”.18 Mas, a estrutura normativa de proteção internacional dos direitos humanos, além dos instrumentos de proteção global, de que são exemplos, dentre outros, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, e cujo código básico é a chamada international bill of human rights, abrange também os instrumentos de proteção regional, aqueles pertencentes aos sistemas europeu, americano, asiático e africano (v.g., no sistema americano, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Da mesma forma que ocorre com o sistema de proteção global, aqui também se encontram instrumentos de alcance geral e instrumentos de alcance especial. Gerais são aqueles que alcançam todas as pessoas, a exemplo dos tratados acima citados; especiais, ao contrário, são os que visam apenas determinados sujeitos de direito, ou determinada categoria de pessoas, a exemplo das convenções de proteção às crianças, aos idosos, aos grupos étnicos minoritários, às mulheres, aos refugiados, aos portadores de deficiência etc. Tais sistemas, cabe observar, não são dicotômicos, mas complementares uns dos outros, onde fica permitido ao indivíduo que sofreu violação de direitos a escolha do aparato mais benéfico, tendo em vista que, não raramente, vários direitos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional ou ainda de alcance geral ou específico. Essa diversidade de sistemas, assim, interage em prol da proteção da pessoa humana.19 18 ANA FLÁVIA BARROS-PLATIAU e ANCELMO CÉSAR LINS DE GÓIS. Idem, ibidem. Cf. FLÁVIA PIOVESAN. Temas de direitos humanos, cit., pp. 31-32. O Prof. JOSÉ AFONSO DA SILVA, a esse respeito, leciona: “Em face dessa diversificação, cabe, desde logo, uma observação geral, qual seja: a de que tanto os tratados regionais como os destinados a proteger especialmente determinadas categorias de pessoas ou situações especiais são complementares aos tratados gerais de proteção dos direitos humanos. Não existem normas 19 90 instituição toledo de ensino O “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, emergido com princípios próprios, passa, então, a efetivamente solidificar-se como um corpus juris dotado de uma multiplicidade de instrumentos internacionais de proteção que impõem obrigações e responsabilidades para os Estados no que diz respeito aos seus jurisdicionados. Sua observância, assim, deixou de se subscrever ao interesse estritamente doméstico dos Estados, para passar a ser matéria de interesse do Direito Internacional e objeto de sua regulamentação.20 Rompendo com a rígida distinção existente entre o Direito Público e o Direito Privado, e libertando-se dos seus clássicos paradigmas, o Direito Internacional dos Direitos Humanos passa a afirmar-se como um novo ramo do Direito, dotado de autonomia, princípios e especificidade próprios, cuja finalidade é a de assegurar a proteção dos seres humanos, nos planos nacional e internacional, concomitantemente. Foi neste cenário que a Declaração Universal de 1948, composta de trinta artigos, precedidos de um “Preâmbulo” com sete considerandos, conjugou num só todo tanto os direitos civis e políticos, tradicionalmente chamados de direitos e garantias individuais (arts. 1.º ao 21), quanto os direitos sociais, econômicos e culturais (arts. 22 ao 28). O art. 29 proclama os deveres da pessoa para com a comunidade, na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível, e o art. 30 consagra um princípio de interpretação da Declaração sempre a favor dos direitos e liberdades nela proclamados. Assim o fazendo, combinou a Declaração, de forma inédita, o discurso liberal com o discurso social, ou seja, o valor da liberdade com o valor da igualdade.21 Firma-se, então, a concepção contemporânea de direitos humanos, fundada nos pilares da universalidade, indivisibilidade e interdependência desses direitos. Diz-se universal “porque a condição de pessoa há de ser o requisito único para a titularidade de direitos, afastada qualquer outra condição”; e indivisível “porque os direitos civis e políticos hão de ser somados aos direitos sociais, econômicos e culturais, já que não há verdadeira liberdade sem igualdade e nem tampouco há verdadeira igualdade sem liberdade”, como pontifica a Prof.ª FLÁVIA PIOVESAN.22 regionais de direitos humanos, mas apenas acordos regionais para verificar a aplicação de normas internacionais – observa CRISTINA M. CERNA” (“Impacto da Declaração Universal dos Direitos Humanos na Constituição brasileira de 1988”, cit., p. 196). 20 Cf. LOUIS HENKIN (et al.). International law: cases and materials, cit., p. 376. 21 Acerca das classificações da Declaração Universal, vide ANTONIO CASSESSE, Human rights in a changing world, Philadelphia: Temple University Press, 1990, pp. 38-39; e JOSÉ AUGUSTO LINDGREN ALVES, Os direitos humanos como tema global, São Paulo: Editora Perspectiva/Fundação Alexandre de Gusmão, 1994, pp. 46-47. 22 FLÁVIA PIOVESAN. “A proteção dos direitos humanos no sistema constitucional brasileiro”, in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, vol. 51/52, jan./dez. 1999, p. 92; cf. ainda, acerca da universalidade dos direitos humanos, GENARO R. CARRIÓ, Los derechos humanos y su protección: distintos tipos de problemas, Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990, p. 13. instituição toledo de ensino 91 A Declaração de 1948, dessa forma, demarca – repita-se – a concepção contemporânea de direitos humanos, deixando claro que não há direitos civis e políticos sem direitos sociais, econômicos e culturais, ou seja, não há liberdade sem igualdade. Da mesma forma, não há igualdade sem a plena e eficaz proteção da liberdade, ou seja, a igualdade fica esvaziada quando não assegurado o direito de liberdade concebido em seu sentido amplo.23 Após um quarto de século da realização da primeira Conferência Mundial de Direitos Humanos, ocorrida em Teerã em 1968, a segunda Conferência ( Viena, 1993), reiterando os propósitos da Declaração de 1948, consagrou os direitos humanos como tema global, reafirmando sua universalidade, indivisibilidade e interdependência. Foi o que dispôs o parágrafo 5.º da Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993, nestes termos: “Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais”. Compreendeu-se, finalmente, que a diversidade cultural (relativismo) não pode ser invocada para justificar violações aos direitos humanos. A tese universalista defendida pelas nações ocidentais saiu, ao final, vencedora, afastando-se de vez a idéia de relativismo cultural, em se tratando de proteção internacional dos direitos humanos. Enriqueceu-se, pois, o universalismo desses direitos, afirmando-se cada vez mais o dever dos Estados em promover e proteger os direitos humanos violados, independentemente dos respectivos sistemas, não mais se podendo questionar a observância dos direitos humanos com base no relativismo cultural ou mesmo com base no dogma da soberania estatal absoluta.24 E, no que toca à indivisibilidade, ficou superada a dicotomia até então existente entre as “categorias de direitos” (civis e políticos de um lado; econômicos, sociais e culturais, de outro), historicamente incorreta e juridicamente infundada, porque não há hierarquia quanto a esses direitos, estando todos eqüitativamente balanceados, em pé de igualdade. É dizer, a clas23 Cf. FLÁVIA PIOVESAN. Temas de direitos humanos, cit., pp. 27-29. Cf. ANA FLÁVIA BARROS-PLATIAU e ANCELMO CÉSAR LINS DE GÓIS. “Direito internacional e globalização”, cit., p. 37. 24 92 instituição toledo de ensino sificação tradicional das “gerações de direitos” não corresponde, historicamente, ao desenvolvimento do processo de efetivação e solidificação dos direitos humanos.25 Objeta-se que se as gerações de direitos induzem à idéia de sucessão – através da qual uma categoria de direitos sucede a outra que se finda –, a realidade histórica aponta, em sentido contrário, para a concomitância do surgimento de vários textos jurídicos concernentes a direitos humanos de uma ou outra natureza. No plano interno, por exemplo, a consagração nas Constituições dos direitos sociais foi, em geral, posterior ao dos direitos civis e políticos, ao passo que no plano internacional o surgimento da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, propiciou a elaboração de diversas convenções regulamentando os direitos sociais dos trabalhadores, antes mesmo da internacionalização dos direitos civis e políticos no plano externo.26 O processo de desenvolvimento dos direitos humanos, assim, opera-se em constante cumulação, sucedendo-se no tempo vários direitos que mutuamente se substituem, consoante a concepção contemporânea desses direitos, fundada na sua universalidade, indivisibilidade e interdependência. Afasta-se, pois, a visão fragmentária e hierarquizada das diversas categorias de direitos humanos, para se buscar uma “concepção contemporânea” desses mesmos direitos, a qual foi introduzida pela Declaração Universal de 1948, e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Como destaca CARLOS WEIS, insistir na idéia geracional de direitos, “além de consolidar a imprecisão da expressão em face da noção contemporânea dos direitos humanos, pode se prestar a justificar 25 Um dos que propuseram esta fórmula “geracional” foi T. H. MARSHALL. Nos termos de sua clássica análise sobre a afirmação histórica da cidadania, primeiro foram definidos os direitos civis no século XVIII, depois os direitos políticos no século XIX e, por último, os direitos sociais no século XX. E, o roteiro feito por MARSHALL, mostrou que em países capitalistas avançados, a soma do Estado com as lutas sociais é que resulta na chamada “cidadania” (cf. Cidadania, Classe Social e Status, cit., pp. 63-64). PAULO BONAVIDES também comunga desta idéia geracional de direitos, mas com alguma variação. Para ele, primeiro surgiram os direitos civis e políticos (primeira geração), depois os direitos sociais, econômicos e culturais (segunda geração), posteriormente o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio-ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade (terceira geração) e, por último (o que chamou de direitos de quarta geração) os direitos que compreendem o futuro da cidadania e o porvir da liberdade de todos os povos (cf. PAULO BONAVIDES. Curso de direito constitucional, 10.ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, pp. 516-525). 26 Vide, a esse respeito, a lição do Prof. ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, para quem: “A noção simplista das chamadas ‘gerações de direitos’, histórica e juridicamente infundada, tem prestado um desserviço ao pensamento mais lúcido a inspirar a evolução do direito internacional dos direitos humanos. Distintamente do que a infeliz invocação da imagem analógica da ‘sucessão generacional’ parecia supor, os direitos humanos não se ‘sucedem’ ou ‘substituem’ uns aos outros, mas antes se expandem, se acumulam e fortalecem, interagindo os direitos individuais e sociais (tendo estes últimos inclusive precedido os primeiros no plano internacional, a exemplo das primeiras convenções internacionais do trabalho)” (Apresentação ao livro de FLÁVIA PIOVESAN, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, cit., p. 21). instituição toledo de ensino 93 políticas públicas que não reconhecem indivisibilidade da dignidade humana e, portanto, dos direitos fundamentais, geralmente em detrimento da implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais ou do respeito aos direitos civis e políticos previstos nos tratados internacionais já antes citados”.27 Desta forma, a dicotomia até então existente – leciona JOSÉ AFONSO DA SILVA – “entre direitos civis (mais conhecidos como direitos individuais) e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais, vai sendo suplantada pelo reconhecimento doutrinário da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos”.28 E isto porque pensava-se que os direitos civis e políticos eram de aplicação imediata, bastando a abstenção do Estado para sua efetivação, ao passo que os direitos econômicos, sociais e culturais eram de aplicação progressiva, requerendo uma atuação positiva do Estado para que pudessem ser eficazes.29 Problema muito discutido dizia respeito à eficácia das normas da Declaração Universal de 1948, uma vez que ela, por si só, não dispõe de aparato próprio que a faça valer. À vista disso é que, sob o patrocínio da ONU, se tem procurado firmar vários pactos e convenções internacionais a fim de assegurar a proteção dos direitos fundamentais do homem nela consagrados, dentre os quais destacam-se o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos aprovados pela Assembléia-Geral da ONU, em Nova York, aos 16 de dezembro de 1966. Surgiram estes tratados, pois, com a finalidade de conferir “dimensão jurídica” à Declaração Universal de 1948.30 Enfim, partindo-se dos propósitos da Declaração Universal, pode-se concluir que os direitos humanos derivam de três princípios basilares, bem como de suas combinações e influências recíprocas, quais sejam: a) o da inviolabilidade da pessoa, cujo significado traduz a idéia de que não se pode impor sacrifícios a um indivíduo em razão de que tais sacrifícios resultarão em benefícios à outras pessoas; b) o da autonomia da pessoa, pelo qual toda pessoa é livre para a realização de qualquer conduta, desde que seus atos não prejudiquem terceiros; e, c) o da dignidade da pessoa, verdadeiro núcleo de todos os demais direitos fundamentais do cidadão, através do qual todas as pessoas devem ser tratadas e julgadas de acordo com os seus atos, e não em relação a outras propriedades suas não alcançáveis por eles.31 27 CARLOS WEIS. Direitos humanos contemporâneos, cit., pp. 43-44. JOSÉ AFONSO DA SILVA. “Impacto da Declaração Universal dos Direitos Humanos na Constituição brasileira de 1988”, cit., p. 196. 29 Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA. Idem, pp. 196-197. Para uma crítica da teoria que classifica os direitos segundo envolvam prestações positivas ou negativas, vide JOSÉ AUGUSTO LINDGREN ALVES, Os direitos humanos como tema global, cit., pp. 103 e ss, em capítulo intitulado A Falácia das “Prestações Negativas”. 30 Cf. JOSÉ AFONSO DA SILVA. Idem, pp. 193-194. 31 Cf. GENARO R. CARRIÓ. Los derechos humanos y su protección: distintos tipos de problemas, cit., pp. 14-15. 28 94 instituição toledo de ensino 4. A ABERTURA DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 AO SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Rompendo com a ordem jurídica anterior, marcada pelo autoritarismo advindo do regime militar, que perdurou no Brasil de 1964 a 1985, a Constituição brasileira de 1988, no propósito de instaurar a democracia no país e de institucionalizar os direitos humanos, faz como que uma revolução na ordem jurídica nacional, passando a ser o marco fundamental da abertura do Estado brasileiro ao regime democrático e à normatividade internacional de proteção dos direitos humanos. Como marco fundamental do processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil, a Carta de 1988, logo em seu primeiro artigo, erigiu a dignidade da pessoa humana a princípio fundamental (art. 1.º, III), instituindo, com este princípio, um novo valor que confere suporte axiológico a todo o sistema jurídico e que deve ser sempre levado em conta quando se trata de interpretar qualquer das normas constantes do ordenamento jurídico nacional. A nova Constituição, além disso, seguindo a tendência do constitucionalismo contemporâneo, deu um grande passo rumo a abertura do sistema jurídico brasileiro ao sistema internacional de proteção de direitos, quando, no parágrafo 2.º do seu art. 5.º, deixou estatuído que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” [grifo nosso]. Estabelecendo a Carta de 1988 que os direitos e garantias nela elencados “não excluem” outros provenientes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, é porque ela própria está a autorizar que tais direitos e garantias constantes nesse tratados “se incluem” no ordenamento jurídico brasileiro, como se escritos no rol de direitos constitucionais estivessem. É dizer, se os direitos e garantias expressos no texto constitucional “não excluem” outros provenientes de tratados internacionais, é porque, pela lógica, na medida em que tais instrumentos passam a assegurar também direitos e garantias, a Constituição “os inclui” no seu catálogo dos direitos protegidos, ampliando e fortalecendo o seu “bloco de constitucionalidade”. Assim, ao incorporar em seu texto esses direitos internacionais provenientes de tratados, está a Constituição atribuindo-lhes uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de “norma constitucional”, fazendo com que tais instrumentos passem a integrar o elenco dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados.32 32 A esse respeito, vide o nosso Direitos humanos & relações internacionais, Campinas: Agá Juris, 2000, pp. 96 e ss; instituição toledo de ensino 95 Dessa forma, tanto os direitos como as garantias constantes dos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, passam, com a ratificação desses mesmos instrumentos, a integrar o rol dos direitos e garantias constitucionalmente protegidos. Há de se enfatizar, porém, que os demais tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos, não têm natureza de norma constitucional; terão sim, natureza de norma infraconstitucional (mas supra-legal, estando acima de toda a legislação ordinária), extraída do art. 102, III, b, da Carta Magna de 1988, que confere ao Supremo Tribunal Federal a competência para “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal”. Há, pois, neste novo cenário de proteção dos direitos humanos, um enfraquecimento da noção da não-interferência internacional em assuntos internos, flexibilizando, senão abolindo, a própria noção de soberania estatal absoluta.33 A inovação, no § 2.º do art. 5.º da Constituição de 1988, referente aos tratados internacionais de que o Brasil seja parte, assim, além de ampliar os mecanismos de proteção da dignidade da pessoa humana, vem também reforçar e engrandecer o princípio da prevalência dos direitos humanos, consagrado pela nova Carta como um dos princípios pelo qual a República Federativa do Brasil deve reger-se nas suas relações internacionais (CF, art. 4.º, II). A Carta de 1988 passou a reconhecer explicitamente, portanto, no que tange ao seu sistema de direitos e garantias, uma dupla fonte normativa: (1) aquela advinda do direito interno (direitos expressos e implícitos na Constituição), e (2) aquela outra advinda do direito internacional (decorrente dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte). Como se já não bastasse esse extraordinário avanço, um outro ainda se apresenta. Os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo cf. também “Hierarquia constitucional e incorporação automática dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no ordenamento brasileiro”, in Revista de Informação Legislativa, ano 37, n.º 148, out./dez. 2000, pp. 231-250; e “Direitos humanos provenientes de tratados: exegese dos §§ 1.º e 2.º do art. 5.º da Constituição de 1988”, in Revista Jurídica, ano 48, n.º 278, p. 39-60, Porto Alegre: Notadez, dez. 2000; cf., ainda, “Entrevista” ao Prof. ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, in Justiça e Democracia: revista semestral de informação e debate, n.º 01, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1996, pp. 10-12; FLÁVIA PIOVESAN, Direitos humanos e o direito constitucional internacional, cit., pp. 73 e ss; e CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, que, da mesma forma, conclui atribuir a Constituição “aos direitos humanos definidos em tratado internacional o status de norma constitucional” (cf. Parecer publicado na Revista dos Tribunais, n. º 736, fev. 1997, p. 527). 32 Alguns autores chegam mesmo a negar a soberania externa do Estado, posto não passar de uma competência delegada pela comunidade internacional, no interesse geral da humanidade, o que resulta no entendimento de que existe não só um direito internacional, mas também um direito supranacional ou humano, estando a liberdade do Estado circunscrita tanto por um quanto pelo outro. Cf. A. MANDELSTAM, “La protection internationale des droits de l’homme”, in Recueil des Cours, n.º 38, p. 192; e LEÓN DUGUIT, Traité de droit constitutionnel, vol. 1., 3.ª ed., Paris: E. de Boccard, 1930, p. 588. 96 instituição toledo de ensino Estado brasileiro, passam a incorporar-se automaticamente em nosso ordenamento, pelo que estatui o § 1.º do mesmo art. 5.º da nossa Carta: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. A inserção desta norma no Título correspondente aos “direitos e garantias fundamentais” na Constituição de 1988, fora influenciada, por certo, pelo anteprojeto elaborado pela “Comissão AFONSO ARINOS”, que, em seu art. 10, continha preceito semelhante, o qual estabelecia que “os direitos e garantias desta Constituição têm aplicação imediata”. Ora, se as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez ratificados, por também conterem normas que dispõem sobre direitos e garantias fundamentais, de igual maneira, terão, dentro do contexto constitucional brasileiro, idêntica aplicação imediata. Da mesma forma que são imediatamente aplicáveis aquelas normas expressas nos arts. 5.º a 17 da Constituição da República, o são, de igual maneira, as normas contidas nos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos de que o Brasil seja parte. Atribuindo-lhes a Constituição a natureza de “norma constitucional”, e passando tais tratados a ter aplicabilidade imediata tão logo ratificados, fica dispensada, por isso, a edição de decreto de promulgação a fim de irradiar seus efeitos tanto no plano interno como no plano internacional. Já nos casos de tratados internacionais que não versem sobre direitos humanos, este decreto, materializando-os internamente, faz-se necessário. Em outra palavras, com relação aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, foi adotado no Brasil o monismo internacionalista kelseniano, dispensando-se da sistemática da incorporação, o decreto executivo presidencial para o seu efetivo cumprimento no ordenamento jurídico pátrio, de forma que a simples ratificação do tratado já importa na incorporação automática de suas normas à respectiva legislação interna.34 Além disso, todos os direitos insertos nos referidos tratados internacionais, cuja incorporação é automática, passam, também, a constituírem cláusulas pétreas do texto constitucional, não podendo ser suprimidos sequer por Emenda à Constituição (CF, art. 60, § 1.º, IV ). É o que se extrai do resultado da interpretação dos §§ 1.º e 2.º, do art. 5.º da Lei Fundamental, em cotejo com o seu art. 60, § 4.º, IV. Isto porque, o §1.º, do art. 5.º da Constituição de 1988, como se viu, dispõe expressamente que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais 34 Esclareça-se que não é da data da aprovação parlamentar – por meio de decreto legislativo – que os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos passam a ter aplicabilidade imediata no ordenamento brasileiro, mas sim em face de sua posterior ratificação pelo Presidente da República, a quem compete privativamente, nos termos da Constituição, celebrar tratados, convenções e atos internacionais (CF, art. 84, VIII). A ratificação é imprescindível para a entrada em vigor dos tratados, mesmo porque a vigência interna de um tratado internacional depende da anterior vigência internacional do ato, só alcançada através dela. instituição toledo de ensino 97 têm aplicação imediata”. E o seu art. 60, § 4.º, IV, por sua vez, estabelece que qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais não será objeto sequer de deliberação, tendo em vista o núcleo imodificável desses direitos. Disso se tira uma outra conclusão: os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, uma vez incorporados no direito brasileiro, pelo ato da ratificação, passam a ser insuscetíveis de denúncia, pois, se nem mesmo por Emenda à Constituição esses acordos podem ser abolidos, em face das cláusulas pétreas, nem se diga, então, por simples ato unilateral do Chefe do Poder Executivo.35 Em suma, tendo ingressado tais tratados pela porta de entrada do parágrafo 2.º do art. 5.º da Carta Magna de 1988, passam eles, da mesma forma que aqueles direitos e garantias insertos no texto constitucional: a) a estar dentro dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. II a V ); b) a permear os objetivos fundamentais do Estado brasileiro (art. 3º, inc. I, III e IV ); c) a ser diretrizes que regem as relações internacionais da República Federativa do Brasil (art. 4º, inc. II), e; d) a constituírem cláusula pétrea do texto constitucional (art. 60, § 4º, inc. IV), dando lugar à intervenção federal em caso de sua não-observância (art. 34, inc. VII, b). 5. O CIDADÃO E A CIDADANIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 Como se viu, em face do processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado com a proclamação da Declaração Universal de 1948, e reiterado na segunda Conferência de Viena, em 1993, cidadãos, hoje, são todos aqueles que habitam o âmbito da soberania de um Estado e deste Estado têm assegurados, constitucionalmente, direitos e garantias fundamentais mínimos, com a pertinência de existirem também deveres que obrigatoriamente devem ser cumpridos. Assim, se o processo de internacionalização dos direitos humanos foi fundamental para a abertura democrática do Estado brasileiro, que passou a afinar-se com a nova ordem mundial a partir de então estabelecida, esta abertura, por sua vez, contribuiu grandemente para a solidificação, em nosso país, de um novo conceito de cidadania amoldado às novas exigências da democracia e dos direitos da pessoa humana. A Constituição brasileira de 1988, com a transição para o regime democrático e conseqüente abertura à normatividade internacional de direitos humanos, con35 A esse propósito, já escrevemos: “Insiste-se, todavia, em dizer, que se nem mesmo pela via de emenda à Constituição existe a possibilidade de subtração dos direitos já incorporados na Carta Magna, muito menos se pode pensar em tal fato quando para o ato da denúncia, no direito brasileiro, exige-se, como tem demonstrado a prática diplomática a esse respeito, tão somente a vontade privativa do Chefe do Poder Executivo. A conclusão que se chega, então, é que o sistema brasileiro proíbe qualquer tipo de denúncia envolvendo tratados de proteção dos direitos humanos” (cf. o nosso Direitos humanos & relações internacionais, cit., p. 118). 98 instituição toledo de ensino sagrou, expressamente, esta nova concepção de cidadania, como se depreende da leitura de vários de seus dispositivos, estando hoje superada a antiga doutrina, do tempo do constitucionalismo do império, da cidadania ativa e passiva, que significava a prerrogativa de quem podia participar da vida política do Estado, ou seja, de quem detinha os chamados direitos políticos36, e daqueles a quem faltava este atributo. Observe-se que a Carta de 1988, ao tratar, no seu art. 14, dos direitos políticos, não se refere, sequer em um momento, às expressões cidadão e cidadania, dizendo apenas que a “soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (…)”.37 Pelo contrário: a Constituição faz uma separação entre cidadania e direitos políticos quando, no seu art. 68, § 1.º, II, ao tratar das leis delegadas, exclui do âmbito da delegação legislativa matérias que versem sobre “nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais”, deixando claro que uma e outro não se confundem. Em alguns outros dispositivos da Constituição, a palavra cidadania (ou cidadão) ainda poderia – se assim se quisesse – ter a significação de direitos políticos, mas mesmo assim de forma implícita, a exemplo dos arts. 22, XIII, e 5.º, LXXIII. No primeiro, se lê que compete à União legislar sobre “nacionalidade, cidadania e naturalização”, e no segundo que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência”.38 36 Compõem os direitos políticos, na Carta de 1988, os direitos de votar e ser votado, de referendo, plebiscito e iniciativa popular das leis (CF, art. 14, incs. I, II e III). A soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. O plebiscito consiste na prévia consulta ao povo (eleitorado) sobre a viabilidade de determinado projeto de lei ou medida administrativa. Compete ao Congresso Nacional a sua autorização bem como a do referendo (CF, art. 49, XV ). Foi exemplo de plebiscito a oportunidade de escolha entre república e monarquia, que se deu no dia 7 de setembro de 1993 (art. 2.º, do ADCT, EC n.º 02). Já no referendo a consulta ao povo é posterior à adoção de determinada medida pelo governo ou à edição de uma lei. Aqui, o eleitorado, depois de editada a medida, é chamado para ratificá-la ou lhe retirar a eficácia, por meio do voto. Por fim, a iniciativa popular consiste na apresentação, pelo povo, de projeto de lei à Câmara dos Deputados subscrito, por no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (CF, art. 61, § 2.º). O plebiscito, o referendo e a iniciativa popular são regulados pela Lei n.º 9.709, de 18 de novembro de 1998. 37 Claro que a soberania popular – uma vez que todo poder emana do povo (CF, art. 1.º, parágrafo único) – também faz parte da cidadania, mas isso não significa que ela nisto se resuma. 38 Da mesma forma, os seguintes dispositivos: “Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. § 2º - Às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe: solicitar depoi- instituição toledo de ensino 99 Mas o que importa é que a Constituição de 1988 abandona, sem embargo disso, o velho conceito de cidadania ativa e passiva, incorporando em seu texto a concepção contemporânea de cidadania introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Conferência de Viena de 1993. Foi nesse sentido que, pioneiramente, estatuiu a Carta de 1988, logo em seu art. 1.º, que: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: II – a cidadania (…)”. Seguiu esta trilha o disposto no art. 5.º, incisos LXXI (“conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”) e LXXVII (“são gratuitas as ações de habeas-corpus e habeas-data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania”). No seu Título VIII, Capítulo II, Seção I, a Carta Magna de 1988 dispõe, ainda, que a “educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205). Outro dispositivo em que fica bastante marcada esta nova concepção de cidadania, erigida pela Constituição a fundamento da República Federativa do Brasil, é o art. 64 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que dispõe: “A Imprensa Nacional e demais gráficas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta ou indimento de qualquer autoridade ou cidadão (inc. V).”; “Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao ProcuradorGeral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.”; “Art. 74, § 2º. Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.”; “Art. 89. O Conselho da República é órgão superior de consulta do Presidente da República, e dele participam: VII - seis cidadãos brasileiros natos, com mais de trinta e cinco anos de idade, sendo dois nomeados pelo Presidente da República, dois eleitos pelo Senado Federal e dois eleitos pela Câmara dos Deputados, todos com mandato de três anos, vedada a recondução.”; “Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: II - justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação.”; “Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.”; e, finalmente: “Art. 131, § 1º - A Advocacia-Geral da União tem por chefe o Advogado-Geral da União, de livre nomeação pelo Presidente da República dentre cidadãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.” 100 instituição toledo de ensino reta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, promoverão edição popular do texto integral da Constituição, que será posta à disposição das escolas e dos cartórios, dos sindicatos, dos quartéis, das igrejas e de outras instituições representativas da comunidade, gratuitamente, de modo que cada cidadão brasileiro possa receber do Estado um exemplar da Constituição do Brasil”. Enfim, a Constituição de 1988, enriqueceu e ampliou os conceitos de cidadão e cidadania. Seu entendimento, agora, como bem leciona o Prof. JOSÉ AFONSO DA SILVA, “decorre da idéia de Constituição dirigente, que não é apenas um repositório de programas vagos a serem cumpridos, mas constitui um sistema de previsão de direitos sociais, mais ou menos eficazes, em torno dos quais é que se vem construindo a nova idéia de cidadania”.39 De forma que, não mais se trata de considerar a cidadania como simples qualidade de gozar direitos políticos, mas sim de aferir-lhe um núcleo mínimo e irredutível de direitos (fundamentais) que devem se impor, obrigatoriamente, à ação dos poderes públicos.40 A cidadania, assim considerada, consiste na consciência de participação dos indivíduos na vida da sociedade e nos negócios que envolvem o âmbito de seu Estado, alcançados, em igualdade de direitos e dignidade, através da construção da convivência coletiva, com base num sentimento ético comum capaz de torná-los partícipes no processo do poder e garantir-lhes o acesso ao espaço público, pois democracia pressupõe uma sociedade civil forte, consciente e participativa. A cidadania, nesta ordem de idéias, é o “direito a ter direitos”, para se falar como HANNAH ARENDT.41 Ou seja, é o espaço político onde toda e qualquer manifestação 39 JOSÉ AFONSO DA SILVA. “Faculdades de Direito e construção da cidadania”, cit., p. 141. Na lição de PAOLO BARILE: “(…) lo Stato di diritto […] è poi lo Stato che assoggetta se etesso alle regole di diritto che esso stesso pone. Può cambiarle, ma fino a che i suoi organi competenti a modificarle – e solo essi, in base al principio della separazione dei poteri – non lo modificano, lo Stato non può ignorarle, pena la sua condanna da parte dei suoi stessi tribunali, aditi dall’individuo leso dal comportamento statale illegittimo (il y a des juges à Berlin!)” (Diritti dell’uomo e libertà fondamentali, cit., p. 12). 41 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a esse respeito, assim estabelece em seu Art. 1.º: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”. Para HANNAH ARENDT, a participação dos indivíduos em uma comunidade igualitária construída é a condição sine qua non para que se possa aspirar ao gozo dos direitos humanos fundamentais (cf. The origins of totalitarianism. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1973, pp. 29940 instituição toledo de ensino 101 reivindicatória de direitos se exterioriza; é o direito de lutar por mais direitos, só conseguido através da politização da sociedade, condição fundamental para o acesso ao espaço público.42 Em contrapartida, essa situação subjetiva vê-se envolvida, também, pelos deveres de respeito à dignidade do outro, de cooperação à asserção dos direitos humanos e de colaboração à formação de um mínimo senso político nos demais integrantes da comunidade de que se faz parte. É em relação a este ponto de vista que a Constituição de 1988 faz referência, no seu art. 1.º, incs. II e III, quando diz ser a cidadania e a dignidade da pessoa humana uns dos “fundamentos” da República Federativa do Brasil, incumbindo, portanto, ao poder público – a quem a positivação desta situação subjetiva é dirigida –, a tarefa de não violar o gozo e fruição desses direitos, bem como a de efetivamente proteger e assegurar o seu exercício, garantindo o pleno acesso ao espaço público, condição sine qua non da igualdade entre as pessoas. Esta nova concepção de cidadania, entendida agora num sentido mais aberto, encontra-se, assim, integrada por três novos fatores, até então desconhecidos: o status legal (representado pelo conjunto de direitos assegurados aos indivíduos); o status moral (pertinente às responsabilidades por eles contraídas); e a identidade própria (pertencente a toda a comunidade). Neste novo quadro, onde falecem os súditos e nascem os cidadãos, livres de qualquer ingerência negativa do Estado e iguais em direitos e dignidade, a pedra de toque de todo o sistema passa a ser, primordialmente, a consciência de participação social, cuja efetivação só é conseguida através de uma educação política capaz de lhes desenvolver o senso crítico.43 302). Segundo CELSO LAFER, o conceito arendtiano de cidadania, como o “direito a ter direitos”, aliás, contém “um ideal redistributivo necessário para reduzir, na esfera do privado, as diferenças sociais derivadas da desigualdade econômica à escala do razoável (…) (A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 152). Nesse sentido, a lição de LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA: “A cidadania se expande e se afirma na sociedade à medida que os indivíduos adquirem direitos e ampliam sua participação na criação do próprio Direito. Logo, os direitos estão no centro das idéias de Direito, Estado e cidadania” (“Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republicanos”, cit., p. 292). 42 Para VERA REGINA PEREIRA DE ANDRADE: “É desse locus, enfim, que advém o sentido da cidadania. (…) E, se é verossímil a idéia de que na base da democracia encontra-se a preocupação em realizar direitos (…) e que a cidadania é o espaço político pelo qual a reivindicação e o exercício dos direitos se exteriorizam, a construção da democracia, onde ela inexiste, passa, fundamentalmente, pela realização da cidadania” (Cidadania: do direito aos direitos humanos, cit., p. 130-132). 43 Qualquer pessoa, quem quer que seja, independentemente de idade, cor, credo religioso ou situação financeira, tem aptidão para a prática de atos de cidadania, quando bem educada para tanto. Até mesmo uma criança, absolutamente incapaz pela lei civil, detém este potencial. O Prof. JOSÉ AFONSO DA SILVA, a esse respeito, em recentíssimo livro, conta-nos uma história verídica bastante interessante, que merece ser contada aqui. Numa dessas Chambres d’Hôte, comuns no interior da França, encontrou ele um menino de nome VICTOR GRESSIN, de seus cinco para seis anos de idade, e, numa brincadeira simples, segurou-lhe o braço. Imediatamente, convicto, o garo- 102 instituição toledo de ensino Vestir a camisa de “cidadão”, neste novo cenário, então, é ter consciência dos direitos e deveres constitucionalmente estabelecidos e participar ativamente de todas as questões que envolvem o âmbito de sua comunidade, de seu bairro, de sua cidade, de seu Estado e de seu país, não deixando passar nada, não se calando diante do mais forte nem subjugando o mais fraco.44 Chega a ser uma virtude cívica.45 Significa saber que se pertence a uma determinada comunidade e qual o motivo por que se pertence; significa reivindicar e lutar pelo direito e saber por que se luta ou reivindica. Designa a convicção de que a influência que se exerce em determinado meio – quando assegurado o acesso ao espaço público – é determinante para a consolidação da democracia, hoje entendida como um valor universal. É, enfim, ter o orgulho de saber que a sua dignidade foi alcançada pela sua luta. É ter o orgulho de ser digno. Mas, para a efetivação dessa situação subjetiva, exige-se uma perfeita sincronia entre os poderes públicos e o povo, entre as diferentes faixas etárias, etnias e todos os membros da coletividade, que, interagindo em harmonia, estarão colaborando para o fortalecimento do ideal democrático.46 to advertiu: “Vous n’avez pas le droit de me toucher”. Admirado, soltou-o prontamente. Não disse o menino: “me largue” ou “me solte”. Reprimiu-lhe em termos de direito: “O senhor não tem o direito de me tocar”. Logo depois – conta-nos ainda o Prof. JOSÉ AFONSO –, quis o garoto segurar seu filho, ao que este também advertiu: “Tu n’as pas le droit de me toucher”. E imediatamente o menino se conteve. É dizer: “Aí a consciência tanto do próprio direito que reivindica decisivamente, como do direito do outro que respeita reverentemente. Aí a cidadania que nasce da centenária cultura constitucionalista francesa. É essa a missão do constitucionalismo e dos constitucionalistas: despertar e fomentar a consciência e o respeito dos direitos fundamentais” (cf. Ordenação constitucional da cultura. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 07). 44 Cf. CARLA RODRIGUES & HERBERT DE SOUZA. Ética e cidadania (coleção polêmica). São Paulo: Editora Moderna, 1994. Para CHARLES ANTONIO KIELING: “A cidadania e, conseqüentemente, o bem comum só existem quando o Estado, o mantenedor da organização social, preserva a sobrevivência, sem distinção, desde o mais vulnerável ser até o mais apto, regulamentando as ações. A cidadania exige a perfeita sintonia entre os Poderes e o Povo, entre as diferentes classes e faixas etárias e entre as diferentes etnias. E do conjunto maior sairá a vitória da Democracia” (Manifesto da cidadania, cit., p. 100). 45 Cf. JOSÉ RIBAS VIEIRA. “A cidadania: sua complexidade teórica e o direito”, in Revista de Informação Legislativa, ano 34, n.º 135, jul./set. 1997, p. 220. Nesse sentido, veja-se a lição de LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA: “Nos direitos civis o elemento dominante é o do direito à liberdade e à propriedade. O cidadão é cidadão, segundo essa concepção clássica ou liberal de cidadania, na medida em que tem esses direitos garantidos. Já os direitos cívicos envolvem a idéia de deveres do cidadão para com a sociedade. O cidadão é cidadão na medida em que, além de ter seus direitos egoístas garantidos, assume responsabilidades, em relação ao interesse público, que podem estar em contradição com seus interesses particulares. (…) Os cidadãos serão tanto mais cidadãos quanto menos forem meros espectadores e maior for seu compromisso com o bem comum ou com [o] interesse público” [grifo nosso] (“Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republicanos”, cit., pp. 296 e 302). 46 Cf. CHARLES ANTONIO KIELING. Manifesto da cidadania, cit., p. 100. Sem que haja essa interação entre os órgãos do poder e os membros da coletividade, o “exercício da cidadania” torna-se bastante prejudicado. Como destaca GLADSTON MAMEDE, o exercício da cidadania no Brasil possui três grandes obstáculos: “1.º) o sistema jurídico brasileiro não possui uma ampla definição de possibilidades para uma efetiva participação popular consciente; 2.º) a postura excessivamente conservadora de parcelas do Judiciário, apegando-se a interpretações instituição toledo de ensino 103 Vê-se, dessa forma, que a Carta de 1988 endossa esse novo conceito de cidadania, que tem na dignidade da pessoa humana sua maior racionalidade, principiologia e sentido. Consagra-se no direito brasileiro, de uma vez por todas, os pilares universais dos direitos humanos contemporâneos fundados na sua universalidade, indivisibilidade e interdependência. A universalidade dos direitos humanos consolida-se, na Constituição de 1988, a partir do momento em que ela consagra a dignidade da pessoa humana como núcleo informador da interpretação de todo o ordenamento jurídico, tendo em vista que a dignidade é inerente a toda e qualquer pessoa, sendo vedada qualquer discriminação. Quanto à indivisibilidade dos direitos humanos, a Constituição de 1988 é a primeira Carta brasileira que integra, ao elenco dos direitos fundamentais, os direitos sociais, que nas Cartas anteriores restavam espraiados no capítulo pertinente à ordem econômica e social. A Carta de 1988, assim, foi a primeira a explicitamente prescrever que os direitos sociais são direitos fundamentais, sendo pois inconcebível separar o valor liberdade (direitos civis e políticos) do valor igualdade (direitos sociais, econômicos e culturais). Conclui-se, portanto, que a influência exercida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos foi decisiva para a abertura democrática do Estado brasileiro, e para a conseqüente redefinição da cidadania no Brasil. A Constituição brasileira de 1988, dentro dessa lógica, endossou, de forma explícita, a concepção contemporânea de cidadania, afinada com as novas exigências da democracia e fundada nos pilares magnos da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. 6. EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: RESPONSABILIDADE DE TODOS NA CONSOLIDAÇÃO DA CIDADANIA Por fim, é necessário tecermos algumas palavras sobre o papel da educação no processo de solidificação dos direitos humanos e da cidadania, cujo fundamento também se encontra no texto constitucional brasileiro. A Constituição de 1988, ao consagrar a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, também entrega ao Estado e ao cidadão a tarefa de educar (dever) e ser educado (direito) em direitos humanos e cidadania. Somente com a colaboração de todos os partícipes da sociedade e do Estado, é que os direitos humanos fundamentais alcançarão a sua plena efetividade. O papel de cada um na construção desta nova concepção de cidadania é fundamental para o que limitam absurdamente o alcance dos dispositivos legais que permitiriam uma efetiva democratização do poder; [e] por fim, 3.º) uma profunda ignorância do Direito: a esmagadora maioria dos brasileiros não possui conhecimentos mínimos sobre quais são os seus direitos e como defendê-los” (cf. “Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil”, in Revista de Informação Legislativa, ano 34, n.º 134, abr./jun. 1997, p. 222). 104 instituição toledo de ensino êxito dos objetivos desejados pela Declaração Universal de 1948 e pela Carta Constitucional brasileira. A educação em direitos humanos deve se dar de uma forma tal que os princípios éticos fundamentais que os cercam, sejam para todos nós – membros da coletividade – tão naturais quanto o próprio ar que respiramos. A consolidação da cidadania, em sua forma plena, deve ser o fator principal da criação de uma cultura em direitos humanos. A Declaração Universal de 1948, a esse propósito, deixa bem claro que: “A instrução [leia-se: educação] será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento e do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz” (Artigo XXVI, 2.ª alínea). E foi seguindo esta trilha traçada pela Declaração Universal, que a Carta brasileira de 1988 estatuiu, no seu art. 205, que a “educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Assim o fazendo, conjugou a Constituição, num só todo e de forma expressa, os “direitos humanos”, a “cidadania” e a “educação”, como querendo significar que não há direitos humanos sem a consolidação plena da cidadania, e que não há cidadania sem uma adequada educação para o seu exercício. De forma que, somente com a interação destes três fatores – direitos humanos, cidadania e educação – é que se poderá falar em um Estado Democrático de Direito assegurador do exercício dos direitos e liberdades fundamentais decorrentes da condição humana.47 Como se vê, é também papel da educação o preparo para o exercício da cidadania, considerada aqui no seu sentido amplo, cuja consagração está assegurada tanto constitucionalmente, no âmbito do direito interno, quanto internacionalmente, no contexto dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. 47 Somente a educação política propulsiona a prática da reivindicação de direitos e, conseqüentemente, a consolidação da cidadania. Como destaca PEDRO DEMO: “O desafio maior da cidadania é a eliminação da pobreza política, que está na raiz da ignorância acerca da condição de massa de manobra. Não-cidadão é sobretudo quem, por estar coibido de tomar consciência crítica da marginalização que lhe é imposta, não atinge a oportunidade de conceber uma história alternativa e de organizar-se politicamente para tanto. Entende injustiça como destino. Faz a riqueza do outro, sem dela participar” (Cidadania tutelada e cidadania assistida. Campinas: Autores Associados, 1995, p. 02). instituição toledo de ensino 105 Enfim, a efetiva proteção dos direitos humanos demanda um processo educacional sério em que as gerações presentes e futuras possam sentir-se comprometidas eticamente com a sua condição de cidadãos, sempre com a consciência de que a participação na sociedade é fundamental para a consagração do bem de todos. Como pontifica o mestre ANDRÉ FRANCO MONTORO: “Não basta ensinar direitos humanos. É preciso lutar pela sua efetividade. E, acima de tudo, trabalhar pela criação de uma cultura prática desses direitos”.48 A falta de uma cultura em direitos humanos destrói, pois, todo o referencial ético e principiológico galgado ao longo deste mais de meio século da proclamação da Declaração Universal de 1948, inobstante o alto preço pago por toda a comunidade internacional para a consagração desses direitos, bem como para a sua efetiva positivação em diversos instrumentos internacionais de proteção. A conseqüência mais dramática disso, consiste no fato de ser toda a sociedade levada à irreflexão acerca da produção do mal em massa (de que foi exemplo, dentre outros, o genocídio cometido durante o período nazista) e na conseqüente falta de um mínimo de senso político e de espírito crítico por parte dos indivíduos que a compõem.49 A tarefa de implementar os direitos humanos através da educação é, assim, dever de todos – cidadãos e governo. Mas, aos educadores incumbe a parte mais bravia e dificultosa. Como leciona CHARLES ANTONIO KIELING: “A missão a que esses profissionais da transmissão do conhecimento e do despertar do Senso Político nos educandos se propõe é fundamental para a consolidação das bases que transformarão a Humanidade. O compromisso dos centros educacionais em desenvolver as habilidades dos seus educandos está diretamente relacionado ao bom trabalho e empenho dos educadores. Está nas mãos dos educadores a missão mais significativa da História: a de transformar a humanidade, transformando a escola e a forma pedagógica de educar”.50 48 ANDRÉ FRANCO MONTORO. “Cultura dos Direitos Humanos”, cit., p. 28. Nas palavras de CHARLES ANTONIO KIELING: “Se, no passado, o Senso Político significou para o homem perceber a natureza como um todo, entendê-la, dominá-la e ao mesmo tempo perceber que era necessário defenderse de suas adversidades a fim de tirar proveito dela, hoje significa perceber o conjunto social. Muito mais complexo que um Senso Político contra a natureza animal é desenvolver um Senso Político contra as várias formas de dominação que oprimem o ser humano dentro do ‘tecido’ social. É necessário um novo despertar do Senso Político. Os seres humanos oprimidos e dominados precisam perceber o conjunto social que, estruturalmente, legou-lhes a posição que ocupam na organização social. Uma nova revolução do Senso Político é que possibilitará à humanidade reorganizar-se estruturalmente de forma diferente das sociedades de hoje, pois acelera-se, cada vez mais, a percepção holística dos que compõem a sociedade, possibilitando que os líderes percam seu poder centralizador para as decisões das ‘massas populares’” (Manifesto da cidadania, cit., p. 39). 50 CHARLES ANTONIO KIELING. Op. cit., p. 152. 49 instituição toledo de ensino 106 A educação em direitos humanos, pois, deve se dar de forma a que os seus princípios éticos sejam assimilados por todos nós em sua plenitude, passando a orientar as ações das gerações presentes e futuras, em busca da reconstrução dos direitos humanos e da cidadania em nosso país. Somente assim é que o exercício da cidadania e o respeito aos direitos humanos estarão completos e definitivamente assegurados. 7. CONCLUSÕES I – A idéia de cidadania surgiu como querendo significar a qualidade do indivíduo a quem se atribuíam os direitos políticos de votar e ser votado. Falava-se, então em cidadãos ativos, que gozavam de direitos políticos, e em cidadãos inativos, destituídos dos direitos de eleger e ser eleito. Assim, Homem e Cidadão recebiam significados distintos. O Cidadão teria um plus em relação àquele, consistente na titularidade de direitos na ordem política. II – Em virtude do processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado com a proclamação da Declaração Universal de 1948, esta idéia vai sendo gradativamente modificada. Começou-se, a partir daí, a testemunhar-se uma crescente evolução na identidade de propósitos entre o Direito Interno e o Direito Internacional, no que respeita à proteção dos direitos humanos, que passaram a transcender os interesses exclusivos dos Estados, para salvaguardar, internamente, os interesses dos seres humanos protegidos, afastando-se, de vez, o velho e arraigado conceito de soberania estatal absoluta. O tema, então, passou a ser preocupação de interesse comum dos Estados, bem como um dos principais objetivos da comunidade internacional. III – O Direito Internacional dos Direitos Humanos, como novo ramo do Direito Internacional Público, superando a rígida distinção entre o Direito Público e o Direito Privado e libertando-se dos seus clássicos paradigmas, emerge com princípios próprios, autonomia e especificidade, sendo característica de suas normas a expansividade decorrente da abertura tipológica de seus enunciados. IV – Os direitos humanos passaram a fundar-se nos pilares magnos da universalidade, indivisibilidade e interdependência, consagrados pela Declaração Universal de 1948 e reiterado pela segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos, de Viena, em 1993. Compreendeu-se, finalmente, que o relativismo cultural não pode ser invocado para justificar violações aos direitos humanos. Ficou superada a dicotomia até então existente entre as “gerações de direitos” (civis e políticos de um lado; econômicos, sociais e culturais, de outro), historicamente incorreta e juridicamente infundada, porque não há hierarquia quanto a esses direitos, estando todos eqüitativamente balanceados, em pé de igualdade. V – A Constituição brasileira de 1988, marco fundamental do processo de institucionalização dos direitos humanos no Brasil, em harmonia com os novos propósitos da comunidade mundial, recebe os tratados internacionais de proteção dos instituição toledo de ensino 107 direitos humanos com a natureza de “normas constitucionais”. A abertura do sistema se deu no art. 5.º, § 2.º, pelo qual os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que o Estado brasileiro seja parte. Além disso, a Constituição de 1988, no § 1.º do seu art. 5.º, dá aplicação imediata às normas internacionais de proteção dos direitos humanos devidamente incorporadas ao direito interno, sendo certo que a partir de sua ratificação, esses tratados internacionais já passam a produzir efeitos internamente, prescindido do procedimento promulgatório levado a efeito pelo Presidente da República. VI – Assim, tendo tais tratados ingressado pela porta de entrada do § 2.º do art. 5.º da Carta Magna de 1988, passam eles, da mesma forma que aqueles direitos garantidos no texto constitucional: a) a estar dentro dos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. II a V ); b) a permear os objetivos fundamentais do Estado brasileiro (art. 3º, inc. I, III e IV ); c) a ser diretrizes que regem as relações internacionais da República Federativa do Brasil (art. 4º, inc. II), e; d) a constituírem cláusula pétrea do texto constitucional, passando a ser insuscetíveis de denúncia (art. 60, § 4º, inc. IV ), dando lugar, inclusive, à intervenção federal em caso de sua não-observância (art. 34, inc. VII, b). VII – A Constituição de 1988 abandona o velho conceito de cidadania ativa e passiva, incorporando em seu texto a concepção contemporânea de cidadania introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Conferência de Viena de 1993. VIII – Esta nova concepção, entendida agora em um sentido lato, consiste na consciência de participação dos indivíduos na vida da sociedade e nos negócios que envolvem o âmbito de seu Estado, só alcançados, em igualdade de direitos e dignidade, através da construção da convivência coletiva, com base num sentimento ético comum capaz de torná-los partícipes no processo do poder e garantir-lhes o acesso ao espaço público. Designa, pois, todo o espaço político onde qualquer manifestação reivindicatória de direitos se exterioriza. É o direito de lutar por mais direitos, só conseguido através da politização da sociedade e do acesso ao espaço público. IX – A Carta de 1988 endossa esse novo conceito de cidadania, que tem na dignidade da pessoa humana sua maior racionalidade, principiologia e sentido. Consagrase, de uma vez por todas, os pilares universais dos direitos humanos contemporâneos, afinando-se a nova ordem constitucional com as novas exigências da democracia. X – A universalidade dos direitos humanos consolida-se, na Constituição de 1988, a partir do momento em que ela consagra a dignidade da pessoa humana como núcleo informador da interpretação de todo o ordenamento jurídico, tendo em vista que a dignidade é inerente a toda e qualquer pessoa, sendo vedada qualquer discriminação. Quanto à indivisibilidade dos direitos humanos, a Carta de 1988 integra, ao elenco dos direitos fundamentais, os direitos sociais, que nas Constituições anteriores restavam espraiados no capítulo pertinente à ordem econômica e social. instituição toledo de ensino 108 XI – Portanto, é fácil perceber que a influência exercida pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, ou direito do pós-Segunda Guerra, foi decisiva para a abertura democrática do Estado brasileiro, e para a conseqüente redefinição da cidadania no Brasil. XII – O preparo para o exercício da cidadania é papel fundamental da educação. A efetiva proteção dos direitos humanos demanda, por isso, um processo educacional sério, que desperte nas gerações presentes e futuras a consciência de participação na sociedade e crie um mínimo senso político nos indivíduos que a compõem. 8. BIBLIOGRAFIA AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo, 13.ª ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1997. ________. 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Há disposição nesse sentido em dois momentos: no artigo 20, inciso IX, ao regular quais os bens da União Federal, genericamente dispondo sobre os recursos minerais, conceito que engloba o petróleo e o gás natural; e também no artigo 176, prescrevendo que as jazidas e demais recursos minerais constituem propriedade distinta da do solo e pertencem à União Federal. Podem ser incluídos entre os bens de uso especial, ao se utilizar a conceituação do artigo 66 do Código Civil. Aliás, até como disposto na Constituição Federal, são de uso especial restrito, dependendo de autorização individualizada ou concessão para sua exploração. Também a legislação ordinária assim dispõe. O artigo 3º da Lei n. 9.478/97, que regula as atividades relativas ao petróleo, dispõe que pertencem à União os depósitos de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos. Em regra, os autores classificam a atividade de exploração e produção de petróleo e gás natural como atividade econômica, e não como prestação de serviço 112 instituição toledo de ensino público. Tal interpretação vem do próprio texto da Constituição, uma vez que essas atividades não estão compreendidas dentre aquelas que caracterizariam serviço público1. Constituem, sim, atividade econômica com exploração em regime de monopólio pela União Federal, nos termos do artigo 177 da Constituição. A própria Constituição, ao entender que tais atividades se caracterizam, nos termos do artigo 173, como de importância à segurança nacional e de relevante interesse coletivo, dispõe expressamente que serão exercidas em regime de monopólio pela União Federal. Eros Roberto Grau escreve que, além da hipótese do artigo 177, somente as prescrições dos artigos 21, inciso XXIII, e do artigo 192, inciso II, conteriam atividades econômicas relevantes disciplinadas no texto da própria Constituição.2 O artigo 21, inciso XXIII, continua ainda a prever a exploração de produtos e atividades nucleares e radioativos em regime de monopólio pela União Federal. Por outro lado, o artigo 192, inciso II, que trata das atividades de seguro e resseguro, foi alterado pela Emenda Constitucional n. 13/96, não mais contendo o texto na forma que o autor menciona. O serviço público, dentre aquelas competências materiais estabelecidas na própria Constituição, pode ser prestado diretamente pelo Poder Público, por meio de seus órgãos, autarquias ou empresas estatais; ou também pode ser prestado por empresas privadas em regime de permissão ou concessão, como dispõem os artigos 21, incisos XI e XII, e 175 da Constituição, sempre precedido de prévia licitação.3 Diferencia-se do serviço público a execução de atividades econômicas em regime de monopólio. Os serviços públicos visam a atender uma necessidade da coletividade, estão submetidos ao regime jurídico administrativo e são regrados por meio de princípios próprios do direito administrativo: continuidade do serviço público, contratação por meio de contratos administrativos e exercício por meio de funções públicas4. Podem, ainda, ser citados os princípios da mutabilidade do regime jurídico e da igualdade dos usuários. O exercício de atividade econômica pelo Poder Público em regime de monopólio não apresenta todas essas características. Trata-se, sim, de uma atividade privada, a qual, exercida por meio de uma entidade da Administração (no mais das vezes, uma empresa estatal), está sujeita ao regime jurídico administrativo tão-somente naqueles pontos que este revoga o direito privado. Melhor dizendo, prevalece a regulamentação pelo direito privado, revogado em parte pelo regime jurídico administrativo. Dessa forma, exemplificando, a empresa estatal necessita de concursos pú1 Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 146; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, 11. ed., São Paulo: Atlas, 1999, p. 104. 2 Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, ob. cit., p. 145-147. 3 Celso Antonio Bandeira de Melo entende que o Estado pode, pela via legislativa, criar outras modalidades de serviço público, desde que não ofenda os princípios da ordem econômica garantidores da livre iniciativa. (Curso de direito administrativo, 11. ed., São Paulo: Malheiros, 1999, p. 486). 4 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, ob. cit., p. 101. instituição toledo de ensino 113 blicos para contratação de funcionários e de licitação para empreender contratos de aquisição de mercadorias e serviços, no entanto seus funcionários não exercem função pública, são regidos pelas normas gerais da legislação trabalhista. 2- O MONOPÓLIO DA UNIÃO FEDERAL NAS ATIVIDADES COM PETRÓLEO O artigo 177 da Constituição Federal foi alterado pela Emenda Constitucional n. 9/95. Essa emenda alterou esse dispositivo para acrescentar um parágrafo. Com isso, o caput do dispositivo continua a prever que constitui monopólio da União Federal as atividades de pesquisa, lavra, refino, importação e exportação de petróleo e gás natural; no entanto, o parágrafo acrescido prevê a possibilidade da União Federal contratar com empresas estatais ou privadas a execução dessas atividades. Assim, não houve a quebra do monopólio da exploração do petróleo e do gás natural, mas, sim, procedeu-se a uma abertura que permite à União Federal que, no exercício da atividade econômica monopolizada, contrate empresas privadas para o desenvolvimento de algumas atividades previstas no artigo 177. A atividade continua monopolizada, uma vez que a União Federal pode exercer a fiscalização; além disso, as empresas privadas somente podem atuar após a concessão feita pela União Federal. Eros Roberto Grau diz que essa emenda constitucional operou a relativização do monopólio estatal do petróleo e que a emenda permite a privatização da própria Petrobras.5 Nesse mesmo sentido, dispõe a Lei n. 9.478/97, no artigo 4º, ao prever o monopólio da União Federal em relação a essas atividades; e no artigo 5º, ao prever a possibilidade de sua exploração por empresas privadas que obtiverem concessão ou permissão, sempre reguladas e fiscalizadas pela União Federal. Conclui-se, assim, que o regime de monopólio na execução dessa atividade econômica continua a existir; no entanto, pela alteração do texto da Constituição, a União Federal pode contratar empresas estatais e privadas para a realização das atividades. Significa dizer que o monopólio passou do regime de exercício direto da atividade para um regime de atribuição da atividade e fiscalização da sua atuação. A Agência Nacional do Petróleo, nos termos da Lei n. 9.478/97, tem a competência de regular, fiscalizar e contratar as atividades relativas à indústria do petróleo e do gás natural (art. 8º). Constitui-se em uma autarquia integrante da Administração Indireta, vinculada ao Ministério das Minas e Energia, criada em regime especial. No atual modelo de gestão do Poder Público, vem se tornando comum a criação de autarquias, com regime especial, na qual seus dirigentes tem mandato fixo, e poder regulador e fiscalizador sobre certas atividades, nas quais são especializadas. 5 Eros Roberto Grau, A ordem econômica na Constituição de 1988, ob. cit., p. 300. 114 3- instituição toledo de ensino O CONTRATO DE CONCESSÃO PARA A EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO A concessão à empresa privada para a exploração de atividades relacionadas a petróleo não constitui uma concessão de serviço público, uma vez que possui o caráter de atividade econômica. Trata-se sim de um contrato administrativo de concessão de uso de bem público. Como escreve Maria Sylvia Zanella Di Pietro6, “concessão de uso é o contrato administrativo pelo qual a Administração Pública faculta ao particular a utilização privativa de bem público, para que a exerça conforme a sua destinação. Sua natureza é de contrato de direito público, sinalagmático, oneroso ou gratuito, comutativo e realizado intuito personae.” A hipótese prevista no artigo 177, parágrafo 1º, como acima mencionado, que relativizou o monopólio do petróleo, remete à lei a disciplinação na forma de contratação. E a lei se refere a essa espécie de contratação (Lei n. 9.478/97, arts. 5º e 23). Este último assim prescreve: as atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural serão exercidas mediante contratos de concessão, precedidos de licitação, na forma estabelecida em lei. Ao ser considerado um contrato de concessão, celebrado pela União Federal, no exercício da atividade econômica monopolizada, para exploração de bens públicos de uso especial, há de ser entendido como contrato administrativo. Tanto assim é que a União Federal participa dessa relação contratual como Poder Público, na defesa do interesse público, com prevalência de interesses e poder de disciplinação do conteúdo do contrato e fiscalização da sua execução. A sua contratação depende de prévia licitação (art. 23 da Lei n. 9.478/97), com requisitos rígidos de contratação, o que demonstra, novamente, que o contrato possui natureza pertinente ao regime jurídico administrativo. 4- CONCLUSÃO PARA OS FUNDAMENTOS DA RESPONSABILIDADE Ao se falar em responsabilidade civil da empresa concessionária perante terceiros e perante o Poder Público, trata-se de responsabilidade objetiva, e isso por dois motivos. É necessário, desde logo, afastar a hipótese de aplicação do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição, o qual disciplina a responsabilidade civil objetiva para os 6 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito administrativo, ob. cit., p. 544. instituição toledo de ensino 115 casos de prestação de serviço público. No caso, ao se considerar tais atividades como econômicas, não se poderia pretender aplicar tal dispositivo. Em primeiro lugar, para justificar a responsabilidade objetiva, cita-se a própria lei. A Lei n. 9.478/97, artigo 44, inciso V, dispõe que o contrato de concessão estabelecerá que a empresa concessionária estará obrigada a “responsabilizar-se civilmente pelos atos de seus prepostos e indenizar todos e quaisquer danos decorrentes das atividades de exploração, desenvolvimento e produção contratadas, devendo ressarcir à ANP ou à União os ônus que venham suportar em conseqüência de eventuais demandas motivadas por atos de responsabilidade do concessionário”. Grifamos a expressão – todos e quaisquer danos decorrentes das atividades. A própria lei cria, a meu ver, uma hipótese de responsabilidade objetiva, sem necessidade de prova de culpa ou da empresa ou de seus prepostos. Para a interpretação desse dispositivo, deve-se levar em conta dois pontos. Primeiro, que a responsabilidade civil vem caminhando para a fixação da responsabilidade objetiva, sem culpa, para as atividades consideradas de risco e para aquelas que compõem o denominado risco empresarial ou do negócio. No caso, tal peculiaridade é clara e patente. A empresa privada que passa a exercer tal atividade assume o risco, perante a sociedade, da atividade econômica perigosa que exerce. Além do mais, há de se verificar uma previsão de ressarcimento da responsabilidade objetiva subsidiária estatal; ora, se o Poder Público vier a responder a um indivíduo com base na responsabilidade objetiva, sob o argumento do ressarcimento do dano individual em prol do exercício de uma atividade que beneficia a coletividade, o ressarcimento há que ser entendido da mesma forma, independentemente da prova de culpa do concessionário, quer empresa, quer seus prepostos. Esse seria o primeiro ponto a fundamentar. A meu ver, há uma hipótese de responsabilidade objetiva legalmente prevista no artigo 44, inciso V, da Lei n. 9.478/97, alcançada pela interpretação que se faz do dispositivo à luz da moderna orientação da responsabilidade civil baseada no risco do negócio da empresa. Em segundo lugar, essas atividades estariam alcançadas pela responsabilidade objetiva, por duas outras legislações – ambiental, quanto aos riscos ao meio ambiente; e o Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8.078/90. Quanto a esta última lei, observamos o conceito de consumidor previsto no artigo 29, o qual alcança qualquer pessoa envolvida no processo de produção em série desse produto. Ao se considerar que todos os indivíduos domiciliados ou em trânsito pelo território brasileiro são potenciais e efetivos consumidores dos produtos derivados do petróleo e do gás natural, as empresas concessionárias devem instituição toledo de ensino 116 indenizar quaisquer danos aos consumidores (entendidos nesse conceito amplo) que venham a causar. Vê-se assim, por fim, que a interpretação dos dois pontos acima mencionados indicam tão-somente um sentido – as empresas concessionárias das atividades de petróleo respondem objetivamente, sem necessidade de prova da culpa da empresa ou de seus prepostos, por quaisquer danos que resultarem de suas atividades. Não consideramos também que se aplique à hipótese o artigo 1.521 do Código Civil para regular a responsabilidade nas atividades mencionadas. Como já dito, as empresas respondem objetivamente por quaisquer danos que causarem no exercício da atividade que executam. Entretanto, tal dispositivo pode ser aplicado para o enquadramento da responsabilidade da empresa por danos causados por seus prepostos fora do exercício das atividades fins da empresa. 5- BIBLIOGRAFIA BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. BARROSO, Luís Roberto. Modalidades de intervenção do Estado na ordem econômica – Regime jurídico das sociedades de economia mista – Inocorrência de abuso do poder econômico. Rio de Janeiro: Forense, v. 343, p. 293-312. CARBONELL PORRAS, Eloísa e MUGA, José Luis. Agencias y procedimiento administrativo em Estados Unidos de America. Madrid: Marcial Pons, Ediciones Juridicas y Sociales, 1996. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Atlas, 1999. ________. Natureza jurídica dos bens das empresas estatais. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo, Centro de Estudos, n. 30, p. 173-186, 1988. ________. Parcerias na administração pública. 3. ed. São Paulo: Atlas, 1999. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de derecho administrativo. 1ª ed. Madrid: Civitas, 1977. v. 1. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. MODESTO, Paulo Eduardo Garrido. Reforma administrativa e marco legal das organizações sociais no Brasil. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, abr. 1998. ROJAS, Francisco José Villar. Privatización de servicios publicos. Madrid: Tecnos, 1992. a tributação da propriedade imobiliária urbana na constituição de 1988 Antonio Carlos Batista Martinez Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Bauru - ITE. O presente trabalho, sucinto e despretensioso, consiste em breves apontamentos com o escopo maior de compilar os vários entendimentos da doutrina jurídica e posicionamento jurisprudencial acerca da tributação incidente sobre a propriedade imobiliária, especificamente a urbana, levando-se em consideração a função social da propriedade. Os estudos nos fizeram analisar que a ferocidade do poder impositivo do Estado encontra, na atual Carta Política, mais uma limitação lançada frente a uma nova posição social: o direcionamento da função social da propriedade imobiliária. A análise da progressividade do IPTU é o ponto central do estudo, levando-se em conta a função social da propriedade. A PROGRESSIVIDADE - O IPTU - COMO INSTRUMENTO VISANDO À PROPRIEDADE COM EFETIVA FUNÇÃO SOCIAL Para estudo do tema, verifica-se a novidade lançada na atual Carta no artigo 156, § 1.º ( texto primeiro), onde preceitua: "O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos da lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade". instituição toledo de ensino 118 Interpretando sistematicamente as disposições constitucionais, depara o leitor com a importância que o legislador constitucional deu ao tema. Em primeiro plano, dentro dos Direitos Individuais e Coletivos, a Carta assim consagra: "Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o Direito de Propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;" Inserto no Sistema Tributário Nacional: Art. 156. Compete aos Municípios instituir imposto sobre: I - propriedade predial e territorial urbana; (...) § 1.º O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”1 Na ordem econômica: "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) I - propriedade privada; II - função social da propriedade Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. 1 A E.C. n.º 29 alterou a redação do § 1.º do art. 156, assim, ipsis verbis: “Art. 156 ............... § 1.º. Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4.º, inciso II, o imposto previsto no inciso I pode: I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e II – Ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.” instituição toledo de ensino 119 § 1.º. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2.º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. § 3.º. As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4.º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. O artigo 156 trata de regramento definidor da competência legislativa da pessoa jurídica de direito público interno integrante da República Federativa do Brasil. O legislador constitucional coloca freios ao poder impositivo do Estado, estabelecendo limitações constitucionais ao poder de tributar, fixando, ainda, as competências da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para instituir e cobrar tributos. A competência tributária constitucional concernente aos Municípios encontra-se descrita no artigo 30, III, da Magna Carta, ipsis verbis: Artigo 30. Compete aos Municípios: (...) III - Instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei. A exclusiva competência do Município encontra-se, portanto, inserta na Constituição Federal. A ele está afeto a competência tributária que, segundo o CTN, é indelegável, destacando-se neste, especialmente, a instituição, arrecadação e fiscalização, para o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, podendo 120 instituição toledo de ensino torná-lo progressivo visando assegurar o cumprimento da função social da propriedade. Utiliza, o legislador constitucional, a forma de atuação do IPTU como instrumento visando o cumprimento da função social da propriedade. Assim, esta utilização é de caráter extrafiscal. Duas vertentes a serem colhidas no texto constitucional: A primeira a que chamaremos de "progressividade simples", esculpida no artigo 156, § 1.º, combinada com o disposto no artigo 182, caput, e seus §§ 1.º e 2.º. A segunda, a que denominaremos de "progressividade complexa", identificada por alguns como progressividade no tempo, de cunho sancionatório do inciso II, § 4.º, do art. 182 da CF. Sempre é bom lembrar que a utilização do IPTU com funções extrafiscais decorre da conjugação do § 1.º do artigo 156 com o artigo 182, caso contrário estaremos diante da natureza fiscal consagrada no § 1.º do artigo 145, repelida pela Suprema Corte. A progressividade decorrente do § 1.º do artigo 156 interage, como característica de "progressividade simples", com o contido no § 2.º do artigo 182, uma vez que define quando a propriedade urbana cumpre a sua função social, ou seja, quando atenda às exigências fundamentais do plano diretor. Plano Diretor, nos dizeres do saudoso Hely Lopes Meirelles2 "é um instrumento norteador dos futuros empreendimentos da Prefeitura para o racional e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade; por isso não exige plantas, memoriais e especificações detalhadas, pedindo apenas indicações precisas do que a administração municipal pretende realizar com a locação aproximada e as características estruturais ou operacionais que permitam, nas épocas próprias, a elaboração dos projetos executivos...” De se notar nesta oportunidade que o plano diretor é condição obrigatória em cidades com mais de 20 mil habitantes (§ 1.º do art. 182). Sendo o plano diretor requisito necessário à instituição da progressividade simples, conclui-se possível, juridicamente, a sua instituição naqueles municípios com número de habitantes menor ao fixado naquele dispositivo, desde que tenham optado pela edição do Plano Diretor. A importância da verificação do plano diretor é de tal tamanho que este, alterando suas áreas, definindo outros requisitos, não há que se falar em direito adquirido, mesmo já tendo o proprietário licença para a construção. 2 Hely Lopes Meirelles, Direito de Construir, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 102. instituição toledo de ensino 121 “O direito de construir é mera faculdade do proprietário, cujo exercício depende de autorização do Estado. Inexiste direito adquirido à edificação anteriormente licenciada, mas nem sequer iniciada, se superveniente foram editadas regras novas, de ordem pública, alterando o gabarito para construção no local”. Este é o entendimento do Supremo Tribunal Federal3. Portanto, para progressividade simples, necessária a existência de plano diretor (apenas para os municípios com mais de vinte mil habitantes); lei fixando a área dentro do plano diretor para a incidência tributaria. O legislador municipal, visando a garantir o bem-estar de seus habitantes, pode utilizar-se da progressividade simples (art. 156, § 1.º ). “IPTU- Progressividade - Lei Municipal que adota o sistema de alíquotas graduais progressivas por classes de valor venal - Função social da propriedade- Constitucionalidade - Aplicabilidade do artigo 156, I e § 1.º da C.F. Lei Municipal que adota o sistema de alíquotas graduais progressivas por classe de valor venal na apuração do IPTU, para assegurar a função social da propriedade, não pode ser considerada inconstitucional por falta de definição em lei federal sobre o que seja função social da propriedade, pois a própria Constituição Federal, ao estabelecer em seu artigo 156, I, e § 1.º, que compete aos municípios instituir impostos sobre a propriedade predial e territorial urbana — e tais podem ser progressivos de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade, não impôs a edição de qualquer norma de caráter federal para tal finalidade.” (TACivSP, Ap. 632.800-9, 5.ª Câm., J. 21.08.96, Rel. Juiz Joaquim Garcia, v.u. RT 734/356). Progressividade complexa é aquela advinda da conjugação do artigo 156, § 1.º, com o § 4.º do artigo 182. Tal progressividade, como dito antes, é de cunho sancionatório, identificada por alguns como progressividade no tempo. O Código Tributário Nacional, ao conceituar o que seja tributo, no seu artigo 3.º, menciona que “tributo é toda prestação pecuniária compulsória que não constitua sanção por ato ilícito...” A idéia de penalizar, deve aqui ficar registrado, não é a utilização do tributo, pois este integra o ius imperium do Estado, ou seja, de seu poder impositivo. Mas 3 RDA 190/181. 122 instituição toledo de ensino o reflexo da não destinação da área a uma devida função social é o fator preponderante para a sanção. A progressividade poderá ser levada a efeito. Não há de se falar em sanção por ato ilícito, mas pena pelo não cumprimento da função social da propriedade e o mecanismo a ser utilizado é a progressividade. Achamos, por bem, chamar de progressividade complexa, uma vez da interpretação sistemática que devem ser submetidos os dispositivos retro declinados, além do que, para a sua aplicabilidade necessária a existência do plano diretor; de lei especifica determinando a área dentro do plano diretor e lei federal de política urbana estabelecendo parâmetros para o parcelamento e a edificação compulsória com indicação de prazo para o proprietário promover o adequado aproveitamento. Portanto, só se completam os requisitos para a instituição da progressividade do § 4.º do artigo 182 com a edição de lei federal, daí o indicativo de “progressividade complexa”. Observa-se, ainda, que a função social da propriedade deve estar explicita e não implícita no plano diretor, ou seja, as exigências fundamentais devem estar expressas, claramente definidas. No campo prático, deve, após o preenchimento dos requisitos acima, a administração dotar-se de mecanismos para comprovar as razões da não edificação ou não utilização da área, em decorrência do princípio da ampla defesa e do contraditório. Ilustramos com o posicionamento do 1.º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo: “IPTU - Progressividade indireta - Caráter sancionatório - necessidade, porém, de comprovação de que o proprietário está objetivando meramente a especulação, deixando a propriedade de ter função social - falta que torna ilegal a sua cobrança. A cobrança do IPTU com progressividade inversa, reduzindo sua alíquota pela incidência de diversas isenções, conforme o enquadramento do imóvel em categoria preestabelecidas, tem caráter sancionatório, idêntico ao do tributo progressivo no tempo, razão pela qual depende de lei federal, conforme expresso no artigo 182, § 4.º, da CF. Todavia, para aplicar essa pena, indispensáveis, além do esclarecimento legal do que seja a função social da propriedade, o “Plano Diretor” e o prévio processo administrativo, a fim de que se possa aferir as razões de sua não edificação, subutilização ou não utilização. Realmente sem a comprovação de que o proprietário está objetivando meramente a especulação, deixando a propriedade de ter função social, de modo a garantir o bem-estar da população, descabe a aludida progressividade indireta ou no tempo”. instituição toledo de ensino 123 De observar-se que a progressividade prevista no § 4.º do artigo 182 não pode ser aplicada de plano. Só poderá ser aplicada quando o parcelamento ou edificação compulsórios não surtirem os efeitos desejados, uma vez que o legislador utiliza o termo “sucessivamente”. A progressividade, aqui, portanto, poderá ser utilizada como segunda medida. É de se concluir portanto, em face do entendimento jurisprudencial e doutrinário aqui lançado: a) a classificação jurídica do tributo é resultado de interpretação jurídica da Constituição e não aquela advinda de estudos da área econômica ou financeira; b) a tributação é instrumento de uma política social não sendo, tão somente, mecanismo de geração de recursos para o Estado; c) a progressividade significa previsão de maiores quantidades de alíquotas quanto maior for a base de cálculo do imposto. Existe uma elevação progressiva quanto maior a riqueza do contribuinte; d) a progressividade fiscal é aquela cujo único interesse é a arrecadação contida no § 1.º do artigo 145; e) o aspecto dimensionador da capacidade econômica do sujeito passivo em sede de IPTU é o valor venal - parâmetro para a fixação das alíquotas; f ) entende o STF que não é admitida pelo texto da atual Carta Política a progressividade fiscal, com base exclusivamente na capacidade econômica do contribuinte; g) a única progressividade admitida é a progressividade extrafiscal; h) para garantir a função social da propriedade o disposto no artigo 155, § 1.º da CF é auto-aplicável, podendo os Municípios instituir IPTU progressivo, independentemente de Lei Federal, pois o próprio texto constitucional delimita os elementos e requisitos necessários à sua instituição; i) a utilização do IPTU com funções extrafiscais decorre da conjugação do artigo 156, § 1.º, com o artigo 182 da CF, com finalidade de assegurar a função social da propriedade; j) progressividade simples é aquela decorrente do contido no § 1° do artigo 156 combinado com o § 2.º do artigo 182, uma vez que este último dispositivo define quando a propriedade urbana cumpre a sua função social, podendo de plano ser instituída; l) progressividade complexa é aquela decorrente da conjugação do artigo 156, § 1.º com o § 4.º do artigo 182 que, para sua instituição necessária a edição de lei federal para política urbana; m) o legislador constitucional ao inserir o termo "sucessivamente" no § 4.º do artigo 182 determinou que a progressividade complexa poderá ser utilizada como segunda medida de atuação do Estado, ou seja, somente após o parcelamento ou edificação compulsórios tornarem-se ineficaz. ADVENTO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 29, DE 13 DE SETEMBRO DE 2000 124 instituição toledo de ensino Em setembro do ano dois mil foi editada a Emenda Constitucional nº 29. Referida Emenda, em seu artigo 3.º altera a redação do § 1.º do artigo 156 da Carta Política, assim, ipsis verbis: “Art. 3.º. O § 1.º do art. 156 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 156 .............................................” § 1.º. Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4.º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá: I – ser progressivo em razão do valor do imóvel: e II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel. .................................” A grande novidade está na progressividade em razão do valor imóvel. Nesse dispositivo, o legislador altera a rota, substancialmente, do estudo tributário acerca das características do IPTU. Com tal redação, reforça-se a teoria para justificação da progressividade que proclama a existência de diferenças patrimoniais e nada mais justo e social senão a progressividade dos impostos. Destaca-se que os fundamentos são políticos, onde os que tiverem maior parte patrimonial deverá dar maior contribuição para a coletividade. Colhemos o posicionamento de alguns juristas no jornal “O Estado de São Paulo”, de 26 de agosto de 2000, uma vez que a alteração é recente: Celso Ribeiro Bastos afirma: “Não podemos retroceder em coisa que já foram decididas no passado. O julgamento do Supremo Tribunal Federal, que declarou inconstitucional a progressividade em 1996, é válido. A única hipótese de progressividade, segundo o STF, está prevista no artigo 182 da Constituição Federal. No parágrafo 4.º, é permitido aos municípios, mediante lei específica para área incluída no Plano Diretor, estabelecer a ‘progressividade no tempo’ para proprietários de terrenos sem edificações, subutilizados ou não utilizados”. O ex-presidente da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), João Piza, afirmou que o poder dos Prefeitos quanto à progressividade é limitado pela Constituição. “A emenda não mudou o soneto” assinalando que ela não revoga o artigo 182 da Constituição. Ele explicou que a progressividade tem caráter de penalidade e já foi prevista como uma exceção: “Se a propriedade estiver de acordo com o Plano Diretor, o imposto não pode ser progressivo”. instituição toledo de ensino 125 O jurista Dalmo Dallari, entretanto, defende a aplicação da alíquota progressiva do IPTU para forçar uma política de desenvolvimento urbano, punindo os especuladores imobiliários com áreas ociosas. Na opinião de Dallari, “a proposta da emenda constitucional estabelecendo a progressividade do imposto é legal”. Aparece agora o caráter fiscal da progressividade do IPTU. Lembramos que já havia sido declarada a inconstitucionalidade da lei municipal que fixou alíquotas progressivas em função do valor venal do imóvel. Referida inconstitucionalidade foi declarada com base em interpretação do texto originário do artigo 156 da Carta Política. Com a nova redação dada pela Emenda Constitucional n.º 29, as leis em comento seriam constitucionais. Portanto, a progressividade do novo artigo 156, § 1.º tem como critério definidor somente o valor do imóvel. Levando-se em consideração a base de cálculo do tributo, portanto, este é o valor venal do imóvel. Assim, o valor venal do imóvel deverá ser levado em consideração como parâmetro para a progressividade das alíquotas. É o aspecto dimensional da capacidade econômica do sujeito passivo. A indicação de qualquer outro elemento fulmina a natureza fiscal da progressividade. Convém recordar as considerações do professor Kiyoshi Harada ao tecer breves comentários acerca das decisões do STF sobre a natureza real do IPTU e do ITBI a impedir a progressividade fiscal, relatada no item 3.10 deste trabalho: “Na verdade, exatamente a graduação de alíquotas, em função do valor venal dos bens adquiridos pelo contribuinte, conferiam caráter pessoal a esses impostos”. Defende, pois, o referido jurista, que, atualmente, não mais vigora a classificação doutrinária dos impostos em pessoais e reais. Com a alteração, fixando como único critério o valor do imóvel para a progressividade do inciso I, do § 1.º, do artigo 156, não há mais que se discutir se a propriedade in casu está tendo uma função social. Basta, somente, lei municipal fixando tal progressividade, levando-se em consideração as demais limitações constitucionais ao poder de tributar. Já no inciso II, reafirma-se o caráter extrafiscal, uma vez que a progressividade é utilizada como fator de estímulo ou inibidor que no caso será o uso do imóvel atrelando-se a sua localização. A interpretação deverá ser sistemática, levando-se em consideração o disposto no artigo 182. Para o legislador municipal fixar a progressividade, levando-se em consideração a localização e o uso do imóvel, deverá necessariamente observar a política de desenvolvimento e de expansão urbana. Referida política é estabelecida no plano diretor da cidade, conforme preceitua o § 1.º do artigo 182. 126 instituição toledo de ensino Atendendo às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressa no plano diretor, a propriedade estará cumprindo a sua função social. Bastará, portanto, o exercício da competência tributária do Município para a fixação da progressividade aqui em comento. Do exposto, passa a ter com o novo texto do artigo 156, advindo através da Emenda Constitucional n.º 29, três possibilidades de estipulação da progressividade do IPTU: a) a progressividade no tempo com característica de penalidade, prevista no artigo 182, § 4.º, inciso II, a que denominamos de progressividade complexa. Progressividade com característica extrafiscal; b) progressividade levando-se em consideração única e exclusivamente o valor do imóvel, a que denominamos de progressividade simples. Progressividade com característica fiscal; e c) progressividade de acordo com a localização e o uso do imóvel, a que denominamos de progressividade simples com característica extrafiscal. CONCLUSÃO O Direito de Propriedade é que deu base a toda estrutura social. A propriedade, ainda hoje, é uma das instituições jurídicas muito controvertida. Não existe um só posicionamento conceitual a respeito do Direito de Propriedade. Não se vislumbra, também, harmonia referente ao seu fundamento jurídico que os doutrinadores procuram fixar, por meio de várias teorias, fundamental ao equilíbrio das relações sociais. Utilizando as palavras dos pensadores Voltaire e Montesquieu, lembremos que não somos membros iguais dentro de uma sociedade embora igualmente homens. As sociedades, embora permitam que os homens nasçam na igualdade, os diferenciam, não permitindo que permaneçam iguais, exceto perante a lei. Na atual Constituição, o conceito de propriedade é sem dúvida alguma mais amplo do que o visto pelo Direito Civil. A doutrina sustenta que o conceito de propriedade na atual Constituição é mais amplo que aquele aplicado ao Direito Civil. Neste último, o Direito de Propriedade é o direito de usar e dispor de uma coisa. Frente ao Direito Constitucional representa um direito de conteúdo econômico-patrimonial. Não se limita, pois, ao direito real, mas também incide nos direitos pessoais, de fundo patrimonial, com observação que este deve atender a função social. A Constituição, visando a recolocar a propriedade na sua trilha normal, cria um conjunto de normas denominando-as de “função social”. Não pode existir um regime único da função social porque os diversos domínios sob os quais se exerce a propriedade também são distintos. Todavia, está instituição toledo de ensino 127 claro que a Constituição direcionou sua atenção aos bens materiais, mais especificamente o domínio da terra. O princípio da função social da propriedade já era anteparo para a inserção da modalidade de desapropriação por interesse social na Constituição de 1946, antes de expressamente constar na Carta de 1967. A justificativa para a inserção dessa inovação na Carta Maior emana da necessidade de o homem possuir como seu, de forma absoluta aqueles bens necessários à sua vida, à sua profissão, à sua manutenção e à de sua família, mesmo os que constituem economias para o futuro. Além desse mínimo, a propriedade tem uma função social de modo que seu proprietário a explore e a mantenha dando-lhe utilidade, concorrendo para o bem comum. Não chega ao extremo de negar a propriedade, mas, superpondo o bem comum ao bem individual, admite a expropriação das propriedades inúteis, das que poderiam ser cultivadas e não o são, daquelas cujo domínio absoluto chega a representar um acinte aos outros homens. O intuito é, também, para estabelecer a possibilidade de uma desapropriação que não seja nem por necessidade do Estado, em si, como órgão diretor da sociedade em geral, nem por utilidade pública, para qualquer serviço do Estado. Mas, que possibilite a desapropriação sempre que necessária à ordem social, à vida social. Na atual Constituição, o legislador consagra o direito à propriedade no artigo 5.º, XII, determinando, no artigo 5.º XXIII que a propriedade deverá atender à sua função social. Ela, ainda, volta a ser incluída dentre os princípios da ordem econômica, que têm por finalidade “assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170, III). Quanto ao tema aqui em enfoque, a propriedade urbana, no artigo 182, § 2.º, determina que ela “cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano-Diretor”. Constituindo o Plano Diretor como “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”. Inserindo, o legislador, a obrigatoriedade do Plano para as cidades com mais de vinte mil habitantes. O proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, fica interinamente a disposição do Poder Público, quanto aos seus direitos, uma vez que mediante lei específica, pode o Poder Público exigir o adequado aproveitamento. Discrimina as penalidades caso não haja o devido aproveitamento, alertando que são sucessivas: a) parcelamento ou edificação compulsórios; b) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; c) desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais (art. 182, § 4.º). Sobre a propriedade, lança o Estado, através do seu poder impositivo, tributação à propriedade imobiliária. 128 instituição toledo de ensino Destaca-se a propriedade predial territorial urbana no Sistema Tributário Nacional fixando-se a progressividade; só que esta deve atender exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1.º, aplicado com as limitações dos §§ 2.º e 4.º do artigo 182 da Carta Política. A progressividade fiscal com supedâneo no § 1.º do artigo 145 da CF, com fundamentação na capacidade econômica do contribuinte, apurada pelo fatores de identificação do patrimônio; dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte, não encontra respaldo quando se fala em imposto com caráter real, que é o caso do IPTU, uma vez que tem o fato gerador na propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel localizado na zona urbana do Município, ou seja, não se leva em consideração as condições inerentes do contribuinte. Insta salientar que os intérpretes do Direito entendem não ser possível a progressividade fiscal do IPTU uma vez que este tem caráter real. Tal interpretação vem sendo firmada jurisprudencialmente, declarando-se inconstitucional lei que cria progressividade sem atender exclusivamente o disposto no artigo 156, § 1.º, com aplicação das limitações dos §§ 2.º e 4.º do artigo 182 da Carta Política Vigente. Portanto, só é possível a progressividade do Imposto Predial Territorial Urbano para o fim extrafiscal de assegurar a função social da propriedade, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal. Com o novo texto do artigo 156, advindo da Emenda Constitucional n.º 29, a novidade é a possibilidade de graduação de alíquotas em função do valor do imóvel, o que confere, agora, a característica fiscal. Por outro lado, encontra-se auto-aplicável a disposição normativa do artigo 156, § 1.º, da Lei Maior, podendo os Municípios de logo e independentemente de lei federal, instituir o IPTU tendente, porém, a garantir eficácia à função social da propriedade. A Constituição define que a propriedade urbana cumpre a sua função social quando atenda às exigências fundamentais do Plano Diretor. O Plano Diretor é condição obrigatória em cidades com mais de 20 mil habitantes. Sendo o Plano Diretor requisito necessário à instituição da progressividade simples, conclui-se possível, juridicamente, a sua instituição naqueles municípios com número de habitantes menor ao fixado no § 1.º do artigo 182 (20 mil habitantes), desde que tenham optado pela edição do Plano Diretor. A submissão da eficácia de lei municipal à lei federal significa: - invasão de competência exclusiva dos municípios; - violação do princípio federativo e quebra da natureza isonômica dos entes federados. Fatores diversos levaram a uma nova concepção em que a propriedade aparece erigida em função social. IPTU - imunidade tributária de imóvel Propriedade do município e cedida em comodato ou contrato de concessão de uso a entidade Pivada Yoshiaki Ichihara Juiz de Direito Substituto em 2∞ Grau, atualmente auxiliando na 9ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Professor Titular de Direito Tributário, Doutor III, da UniFMU e membro da Academia Paulista de Direito. 1. INTRODUÇÃO Neste trabalho, pretendemos demonstrar que os imóveis urbanos de propriedade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando cedidos a entidade privada em comodato ou por contrato de concessão de uso, não podem ser objeto de incidência do IPTU. Iniciamos com o exame do perfil constitucional do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, examinando a sua materialidade, os aspectos espacial, temporal, pessoal e valorativo. O contribuinte deste imposto só pode ser o proprietário e, nunca, o comodatário ou o possuidor sem o ânimo de ser proprietário. O contrato de cessão de uso ou em comodato, de imóvel urbano público, além de não transferir a propriedade ao particular, o que se cede é a posse e o uso do bem imóvel. 130 instituição toledo de ensino Portanto, sendo imóvel urbano de propriedade de pessoas beneficiárias da imunidade recíproca, qualquer pretensão de cobrança do IPTU sobre imóvel de propriedade pública, sem dúvida, é inconstitucional. É o que pretendemos demonstrar nestas singelas considerações. 2. PERFIL CONSTITUCIONAL DO IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE PREDIAL E TERRITORIAL URBANA - IPTU Preceitua o art. 156, I, da Constituição Federal de 1988: “Compete aos Municípios instituir imposto sobre: I - propriedade predial e territorial urbana”. Quando a Constituição atribui competência aos Municípios, a rigor, está atribuindo ao ente destinatário, a faculdade por meio de lei instituir e/ou aumentar o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana. Esta competência é indelegável e a regra-matriz1 de incidência já está completamente determinada na Lei Maior, não existindo para o legislador competente, nenhum campo de discricionariedade no que se refere ao perfil do imposto, já que em matéria tributária é assente que está sujeito ao princípio da estrita legalidade.2 Trata-se de imposto sujeito integralmente ao princípio da legalidade e à anterioridade de lei. Até que sejam alteradas, as normas gerais constantes do Código Tributário Nacional - CTN, nos arts. 32 a 34 são totalmente aplicáveis, já que não apresentam qualquer incompatibilidade com a nova Constituição (veja parágrafo 5º, do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF/88). O fato gerador deste imposto é a propriedade predial e territorial urbana. Na prática, a expressão fato gerador da obrigação tributária que tantas críticas foram dirigidas, já que o direito positivo adota esta expressão, basta que o intérprete considere como conteúdo de duas realidades distintas: hipótese de incidência e fato imponível. Estas expressões foram adotadas por GERALDO ATALIBA3 para designar hipótese de incidência, enquanto descrição dos fatos na lei e, fato imponível, ao acontecimento ou situação de fato ocorrido no mundo fenomênico. Portanto, existindo uma lei (hipótese de incidência - nullum tributum sine lege) e ocorrendo no mundo concreto um fato típico (fato imponível), pode-se afirmar que implementado o aspecto temporal, nasce a obrigação tributária, ou seja, comportamento consistente em levar dinheiro aos cofres públicos. 1 Terminologia utilizada por PAULO DE BARROS CARVALHO. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1999. Terminologia, inicialmente, utilizada por GERALDO ATALIBA para designar que a lei tributária exige no seu conteúdo material todos os elementos necessários para o nascimento da obrigação tributária (art. 97 do CTN). 3 Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 1992. 2 instituição toledo de ensino 131 Para uma melhor compreensão do fato gerador de qualquer tributo (que cientificamente é incindível), para efeitos didáticos, costuma-se subdividir em materialidade, aspectos espacial, temporal, pessoal e valorativo, apenas com o objetivo de facilitar a compreensão, o conteúdo e a identificação de eventuais irregularidades ou situações atípicas, especialmente para demonstrar que o fato imponível não é idêntico à hipótese de incidência. A expressão fattispecie do italiano, que pode ser traduzida como “espelho do fato”, além de sugestiva, bem explica a relação entre o fato gerador (hipótese e fato), como sendo: a descrição da lei é um espelho do fato. Portanto, sendo típico, idêntico, uma coincidência completa entre a hipótese de incidência e o fato imponível, pode-se concluir que ocorreu o fato gerador. A materialidade deste imposto é a "propriedade predial e territorial urbana", ou seja, a propriedade imóvel (prédio ou terreno) localizada na zona urbana. Zona urbana poderá ser dentro do perímetro urbano ou localizada em área urbanizada nos termos da lei municipal. Na lei complementar (art. 32 a 34 do CTN), este imposto incide não só sobre a propriedade, mas sobre o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou acessão física, como definidos na lei civil. Entretanto, o possuidor nos termos da lei civil não é a qualquer título, mas aquele que detém a posse com o ânimo de ser proprietário. Estão excluídos, assim, o possuidor do imóvel decorrente de contrato de locação, de comodato, por requisição etc. O aspecto espacial é a zona urbana do Município, seja urbana por se localizar dentro do perímetro urbano ou em área urbanizada. Pelo aspecto espacial, somente um Município é competente para instituir e cobrar este imposto, uma vez que não existe propriedade imóvel que ao mesmo tempo seja localizada em zona urbana de dois Municípios, nem ser ao mesmo tempo, urbana e rural. O conceito de zona urbana é a fixada em lei Municipal ou localizada dentro do perímetro urbano, sendo o imóvel rural, residual, no sentido de poder dizer que aquilo que não é zona urbana, é rural. Portanto, somente o imóvel (prédio e terreno) localizado na zona urbana (dentro do perímetro urbano e ou em área urbanizada) poderá ser objeto de tributação pelo IPTU. O aspecto temporal, ou seja, o momento da ocorrência do fato gerador deste imposto, por pacífico entendimento, ocorre em 01-01 de cada ano e assim, a partir de 02-01 o Município poderá lançar e cobrar o imposto predial e territorial urbano. Como regra está sujeito ao lançamento de ofício, direto ou unilateral. Este aspecto é que determina o momento da ocorrência do fato gerador e, portanto, determina a lei aplicável e a partir deste marco temporal, pode o sujeito ativo lançar o tributo e no vencimento fixado na legislação tributária, proceder a cobrança. No aspecto pessoal, como sujeito ativo aparece o Município, ou ainda, a União e o Distrito Federal, na forma do art. 147 da CF/88. No pólo passivo aparece como 132 instituição toledo de ensino contribuinte (que tem relação direta com o fato gerador) o sujeito do verbo ser proprietário, titular do domínio útil ou possuidor, com o ânimo de ser proprietário. Não importa o nome ou o rótulo, como faz o art. 34 do CTN. O possuidor não pode sêlo a qualquer título, mas com ânimo de ser proprietário, caso contrário o inquilino poderia ser eleito contribuinte deste imposto, já que possui a posse direta do bem. Todavia, isso não pode ocorrer, aplicando-se no caso o art. 123 do CTN, mesmo no caso em que o proprietário transfere ao locatário o encargo de arcar com o ônus do IPTU através do contrato de locação. Todavia, o instrumento particular não pode ser oposto contra a Fazenda Municipal para alterar o conceito de contribuinte. Admitese a sujeição passiva na forma de responsável, ou aquele que tem ligação indireta com a ocorrência do fato gerador, responsabilidade que geralmente ocorre por sucessão ou por substituição. O aspecto valorativo, que é composta pela base de cálculo e pela alíquota, deverá ser fixada em lei (art. 97 do CTN). Nos termos do art. 33 do CTN, a base de cálculo deste imposto é o valor venal, mas deverá ser entendido como o fixado em lei e que não poderá ultrapassar o valor venal. A alíquota, que pela nova Constituição também será expressamente fixada em lei, poderá ser progressiva em razão do valor, da localização e do uso do imóvel. Não há mais limite de alíquota e nem ela será fixada em lei complementar. O limite agora é o de não ultrapassar o limite do confisco (art. 150, IV da CF/88). Existem, na realidade, não só a possibilidade de aplicação da progressividade, mas a obrigatoriedade, de cinco formas: em função do valor, da localização e do uso (art. 156, § 1º, I e II); o previsto no art. 182, parágrafo 4º, II, da CF/88, é a chamada de progressividade no tempo; progressividade para implementar o princípio da igualdade, atendendo os critérios da capacidade contributiva (art. 145, parágrafo 1º, da CF/88). A jurisprudência tem se orientado no sentido de que não é aplicável a progressividade prevista expressamente na Constituição (art. 156, §1º), quando na vigência da Constituição anterior, onde esta questão não era explícita, os doutrinadores e a jurisprudência admitiam a progressividade como possível, citando exemplos da experiência alienígena.4 Esta é a razão porque o § 1º, do art. 156 da CF/88 foi emendada, com acréscimo de redação dos itens I e II.5 4 Veja as lições dos Profs. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS e AIRES FERNANDINO BARRETO: "Caracteriza a progressividade no espaço pela utilização de alíquotas diferenciadas, consoante região em que se situe o imóvel, construído ou não". (Manual do imposto sobre propriedade predial territorial urbana. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1985, p. 124). Ademais, existia a progressividade não só em função da progressividade no espaço, mas em função do valor do imóvel, em razão da superfície, em razão da destinação do imóvel, infra estrutura ou equipamentos urbanos, conforme gabarito das construções ou número de pavimentos, critério misto de aplicação da progressividade, dentre outros. (Cf. Ob. cit. p. 124/128), Não é outra a lição dos Profs. MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI e SACHA CALMON NAVARRO COELHO: "Por progressividade entende-se a majoração da alíquota, a medida que cresce o valor da matéria tributável, não é incompatível com o princípio da igualdade e da profundidade. Ao contrário, é hoje aceita, e sendo relata UCK- instituição toledo de ensino 133 Por último, como ficou evidenciado, analisando o Imposto sobre a Propriedade Predial de Territorial Urbana - IPTU sob óptica do fato gerador, sem dúvida, o primeiro destinatário do Texto Constitucional é o legislador competente, que só pode instituir este imposto nos estritos limites da competência outorgada no art. 156, I, da CF/88. 3. O COMODATO E A CONCESSÃO DE USO DE BEM PÚBLICO NO DIREITO BRASILEIRO O uso e a posse de bem público, observadas as formalidades legais, pode ser transferida ao particular mediante contrato administrativo. Preceitua o art. 1.248 do Código Civil: “O comodato é o empréstimo gratuito de coisas não fungíveis”. É, portanto, contrato regido por normas e princípios de direito privado, diferentemente do contrato de concessão de uso de bem público, onde se atribui o direito de utilização exclusiva de bem público ao particular, mediante contrato administrativo, portanto regido por normas de direito administrativo. Escreve HELY LOPES MEIRELLES: “Concessão de uso é o contrato administrativo pelo qual o Poder Público atribui a utilização exclusiva de um bem de seu domínio a particular, para que o explore segundo sua destinação específica”.6 A concessão de uso de bem público, seja por contrato de direito administrativo ou por comodato, espécie de contrato regido por norma de direito privado, o que transfere é apenas o uso e a posse e, não a propriedade. Na concessão de uso de bem público (imóvel), a propriedade continua sendo do Poder Público, pois o que se transfere é apenas a posse e o uso do bem imóvel. Também, além do fato de a propriedade pertencer ao Poder Público, o bem imóvel cedido por contrato de concessão de uso não modifica a sua natureza, isto é, continua sendo bem público. Nos imóveis de propriedade do Município, quando cedidos por contrato de comodado ou por cessão de uso, seja este remunerado ou não, qualquer que seja o prazo, não pode incidir Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana. MAR, da Alemanha à Áustria, da França à Itália, da Holanda à Suíça, da Inglaterra à Dinamarca, à Suécia, à Noruega, à Espanha, aos Estados Unidos, ao Canada, ao México, à Austrália ao Japão, pode-se dizer que não existiu um Estado onde no fim do século passado ou no princípio do presente, não existam impostos com alíquotas progressivas". (Do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 68). 5 Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000 - DOU de 14-9-2000. 6 Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros. 24. ed. p. 468. instituição toledo de ensino 134 Entretanto, é muito comum o Município lançar e cobrar IPTU do comodatário, o que é, sem dúvida, inconstitucional. Por último, o escopo deste trabalho é demonstrar a inconstitucionalidade da exigência tributária, pois o imóvel público enquadra-se na imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal de 1988. 4. IMUNIDADE RECÍPROCA E O IPTU Preceitua o art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal de 1988: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: .............................................................................................. VI - instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda e serviços, uns dos outros”. Preceituava o art. 19, item III, letra "a" da Constituição de 1967, com a Emenda nº 01, de 1969: "É vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ............................................................................................. III - Instituir imposto sobre: a) o patrimônio, a renda ou os serviços uns dos outros;" (grifo nosso). No regime da Constituição anterior, escrevendo sobre esta imunidade, ensina BERNARDO RIBEIRO DE MORAES: "A Constituição da República veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, instituir imposto sobre o "patrimônio, a renda ou os serviços uns dos outros" (art. 19, III, "a") É a consagração da imunidade recíproca das pessoas de Direito Público Interno quanto aos seus patrimônios, rendas e serviços".7 No regime da atual Constituição de 1988, no mesmo sentido, escreve IVES GANDRA DA SILVA MARTINS: "O art. 150, VI, a, cuida das imunidades recíprocas, Os entes federados não podem tributar o patrimônio, a renda e os serviços uns dos outros".8 Já escrevemos o seguinte: 7 Sistema tributário da Constituição de 1969. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 468. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, v. 6, p. 174. 8 instituição toledo de ensino 135 “A imunidade recíproca provém da Constituição americana, decorrentes do princípio da reciprocal immunity of Federal and StateInstrumentalities”, conforme escreve ALIOMAR BALEEIRO. (Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, Forense, 1997, p. 235). Imunidade recíproca é a denominação utilizada pela quase totalidade dos doutrinadores,9 sendo também chamada de imunidade intragovernamental10 e imunidade das pessoas políticas.11 Sem entrar no mérito da discussão terminológica, a verdade é que, além de a Constituição ter destacado um dispositivo à parte, essa imunidade possui características que a diferem das demais. Mesmo que não houvesse um dispositivo expresso, como fez a Constituição vigente e as demais que a antecederam, a possibilidade de tributação do patrimônio, da renda ou dos serviços, uns dos outros, é matéria que suscitaria dúvidas e discussões intermináveis.12 Sendo o imóvel, objeto da tributação pelo IPTU, de propriedade da MUNICIPALIDADE, não poderia a própria proprietária, no caso pessoa IMUNE pretender onerar com o IPTU, imóvel de sua propriedade, pois no caso ocorreria a confusão a que se refere o art. 1.049 e seguintes do Código Civil. Escreve sobre o assunto CLÓVIS BEVILÁQUA: “Desde que a qualidade de credor e de devedor concorrem na mesma pessoa, não é mais possível o exercício do direito de crédito, porque não se concebe que a pessoa cobre a dívida de si mesma nem que a si mesma se pague.”13 Escrevemos sobre esta questão o seguinte: “Sobre a imunidade do IPTU, envolvendo o aspecto pessoal passivo ou da condição de contribuinte ou responsável, ocorre quando, por exemplo, o Município concede por via do comodato a posse e o uso do imóvel público por 50 anos, a uma entidade esportiva ou fundação não imune. 9 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 135 ss; AMARO, Luciano. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 147; DERZI, Misabel Abreu Machado. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Notas atualizadoras à obra de ALIOMAR BALEEIRO. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 225 ss, entre outros. 10 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 257 ss. 11 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 405 ss. 12 Imunidades tributárias. São Paulo: Atlas, 2000, p. 216-217. 13 Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1955. v. 4, p. 165. instituição toledo de ensino 136 Nesse caso, o Município tem tributado o imóvel e exige o IPTU, o que, no nosso entender, é impossível. O fato de a entidade de direito público beneficiária da imunidade recíproca entregar por via do comodato a posse e o uso do imóvel público a terceira pessoa, o poder público continua sendo o proprietário, portanto não poderia tributar imóvel de sua propriedade, não só como decorrência da imunidade, mas pela ocorrência da confusão. Em outra hipótese, se a propriedade for da União, dos Estados ou do Distrito Federal, uma vez que o comodato não transfere a propriedade, não perde tal condição e, portanto, o suposto contribuinte continuaria sendo o Estado que é beneficiário da imunidade recíproca. Qualquer tentativa, em nosso pensar, encerra uma inconstitucionalidade se for exigido o IPTU do comodatário.”14 Como se tudo isso não bastasse, preceitua a Constituição que compete ao Município instituir imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, e o ser proprietário é o fato relevante tomado pela materialidade do IPTU. O contribuinte deste imposto só pode ser o sujeito do verbo SER PROPRIETÁRIO DE IMÓVEL URBANO. Escreveu o Prof. PAULO DE BARROS CARVALHO sobre esta questão o seguinte: "Dessa abstração emerge sempre o encontro de expressões genéricas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles que encerrem um fazer, um dar ou, simplesmente, um ser (estado). Teremos, por exemplo, "vender mercadorias", “industrializar produtos", "ser proprietário de bem imóvel", "auferir rendas", "prestar serviços", "construir estradas", "pavimentar ruas" etc. Esse núcleo, ao qual referimos, será formado, invariavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento". (Teoria da Norma Tributária, RT, p.76) Com efeito, sendo a materialidade do fato gerador do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, tributa-se na realidade uma situação de fato "ser proprietário de imóvel urbano", o contribuinte só poderá ser o sujeito do verbo e complemento SER PROPRIETÁRIO que, no caso, se é a MUNICIPALIDADE, além de imune ocorre a confusão. O fato de ter transferido a posse a entidade privada por instrumento público ou particular, através da figura jurídica denominada COMODATO, não autoriza o su14 Imunidades tributárias. São Paulo: Atlas, 2000, p. 228 ss. instituição toledo de ensino 137 jeito ativo, no caso, a MUNICIPALIDADE, a modificar o pólo passivo, pois, nos termos do art. 121, parágrafo único, item I, do Código Tributário Nacional, que diz: "Contribuinte, quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador". No caso, somente o sujeito do VERBO "SER PROPRIETÁRIO" poderá ser eleito pela lei como sendo o contribuinte e no caso o COMODATÁRIO não é proprietário. O conceito de propriedade e a sua aquisição está previsto no art. 530 do Código Civil, não aparece o contrato de comodato como forma de transmissão da propriedade. No campo de interpretação da norma tributária, preceitua o art. 110 do Código Tributário Nacional: "A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo ou o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pela Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias". Neste caso concreto, se a interpretação for no sentido de alterar o conceito de contribuinte, numa situação abrangida pela imunidade recíproca, sem dúvida alguma, estar-se-ia definindo competência - alargando e incluindo uma situação definida como imune para uma situação de tributabilidade, o que caracterizaria uma inconstitucionalidade gritante e insanável. Em resumo, através da interpretação, os conceitos de direito privado não podem ser alterados para o efeitos da relação jurídica tributária. (Cf. nesta linha ALIOMAR BALEEIRO, Direito Tributário Brasileiro, Forense e P.R. TAVARES PAES, Comentários ao Código Tributário Nacional, Saraiva). Por final, o COMODATÁRIO, por não ser o proprietário do imóvel e portanto, não pode figurar no pólo passivo da tributação do IPTU, sendo parte ilegítima. Por outro lado, sendo o imóvel de propriedade da MUNICIPALIDADE, que aparece como uma das pessoas jurídicas de direito público interno coberto pela imunidade recíproca, o imóvel não pode ser objeto de incidência do IPTU. A pretensão de alterar o pólo passivo, via de contrato ou escritura de comodato, contraria o disposto no art. 110 do Código Tributário Nacional, além de agredir o princípio da legalidade, no sentido de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei, inclusive e principalmente, de pagar tributo. Ainda, mesmo que houvesse lei municipal, a alteração do conceito de contribuinte seria ilegal por contrariar norma geral previsto no art. 121, parágrafo único, item I, do CTN. instituição toledo de ensino 138 Nem se diga que a escritura ou contrato de comodato entre as partes é lei, pois o tributo só pode ser exigido por lei formal, ou seja, reserva absoluta de lei formal (ALBERTO XAVIER), sujeita à estrita legalidade (GERALDO ATALIBA) e legalidade cerrada ou fechada (IVES GANDRA DA SILVA MARTINS), pois é assente a máxima: "nullum tributum sine lege". 5. CONCLUSÕES a) O Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana é de competência dos Municípios, nos estritos termos do art. 156, I, da Constituição Federal de 1988. b) O contribuinte deste imposto é o proprietário, isto é, o sujeito do verbo ser proprietário de imóvel urbano (art. 121, parágrafo único, I, do CTN). c) O conceito de contribuinte não pode ser modificado por contrato ou acordo de vontades, seja por instrumento particular ou público (art. 123 do CTN). d) Nos termos do art. 110 do Código Tributário Nacional os conceitos de direito privado não podem ser modificados para os efeitos da lei tributária. e) Os imóveis de propriedade da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios são imunes à incidência de tributos, pois sujeita-se à imunidade recíproca prevista no art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal de 1988. f ) Os imóveis de propriedade da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, mesmo em caso de cessão de uso ou em comodato, a propriedade continua sendo do poder público. g) É inconstitucional exigir IPTU sobre imóveis da propriedade pública cedido a entidade privada em comodato ou cessão de uso, já que o contribuinte só pode ser o proprietário e nunca o possuidor (sem o ânimo de ser proprietário) ou o cessionário. h) No caso de imóvel urbano de propriedade do Município, a impossibilidade jurídica de tributação pelo IPTU encontram óbices na imunidade recíproca e na ocorrência de confusão (art. 1.049 do Código Civil). Lei nº 10.168/00: inconstitucionalidade na contribuição “de Intervenção do domínio Econômico” Luiz Fernando Maia Advogado Tributarista, Professor de Direito Tributário na Faculdade de Direito de Bauru (ITE), e Vice-Presidente no Instituto de Direito Público de Bauru/SP, Mestrando em Direito - ITE/Bauru 1. MAIS UMA CONTRIBUIÇÃO CRIADA No dia 30 de dezembro de 2000, foi publicada a Lei nº 10.168, que instituiu a “contribuição de intervenção de domínio econômico destinada a financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação”, incidente sobre pagamentos efetuados ao exterior por detentores de licença de uso ou adquirentes de conhecimentos tecnológicos (royalties), bem como por signatários de contratos que impliquem transferência de tecnologia (exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica): Assim aduzem os artigos 1º e 2º da Lei nº 10.168/00: “Art. 1º. Fica instituído o Programa de Estímulo à Integração Universidade–Empresa para o apoio à Inovação, cujo objetivo principal é estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro, mediante programas de pesquisa científica e tecnológica cooperativa entre universidades, centros de pesquisa e o setor produtivo. Art. 2º. Para fins de atendimento ao Programa de que trata o arti- 140 instituição toledo de ensino go anterior, fica instituída contribuição de intervenção no domínio econômico, devida pela pessoa jurídica detentora de licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos, bem como aquela signatária de contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior. § 1º. Consideram-se, para fins desta Lei, contratos de transferência de tecnologia os relativos à exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica. § 2º. A contribuição incidirá sobre os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, a cada mês, a residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração decorrente das obrigações indicadas no caput deste artigo. § 3º. A alíquota da contribuição será de dez por cento. § 4º. O pagamento da contribuição será efetuado até o último dia útil da quinzena subseqüente ao mês de ocorrência do fato gerador”. Trata-se, portanto, de um novo “tributo” criado pela União com a finalidade de custear programas de pesquisa científica e tecnológica. O “fato gerador” delineado consiste no ato de pagar, creditar, entregar, empregar ou remeter, a cada mês, a residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração decorrente das obrigações indicadas no caput do artigo 2º (licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos, bem como contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior). O sujeito passivo dessa relação jurídica tributária é a pessoa jurídica detentora de licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos, bem como aquela celebrante de contratos cujo objeto implique uma “transferência de tecnologia”, ou seja, os contratos relativos pertinentes à exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica (artigo 2º, §1º). A base de cálculo corresponde aos valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, a cada mês, para o exterior, a título de remuneração decorrente das obrigações compreendidas no fato gerador da novel contribuição. Incide sobre essa base uma alíquota de dez por cento. Por tratar-se de uma “contribuição”, é fundamental verificar que a sua finalidade é atender ao Programa de Estímulo à Integração Universidade-Empresa para o apoio à Inovação, também instituído pela Lei nº 10.168/00. A propósito, confrontando essa finalidade legalmente traçada para o Programa, depreende-se que o nomen juris atribuído à contribuição responsável pelo seu custeio não corresponde com a realidade. A partir dessa constatação preliminar, pelas razões doravante apresentadas, concluir-se-á que essa nova exação não se instituição toledo de ensino 141 constitui verdadeiramente em uma contribuição “de intervenção de domínio econômico” e, por conseguinte, não se reveste da finalidade constitucional que poderia sustentá-la à luz do artigo 149 da Constituição vigente. Ademais, ainda que admitida sua classificação como contribuição “de intervenção de domínio econômico”, haveria, por outro lado, uma grave e insuportável quebra no magno princípio constitucional da igualdade tributária (artigo 150, II, CF). É o que se passa a demonstrar. 2. DO PROGRAMA DE ESTÍMULO À INTEGRAÇÃO UNIVERSIDADEEMPRESA PARA O APOIO À INOVAÇÃO O Programa criado tem como escopo “estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro, mediante programas de pesquisa científica e tecnológica cooperativa entre universidades, centro de pesquisas e o setor produtivo” (artigo 1º da Lei nº 10.168/00). De acordo com o artigo 4º da Lei, todo o montante arrecadado pela Secretaria da Receita Federal a título desta denominada “contribuição de intervenção no domínio econômico” será destinado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FNDCT. Portanto, o “Programa de Estímulo” refere-se, inequivocamente, ao desenvolvimento científico à pesquisa e à capacitação tecnológica, não existindo no mesmo qualquer afetação econômica que justificasse a instituição de uma contribuição de “intervenção no domínio econômico”. A propósito, o Programa será gerido por um Comitê Gestor constituído no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia (artigo 5º). Ao estudar a Constituição Federal sob um enfoque sistemático, constata-se que a criação de uma verdadeira contribuição de intervenção de domínio econômico só se viabiliza (só está autorizada pela Constituição) diante de uma atividade econômica que não esteja se desenvolvendo em conformidade com os Princípios da Ordem Econômica e Financeira disciplinada no Título VII do Texto Constitucional vigente: soberania nacional; propriedade privada; função social da propriedade; livre concorrência; defesa do consumidor; defesa do meio ambiente; redução das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego; tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (artigo 170 da Constituição Federal). Sobre as contribuições de intervenção no domínio econômico, Susy Gomes Hoffmann escreveu o seguinte: “Analisando sistematicamente a Constituição, constatamos que as contribuições para intervenção no domínio econômico deverão atender a esses princípios [da Ordem Econômica e Financeira, 142 instituição toledo de ensino estampados no Título VII do Texto Constitucional], ou seja, sempre que uma atividade econômica não esteja em conformidade com esses princípios, a União deverá intervir” (“As contribuições no Sistema Constitucional Tributário”, Copola Editora, Campinas, 1996, p. 163). Como já frisado, o “Programa de Estímulo à Integração Universidade–Empresa para o Apoio à Inovação”, instituído pelo artigo 1º da Lei nº 10.168/00, tem como meta principal “estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro, mediante programas de pesquisa científica e tecnológica cooperativa entre universidades, centros de pesquisa e o setor produtivo”. Portanto, o programa instituído refere-se ao desenvolvimento científico, à pesquisa e a capacitação tecnológicas, tendo como respaldo constitucional os artigos 218 e 219 da Lei Maior, situados no Capítulo IV – Da Ciência e Tecnologia, do Título VIII – Da Ordem Social. Consequentemente, não há qualquer vinculação com a Ordem Econômica, encontrada no Título VII da Constituição, artigos 170 a 192. Com efeito, assim dispõem os artigos 218 e 219 mencionados: “Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. §1º. A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências. §2º. A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional. §3º. O Estado apoiará a formação de recursos humanos nas áreas de ciência, pesquisa e tecnologia, e concederá aos que delas se ocupem meios e condições especiais de trabalho. §4º. A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho. §5º. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular parcela de sua receita orçamentária a entidades públicas de fomento ao ensino e à pesquisa científica e tecnológica. Art. 219. O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal”. instituição toledo de ensino 143 De acordo com os dispositivos acima transcritos, extrai-se que qualquer contribuição criada com o intuito de custear tal programa estará fora da ordem econômica, vedando-se, por conseguinte, a hipótese de se utilizar uma contribuição de “intervenção no domínio econômico” para incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas. Destarte, refutando a natureza de “intervenção no domínio econômico” à contribuição criada pela Lei nº 10.168/00, o que é evidente diante dos artigos 218 e 219 da Lei Maior, é lícito afirmar que para a finalidade constitucional de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica não existe previsão constitucional para a instituição de contribuição para tal custeio. Isto posto, os programas de desenvolvimento científico, de pesquisa e capacitação tecnológica, em que pese a finalidade compatível com a Constituição Federal (Capítulo IV, Título VIII), não poderiam ser custeados por contribuições, eis que não há autorização constitucional neste sentido. 3. FALTA DE AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL O artigo 149 do texto Constitucional permite-nos uma distinção bem aclarada entre as contribuições stricto sensu (de seguridade social e todas as que forem instituídas na direção dos objetivos da ordem social), as de intervenção de domínio econômico e as de interesse das categorias profissionais ou econômicas. Neste sentido, o eminente tributarista Hugo de Brito Machado, em seu “Curso de Direito Tributário”, 13ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1998, p. 306-309, classifica as contribuições sociais em: de intervenção no domínio econômico (aquelas que se produzem com o objetivo específico perseguido pelo órgão estatal competente para intervenção no domínio econômico, função nitidamente extrafiscal); as de interesse de categorias profissionais ou econômicas (destinadas a propiciar a organização dessas categorias, fornecendo recursos financeiros para a manutenção da entidade associativa ) e as de seguridade social. A classificação das contribuições sociais (lato sensu) na doutrina, com pequenas variações, não foge ao molde jurídico acima retratado. Ilustrativamente, podemos trazer também à colação, dentre outras não menos acertadas, a classificação minuciosa das contribuições sociais feita pelo Ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 138.284-8/CE, em 1º/07/92, D.J. de 28/08/92: CONTRIBUIÇÕES: c.l. de melhoria c.2.sociais: c.2.l. de seguridade social (CF, art.195, I, II e III) c.2.l. outras de seguridade social (CF, art.195, §4º) 144 instituição toledo de ensino c.2.l.3. sociais gerais (o FGTS - CF, art. 7º, I; o salário educação - CF, art. 212, §5o; contribuições para o SESI, SENAI, SENAC - CF, art. 240) c.3. especiais: c.3.1 de intervenção no domínio econômico (CF, art.149) c.3.2. corporativas (CF, art.149) A par de todas as classificações doutrinárias, importante salientar que é incontroverso o entendimento acerca do artigo 149 da Constituição Federal identificar três espécies de contribuições: sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas. Por tal identificação, podemos conceituar a contribuição social (lato sensu) como espécie de tributo com finalidade constitucional definida, a saber: de intervenção no domínio econômico, de interesse de categoria profissional ou econômica ou social (stricto sensu). Ou seja, em matéria de contribuições, a competência é atribuída adotando-se o critério das finalidades constitucionais preceituadas no artigo 149. Esta finalidade atuará como limite de validade da legislação instituidora da exigência. O mencionado dispositivo constitucional possui a seguinte redação: “Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, §6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo. Parágrafo único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social”. Deste modo, tratando-se de atribuição constitucional de competência, a legislação infra constitucional somente será válida caso esteja absolutamente compatível à finalidade constitucionalmente especificada e qualificada, encontrada nos artigos 149, 212, §5o, ou 240, todos do Texto Constitucional de 1988. Assim, a criação da contribuição somente poderá ocorrer para fazer frente às finalidades previstas na Constituição. E mais: as finalidades previstas para as quais a própria constituição tenha autorizado a criação da contribuição para seu custeio. Neste aspecto, de perfeita oportunidade os ensinamentos do tributarista Marco Aurélio Greco, na obra “Contribuições (uma figura ‘sui generis’)”, Dialética, São Paulo, 2000, p. 229-230: instituição toledo de ensino 145 “Afirmar que a finalidade é traço fundamental das contribuições também não significa que basta a existência de previsão de uma finalidade para que possam ser instituídas. Ao contrário, não podem ser criadas em função de qualquer finalidade. A criação de contribuições somente poderá ocorrer em relação a finalidades: a) previstas constitucionalmente; e b) relativamente às quais a própria Constituição tenha autorizado a criação de contribuições. Cumpre estejam reunidos os dois requisitos, não bastando que uma determinada finalidade esteja prestigiada constitucionalmente, no sentido de incorporar um valor buscado pelo ordenamento. É indispensável que se trate de uma finalidade contemplada e para a qual a CF preveja a contribuição como instrumento para atendimento da finalidade. Assim, serão inconstitucionais por inexistência de norma atributiva de competência, as contribuições que se vinculem a: a) finalidades não contempladas na CF (ou incompatíveis com as que ela prevê); ou b) previstas na CF, mas para as quais ela não preveja a instituição de contribuições” (destaques nossos). Em suma, a instituição de uma contribuição social somente encontrará respaldo se a finalidade pela qual foi criada estiver prevista na Constituição (aspecto da previsão da finalidade) e, além disso, que a própria Constituição autorize a criação desta espécie tributária para custear tal escopo expressamente consagrado (aspecto da autorização para instituição de contribuição). Confrontando esses requisitos constitucionais com a Lei nº 10.168, de 29 de dezembro de 2000, conclui-se pela inconstitucionalidade da denominada “contribuição de intervenção de domínio econômico”, vez que não há qualquer dispositivo constitucional que autorize a criação de uma contribuição para “financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação”. 4. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA Caso seja admitida a natureza de “contribuição de intervenção de domínio econômico” da exação criada pela Lei nº 10.168/00, vislumbrar-se-ia ainda uma violação ao princípio constitucional da igualdade tributária, estampado no artigo 150, inciso II, da Lei Fundamental. Com efeito, a finalidade do Programa custeado pela contribuição é beneficiar as universidades, centros de pesquisas e o setor produtivo. Logo, como todas as empresas do setor produtivo brasileiro serão beneficiadas, a contribuição em tela instituição toledo de ensino 146 deveria ser cobrada de todas elas, e não somente das pessoas jurídicas detentoras de licença de uso ou adquirentes de conhecimentos tecnológicos, bem como aquelas signatárias de contratos que impliquem transferência de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior (artigo 2º, caput, da Lei nº 10.168/00). O §2º do artigo 2º dessa lei determina que “a contribuição incidirá sobre os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, a cada mês, a residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração decorrente das obrigações indicadas no caput deste artigo”. Resumindo, só é contribuinte desse tributo a pessoa jurídica que utilize tecnologia estrangeira (consoante o §1º do artigo 2º: as pessoas jurídicas que celebram contratos de transferência de tecnologia, relativos à exploração de patentes ou uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica). Todos aquelas pessoas jurídicas detentoras de licença ou conhecimento tecnológico brasileiro não estão compreendidas como contribuintes, mas mesmo assim serão inequivocamente beneficiadas com o estímulo ao desenvolvimento tecnológico brasileiro. Daí deriva, portanto, a quebra da isonomia apregoada pela Carta Maior, em seu artigo 150, inciso II. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se, por todos os prismas analisados, que a contribuição instituída pela Lei nº 10.168 de 29.12.2000, não atende o conceito técnico-restrito de contribuição de intervenção no domínio econômico por não perseguir uma finalidade nem sequer próxima dos princípios gerais básicos e fundamentais consagrados no Capítulo da Ordem Econômica e Financeira arrolados nos nove incisos do artigo 170 da Constituição Federal. Malgrado a finalidade prevista nessa lei encontrar respaldo na Lei Maior (artigos 218 e 219 – previsão de finalidade atendida), não há nenhuma previsão de seu financiamento por meio de contribuição (ausência de autorização constitucional para se criar uma contribuição para custear uma atividade com este mister), o que torna inconstitucional o “tributo” criado pela recente Lei. Ademais, caso admita-se que a Constituição autoriza a criação de uma contribuição para custear o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacidade tecnológicas, a Lei nº 10.168/00 peca por afrontar o princípio constitucional da igualdade tributária, pois trata diferentemente pessoas que se encontram em posições idênticas, não merecedoras, portanto, de um tratamento distinto. os agentes políticos e a responsabilidade por culpa em face do artigo 10 da lei de improbidade administrativa Carlos Frederico Brito dos Santos Promotor de Justiça do Estado da Bahia 1. MAIS UMA CONTRIBUIÇÃO CRIADA A responsabilidade do agente público na forma culposa, para os fins sancionatórios da Lei n.º 8.429, de 2 de junho de 1992 ("Lei da Improbidade Administrativa” – LIA), somente é prevista na modalidade “Dos Atos de Improbidade Administrativa que Causam Prejuízo ao Erário”, que é tratada na Seção II, composta apenas do artigo 10, caput, e de seus treze incisos meramente exemplificativos. Portanto, nas demais modalidades, previstas nas Seções I (ou art. 9º) e III (ou art. 11), que tratam respectivamente “Dos Atos de Improbidade Administrativa que Importam em Enriquecimento Ilícito” e “Dos Atos de Improbidade Administrativa que Atentam contra os Princípios da Administração Pública”, exige-se o dolo do agente público para a sua responsabilização. O amplo conceito de agente público esculpido sabiamente pelo legislador no art. 1º, caput e parágrafo único, que excede o de servidor público que nos é dado pelo Direito Administrativo comum, objetiva uma proteção mais dilatada do patrimônio público e da moralidade administrativa no âmbito da Lei nº8.429/92. Contudo, é importante observar que tal amplitude conceitual não implica necessariamente a rigorosa isonomia de tratamento de todos os agentes chamados públicos 148 instituição toledo de ensino por equiparação legal (art. 3º da LIA), tendo em vista a especial natureza das funções exercidas pelos chamados agentes políticos e que os distingue dos demais servidores públicos, os denominados agentes administrativos. Tampouco na estrita igualdade de tratamento entre os próprios agentes políticos, uma vez que existem normas específicas para a responsabilização civil dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, como veremos. Daí a responsabilidade por culpa, prevista expressamente no art. 10 da LIA para as hipóteses que preceitua, tanto no seu caput quanto nos seus incisos de I a XIII, não poder atingir a todos os agentes públicos, indistintamente, tendo em vista tais autoridades não podem ter a sua liberdade de ação – justamente o que os distingue dos agentes administrativos – coarctada ante o temor da responsabilização pelos padrões da culpa comum e do erro técnico, que certamente tolheria a sua relevante e complexa atividade de soberania, em prejuízo do interesse público, em que pese a posição doutrinária de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO1, também seguida por MARIA SYLVIA ZANELLA DE PIETRO2, contra a qualificação dos juízes em geral e dos membros do Ministério Público como agentes políticos por entenderem que em tal conceito apenas se encaixam aqueles agentes cujo vínculo que entretêm com o Estado “não é de natureza profissional, mas de natureza política”. 2. A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS AGENTES POLÍTICOS EM GERAL. Consoante lição, ainda atual, de HELY LOPES MEIRELLES3, que vale aqui ser repetida em toda a sua inteireza, “Agentes políticos são os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais. Esses agentes atuam com plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais. Não são funcionários públicos em sentido estrito, nem se sujeitam ao regime estatutário comum. Têm normas específicas para a sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais e de responsabilidade, que lhes são privativos. Os agentes políticos exercem funções governamentais, 1 Curso de Direito Administrativo – 4ª edição revista e ampliada – São Paulo: Malheiros, 1993, pp. 123/124; Direito Administrativo – 12ª edição – São Paulo: Atlas, 2000, p. 416; 3 Direito Administrativo Brasileiro – 14 ª edição atualizada pela Constituição Federal de 1988 – São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, pp. 67/68 2 instituição toledo de ensino 149 judiciais e quase judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência. São as autoridades públicas supremas, do Governo e da Administração na área de sua atuação, pois não estão hierarquizadas, sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais de jurisdição.” (Grifos nossos) Daí decorre que, conforme o entendimento do saudoso publicista, a responsabilidade civil dos agentes políticos difere da dos chamados agentes administrativos (posição, aliás, que não encontra maiores dissensões tanto na doutrina4 como na jurisprudência), vejamos: “Em doutrina, os agentes públicos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos e, para tanto, ficam a salvo de responsabilização civil por seus eventuais erros de atuação, a menos que tenham agido com culpa grosseira, má-fé ou abuso de poder. Realmente, a situação dos que governam e decidem é bem diversa da dos que simplesmente administram e executam encargos técnicos e profissionais, sem responsabilidade de decisão e de opções políticas. Daí porque os agentes políticos precisam de ampla liberdade funcional e maior resguardo para o desempenho de suas funções. As prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não são privilégios pessoais; são garantias necessárias ao pleno exercício de suas altas e complexas funções governamentais e decisórias. Sem essas prerrogativas funcionais, os agentes políticos ficariam tolhidos na sua liberdade de opção e de decisão, ante o temor da responsabilização pelos padrões comuns da culpa civil e do erro técnico a que ficam sujeitos os funcionários profissionalizados.” (Grifos nossos)5 A propósito, esclarece o mestre que, “Nessa categoria se encontram os Chefes de Executivo (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) e seus auxiliares imedi4 Apenas MARINO PAZZAGLINI FILHO et al. (in Improbidade Administrativa – Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público, 3ª edição revista e atualizada – São Paulo: Atlas, 1998, p. 7) admitem a responsabilização dos “agentes públicos em geral” na seara da improbidade administrativa fundamentada na imprudência e na negligência (portanto, pelos padrões comuns da culpa); 5 opus citatum, pp. 68/69; 150 instituição toledo de ensino atos (Ministros e Secretários de Estado e de Município); os membros das Corporações Legislativas (Senadores, Deputados e Vereadores); os membros do Poder Judiciário (Magistrados em geral); os membros do Ministério Público (Procuradores da República e da Justiça, Promotores e Curadores Públicos); os membros dos Tribunais de Contas (Ministros e Conselheiros); os representantes diplomáticos e demais autoridades que atuem com independência funcional no desempenho de atribuições governamentais, judiciais ou quasejudiciais, estranhas ao quadro do funcionalismo estatutário.” (Grifos nossos)6 Em relação ao erro, que entendemos aninhar-se no conceito de culpa simples (na negligência), em consonância com o entendimento de HELY LOPES MEIRELLES7 sustenta HÉLIO TORNAGHI8, com muita propriedade, e referindo-se aos membros do Ministério Público (e por decorrência lógica aplicável aos demais agentes políticos), que “Não seria possível expô-los ao risco de ressarcir os danos provenientes de erro, ainda que grosseiro, mas praticado de boa-fé, sem lhes tolher a ação”. 3. A RESPONSABILIDADE CIVIL ESPECIAL DOS MEMBROS DA MAGISTRATURA E DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Como dissemos na introdução, existem nuanças que diferenciam a responsabilidade civil entre os próprios agentes políticos. Se por um lado todos os agentes políticos não podem estar sujeitos à responsabilização pelos padrões da culpa comum (negligência, imprudência e imperícia), fato que os difere dos agentes administrativos, por outro existem agentes políticos, como os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, que, por previsão legal específica, apenas se sujeitam à responsabilização por dolo (aqui se incluindo o que a doutrina, a jurisprudência e por vezes até a lei preferem chamar por algumas de suas derivações: a fraude, a má-fé e o abuso de poder), não se lhes podendo aplicar a responsabilização civil por culpa grave, aplicável a nosso ver, aos demais agentes políticos. No tocante à responsabilização civil especial dos membros do Ministério Público, estabeleceu o legislador pátrio, no artigo 85 do Código de Processo Civil, que “O órgão do Ministério Público será civilmente responsável quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo e fraude.” 6 opus citatum, p. 69; opus citatum, pp. 68/69; 8 Comentários ao Código de Processo Civil, volume 1 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1976, pp. 286/287; 7 instituição toledo de ensino 151 Em comentário ao aludido dispositivo, esclarecem NÉLSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY9 que “Os membros do MP são agentes políticos e, assim como ocorre com os juízes, somente respondem por responsabilidade, quando agem com dolo ou fraude no exercício de sua função. Não estão sujeitos a responsabilidade quando agem com culpa. As hipóteses de responsabilidade dos juizes e do MP são arroladas em numerus clausus, taxativamente, não comportando ampliação.” Acrescentam ainda que “o prejudicado por ato doloso ou fraudulento praticado pelo MP tem direito de ressarcir-se por meio de ação dirigida contra o poder público” que, por sua vez, deverá acionar regressivamente o membro do Ministério Público que tiver agido dolosa ou fraudulentamente no processo. Contudo, acerca do exercício da função de custos legis do Parquet, o Supremo Tribunal Federal10 já decidiu, inclusive lastreado na lição de LAFAYETTE DE AZEVEDO PONDÉ11, que, como o parecer do Ministério Público não tem caráter vinculativo, não pode causar dano, porquanto a decisão última compete ao Poder Judiciário, que o absorve. Tal entendimento nos permite afirmar que o membro do Parquet apenas poderá ser responsabilizado, quando for o caso, pelos prejuízos causados em decorrência do exercício de sua função de autor, bem como de presidente do inquérito civil ou de outro procedimento administrativo investigatório, uma vez que somente em tais atividades poderia dar causa a “dano certo e atual”. O juiz, além de responder por perdas e danos quando, no exercício de suas funções, proceder com dolo e fraude (art. 133, inciso I, do CPC e art. 49 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional), também responderá quando recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte (art. 133, inciso II, do CPC e art. 49, inciso II, parágrafo único, da LOMAN). Tal sanção, todavia, somente se lhe aplica se houver prejuízo material à parte decorrente de sua omissão. Discordamos aqui do posicionamento doutrinário que vislumbra nesta segunda hipótese a responsabilização civil do juiz, por exceção, a título de culpa12. É que diante da cautela exigida pelo art. 133, II do CPC e do art. 49, II, parágrafo único, da 9 Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil em vigor, 4ª edição revista e ampliada (atualizada até 10.03.1999) – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 536; 10 apud homepage do Supremo Tribunal Federal: www.stf.gov.br; 11 Da responsabilidade civil do Estado pelos atos do Ministério Público, Revista Forense, nº 152, pp. 43/51; 12 NÉLSON NERY JUNIOR at. al. in Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil em vigor, 4ª edição revista e ampliada (atualizada até 10.03.1999) – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 613; 152 instituição toledo de ensino LOMAN (que condiciona que a parte deve requerer ao juiz a providência por intermédio do escrivão, e que, ainda assim, não seja atendida no prazo de dez (10) dias), a persistência da conduta omissiva do magistrado demonstra, a nosso ver, intenção clara e deliberada de prejudicar o interesse da parte, caracterizando, portanto, inequívoca omissão dolosa. Enfim, com a esperada aprovação definitiva da Proposta de Emenda Constitucional nº96-C, de 1992, que trata da Reforma do Judiciário (que já passou pela Câmara dos Deputados e agora tramita no Senado Federal), essa discussão perderá o sentido diante do disposto no seu art. 8º, que acrescenta o §4º ao art. 95, da Constituição Federal, o seguinte preceito, verbis: “A União e os Estados respondem pelos danos que os respectivos juízes causarem no exercício de suas funções jurisdicionais, assegurado o direito de regresso nos casos de dolo.” (grifo nosso) Por tudo o quanto expusemos, também divergimos da doutrina que defende a possibilidade de responsabilização dos membros do Ministério Público e da Magistratura, inclusive na seara da lei de improbidade administrativa, fundamentada na culpa grave ou, ainda, na “culpa excepcionalmente grave”13 ao lado dos demais agentes políticos. 4. A RESPONSABILIDADE DOS DEMAIS AGENTES POLÍTICOS POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA POR CULPA GRAVE. Em relação aos demais agentes políticos, à míngua de normas legais específicas que restrinjam a sua responsabilidade pessoal à forma dolosa, podemos dizer que somente poderão ser responsabilizados civilmente quando estes, no exercício de suas atribuições tipicamente estatais causarem prejuízos à entidade pública ou a terceiros, agindo com dolo (ou, como já dissemos, por uma de suas diversas facetas: a fraude, a má-fé e o abuso de poder) ou com a chamada culpa grave, não podendo ser demandados por eventuais erros de atuação pelos padrões comuns da culpa. No particular, ou seja, já arrostando a problemática da responsabilização dos agentes políticos em face da própria lei da improbidade administrativa, com o peculiar pioneirismo que tantas luzes tem trazido aos seus operadores, posiciona-se FÁBIO MEDINA OSÓRIO14 a favor da responsabilização de tais agentes em geral desde que, contudo, configurada ao menos a culpa grave, afastando, assim, por decorrência lógica, qualquer possibilidade de sua responsabilização fundamentada apenas na culpa simples (verbis): 13 HUGO NIGRO MAZZILLI, in Introdução ao Ministério Público, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 107; FÁBIO MEDINA OSÓRIO, in Improbidade Administrativa (Observações sobre a Lei nº8.429/92), 2ª Edição Ampliada e Atualizada, Porto Alegre: Síntese, 1998, pp. 114; 14 instituição toledo de ensino 153 “A culpa grave pode fundamentar a responsabilização de Parlamentares, Magistrados e membros do Ministério Público que, no desempenho de suas atribuições, causem, injustificadamente, por manifesto e desproporcional despreparo funcional, lesão ao erário, violando os princípios básicos que regem a Administração Pública, v.g., moralidade e ilegalidade.” (grifos nossos) Embora divergindo parcialmente de seu entendimento, por admitir a responsabilização dos membros da Magistratura e do Ministério Público fundamentada na culpa grave, junto aos demais agentes políticos, pelas razões por nós já expostas quando discorremos sobre a responsabilidade civil especial de que gozam os magistrados e os promotores/procuradores, concordamos na sua aplicação aos demais agentes públicos. Muitos poderão alegar que o problema da responsabilização civil, com base na culpa grave, reside na delimitação de seu conceito, que parece situarse em uma faixa imprecisa entre a culpa simples e o dolo, e que seria mais seguro a responsabilização civil dos agentes políticos tão-somente fundamentada no dolo, nele incluídos, obviamente a fraude, a má-fé e o abuso de poder, que decorrem da vontade manifesta do agente na prática do ato ilícito, tendo em vista preservar a sua liberdade de opção e de decisão, evitando que seja tolhida a sua ação. À propósito, adverte CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA15 que, “...alguns autores têm cogitado de distinguir na culpa uma gradação, que extrema a chamada culpa grave, equiparável ao dolo, da culpa leve que seria a violação de um dever em situação na qual se encontra o bom pai de família, e a culpa levíssima, em que se apresentaria a atuação do homem diligentíssimo, padrão de cuidado e probidade. Tem ainda concorrido intrinsecamente para obscurecer a matéria a distinção que até hoje perdura na doutrina (particularmente francesa e italiana) relativamente ao delito e quase-delito.” (Grifos do autor) E, finalmente, conclui o ilustrado civilista, criticando tais distinções: “Considerando a inutilidade prática da diferenciação, o direito brasileiro abandonou-a, fixando na idéia de transgressão de um dever o conceito genérico do ato ilícito, pois que tais filigranas nenhuma solução na verdade trouxeram ao problema. As idéias vieram a clarear quando a doutrina abandonou estes conceitos diferenciais e essas distinções bizantinas, para ater-se à figura do ato ilícito puro e simples.” 15 Instituições de Direito Civil, vol. I, 5ª edição/3ª tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 1976, pp. 567/568; instituição toledo de ensino 154 Todavia, abrindo exceção em relação ao entendimento do eminente civilista no tocante à aludida “inutilidade prática” da diferenciação dos graus da culpa, a jurisprudência nacional tem utilizado largamente a culpa grave em relação à responsabilidade civil comum decorrente de acidente do trabalho, tendo o Supremo Tribunal Federal, inclusive, a consagrado na Súmula nº229, que “A INDENIZAÇÃO ACIDENTÁRIA NÃO EXCLUI A DO DIREITO COMUM, EM CASO DE DOLO OU CULPA GRAVE DO EMPREGADOR”. Por força do preceito sumular, a culpa grave é equiparada ao dolo para o fim de possibilitar, além da indenização acidentária, a responsabilização civil comum por ato ilícito decorrente do infortúnio do trabalho. O mesmo se diga quanto à doutrina. No Brasil, os elementos que compõem o conceito de culpa grave nos é dado com bastante clareza por HUMBERTO THEODORO JÚNIOR16, que extrai das tendências da jurisprudência e da doutrina nacionais indicativos de que a culpa grave tem sido tratada aqui, notadamente na esfera da indenização de acidentes do trabalho fundamentada no direito comum, nos mesmos termos da falta inescusável do direito francês, vislumbrando três requisitos para a sua configuração: “a) a vontade de agir ou de omitir, por parte do patrão; b) o conhecimento do perigo que pode resultar de sua ação ou omissão; e, c) a falta de causa elisiva, isto é, a ausência de qualquer explicação aceitável para a sua conduta perigosa.” Para completar a lição, conclui o festejado processualista mineiro, lembrando a lição de HENRI DE PAGE17, que “o nexo causal ou laço de causalidade ou relação de causa e efeito é o terceiro elemento constitutivo da responsabilidade civil”; e que “esse elemento deve existir entre a falta e o dano, de tal sorte que este seja o efeito, a seqüência, a resultante daquela. Em outros termos, a falta deve ter sido a causa do dano.” (Grifos do autor) JEAN-JACQUES DUPEYROUX18, sustenta que a culta grave ou inescusável pode ser decomposta em três elementos positivos e dois negativos, facilitando sobremaneira a sua compreensão, em que pese o fazer em sede de direito da seguridade social. Vejamos: Positivos: a) gravidade excepcional, de modo a ultrapassar o que comumente ocorre, mesmo no âmbito das falhas; b) consciência do perigo a que o 16 Acidente do Trabalho e Responsabilidade Civil Comum, São Paulo: Saraiva, 1987, p. 44; Apud José Aguiar Dias, Da responsabilidade civil, 6ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1979, v. 2, p. 272; 18 Apud Humberto Theodoro Júnior, opus cit., pp. 41-2; 17 instituição toledo de ensino 155 empregado foi exposto; e c) caráter voluntário do ato ou da omissão, que não pode ser fruto de simples inadvertência. Negativos: a) falta da intenção de provocar o dano: se há intenção o caso é de dolo e não de culpa grave; e b) ausência de toda e qualquer causa justificadora para expor o empregado a risco extraordinário. Portanto, excetuando as hipóteses específicas da responsabilização por dolo dos magistrados e dos membros do Ministério Público, não vislumbramos qualquer inconveniente na responsabilização civil dos demais agentes políticos, inclusive por ato de improbidade administrativa, fundada conceito de culpa grave que, como vimos, não é tão impreciso assim, a ponto de vir a tolher a ação de tais agentes. Já que tal grau de culpa se aproxima do conceito do dolo, sendo a este equiparado, entendemos plausível a responsabilização de tais agentes na modalidade da culpa grave, ao lado do dolo, acolhendo no particular a advertência de FÁBIO MEDINA OSÓRIO19 no tocante à sua configuração em sede de Direito Administrativo, diferenciando-a daquela do campo do Direito Penal: “Salienta-se que o dolo não pode ser confundido com o conhecimento atual ou potencial de ilicitude pelo agente. Vale lembrar que o dolo, em direito administrativo, é a intenção do agente que recai sobre o suporte fático da norma legal proibitiva. O agente quer realizar determinada conduta objetivamente proibida pela ordem jurídica. Eis o dolo. Trata-se de analisar a intenção do agente especialmente diante dos elementos fáticos – mas também normativos – regulados pelas leis incidentes à espécie.” grifos nossos) A irresponsabilidade dos agentes políticos em face da culpa simples como prerrogativa, além de não representar qualquer privilégio pessoal, conforme vimos anteriormente na lição de HELY LOPES MEIRELLES20, também não significa abrir espaços para a impunidade e a prática de abusos por parte de tais autoridades, enfraquecendo a proteção da moralidade administrativa e do patrimônio público, por dois motivos essenciais: a) primeiro, porque das três modalidades de atos de improbidade administrativa instituídas pela Lei 8.429/92, a única que prevê a responsabilização fundada na culpa é a prevista no art. 10 (caput e incisos de I a XIII), que trata dos atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário, tendo cuidado o legislador de fundamentar apenas no dolo a modalidade mais grave, prevista no art. 9º (caput e incisos de I a XII) e que diz respeito aos atos de 19 20 Opus citatum, p. 135; Opus citatum, p. 69; 156 instituição toledo de ensino improbidade que importam enriquecimento ilícito; b) segundo, por tratar-se a ação ou omissão culposa que causa prejuízo ao erário de hipótese de casuística um tanto rara se comparada àquelas fundadas no dolo, inclusive nas próprias condutas ilícitas preceituadas pelo art. 10 (caput e incisos de I a XIII). De fato, é facilmente perceptível que a grande maioria das hipóteses de atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário, ensejando perda patrimonial, desvio, apropriação, mal-baratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades previstas no art. 1º e parágrafo único da Lei de Improbidade Administrativa (públicas, ou privadas quando incorporadas ao patrimônio público ou para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, etc) ocorrerá na modalidade dolosa, como aliás constitui a regra na casuística dos atos ilícitos no Direito em geral, seja qual for o seu ramo, Civil, Penal, Trabalhista, etc. Por exemplo, tomemos a hipótese do inciso XII do art. 10 - “permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente”: embora possível, é de rara casuística que alguém, culposamente, permita, facilite ou concorra para que alguém se enriqueça sem causa às custas do erário. A nossa “clínica diária” nos tem ensinado que, por trás de tais condutas, quase sempre está a vontade livre e consciente do agente público de transferir vantagens (pecuniárias ou não) a terceiros, que muitas vezes agem em conluio com aquele, repartindo adiante tais vantagens. Tal constatação nos tranqüiliza, porquanto a inaplicabilidade da responsabilidade civil por culpa simples aos agentes políticos jamais significará um cheque em branco a tais autoridades para que possam impunemente cometer atos de improbidade administrativa que causem prejuízo ao erário, posto que tão-somente evitam tolher a sua liberdade de ação e decisão, sujeita a erros até pela complexidade de suas altas funções. Seria árdua a tarefa de arregimentar tais agentes se estes estivessem sujeitos à responsabilização por culpa em stricto sensu. Quem se arriscaria a ser, por exemplo, juiz ou promotor, se tivesse que indenizar por erro ou culpa ao julgar equivocadamente ou apresentar uma denúncia depois julgada improcedente? Quem se disporia a assumir a presidência da República e ter que, depois, indenizar pelos planos econômicos fracassados, que geraram rombos ao erário e que levaram muitos à falência ou à insolvência civil? Mesmo no caso de erro judicial, no qual o Estado poderá ser demandado para indenizar a vítima, é incabível a responsabilização regressiva, e.g., do promotor que apresentou a denúncia improcedente ou do juiz que julgou a demanda condenando-a por equívoco, nos termos do art. 37, §6º, da Constituição Federal em vigor. Tampouco pela prática de ato de improbidade administrativa pelo fato da denúncia (do promotor) e da sentença (do juiz) terem causado prejuízo concreto ao erário – que, devido ao erro (ou culpa) de tais agentes políticos, em concurso, foi obrigado a arcar com vultosa indenização, paga à vítima do erro judiciário. instituição toledo de ensino 157 É que, conforme doutrina com muita propriedade HUGO NIGRO MAZZILLI21, contra a possibilidade de ação regressiva contra os agentes políticos, no caso específico trazido à colação, de membros do Ministério Público, para a responsabilização fundada na culpa, “No caso, não cabe falar em responsabilidade por culpa nem em ação regressiva de responsabilidade do Estado contra o órgão da soberania: o dispositivo do art. 37, §6º, da Constituição de 1988, assim como o da Carta de 1969 (art. 107, parágrafo único), refere-se ao regime estatutário comum, não aos agentes políticos (Tornaghi, Comentários, cit., 1976, vol. 1, p. 286-7). Afinal, intimidado pela possibilidade de responsabilização pessoal em caso de ser recusada justa causa para a sua acusação, o órgão do Ministério Público poderia ceder à fraqueza de não cumprir o que entende ser o seu dever, deixando, por exemplo, de exercitar a ação penal pública, para a qual é sua instituição única legitimada para fazê-lo.” (Grifos nossos) O mesmo se aplica à chefia do Poder Executivo e seus auxiliares imediatos. Nos diversos planos econômicos fracassados, v.g., a União teve que suportar uma torrente de ações e em muitos casos de indenizar diversos cidadãos que tiveram o seu direito líquido e certo violentado em nome da estabilização econômica do País, muitas vezes com vultosos prejuízos ao erário. Até hoje o erário arca com o pesado custo dos chamados “esqueletos”, como nos lembra o cientista político SÉRGIO ABRANCHES22, e que consistem nas contas de erros passados, cujos pagamentos o orçamento atual tem de suportar. Por outro lado, houve quem se beneficiasse de tais planos e até se enriquecesse com ele. Imagine o caso do cidadão do interior que, antes do feriado bancário que iniciou o famigerado Plano Collor, havia vendido uma fazenda e recebido em dinheiro uma grande quantia. Por não ter tido tempo de depositá-la em banco, guardou o dinheiro em casa, no cofre. No dia seguinte ao confisco de todas as aplicações bancárias (inclusive das contas corrente), era o único homem da cidade e um dos poucos do País a dispor de uma considerada quantia em dinheiro em mão. Aproveitando-se do desespero das pessoas decorrente da crise de liquidez (muitos tinham patrimônio, contudo, apenas uma quantia irrisória em moeda corrente), adquiriu, com o dinheiro que obteve com a alienação de sua fazenda, diversos outros bens de valor (carro, outras terras, semoventes, etc) a preços aviltados, quintuplicando o seu patrimônio. Em tal caso, a responsabilização 21 O Ministério Público na Constituição de 1988, São Paulo: Saraiva, 1989, pp. 148-149; A maldição dos esqueletos, Revista Veja, editora Abril, edição 1.647, de 3 de maio de 2000, p. 141; 22 158 instituição toledo de ensino dos agentes políticos (presidente da República e ministros da área econômica que conceberam o pacote) que geraram o plano por ato de improbidade administrativa, fundamentado no erro ou na culpa, com fulcro no inciso XII do art. 10 (“permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente”), também não seria possível, mesmo diante da previsibilidade de fatos que tais. Até porque o risco fazia parte de tais pacotes de ajuste diante da complexidade das variantes econômicas das quais dependia o êxito das medidas adotadas, fatores que em conjunto afastam qualquer possibilidade de ocorrência da culpa grave, apesar de tal erro (ou culpa) poder influenciar fortemente na responsabilização política dos agentes do governo, cujo julgamento é feito periodicamente pelos eleitores através do voto. Porém, se restasse comprovado, após investigação por Comissão Parlamentar de Inquérito, por exemplo, que terceiros foram previamente avisados das medidas, enriquecendo-se às custas de informações privilegiadas, estaríamos diante do dolo, que justificaria a responsabilização dos aludidos agentes políticos por ato de improbidade administrativa – se a Lei nº8.429/92 já estivesse em vigor à época dos fatos. Concordamos inteiramente com FÁBIO MEDINA OSÓRIO23 quando afirma que até mesmo os atos tipicamente jurisdicionais, legislativos e ministeriais não dispensam os seus autores da responsabilização por improbidade administrativa, desde que contaminados pela má-fé que gera o enriquecimento ilícito, o prejuízo ao erário e a violação aos princípios que regem a administração pública, como no exemplo dado do magistrado que vende sentenças e do parlamentar que negocia os seus votos. À responsabilização de um agente político fundada na culpa grave, deve preceder a extrema cautela, de modo a se evitar decisões precipitadas e injustas. Imaginemos, por exemplo, a hipótese de responsabilização civil do magistrado fundamentada na culpa grave, admitida pelo eminente publicista gaúcho e que se refere à homologação de cálculos absurdos contra entidade pública, geradora de prejuízo ao erário24. Acreditamos que não estaria devidamente caracterizada a culpa grave, se ocorresse a conjugação dos seguintes fatores: a) a falta de formação contábil mínima do magistrado; b) o fato do cálculo da atualização monetária muitas vezes envolver um largo período, no qual o País teve várias moedas e passou por processo hiperinflacionário; c) o reconhecimento por parte do magistrado da capacitação técnica e da idoneidade moral do responsável judicial pelos cálculos, fundado na experiência; d) o fato de não ter havido questionamento do cálculo reputado absurdo por parte do procurador da entidade pública em juízo – a quem cabia auxiliar o juiz na detecção de falhas ou fraude nos cálculos, por ser o representante em juízo da parte mais interessada na precisão dos números. 23 Opus citatum, pp. 104/110; Opus citatum, p. 112. 24 instituição toledo de ensino 159 Por outro lado, se os cálculos não envolvessem tamanhas dificuldades e mesmo assim restassem homologados, entendemos que seria bastante oportuna, em tais casos, o aprofundamento da investigação sobre a conduta do magistrado e dos demais envolvidos no processo, inclusive com a promoção da quebra do sigilo bancário de todos, por haver fortes indícios para a responsabilização, inclusive do juiz, lastreada no dolo, por conluio, envolvendo ainda o responsável pelos cálculos, o procurador da entidade pública e o autor da ação, visando o enriquecimento ilícito. Nada impede, todavia, que, em uma terceira hipótese, possa estar o juiz alheio ao conluio criminoso, não lhe restando outra alternativa senão a homologação dos cálculos absurdos, agindo de boa-fé de e por absoluta ignorância contábil. Portanto, é preciso exorcizar o pré-julgamento, as presunções precipitadas e avaliar analiticamente todos os pormenores da matéria fática, evitando-se, assim, que a responsabilização por culpa grave dos agentes políticos, quando cabível, possa redundar em injustiças com reflexos desastrosos para aqueles agentes que necessitam de liberdade de opção e ação para os desafios inerentes às suas elevadas funções, que restaria terrivelmente comprometida se tais agentes a tolhessem por receio de temerária responsabilização, fundada inclusive na culpa grave mal interpretada. 5. CONCLUSÕES a) a responsabilidade do agente público fundada na culpa stricto sensu somente é prevista na modalidade dos atos de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário (art. 10 da LIA); b) como aos agentes políticos em geral não se aplica a responsabilização civil lastreada nos padrões comuns da culpa (ou culpa simples), para a caracterização de infração culposa de qualquer das hipóteses de atos de improbidade administrativa elencadas no art. 10 da LIA, a sua responsabilização somente poderá ser fundamentada na culpa grave; c) em decorrência da existência de normas jurídicas específicas - que restringem a sua responsabilização pessoal e civil tão-somente à hipótese de dolo (nas suas diversas facetas: a fraude, a má-fé e o abuso de poder) – aos membros da Magistratura e do Ministério Público não se aplica a modalidade culposa também prevista para a caracterização dos atos de improbidade administrativa arrolados no art. 10 da LIA, inclusive na forma de culpa grave (ou de “culpa excepcionalmente grave”), independentemente de serem considerados ou não, doutrinariamente, agentes políticos. 160 instituição toledo de ensino BIBLIOGRAFIA DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 12ª edição. São Paulo: Atlas, 2000. MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989. MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. São Paulo: Saraiva, 1997. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 14 ª edição atualizada pela Constituição Federal de 1988. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 4ª edição revista e ampliada. São Paulo: Malheiros, 1993. NERY JUNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil em vigor. 4ª edição revista e ampliada (atualizada até 10.03.1999). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. OSÓRIO, Fábio Medina. Improbidade Administrativa (Observações sobre a Lei 8.429/92). 2ª Edição Ampliada e Atualizada. Porto Alegre: Editora Síntese, 1998. PAZZAGLINI, Marino Filho et al. Improbidade Administrativa - Aspectos Jurídicos da Defesa do Patrimônio Público. 3ª edição revista e atualizada. São Paulo: Atlas, 1998. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. I, 5ª edição/3ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1976. PONDÉ, Lafayette de Azevedo. Da responsabilidade civil do Estado pelos atos do Ministério Público. Rio de Janeiro: Revista Forense, nº152. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Acidente do Trabalho e Responsabilidade Civil Comum. São Paulo: Saraiva, 1987. TORNAGHI, Hélio. Comentários ao Código de Processo Civil. volume 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. OUTRAS FONTES - Revista Veja, p.141, edição 1.647, de 3 de maio de 2000, ed. Abril, Coluna Em Foco, artigo “A maldição dos esqueletos”. - Homepage do Supremo Tribunal Federal: www.stf.gov.br Invalidação dos atos administrativos Heraldo Garcia Vitta Promotor de Justiça do Estado de São Paulo, Juiz Federal da 2ª Vara em Bauru/SP, Mestrando da PUC/SP, Professor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito de Bauru - ITE I. INTRODUÇÃO O tema invalidade dos atos administrativos é um dos que são estudados com afinco por doutrinadores de escol, todos almejando dar sustentação científica, de forma a garantir o mínimo de coerência lógica a tão difícil assunto. Estudos vêm sendo feitos sistematicamente para possibilitar melhor compreensão das conseqüências jurídicas advindas da nulidade, anulabilidade ou convalidação dos atos administrativos. Tentaremos, em breve trecho, traçar algumas linhas acerca do tema, embora reconheçamos que muito há de se fazer para, ao menos coerentemente, termos um resultado satisfatório. Utilizaremos a expressão invalidação, para abarcarmos tanto a hipótese de nulidade quanto a de anulabilidade, ou outras distinções que se fizerem necessárias, para não comprometermos o termo ‘anulação’, pois esta é manejada para uma das espécies de invalidade do ato administrativo. Deixaremos de fora de nosso estudo a revogação dos atos administrativos. II. CONCEITO DE ATO ADMINISTRATIVO Ato administrativo é toda declaração unilateral do Estado, ou de quem lhe faça as vezes, em complemento da lei, editada no exercício da função administrativa, podendo ter efeitos jurídicos diretos ou indiretos, concretos ou abstratos, gerais ou individuais, excetuados os atos regidos pelo Direito Privado e os atos políticos ou de governo. instituição toledo de ensino 162 Com essa definição, estamos (a) excluindo os atos materiais da Administração e os contratos administrativos; (b) respeitando o entendimento segundo o qual, além do Estado, outras pessoas jurídicas, públicas ou privadas, quando realizem serviços públicos, editam atos administrativos; (c) acatando o princípio da legalidade, no qual a Administração Pública deverá pautar-se para agir; (d) excluindo os atos editados pelos Poderes Legislativo e Judiciário, quando estiveram na sua função precípua, isto é, a de editar leis e decisões, respectivamente; (e) Indistintamente, os efeitos jurídicos do ato em relação ao administrado podem ter efeitos diretos ou indiretos; concretos (licenças, autorizações) ou abstratos (regulamentos), gerais ou individuais; (f ) estão de fora da definição os atos regidos sob a égide do Código Civil e do Código Comercial, bem como outras disposições do Direito Privado; e (g) também não estão referidos o atos de governo, ou seja, os editados diretamente do Texto Constitucional, com grande dose de discricionariedade. III. PERFEIÇÃO, VALIDADE E EFICÁCIA DO ATO Devemos ter em vista a distinção importante entre a eficácia e a perfeição do ato. São planos diferentes, podendo o ato ser perfeito, isto é, ter todos os requisitos ou elementos necessários para sua existência (ser), e não possuir eficácia, não produzir efeitos jurídicos, como na hipótese de depender de uma condição suspensiva. Logo, são inconfundíveis os planos de perfeição e eficácia, conforme explica, com precisão, o ilustre Professor da Universidade de Milão, Francesco Carnelutti: “Quando todos os requisitos previstos direta ou indiretamente pela norma se reúnam no ato, produzir-se-ão os seus efeitos jurídicos, ou seja, à situação final a que temos chamado evento, juntarse-ão os efeitos jurídicos, o que tornará jurídica essa situação final e encerrará o ciclo do fato jurídico. A esta idoneidade do fato, por virtude dos seus requisitos, para produzir os efeitos jurídicos, e, consequentemente, do evento para converter-se na situação jurídica final, chama-se eficácia do fato ou, em especial, eficácia do ato... (...) Por seu turno, o modo de ser do fato que consiste na presença de todos seus requisitos designa-se como perfeição do fato ou, particularmente, do ato. Vício do fato ou ato será tudo aquilo que impeça a perfeição e, consequentemente, a eficácia do ato, o que evidentemente consistirá na falta de um ou de vários dos seus requisitos.”1 1 Teoria Geral do Direito, p. 478. instituição toledo de ensino 163 Além do discrímen “perfeição e eficácia do ato”, há o da validade: o plano desta reporta-se à edição do ato nos termos do ordenamento jurídico, inclusive das normas hierarquicamente superiores. O ato administrativo será válido, assim, se editado com a observância da Constituição Federal, da lei que lhe deu suporte e, eventualmente, de alguma outra norma infra-legal (por exemplo, regulamento de execução de lei). O insigne Professor Celso Antônio Bandeira de Mello também enfatiza a distinção referida: “12. O ato administrativo é perfeito quando esgotadas as fases necessárias à sua produção. Portanto, o ato perfeito é o que completou o ciclo necessário à sua formação. Perfeição, pois, é a situação do ato cujo processo está concluído. 13. O ato administrativo é válido quando foi expedido em absoluta conformidade com as exigências do sistema normativo. Vale dizer, quando se encontra adequado aos requisitos estabelecidos pela ordem jurídica. Validade, por isto, é a adequação do ato às exigências normativas. 14. O ato administrativo é eficaz quando está disponível para a produção de seus efeitos próprios; ou seja, quando o desencadear de seus efeitos típicos não se encontra dependente de qualquer evento posterior, como uma condição suspensiva, termos inicial ou ato controlador a cargo de outra autoridade.”2 Hugo Olguin, doutrinador chileno, igualmente assevera a distinção dos conceitos de validez e eficácia: ”Em outros termos, a validez se apresenta como a conformidade entre o ato emitido e o ordenamento jurídico, é dizer, a coincidência entre a estrutura do ato e as normas jurídicas que precisam a conformação de dita estrutura. A eficácia, ao contrário, não é a conformidade entre ato e lei, senão a aptidão de um ato para produzir efeitos, isto é, a capacidade para realizar no mundo exterior os cometimentos que lhe são próprios...”3 2 Curso de Direito Administrativo, p. 272-3. O Professor da PUC-SP distingue, no seu livro, os efeitos típicos dos efeitos atípicos do ato administrativo. 3 Extinção dos Atos Administrativos, Revogação, Invalidação e Decaimento, p. 21. instituição toledo de ensino 164 Logo, nosso plano de estudo está localizado na validez dos atos administrativos, e não na sua eficácia, apesar de ser possível um ato inválido ser eficaz e um ato válido não sê-lo.4 Poderia citar o caso de o ato inválido não ter sido reconhecido pela Administração ou pelo Poder Judiciário - enquanto isso não ocorrer, o ato produzirá seus efeitos. Ou, ainda, na hipótese de ser reconhecida a invalidação, o ato poderá produzir efeitos, como quando atinge terceiros de boa-fé, a denominada teoria da aparência (funcionário de fato), etc. Identicamente, o ato válido, portanto produzido de acordo com as normas jurídicas, pode não ter eficácia. Isso ocorre no caso de ato administrativo emitido com condição suspensiva, termo inicial, ou dependente de ato da autoridade controladora. IV. EXTINÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS Diversas são as causas de extinção do ato administrativo, entre as quais podemos ressaltar, seguindo, no ponto, o ensinamento do citado Professor Celso Antônio Bandeira de Mello:5 1. Um ato Eficaz extingue-se por: A. A.1. A. 2. A.3. B. C. C.1. C.2. C.3. C.4. 4 CUMPRIMENTO DE SEUS EFEITOS, NOS SEGUINTES CASOS: Esgotamento do conteúdo (gozo de férias de um funcionário); execução material do ato, a ordem executada; Implemento de condição resolutiva ou termo final; DESAPARECIMENTO DO SUJEITO OU OBJETO DA RELAÇÃO JURÍDICA (atos intuitu personae – a morte de um funcionário extingue os efeitos da nomeação). O mesmo se dá quando desaparece o objeto da relação: a tomada pelo mar de um terreno de marinha dado em aforamento extingue a enfiteuse; RETIRADA DO ATO – o poder público emite ato concreto com efeito extintivo sobre o anterior: REVOGAÇÃO – razões de conveniência ou oportunidade; INVALIDAÇÃO – ato praticado em desconformidade com a ordem jurídica; CASSAÇÃO – o destinatário do ato descumpriu condições que deveriam permanecer para continuar desfrutando da situação jurídica (retirada de licença para funcionamento de hotel por haver se convertido em casa de tolerância); CADUCIDADE – sobrevém norma jurídica que tornou inadmissível a situação dantes permitida pelo Direito (retirada de permissão para explorar parque de diversões em local que, em face da nova lei de zoneamento, tornou-se incompatível com aquele tipo de uso); Hugo Olguin, idem. Idem, p. 319. 5 instituição toledo de ensino 165 C.5. CONTRAPOSIÇÃO OU DERRUBADA – emissão de ato, com fundamento em competência diversa da que gerou o ato anterior, cujos efeitos são contrapostos aos daquele (exoneração de funcionário, que aniquila os efeitos da nomeação); D. RENÚNCIA – extinção do efeitos do ato ante a rejeição pelo beneficiário (renúncia ao cargo de secretário do Estado). 2. Um ato não eficaz extingue-se por: 2.1. Revogação (razões de mérito); invalidação (razões de legitimidade); 2.2. Inutilização do ato ante a recusa do beneficiário, a qual era necessária para produção de seus efeitos. V. INVALIDADE DOS ATOS ADMINISTRATIVOS v.1- Conceito de Invalidação Invalidação é a eliminação, com efeitos retroativos, de um ato administrativo ou da relação jurídica por ele gerada, ou de ambos, por terem sido produzidos em desconformidade com a ordem jurídica.6 Tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário podem decretá-la; fulmina-se: (a) ato ineficaz (o próprio ato, a própria fonte da qual depende o surgimento dos efeitos); (b) ato eficaz, abstrato (o ato e os efeitos, inclusive os já ocorridos); concreto (a relação jurídica produzida). A invalidação do ato administrativo tem por fundamento o dever de obediência à legalidade. Isso porque o Poder Público deve obedecer à lei; uma vez editado o ato sem a observância do texto legal, ele será fulminado pela própria Administração (autotutela), ou pelo Poder Judiciário. Conforme ressaltamos, uma vez reconhecida a invalidação, seus efeitos retroagem, no sentido de não reconhecer, no presente, os efeitos jurídicos do passado.7 v.2- Classificação das invalidades Feitas essas rápidas considerações, passaremos a expor, de forma sucinta, nosso pensamento acerca da classificação da invalidade dos atos administrativos. Para tanto, é necessário verificarmos as conseqüências jurídicas, isto é, os distintos tratamentos jurídicos para reconhecermos os tipos de invalidade em face de nosso sistema jurídico. Assim, vamos verificar a invalidade em face da prescrição, dos efeitos, da resistência do administrado, da decretação de ofício ou a requerimento e da convalidação. 6 Cf. Weida Zancaner, “Da Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos”, p. 45. Acentua Celso Antônio Bandeira de Mello: “...Vale dizer: a anulação opera ex tunc, desde então. Ela fulmina o que já ocorreu, no sentido de que se negam hoje os efeitos do passado.” (ob. cit., p. 333) 7 166 instituição toledo de ensino Nos termos do Código Civil Brasileiro, há nulidade absoluta e relativa, vale dizer, nulidade e anulabilidade. As nulidades, elencadas no art. 145, podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público; e o magistrado deve pronunciá-las, não lhe sendo permitido supri-las (art. 146). O ato jurídico anulável, cujos casos estão no art. 147, comporta ratificação pelas partes, a qual retroage à data do ato, não se pronuncia de ofício; só os interessados a podem alegar. Isso porque no ato nulo haveria defeito grave, violação de disposição de ordem pública ou dos bons costumes, enquanto o ato anulável, ao prender-se ao interesse das partes, teria uma validade relativa. A primeira indagação que devemos fazer concerne à aplicabilidade ou não do discrímen estabelecido na norma civil, nos atos administrativos. Para Seabra Fagundes, a similitude é inadmissível. Acentua o mestre: “Não há dúvida de que os princípios do Código Civil se podem aplicar, em parte, aos atos administrativos com efeito jurídico, pois que regem, de modo geral, os atos jurídicos. O Código mesmo regula a responsabilidade civil decorrente de procedimento da Administração Pública, e ela terá lugar, exatamente, em consequência de atos (ou fatos) administrativos viciosos. Atenta, porém, a particular natureza dos atos administrativos, não pode ser acolhida, sem reserva, a sistematização da legislação civil, que é, em muitos casos, evidentemente inadaptável àqueles atos. A nulidade, como sanção com que se pune o ato defeituosa por infringente das normas legais, tem no direito privado, principalmente, uma finalidade restauradora do equilíbrio individual perturbado. No direito público já se apresenta com feição muito diversa. O ato administrativo, em regra, envolve múltiplos interesses. Ainda quando especial, é raro que se cinja a interessar um só indivíduo. Há quase sempre terceiros cujos direitos afeta. Ao contrário, o ato jurídico privado se restringe, normalmente, a repercutir entre os seus participantes diretos, e, quando interessa a terceiros, o faz de modo bem mais restrito do que em se tratando de ato jurídico público...”8 Segundo o ilustre Professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, “a adoção no Direito Administrativo da mesma posição do Direito Civil quanto aos atos nulos e anuláveis não acarreta qualquer dificuldade de aplicação, desde que se considerem as peculiaridades próprias desses dois ramos jurídicos.”9 Para o autor, 8 O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, p. 39. Princípios Gerais de Direito Administrativo, p. 585. 9 instituição toledo de ensino 167 “a aplicação da teoria da nulidade e anulabilidade dos atos em um ou outro ramo jurídico se adota pela semelhança de situação e identidade de razão. Jamais pela identidade de situação. Consiste em aplicação analógica.”10 É forçoso citarmos as diferenças essenciais entre os dois ramos do Direito, para concluirmos com o autor: a necessidade de considerarmos, na invalidação dos atos administrativos, as peculiaridades dos dois ramos jurídicos. Para isso, vamos nos valer do ensinamento da doutrina francesa. Assevera Alibert: “I.- Esta separação é a essência da concepção franco-alemã, que rege hoje quase todos os povos do continente europeu. 1°. Ela se manifesta em primeiro lugar pela diferença de objetos: o direito privado compreende o estatuto das pessoas e o regime de bens em geral, isto é o regime das propriedades no sentido civil da palavra, as relações comerciais entre particulares, e os litígios privados; o direito público rege, de outra parte, não somente a organização dos poderes e dos serviços públicos, mas ainda os direitos especiais creditados às autoridades públicas para o exercício de seus poderes e a gestão desses serviços, assim os litígios que nascem dessa ação. 2°. A distinção é tão nítida que ela assegura a independência do direito público, e forma um monumento jurídico que se basta nela mesma. Existe sem dúvida, limite às duas zonas, pontos de contato imprecisos, tais os prejuízos à propriedade privada num interesso público, a responsabilidade de funcionários e os atos cumpridos pela administração nas condições do direito comum; mas, essas raras exceções sendo feitas, podemos dizer que não há ato ao mesmo tempo civil e administrativo, e que a independência do direito público se manifesta até nas matérias onde a autoridade se encontra numa situação jurídica análoga àquela que rege os particulares. (...) 3°. A separação dos dois ramos do direito se traduz ainda dentro do poder de agir conferido a suas competências. No direito privado, ninguém pode fazer justiça por si mesmo; quando os particulares não estão de acordo sobre os efeitos de direito, eles não podem exercer qualquer coação unilateral; eles devem solicitar à autoridade judiciária, que intervenha toda vez para avaliar e obrigar. Em direito público, ao contrário, a administração cria 10 Idem, p. 583. 168 instituição toledo de ensino seu título; ela constrange os cidadãos sem recorrer a qualquer intermediário; são devidas suas ordens, obrigatórias como os julgamentos (...).”11 Logo, a separação entre o Direito Público e o Direito Privado permite-nos concluir serem ambos os ramos alicerçados por princípios e regras próprios, nos quais todos os intérpretes devem munir-se para análise jurídica do objeto específico de estudo. Porém, as normas do Direito Civil podem servir de suporte para a invalidação dos atos administrativos, desde que haja compatibilidade com o interesse público. Por exemplo, o ato jurídico praticado mediante coação é anulável, nos termos do Código Civil12; o mesmo ocorre no Direito Administrativo, mediante aplicação analógica da norma de direito privado, ante a possibilidade de compatibilização. Mas, se o ato for editado com idêntico vício, atingindo, porém, norma legal de natureza cogente, ele será nulo. É a lição trazida pelo Professor Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, assim exemplificada: “Se alguém consegue despacho ilegal por coação moral levada a efeito contra agente público, o ato é não só anulável por vício de vontade, como nulo por ilegal, em razão da ilicitude do objeto. Mas, se o agente público mediante coação moral faz funcionário pedir aposentadoria, e, posteriormente, ele verifica a vantagem que lhe advém desse pedido, em consequência de lei que atribui, 11 “I.- Cette séparation est de l’essence de la conception franco-allemande, qui régne aujourd’hui chez presque tous les peuples du continent européen. 1° Elle se manifeste en premier lieu par la différence des objets: le droit privé comprend le statut des personnes et le régime des biens en général, c’est-à-dire le régime des propriétés au sens civil du mot, les relations d’affaires entre les particuliers, et les litiges privés; le droit public régit, d’autre part, non seulement l’organisation des pouvoirs et des services publics, mais encore les droits spéciaux dévolus aux autorités publiques pour l’exercice de ces pouvoirs et la gestion de ces services, ainsi que les litiges qui naissent de cette action. 2° La distinction est si nette qu’elle assure l ‘indépendance complète du droit public, et qu’elle en fait um monument juridique qui se suffit à lui-même. Il existe sans doute, à limite des deux zones, des points de contact imprécis, tels que les atteintes à la propriété privée dans un intérêt public, la responsabilité des fonctionnaires ou les actes accomplis par l’administration dans les conditions du droit commun; mais, ces rares exceptions étant faites, on peut dire qu’il n’y a pas d’acte à la fois civil et administratif, et que l’indépendance du droit public se manifeste même dans les matiéres où l’autorité publique se trouve dans une situation juridique analogue à celle qui régit les particuliers. (...) 3°La séparation des deux branches du droit se traduit encore dans le pouvoir d’agir conferé à leurs ressortissants. En droit privé, nul se peut se faire justice à soi-même; lorsque les particuliers ne sont pas d’accord sur les effets du droit, ils ne peuvent exercer aucune contrainte unilatérale; ils doivent saisir l’autorité judiciaire, qui intervient tout à la fois pour arbitrer et contraindre. En droit public, au contraire, l’administration se crée son titre à elle-même; elle contraint les citoyens sans recourir à aucune intermédiaire; provision est due à ses ordres, qui sont obligatoires comme des jugements (...). (“Le Controle Jurisdictionnel de L’Administration”, “page 12” - tradução do autor). 12 Artigo 147, II. instituição toledo de ensino 169 desde a data daquele ato, acréscimo de 25% nos seus vencimentos, é admissível a sua convalidação a esse ato de aposentadoria.”13 O entrelaçamento das normas de Direito Civil e Direito Administrativo, a nosso ver, apenas poderia ocorrer na falta das últimas, além da necessária compatibilidade das primeiras na sua aplicação diante do caso concreto. É que, conforme ressalta o conspícuo Prof. Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, “restará ao juiz certa discrição ao apreciar, por exemplo, se a incompetência é absoluta ou relativa, e se o vício de vontade, a que se junta violação de lei, deve acarretar nulidade ou anulabilidade do ato, ao reconhecer caráter cogente absoluto ou relativo ao texto legal violado...”14 v.2.1- Atos Inexistentes Preferimos adotar a divisão tricotômica de Celso Antônio Bandeira de Mello15, pois entendemos ocorrer a inexistência de atos jurídicos, praticados em ofensa frontal ao texto de lei, ao constituir crime. Para nós, atos inexistentes seriam aqueles nos quais igualmente fossem crimes. Realmente, se o legislador elencou determinados fatos como crimes, portanto qualificou-os como infrações penais, sua prática não pode ser reconhecida pela ordem jurídica, exceto para a punição do infrator. (1) Logo, os atos inexistentes seriam aqueles tipificados como crimes; portanto, comportamentos absurdamente praticados pela administração, que se encartariam no tipo penal. Por exemplo, a determinação de uma autoridade policial para que seu subalterno torture um preso é radicalmente inexistente. O mesmo se pode dizer de ato administrativo praticado contra a ordem judicial (crime de desobediência). Para a inexistência do ato, não há necessidade do reconhecimento, judicial ou administrativo, da prática do crime. Basta a configuração teórica do tipo penal. É que a inexistência refere-se à situações nas quais o ordenamento repudia de forma acintosa, considerando-as absurdas, incoerentes, imorais; logo, destacam-se das nulidades, ao merecerem tratamento jurídico diferenciado.16 13 Ob. cit., p. 580. Advertimos o pensamento de Seabra Fagundes, para quem a coação leva, sempre, à nulidade do ato (ato nulo).. São suas palavras: “(...) O ato administrativo que emanasse de autoridade coata jamais poderia convalescer pela ratificação, que supõe a retroatividade à data do ato...A moralidade administrativa impediria qualquer sobrevivência dos efeitos desse ato...” (ob. cit. ,p. 46). 14 ob. cit., p. 580 15 Ob. cit., p.335. 16 Roberto Dromi inclui a inexistência na categoria de atos viciados. Mas, caracteriza casos que, para nós, seriam de nulidade ou anulabilidade (como a incompetência em razão da matéria; incompetência em razão do território). A inexistência corresponderia a vícios muito graves no ato administrativo. (El Acto Administrativo, p. 130). Na França, informa Rivero, o Conselho de Estado declara determinados atos nulos e de nenhum efeito (inexistentes). Aplica- 170 instituição toledo de ensino Tais atos não comportam prazo prescricional, e nem convalidação17. Quanto à resistência do particular, pode ser ativa, consistente no fato da utilização de meios inclusive físicos para impedir o comportamento determinado. Por evidência, não possuem os atributos de presunção de legitimidade, de imperatividade, de exigibilidade e de executoriedade. (2) Embora muitas vezes não constituam crimes, os atos administrativos editados com objeto ilícito são igualmente inexistentes. Não teria sentido a edição de ato administrativo com conteúdo ilícito. São situações imorais, absurdas, as quais ferem a ordem jurídica de maneira flagrante, aviltante. A licença para um hotel funcionar como casa de prostituição é um ato que ofende a ordem jurídica de maneira eloqüente e, como tal, configura inexistência. O mesmo se pode dizer da autorização de porte de arma a particular, vedada sua comercialização no país. (3) Do mesmo modo, o ato administrativo sem objeto (conteúdo) é inexistente; falta-lhe pressuposto de existência. O decreto de desapropriação de um imóvel inexistente ou já pertencente à Administração expropriante, a nomeação de uma pessoa morta, etc. são exemplos de atos inexistentes, com os reflexos acima referidos. Aliás, podemos dizer serem casos de conteúdos impossíveis. (4) Também seriam atos inexistentes os elaborados com usurpação de função, a ponto de atingir a ordem jurídica de forma afrontosa. Se um governador edita ato administrativo da alçada de um prefeito; se a administração federal elabora ato da alçada do Estado ou do Município, etc. Assim, para nós, o atos inexistentes seriam aqueles determinados pela gravidade do vício, em atenção à ordem jurídica violada. Aliás, no ponto, assevera Laubadère ser “igualmente admitida inexistência jurídica [além da material], determinada por um grau de gravidade da irregularidade...”18. Importa dizer, ato inexistente é o materialmente nessa condição, aquele que apresenta uma aparência de ato e nunca, na verdade, foi realizado; e também o juridicamente inexistente, tendo em vista os vícios apresentados nele. se à decisões materialmente inexistentes (falta de assinatura da autoridade) ou insuscetíveis de se ligar a qualquer poder da administração. (Droit Administratif, p. 99).Entre nós, Osvaldo Aranha B. de Mello entende a distinção sutil, sem qualquer interesse prático.(ob. cit. P. 590). Seabra Fagundes reconhece os atos nulos e anuláveis, além dos irregulares.(ob. cit., p. 46 e ss.). Brandão Cavalcanti menciona atos nulos (nulidade de pleno direito, ao atingir à própria substância material do ato, os elementos que o integram) e anuláveis (Tratado de Direito Administrativo, V.I, p.281). Tito Prates da Fonseca alude a ato nulo, se faltar requisito necessário à sua existência, dizendo ser juridicamente inexistente; e ato anulável (Direito Administrativo, V I, p. 388).Antônio Carlos Cintra do Amaral esclarece textualmente que a expressão vício do ato administrativo utilizada no texto não se refere ao vício da estrutura do ato, mas sim de um defeito na relação entre o ato e a ordem legal (Extinção do Ato Administrativo, p. 59). 17 Convalidação é a edição de novo ato, expungindo o vício que caracterizava o ato anterior. Tem efeitos retroativos. 18 “Mais est également admise l’inexistence juridique, determinée par un degré de gravité de l’irrégularité...” “Traité de Droit Administratif ”, Tome I, p. 639 instituição toledo de ensino 171 v.2.2- Atos Nulos/Anuláveis A distinção entre atos nulos e anuláveis, aceita pela maior parte da doutrina, é realmente necessária; algumas conseqüências jurídicas são distintas e isso faz com que tenhamos categorias diversas de atos. O prazo prescricional nos atos nulos é longo, o mesmo não ocorrendo com os anuláveis; os atos nulos comportam a decretação de ofício da invalidação, ao contrário dos anuláveis os quais devem ser declarados apenas a requerimento do interessado19; os atos nulos não podem ser convalidados e os anuláveis sim. Apesar dessas conseqüências jurídicas diferentes, os atos nulos e anuláveis têm efeitos iguais: ambos, uma vez reconhecida a invalidação retroagem à data do ato (neste ponto, seguimos a lição de Osvaldo Aranha Bandeira de Mello20) e nos dois casos a resistência do particular acobertada pelo Direito é a mera resistência passiva, isto é, o não-cumprimento do dever legal. Tanto a nulidade quanto a anulabilidade, uma vez reconhecidas e não sendo possível a restituição das partes ao estado anterior, serão indenizadas com o equivalente. Isso porque, conforme ressaltamos, o efeitos da invalidação são ex tunc. Assim, entendemos perfeitamente plausível a classificação tricotômica da invalidação dos atos administrativos: nulos, anuláveis e inexistentes. Se a lei não estabelecer a graduação da sanção ao ato editado de forma ilegal (nulo ou anulável), deve-se considerar a sua gravidade em face do interesse público e das partes envolvidas. Se o ato editado interessar mais ao administrado do que ao interesse público, será havido como anulável; caso contrário, nulo. Assim, o procedimento administrativo de outorga de marcas e patentes, não desenvolvido validamente pelo interessado, dependerá do grau de gravidade do vício para ser considerado nulo ou anulável. De outro lado, o procedimento licitatório realizado pela Administração Pública requer rigor na sua apreciação, por conta de sua finalidade pública, a de atribuir ao Poder Público a proposta mais vantajosa. Logo, os vícios que porventura ocorram nele deverão ser considerados, a princípio, nulos e não anuláveis. v.2.3- Atos Irregulares Além dessas diferentes categorias de atos, atingindo a ordem jurídica com maior ou menor gravidade- inexistência, nulidade e anulabilidade, há os atos irregulares, os que não afetam o interesse público, em que o conteúdo do ato não é prejudicado e ocorrem meros erros leves de forma. Se, por equívoco, a administração 19 Há atos praticados mais no interesse do particular, do que da administração. O processo administrativo de outorga de marca e patente, por exemplo, apesar do controle do Estado inclusive por razões de interesse público, têm mais de perto à proteção de interesses individuais. São atos, basicamente, anuláveis. 20 Ob. cit., p. 586. instituição toledo de ensino 172 edita autorização, ao invés de licença, ou vice-versa, nenhum prejuízo advirá desse ato, se o interessado preencheu os requisitos legais para sua outorga. Na verdade, os erros de forma, sobretudo quando adotada apenas para metodizar o serviço público, tornam-se irrelevantes perante a ordem jurídica. De outro lado, em havendo prejuízo aos administrados, tais como atingimento dos prazos de impugnação, evidentemente o ato padeceria não de mera irregularidade, mas de efetiva invalidação. V.3- Os efeitos dos atos inválidos. Conforme o ensinamento do profícuo Professor Celso Antônio Bandeira de Mello, os atos inválidos produzem efeitos jurídicos, quer sejam inexistentes, nulos ou anuláveis. Dizer-se que os atos inexistentes e/ou nulos não têm efeitos jurídicos não encontra supedâneo na realidade empírica. Tanto isso é verdade que os atos nulos e os anuláveis, mesmo depois de invalidados, podem produzir efeitos jurídicos, como acontece no chamado funcionário de fato, ou seja, aquele que foi irregularmente preposto em cargo público21. Neste exemplo, os atos realizados pelo funcionário de fato são válidos, apesar da nulidade material do ato administrativo, que investiu o agente no cargo. Conseqüência da possibilidade de produção de efeitos jurídicos de atos reconhecidos inválidos pela Administração Pública ou pelo Judiciário é o respeito aos efeitos patrimoniais passados atinentes à relação jurídica atingida, se o administrado estava de boa fé e não concorreu para o vício do ato fulminado22. Por exemplo, se o Poder Público realiza concurso público sem que, contudo, tenha sido de acordo com a lei, ou as normas da própria administração, e estando os concorrentes de boa-fé, isto é, não sabiam e nem havia condições de saber da ilegalidade, em face do vício apresentado, e não concorreram para ele, devem ser ressarcidos pelos prejuízos que lhes fora causado. O mesmo se pode dizer do procedimento licitatório e demais atos realizados pelo Poder Público. A realização de um contrato de direito privado (CLT) entre o Poder Público e o particular, sem a realização de concurso público, condição (requisito procedimental) para a referida contratação, apesar de tornar nulo o contrato firmado entre as partes, não impede a Administração de efetuar o pagamento ao particular pelos serviços prestados a ela, se o contratado estava de boa-fé; antes, o Poder Público tem a obrigação de pagar o contratado. O princípio da intangibilidade dos efeitos individuais dos atos administrativos impede a conduta desarrazoada da administração, no sentido de nulificar seus próprios atos, sem que o particular tenha dado causa ao vício e esteja de boa-fé; o 21 Ob. cit., p. 342. idem, p. 343. 22 instituição toledo de ensino 173 particular que participou da relação jurídica com o Poder Público deverá ser indenizado, assim como terceiros eventualmente prejudicados com o ato inválido. Não estamos negando a possibilidade de o Poder Público anular seus próprios atos - isto é uma garantia sua, aliás um dever: o de anulá-los ou de convalidá-los -; porém, como seus atos têm presunção de legitimidade, uma vez anulados, podem levar ao ressarcimento dos administrados. Os atos inexistentes, os nulos e os anuláveis, enquanto não reconhecidos os vícios, pela Administração ou pelo Poder Judiciário, geram efeitos. Ensina Antônio Carlos Cintra do Amaral, apesar de exigir decisão judicial com força de coisa julgada: “Tanto os atos administrativos válidos quanto os inválidos podem produzir efeitos. A distinção entre eles somente se põe quando suscetíveis de apreciação, por um órgão estatal competente, no que respeita a sua legalidade. Se dessa apreciação resulta sua manutenção no mundo jurídico (admitimos aqui a hipótese de decisão judicial com força de coisa julgada), são válidos. Se dela resulta eliminação, são inválidos.”23 Para nós, os atos inválidos (inexistentes, nulos e anuláveis), enquanto não reconhecidos por quem os emanou ou pelo superior hierárquico (Poder Público); ou pelo Poder Judiciário, têm efeitos. Compete a quem de direito reconhecer-lhes os vícios e decretar a sua invalidação. Isso não ocorrendo, a eficácia do ato permanece. Reconhecendo-se o vícios (a) nos atos inexistentes, temos a consideração de nunca ter existido e, em princípio, ele não produz efeito algum; (b) nos atos nulos e anuláveis, produziram efeitos, apesar de considerar nunca tê-los produzido (a invalidação fulmina o que já ocorreu, no sentido de que se negam hoje os efeitos de ontem), excetuado, como dissemos, o ressarcimento aos terceiros de boa-fé.24 O ato inexistente, ainda não reconhecido como tal pela Administração Pública ou pelo juiz, pode gerar efeitos, consoante acima afirmamos. Se, num determinado concurso público, o quarto colocado for nomeado quando já estava morto, cuidar-se-á de ato administrativo sem conteúdo, inexistente. O colocado seguinte (quinto), não tendo conhecimento do fato, estará prejudicado (impedido de ingressar nos quadros do Estado); a qualquer momento, porém, uma vez sabendo da morte de seu antecessor, poderá pedir seu ingresso nos quadros do Poder Público, reconhecida a inexistência do ato, pela administração ou pelo juiz. 23 Ob. cit. ,p. 61. “Podem ocorrer casos, em nome do princípio da boa-fé e da vedação do enriquecimento sem causa, em que se ressalvam da eliminação alguns efeitos pretéritos de atos nulos e anuláveis”. (Celso Antônio Bandeira de Mello, ob. cit. ,p. 333). 24 174 instituição toledo de ensino VI. OS ELEMENTOS OU REQUISITOS DO ATO ADMINISTRATIVO E A INVALIDAÇÃO O objeto, após ter sido separado dos demais seres para estudo pelo cientista do Direito, necessita de análise de suas partes; estas, embora estejam ligadas ao todo e o caracterizem, merecem ser conhecidos separadamente. Por isso, vamos analisar, de forma rápida, a invalidação nos elementos ou requisitos dos atos administrativos, seguindo a classificação mais conhecida pela doutrina, sem, contudo, termos em mente qualquer comprometimento científico, e sem a pretensão de esgotarmos as soluções possíveis. 1. Sujeito. Pode ocorrer a incompetência absoluta do agente, por exemplo, edita ato de competência de outro poder do Estado, o que geraria inexistência; ou edita ato de competência de outro órgão, ainda que da mesma pessoa jurídica, e o ato seria anulável, convalidável25. Aliás, pode resultar da qualidade pessoal do agente, como loucura e embriaguez, também inexistência no primeiro caso, e nulidade absoluta no segundo. Outra hipótese de nulidade relativa, quando o ato é praticado por agente incompetente, dentro do mesmo órgão, uma vez o ato caiba, na hierarquia, ao superior hierárquico26. Quanto aos vícios de manifestação de vontade propriamente ditos, coação, simulação, etc., ao contrário de Seabra Fagundes, o qual entende não ser possível convalidação do ato, por força da moralidade administrativa27, entendemos, seguindo Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, o ato ser meramente anulável, quando o vício de vontade não viole norma cogente ou dos bons costumes, ou o seu preceito se colocou em favor do administrado, sujeito à autonomia de sua vontade.28 Além disso, se o vício alcançar a manifestação de vontade e a norma cogente, o ato não é nulo, mas inexistente, pois concebemos não existir o ato quando o seu conteúdo for ilícito, conforme veremos no item 3. 2. Motivo. Motivo é o pressuposto de fato, realidade do mundo empírico. A ausência do motivo ou a incorreta subsunção de um fato à hipótese normativa, torna o ato nulo, não podendo ser convalidado. Digamos que determinado servidor público tenha sido exonerado a pretexto de ter cometido infração administrativa de natureza grave; constatada a ausência do fato, o ato padece de nulidade.29 25 “Nada obsta, em nosso entender, que o ato de interdição de uma fábrica poluente, subscrito por um Secretário de Estado, a quem não está afeta a matéria, seja convalidado, posteriormente, pelo Secretário competente.”( Weida Zancaner, ob. cit. ,p. 68). 26 “...será simplesmente anulável, quanto à capacidade da pessoa, se praticado por agente incompetente, dentro do mesmo órgão especializado, uma vez o ato cabia, na hierarquia, ao superior ...”(Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, ob. cit., p. 579). 27 ob.cit.,p.45. 28 ob.cit.,p.579 29 Weida Zancaner acentua em sua obra não ser possível a convalidação do ato com vício no motivo, quer seja o edi- instituição toledo de ensino 175 3. Objeto (conteúdo), é sobre o que ato dispõe. Se for ilícíto ou impossível, o ato é inexistente. Se o conteúdo do ato for ininteligível, certamente teríamos sua inexistência, diante da impossibilidade de seu conteúdo ser verificável pela mente humana. A ilicitude do conteúdo pode concorrer com o vício da manifestação da vontade. Apesar de encartá-lo como ato nulo, o exemplo do Professor Oswaldo Aranha Bandeira de Mello serve-nos de rumo: “Assim, se alguém consegue despacho ilegal por coação moral levada a efeito contra agente público, o ato é não só anulável por vício de vontade, como nulo por ilegal, em razão da ilicitude do objeto...”.30 4. Finalidade. O agente agindo com fim diverso daquele estabelecido na lei pratica ilegalidade; ocorre o desvio de poder. Por exemplo, o Poder Público edita ato administrativo visando à cobrança de multa por infração no trânsito; porém, em vez de ser estabelecido com finalidade repressiva (e até mesmo preventiva), no exercício do poder de polícia, teve efeito, inadvertidamente, apenas com o fim de arrecadar recursos ao erário. Trata-se de interpretação errônea da lei, caracterizando o vício de conteúdo ilegal, para nós encartado na categoria de ato inexistente. No ponto, esclarece Antônio Carlos Cintra do Amaral: “a finalidade da norma legal fornece ao intérprete o critério para estabelecer sua ‘moldura’ e, assim, as soluções de aplicação possíveis. O desvio de finalidade, de acordo com esta concepção, corresponde a uma interpretação errônea (falsa)...”31 Para o autor, tal desconformidade não se caracteriza pelo desvio de finalidade, mas sim por um conteúdo ilegal32 Portanto, o denominado desvio de finalidade (objetiva) é ato administrativo inexistente, por consistir numa moldura ilícita, baseada na errônea interpretação da lei. Do mesmo modo, o ato administrativo com fim de prejudicar ou ajudar alguém, isto é, não tendo por finalidade o interesse público, mas interesses subalternos, de particulares ou do próprio agente que o emitiu, é inexistente. A autorização para casa de jogos funcionar, visando à plena satisfação de interesses políticos é inexistente. Não se visou ao interesse público. Não se cuida de recurso de interpretação da lei (acima, finalidade legal, objetiva), mas de ilicitude em vista de um elemento da própria lei, que é sempre o interesse público, protegido genericamente pela norma. Se a lei manda que o agente aja com fim de atender apenas ao interesse pú- tado no exercício da competência vinculada ou no da competência discricionária. (ob. cit. ,p. 74). 30 Ob. cit., p. 580. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello não aceita a divisão tricotômica de invalidação dos atos administrativos. 31 Ob. cit., p. 60. Isso porque, segundo Queiró, o fim da lei é o “conjunto de interesses, exigências, relações, necessidades ou circunstâncias sociais em vista das quais a lei foi emanada, ou que a lei tem em vista, considerada objetivamente, e cujo conhecimento será porventura necessário para determinar o verdadeiro alcance da lei. É apenas um recurso da interpretação da lei, e de nenhum modo um elemento da própria lei” (Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo, p. 74, apud Antônio Carlos Cintra do Amaral, ob. cit., p. 59). 32 Idem, p.60 instituição toledo de ensino 176 blico, isso não ocorrendo, certamente o conteúdo do ato estará viciado, ante sua ilicitude flagrante, eminente. Assim, tanto no caso da ilicitude decorrente do desvio de finalidade objetiva quanto a relacionada à intenção do agente são vícios que acarretam a inexistência do ato. 5. Formalidade. É a forma específica exigida por lei para a validade de um ato. O ato pode ser meramente anulável, convalidável33. De outro lado, a preterição de solenidade essencial para a validade do ato, torna-o nulo (a ausência de licitação no contrato de obra pública). Além disso, se a formalidade for para mera metodização ou uniformização dos atos da administração pública, seria mera irregularidade, exceto se atingir as garantias do administrado, quando então o ato é nulo. 6. Causa do ato. É a relação de adequação lógica entre o motivo e o conteúdo do ato. O vício na causa torna o ato nulo. Não é possível a convalidação, pois o descompasso se verificará todas as vezes em que o mesmo ato for repraticado34. VII- CONCLUSÕES Em face do exposto, podemos alinhar as seguintes conclusões: a) b) c) d) 33 A análise do ato administrativo pode ser feita tendo em vista os planos da perfeição, validade e eficácia. Trata-se de verificações diferentes, ângulos diversos do mesmo objeto. Apesar disso, têm ligações profundas, umas com as outras. Apesar de o ato ser perfeito, poderá ser inválido; se for válido, poderá ser ineficaz, embora seja perfeito; e assim por diante; O estudo da invalidação do ato administrativo encontra-se no plano da validade, isto é, no da verificação dele perante a ordem jurídica, na adequação do ato às exigências normativas; Tanto o ato eficaz quanto o ineficaz podem ser invalidados pelo juiz ou pela Administração, e seus efeitos retroagem, no sentido de não reconhecer, no presente, os efeitos jurídicos do passado; Há distinção e autonomia entre o Direito Privado e o Direito Público. Ambos os ramos jurídicos têm normas e princípios próprios; porém, isso não significa a impossibilidade de aplicar-se as normas do Direito Privado na invalidação dos atos administrativos. Isso torna-se possível desde (a) a falta de norma de Direito Público; (b) as normas de Direito Privado sirvam de suporte para o re- O exemplo trazido pela ilustre professora Weida Zancanner é elucidativo: “Sabemos que a cessão de uso de bens de um órgão para outro da mesma entidade se faz por termo e anotação cadastral. Ora, pode ocorrer que haja cessão de uso verbal. Neste caso a convalidação se impõe e o administrador se verá obrigado a lavrar o termo e a proceder a anotação cadastral, que retroagirá à data da cessão de uso dada verbalmente e, portanto, sem a formalidade estabelecida.”(ob. cit., p. 70). 34 Weida Zancanner, ob. cit., p. 75. instituição toledo de ensino e) f) g) h) i) j) k) 177 conhecimento da invalidação; (c) e possam atuar de acordo com o interesse público protegido pela ordem jurídica; Com isso, sempre existe para o juiz certa discrição na apreciação da nulidade ou anulabilidade do ato, no caso de falta de norma de Direito Público, regulando a hipótese; A divisão dicotômica de invalidade dos atos administrativos (nulidade-anulabilidade) não encontra completo respaldo na ordem normativa. Atos administrativos podem ser editados de forma afrontosa à ordem jurídica, contribuindo para o desleixo do Poder Público pela obediência à lei. Atos administrativos que correspondam a crimes; com conteúdo impossível ou ilícito; ou editados com usurpação gravosa de função, são considerados inexistentes. Logo, atos inexistentes são assim classificados, considerando-se o grau de violação da ordem jurídica; Os atos inexistentes comportam, por parte do administrado, resistência ativa, vale dizer, na utilização de meios físicos para impedir o comportamento da autoridade; não tem prazo prescricional e nunca podem ser convalidados; não têm os atributos próprios dos atos administrativos; Os atos nulos diferem dos anuláveis em diversos aspectos, muitos dos quais previstos por normas de Direito Privado. Mas, reconhecida a invalidação pela autoridade competente, tanto os efeitos do ato nulo como os do anuláveis retroagem à data do ato; não sendo possível a restituição das partes ao estado anterior, serão indenizadas com o equivalente. A resistência do particular, nos dois casos, é a passiva; Os atos meramente irregulares não atingem a ordem jurídica, não afetam o interesse público e, por isso, não havendo prejuízos aos particulares, devem ser mantidos; Atos inexistentes, nulos ou anuláveis têm efeitos, enquanto não reconhecidos pela autoridade; os dois últimos, em alguns casos, mesmo depois de invalidados, podem continuar a tê-los, como na hipótese de funcionário de fato, ou de ressarcimento ao particular de boa-fé; Ao estudar-se os elementos ou requisitos dos atos administrativos, verificamos não haver perfeita compatibilidade entre as normas de Direito Civil e as de Direito Administrativo, no tocante à invalidação; aliás, a incompatibilidade não se verifica entre normas, pois, de regra, não há, no Brasil, lei de Direito Público regulando-a . Ela ocorre porque há impossibilidade de aplicação da lei civil na órbita do Direito Administrativo, em algumas hipóteses, inclusive para salvaguardar o interesse público. instituição toledo de ensino 178 VIII- BIBLIOGRAFIA ALIBERT, Rafael. Le Controle Juridictionnel de L’ Administration. Paris: Payot, 1926. AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Extinção do Ato Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. CARNELUTTI, Francesco. Tratado Geral do Direito. Lejus, 1999. CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo. 5ºed., Livraria Freitas Bastos S.A, 1964, V1. DROMI, Roberto. El Acto Administrativo. Buenos Aires, 3º ed., Ediciones Ciudad Argentin, 1997. FAGUNDES, Miguel Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 6º ed., 1984. FONSECA, Tito Prates da. Direito Administrativo. São Paulo: Freitas Bastos, 1939. JUAREZ, Hugo A. Olguin. Extinción de Los Actos Administrativos Revocación, Invalidación Y Decaimento. Santiago do Chile: 8º ed., Editoral Jurídica de Chile, 1961. LAUBADÈRE, André de; VENEZIA, Jean Claude; GAUDEMET, Yves. Droit Administratif. Paris: 14º ed., L.G.D.J., 1996, V1. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros Editores,11º ed., 1998. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira. Princípios Gerais de Direito Administrativo. São Paulo: 1º ed., Forense – Rio, 1969. RIVERO, Jean; WALINE, Jean. Traité Droit Administratif., Paris: 16º ed., Dalloz, 1996. ZANCANER, Weida. Da Convalidação e da Invalidação dos Atos Administrativos. São Paulo: Malheiros Editores, 2º ed., 1996. Medidas provisórias: visão lógico-sistemática Carlos Eduardo Lima Passos da Silva Professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal da Universidade Estadual de Santa Cruz - Ilhéus/BA, Promotor Público - Itabuna/BA, Especialista em Processo Civil I. INTRODUÇÃO O Direito é fato, valor e norma. Todo Direito se encontra sistematizado em regras concatenadas e balizado por princípios fundamentais. Dessa maneira, o seu entendimento enseja uma compreensão tridimensional, consoante o magistério de Miguel Reale e Recásens Siches, sob pena de uma inadequada ratio. Hodiernamente, a ciência jurídica vem sendo enriquecida grandemente pelos estudos desenvolvidos por constitucionalistas, administrativistas, tributaristas, penalistas e processualistas a respeito do papel desempenhado pelos princípios. Tais estudos revelam a necessidade duma interpretação lógico-sistemática afinada com a pauta ideológica dos Estados, exposta em suas Constituições. Por isso mesmo, revestem-se de força e vigor os estudos desenvolvidos por aqueles juristas que entendem a necessidade básica da perquirição axiológica. É o que fazem, por exemplo, Celso Antônio Bandeira de Mello, Suzana de Toledo Barros, Paulo Bonavides, José Souto Maior Borges, Uadi Lammego Bulos, José Joaquim Gomes Canotilho e Ruy Samuel Espíndola, entre outros tantos, seja no Brasil, seja no estrangeiro. Em assim sendo, comporta o estudo das Medidas Provisórias uma compreensão dos valores e princípios agasalhados pelo Ordenamento Jurídico, in casu do Brasil. As Medidas Provisórias são um instituto jurídico-constitucional europeu, recepcionado pelo Ordenamento jurídico pátrio. Por serem concebidas nos Estados parlamentaristas, muitos estudiosos condenam a sua adoção entre nós. No entanto, instituição toledo de ensino 180 mostra a realidade atual que estão sendo utilizadas a exaustão tanto pelos Estados parlamentaristas, como nos presidencialistas, sendo o Brasil paradigma . No presente estudo, procura-se entender o conceito das medidas provisórias, sua validade, eficácia e elementos no sistema normativo nativo, em sintonia com os princípios constitucionais. Foi inserido uma retrospectiva jurisprudencial a título de arrimo ilustrativo, provinda dos Tribunais Superiores do País. I- CONCEITO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS As medidas provisórias são um ato político, executivo, de competência privativa do Presidente da República, formal, vinculado, materialmente legislativo, com força de lei. A conceituação supra encontra base nas afirmações dos constitucionalistas, como, por exemplo, na do mestre Sérgio de Andrea Ferreira, exposta em artigo denominado “MEDIDA PROVISÓRIA: natureza jurídica”, publicado pela Malheiros, em 1993. Em assim sendo, só se pode conceber as medidas provisórias como ato vinculado do Presidente da República, em matéria da competência legislativa da União. Portanto, não mais existem limitações, em razão da matéria, à iniciativa presidencial a contrario senso da qualificação exigida pela anterior Constituição de 1967. As Medidas Provisórias são reguladas pelos artigos 59,V; 62, parágrafo único da Carta de 1988. Por serem um ato político, vinculado, de eficácia resolutiva (pois perdem valor, caso no prazo de 30 dias não sejam convertidas em lei pelo Congresso Nacional) tem necessidade duma motivação que comprove os requisitos de urgência e relevância, por parte do Chefe do Poder Executivo Nacional. Despiciendo dizer que se inexistir motivação as medidas provisórias editadas são consideradas à luz do são Direito ineficazes. Na realidade tais caracteres são uma verdadeira conditio sine qua non de eficácia. Pelo visto, em nosso Ordenamento Jurídico, as Medidas provisórias são um ato político, vinculado, formal, materialmente legislativo, editadas pelo presidente da república, com objeto na competência legislativa da União, de eficácia resolutiva, dispostas em razão de urgência, relevância, motivados. II- NATUREZA JURÍDICA As Medidas Provisórias têm sua identidade no conjunto dos atos públicos de Direito Constitucional. Assim, revela-se inócua uma busca de sua ratio essendi fora desses lindes, como, aliás, corrobora FERREIRA ( 1993-156). Elas têm o caráter da antecipação satisfativa, operando-se ex tunc a perda de eficácia, caso inocorra aprovação do Congresso Nacional, no prazo legal de 30 dias, a partir de sua publicação. instituição toledo de ensino 181 Trata-se de medidas excepcionais, uma vez que extrapolam a rotina legislativa e administrativa e tem necessidade da adequação aos princípios constitucionais. Como ato destoante da regra comum só podem (para a maioria dos exegetas) ser editadas pelo Poder Executivo Nacional, vedado aos chefes dos poderes estaduais e municipais sua edição. Todavia, segundo a voz minoritária isso não tem explicação legal, pois o fulcro das Medidas Provisórias reside no interesse público, seja da Nação, Estados e Municípios. Mencionado princípio, no dizer de ATALIBA (1985-143) “dimana da República, institucionalizadora das formas pelas quais os mandatários do povo administram – sensu lato - a coisa pública.” Daí porque se encontra conectado ao princípio da igualdade, que no dizer de IARA TOLEDO FERNANDES, em artigo irretocável na Revista da Faculdade de Direito de Bauru (ITE. 1998-68) “constitui a base dos princípios fundamentais relacionados em nosso texto constitucional, expressando o querer nacional...” A plena submissão das medidas provisórias ao Poder Legislativo é a existência de um ESTADO DE NECESSIDADE, que impõe ao Poder Executivo a utilização imediata de providências de caráter legislativo, inalcançáveis pelas regras ordinárias de legiferação , em face do periculum in mora certamente advindo do atraso na sua concretização. Portanto, a ouvida do Congresso Nacional é indispensável, pois ele é que aprova e reafirma os efeitos jurídicos de sua edição. Rejeitadas pelo Legislativo automaticamente perdem as medidas provisórias eficácia e impossibilitam a latere o Presidente da República renovar esse ato quase-legislativo. A respeito do afirmado supra veja-se aresto da Excelsa Corte, - RE 1663499/DF. Rel. Min. Celso de Mello, lª. Turma. A conceituação de urgência e relevância é encontrada no vernáculo e no Direito como uma necessidade primária a satisfazer, de logo e rapidamente, sob pena de elisão dos efeitos pretendidos. No entanto, a urgência há de ser demonstrada através de motivos baseados no interesse público, para que não sobressaiam como ato arbitrário do Presidente da República. Parodiando Bentham, citado por Michelle Taruffo “as boas decisões são aquelas decisões para as quais boas razões podem ser dadas” “Good decisions are such decisions for which good reasons can be given”. Evidentemente, a motivação da edição das medidas provisórias evidenciam não a vontade do Poder, mas a necessidade irrefragável do Chefe do Poder Executivo em implementá-las. Fora disso, reside inapelavelmente o arbítrio dos tiranos. Afirma com propriedade SEABRA FAGUNDES, citado por Aliomar Baleeiro no RE 62.731,GB, RTJ, v. 5, p. 559 que “a competência discricionária não se exerce acima ou além da lei senão como toda e qualquer atividade executória, com sujeição a ela; não autoriza tomar medidas arbitrárias, caprichosas, inquisitoriais ou opressivas.” Por conseguinte, afirma a moderna doutrina constitucional que a utilização de fórmulas obscuras, motivadas por razões políticas ou de outra ordem, CONTRARIA 182 instituição toledo de ensino PRINCÍPIOS BÁSICOS DO PRÓPRIO ESTADO DE DIREITO, como os de segurança jurídica e os postulados de clareza e de precisão da norma jurídica. Eis por que as medidas provisórias tem que obedecer aos cânones da boa redação legislativa, sem os vícios do “economês” e da tecnoburocracia, tão comuns hoje em dia. III- OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Falou-se neste estudo sobre o papel dos princípios constitucionais nas Medidas Provisórias. Na verdade, tais princípios devem ser um constructo de qualquer norma jurídica, pois todo sistema normativo possui valores a implementar e proteger. Tal, vem sendo ressaltado por diversos juristas de escol do Pais e do estrangeiro, principalmente pela moderna doutrina constitucional e administrativista. O que deve ser entendido por Princípio? Consoante o magistério de MELLO (1986-230) “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico...” Como bem elucida ESPÍNDOLA (1999-30) a Carta de 88 expressa diversos princípios que devem ser obedecidos por qualquer diploma legislativo pátrio. Entre eles, ressalte-se o princípio do interesse público, da igualdade, da forma prescrita em lei, da separação de poderes, da irretroatividade da lei, da legalidade, da oficialidade, da boa fé. Assim, todo o Direito nativo há de se adequar aos valores acrisolados pela Norma, enunciados pelos princípios basilares, constitucionais. Disso resulta a invalidade das medidas provisórias que firam tais princípios consagrados. Dessa maneira, não pode vigorar medidas provisórias que se tornam permanentes, constantemente reeditadas, sem a devida ouvida do Congresso Nacional; das que atentem as regras da irretroatividade da lei, firam o princípio do direito adquirido e da coisa julgada, firam o princípio da anualidade tributária. Todo o sistema normativo brasileiro é eivado desses valores. E o Brasil enunciou-os em alto e bom som, como, aliás, dispõe o Preâmbulo da hodierna Carta Magna. Disso tudo avulta de importância o papel da pauta ideológica adotada pelo Estado. O Brasil, por exemplo, adota o princípio do Estado Democrático-Social de Direito, e isso somente pode ser elidido por outra Carta Magna, que, da mesma forma abrigará outros princípios. Trata-se, portanto, duma cadeia lógica irrefutável. instituição toledo de ensino 183 Dessa maneira, o Chefe do Poder Executivo Nacional, ao editar as medidas provisórias, há de observar os princípios constitucionais vigentes, os valores albergados pela Carta Magna, que jurou solenemente observar. IV- CONCLUSÕES De todo o exposto, conclui-se que: l) 2) 3) 4) 5) 6) as medidas provisórias são um ato formal, vinculado, de eficácia condicionada, de autoria do chefe do Poder executivo nacional, com força de lei, editadas sob os requisitos da urgência e relevância; as medidas provisórias hão de ser motivadas, evitando-se o arbítrio; as medidas provisórias hão que obedecer necessariamente aos ditames dos princípios constitucionais vigentes; as medidas provisórias perdem eficácia ex tunc, caso não sejam apreciadas e aprovadas pelo Congresso Nacional, no prazo de 30 dias; as medidas provisórias exigem uma compreensão lógico-sistemática do Direito; as medidas provisórias são uma exceção legal, não podendo constituir-se ad infinitum. BIBLIOGRAFIA ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: RT, 1985. ALMIRO, João. Das miragens do paraíso à construção do presente. Revista Justiça e Democracia, v.1, São Paulo: RT, 1966. BRANCHINI Alice. Igualdade formal e material. 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Teoria do Delito. São Paulo: RT, 1998. Spíndola, Ruy Samuel. Conceito de princípios Constitucionais. São Paulo: RT, 1999. Regimes políticos, Regimes de governo e Regimes ideológicos Reis Friede Mestre e Doutor em Direito Público, é Magistrado Federal e autor de inúmeras obras jurídicas Conforme já consignamos, por muito tempo a democracia foi considerada uma genuína forma de governo. Para PLATÃO, em particular, a democracia (legal e arbitrária) representava o governo de todos em contraposição crítica ao governo de um só (monarquia (real e legal) e tirania) e ao governo de um grupo (aristocracia e oligarquia). Seu discípulo direto, ARISTÓTELES, por seu turno, afirmava a democracia como forma pura de governo (ao lado da monarquia e da aristocracia) em oposição à demagogia, forma deturpada (impura) de governo. POLÍBIO, posteriormente, inovou ao defender a forma de governo ideal como a "reunião, em sua justa medida, da monarquia, da aristocracia e da democracia". MAQUIAVEL, a seu tempo, entendeu a democracia como forma plural do governo republicano, concepção esta também aceita mais tarde por MONTESQUIEU. Finalmente, BODIN, entre outros, também registrou o vocábulo como inconteste tradução de um tipo de governo, assentando, em última análise, a concepção da democracia como efetiva e indiscutível forma de governo até a era contemporânea, quando, por fim, a democracia passou a ser corretamente entendida como regime político, ensejando ainda a necessária divisão das formas de governo (gênero) em sistemas de governo (monarquia e república) e em regimes de governo (presidencialismo (ou monarquia pura) e parlamentarismo). Nesse aspecto, e por efeito conseqüente, além dos regimes de governo, na qualidade de espécie do gênero formas de governo, passaram a despontar, no estudo contemporâneo da essência estrutural-teórica de um Estado, como unidade fundamental da disciplina político-constitucional, não só os regimes políticos (em que instituição toledo de ensino 186 se encontram inseridos, contemporaneamente, a democracia e o denominado regime democrático), como ainda os chamados regimes ideológicos (também conhecidos como regimes políticos ideológicos ou formas amplas de associação política), permitindo, desta feita, o amplo estudo da inerente complexidade do ente estatal na atualidade contemporânea. 1. REGIMES IDEOLÓGICOS Os denominados regimes ideológicos (ou regimes políticos ideológicos (ou, como preferem alguns, regimes políticos ideológicos) ou formas amplas de associação política) representam a herança direta das três ideologias básicas da atualidade (revolucionária radical, liberal-conservadora e reacionária) que têm, por sua vez, suas raízes fincadas na cultura e na filosofia ocidentais: nacionalismo, democracia constitucional e comunismo. Diagrama 1: ideologias básicas da atualidade. Liberal-Conservadora RevolucionárioLiberal Esquerda Centro Reacionária Direita Em essência, as denominadas ideologias básicas do mundo contemporâneo traduzem, em última análise, a base ideológica das modernas tendências políticas e, em certo aspecto, a própria concepção esquemática dos chamados regimes de esquerda, centro e direita (que, registre-se, muitos autores consideram ultrapassada com o fim da chamada guerra fria em 1989 (marco final do colapso do Império Soviético e início do fim da URSS)), permitindo, por fim, a caracterização teórica avançada (ou atualizada, como preferem alguns) dos fundamentos político-ideológicos da clássica fórmula dual da ditadura (no sentido restritivo de Estado-governo absoluto) e da democracia (no sentido igualmente restritivo de Estado-governo limitado). instituição toledo de ensino 187 Diagrama 2: regimes políticos-ideológicos básicos (formas amplas de associação política). Estado-Governo limitado Democracia Constitucional Comunismo Nacionalismo Estado-Governo absoluto Nesse particular sentido conceitual, os regimes político-ideológicos (ou simplesmente regimes ideológicos) correspondem a uma verdadeira síntese, com matizes filosóficos e culturais, destas ideologias básicas associadas, por seu turno, ao comportamento do que nós convencionamos designar por Estado-governo, em face de sua maior ou menor atuação e participação na vida social dos indivíduos e da coletividade. Destarte, conforme já consignado, três diferentes variantes podem ser, em princípio, apresentadas, neste contexto, na qualidade de regimes político-ideológicos: o nacionalismo (como melhor tradução da ideologia reacionária), a democracia constitucional (como reflexo da concepção ideológica liberal-conservadora) e o comunismo (como desaguadouro natural do movimento ideológico revolucionário- radical). Ainda assim, em decorrência da própria complexidade (e, por que não dizer, dialética) do mundo contemporâneo, muitos estudiosos têm procurado aperfeiçoar estas traduções político-ideológicas (ainda que não sem críticas), entendendo que a natural correspondência entre as três ideologias básicas (em decorrência de suas inerentes complexidades e variados graus distintivos) não deve se ater a uma simples relação restritiva de superposição. Neste aspecto, oferecem, como alternativa, o conseqüente desdobramento dos três regimes político-ideológicos básicos instituição toledo de ensino 188 em cinco diferentes possibilidades que, em tese, correspondem às diversas formas de associação política do mundo atual. Diagrama 3: regimes políticos-ideológicos atuais. Social-Democracia Democracia Liberal Socialismo Centro Comunismo Esquerda Nazi-Fascismo Direita OBS.: É importante esclarecer que alguns estudiosos têm manifestado, inclusive com notável veemência, muitas críticas a esta classificação, entendendo que a não-correspondência direta entre os regimes político-ideológicos (na qualidade de formas amplas de associação política) e as ideologias básicas (restritas, em princípio, a três) desnatura a essência ampla das formas de associação política, eliminando o necessário rigor classificatório e permitindo, por via de conseqüência, confundirem-se os regimes político-ideológicos com as concepções políticas que, em certa medida, traduzem (ou permitem traduzir) formas restritas (e, por efeito, mais detalhadas) de associações políticas. 2. REGIMES POLÍTICOS E RELAÇÕES DIMENSIONAIS DAS DIVERSAS CATEGORIAS CLASSIFICATÓRIAS DA TEORIA GERAL DO ESTADO Enquanto as formas de governo (em sua acepção contemporânea) representam, através de sua principal espécie - sistema de governo (monarquia e república) (É importante observar que tais formas de associação política, no sentido amplo, traduzem, conforme preceitua a doutrina, a própria acepção dos regimes político-ideológicos e não se confundem, por efeito, com as diferentes concepções políticas, não obstante reconhecermos que, em face de sua maior amplitude, acabam permeando e, em conseqüência, influenciando, naturalmente, a construção teórica das mesmas. Vale registrar, neste aspecto, que alguns estudiosos do tema preferem manter a correspondência objetiva entre os regimes político-ideológicos (como forma ampla de associação política) e as três ideologias básicas, entendendo que o desdobramento que se deseja impor corresponde à própria designação das diversas concepções políticas, como forma restrita de associação política). instituição toledo de ensino 189 - o acesso ao poder (respectivamente, laços de consangüinidade (hereditariedade) e elegibilidade) e a permanência temporal do governante (pela ordem, vitaliciedade e temporariedade), e, por intermédio de sua outra espécie - regime de governo (presidencialismo (ou monarquia pura) e parlamentarismo) - o grau de concentração do poder em mãos do governante (chefia de governo e de Estado, no primeiro caso, e apenas chefia de governo, no segundo caso), e os regimes ideológicos (regimes político-ideológicos) sintetizam as formas amplas de associação política, os chamados regimes políticos traduzem, por sua vez, o método formal (no sentido de essência) e o grau de representatividade (e, em certo aspecto, o próprio liame subjetivo (e fundamento) da legitimidade) entre o povo (na qualidade de titular do Poder Constituinte (como expressão máxima da soberania nacional) e o agente constituinte (que exerce, em última análise, o Poder Constituinte) e os demais mandatários do Estado (agentes dos diversos poderes estatais constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário). Não é por outra razão, a par de todas as possíveis confusões designativas, portanto, que resta, de maneira imperiosa - não obstante toda a sorte de eventuais divergências doutrinárias no que concerne à precisa nomenclatura das diferentes categorias classificatórias da Teoria Geral do Estado -, consignar, com o necessário rigor técnico, as inerentes relações dimensionais não só entre as designações básicas de forma (que possui um sentido mais amplo de princípio determinante de um conjunto de métodos), sistema (que traduz, num sentido intermediário, o próprio conjunto de métodos) e regime (representando, num sentido menor, os próprios métodos), mas principalmente entre as expressões elementares do conjunto estrutural da ciência política (sociedade, política, Estado e governo) vis-à-vis com as categorias básicas (povo, Nação, soberania, território e Administração Pública) e classificatórias (formas/sistemas políticos, regimes políticos, ideologias básicas, regimes ideológicos, concepções políticas, sistemas econômicos, formas de Estado, formas de governo, sistemas de governo e regimes de governo) da Teoria Geral do Estado, considerando que somente desta maneira é possível enfrentar, no sentido amplo, o sublime desafio da necessária imposição de cientificidade ao estudo da disciplina jurídica neste contexto, e de modo particular as inerentes dificuldades classificatórias no que concerne à perfeita adequação doutrinária da expressão democracia, entendida contemporaneamente, como já afirmado, não mais como uma forma de governo, mas, de modo diverso, como um indubitável regime político. (Deve ser registrado, por oportuno, que alguns autores preferem, neste particular, a designação de regimes representativos, não obstante entendermos que a nomenclatura regimes políticos melhor designa o seu duplo objeto: o método formal e o grau de representatividade entre o titular do poder e seus mandatários. Para a maior parte dos estudiosos que adotam a expressão regimes representativos, vale esclarecer, os regimes políticos traduzem o agregado de várias categorias (regimes representativos, ideologias, regimes ideológicos, concepções políticas e sistemas econômicos), substituindo, neste sentido, a que nós convencionamos chamar de sistemas políticos.) instituição toledo de ensino 190 Diagrama 4: relações teórico-dimensionais entre forma, sistema e regime. Forma Princípio Determinante do Conjunto de Métodos Maneira variável com que uma Nação, uma idéia, um acontecimento, uma ação se apresentam. Modo de ser, modalidade, variedade. Caráter comum a várias coisas. Princípio que confere a uma ser os atributos que lhe determinam a natureza própria. Sistema Conjunto de Métodos Conjunto de elementos ideais entre os quais se possa encontrar ou definir alguma relação. Disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si, e que funcionam como estrutura organizada. Conjunto das instituições sóciopolíticas e dos métodos por elas adotados, considerados sob a ótica teórica ou prática. Regime Métodos Modo de exercício de determinada atividade. Conjunto de variações da forma ou do sistema. Método de desempenho funcional. instituição toledo de ensino 191 Diagrama 5: relações dimensionais entre sociedade, política, estado e governo e suas conseqüêntes categorias básicas e classificatórias EXPRESSÕES ELEMENTARES: SOCIEDADE (Categorias Básicas: Povo e Nação) POLÍTICA (Ação Política) (Categorias Básicas: Povo, Nação e Soberania) ESTADO CATEGORIAS CLASSIFICATÓRIAS Formas/Sistemas Políticos Regimes Políticos1 Ideologias Básicas Regimes Ideológicos (Regimes Políticoideológicos ou Formas Amplas de Associação Política) Concepções Políticas (Formas Restritas de Associação Política) Sistemas Econômicos (ou Produtivos)2 Formas de Estado (Categorias Básicas: Povo (Nação), Território e Soberania) GOVERNO (Categorias Básicas: Povo, Nação, Soberania, Território e Administração Pública) Formas de Governo Sistema de Governo Regimes de Governo OBS: 1. Os regimes políticos correspondem a uma dimensão superior à própria categoria política (e da ação política), conquanto o regime de representatividade traduz a forma (no sentido de sua essência) de relação originária e inicial entre o povo (categoria básica da sociedade) e seus mandatários, estabelecendo, pelo menos no primeiro momento, a própria concepção da ação política que, no momento seguinte, também acabará influenciando a dialética inerente ao regime político adotado (e passível de alteração). 2. Os sistemas econômicos são derivados diretos da ação política, considerando que, no âmbito maior da sociedade, os meios produtivos organizados, embora existentes, limitam-se a uma atuação restritiva de apenas prover meios de subsistência ao povo, não traduzindo, desta feita, seu papel essencialmente político de “escolha” e “opção”, de estratificação social e mesmo de estratégia político-econômica. instituição toledo de ensino 192 Agregações de Categorias Classificatórias Diagrama 6: tradução técnico-jurídica das diversas categorias classificatórias da TGE 1. Formas Políticas Traduzem o agregado de formas de associação política (no sentido amplo da expressão), formas de Estado e formas de governo. Para a maior parte dos estudiosos do tema, as formas políticas, em decorrência da amplitude de seu agregado de categorias, não possuem qualquer sentido prático. Alguns simplesmente não reconhecem tal categoria, enquanto outros preferem designá-la em conjunto com os sistemas políticos. 1a. Sistemas Políticos Traduzem o agregado de regimes políticos, ideologias básicas, regimes ideológicos, concepções políticas e sistemas econômicos. 2. Regimes Políticos Ditadura Democracia (Regime Representativo) Direta Indireta Representativa Plebiscitária (ou de Referendum) Traduzem o método formal (no sentido da essência) e o grau de representatividade entre o titular do poder (o povo) e seus mandatários Para alguns autores, os regimes políticos são designados por regimes representativos, embora outros entendam que estes são apenas espécies daqueles. Variantes de Categorias Classificatórias 3. Ideologias Básicas Revolucionário-radical Liberal-conservadora Reacionária Traduzem um conjunto de idéias dogmaticamente organizado. 4. Regimes Ideológicos (Regimes Político-ideológicos) (Básicos) a) Comunismo b) Democracia Constitucional c) Nacionalismo Traduzem as formas amplas de associação política. Variantes de Categorias Classificatórias instituição toledo de ensino 4a. Regimes Ideológicos (Regimes Político-ideológicos)(Atualizados) 193 a) Comunismo b) Socialismo c) Social-democracia d) Democracia Liberal e) Nazi-fascismo Traduzem, para alguns autores, as formas amplas de associação política de uma maneira mais atualizada. Todavia, expressiva parte dos estudiosos do tema entende que a ampliação do elenco (e o conseqüente detalhamento) das forças de associação política conduz à categoria técnico-jurídica das concepções políticas, na qualidade de formas restritas de associação política. 5. Concepções Políticas Comunismo Socialismo Sindicalismo Welfare State Democracia Liberal Corporativismo Nacional-socialismo (Nazi-fascismo) Traduzem as formas restritas (detalhadas) de associação política. 6. Sistemas Econômicos Socialismo Tradicional Socialismo Liberalizante Capitalismo Social Capitalismo Liberal Capitalismo Nacional Traduzem um conjunto de métodos de organização produtiva. 7. Formas de Estado Unitário Centralizado Descentralizado Federal Bifacetado Multifacetado Confederal Traduzem a estrutura organizacional do Estado sob a ótica originária. instituição toledo de ensino 194 8. Formas de Governo Sistemas de Governo Regimes de Governo Traduzem o princípio determinante e genérico das várias modalidades de organização das instituições que, inter-relacionados, realizam o poder soberano do Estado. 9. Sistemas de Governo Monarquia Constitucional República Traduzem os aspectos próprios do acesso ao poder e da permanência temporal do governante. 10. Regimes de Governo Presidencialismo (ou Monarquia Pura) Parlamentarismo Traduzem o grau de concentração do poder em mãos do governante. 3. REGIME POLÍTICO DEMOCRÁTICO (REGIME REPRESENTATIVO) Muito embora, contemporaneamente, não seja mais possível afirmar a existência de um regime político (regime representativo) que não seja democrático posto que reconhecidamente a titularidade do Poder Constituinte (na qualidade de poder institucionalizante que, dentre outras atribuições, concebe o próprio Estado (com seus inerentes objetivos), a partir (em princípio) da prévia existência de uma Nação) pertence sempre ao povo (entendido como um conjunto de nacionais), e, portanto, seu exercício (através de mandatários) condiciona-se inexoravelmente à manifestação de sua vontade livre (ainda que sob diferentes modalidades de exteriorização) -, é lícito, pelo menos sob o ponto de vista teórico (e, em certo aspecto, histórico), ensaiarmos algumas considerações classificatórias que permitem incluir, no espectro mais amplo da categoria científica dos regimes políticos, o que, numa linguagem pouco técnica, convencionou-se chamar de ditadura, traduzindo, nesta medida, uma sinérgica ausência do necessário consensus entre o titular do poder (o povo) e os agentes responsáveis pelo exercício deste mesmo poder (ou um grau ínfimo (e desprezível) desta relação). Sob um certo prisma, neste contexto analítico, seria até mesmo correto (e adequado) afirmar que o regime político, como categoria classificatória da Teoria Geral do Estado, realmente admite (e deve admitir) a inerente dualidade entre a existência de representatividade (regime político democrático), por um lado, e a sua ausência (regime político ditatorial), por outro, permitindo, neste sentido, concluir que o chamado regime representativo seria apenas e tão-somente uma espécie do instituição toledo de ensino 195 gênero maior (regime político) e não propriamente uma expressão sinônima ou alternativa (como insistem alguns autores). De qualquer forma, é importante advertir que a sinérgica ausência de um compromisso maior (e, em determinada medida, efetiva preocupação) com a questão primaz da representatividade é, sem dúvida, anterior ao advento da moderna concepção de Constituição (e do próprio Estado) sendo, portanto, típica do momento histórico dominante e característico das monarquias absolutas (forma de governo) e do feudalismo (sistema econômico) e, em certa medida, de épocas anteriores. (É absolutamente válido, neste diapasão, sublinhar a narrativa histórica clássica segundo a qual o regime político democrático (ou simplesmente regime representativo para alguns) formou-se lentamente na Inglaterra, como conseqüência de circunstâncias históricas peculiares, posto que a evolução particular do feudalismo inglês terminou com resultados inteiramente opostos à do feudalismo francês e continental. Enquanto no continente o regime feudal produzia a monarquia absoluta, na Inglaterra engendrava a monarquia limitada, e, conseqüentemente, a base do regime representativo. A causa fundamental de tal dualidade foi, sem dúvida, a diversidade das condições sociais e históricas (v. ESMEIN, Droit Constitutionnel, I, p. 86). Os primeiros reis da França dispunham de escasso poder e prestígio, eram apenas alguns dos senhores feudais e não os mais fortes. Os duques da Normandia, de Borgonha e outros barões não raro guerreavam o rei com força mais poderosa. Unidos, eram, no começo, incomparavelmente mais fortes que o monarca, e este subsistia graças a expedientes, transações e humilhações. Mas, a estirpe dos primeiros reis notabilizou-se pela continuidade e inteligência no esforço de consolidar a autoridade do trono e unificar a França fragmentada pelo feudalismo, com línguas diferentes, moedas diversas, costumes díspares. Sobretudo dividida, oprimida, escorchada e ensangüentada pela brutalidade e avidez dos barões feudais, constantemente em guerra uns com os outros. Nesse ambiente, a burguesia e o povo uniram-se naturalmente em torno do rei, que representava para eles uma possibilidade de paz e de ordem, e apoiaram-no na luta contra os senhores feudais. Dominados estes, submetidos à autoridade do rei e tornados cortesãos, estabeleceu-se, desta feita, a monarquia absoluta. (Os Estados Gerais, assembléias convocadas de longe pelo rei, é importante frisar, não tinham força alguma, e, deste modo, não chegavam a limitar a autoridade do trono.) Na Inglaterra, ao contrário, a conquista normanda organizara o país em quadros hierárquicos, tendo como suprema autoridade os reis invasores. Estes eram realmente fortes e dominavam sem contraste os nobres, o clero, a burguesia e o povo. Mas, os primeiros sucessores de GUILHERME, o Conquistador, davam mais importância aos seus domínios no continente do que ao país conquistado. Reis da Inglaterra e duques da Normandia, eram como duques que guerreavam seu soberano, o rei da França, e, para essas guerras, requisitavam na ilha homens, dinheiro e víveres. Para essas lutas, que lhes eram estranhas e odiosas, os nobres, a burguesia e a plebe da Inglaterra contribuíram durante mais de um século com seu sangue e haveres. Mas uniram-se contra o rei, exigindo um limite às exações constantes e ruinosas. No Parlamento inglês, tomavam assento além da nobreza e o alto clero, os representantes eleitos dos burgos e condados e, assim, desde o começo o Parlamento representava realmente toda a Nação. Ora, de um lado, para os reis era mais rápido e fácil pedir as contribuições de que necessitavam aos representantes das diversas classes reunidas no Parlamento do que requisitar diretamente no país. Por outro lado, o Parlamento, para votar as contribuições, pedia compensações que eram sempre limitações da autoridade real. Quando os reis, arruinados com as guerras continentais, tornavam-se fracos, o Parlamento simplesmente não pedia, exigia, como aconteceu com JOÃO SEM-TERRA. E, assim, obteve todas as prerrogativas que caracterizam o regime representativo e os Parlamentos modernos, isto é, além dos direitos individuais, a competência exclusiva para elaborar e votar as leis. Através dessa evolução, que foi longa e acidentada, em que ora o rei, ora o Parlamento era vencedor, a monarquia inglesa passou de absoluta e ilimitada a constitucional e limitada, permitindo, por fim, a organização do regime representativo alguns séculos antes do continente. Na França, vale lembrar, apenas, com a Revolução é que, pela primeira vez, seriam traçados os princípios teóricos do regime representativo, como dogmas fundamentais da democracia moderna.) instituição toledo de ensino 196 Diagrama7: relação dimensional entre regime político e regime representativo Regime Político Gênero que objetiva traduzir a existência ou não do liame de representatividade entre o titulardo poder (o povo) e seus mandatários e, em caso positivo (hoje, regra, em face do advento da Constituição no sentido moderno da expressão), o grau de representatividade e o método formal de sua concretização. Para alguns autores, Regime Representativo Lato Sensu (embora a melhor designação fosse, in casu, Regime Representativo Latissimo Sensu). Regime não Representativo (democracia indireta (Ditadura / Despotismo) representativa) Espécie que sintetiza a plena ausência de representatividade entre o titular do poder e seus mandatários ou um grau tão reduzido que não pode ser considerado em termos efetivos. Regime Representativo (Democracia) Direta Indireta Semidireta (controvertido) Espécie que sintetiza a existência de representatividade ente o titular do poder (o povo), encarado como um conjunto de nacionais) e seus mandatários Para alguns autores, Regime Representativo Stricto Sensu, (embora a melhor designação fosse, in casu, Regime Representativo Propriamente Dito). Legitimidade a posteriori (democracia indireta de referendum) 4. Legitimidade a priori Legitimidade a posteriori (democracia indireta de referendum) Subespécies que resumem o grau de representatividade. Expressões últimas que traduzem o método formal (técnico-jurídico) de exercício da representatividade MODALIDADES DE REGIMES POLÍTICOS BÁSICOS Muito embora, conforme já afirmamos, não tenha mais qualquer sentido teórico-classificatório a votação dos regimes políticos despóticos (não-representativos) - posto que mesmo nos poucos Estados totalitários existentes na atualidade, suas respectivas Constituições registram algum tipo de método formal e algum grau de representatividade, caracterizando, desta feita, pelo menos sob o ponto de vista teórico, alguma forma ou modalidade de regime político democrático -, vale registrar, para efeitos de análise, os três tipos básicos de regimes políticos (que alguns autores elencam como regimes representativos no sentido mais elástico da expres- instituição toledo de ensino 197 são (latissimo sensu) permitindo, neste diapasão, ainda que em caráter excepcional (e, em certo aspecto, ideológico), admitir o totalitarismo como regime representativo com grau e método formal particulares): a democracia (considerada, neste particular, como regime representativo por excelência), o autoritarismo (considerado por muitos como uma democracia relativa e por outros como uma ditadura semitotalitária ou mesmo uma ditadura não-totalitária) e o totalitarismo (considerado por muitos como sinônimo de despotismo e ditadura e. por alguns, como uma verdadeira modalidade de regime político que não pode ser simplesmente reduzida à expressão vulgar ditadura ou a já ultrapassada despotismo). De qualquer sorte, é fundamental destacar que o estudo dos regimes políticos na atualidade contemporânea cinge-se, pelas razões apontadas, às diversas modalidades de democracia, mormente se consideramos o fato de que, sob a égide dos diversos regimes constitucionais expressos em suas respectivas codificações, nenhum Estado contemporâneo assume a adoção de um regime político que não seja rotulado como democrático. Diagrama8: regimes políticos básicos Regimes Políticos Básicos (Regimes Representativos Latissimo Sensu) Democracia Direta Autoritarismo Indireta Representativa o povo elege seus representantes através do voto direto ou indireto Regime Representativo Stricto Sensu Ditadura, Despotismo ou Totalitarismo Cesarista o Estado-governo indica seus representantes, cabendo ao povo confirmá-los ou não no poder, através de consulta posterior (referendum) Impera a submissão do povo ao Estadogoverno imposto Regimes Representativos Propriamente Ditos Regimes Representativos Lato Sensu (É oportuno assinalar, pelo menos para fins didático-analíticos, que o argumento central (de nítido viés ideológico) pela defesa do totalitarismo (e, em parte, do próprio autoritarismo) como autêntico regime político (legítimo) repousa no fato de que todos estes Estados-governos (como foram exemplos a Alemanha nazista, a Itália fascista, a União Soviética e, no presente, em grande parte, a China Continental e Cuba, entre outros) teria, pelo menos em tese, como invencível propósito (objetivo fundamental) a busca e a obtenção do bem comum, variando, neste aspecto, apenas a maneira pela qual, ideologicamente, se concebem os meios (ou métodos) para a sua busca e obtenção.) 198 instituição toledo de ensino 5. MODALIDADES DE DEMOCRACIA Dos variáveis métodos formais de exercício da representatividade associados aos seus diversos graus, é razoável concluir que o regime representativo por excelência (ou, em outras palavras, o regime representativo propriamente dito), simplesmente designado por democracia (ou regime político democrático) não pode subsistir através de uma única forma de exteriorização, sendo certo. ao contrário, as suas múltiplas possibilidades de manifestação efetiva. Se, por um lado, a modalidade mais primitiva de democracia corresponde exatamente à utópica fórmula chamada democracia direta (em que o titular do poder (o povo) exercia diretamente o mesmo), o mundo contemporâneo, por outro lado, soube por bem superar a impossibilidade fática desta concepção básica - fundamentalmente a partir do advento da Constituição como elemento caracterizador do Estado moderno -, através da criação de, pelo menos, duas diferentes vertentes que, por seu turno, buscam em última análise aproximar (sob o ponto de vista do liame autorizativo consensual (legitimidade)) o titular do poder (o povo) e seus mandatários, procurando traduzir, ainda que sob formas diversas, a essência da representatividade que, no âmago da democracia direta, se realiza plena e intrinsecamente, posto que, ao menos teoricamente, os representados (mandantes) se confundem com os representantes ( mandatários). Estas duas diferentes modalidades de democracia indireta, por sua vez, partem, cada qual, de um ponto originário de legitimação, ou seja, a legitimação a priori (em que o povo, inicialmente, escolhe os seus representantes oferecendo uma espécie de "procuração em branco" para os mesmos exercerem, em seu nome (e buscando captar e traduzir os seus anseios), o poder político) e a legitima( Vale mais uma vez registrar que, para a maioria dos autores, a chamada democracia direta representa, em um modelo teórico-analítico, o grau utópico máximo (100%) de representatividade, considerando que todos os membros do conjunto plural povo (mandantes e, por efeito titulares do poder) participam como mandatários (ou exercentes do poder). Nas demais modalidades de democracia indireta (representativa stricto sensu ou de referendum), salientam estas estudiosos, há sempre um grau menor de representatividade, ainda que, em todos os casos, necessariamente, os mandatários sejam integrantes do conjunto plural povo. Por esta razão, repelem como razoável veemência estes doutrinadores a tese (defendida por alguns) segundo a qual a democracia direta não seria propriamente uma forma de regime representativo, posto que não haveria propriamente “representantes” do titular do poder (povo), considerando o exercício direto do mesmo por todos os integrantes do conjunto. Esquecem-se, contudo, estes autores de que os “representantes” são sempre parte dos “representados", variando nas chamadas democracias indiretas apenas o grau e o método de exercício da representatividade. Quando este grau é igual a 100%, temos a representatividade absoluta que corresponde à utopia da democracia direta e não propriamente à ausência de representatividade que corresponderia, neste prisma, ou à existência de mandatários estrangeiros (mandatários que não fossem escolhidos dentre os integrantes do conjunto de nacionais (povo)), ou à inexistência do necessário liame consensual de legitimidade (em seu grau mínimo aceitável), situação ocorrente entre aqueles, por hipótese, que, mesmo integrantes do conjunto de nacionais, se autoproclamaram mandatários (representantes) do povo, sem o seu aval anterior ou mesmo posterior). instituição toledo de ensino 199 ção a posteriori (em que, de forma diversa, povo não participa diretamente da escolha de seus representantes (posto que esta escolha pode ser técnica, por exemplo), cabendo ao mesmo, posteriormente, confirmá-los ou não no poder, ratificando ou não suas ações, através de consulta direta (ou indireta), notadamente por intermédio da figura do referendum). Diagrama 9: modalidades de democracia indireta Representativa: o povo elege seus representantes pelo voto direto (ou indireto) universal Democracia Indireta Legitimidade a priori Cesarista (referendum): o Estado-governo indica seus representantes (ou há um tipo de escolha técnica), cabendo ao povo confirmá-los ou não no poder, posteriormente, através de consulta direta (ou indireta). Excepcionalmente, podem existir escolhas por consulta prévia (plebiscito), daí a denominação, de alguns autores, de democracia indireta plebiscitária. Legitimidade a posteriori Desta feita, de forma diversa daquela sugerida por DUVERGER, a democracia não pode ser restritivamente conceituada como o regime em que o poder político se sustenta apenas e tão-somente na teoria da soberania popular e em que a forma de exercício do poder se exterioriza unicamente através da escolha, pelo titular do poder (povo), por intermédio de eleições livres, mediante sufrágio universal, de seus mandatários (governantes no sentido amplo da expressão), organizados em partidos políticos plurais. Muito pelo contrário, o regime democrático, em sua essência, se caracteriza, fundamentalmente, como já deixamos claro, pela sinérgica existência de um liame vinculativo, de inexorável natureza autorizativo-consensual, entre o titular do po- 200 instituição toledo de ensino der político (ou seja, o povo) e os agentes responsáveis pelo exercício último deste poder, permitindo, deste modo, adjetivar de legítima a exteriorização efetiva do próprio poder político. Neste sentido, os métodos formais pelos quais se pode obter a indispensável legitimidade do exercício do poder político, cujo titular único é sempre o povo (encarado como o conjunto de nacionais que estabelece a comunidade denominada Nação (gérmen do Estado em sua caracterização mais elementar)), são sempre variáveis, sendo mesmo possível, por razões socioculturais e outras tantas, que uma dada democracia indireta com legitimação a posteriori, por meio, por exemplo, de referendum, possa oferecer um maior grau de representatividade (e mesmo de legitimidade) em comparação com a clássica e tradicional fórmula da democracia indireta representativa, dotada de legitimação a priori. Em qualquer hipótese, todavia, é forçoso reconhecer que, na prática política observável, ambas as modalidades indiretas de democracia têm oferecido um grande leque de problemas estruturais e operativos, obrigando, muitas vezes, à implantação de verdadeiras soluções híbridas que congregam, em uma considerada proporção, características próprias de cada um dos modelos básicos de representatividade. Em um contexto mais amplo - e mais assente com a realidade do mundo contemporâneo -, é até mesmo possível elencar um conjunto mais abrangente de diferentes modalidades de regimes representativos e, por extensão, de democracias, incluindo não só variantes das formas tradicionais indiretas, como ainda acrescentando novas possibilidades, ainda que nem sempre reconhecidas pela unanimidade dos autores. (Por exemplo, na prática cotidiana, em muitas situações, a democracia indireta representativa, mesmo resguardadas todas as suas características mais elementares (eleições livres, sufrágio universal, pluripartidarismo etc.), acaba gerando, em seu exercício efetivo, um resultado de legitimidade no mínimo duvidoso, considerando, sobretudo, que após eleitos com inicial legitimidade, os representantes do povo passam a agir motivados unicamente por interesses individuais ou grupais, totalmente diversos dos compromissos assumidos inicialmente. Também muitos autores sustentam que, na concretização prática do regime, a democracia indireta representativa resume-se a uma visível manipulação do poder econômico dos grupos dominantes que detêm o controle dos meios de comunicação de massa ou, ainda, dos mesmos demagogos de plantão que estão sempre prontos para ofertar, através de um consagrado marketing, as soluções sedutoras e milagrosas que o povo, em última instância, almeja sem conseguir (ou desejar) vislumbrar sua falácia. Por outro prisma, a democracia indireta de referendum (que alguns autores rotulam de cesarista) também apresenta insolúveis problemas estruturais, notadamente residentes no fato de que, na maioria dos casos, a eventual rejeição (não-confirmação) dos representantes populares (e de suas ações) representa um insuportável vácuo de poder que simplesmente não pode ser considerado com alternativa real.) instituição toledo de ensino 201 Diagrama 10: características fundamentais das principais modalidades de democracia indireta Democracia Indireta Representativa Democracia Indireta Cesarista 1. Legitimidade a priori 1. Legitimidade a posteriori 2. Existência de partidos políticos, notadamente o pluripartidarismo 2. Inexistência de partidos políticos, com a sua natural substituição por movimentos de posição (ratificação) ou oposição (retificação) 3. Eleições livres e periódicas para a escolha dos representantes populares através do voto popular 3. Consultas livres e periódicas para a confirmação (ou não) dos representantes populares (e de suas ações) através, sobretudo, do referendum 4. Sistema de eleições diretas ou indiretas 4. Sistema de consultas diretas ou indiretas 5. Sufrágio universal (embora alguns autores sustentem que o sufrágio censitário não necessariamente descarateriza o regime democrático, influenciando (e comprometendo) apenas o grau de representatividade) 5. Sufrágio universal (e também censitário, ainda que com restrições) 6. Necessária previsão legal-constitucional 6. Necessária previsão legal-constitucional Diagrama 11: tipos de democracia Direta (Utópica) todo o poder emana do povo que o exerce diretamente em assembléia Semidireta (Controvertida) todo o poder emana do povo que, embora não o exerça diretamente, participa de modo imediato de certas decisões políticas Indireta Representativa todo o poder emana do povo que o exerce, indiretamente, através de seus representantes legitimada por via de eleições livre e prévias Plebiscitária (Cesarista) legitimada por via de consultas anteriores (plebiscito) ou posteriores (referendum) a cada decisão política, não obstante a regra ser as consultas posteriores de ratificação de ações políticas e dos próprios representantes populares 202 6. instituição toledo de ensino CARACTERÍSTICAS BASILARES DO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO Consoante o disposto nos arts. 1º ao 4º da CF/88, verbis, Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituise em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. instituição toledo de ensino 203 são características basilares (princípios fundamentais) do Estado brasileiro, a forma de Estado federativa, a forma de governo republicana (sistema de governo) e presidencialista (regime de governo), e o regime político (sistema de associação política) democrático indireto do tipo representativo, com tripartição funcional do exercício do poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) e pluralismo político. Além destas características particularizantes, o Título I (Dos Princípios Fundamentais) da CF/88 também expressa (ainda que indiretamente) o sistema econômico adotado pelo Brasil (capitalismo (em face do fundamento da livre iniciativa - art. 10, IV )), a concepção de Estado de direito (com a proteção fundamental à dignidade da pessoa humana e à cidadania - art. 1o, II e III) e a noção basilar de Estado soberano. o ministério público, o poder Judiciário e a imprensa como instrumento de controle do estado Fernando Tourinho Neto Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região 1. INTRODUÇÃO Não podemos perder a esperança na existência de uma Justiça justa. Ninguém é intocável. A mesma Justiça deve ser aplicada a qualquer relação social e igualmente a todos os homens, a todas as pessoas jurídicas e ao próprio Estado. Ninguém pode escapar da Justiça - nem a imprensa, nem o juiz. Todos estão submetidos à Justiça, Justiça total, pois Justiça isolada não existe. Lutamos pela Justiça expressa na democracia, caracterizada pela liberdade, sem privilégios, sem desigualdades. Renunciar à idéia de termos uma Justiça justa é emascular-se. Justiça justa só podemos ter tendo um Poder Judiciário, um Ministério Público e uma Ordem dos Advogados fortes, acreditados e respeitados pelo povo. O Estado existe para proporcionar a felicidade do povo. Para que o Estado, se não for para servir a todos? Explica Harold Lasky (p. 24) que: Confia-se-lhe o poder com o propósito de que ele consiga dar satisfação às necessidades humanas na escala mais ampla possível; e para conseguir este fim, atua o Estado por meio de um grupo de agentes, que é o governo. Disso resulta que falar em controle do Estado nada mais é do que falar em controle do governo. instituição toledo de ensino 206 Deve o Estado ser controlado para não devorar o homem. 2. O ADVOGADO O advogado, no dizer da Constituição, é indispensável à administração da justiça, e a Defensoria Pública é, de acordo com a norma estatuída em seu art. 134, “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados ...”. Apesar da importância da Defensoria Pública, o Governo Federal, passados doze anos da promulgação da Constituição, só agora, de maneira precária, começou a implementa-la no âmbito federal. Continua, assim, o pobre, o necessitado, obstaculizado de ter acesso à Justiça. O direito fundamental prescrito no inciso LXXIV do art. 5º da Constituição — “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos” — redunda em letra morta. Na maioria dos Estados, apesar de instalada a Defensoria Pública, vemos os governos remunerarem mal os defensores públicos, que, assim, por força das circunstâncias, para poderem sobreviver condignamente, fazem do cargo mero emprego, um bico, como se diz vulgarmente. Além do mais, o número de defensores, homens, sem dúvida alguma, abnegados, é irrisório em relação à demanda. Desse modo, a Defensoria Pública dos Estados funciona, afora algumas exceções, pessimamente. Prejudicado, conseqüentemente, é o pobre, o necessitado, o miserável, que, em razão de não contar com profissionais dedicados, fica em situação inferior, bem inferior, àquele que tem boa situação econômica. Essa a vontade dos governantes. Isso não é de agora. Reginald Heber Smith, em 1919, dizia: “justiça é só para os que podem pagar”. E denunciava a cumplicidade dos advogados, dizendo que tanto eles como os juízes ignoravam as desvantagens com que lutam os pobres ou eram indiferentes a elas. Curia pauperibus clausa est (a Justiça está fechada para os pobres), como dizia Ovídio, ou, como diz a sabedoria popular, a Justiça só condena preto, pobre e prostituta. A Justiça dos três pês. O advogado, sempre mal compreendido, não tendo, geralmente, boa fama, é, contudo, de grande relevância para o controle do Estado. Essa incompreensão foi bem retratada por Henri Robert (p. 67). Ah! Sem dúvida há crimes imperdoáveis, sem dúvida a repressão é socialmente necessária; mas quem não teve contato com criminosos não pode suspeitar o quanto existe neles de humanidade dolorosa e freqüentemente de desejo de remissão, dignos de arrancar um impulso de piedade, um gesto de socorro profundamente sinceros àquele em que depositaram a última esperança! Aliás, por que indignar-se com a missão social do advogado, quando a própria lei previu e regulamentou sua existência? Pois, afinal, instituição toledo de ensino 207 esse mesmo código que organizou a repressão é que também regulamentou e tornou obrigatória a assistência do advogado. O legislador considerou que uma era inseparável da outra e que em face da acusação era socialmente indispensável apresentar a defesa. E arremata (p. 68): Eles [os advogados] não têm a missão de julgar o crime, mas somente a de acusar ou defender o criminoso. Por que censurá-los por cumpri-la conscienciosamente demais? Os ditadores temem os advogados. Napoleão quis reservar-se o direito de lhes cortar a língua. É por tudo isso e por causa disso que a Ordem dos Advogados deve ser forte, firme, livre e independente, não se curvando a nenhum dos Poderes nem a nenhuma força poderosa, ainda que implícita. 3. O MINISTÉRIO PÚBLICO O Ministério Público, proclama o art. 127 da Constituição Federal, “é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Assim quis o povo, no que foi atendido pelo constituinte de 88. O Ministério Público, tanto o federal como o estadual, continua mal estruturado, com poucos representantes, um número pequeno de funcionários e uma infra-estrutura sofrível, senão ruim. É certo que não se pode dizer que não vem melhorando, mas essa melhoria vem ocorrendo em doses homeopáticas, não acompanhando as exigências do cidadão, da sociedade. Na sua organização ainda há muito de fisiologismo e populismo. E muito mais há que mudar na mentalidade do promotor público, do procurador da República. A compreensão do fenômeno jurídico deve supor a compreensão da realidade social em toda sua manifestação. A idéia deve ser sempre a busca da solução do conflito, e não sua eliminação sem solucioná-lo. Afirmaram, com precisão, os promotores paulistas Antônio Alberto Machado e Marcelo Pedroso Goulart (p. 27): … os paradigmas do racionalismo dogmático — tais o princípio da legalidade, a isonomia de todos perante a lei, o conceito de sujeito de direito, hierarquia das leis, fontes do direito — já vimos, vivem seus dias de crise pela flagrante inadequação desses princí- instituição toledo de ensino 208 pios com a realidade social a que, teoricamente, estariam endereçados. Concluem os dois representantes do Ministério Público fazendo uma constatação de que o Ministério é um órgão da sociedade civil e (p. 43), como órgão integrante da sociedade civil cumpre ao Ministério Público incrementar o processo de democratização da sociedade brasileira, canalizando os valores reinantes no seio das classes populares e contribuindo, na sua esfera de atuação, para a superação da alienação política e econômica dessas classes. Em última palavra, o Ministério Público não é órgão do Estado, e sim da sociedade civil. Não pode o Ministério Público ser subserviente, servil, a governo ou a governante. Não é mais o representante do Ministério Público conhecido como acusador. Defende hoje ele, com mais destaque, os direitos indisponíveis do indivíduo e da sociedade, a ordem jurídica e o regime democrático. Instrumentos fortes e poderosos tem ele — o inquérito civil e a ação civil pública para protegerem o patrimônio público e social, o meio ambiente e tantos outros interesses difusos e coletivos. Pode agir com eficácia nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública. Não podem seus membros, como estamos verificando acontecer com alguns, principalmente no âmbito federal, descambar para o absolutismo, como se fossem os donos da verdade, os únicos senhores da moral, passando por cima dos princípios constitucionais de natureza pétrea, não respeitando os direitos humanos, fazendo-nos lembrar, assim, do tempo das inquisições, do tempo em que a dignidade do homem nada valia, era menosprezada, aviltada, desprezada. Esse tipo de Ministério Público não merece o respeito dos homens democratas. Representantes do Ministério Público desse quilate devem ser repudiados por todos. A força do Ministério Público é impressionante; dela, no entanto, não se pode abusar. A função do representante do Ministério Público não é julgar, quem julga é o juiz. Cada um em seu papel, nec plus ultra (não mais além). Na luta contra a corrupção, está o Ministério Público na primeira linha de combate, dilatando o alcance social de sua função, fiscalizando e controlando o Estado com os aplausos de todos nós, o povo. 4. O PODER JUDICIÁRIO Precisamos de um Judiciário forte, bem estruturado, para ser respeitado e acreditado pelo povo, para poder, juntamente com o Ministério Público, controlar o Estado. instituição toledo de ensino 209 Com acuidade, como se fizesse parte do Poder Judiciário, equacionou o jornalista Luís Nassif, em artigo intitulado A reforma do Judiciário, publicado na Folha de São Paulo: Grosso modo, a aplicação da lei no país padece de três tipos de problemas: de ordem processual, de ordem gerencial e de ordem política. A parte processual depende de uma ampla revisão dos Códigos de Processo, que o racionalize, reduza o número de apelações e defina prazos rígidos para o fim dos processos. É importante também a ampliação dos fóruns de conciliação, em todas as instâncias, para reduzir a demanda por ações judiciais. Trata-se de matéria legal da maior importância, que demanda fórum especializado. No plano gerencial, há a necessidade de criação de indicadores gerenciais, que possam ser acompanhados pela opinião pública e de um amplo redirecionamento do investimento. A decisão de investimentos não pode ficar restrita a tribunais, mas obedecer a um plano lógico e consistente de regionalização da Justiça e melhoria das condições de trabalho dos juízes, por meio de ampla informatização. Salienta, também, nesse mesmo artigo: Democratização. Para entrar nesse campo, há que resolver o terceiro e mais premente dos problemas: os feudos políticos que dominam muitos tribunais, especialmente estaduais. Nenhum poder se manterá vivo, atuante e inovador se não for submetido a formas sistematizadas de pressão. Realmente, há Estados de nosso País em que um só homem, coronel político, domina, quase que absolutamente, com mão de ferro, o Poder Judiciário. Nada se faz sem que ele seja ouvido, consultado. Isso constitui um insulto não só aos juízes dignos, íntegros, retos, inatacáveis como a todo o povo dessa unidade da federação. Juízes subservientes, subalternos, subordinados não constituem, na verdade, o Poder Judiciário. São, sim, a escória da magistratura, não merecendo o respeito do povo. Se não têm a força que vem do povo, pois todo poder emana do povo, como está insculpido na Constituição Federal, não podem ser instrumento de controle do Estado. Preleciona José Joaquim Gomes Canotilho (p. 25-26): [os tribunais] exercem a justiça em nome do povo. E exercer a justiça em nome do povo implica que os juízes sejam considerados instituição toledo de ensino 210 agentes do povo nos quais este deposita a confiança de preservação dos princípios de justiça radicados na consciência jurídica geral e consagrados na lei constitucional superior. Adiante reafirma (p. 70): Num Estado de direito democrático cabe aos magistrados judiciais dizer o direito em nome do povo. Daí a definição de um bom juiz dada por Lyndhurst (citado por Botein, p. 5): Um bom juiz deve, primeiro, ser honesto; segundo, possuir uma dose razoável de habilidade; terceiro, ter coragem; quarto, ser um cavalheiro; e ... finalmente, se tiver algum conhecimento da lei, isso será um bom auxílio. O juiz não pode ser absoluto, sem limites, incontestável, dono da verdade. Ele que luta contra toda espécie de arbítrio não pode ser um déspota, um autoritário. Por essa razão, para que o juiz não se transforme em um pequeno ditador, é que somos a favor do controle externo. Não podemos esquecer que todo poder sem controle corrompe. Só o poder detém o poder. Isso não significa que o juiz não seja independente. Não, o juiz não tem senhor! Não pode o juiz viver fora da realidade, isolado. Não pode ser um ermitão. Tem de conhecer o sentimento do povo, conhecer seu sofrimento. Edgard de Moura Bittencourt faz ver que (p. 201-202): O juiz afastado de si e dos outros não consegue ser compreensivo. A vida só entre os livros e os processos é como a luz das ribaltas que ofusca os olhos de quem queira enxergar o público. Nem pode o juiz ser conservador. Isso constitui problema sério. Deve dizer como Camões: “...não temo contrastes nem mudanças”. A lei não é o Direito. O juiz é um agente de transformação. Vem de longe o ensinamento. Isaías (10, 1-2) profetizava: Ai daqueles que fazem leis injustas, e dos escribas que redigem sentenças opressivas, para afastar os pobres dos tribunais, e negar direitos aos fracos de meu povo; Para fazer das viúvas sua presa e despojar os órfãos. Expõe Antonio Gramsci muito bem o problema, ao dizer (citado por Machado e Goulart, p. 11): instituição toledo de ensino 211 Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado por problemas de um passado bastante remoto e superado? Se isto ocorre, nós somos anacrônicos em face da época em que vivemos, nós somos fósseis e não seres modernos. Ou, pelo menos, somos compostos bizarramente. E ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados aspectos, exprimem a mais desenvolvida modernidade, em outros manifestam-se atrasados com relação à sua posição social, sendo, portanto, incapazes de completa autonomia histórica. É interpretando a lei æ genérica, abstrata, impessoal æ que o juiz lhe dá alma, vida, adaptando-a à realidade. Observe-se que o Código Civil é de 1916, quando a mulher não podia imaginar-se usando calças compridas; tempo em que o maiô ia até os tornozelos e que a moça que chegasse em casa tarde da noite ficava falada na vizinhança; todavia, é aplicado até hoje. Daí ter dito François Rigaux: O juiz é, por múltiplas razões, coagido a fazer obra criadora. Primeiro, porque toda norma tem necessidade de ser interpretada. Depois, porque nenhuma codificação poderia prever a diversidade das situações de vida, e a previsão do mais sábio dos legisladores é frustrada pelo progresso das técnicas, pela modificação das condições econômicas e sociais, pela evolução dos costumes e pela variação da moral resultante disso. Mais do que legislador, as cortes e os tribunais estão aptos a seguir passo a passo as alterações da sociedade e a estabelecer conexões até então despercebidas. 5. A IMPRENSA Já tive oportunidade de dizer que a imprensa — órgão, sem dúvida, formador de opinião æ é essencial para a liberdade da democracia, mas deve manter-se dentro dos limites da decência, dignidade, do decoro, respeito, acatamento e da consideração à pessoa, a fim de não transbordar para a desmoralização dos homens de bem, não causar danos incomensuráveis ao indivíduo e a toda sua família; não deve transbordar para o amesquinhamento e a achincalhação das instituições, levando o povo a não respeitá-las. Escreve Karl Max, com sabedoria (p. 65): A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza suas formas brutas. instituição toledo de ensino 212 E proclama (p. 65): A imprensa livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo é a primeira condição da sabedoria. Certo, certíssimo. Mas tal liberdade não pode destruir o homem, sua honra, sua família nem causar-lhes danos pela exploração da violência, pela violação da presunção de inocência. Mesmo as pessoas públicas têm direito à privacidade. Não pode a imprensa destruir as instituições, sob pena de vermos destruída a democracia. Logo, a liberdade de imprensa, direito de toda a sociedade, direito do povo livre, não pode ser absoluta. Não podemos confundir, é bom sempre ter em mente, liberdade de imprensa com liberdade da empresa jornalística, que, muitas vezes, quer auferir lucros em detrimento do cidadão e da própria sociedade. Ensinava Nelson Hungria (p. 261), um dos maiores penalistas que este País já teve: ... a liberdade de imprensa é o direito de livre manifestação do pensamento pela imprensa; mas, como todo o direito, tem seu limite lógico na fronteira dos demais direitos alheios. A ordem jurídica não pode deixar de ser um equilíbrio de interesses: não é admissível uma colisão de direitos, autenticamente tais. O exercício de um direito degenera em abuso, e torna-se atividade antijurídica, quando invade a órbita de gravitação do direito alheio. Joaquim Falcão (p. 7), jornalista, com muita propriedade, afirmou: Ser o que não se é, é errado. Imprensa não é Justiça. Esta relação é um remendo. Um desvio institucional. Repórter não é juiz. Nem editor é desembargador. E quando, por acaso, acreditam ser, transformam a dignidade da informação na arrogância da autoridade que não têm. Não raramente, hoje, alguns jornais, ao divulgarem a denúncia alheia, acusam sem apurar. Processam sem ouvir. Colocam o réu, sem defesa, na prisão da opinião pública. Enfim, condenam sem julgar. Ninguém pode julgar sem ouvir. Loisel (citado por Robert, p. 105) retratou isso no epigrama: Qui tost juge et qui n’entend Faire ne peut bon jugement1 1 Quem julga logo, sem ouvir, não pode fazer bom julgamento. instituição toledo de ensino 213 Com sua autoridade reconhecida até pelos inimigos, disse Rui (p. 38): Um país de imprensa degenerada ou degenerescente é, portanto, um país cego e um país miasmado, um país de idéias falsas e sentimentos pervertidos, um país, que, explorado na sua consciência, não poderá lutar com vícios que lhe exploram as instituições. Para proclamar o que já disse de mais belo e certo (p. 37): A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lha malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça. À imprensa cabe o alto papel de fiscalizar a máquina administrativa, o uso indevido das verbas públicas. Controlar, enfim, o Estado. E à sociedade civil cabe a função de controlar a imprensa para que, também, não descambe para o arbítrio. Há de haver, no entanto, um conselho de imprensa, não governamental, evidentemente, com finalidade de “servir de intermediário entre a mídia e o público”, como diz Daniel Cornu (p. 31). Esse conselho seria composto de jornalistas e representantes da sociedade civil e financiado pelos próprios jornalistas. Explica Daniel Cornu (p. 32) que: Um conselho de imprensa protege o público ao proporcionar formas de recurso àqueles que se sintam lesados ou chocados por um ato jornalístico, o que é também uma maneira de ouvir a opinião pública sobre a mídia. A imprensa, como ensina Daniel Cornu (p. 64), para que seja considerada boa, deve corresponder às exigências da verdade: informações exatas, verificadas, apresentadas de modo equânime, opiniões expostas com honestidade livres de preconceitos, relatos jornalísticos verídicos e ciosos de sua autenticidade. Esse mesmo autor (p. 177) acentua que Como principal titular da liberdade de informação, o público espera primeiramente das mídias que elas respeitem plenamente instituição toledo de ensino 214 as condições de existência da mesma liberdade: garantir a liberdade de informação, da análise seguida de crítica, como uma das liberdades fundamentais de todo ser humano. É o povo, observe-se bem, o titular da liberdade de imprensa, e não o jornalista ou a empresa jornalística. A liberdade de imprensa existe em favor do povo, e não em favor do jornalista. O público, enfatiza Daniel Cornu (p. 177), “espera, por outro lado, que a mídia trabalhe como um instrumento de vigilância frente aos diversos poderes, que sempre correm o risco de abusar de sua posição, e que garanta seu próprio direito à livre expressão”. Papel difícil o da imprensa, reconheçamos. Ademais, trabalha o jornalista contra o tempo. “Não é a notícia a única mercadoria que nada mais vale ao cabo de vinte e quatro horas?” (Cornu, p. 91). Complicado, dificultoso, o papel do jornalista, pois, como disse Austregésilo de Athayde (1948, p.146): Calar um homem, em nome de um falso interesse da coletividade, é tão grave e perigoso quanto calar uma coletividade em nome do interesse de um homem. Não se quer, em hipótese alguma, censura à imprensa, pois, como já se afirmou, “a censura é um mal menor que as injúrias da imprensa” (citado por MARX, 2000, p. 20). Concordamos plenamente. Mas a imprensa não pode dizer: Noli me tangere (Não me toquem). Nenhum poder, repitamos, pode, ser absoluto, pois torna-se arbitrário, despótico, prepotente, tirano. 6. CONCLUSÃO Dizia Lênin que, “enquanto o Estado existir, não haverá liberdade. Quando houver liberdade, não haverá Estado”. Tal pensamento não é verdadeiro. Pode o Estado ser controlado, não se tornando um monstro, um Leviatã. E para evitar isso, têm o Judiciário, o Ministério Público, a Ordem dos Advogados e a imprensa de vigiar e controlar o Estado. Vejam os casos da venda das estatais, dos transgênicos, dos “trens da alegria”, do combate às medidas provisórias editadas pelo maior legislador deste País — o legislador solitário, violando o art. 62 da Constituição em razão de não obedecer aos requisitos de relevância e urgência — e sistematicamente reeditadas com o instituição toledo de ensino 215 beneplácito conivente do Supremo Tribunal Federal. Em todas essas questões, o Ministério Público, a imprensa e o Poder Judiciário atuaram controlando o Governo. Disse José Manuel Saravia, ao prefaciar a obra de Enrique Diaz de Guijarro (p. 10), Abogados y jueces: Es hora de restaurar la fe en el derecho, de asegurar su certeza, que es para la convivencia social ordenada. Devemos crer na finalidade de nosso trabalho cotidiano, ter por ele paixão, amá-lo. Conta-nos Guijarro (p. 59-60) que um apólogo, um contador de história, encontrou três quebradores de pedra e lhes perguntou: Qué haces? Contestó uno: Pico piedras. Contestó otro: Gano mi pan. Contestó el tercero: Construyo una catedral El primero se detuvo en lo inmediato; el segundo, en el objeto mediato de su labor; y el último, en la finalidade creadora de su trabajo. Nós juízes, membros do Ministério Público, advogados, lutamos pelo direito realizando a Justiça justa, em busca de uma sociedade mais igualitária, em busca da felicidade de todos, em busca da felicidade de nosso povo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATHAYDE, Austregésilo. Fora da imprensa. Rio de Janeiro: Empresa Gráfica “O Cruzeiro”, 1948. BARBOSA, Rui. A imprensa e o dever da verdade. São Paulo: Com-Arte, Editora da Universidade de São Paulo, 1990. BÍBLIA. V. T. Isaías. Português. Bíblia Sagrada. Trad. Centro Bíblico Católico. 65. ed. São Paulo: Ave Maria, 1989. BITTENCOURT, Edgard de Moura. O Juiz. Rio de Janeiro: Editora Jurídica e Universitária Ltda., 1966. BOTEIN, Bernard. Memórias de um juiz. Trad. Walda M. Bustamante. Rio de Janeiro: Livraria Clássica Brasileira, 1957. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: Gradiva Publicações Ltda., 1999. CORNU, Daniel. Ética da informação. Trad. Laureano Pelegrin. Bauru, SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1998. FALCÃO, Joaquim. A imprensa e a Justiça. O Globo, Rio de Janeiro, 6 jul. 1993, p. 7. GUIJARRO, Enrique Diaz. Abogados y jueces. Argentina: Abeledo Perrot, 1959. 216 instituição toledo de ensino HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1945, v. VI, p. 261. LASKY, Harold. O Direito no Estado. Trad. J. Azevedo Gomes. Lisboa: Editorial “Inquérito” Ltda., 1939. MACHADO, Antônio Alberto e GOULART, Marcelo Pedroso. Ministério Público e Direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1992. MARX, Karl. A liberdade de imprensa. Trad. Cláudia Schilling e José Fonseca. Porto Alegre: L&PM, 2000. RIGAUX, François. A lei dos juízes. Trad. Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ROBERT, Henri. O advogado. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 1997. o novo regramento da propaganda eleitoral Edilson Pereira Nobre Júnior Juiz Federal do Rio Grande do Norte, juiz do TRE/RN, Professor da UFRN e mestrando pela UFPE I- A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SUA LIMITAÇÃO PELA LEGISLAÇÃO ELEITORAL A derrocada do Ancien Régime pela aura liberal do último quartel do Século XVIII produziu o reconhecimento, em detrimento do então onipotente poder estatal, de direitos e garantias individuais. Um destes foi, sem sombra de dúvidas, a liberdade de pensamento e de sua manifestação. Esse sentimento foi bem expresso pelos arts. 10º e 11º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de Agosto de 1789, ao susterem: “Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, contanto que a manifestação delas não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (art. 10º); “A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos em lei” (art. 11º). Ratificado pela Constituição da França, do Ano I, de 24 de junho de 1793 (art. 7º, 1), influenciou o constitucionalismo então em voga, servindo de exemplo as Constituições de Portugal, de 23 de Setembro de 1822 (art. 7º), a do Brasil de 25 de Março de 1824 (art. 179º, 4º), a da Bélgica de 07 de Fevereiro de 1831 (art. 14º), e a I Emenda à Norma Ápice dos Estados Unidos da América do Norte, aprovada em 25 218 instituição toledo de ensino de Setembro de 1789. A nossa vigente Lei Maior, promulgada há aproximadamente um decênio, contempla-a em duas passagens, destacadas nos arts. 5º, IV, e 220, caput §1º. Ao modo dos demais direitos e liberdades, inclusive do direito à vida, que sucumbe ante a legítima defesa, a livre expressão dos pensamentos e opiniões não se apresenta ilimitada. O seu exercício, em nenhuma ocasião, poderá colidir com o interesse público. Atento à questão, o documento da França revolucionária não passou despercebido em prever que a liberdade de expressão não poderia enfrentar a ordem pública, podendo o seu titular ser responsabilizado nos termos de previsão legal. A Suprema Corte americana, comenta LÊDA BOECHAT RODRIGUES1, mediante longa pesquisa em precedentes, nunca entendeu como absoluta a liberdade de expressão de pensamento, validando, com base na regra do perigo real e atual, a atividade restritiva do legislador quando este tende a preservar outras liberdades essenciais ao equilíbrio democrático. No mesmo sentido, ressalta BERNARD SCHWARTZ2, ao reconhecer que o Excelso Tribunal anunciara uma nova doutrina, salientando que a lei, desde que justificada pela necessidade de preservar a segurança pública, poderá suprimir a livre veiculação de palavra, de imprensa, de religião e de reunião. Alguns julgados podem ser mencionados: Chaplinsky v. New Hampshire, 315 U. S. 568, 1942; American Communications Ass. v. Douds, 339 U.S. 382, 1950; Bridges v. California, 314 U.S. 252, 1941; Pennekamp v. Florida, 323 U.S. 516, 1945. Na França, o tema também voltou ao centro das atenções, servindo de relevo a intervenção do Conselho de Estado no arrêt Societé «Les Films Lutetia et Syndicat Français des Producteurs et Exportateurs de Films, de 18 de dezembro de 1959, onde se entendeu legítima a interdição, pela governo municipal de Nice, da projeção de exibição cinematográfica tida por imoral e, portanto, contrária à ordem pública. Às voltas com a tarefa de demarcar os contornos do art. 5.º da Lei Fundamental de Bonn de 1949, WOLFGANG HOFFMAN-RIEM estabelece que as intervenções estatais na liberdade de expressão e de informação estão sujeitas às mesmas exigências das limitações dos demais direitos individuais, devendo ser processadas através de lei e, mesmo assim, com atenção ao cânon da proporcionalidade. Diz o autor: “A limitação está sujeita à reserva de lei material ou formal, e sua meta só se considera legítima se consiste na proteção de um bem jurídico protegido, por sua vez, pelo ordenamento jurídico com independência de que resulte amenizado pelos conteúdos da comunicação, os meios ou qualquer outra forma. (...) O planejamento 1 A Côrte Suprema e o Direito Constitucional Americano, pp. 268-88. Direito Constitucional Americano, pp. 268-9. 2 instituição toledo de ensino 219 normativo está sujeito, ademais, a exigências próprias. A medida tem de ser adequada, necessária e conveniente para a proteção do bem jurídico (interdição da desmesura), com observância do princípio fundamental que exige concordância prática. Apesar de ter um objetivo legítimo - por exemplo, a proteção da Constituição - são constitucionalmente problemáticas as autorizações que optam por um planejamento normativo que determine uma sanção negativa dos conteúdos da comunicação. Em todo caso são justificáveis, se existe um perigo concreto e direto iminente para um bem protegido de instância superior, contra o que não possa se combater de outra forma e cuja proteção é independente de que a amenização provenha ou não da comunicação. Se se duvida de que o objetivo normativo da medida limitadora está justificado, ou de que o planejamento normativo resulte conveniente, necessário ou adequado, deve-se interromper a medida”3. Na doutrina pátria, manifestam-se pelo caráter relativo da liberdade de expressão vozes abalizadas, entre as quais a de FÁVILA RIBEIRO4, CELSO RIBEIRO BASTOS5 e GERALDO BRINDEIRO6. Às voltas com a tarefa de demarcar os contornos da liberdade de expressão, não foi distinta a deliberação do Tribunal Superior Eleitoral: “PROPAGANDA ELEITORAL FORA DO PERÍODO LEGAL (LEI N. 8.713/93, ART. 59).1. Inexiste o alegado cerceamento de defesa porque publicada a pauta. 2. É do Tribunal Regional a competência para julgar a representação por propaganda ilegal, até porque é 3 La limitación está sujeta a reserva de ley material o formal, y su meta sólo se considera legítima si consiste en la protección de un bien jurídico protegido a su vez por el ordenamiento jurídico com independencia de que resulte amenazado por los contenidos de la comunicación, los medios o de cualquier outra forma. (...) El planteamiento normativo está sujeto, además, a exigencias proprias. La medida tiene que ser adecuada, necesaria y conveniente para la protección del bien jurídico (interdicción de la desmesura), com observancia del principio fundamental que exige concordancia práctica. A pesar de tener un objetivo legítimo - por ejemplo, de protección de la Constitución - son constitucionalmente problemáticas las autorizaciones que optan por un planteamiento normativo que entrañe una sanción negativa de los contenidos de la comunicación. En todo caso son justificables, si existe un peligro concreto y directo inminente para un bien protegido de rango superior, contra el que no pueda combatirse de outra forma y cuya protección es indepediente de que la amenaza provenga o no de la comunicación. Si se duda de que el objetivo normativo de la medida limitadora esté justificado, o de que el planteamiento normativo resulte conveniente, necessario o adecuado, debe interrumpirse la medida” (Libertad de Comunicación y de Medios, Manual de Derecho Constitucional, pp.172-3). 4 Direito Eleitoral, pp. 294-301. 5 Comentários à Constituição do Brasil, p. 42. 6 Liberdade de Expressão e Propaganda Eleitoral Ilícita, R. Inf. Legisl. 110, pp. 175-7. 220 instituição toledo de ensino opcional a designação dos juizes eleitorais (lei "cit.", art. 84, §1.º). 3. A limitação temporal da propaganda eleitoral não fere a liberdade constitucional de expressão do pensamento porque equilibra essa expressão com a isonomia legal dos candidatos, princípio também de fonte constitucional. Recurso não conhecido”7. Posicionando o assunto no plano eleitoral, tem-se que a liberdade de expressão deve sofrer o influxo dos limites exigidos para a preservação do ideal democrático, consagrado como princípio fundamental no art. 1º da Constituição, o qual sucumbirá caso seja solapada a igualdade daqueles que almejem concorrer à direção dos negócios públicos. O poder econômico, reforçado pela apropriação por grupos determinados dos meios de comunicação, poria em risco a democracia à medida em que inviabilizasse a disputa entre as diversas facções políticas concorrentes. Para tanto, faz-se mister a observância de duas balizas: a) a de que a postura restritiva encontre espeque em lei formal e material, à vista da reserva expressa do art. 220, §1º, da CF; b) o instrumento legislativo deverá ater-se à proporcionalidade, preservando o conteúdo essencial do direito. II - CONCEITO DE PROPAGANDA ELEITORAL E SUA DISCIPLINA NORMATIVA O vocábulo propaganda, na feliz síntese de FÁVILA RIBEIRO, pode ser definido como “um conjunto de técnicas empregadas para sugestionar pessoas na tomada de decisão”8. Quando tais práticas voltam-se à obtenção de sufrágios em embates destinados à eleição para determinados cargos públicos, no âmbito dos Poderes Executivo e Legislativo, tem-se o que cabe denominar de propaganda eleitoral. Embora não seja próprio dos textos legais traçar definições, vislumbra-se ser, basicamente, essa a idéia que nos é fornecida pelo art. 61º da Lei Eleitoral para a Assembléia Eleitoral de Portugal, ao reputar propaganda eleitoral como sendo “toda actividade que vise directa ou indirectamente promover candidaturas, seja dos candidatos, dos partidos políticos, dos titulares dos seus órgãos ou seus agentes ou de quaisquer outras pessoas, nomeadamente a publicação de textos ou imagens que exprimam ou reproduzam o conteúdo dessa actividade”. Distingue-se da propaganda partidária, consistente na divulgação das metas programáticas dos partidos políticos, cuja regência está na Lei 9.096/95 (arts. 45 a 49), realizada fora da época das eleições e com vistas a atrair àqueles seguidores. 7 TSE, REsp 12374-TO, Rel. Min. TORQUATO LORENA JARDIM, DJ 3-2-95, p. 1.083. Idem no Resp 15.270 - CE, relatado pelo Min. COSTA PORTO. 8 Loc. cit., p. 289. instituição toledo de ensino 221 Na classificação alvitrada por JOEL JOSÉ CÂNDIDO9, a propaganda eleitoral pode ser lícita, irregular ou criminosa. A primeira é toda aquela, qualquer que seja a sua forma de execução, não vedada por lei comum ou criminal. A irregular incide em conduta não proibida, mas que enfrenta uma restrição ao princípio da liberdade de expressão da propaganda política. Por último, a propaganda criminosa recai sobre condutas que o legislador reputa como infringentes da ordem jurídica criminal, ensejando as conaturais sanções. Com a Lei 9.504, de 30-09-97, foram estabelecidas as normas regentes dos embates eleitorais, legando-se ao tema da propaganda eleitoral novo estatuto nos seus arts. 36 a 58 e 73, VI, b e c, VII, regulamentada através da Resolução 20.106 - TSE. Isto, porém, não conduz à revogação dos dispositivos do Código Eleitoral que fixem prescrições gerais sobre o assunto, tendo em vista o disposto no art. 2º, §2º, da Lei de Introdução ao Código Civil. III - DA PROPAGANDA ELEITORA EM GERAL O art. 36, caput, da Lei 9.504/97, menciona o dies a quo do prazo para que os candidatos, partidos e coligações, possam iniciar a propaganda com vistas à eleição. Alterando orientação legislativa anterior (art. 240, CE; Lei 8.713/91, art. 59; Lei 9.100/95, art. 50), que fixava a escolha do candidato em convenção, a novel legislação estipulou termo certo, com início no dia 06 de julho do ano da competição (art. 1º, Resolução 20.106/98 - TSE). O termo final, por seu turno, coincide com as quarenta e oito horas antes do pleito, conforme o art. 240 do CE. Permite, na quinzena anterior à escolha pelo partido, a realização de propaganda intrapartidária, no escopo do beneficiário obter a indicação de seu nome, defesa a utilização de rádio, televisão ou outdoor. O §1º do art. 36 da Lei 9.504/97, em atitude elogiável, especificou, por exclusão, os instrumentos da propaganda no âmbito interno do partido. Quando da vigência da Lei 8.713/93, a omissão desta em especificar o que deveria se entender por tal espécie de propaganda levara o TSE10 a entender o uso indevido do outdoor, ante a forte potencialidade de divulgação deste meio, extensiva a grande universo de eleitores e, por isso, meio hábil para, com facilidade, extravasar o restrito âmbito partidário. Veda-se, no segundo semestre de ano eleitoral, também a realização de propaganda partidária gratuita no rádio e na televisão, bem assim de qualquer tipo de propaganda paga nos referidos veículos de comunicação. 9 Direito Eleitoral Brasileiro, pp. 145-51. Recurso Especial 11.940 - MG, ac. un., rel. Min. TORQUATO JARDIM, Jurisp. Trib. Sup. Eleit., vol. 7, n. 2, abr./jun. 1996, pp. 236-8, no qual é referenciado precedente na Consulta 14.330. 10 222 instituição toledo de ensino À violação dos prescritores do art. 36 da Lei 9.504/97 é cominada, em detrimento do responsável da propaganda, e igualmente de seu beneficiário, caso comprovado o seu prévio conhecimento, multa entre vinte mil a cinqüenta mil UFIR, ou equivalente ao custo da publicidade, se este for maior. Para que haja punição não se faz indispensável que o infrator tenha sido escolhido candidato em convenção, conforme já entendera o TSE no Recurso Especial 12.868 - RN11. É indispensável, todavia, que o beneficiário tenha prévia ciência da propaganda, não se suficiente mera presunção, ainda que relativa. Essa exigência foi ressaltada pelo TSE no AI 1.273 - DF: “Recurso Eleitoral - Propaganda eleitoral extemporânea - art. 36, §3º - Aplicação da multa ao beneficiário - Imprescindibilidade da comprovação de ter ele tido prévio conhecimento da propaganda - Insuficiência da mera presunção, ainda que juris tantum. Inexigibilidade da apresentação pela representada de prova de que não tinha conhecimento da referida propaganda - Violação do art. 333 do Código de Processo Civil - Recurso conhecido e provido”12 Nos bens públicos de uso comum do povo e de uso especial é proibida a pichação, inscrição a tinta e veiculação de propaganda. Excetua-se a fixação de placas, estandartes, faixas e assemelhados, nos postes de iluminação pública, viadutos, passarelas e pontes, e, mesmo assim, desde que não lhes cause dano, ou não dificulte ou impeça a sua utilização e o bom andamento do tráfego. Outra ressalva dirige-se ao Poder Legislativo, em cujas dependências a prática da propaganda ficará a critério da Mesa Diretora da respectiva casa. Desobedecida a interdição, o responsável está exposto a multa no valor de cinco mil a quinze mil UFIR. Bem andou aqui o legislador ao descriminalizar as posturas contraventoras de tais proibições, como previam os arts. 328, 329 e 333, todos do CE, situação ainda mantida pelo art. 51, §1º, da Lei 9.100/95, transformando-as em infrações administrativas, a que são cominadas sanção pecuniária. A derrogação é expressa, estando contida no art. 107 da Lei 9.504/97. Na propriedade privada, a realização de propaganda por meio de faixas, placas, cartazes, pinturas ou inscrições, é livre, no sentido de não depender de permissão da edilidade ou da Justiça Eleitoral. Necessário, entretanto, o consentimento do proprietário. Da mesma forma, prescindem de autorização da Justiça Eleitoral ou da municipalidade, a distribuição de folhetos, volantes e outros impressos, a serem editados sob a responsabilidade do partido, coligação ou candidato. 11 Rel. Min. ILMAR GALVÃO, ac. un., Ementários - Decisões do TSE - Eleições 1996, p. 193. Rel. Min. EDUARDO ALCKMIN, DJU de 04-09-98, p. 58. 12 instituição toledo de ensino 223 A Resolução 20.106/98 - TSE (art. 2º, caput, e §§1º e 2º), reavivando a continuidade da vigência dos comandos gerais do Código Eleitoral, como é o caso do seu art. 242, afirma que a propaganda, qualquer que seja a forma ou maneira de exprimir-se, deverá mencionar sempre a legenda partidária, e, na hipótese de coligação, as legendas que a integram, salvo se visar à promoção de candidatura à eleição proporcional, em que cada partido usará a sua legenda sob o nome da coligação. Igualmente somente poder-se-á utilizar vocábulos do vernáculo, exceto quando, conforme o caso concreto, seja indispensável a utilização de palavra que ainda não tenha encontrado versão para o português, e não poderá conter meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais. Da mesma maneira, não será tolerada propaganda nas hipóteses do art. 4º da aludida resolução, a qual relembra o art. 243, I a IX, do CE. Em conformidade com o direito de reunião, assegurado sobranceiramente (art. 5º, XVI, CF), independe de licença do Poder Público a realização de atos de propaganda partidária ou eleitoral em recinto aberto ou fechado. No escopo de atender a exigência contida na parte final do dispositivo magno, o art. 39, §1º, da Lei 9.504/97, é expresso em esclarecer que, como antecedente necessário ao ato, caberá ao seu promotor (partido, coligação ou candidato), em, no mínimo vinte e quatro horas antes, fazer a devida comunicação à autoridade policial, a fim de que, de acordo com a prioridade do aviso, em cujo recibo deverá ser aposta a hora do recebimento, garanta-lhe a realização contra quem tencione usar o local no mesmo dia e horário. Idem deverá diligenciar as providências necessárias para assegurar a tranqüilidade do ato, juntamente com o regular funcionamento do trânsito e os serviços públicos que o evento possa afetar. Surgindo litígio sobre os locais de realização de comícios caberá àquele que se considerar prejudicado dirigir reclamação, a ser apreciada, nas capitais, pelos juízes auxiliares designados pelos TREs, e nas demais localidades, aos respectivos juízes eleitorais. O funcionamento, pelos partidos e candidatos, de alto-falantes ou amplificadores de som, somente é facultado no horário das oito às vinte e duas horas, vedada a sua instalação ou uso em distância inferior a duzentos metros: a) das sedes dos Poderes Executivo e Legislativo da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, das sedes dos Tribunais Judiciais, e dos quartéis e outros estabelecimentos militares; b) dos hospitais e casa de saúde; c) das escolas, bibliotecas públicas, igrejas e teatros, quando estiverem em funcionamento, significando dizer, por exemplo, que nada impedirá o uso de tais equipamentos nas proximidades de estabelecimento de ensino, numa distância inferior à legal, em dia feriado ou durante as férias escolares. Superados, então, os limites do art. 244, II, e parágrafo único, do CE, ao enquadrar tal funcionamento entre as quatorze e vinte e duas horas, bem como estabelecer a distância acima em, no mínimo, quinhentos metros, bem assim o desaparecimento da necessidade de qualquer intervalo espacial desses equipamentos sonoros com relação aos quartéis e demais estabelecimentos militares. Os comícios, por sua vez, são per- 224 instituição toledo de ensino mitidos das oito às vinte e quatro horas (art. 39, §§ 3º e 4º, Lei 9.504/97). Restou revogado o tipo do art. 322 do CE, ao incriminar a realização de propaganda, por instrumentos sonoros, nos edifícios partidários, ou em veículos, fora do período autorizado, ou dentre deste, em horários não permitido. A utilização, no dia do pleito, de alto-falantes ou amplificadores de som, a promoção de comício ou carreata, a distribuição de material de propaganda política, inclusive volantes e outros impressos, ou a prática de aliciamento, coação ou manifestação tendente a influir nos desígnios do eleitor13, configura crime, punido com detenção de seis meses a um ano, com a possibilidade de sua substituição pela prestação de serviços à comunidade. Além disso, há a pena administrativa de multa, oscilante entre cinco mil a quinze mil UFIR. Inovando, a Lei 9.504/97 reputa criminosa a utilização de símbolos, frases ou imagens, associadas ou semelhantes às empregadas por órgão de governo, empresa pública ou sociedade de economia mista, punindo-a com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade, além de multa no valor de dez mil a vinte mil UFIR. IV - DA PROPAGANDA ELEITORA MEDIANTE OUTDOORS Antes de analisados os regramentos específicos, impende seja demarcada uma idéia do que se possa, para fins eleitorais, ser reputado como outdoor. Tal tarefa já fora operada, com maestria, por JOSÉ GERIM MENDES CAVALCANTE14, a tomar como ponto de partida a circunstância de que a palavra cuja origem inglesa significa “tudo aquilo que é realizado ou vivido ao ar livre, fora de casa, a partir da porta de casa “, ainda não encontrou recepção em nosso vocabulário, estando encerrada ao jargão publicitário, como veículo de propaganda comercial. Apesar disso, adianta que a legislação eleitoral, como se percebe do cotejo dos arts. 246 e 247 do CE, já lhe fixou um conceito jurídico, consubstanciado nos cartazes afixados em quadros ou painéis vocacionados exclusivamente a essa finalidade, muito embora o uso do termo outdoor somente tenha vindo à baila com o art. 31 da Lei 8.214/91. Temse, assim, a conclusão: “...de que o “outdoor” é espécie do gênero cartaz, mas espécie que se distingue por se tratar de cartaz afixado em quadro ou painel, de sorte que, quando a legislação refere-se a cartaz, há de se entender o cartaz propriamente dito, ou cartaz simples, ou cartaz comum, destinado a fixação permitida em paredes e muros de pré13 Se o fato não for perpetrado no dia do pleito, incide o art. 299 do CE. “Outdoors” em Propriedade Particular, Cadernos de Direito Constitucional e Eleitoral do TRE - SP, vol. 8, nº 29, pp. 24/30. 14 instituição toledo de ensino 225 dios particulares, mas usualmente utilizado, ilegalmente, em bens públicos, como postes de iluminação pública e sinais de trânsito. Tem-se, destarte, o gênero cartaz, compreendendo o cartaz propriamente dito, ou cartaz comum, ou cartaz simples, e o “outdoor” que é o cartaz afixado em quadro ou painel”15 O momento que demarca a possibilidade de prática de tal modalidade de propaganda é a realização de sorteio pela Justiça Eleitoral. Para tanto, as empresas de publicidade deverão relacionar os pontos disponíveis em quantidade não inferior à metade do total dos espaços existentes no território municipal. Vê-se, de logo, não haver plena liberdade para a afixação desses cartazes nos bens de propriedade particular, como acontece nas situações no art. 37, caput, parte final, e §2º, da Lei 9.504/97. Assim decidiu o TSE no AI 354 - AP: “Agravo de instrumento - Propaganda eleitoral por meio de outdoors instalados em propriedades particulares - Necessidade da observância das regras previstas no art. 55 da Lei nº 9.100/95 - Agravo não provido”16 A distribuição dos locais obedece aos seguintes critérios: a) trinta por cento, entre partidos e coligações que tenham candidato a Presidente da República; b) trinta por cento, entre partidos e coligações que tenham candidato a Governador e a Senador; c) quarenta por cento, entre os partidos e coligações que tenham candidatos a Deputado Federal, Estadual ou Distrital; d) nas eleições municipais, metade entre os partidos e coligações que tenham candidato a Prefeito e metade entre os que tenham candidato a Vereador. Esses logradouros deverão ser divididos em grupos eqüitativos de pontos com maior e menor impacto visual, tantos quantos forem os partidos e coligações concorrentes, a fim de serem sorteados e usados durante a propaganda eleitoral. O rol das localidades, com a indicação dos grupos acima, deverá ser entregue pelas empresas de publicidade aos Juízes Eleitorais, nos Municípios, e ao Tribunal Regional Eleitoral, nas Capitais, até o dia 25 de junho de ano eleitoral. Os Tribunais Regionais Eleitorais encaminharão à publicação, até o dia 8 de julho do ano da eleição, a relação de partidos e coligações que requereram registro de candidatos, devendo o sorteio ser realizado até o dia 10 de julho. Para esse fim, equipara-se a coligação a um partido, qualquer que seja o número de agremiações partidárias que a componha. Levado a cabo o sorteio, os partidos e coligações deverão cientificar as empresas, por escrito, da maneira como usarão os outdoors de cada grupo, com especificação de tempo de quantidade. 15 16 Loc. cit., p. 28. Rel. Min. EDUARDO ALCKMIN, DJU de 31-08-98, p. 69. 226 instituição toledo de ensino Competirá a cada partido ou coligação distribuir, entre os seus candidatos, os espaços que lhe couberem. Os espaços não utilizados serão redistribuídos entre os demais concorrentes interessados. O preço a ser cobrado pela propaganda em causa não poderá superar ao normalmente cobrado para a publicidade comercial. O dispositivo, apesar de, à primeira vista, colidir com o postulado da livre iniciativa, encontra amparo no objetivo de se assegurar a igualdade dos concorrentes, dificultando o predomínio do poder econômico na liça eleitoral. Diz o art. 42, §11, da Lei 9.504/97, que a violação ao caput e qualquer de seus parágrafos sujeita a empresa de publicidade, os partidos, coligações, à imediata retirada da propaganda irregular e ao pagamento de multa, no montante de cinco mil a quinze mil UFIR. Na hipótese do §7º, o publicitário responderá sozinho quando, a despeito das instruções regulares recebidas por escrito do partido ou candidato, prestar os seus serviços em desacordo com a ordem jurídica. A Resolução 20.106/98, no seu art. 11, dispõe que as regras acima enunciadas se aplicam aos outdoors eletrônicos, agregando-se as seguintes providências: a) as empresas de publicidade deverão relacionar os horários disponíveis para a veiculação de propaganda eleitoral em quantidade não inferior à metade do respectivo tempo de funcionamento diário; b) os horários com maior e menor impacto deverão ser divididos eqüitativamente, tantos quantos forem os partidos e coligações concorrentes, para serem sorteados e utilizados durante a propaganda eleitoral. V - DA PROPAGANDA ELEITORAL NA IMPRENSA ESCRITA No que concerne à possibilidade, a contar do dia 06 de julho, de realização de propaganda paga na imprensa escrita, o art. 43, parágrafo único, da Lei 9.504/97, estabeleceu, com vistas a evitar possível desequilíbrio entre candidatos diferenciados economicamente, limites, os quais em nada diferem do anterior art. 54, parágrafo único, da Lei 9.100/95. Desse modo, poderão os candidatos, partidos ou coligação, fazê-lo contanto que não excedam ao espaço máximo de um oitavo de página de jornal padrão, elevado para um quarto quando se tratar de página de revista ou tablóide. A violação da regra importará para o infrator, no caso os responsáveis pela direção dos veículos de comunicação e os partidos, coligações ou candidatos beneficiários, a multa entre mil a dez mil UFIR, podendo também ser equivalente ao custo da propaganda paga, se este for maior. A veiculação de publicidade política paga em jornais ou revistas será facultada até o dia da votação. Não há, ao contrário do candidato apresentador ou comentador de programa em rádio ou televisão, impedimento a que jornalista profissional, candidato a cargo eletivo, continue a exercer a sua atividade profissional. A franquia, que deflui da au- instituição toledo de ensino 227 sência de vedação em lei, não lhe autoriza a utilizar a coluna que assina para promover a sua imagem, de acordo com posição assentada pelo TSE na Consulta 14.559 DF.17 VI - DA PROPAGANDA ELEITORAL NO RÁDIO E NA TELEVISÃO Trata-se, em virtude da eficácia e da abrangência do meio empregado, do ponto crucial onde o princípio da igualdade entre os concorrentes clama por maior atenção. Por essa razão, justifica-se plenamente a preocupação do legislador em circunscrever a sua realização ao horário gratuito previsto na Lei 9.504/97. Ressalva-se, apenas, a propaganda partidária, levada a cabo dentro dos limites dos arts. 45 a 49 da Lei nº 9.096/95, a qual se vocaciona à divulgação das linhas programática dos partidos políticos, sendo vedada o seu manejo desvirtuado, a fim de promover, em ano eleitoral, determinado candidato. Esse possível desvirtuamento já teve, em casos concretos, o seu reconhecimento pelo TSE, mais precisamente nas Representações 58 - DF e 67 - DF, ambas da relatoria do Min. EDUARDO RIBEIRO18. Nestas oportunidades, a Alta Corte aplicou à agremiação a pena do art. 45, §2º, da Lei 9.096/95 (a cassação do direito de transmissão do programa partidário gratuito no semestre seguinte), uma vez que este fora o pedido contido na representação, inserida em sua competência originária. Não se antolha o impedimento da incidência de outras reprimendas como, por exemplo, a do art. 36, §3º, da Lei 9.504/97, quando evidenciada ainda propaganda eleitoral antes do período legal, ou a do art. 45, §2º, do mesmo diploma, na hipótese de propaganda eleitoral no rádio e na televisão fora do horário gratuito. Atento ao princípio da isonomia, o art. 45 e seus incisos listam, em detrimento do atuar das emissoras de rádio e televisão, algumas condutas proibidas a partir do dia 1º de julho de ano eleitoral, a saber: a) transmitir, ainda que sob a forma de entrevista jornalística, imagens de realização de pesquisa ou qualquer outro tipo de consulta popular de natureza eleitoral em que seja possível identificar o entrevistado ou em que haja manipulação de dados; b) usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito; c) veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes; d) dar tratamento privilegiado a candidato, partido ou coligação; e) veicular ou divulgar filmes, novelas, minisséries ou qualquer outro programa com alusão ou crítica a candidato ou partido político, mesmo que dissimuladamente, exceto programas jornalísticos ou debates po- 17 Ac. un., rel. Min. CID FLAQUER SCARTEZZINI, DJU de 08-09-94, p. 23.339. Cf. DJU-I de 13-08-98 e 10-09-97, p. 50. 18 228 instituição toledo de ensino líticos; f ) divulgar nome de programa que se refira a candidato escolhido em convenção, ainda quando preexistente, inclusive se coincidente com o nome do candidato ou com a variação nominal por ele adotada. Sendo o nome do programa o mesmo que o do candidato, fica proibida a sua divulgação, sob pena de cancelamento do respectivo registro. Essas interdições são extensíveis às emissoras não autorizadas a funcionar pelo poder competente, conforme dispõe o art. 16, parágrafo único, da Resolução 20.106/98. Seria enorme contra-senso se as rádios e televisões titulares de concessão pública não pudessem realizar tais condutas, enquanto que aquelas desprovidas de tal requisito e, portanto, funcionando ilegalmente, pudessem fazê-lo sem qualquer possibilidade de punição. Não é só. O §1º do mencionado dispositivo salienta ser defesa às emissoras a transmissão de programa apresentado, ou simplesmente comentado, por candidato escolhido em convenção, não importando se este já tivera seu pedido de registro aceito. Nessa proibição, inclui-se a de veicular propaganda comercial de produtos ou serviços, com a participação de candidato.19 Tais vedações, é peremptório do §3º do art. 45 da Lei 9.504/97, estendem-se ainda aos sítios mantidos pelas empresas de comunicação social na Internet e demais redes destinadas à prestação de serviços de telecomunicações de valor adicionado. Apesar do preceptivo empregar o vocábulo genérico (empresas de comunicação social), o que, numa leitura apressada, poderia dar a idéia de abranger a imprensa escrita, a inteligência correta é a que harmoniza o alcance da vedação ao seu caput e ao objetivo que procurou regulamentar, de sorte que a tanto somente estarão obrigadas as emissoras de rádio e televisão. Em seguida, inclui-se nos cuidados da legislação eleitoral as televisões por assinatura. O maltrato ao art. 45 da Lei 9.504/97 importará, em detrimento da emissora, no pagamento de multa a oscilar entre vinte mil a cem mil UFIR, duplicada em caso de reincidência. A responsabilidade é exclusiva de empresa de rádio e televisão. A esta também é aplicável, em caso de reiteração, ou de infrações que se revistam de maior gravidade, a sanção do art. 56, ou seja, a suspensão da sua programação normal por vinte e quatro horas, podendo, igualmente, incidir em dobro se a conduta se renovar. Por outro lado, como maneira de permitir o conhecimento, pelo eleitorado, das propostas dos candidatos, faculta-se a transmissão, pelo rádio ou televisão, de debates entre os competidores às eleições majoritária e proporcional, assegurandose, com obrigatoriedade, a participação de candidatos de partidos com representação na Câmara dos Deputados, sendo facultativa a das demais agremiações. Nas eleições majoritárias, a apresentação dos debates poderá ser feita em conjunto, com a presença de todos os candidatos a um mesmo cargo eletivo, ou em gru- 19 Cf. TSE, Consulta 432 - DF, rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJU de 19-06-98, p. 65. instituição toledo de ensino 229 pos, estando, no mínimo, presentes três candidatos. Com relação à disputa proporcional, os debates, considerando-se o número elevado de postulantes, deverão ser organizados de maneira a assegurar a participação de número equivalente de candidatos de todos os partidos e coligações a um mesmo cargo eletivo, podendo abranger mais de um dia. Cabe às emissoras, além da inclusão do debate no anúncio de sua programação previamente estabelecida, proceder a sorteio para a escolha do dia e da ordem de fala de cada candidato, ressalvada a celebração de acordo entre os partidos e coligações interessadas. Para que a discussão tenha lugar sem a presença de candidato de algum partido, quando este possuir assento na Câmara dos Deputados, faz-se indispensável a comprovação, pela emissora, de que o convidara com a antecedência mínima de setenta e duas horas. Quanto a candidato à eleição proporcional, é proibida a participação do mesmo postulante em mais de um debate promovido pela mesmo veículo de comunicação. A propaganda eleitoral, que aqui se cinge ao horário gratuito, é de ser veiculada pelas emissoras de rádio, de televisão, que operem em VHF e UHF, e os canais por assinatura referidos no art. 57 da Lei 9.504/97, quais sejam exclusivamente aqueles mantidos sob a responsabilidade do Poder Legislativo das entidades federadas. Para esse fim, reservarão, nos quarenta e cinco dias anteriores à antevéspera do dia do pleito, horário, em rede, para a divulgação da publicidade política, na forma abaixo discriminada pelo art. 47, §1º, do diploma legal acima. Tais horários serão distribuídos entre todos os partidos e coligações que, na legislatura ainda em curso, tenham representação na Câmara dos Deputados, nos seguintes termos: a) um terço, igualitariamente; b) dois terços, em proporção ao número de representantes na Câmara dos Deputados, considerado, no caso de coligação, o resultado da soma do número de representantes de todos os partidos que a integram, levando-se em conta, em ambos os casos, o início da legislatura em curso. Em caso de fusão ou incorporação de partido em outro, considerar-se-á a soma dos representantes que as agremiações de origem possuíam na referida data. Na hipótese de, em qualquer fase do processo eleitoral, algum candidato a Presidente ou Governador deixar de concorrer, sem que haja a substituição prevista no art. 13 da Lei das Eleições, obrigatória nova distribuição do tempo entre os candidatos remanescentes. Aos partidos e coligações que obtiverem tempo inferior a trinta segundos, será permitido o direito de acumulá-lo para uso em tempo equivalente. Mais consentâneo com o princípio isonômico, concebido pela Constituição, seria o perfilhar o modelo do direito de antena alvitrado pelo art. 40, §3º, da Constituição de Portugal, combinado com o art. 63.º da Lei Eleitoral para a Assembléia da República, porquanto tendem à distribuição eqüitativa do tempo entre os vários candidato. Veda-se, para isso, a utilização de critérios pretéritos, como, por exemplo, o número de votos obtidos por determinada agremiação partidária no último pleito. Certo que não se preconiza a repartição, em frações absolutamente iguais, de 230 instituição toledo de ensino tempo para cada partido. A partilha há de atender a requisitos objetivos, relacionados ao número de circunscrições onde sejam lançadas candidaturas e ao número de postulantes inscritos em cada uma delas. Esse critério mais se aproxima da igualdade substancial, em detrimento da igualdade unicamente formal privilegiada pela representatividade aferida em eleição passada. Dentro dos interregnos acima, as emissoras vinculadas à propaganda eleitoral gratuita destinarão trinta minutos diários a serem utilizados em inserções, de até sessenta segundos, a critério do respectivo partido ou coligação, e distribuídas entre as oito e as vinte e quatro horas, com a adoção dos seguintes parâmetros: a) divisão, em partes iguais, para as campanhas majoritária e proporcional, bem como de suas legendas partidárias, se for o caso, salvo se cuidar de eleição municipal, em que tais inserções destinar-se-ão, com exclusividade, aos candidatos a Prefeito e Vice-Prefeito; b) atentar-se-á aos blocos de audiência compreendidos entre as oito e as doze horas, as doze e as dezoito horas, as dezoito e vinte e uma horas e as vinte e uma e vinte e quatro horas; c) proibição de gravações externas, montagens ou trucagens, computação gráfica, desenhos animados e efeitos especiais, a veiculação de mensagens que degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação. Às inserções, a Justiça Eleitoral, a partir do dia 8 de julho de ano eleitoral, convocará os partidos, coligações e representantes das emissoras, para a elaboração de plano de mídia, devendo restar garantida a todos a participação eqüitativa nos horários de maior e menor audiência. Nada impede, a critério de partido ou coligação, a reunião de tempos desde que não importem em inserções com mais de sessenta segundos.20 Havendo segundo turno, as emissoras de rádio e televisão reservarão, no período compreendido entre as quarenta e oito horas a partir da proclamação dos resultados do primeiro turno até a antevéspera da eleição, horário destinado à divulgação da propaganda eleitoral gratuita, dividido em dois intervalos diários de vinte minutos para cada eleição, com início das sete às doze horas, no rádio, e das treze às vinte horas e trinta minutos, na televisão. Na unidade federada, onde, ao mesmo tempo, houve segundo turno para Presidente e Governador, o horário reservado à propaganda deste terá início imediatamente após o horário reservado ao primeiro. Considerando-se que, em segundo turno, classificam-se os candidatos com maior expressão perante o eleitorado, independente da representatividade de seus partidos ou coligações, andou bem o legislador em dividir o tempo diário de maneira igualitária. Do contrário, o comando normativo poderia sujeitar-se à fiscalização abstrata de sua constitucionalidade frente ao art. 5º, I, da CF. Tratando-se de eleições para Prefeito e Vereadores, em comunas desprovidas de emissoras de rádio e de televisão em seus limites, embora atingidos pela geração dos seus programas, poderão os órgãos regionais de direção da maioria dos parti- 20 Vide Resolução 20.265 - TSE, DJU de 01-07-98, p. 50, cujo relator fora o Min. EDUARDO ALCKMIN. instituição toledo de ensino 231 dos disputantes solicitar à Justiça Eleitoral a reserva de dez por cento do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita para a divulgação em rede da propaganda dos seus candidatos. Consoante o art. 48, §1º, da Lei 9.504/97, a Justiça Eleitoral editará a competente regulamentação, buscando equacionar a repartição do tempo entre os candidatos dos Municípios vizinhos, de sorte a que o número máximo das localidades beneficiadas seja igual ao de emissoras geradoras disponíveis. À Resolução 20.106/98, por versar sobre eleição a nível estadual, não coube solucionar o assunto. Ao início das veiculações precederá sorteio, a ser realizado pela Justiça Eleitoral21, a fim de ser definida a ordem de apresentação de cada partido ou coligação no primeiro dia do horário eleitoral gratuito. Nos dias seguintes, a publicidade, veiculada por último no dia anterior, será a primeira, apresentando-se as demais na ordem do sorteio. Durante a exibição da propaganda eleitoral gratuita não são admitidos cortes instantâneos ou qualquer tipo de censura prévia, a atuar antes da expressão ou informação originária. Isto, porém, não vai ao ponto de permitir a exposição de propaganda capaz de degradar ou ridicularizar candidatos, sujeitando, se assim o fizer, o partido ou coligação infrator à perda do direito à apresentação da propaganda no horário gratuito do dia posterior. Da mesma forma, poderá o Judiciário, instado por partido, coligação ou candidato, impedir a reapresentação de propaganda ofensiva à honra de postulante, à moral e aos bons costumes, implicando dizer se encontrar ser aceitável a censura posterior, representada no impedimento da difusão ou divulgação de idéias já construídas. Nesse sentido, evoco passagem do voto do Min. OCTÁVIO GALLOTTI, ao votar no MS 1.362 - SP, quando afirmara: “Também não considero comprometido, na espécie, o princípio da proibição de censura prévia. Nele não se compreende - tenho sempre aqui sustentado - a repressão ou a interrupção da continuidade da conduta já revelada, analisada pelo Tribunal e por este considerada nociva à regularidade do pleito”. Assim se impõe ante a circunstância de que o princípio da liberdade de propaganda, fundado na liberdade de expressão de pensamentos e opiniões, por não ser absoluto, cede frente ao princípio da licitude da propaganda. Este arquétipo, consagrado pelo art. 133º/1 da Lei Eleitoral para a Assembléia da República de Portugal, com redação alterada pela Lei 10/95, mereceu de BERNARDO DINIZ DE AYALA o seguinte comentário: 21 De acordo com o art. 21 da Resolução 20.106/98, o sorteio, que deverá concretizar-se até o dia 18 de agosto de 1998, far-se-á pelo TSE, para a eleição presidencial, e pelos TREs, para as demais. 232 instituição toledo de ensino “O «princípio da licitude» consubstancia um limite da maior importância à liberdade de propaganda, significando, em grandes linhas, que a liberdade de expressão e de promoção de candidaturas que se reconhece aos titulares do direito de antena deve manter-se dentro de determinados parâmetros de legalidade e de continência verbal. Não é fácil definir quais os contornos exactos deste «princípio da licitude». Numa formulação simplista, dir-se-ia que ao candidato estão vedadas quaisquer expressões ou imagens geradoras de responsabilidade civil ou criminal. Ou seja, a liberdade de propaganda termina nas fronteiras dos ilícitos civil e criminal”.22 Apesar da lição haver sido ministrada com base no direito positivo lusitano, não enxergamos sua incompatibilidade entre nós, porquanto, em terras ultramarinas, as liberdades de expressão e de imprensa também foram alçadas a nível constitucional (arts. 37.º e 38.º). A exemplo da propaganda partidária (art. 45, §1º, I, Lei 9.096/95), é proibida também a presença, no programa eleitoral gratuito, de pessoa filiada a outra agremiação partidária, ou a partido que não integre a coligação responsável. A exigência é amenizada quando do segundo turno, onde se permite a participação de pessoa filiada a outro partido, contanto que este não tenha formalizado apoio ao candidato adversário. Facultada, doutro lado, que qualquer cidadão, não filiado a partido político, participe da propaganda eleitoral no rádio e na televisão, desde que o faça gratuitamente. Vedadas também, na propaganda gratuita, as condutas referidas no art. 45, I (transmissão, ainda que sob a forma de entrevista, de pesquisa ou outro tipo de consulta popular) e II (uso de trucagem, montagem, ou recursos que degradem ou ridicularizem candidato), da Lei 9.504/97, aplicáveis às programações das emissoras de rádio e televisão a partir de 1º de julho de ano eleitoral. O desrespeito, pela emissora de comunicação social, das disposições da Lei 9.504/97 poderá resultar na suspensão, pela Justiça Eleitoral, a requerimento de partido, coligação ou candidato, da sua programação normal por vinte e quatro horas, ficando aquela, durante o intervalo de quinze minutos, a emitir a informação de que se encontra fora do ar por haver infringido a lei eleitoral. Renovada a conduta, o período da pena será duplicado. 22 O Direito de Antena Eleitoral, Perspectiva Constitucional, Nos 20 Anos da Constituição Portuguesa de 1976, Vol. I, p. 605. instituição toledo de ensino 233 VII - DO DIREITO DE RESPOSTA Considerando-se que a liberdade de expressão no exercício da propaganda eleitoral não poderá servir de instrumento para a emissão de juízos e informações que representem ilícitos civis e criminais, restou assegurado ao ofendido que, in casu, poderá recair em candidato, partido ou coligação, o direito de respondê-la, prestando os esclarecimentos que entender necessários. Possui estatura constitucional (art. 5º, VI, CF), já estando disciplinado, no plano infraconstitucional, pela Lei 5.250/67 (arts. 29 a 36). A regulamentação da Lei 9.504/97 (art. 58) é de cunho específico, voltada apenas para reparar desvio de informação durante o período eleitoral, sendo a competência para o seu processo e julgamento exclusiva da Justiça Eleitoral. Nada impede, contudo, que o diploma legislativo específico encontre, em caso de omissão, achegas, por integração analógica, em passagem da lei geral. Para que isso venha a ocorrer, mister que haja a depreciação, ainda que de forma indireta, da honra do ofendido por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica. As três primeiras situações possuem suas formas conceituais nos tipos dos arts. 138 a 140, todos do Código Penal. A afirmação sabidamente inverídica constitui figura nova que, a despeito de não consistir em delito, poderá ser suscetível de prejudicar a imagem do ofendido perante a opinião pública. Por fato sabidamente inverídico não se configura uma possível inverdade, mas somente a falta de verdade que diga respeito a acontecimento de conhecimento notório pela coletividade, ou por um determinado círculo social. Penso que não se pode buscar a conceituação dessa nova figura senão com o auxílio da exegese do art. 334, I, do CPC. Esclarecendo o que se deva entender do fato notório, para fins de dispensa de sua prova, lecionou o eminente PONTES DE MIRANDA: “A notoriedade pode ser iuris ou facti. O notorium iuris é absoluto, se se trata de regra jurídica; relativo se resulta de sentença trânsita em julgado. O notorium facti resulta de fato que é conhecido de todos os que fazem parte de determinado círculo social, de modo que não há dúvida a respeito de tal fato. Há notoriedade de coisa estável (o edifício, a rua, o monumento, a sede do governo), de fato transeunte, periódico ou contínuo (a passagem de certa pessoa a tantas horas pelo lugar A, a invasão de terrenos pelo mar.”23 No mesmo diapasão, elucida ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS: 23 Comentários ao Código de processo Civil. Tomo IV. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1974, pág. 230 234 instituição toledo de ensino “Fatos notórios não são os de exclusivo conhecimento do julgador, mas os que caem no domínio público, de forma tal que o juiz se torne deles também sabedor, como qualquer pessoa do povo.”24 A circunstância de um determinado fato haver sido objeto de noticiário pela imprensa não é capaz de, só por só, granjear-lhe notoriedade e qualificá-lo, para fins eleitorais, como sabidamente inverídico. Assim se manifestou STJ: “A circunstância de o fato encontrar certa publicidade na imprensa não basta para tê-lo como notório, de maneira a dispensar a prova. Necessário que seu conhecimento integre o comumente sabido, ao menos em determinado estrato social, por parcela da população a que interesse”.25 O sujeito passivo do direito de resposta é qualquer veículo de comunicação social, integrante da imprensa escrita, de radiodifusão ou televisiva. De acordo com o art. 58, §1º, da Lei 9.504/97, ao ofendido, ou seu representante legal, se relativamente incapaz26, tocará postular o direito de resposta nos seguintes prazos: a) vinte e quatro horas, quando se tratar do horário eleitoral gratuito, incluindo-se aqui não somente o programa partidário em rede, mas, de igual modo, as inserções, segundo se infere do art. 51; b) quarenta e oito horas, quando se cuidar da programação normal das emissoras de rádio e televisão; c) setenta e duas horas, quando a suposta ofensa for noticiada por órgão da imprensa escrita. Recebido o requerimento, notificar-se-á o ofensor para, em prazo de vinte e quatro horas, apresentar defesa, devendo a decisão ser proferida em até setenta e duas horas, contados do ingresso do pedido em juízo. Veiculada a ofensa pela imprensa escrita, o pedido deverá ser instruído com um exemplar da publicação e, ao mesmo tempo, com o texto da resposta. Deferido, a divulgação da resposta dar-se-á no mesmo órgão, espaço, local, página, tamanho, caracteres e outros elementos de realce usados na ofensa, devendo ocorrer em quarenta e duas horas após a decisão, ou se o veículo possuir periodicidade maior, na primeira vez em que vier a circular. Não se observarão tais prazos se o ofendido preferir que a resposta seja divulgada no mesmo dia da semana da ofensa, mesmo que ultrapassado o prazo de quarenta e oito horas. Vindo a lume a ofensa em dia e hora que inviabilize sua reparação em tais prazos, poderá a Justiça Eleitoral determinar a sua imediata divulgação. 24 Manual de Direito Processual Civil. v. 2. São Paulo: Editora Saraiva, 1986, pág. 84 3ª Turma, Resp 7.555 – SP, rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, DJU 03.06.91, p. 7.425. 26 A hipótese é de ocorrência com relação a candidatos a Deputado Federal, Estadual ou Distrital, Prefeito , VicePrefeito e Vereador, cujo requisito etário de elegibilidade, de vinte e um e dezoito anos (art. 14, VI, letras c e d, CF), deverá, a partir da Lei 9.504/97 (art. 11, §2º), ser preenchido até a data da posse. 25 instituição toledo de ensino 235 O cumprimento do julgado deverá ser demonstrado pelo ofensor através do fornecimento aos autos de dados relativos à regular distribuição dos exemplares, da tiragem e da abrangência espacial da distribuição do jornal ou periódico. Havendo obtido a ofensa espaço na programação das emissoras de rádio ou televisão, o Judiciário, ao analisar o pedido, notificará imediatamente o responsável pela emissora para que, no prazo de vinte e quatro horas, entregue, sob as penas do art. 347 do CE, cópia da fita da transmissão, a ser devolvida após a decisão, devendo a gravação ser preservada até o final do processo. Nada impede que se expeça um só mandado, tendente à notificação para a apresentação da fita e, ao mesmo tempo, para apresentação de defesa. Deferido o pedido, a resposta irá ao ar em até quarenta e oito horas após a decisão, por tempo igual ao da ofensa, respeitado o limite mínimo de um minuto. Tratando-se de agravo cometido durante o horário eleitoral gratuito, tem-se que a resposta será veiculada na programação destinada ao partido ou coligação ofensora, em tempo igual ao da ofensa, não inferior a um minuto. Se o tempo do partido ou coligação ré for inferior a um minuto, a resposta deverá ir tantas vezes ao ar até o necessário à integralização desse limite. Antes da execução do direito de resposta, a emissora geradora e o partido ou coligação atingidos deverão ser notificados imediatamente da decisão, a qual indicará o período (diurno ou noturno) da veiculação da réplica, devendo ter lugar no início do programa partidário. Para esse fim, a gravação magnética da refutação deverá ser entregue à emissora geradora em até trinta e seis horas após a ciência da gravação, cabendo a sua divulgação no programa subseqüente do partido ou coligação em cujo espaço se cometeu a ofensa. Em qualquer caso, a temática da resposta deverá guardar conexão com os fatos veiculados na ofensa. Não havendo, pelo candidato, partido ou coligação favorecido, a utilização do tempo concedido sem a resposta aos fatos que originaram o pedido, terá subtraído, no seu horário gratuito, tempo idêntico do respectivo programa eleitoral. Havendo terceiro sido beneficiado com o direito de responder, como o permite o art. 58, III, f, da Lei 9.504/97, o descumprimento dessa obrigação acarretará multa, arbitrada entre duas a cinco mil UFIR, sem prejuízo da suspensão de igual tempo em novos pleitos. Referido comando normativo, ao estabelecer punição a terceiro, conduz, sem nenhuma dúvida, à ilação de que, no horário eleitoral gratuito, terceiro poderá ser beneficiário de direito de resposta. Neste sentido, há recente decisão do TSE no Recurso na Representação 82 - DF, embora com ponto de vista contrário do relator27. 27 Mv, decisão publicada durante a Sessão de 01-09-98. 236 instituição toledo de ensino VIII - DA PUBLICIDADE INSTITUCIONAL De logo, impende ressaltar que a ordem jurídica não proscreve a realização de publicidade por parte da Administração. Antes a confirma. Prova disso o art. 37, caput, da CF, impôs à gestão estatal estreita vinculação ao cânon da publicidade, a ganhar maior ênfase com a Democracia Representativa, pois segundo afirma CARMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA28: “... o exercício ético do poder exige que todas as informações sobre o comportamento político dos agentes sejam oferecidas ao povo. Antes mesmos que alguém possa ocupar a condição de agente público, especialmente nos casos de agentes públicos conduzidos aos cargos por eleições, as informações a serem oferecidas ao povo são imprescindíveis e devem ser honestas. Por este princípio da publicidade é que se assegura o direito ao governo ético, à administração honesta”. Em excelente estudo sobre o assunto, desenvolvido a pretexto de analisar a legalidade de periódico Informativo Municipal, editado sob os auspícios da Assessoria de Imprensa da Prefeitura de São Sebastião (SP), destinado a veicular matérias inerentes a atividades administrativas e comunitárias desenvolvidas pela Administração Municipal, frisou ADILSON DE ABREU DALLARI29 que tal se impõe ante a circunstância de que a Constituição de 1988, ao consagrar os modelos republicanos e democrático, implementou, como decorrência, os princípios da transparência e da participação, os quais se interagem mutuamente. Desse modo, o cidadão, para bem participar dos atos de governo, precisa ser informado do que este está fazendo ou pretende realizar. Por isso, a atividade da Administração Pública não pode ser algo secreto, oculto, do conhecimento de poucos, fazendo-a necessária a publicidade da atuação governamental. Aderindo ao pensamento do jurisperito bandeirante, GERALDO BRINDEIRO30 não enxerga propaganda eleitoral ilícita na simples realização de propaganda institucional, concebendo como salutar para o aperfeiçoamento da democracia a divulgação de obras e realizações administrativas da mesma maneira que a séria crítica política a candidatos. Mais à frente, atento ao problema em torno da publicidade versus propaganda, sustenta o Constituinte, no art. 37, §1º, da CF, que esta, na forma de propagan28 Princípios Constitucionais da Administração Pública, Del Rey , 1994, p. 241. Divulgação das Atividades da Administração Pública - Publicidade Administrativa e Propaganda Pessoal, RDP 98, pp. 245-7. O autor volta ao tema no artigo Abuso de Poder Político, in Direito Eleitoral, Del Rey, pp. 243-6. 30 Loc. cit., p. 179. 29 instituição toledo de ensino 237 da administrativa, consiste na divulgação dos atos, programas e campanhas dos órgãos públicos, devendo ter caráter educativo, informativo ou de orientação social. Vedada, por outro lado, a propaganda que visa à promoção pessoal do agente público. Nesse particular, tenho como correta a lição de ADILSON DE ABREU DALLARI31, desmistificadora de pruridos e inquietações exageradas, no sentido de que o caráter informativo da publicidade oficial não é desnaturado com o fato deste destacar atuações positivas, tocando à imprensa livre, aos membros do Parlamento, aos partidos e à sociedade civil constatar a veracidade do noticiado. Igualmente, enfatiza não poder ser reputado como abusivo a referência, ao longo do texto do nome do chefe do Executivo, ou de auxiliares diretos, desde que não extravase os lindes da razoabilidade. Cabe, assim, ao magistrado, no caso concreto, sopesar se a necessária divulgação dos atos de governo se mantém em patamar razoável, ou se transborda para o favorecimento pessoal. No mesmo sentido, a Lei 9.504/97 (art. 73, VI, a, VII), bem como o seu regulamento, aprovado pela Resolução 20.106/98, reconhecem a permissibilidade da propaganda institucional, traçando-lhe limites. Há restrição de ordem temporal, ditada pela possível influência que a publicidade institucional teria nas proximidades das eleições, de maneira que se encontra vedada nos três meses antecedentes ao pleito. Admitidas apenas duas exceções, concernentes a : a) a propaganda de produtos ou serviços que possuam concorrência no mercado; b) a autorização da Justiça Eleitoral, em caso de grave e urgente necessidade pública. Permite-se, ainda, a realização de pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, fora do horário eleitoral gratuito, quando, a critério da Justiça Eleitoral, cuidar-se de matéria urgente, relevante e característica das funções de governo. Noutro passo, tem-se limitação quantitativa, proibida, em ano eleitoral, mas antes de três meses da disputa, a realização de gastos com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais, ou municipais, inclusive das entidades da Administração Indireta, excedentes a média dos gastos três anos anteriores. A não observância dessas interdições acarreta a inflição ao responsável de multa, oscilante entre 20.000 e 100.000 UFIR, duplicada em caso de reincidência. No plano doutrinário, TORQUATO JARDIM32 se manifesta pela incompatibilidade vertical entre os dispositivos de lei ordinária que, no período eleitoral, restringem a publicidade institucional. Funda-se em que, nos termos da Lei Máxima (art. 37, §1º), não se está ante um direito do Chefe do Executivo, mas, ao inverso, diante de um direito da cidadania e, em contrapartida obrigação do governante, que é o de conhecer as ações de governo. Deveria caber à lei ordinária, no anelo de alcançar um equilíbrio entre os princípios da isonomia e o da prestação de contas à sociedade civil, estatuir preceitos hábeis a vedar que à publicidade governamental seja 31 32 Loc. cit., p. 247. Direito Eleitoral Positivo, pp. 120-1. 238 instituição toledo de ensino desvirtuada em benefício pessoal do agente político. A despeito da opinião, demasiado abalizada, penso que a Lei 9.504/97 não apresentou, neste ponto, inconstitucionalidade, uma vez que, em compensação, os instrumentos de crítica dispostos ao alcance da oposição também passam, na mesma época, a sofrer limites, como se pode observar, por exemplo, das proibições do seu art. 45. A ausência de uma cultura nacional de reeleição, aliada à possibilidade do governante manter-se, durante a peleja, no desempenho do mandato, poderia conduzir a sua situação de desigualdade frente aos demais concorrentes. O assunto inerente à publicidade institucional também foi alvo de preocupações no terreno pretoriano. Antes mesmo da Constituição de 1988, permitira o TSE a continuidade de propaganda institucional, contanto que excluído slogan de publicação de Governo do Estado, por traduzir propaganda cuja utilização se vislumbrava fins nitidamente eleitorais33. O argumento que embasou a decisão serve também, a princípio, como motivo para afastar a alegação de incompetência da justiça eleitoral para o exame de pedido fundado em possível desvirtuamento de finalidade quanto ao art. 37, §1º, da Lei Fundamental em vigor. A possibilidade de manejo do poder jurisdicional da justiça comum, na hipótese de apuração de suposto ato de improbidade administrativa, não impede que a justiça especializada atue quanto aos seus reflexos que a propaganda possa ter no campo eleitoral. Podemos apontar mais quatro oportunidades em que o TSE se defrontou com o problema, sendo as duas primeiras anteriores à Lei 9.504/97. No MS 1.362 - SP, discutiu-se a liceidade da propaganda das obras e programas do Governo do Estado. Acolhendo representação do PSDB, a Corregedoria Regional Eleitoral entendeu, à míngua de óbice legal, legítima a publicidade governamental de obras e programas, desde que retirados logotipo e a expressão novo tempo, caracterizadores de anterior campanha do Senhor ORESTES QUÉRCIA, então Governador do Estado. Não se conformando, o representante interpôs agravo regimental, obtendo sucesso, com vistas a suspender integralmente a realização de dita publicidade, em face da época pré-eleitoral dos fatos. Submetida questão ao TSE, apesar deste indeferir o pedido, por entender que perdera seu objeto em virtude de posterior comunicação da Presidência do TRE/SP, informando o relaxamento parcial da determinação desta Corte, ficou esclarecido, no voto-condutor do Min. OCTÁVIO GALLOTTI, ser permitida a continuidade da divulgação publicitária, pelo seu caráter objetivamente informativo, excluindo-se apenas o elemento capaz de, direta ou indiretamente, influenciar a vontade do eleitorado em favor de determinado candidato ou partido34. Por ocasião do Recurso Especial 12.806 - MT, apreciou-se representação ministerial, julgada improcedente pelo Juízo da 49ª Zona Eleitoral, onde se questionava a validade da divulgação, no jornal Diário de Cuiabá, da atividade dos vereadores de 33 MS 813 - MG, rel. Min. ALDIR GUIMARÃES PASSARINHO, DJU de 24-09-87, p. 20.213. Ementa publicada no DJU de 14-02-91, p. 867. 34 instituição toledo de ensino 239 Várzea Grande, por parte destes já estarem escolhidos em convenção como candidatos a reeleição. Improvido o recurso pela Corte Regional, ao entendimento de que não constituía propaganda irregular a veiculação, através da imprensa, de boletim informativo dos trabalhos dos vereadores, interpôs a Procuradoria Regional Eleitoral nova irresignação. O TSE, acolhendo parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral, não vislumbrou a existência de propaganda em violação ao art. 50, §2º, da Lei 9.100/9535. Durante a vigência da Lei 9.504/97 que, como vimos, estatui termo final à veiculação da propaganda institucional (três meses antes da eleição), veio a lume a Suspensão de Liminar 16 - DF, requerida pelo Governo do Distrito Federal contra decisão do TRE que acolhera pedido do PMDB, formulado no sentido de sua proibição. Em seu despacho, o Min. ILMAR GALVÃO suspendera parcialmente o ato impugnado, facultando a continuidade da propaganda governamental, contanto que retirado o slogan Governo Democrático e Popular - GDP, por identificar o nome do Governador, candidato a novo mandato. Outro exemplo se operou na Representação 57 - DF, na qual o Min. FERNANDO NEVES, harmonizou a proibição temporal, constante do art. 73, VI, b, da Lei 9.504/97, com o art. 16 da Lei 5.194/66, permitindo, em despacho publicado no D.O U. de 17-08-9836, a continuidade das placas alusivas a obras da Administração Federal, contanto que retiradas as expressões Brasil em Ação e Um dos 42 Projetos do Programa Brasil em Ação. Salientou que o art. 16 da Lei 5.194/66, lei administrativa, não revogável por norma de disciplina do processo eleitoral, determinando que, enquanto perdurar a execução de obras, instalações e serviços de qualquer natureza, é obrigatória a aposição e manutenção de placas visíveis e legíveis ao público, contendo o nome do autor e co-autores do projeto, mencionando todos os seus aspectos técnicos e artísticos, inclusive os responsáveis pela respectiva execução. Desenvolvendo sua argumentação, entendeu S. Exa. nada justificar a continuidade da presença de placas relativas a obras já concluídas, situações onde o registro há de se resumir à praxe da anotação da inauguração. Pelos julgados, constata-se a licitude da propaganda institucional, voltada para satisfazer a obrigação dos governantes de tornarem as suas atuações transparentes aos cidadãos, propiciando a estes, após o conhecimento dos programas e ações dos Poderes Públicos, a oportunidade de participação na condução dos negócios públicos. Excluída, é certo, a divulgação que, exasperando os parâmetros normais, tenda primacialmente à promoção pessoal de determinado agente público. O abuso no exercício da publicidade institucional, resultante da infringência do art. 37, §1º, da CF, configura abuso de autoridade, para os fins do art. 22 da LC 64/90, podendo importar, se for o caso, no cancelamento da candidatura do responsável. 35 36 A ementa do julgado se acha no DJU de 21-03-97, p. 8.571. S. I, p. 53-55. 240 instituição toledo de ensino Ainda quanto ao tema, há de se considerar o art. 77 da Lei 9.504/97, ao proibir nos três meses antecedentes ao pleito, pena de cassação do registro, a participação dos candidatos a cargos do Poder Executivo, quer o atual exercente, ou seu adversário, nas inaugurações de obras públicas. Veja-se que o legislador empregou a expressão, em sua forma plural, obra pública, a qual, no atual desenvolvimento do direito pátrio, possui conceito legislativo. Tal se encontra no art. 6º, I, da Lei 8.666/93, ao ditar que considera-se obra “toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação, realizada por execução direta ou indireta”, podendo estar concluída ou em andamento37. É preciso esclarecer que o disposto nos arts. 73 a 78 da Lei 9.504/97 veicula proibições aos agentes da Administração, cuja atividade requer o interesse público seja contínua, a sua exegese não pode enveredar pelo método extensivo. Por esse motivo, não se encontra, no art. 77 do referido diploma, vedada a assinatura, por candidato ao Executivo, nos três meses anteriores às eleições, de convênios ou instrumentos similares. Idem na instalação de programas de governo. Em nenhum momento, a lei eleitoral visou decretar o recesso no Poder Executivo, de cujo desempenho depende a concretização da função administrativa. À derradeira, dispõe o art. 75 da Lei 9.504/97 ser vedada, durante as inaugurações, a contratação de shows artísticos estipendiados com recursos do erário. IX - DIRETRIZES APLICÁVEIS ÀS SANÇÕES DECORRENTES DA PROPAGANDA ELEITORAL ILÍCITA A definição do regime jurídico das penalidades aplicáveis à propaganda eleitoral ilícita pressupõe, de início, o descortinar da natureza da atividade exercida para coibir a sua prática. Vem indicada, às expressas, no art. 249 do CE, ao apontá-la como poder de polícia, embora seu desempenho constitua apanágio atípico de agentes integrantes do Judiciário. Ainda que assim não dispusesse o legislador, a conclusão assomaria da circunstância de que normas como as dos arts. 36 e seguintes da Lei 9.504/97 autorizam integrantes de um dos poderes estatais a conter liberdade constitucional (direito de opinião e de expressão do pensamento) em prol do bem-estar geral. A própria jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral respalda essa conclusão, ao haver reputado sanção de índole administrativa a prevista no art. 48, §4º, da Lei 9.100/95, conforme se colhe do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 807 - SP: 37 Nesse particular, cf. os Pareceres AGU/LA-02/96 e AGU/LA-02/98, publicados no DOU, S. I, de 29-10-96 e 07-07-98, respectivamente. instituição toledo de ensino 241 “AGRAVO REGIMENTAL. PESQUISAS ELEITORAIS. REGISTRO. DIVULGAÇÃO. 1. A penalidade de multa prevista no §4º do art. 48 da Lei nº 9.100/95, sanção administrativa, é cominada ao candidato beneficiário independentemente da comprovação de sua participação. 2. Responsabilidade pela divulgação irregular de pesquisa de opinião, sem prévio registro na justiça eleitoral, nesta caso é objetiva. Agravo regimental improvido”38. Ao pensar pretoriano não é estranho o da doutrina. JOEL JOSÉ CÂNDIDO constitui exemplo preciso: “A propaganda lícita poderá sofrer uma outra espécie extraordinária de restrição, determinada pelo Poder de Polícia que, em matéria eleitoral, é sempre e exclusivamente, de competência dos órgãos da Justiça Eleitoral (CE, art. 249). No exercício do Poder de Polícia a Justiça Eleitoral age como Justiça-Administração-Pública, regulando, controlando e contendo os excessos no exercício da propaganda, em nome do interesse público”39. Daí decorre a vinculação das penas a serem aplicadas aos princípios da legalidade e da proporcionalidade. Por legalidade se entende que a sanção aplicável deva se encontrar prevista em comando normativo. De advertir-se, como fincado no início deste trabalho, que, em face do art. 220, §1º, da CF, qualquer restrição à liberdade de propaganda, na qualidade de vertente do direito de expressão, há de ser estatuída em lei em sentido estrito, isto é, aquela que, além de prescrever abstratamente determinado padrão de conduta (lei material), haja sido editada pelo órgão constitucionalmente incumbido da função legislativa, consoante procedimento adequado (lei formal). Não podem diplomas de cunho regulamentar proibirem ou conterem o campo da propaganda eleitoral. Da mesma forma, não lhes cabe cominar penas para os transgressores de suas normas. No campo do Direito Eleitoral particular atenção provoca a afirmativa de que as resoluções editadas pelos Tribunais Eleitorais, por não configurarem lei, não podem traçar limites à manifestação do pensamento, bem como a imposição de punições. Hão apenas de explicitar o modo de sua aplicação, sem inovar na órbita jurídica Vale aqui a reserva absoluta da lei40. 38 ac. un., rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJU de 12-09-97, p. 43.814. Digno de leitura também passagem do voto do Min. OCTÁVIO GALLOTTI no citado MS 1.362 - SP. 39 Direito Eleitoral Brasileiro, p. 149. 40 Sobre a natureza regulamentar do poder normativo da Justiça Eleitoral, consultar o escólio de VICTOR NUNES LEAL (Problemas de Direito Público, Forense, 1ª ed., 1960, p. 216) 242 instituição toledo de ensino Igualmente, não se pode perder de vista o princípio da proporcionalidade, já aqui em ótica diversa, voltada à sua significação no Direito Administrativo, de sorte a preconizar que a intervenção estatal nessa área se realize através dos meios legais estritamente necessários ao resguardo do interesse público. Mister que se balize pelo binômio necessidade-adequação. Palmar a advertência de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO: “A utilização de meios coativos, por parte da Administração, conforme o indicado, é uma necessidade imposta em nome da defesa dos interesses públicos. Tem, portanto, na área de Polícia, como em qualquer outro setor de atuação da Administração, um limite conatural ao seu exercício. Este limite é o atingimento da finalidade legal em vista da qual foi instituída a medida de polícia. Mormente no caso da utilização de meios coativos, que, bem por isso, interferem energicamente com a liberdade individual, é preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administração. Importa que haja proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida”41. Assim, parece haver-se lastreado o TSE em recente julgamento no Recurso Especial 12.567 - GO42, no qual, levando em consideração que, com a só ordem liminar, o presumível infrator cessara a mensagem propagandística inquinada de ilegal, entendeu que havia sido alcançado o objetivo proposto pela legislação eleitoral, não mais então se justificando o agravamento da situação do particular, mediante ato estatal de inflição de pena pecuniária. O objetivo da Justiça Eleitoral consiste, primacialmente, no restabelecimento da ordem pública violada pela propaganda indevida, restando secundária a imposição de obrigação de dar dinheiro ao Estado. Caso viesse a lume veredicto contrário, poder-se-ia falar em desprezo à regra da proporcionalidade dos instrumentos postos à ação estatal. Além da legalidade e proporcionalidade, reflexos inseparáveis da ação de polícia, a fiscalização judiciária não pode perder de vista outras máximas de observância obrigatória, quais sejam: o contraditório regular, a proscrição da reformatio in pejus, a solidariedade, a culpabilidade e o non bis in idem. Implicando o controle estatal sobre a propaganda na imposição de atos e abstenções aos particulares, com a cominação de pena, não se pode perder de vista a 41 Curso de Direito Administrativo, pp. 366-7. Rel. Min. MAURÍCIO CÔRREA , ac. un., DJU de 19-09-97, p. 45.646. 42 instituição toledo de ensino 243 incidência aqui do princípio do contraditório. Essa premissa ganha alento com o art. 5º, LV, da CF, a exigir que aos litigantes, nos processos administrativo e judicial, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os correspondentes meios e recursos. Nenhuma medida restritiva poderá ser tomada sem a ouvida da parte contra a qual a sua postulação é dirigida. Da mesma forma, encontra-se o sucumbente garantido com a possibilidade de rediscutir as decisões que lhe foram desfavoráveis. Outro princípio relevante é o que não admite a possibilidade de reformatio in pejus, de longa tradição jurídica. Significa que a parte vencida não poderá, em virtude do exercício da sua legítima pretensão em recorrer, ver a sua situação agravada quando para tanto nada postulou o litigante adversário. Não constitui franquia exclusiva do Direito Penal, mas, ao inverso, possui aplicabilidade nas lides onde viceja a possibilidade de aplicação de pena. Feliz síntese sobre os contornos da vedação à reforma para pior fora realizada pelo Tribunal Constitucional de Espanha (sentencia de 19 de dezembro de 1988), conforme transcrito por JOSÉ MARIA QUIRÓS LOBO: “É um princípio geral de nosso Direito no âmbito sancionador, tanto penal como administrativo, que nas segundas ou sucessivas instâncias, qualquer que seja a natureza do recurso utilizado, ordinário ou extraordinário, não se pode agravar a condenação do recorrente acima do que havia imposto a sentença impugnada, salvo se a parte contrária – em suma, o acusador – tiver recorrido independentemente, ou se aderira a recurso já formulado. Isto acarreta a vinculação do juiz ‘ad quem’ ou superior pelos limites subjetivos e objetivos que hajam marcado a acusação e a defesa, neste último grau jurisdicional.”43 No plano específico das infrações relativas à propaganda eleitoral, há reconhecimento do cânon pelo TSE: “Recurso Especial - Multa pela utilização de outdoors fora dos casos especificados em lei. Agravamento da sanção pelo Tribunal Re- 43 “Es un principio general de nuestro Derecho en el ámbito sancionador, tanto penal como administrativo, que en las segundas o sucessivas instancias cualquiera que fuere la naturaleza del recurso utilizado, ordinario ou extraordinario, no pueda agravarse la condena del recurrente por encima de la que había impuesto la sentencia impugnada, salvo que la parte contraria - el acusador en suma - hubiera recurrido independientemente, o se adhiera al recurso ya formulado. Esto conlleva la vinculación del juez «ad quem» o superior por los limites subjetivos y objetivos que hayan marcado la acusación y la defensa, en este ulterior grado jurisdicional”. Principios de Derecho Sancionador, p. 117.transcende o campo do processo penal. 244 instituição toledo de ensino gional Eleitoral ao julgar recurso do transgressor. Inviabilidade. Aplicação do princípio do reformatio in pejus. Recurso conhecido e provido”44. Voz abalizada contra a reforma para agravar a situação do recorrente são as de GARCÍA DE ENTERÍA e TOMÁS-RAMÓN HERNANDEZ: “Uma última peculiaridade, também negativa, da técnica de impugnação das sanções, embora limitada à impugnação em via administrativa, é a admissão comum, até uma jurisprudência muito recente, da grosseira e arcaica técnica processual da reformatio in pejus. Esta técnica permite ao órgão que conhece e decide o recurso agravar as sanções do recorrente ou de terceiros não recorrentes. ...A Administração abusou destas técnicas (especialmente em matéria de contrabando) até limites não facilmente imagináveis pelos processualistas penais, que expulsaram de seu âmbito essa possibilidade, como contrária à função elementar da justiça, séculos atrás. De novo encontramos enquistados no seio do Direito das repressões administrativas elementos arcaicos pré-modernos, de uma surpreendente vitalidade, e que resulta óbvio que o Direito Administrativo como tal não pode amparar de modo algum”45. Outro ponto que não pode passar em branco é o de que o art. 241 do Código Eleitoral alberga o princípio da solidariedade, nos excessos verificados no curso da propaganda, entre o partido, seus candidatos e adeptos. Assim os efeitos sancionatórios decorrentes da publicidade eleitoral irregular hão de ser suportados, em forma de obrigação solidária, por todos os envolvidos. Obrigação solidária, tal como definida pelo Direito Civil, é aquela a pressupor a pluralidade de credores (solidariedade ativa) ou devedores (solidariedade passiva), podendo cada um destes isoladamente exigir o seu cumprimento ou ser compelido a saldá-la, observado o rateio posterior entre os respectivos sujeitos. O tema é inçado a forte controvérsia a partir do art. 36, §2º, da Lei 9.504/97, ao dizer que a sua violação sujeitará a pena de multa o responsável e, quando comprovado o seu prévio conhecimento, o beneficiário da propaganda antecipada. Poder-se-ia, ao primeiro olhar, falar na dualidade de multas. Penso que essa opinião, 44 REsp 14.839 - ES, ac. un., rel. Min. EDUARDO RANGEL DE ALCKMIN, DJU de 29-08-97. Merecedor de leitura o voto do relator, no qual, com apoio em precedentes do STF, sustenta que o postulado da non reformatio in pejus transcende o campo do processo penal. 45 Curso de Direito Administrativo, pp. 917-8. instituição toledo de ensino 245 porque fundada na letra isolada do mencionado dispositivo legal, não é a dotada de maior razoabilidade. Preferível a exegese que atenda ao ideário perfilhado pelo sistema jurídico eleitoral. Sendo assim, faz-se necessária a sua conjugação com o art. 241 do CE, ao impor solidariedade entre os partidos, candidatos e adeptos, pela propaganda veiculada à margem da lei. Não se alegue, por outro lado, que a edição da Lei 9.504/97, por ser posterior, revogara, no particular da propaganda, o disposto no art. 241 do CE. Ledo engano. O comando contido na vigente codificação, por seu alcance genérico, não pode ter a sua vigência superada por dispositivos que visem atender a situação particularizada. Essa assertiva é justificada à luz do art. 2º,§2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, ao ditar que, à míngua de incompatibilidade, a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais além das já existentes, não revoga ou modifica a lei anterior. Assim, a superveniência de lei especial, como se apresenta a Lei 9.504/97 frente ao Código Eleitoral (lei geral), não implica na perda de validade das normas deste. Em segundo lugar, a circunstância do art. 36, §2º, da Lei 9.504/97, reportar-se, além do responsável, ao beneficiário, na hipótese de conhecido, não está querendo dizer que devam haver duas punições. Absolutamente. Apenas está definindo o universo daqueles que, solidariamente, devam responder pela prática ilícita. Essa, com o merecido respeito, penso ser a melhor solução, por - desculpe-me o vício tautológico - prestigiar a hermenêutica sistemática, através do cotejo do dispositivo infringido com as regras gerais do Código Eleitoral. No sentido do pensamento aqui defendido, há precedente do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, ao reformar decisório de Juiz da Comissão de Fiscalização da Propaganda Eleitoral, ao impor a cada um dos três recorrentes multa equivalente a 10.000 UFIR, orientação que, a despeito de se referir à Lei 8.713/93, ainda guarda atualidade por revelar os valores consagrados pelo jus positum. Eis a sua ementa: “Recurso contra decisão da Comissão de Fiscalização da Propaganda Eleitoral. Eleições de 1994. Publicação de propaganda eleitoral em tamanho superior ao permitido pela legislação vigente. Violação do art. 63 da Lei nº 8.713, de 1993. Aplicação da pena mínima prevista em seu parágrafo único. Multa reduzida a 5.000 UFIRS para todos os recorrentes, considerados solidariamente responsáveis. Recursos providos parcialmente”46. Por fim, vem a lume o questionamento em torno da culpabilidade, ou seja, se a infração pela propaganda indevida pressupõe, para a sua caracterização, elemento subjetivo, consistente em dolo ou culpa. 46 Rel. Juiz ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS, RO 118/94, mv, DJMG 11-02-95. 246 instituição toledo de ensino Sem negar que a tendência afirmativa vem ganhando cada vez mais corpo quando se trata de responsabilidade administrativa, impressiona-me a opinião, sempre abalizada, de FÁVILA RIBEIRO47, para quem a existência de propaganda requer, por parte daquele que a veicula, o propósito deliberado de influir na opinião ou conduta do público a que é dirigida. Exige-se, em evocação ao Direito Penal, a presença de dolo específico, calcado no particular ânimo de sugestionar a preferência política da opinião pública. Essa, contudo, não foi a opinião do TSE ao defrontar-se com o art. 59 da Lei 8.713/93, similar do art. 36 da Lei 9.504/9748. Inaceitável também a dupla punição pelo mesmo fato. Isto, no entanto, não impede que, em virtude da propaganda irregular, haja responsabilidade em esferas diversas e autônomas, como a multa administrativa e a sanção por crime eleitoral. O que se proscreve é a imposição de mais de uma punição decorrente do exercício do poder de polícia49. A cumulação nesse campo somente se justifica quando há expresso permissivo legal que, na Lei 9.504/97, somente se verifica com relação ao art. 45, §2º, combinado com o art. 55, parágrafo único (programa eleitoral gratuito com violação do art. 45, I e II, da Lei 9.504/97). Esclarecedora a seguinte decisão: “ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO COMETIDA POR BARCO PESQUEIRO, NO TRANSPORTE DE MERCADORIAS PERECÍVEIS PARA ILHA DE FERNANDO DE NORONHA. APLICAÇÃO DE MULTA E APREENSÃO DE EMBARCAÇÃO. ART. 300 DO REGULAMENTO PARA O TRÁFEGO MARÍTIMO. Merece reforma parcial a sentença que anulou a sanção de apreensão da embarcação do impetrante, entendendo que a sua cumulatividade com a pena de multa transgrediria o princípio “non bis in idem”. É legal a aplicação de multa e apreensão da embarcação a infração comprovadamente cometida, eis que respaldada tal punição no art. 300 do RTM, que autoriza a cumulatividade das duas sanções. Remessa parcialmente provida”.50 47 Loc. cit., p. 289. Recurso 12.399 - MT, ac. un., rel. Min. MARCO AURÉLIO, Jurisp., Trib. Sup. Eleit., vol. 7, n. 2, abril/jun. 1996, p. 281. Idem no Resp 12.438 - TO (ac. un., rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJU-I de 09-06-95, p. 17.352). 49 Maiores comentários sobre o assunto, consultar ENRIQUE BACIGALUPO (Sanciones Administrativas, Derecho español y comunitario, p. 53). 50 TRF-5ª Reg., REO 330.762 - RN, rel. Juiz FRANCISCO FALCÃO, DJU-II de 21-03-94. 48 instituição toledo de ensino 247 X - NORMAS PROCEDIMENTAIS O art. 96 da Lei 9.504/97 foi expresso em afirmar que as reclamações ou representações relacionadas com a malferições a seu texto podem ser feitas por qualquer partido político, coligação ou candidato, sendo originariamente competente para o seu processo e julgamento os: a) juízes eleitorais, quando se tratar de eleição municipal; b) Tribunais Regionais Eleitorais, nas disputas federais, estaduais e distritais; c) Tribunal Superior Eleitoral, na eleição para Presidente da República. Nas eleições municipais, existindo numa determinada Comarca mais de uma Zona Eleitoral, competirá ao Tribunal Regional Eleitoral designar um magistrado, titular de funções eleitorais, para apreciar as reclamações e representações. No particular das eleições federais, estaduais e distritais, com exceção à presidencial, os Tribunais Regionais Eleitorais designarão três juízes auxiliares para, originariamente, apreciarem as representações ou reclamações sobre a não observância da Lei 9.504/97. Malgrado este diploma utilizar o vocábulo designarão, a dar a idéia de obrigatoriedade, há de se entender que se cuida de faculdade dos Tribunais Regionais Eleitorais. Inalterável, portanto, o entendimento do TSE, firmado por ocasião do art. 84, §1º, da Lei 8.713/93, a assentar que, mesmo tendo o legislador utilizado o vocábulo designarão, a instituição do juizado auxiliar da propaganda deveria ficar à discrição da Corte Regional51. Sem embargo da celeridade que o Juizado Auxiliar da Propaganda vem imprimindo ao processo eleitoral, não posso olvidar a existência de quem vislumbre a inconstitucionalidade de sua criação pela Lei 9.504/97. Assim se posiciona JOEL JOSÉ CÂNDIDO52, fazendo-o supedâneo no art. 122 da Lei Maior, que dispõe: “Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das Juntas Eleitorais”. Contrariamente ao abalizado autor, penso que a o problema possa ser contornado, a nível de compatibilidade vertical, com a inteligência de que o Constituinte apenas reservou à lei complementar, quando empregou a palavra competência, o apanágio de dispor sobre a matéria a ser apreciada pela Justiça Eleitoral, em contraposição às outras jurisdições especializadas e à Justiça Comum. Nada impedirá, assim, que o legislador ordinário disseque, de modo distributivo, a competência originária ou recursal dos diversos órgãos daquela. O TSE, nessa linha, vem validando a atribuição deferida aos juízes auxiliares criados pela Lei 9.504/97, inclusive entendendo que aos juízes eleitorais das zonas descabe o julgamento das representações previstas no seu art. 96. Digno de leitura o julgado proferido no Recurso Especial Eleitoral 15.334 - SC53, onde a Excelsa Cor51 REsp 12.374 - TO, ac. un., rel. Min. TORQUATO LORENA JARDIM, DJU-I de 03-02-95, p. 1.083. Resp 12.523 - MA, ac. un., rel. Min. EDUARDO RANGEL DE ALCKMIN, DJU de 18-04-97, p. 13.862. 52 Organização e competência dos Juízes Auxiliares na Lei das Eleições, Anais do Primeiro Congresso Centro-Sul de Direito Eleitoral, 1998, Campo Grande - Mato Grosso do Sul, pp. 69-72. 53 Ac. un., rel. Min. EDUARDO ALCKMIN, DJU de 02-10-98. 248 instituição toledo de ensino te, a despeito de preservar o poder de polícia dos juízes das zonas eleitorais, manifestou-se pela competência funcional - e ,portanto, absoluta - dos juízes auxiliares para o processamento das representações, das quais poderão resultar a imposição de penalidades. Contrariando parecer da lavrado Dr. EDUARDO ANTÔNIO DANTAS NOBRE, Subprocurador-Geral da República, que opinava, forte no art. 57 da Resolução 20.106/98, no sentido de que a competência dos juízes auxiliares não afastaria, nos limites de sua circunscrição, a dos juízes das zonas, o voto do relator distinguiu: “É certo que cabe exclusivamente aos Juízes Eleitorais exercer o poder de polícia sobre a propaganda, significando dizer que podem estes determinar medidas como a retirada de determinada veiculação ocorrida exclusivamente no âmbito de sua jurisdição etc. A imposição de multa, entretanto, será sempre feita em representação a ser apreciada em sede originária pelo Tribunal Regional Eleitoral, quando se cuidar de eleições federais, estaduais ou distritais”. Por esse entendimento, a competência dos juízes das zonas eleitorais está adstrita à adoção de medidas tendentes a fazer cessar a postura contraveniente das limitações sobre propaganda. Não se estende à aplicação das penalidades legais, em processo regular, este da alçada exclusiva, nas eleições federais, estaduais e distritais, dos Tribunais Regionais Eleitorais ou, quando designados, dos magistrados auxiliares da propaganda. Com a máxima vênia, dissinto da respeitável orientação. Melhor a exegese que não afasta do poder de polícia a sua conseqüência conatural, consistente na inflição de penalidades, voltadas à preservação da ordem pública. A venerando aresto, embora apoiado em sólidas balizas, reduziu o alcance da atribuição deferida aos magistrados eleitorais pelo art. 249 do CE. Protocolada a representação ou reclamação, caberá ao magistrado notificar imediatamente o reclamado ou representado, que necessariamente não deverá ser candidato, partido ou coligação, podendo igualmente recair em qualquer pessoa que atue no sentido da violação da Lei 9.504/97, para, no prazo de 48 horas, apresentar defesa. Assestado o pedido contra candidato já escolhido em convenção, a notificação poderá recair no partido ou coligação a que esteja vinculado. Existindo nas secretarias dos Tribunais Eleitorais advogados cadastrados como patrono de candidatos, partidos ou coligações, deverão igualmente ser notificados para o feito com a antecedência mínima de vinte e quatro horas do término do prazo para defesa, podendo, para tanto, ser utilizado fax, telex ou telegrama. As súplicas, que deverão, de maneira satisfatória e objetiva, relatar fatos, com a indicação de provas e indícios, serão distribuídas igualitariamente para cada um dos juízes em função de auxílio, observada a ordem de protocolo do respectivo Tribunal Eleitoral. instituição toledo de ensino 249 Não há necessidade da intervenção do representante vir obrigatoriamente respaldada por advogado. Isto se justifica por a Lei 9.504/97 (art. 96, caput) conferir, às expressas, não só legitimidade, mas também capacidade postulatória, a partido político, coligação ou candidato, prevalecendo orientação do TSE sedimentada desde a Lei Complementar 05/70 (antiga lei de inelegibilidades)54, ao ser, como a atual (LC 64/90, art. 3º), expressa em que qualquer candidato, partido político, coligação ou o Ministério Público, possa apresentar pedido de impugnação de candidatura. Ademais, a matéria inerente a propaganda, encontrando-se no poder de polícia da Justiça Eleitoral, poderá exigir desta ação de ofício, sem ao menos necessidade de representação. Com maior razão, não se afigura imprescindível o atuar privativo de advogado. Este entendimento consta da fundamentação do deliberado pelo TSE no Resp 15.094 - SP55. Em reforço, é de se notar que o Supremo Tribunal Federal acolheu, no que pertine à revisão criminal, ponto de vista, no sentido de que o art. 1º do atual Estatuto da Advocacia não revogara o jus postulandi nas hipóteses em que autorizado legislativamente56, devendo-se notar, no que concerne à propaganda eleitoral, a existência de legislação específica e posterior. Se entender necessário, o juiz auxiliar poderá remeter os autos ao representante do Ministério Público para ofertar, em vinte e quatro horas, parecer. Excedido o prazo sem pronunciamento, caber-lhe-á requisitar os autos para decisão. Conclusos os autos, não havendo necessidade de dilação probatória, o magistrado prolatará a sua decisão, publicando-a em vinte e quatro horas. No prazo de vinte e quatro horas dessa publicação, a ser realizada em Secretaria, poderá o sucumbente interpor recurso, facultando-se ao recorrido, no mesmo prazo, apresentar contradita ao inconformismo. Para que se possa ter por realizada publicação em Secretaria, é mister, como determina a Resolução 20.279, publicada no DJU-I, edição de 13-08-98, a afixação da sentença em quadro próprio, a ocorrer no intervalo das 14:00 às 19:00 horas, certificando-se a ocorrência nos autos. Caberá ao Tribunal Regional Eleitoral, no intervalo de 48 horas, após o recebimento dos autos pelo relator, julgar o recurso, independentemente de publicação de pauta, ficando a decisão publicada em sessão. Ocorrendo excesso injustificado nos prazos, poderá a parte dirigir-se ao órgão superior, o qual deverá, observado o rito aqui estabelecido, efetuar o julgamento da causa. Gostaria aqui de fazer um breve comentário quanto ao curso dos prazos, bem como a publicação das decisões em cartório ou em sessão. Não se pode negar que o processo eleitoral, nesse particular, recebe o influxo subsidiário das normas do 54 TSE - BE 376/645-6. Ac. un., rel. Min. EDUARDO RANGEL DE ALCKMIN, DJU de 19-12-97, p. 145. 56 Interessante a leitura do HC 72.981 - SP, relatado pelo Min. MOREIRA ALVES (1ª T., DJU de 09-02-96), ocasião em que se assentou a continuidade da vigência do art. 627 do CPP, condizente com a revisão criminal. 55 250 instituição toledo de ensino CPC, quais sejam as dos seus arts. 184 e 50657. É certo que também não se pode desconhecer a existência de peculiaridades no processo eleitoral a informar a ligeireza nos seus atos, de maneira a validamente serem adotadas hipóteses em que se dispense a publicação das decisões na forma regular, bem como se faculte o curso dos prazos em sábados, domingos e feriados. Indispensável, no entanto, que haja dispositivo legal em contrário, autorizando a fuga do prescrito no Código de Ritos. Prova insofismável disso é que os traços especiais dos recursos eleitorais, tais como o efeito suspensivo, o prazo exíguo de três dias, sempre tiveram sua admissibilidade condicionada à previsão legal, como ocorre com os arts. 257 e 258 do CE. Não é por outra razão que o recurso extraordinário, a ser interposto das decisões do TSE que versem debate constitucional, tem seu prazo regido pelo CPC. No particular da contagem dos prazos para recorrer, o TSE, atento à questão, deliberou: “Prazo. Curso em sábados, domingos e feriados. Propaganda eleitoral. Impertinência. Os preceitos insertos no art. 16 da Lei Complementar nº 64/90 e no art. 50 da Resolução -TSE nº 14.002, de 18 de novembro de 1993, aplicam-se, tão-somente, às controvérsias relativas a registro de candidato e impugnações. Descabe empolgá-los para glosar a situação em que o recurso foi interposto contra acórdão proferido em processo versando sobre propaganda eleitoral. Tanto vulnera a lei aquele que afasta do campo de aplicação caso contemplado, como o que inclui hipótese que lhe é estranha”58. Compulsando o voto do relator vê-se que, nas suas razões, nada mais acolhe senão o raciocínio aqui desenvolvido segundo o qual a contagem de prazo aos sábados, domingos e feriados, somente se legitima quando houver expressa previsão legal, e que esta é alheia à matéria inerente à propaganda eleitoral. No nosso ordenamento, a única hipótese contemplada é a do art. 16 da Lei Complementar 64/90, que repetia o art. 18 da sua antecessora (Lei Complementar 05/70), mas que se destina a universo restrito, não abrangendo as contendas oriundas da propaganda eleitoral indevida. Purgando qualquer dúvida, o esclarecedor voto do Min. DINIZ DE ANDRADA no Rec. 12.475-cls. 4.ª-Ag-TO: 57 Cf. o magistério de ADRIANO SOARES DA COSTA (Direito Processual Eleitoral, Ciência Jurídica, 1996, p. 229) e JOEL JOSÉ CÂNDIDO (loc. cit., p. 211), dirigido justamente ao assunto dos recursos. 58 Recurso 12.364 - SC, ac. un., rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJU-I de 28-04-95, p. 11.219. Na mesma linha, vislumbrase antigo precedente na Consulta 3.051, rel. Min. MILTON SEBASTIÃO BARBOSA, publicada no Boletim Eleitoral vol. 214, T. 1, p. 376. Perfilham a mesma inteligência ainda os seguintes arestos: Recurso 5.285 - RJ (ac. un., rel. Min. MOREIRA ALVES, publicado em sessão em 27-09-82); Consulta 3.051 - MG (ac. un., rel. Min. OSCAR CORRÊA PINA, julg. em 19-11-68); Recurso 10.219 - CE (ac. un., rel. Min. JOSÉ CÂNDIDO, Jurisp. Trib. Sup. Eleit. 4, p. 284, out./dez. de 1993). instituição toledo de ensino 251 “O fundamento do despacho agravado é o de que o Tribunal Regional se achava de plantão no domingo 16 de outubro de 1994 e então nesse dia se consumou o prazo recursal. Com a devida vênia, parece-me improcedente. A regra geral de ordem processual, aplicável também no campo eleitoral, é a da extensão do prazo para o dia útil imediato quando o final recai em sábado, domingo ou feriado. É certo que a Lei Complementar n.º 64 consagrou exceção, ao dispor diferentemente em ser art. 16. Mas, aí cogitava-se da disciplina do registro dos candidatos, quando o processo está a exigir celeridade em favor da ordem pública e das próprias partes. O princípio geral pode ser excepcionado, mas há de sê-lo expressamente. De outra forma, impera a contagem a molde do art. 184 do Código de Processo Civil. Na hipótese ‘sub judice’, o especial inadmitido versava assunto ligado à realização de pesquisas eleitorais, totalmente diverso daqueles cuja urgência inspirou o legislador a tratamento excepcional. Por fim, o fato de se achar em funcionamento naquele domingo a Secretaria do TRE autorizava a apresentação do recurso na oportunidade, mas não tem a força de se transformar em termo final do prazo, diante da ausência de determinação legal a respeito. Meu voto é no sentido de dar provimento ao agravo para o fim de determinar a subida do especial, dentro da orientação adotada, em tais hipóteses, pelo TSE”59. No plano doutrinário, bem expresso sobre a particularidade aqui comentada TITO COSTA60 quando, ao depois de asseverar a aplicação das disposições do CPC, com ênfase para o seu art. 184, não vislumbra nenhuma incompatibilidade com a possibilidade, mas não obrigação, dos recursos serem interpostos nos sábados, domingos e feriados, caso aberto se encontrem os cartórios eleitorais e as secretarias dos TREs. O costume, que recua a longa data, dos calendários das eleições preverem permaneçam abertas tais repartições noventa dias antes do embate visa a facilitar a todos os interessados amplo amparo jurisdicional nestes dias, principalmente no caso de registro de candidaturas, cujos prazos, aqui sim, podem ter início e curso em sábados, domingos e feriados, conforme previsto na lei de inelegibilidades. No entanto, silente a lei eleitoral quanto a tal possibilidade, imperioso o recurso ao CPC. É certo que o art. 4º da Resolução 20.279 dispõe: “Os prazos relativos às reclamações são contínuos e peremptórios e não se suspendem aos sábados, domingos e feriados”. Algumas conclusões podem ser extraídas: a) a necessidade, como 59 60 TSE, Rec. 12.475 - cls. 4.ª - Ag - TO, Rel. Min. DINIZ DE ANDRADA, julg. 25-4-95. Recursos em Matéria Eleitoral, pp. 55-6. 252 instituição toledo de ensino atrás alvitrado, de previsão normativa para esse fim, antes não existente; b) a impossibilidade da aplicação retroativa de tal diploma, porquanto o seu art. 5.º prevê a sua entrada em vigor na data da publicação; c) mencionado diploma, ao servir de meio integrativo à Resolução 20.106, somente é aplicável a fatos relacionados com as eleições de 1998. O mesmo se diga com a intimação através de publicação em cartório ou em sessão. Para que tal supra a intimação na forma regulada pelo CPC é preciso haja lei expressa, tanto que, em virtude disto, o TSE entende que a ciência das decisões sobre registro de candidatura, para fins de recurso, principia da leitura do acórdão na sessão de julgamento, ou do depósito da sentença em cartório, conforme o art. 11, §2º, da Lei Complementar 64/90. O art. 96, §6º, da Lei 9.504/97, ampliando o rol da norma acima, menciona que as decisões dos juízes auxiliares e dos Tribunais Regionais Eleitorais, versando discussão sobre o seu descumprimento, são publicadas em cartório e em sessão. Do julgamento do TRE caberá recurso especial para o TSE, no prazo de três dias. Das deliberações deste poder-se-á ainda falar em recurso extraordinário, caso discutida infringência a dispositivo constitucional. Antes de encerrar este tópico, não posso deixar de frisar que as decisões sobre propaganda desafiam a interposição de embargos declaratórios. A ausência de sua menção na Lei 9.504/97 não permite que se opte pelo seu descabimento, principalmente quando cada vez mais é acentuada a tendência de permitir a sua utilização, na qualidade de recurso integrativo, com relação a qualquer provisão judicial que contenha carga decisória, como os despachos interlocutórios. O CE, ao admiti-los no seu art. 275, mostra não haver qualquer incompatibilidade no processo eleitoral. O fato desse dispositivo reportar-se a acórdão não implica no seu não cabimento quanto às decisões monocráticas. Absolutamente. A aplicação supletiva do CPC volta à baila. Ensina TITO COSTA: “Pode parecer, à primeira vista, que no processo eleitoral esse recurso só seja possível em relação a decisões do Juízo Superior. Já dissemos anteriormente que o CPC admite os embargos contra sentenças de primeiro grau e acórdãos da instância superior. Sendo a lei processual civil aplicável, subsidiariamente, no processo eleitoral, e por ser mais ampla a sua abrangência no tocante a esse tipo de recurso, parece-nos curial que se amplie, também no procedimento eleitoral, a sua utilização, ao ponto de alcançar seu cabimento em relação a sentenças de Juízes ou Juntas Eleitorais”61. 61 Loc. cit., p. 98. instituição toledo de ensino 253 Por seu turno, a jurisprudência do TSE é pela admissão dos embargos declaratórios no processo eleitoral contra sentença e acórdãos, afastando-os apenas quando se tratar de despacho62. Concebe-se inclusive a sua interposição por terceiro prejudicado com a decisão embargada63. XI - A PROPAGANDA ILÍCITA E SEUS EFEITOS A violação às regras inerentes à propaganda eleitoral é apta a ensejar conseqüências as mais distintas. Além das medidas relacionadas com o poder de polícia da Justiça Eleitoral, já comentadas linhas atrás, poderá haver repercussão no campo penal ou no concernente à legitimidade da eleição. Na esfera criminal, tem-se a previsão de vários crimes eleitorais relacionados com a propaganda. No Código Eleitoral, encontramos os arts. 323 (divulgação de fatos inverídicos), 324 (calúnia), 325 (difamação), 326 (injúria), 331 (inutilizar, alterar, ou perturbar meio de propaganda), 332 (impedimento da propaganda eleitoral legítima), 334 (utilizar atividade comercial para fins de propaganda), 335 (fazer propaganda em língua estrangeira) e 337 (ato de propaganda com a participação de estrangeiros desprovido de direitos políticos). Na Lei 9.504/97, encontramos os arts. 39, §5º, I e II (uso de alto-falantes e amplificadores de som, promoção de comício ou carreata e distribuição de material de propaganda) e 40 (utilização na propaganda de símbolos, frases ou imagens, associadas ou semelhantes às empregadas por órgão governamental ou entidade da Administração Indireta). Não esquecer que as determinações dos magistrados eleitorais sobre propaganda, caso descumpridas, caracterizam, em tese, o crime de desobediência, tipificado no art. 347 do CE. Considerando-se a influência que a propaganda poderá induzir no eleitorado, graves infringências no seu exercício poderão conduzir ao reconhecimento de abuso de poder econômico, conforme já salientara a jurisprudência64, a ser reconhecido em investigação judicial, a qual, se julgada antes do pleito, poderá implicar na cassação do registro e na inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos três anos seguintes (art. 22, LC 64/90). Caso a investigação judicial venha a ser julgada após a eleição, cabível, para fins de declaração da perda do mandato, o uso da ação de impugnação prevista no art. 14, §10º, da CF. 62 Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 918 - BA, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJU de 14-08-98, p. 54; Embargos de Declaração no Recurso Especial Eleitoral 15.143, rel. Min. EDUARDO ALCKMIN, DJU de 18-08-98, p. 61. 63 Recurso Especial Eleitoral 15.233 - BA, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJU de 25-09-98, p. 70. 64 Recurso Ordinário 11.925 - RO, ac. un., rel. Min. TORQUATO LORENA JARDIM, DJU de 29-03-96, p. 6.428; Recurso Ordinário 12.394 - RS, mv, rel. Min. TORQUATO LORENA JARDIM, DJU de 01-03-96, p. 5.084. 254 instituição toledo de ensino XII. PALAVRAS FINAIS Esperamos haver obtido nosso intento, no sentido de assentar a possibilidade do Estado, através de lei, limitar a liberdade de expressão em prol da igualdade dos embates eleitorais, com a exposição das situações em que tal é permitido, diante da Lei 9.504/97, juntamente com as conseqüências que a violação poderá acarretar aos beneficiários da propaganda eleitoral irregular. Sugere-se, como bússola para o intérprete dos comandos legais, a observância dos postulados da legalidade e da proporcionalidade. BIBLIOGRAFIA AYALA, Bernardo Diniz. O direito de antena eleitoral. In: MIRANDA, Jorge. 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Rio de Janeiro: Editora Forense, 1974. RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral. 2 ed. São Paulo: Forense, 1986. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais da Administração Pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. RODRIGUES, Lêda Boechat. A Côrte Suprema e o Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958. SANTOS, Ernane Fidélis dos. Manual de Direito Processual Civil. v. 2. São Paulo: Editora Saraiva, 1986. SCHWARTZ, Bernard. Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1966. a evolução do comércio internacional: reflexões sobre o protecionismo regulatório Danielle Annoni Pofessora do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC INTRODUÇÃO O presente ensaio visa tão-somente a refletir sobre algumas questões pontuais relativas ao comércio internacional, sua evolução teórica e as principais instituições, surgidas em meados do século XX, com vistas a sua regulamentação. Trata-se, pois, de um estudo que não teve a pretensão de se enveredar à discussão das questões do imperialismo na “velha” e “nova” ordem econômica mundial, nem, contudo, de analisar se o papel da Organização Mundial do Comércio, na economia internacional vigente, reproduz esta forma de dominação e dependência. O objetivo aqui pretendido pauta-se simplesmente em apontar à reflexão do comércio internacional, tendo por base algumas noções sobre conceitos, teorias clássicas, e a evolução histórica das instituições - GATT/OMC - e sua relevância na liberação e regulamentação dos mercados mundiais pós Segunda Guerra Mundial. 1. AS TEORIAS CLÁSSICAS DO COMÉRCIO INTERNACIONAL A reflexão sobre a evolução do comércio internacional passa por questionamentos sobre a necessidade de uma teoria internacional do comércio e suas implicações, econômicas, políticas e sociais quanto às transações, internas e externas, entre os mercados nacionais. Os debates sobre o livre comércio não são recentes. Em verdade, precedem aos séculos XVII e XVIII, quando os mercantilistas, originários da escola britânica, 258 instituição toledo de ensino passaram a defender uma política fechada de regulamentação do comércio internacional sob duas condições principais: 1) a manutenção de uma balança comercial favorável, que se daria por meio de uma política agressiva, quanto às exportações e restritiva, quanto às importações; 2) o incentivo de uma política de produção de manufaturados com matérias-primas nacionais, ao invés da importação de mercadorias manufaturas. Estas duas teses centrais da teoria mercantilista para o comércio internacional foram duramente atacadas no século XVIII. O primeiro argumento foi combatido por David Hume que demonstrou, em 1752, que a concentração de ouro e prata poderia ter efeito diverso, acarretando um desequilíbrio na balança de pagamentos. Isto porque, explica, se um país busca o excesso monetário, os preços domésticos tendem a aumentar os preços dos produtos estrangeiros, e o dinheiro escoará do país. Ao contrário, se um Estado busca a escassez monetária, os preços domésticos tendem a cair, o que atrairá capital estrangeiro até que a escassez tenha desaparecido.1 Adam Smith, com a Riqueza das Nações, em 1776, montou um vasto ataque às teorias mercantilistas, em especial ao argumento da concentração da produção em mercadorias manufaturas pelos Estados, aduzindo que as condições de ganho para os comerciantes no mercado interno aplicavam-se, igualmente, no mercado internacional.2 Para Smith, se não faz sentido, no mercado interno, que um indivíduo produza todos os produtos que compõem a sua subsistência (alimentos, vestuário, serviços médico e dentário, etc), devendo se especializar na produção de algumas mercadorias ou serviços, de acordo com sua habilidade e custo-benefício, e adquirir dos 1 ”David Hume, in 1752, demonstrade that through the price-specie-flow mechanism, internacional trade was likely to maintain the equilibrium in the balance of payments. If a country found itself with surplus currency, domestic prices would tend to rise relative to prices of foreign commodities, and the money would flow out of the country. If a country founf itself with a shortage of currency, domestic prices would become depressed and would attract foreigh currency until the shortage had disappeared.” TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. The regulation of internacional trade, 2ª ed., London: Routners, 1999, p. 2. 2 “A economia internacional impõe outros tipos de repressão. São coisas que você não pode ignorar - são verdadeiras. Se alguém se desse ao trabalho de ler Adam Smith em vez de ficar falando sobre ele, veria como ele salientou que a política social se baseia em classes. A análise das classes está implícita. Se você estudou corretamente a cantilena na Universidade de Chicago (reduto de Milton Friedman e outros economistas de direita), você aprendeu que Adam Smith condenava o sistema mercantilista e o colonialismo por ser a favor do livre comércio. Esta é apenas uma meia verdade. A outra metade é que salientou que o sistema mercantilista e o colonialismo eram muito benéficos aos ‘comerciantes e fabricantes ... os principais arquitetos da política’, embora fossem prejudiciais ao povo da Inglaterra. “Em resumo, tratava-se de uma política baseada em classes, que funcionava para os ricos e poderosos da Inglaterra. O povo da Inglaterra pagava as despesas. Ele se opunha a isso porque era iluminista esclarecido, mas reconhecia o fato. Se você não o reconhecer, estará simplesmente fora do mundo real.” CHOMSKY, Noan. A minoria próspera e a multidão inquieta, 2ª ed., Brasília: UnB, 1997, p. 30-1. instituição toledo de ensino 259 outros o que lhe faltar, porque deveria ser diferente no mercado internacional? O comércio internacional, portanto, estaria pautado nas transações entre as diversas e diversificadas mercadorias produzidas de maneira, praticamente, exclusiva pelos Estados. “Mazzini, que encarna a filosofia liberal do nacionalismo do século dezenove, acreditava numa certa divisão de trabalho entre as nações. Cada nação teria sua tarefa especial própria, à qual suas aptidões específicas se adaptariam, e o cumprimento desta tarefa seria sua contribuição ao bem-estar da humanidade. Se todas as nações agissem segundo este espírito, a harmonia internacional prevaleceria.”3 A questão central que a teoria de Smith deixou em aberto refere-se àqueles Estados que não têm potencial para produzir nada em condições melhores (habilidade e custo-benefício) que outros Estados. Esta questão foi respondida por David Ricardo em 1817, na obra The Principles of Political Economy, onde faz referência à teoria da vantagem comparativa. Segundo esta teoria, mesmo para o Estado que não detenha uma vantagem absoluta (habilidade e custo-benefício superiores) sobre outro Estado na produção de um determinado produto, há vantagens comparativas no comércio internacional. Isto porque, este Estado que haveria de despender um custo de 100 homens na fabricação de um certo produto, pode adquiri-lo de outro Estado pelo custo de 80 homens, por exemplo, o que implica, necessariamente, em uma vantagem para o consumidor. Assim, a vantagem comparativa manifesta-se quando os ganhos para os consumidores nacionais, com o comércio internacional, são maiores do que as perdas dos produtores nacionais, no mesmo sistema. Ou vice-versa, em se tratando dos produtores.4 Estabeleceu-se, assim, nas relações econômicas o pressuposto da harmonia geral de interesses, com reflexos diretos da doutrina cardeal do laissez-faire na economia. Ao liberal do século dezenove, falar em vantagem comparativa significava falar sobre o maior bem para o maior número, tacitamente presumindo-se que o bem da minoria deveria ser sacrificado em prol da maioria. 3 CARR, Edward Hallet. Vinte anos de crise: 1919-1939, Brasília: UnB, 1981, p. 55. “As a matter of simple economic theory, the gains to domestic consumers from foreigh trade will almost always be greater than the additional gains to domestic producers from purely domestic trade. This is so because higher domestic than foreigh prices will entail a tranfer of resources from domestic consumers to domestic producers (arguably creating matching decreases and increases in welfare), but in addition some domestic consumers will be priced out of market by the higher domestic prices and will forced to allocate their resources to less preferred consumption choises, entailing a dead-weight social loss.” TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. Op. cit., p. 4. 4 260 instituição toledo de ensino Análises subseqüentes da teoria de Ricardo resultaram na hipótese da proporção do fator, segundo a qual os Estados tenderiam a adotar a vantagem comparativa, preferencialmente, na produção de mercadorias que utilizasse os seus agentes mais abundantes de forma mais intensa. E, cada país, acabaria por exportar as mercadorias produzidas com seus componentes mais abundantes em troca da importação de mercadorias produzidas com agentes que fossem escassos ao Estado. Esta hipótese peca, contudo, ao assumir que todos os Estados tenham acesso idêntico às tecnologias de produção. Análises mais profundas da teoria de Ricardo concluíram que a vantagem comparativa é uma noção muito mais dinâmica do que a explicada pela hipótese sueca, estritamente ligada às alterações das políticas governamentais de cada Estado. Assim, os Estados, ao se reportarem ao comércio internacional, levavam em consideração algumas condicionantes relevantes à liberdade comercial, como a existência ou não de reciprocidade, da tarifa ótima5, da proteção à indústria nascente, do comércio estratégico6, do sistema tributário favorável, da segurança nacional7, do impacto das políticas sociais8, do impacto da diversidade cultural9 e do impacto sobre a soberania e autonomia estatal. A teoria da escolha pública tem se mostrado, contudo, a mais próxima da realidade do comércio internacional. Nas últimas três décadas, economistas têm se interessado cada vez mais pelo estudo do processo político, suas implicações positivas e negativas na esfera econômica. A maior dificuldade teórica tem sido no conciliar dos interesses do produtores domésticos, que sempre hão de primar pelo protecionismo dos seus mercados, 5 Por esta teoria, Estados que detêm uma grande e significativa proporção da aquisição de determinado produto, poderiam aumentar suas tarifas de importação, sem contudo ver majorado o custo final do produto para o consumidor nacional. Isto porque, o produtor, não tendo para quem vender suas mercadorias, ver-se-ia na condição de assumir este custo, reduzindo o valor do produto, de modo que o preço final ao consumidor manter-se-ia igual. TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. Op. cit., p. 9. 6 A teoria do comércio estratégico é uma variável contemporânea da teoria da proteção à indústria nacional. Busca garantir igualdade nas condições comerciais, argumentado a importância de regras sobre os investimentos em pesquisa e subsídios, formação de grupos, cartéis, mono e oligopólios, etc. TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. Op. cit., p. 10. 7 Esta é uma teoria de fulcro não-econômico, mas político. Quanto às importações, é usada quando um Estado pretende proteger um determinado setor nacional, relevante para a segurança do país. Quanto às exportação, é comum nos casos estratégicos de proteção contra o inimigo estrangeiro, como no caso de venda de material ou tecnologia bélicos. TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. Op. cit., p. 11. 8 O impacto das políticas sociais está estritamente ligado ao aumento ou redução dos níveis de empregos e impostos aos cidadãos nacionais do Estado afetado. TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. Op. cit., p. 12. 9 Distintos modos de vida e valores culturais ocasionam, visivelmente, efeitos na ordem econômica e no imperialismo tecnológico. “Tradicional closed societies may have preserved distinctive customs and beliefs against external influences, but only at the cost of racial, religious, and ideological intolerance, and of significant limits on individual self-development.” TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. Op. cit., p. 13. instituição toledo de ensino 261 e os interesses dos consumidores nacionais, que, em regra, são beneficiados com o comércio internacional.10 É importante notar que, classicamente, as teorias sobre o comércio internacional pautavam-se no comércio de mercadorias, e não na mobilidade de serviços, capital e pessoas, atual foco de reflexão e preocupação da OMC. 2. O PROTECIONISMO REGULATÓRIO E O DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL O protecionismo regulatório pode ser definido como qualquer custo desvantajoso imposto a empresas estrangeiras por uma política discriminatória, que visa proteger, injustificadamente, o mercado nacional de forma contrária às previstas pelas regras da OMC. Por exemplo: Uma nação pode regular seu mercado farmacêutico estabelecendo a necessidade de que todos os novos medicamentos fabricados, antes de serem vendidos, devem constar de aprovação governamental. Contudo, se os requisitos governamentais solicitados às empresas estrangeiras implicarem em um aumento injustificado de testes e análises clínicas, não solicitados às empresas nacionais, resta configurado o protecionismo regulatório. Uma disputa ainda em voga no cenário econômico internacional é o “Caso dos hormônios” entre a Comunidade Européia e os Estados Unidos, em razão da utilização, pelos americanos, de hormônios de crescimento na carne de gado, prática incomum e desagradável aos europeus.11 Os Estados Unidos alegam protecionismo regulatório por parte da Comunidade Européia, que estabeleceu que a carne importada dos Estados Unidos deve conter certificação de que está livre de hormônios, requisito dispensado aos produtores europeus. A Comunidade Européia insiste na tese de que se trata de uma questão de saúde pública, e que a razão para a política discriminatória estaria pautada na proteção de seus cidadãos, contra os possíveis riscos à saúde causados pela ingestão dos resíduos hormonais presentes na carne americana.12 10 Sobre o protecionismo regulatório, tema do próximo item, ver: SYKES, Alan. Regulatory protectionism and the law of internacional trade. The University of Chicago Law Review, Chicago: v.66, n.1, winter 1999, p. 6. 11 Ver caso na OMC: WTO, EC Measures Concerning Meat and Meat Products (Hormones), Complaint by the United States, Report of the Panel, WT/DS26/R/USA, 18.08.1997 e EC Measures Concerning Meat and Meat Products (Hormones), Report of the Appellate Body, WT/DS26/AB/R, 16.01.1998. Site: www.wto.org/wto/ddf/ep/public.html 12 A União européia alega que não está a violar nenhuma norma da OMC, estando sua prática respaldada pelo Artigo XX, “b”, do GATT, que trata das exceções gerais, assim disciplinado: “Artigo XX: Desde que essas medidas não sejam aplicadas de forma a constituir quer um meio de discriminação arbitrária ou injustificada, entre os países onde existem as mesmas condições, quer uma restrição disfarçada ao comércio internacional, disposição alguma do presente capítulo será interpretada como impedindo a adoção ou aplicação, por qualquer parte contratante, das medidas: (...) b) necessárias à proteção da saúde e da vida das pessoas e dos animais e a preservação dos vegetais.” 262 instituição toledo de ensino Os Estados Unidos, por sua vez, aludem que pesquisas recentes afastam as hipóteses de riscos à saúde pela ingestão dos hormônios da carne, estando, portanto, a Comunidade Européia a violar o Artigo XI da GATT.13 A ponto central desta discussão é que em comparação com outros instrumentos legais (subsídios, quotas e tarifas) de proteção ao comércio, o protecionismo regulatório é economicamente ineficiente, em parte, pelas mesmas razões que qualquer forma de protecionismo é ineficiente. A questão pauta-se, contudo, numa análise política. Trata-se, pois, de um caso especial de escolha pública (public choice) referente à regulamentação, onde os interesses privados de determinados atores políticos, muitas vezes, requerem uma transferência de renda ineficiente para grupos de interesses bem organizados.14 Os governos tendem a proteger sua indústria nacional contra competições externas. Taxas de importação (tarifas), restrições à quantidade de importações (quotas) e subsídios aos produtores domésticos são instrumentos comuns de proteção. Outros podem ser identificados, e, muito embora, tarifas, quotas e subsídios possam apresentar impactos similares no bem-estar social, o protecionismo regulatório, sistematicamente mais perniciosos, é mais freqüente na via marginal. O governo, buscando proteger a indústria nacional, pode instituir uma tarifa às importações, aumentando o preço do produto estrangeiro no mercado interno. A tarifa majora o preço final do produto para o consumidor. Assim, o excedente da produção doméstica tende a crescer, absorvendo o mercado que antes era ocupado pelos produtos estrangeiros, enquanto que o consumo tende a diminuir, em razão do aumento dos preços. As receitas públicas também aumentam, proporcionalmente ao aumento acarretado pela tarifa. Outra alternativa à proteção da indústria nacional é a instituição de quotas, ao invés das tarifas. As quotas tendem a restringir as importações de um determinado produto. Com a redução da oferta, e da concorrência, os preços dos produtos nacionais tendem a aumentar (o excedente de capital é retido pelos produtores internos). O impacto da instituição das quotas, para o consumidor, é equivalente ao impacto pela instituição das tarifas, apesar de não gerar receita pública alguma. A diferença, portanto, entre tarifas e quotas não se pauta no excedente de capital, mas sim em quem o captura. Um terceira opção à proteção do mercado doméstico é a instituição de subsídios, que se substancia num incentivo do governo à produção nacional, materializa13 O Artigo XI do GATT dispõe que: “1. Nenhuma parte contratante instituirá ou manterá, para a importação de um produto originário do território de outra parte contratante, ou para a exportação ou venda para a exportação de um produto destinado ao território de outra parte contratante, proibições ou restrições a não ser direitos alfandegários, impostos ou outras taxas, quer a sua aplicação seja feita por meio de contingentes, de licenças de importação ou exportação, quer por outro qualquer processo.” 14 SYKES, Alan. Regulatory protectionism and the law of internacional trade. Op. cit., p. 6. instituição toledo de ensino 263 da por meio de um pagamento igual a X por unidade da mercadoria em tese. O governo assumindo uma parte dos custos de produção faz com que os produtores nacionais possam vender seus produtos por preços mais baixos que os produtos estrangeiros, aumentando sua receita pela quantidade, a maior, de produtos vendidos. Os grandes beneficiários das altas tarifas, quotas e subsídios são os produtores domésticos, que ganham, de uma forma ou de outra, pelo excedente de capital que passam a capturar. “Perdem os consumidores dos países que praticam o subsídio e também todos os agentes econômicos globalmente, pois o ganho de bem-estar dos produtores é muito menor que a perda dos consumidores, sob qualquer aspecto.”15 O protecionismo regulatório pode aparecer como uma quarta opção à proteção da indústria nacional, e deve apresentar impactos tais como os das tarifas e quotas. Contudo, as perdas irrecuperáveis tendem a ser maiores do que as demais medidas de proteção ao mercado doméstico (pelo fomento à criação de monopólios e oligopólios, pela ausência de geração de receitas públicas, dentre outras). A diferença principal entre o protecionismo regulatório e as outras alternativas à proteção da indústria interna, é que, ao contrário dos produtores, do consumidor, ou do Estado, que apresentam ganhos nos diferentes modos de proteção à indústria doméstica, no protecionismo regulatório o excedente pode ser totalmente perdido, ou desviado.16 “Desde Ricardo, o essencial da teoria do comércio internacional demonstra que a passagem de uma situação de autarcia a uma situação de troca com o resto do mundo melhora a posição de uma economia: maior número de bens são disponíveis a um preço mais baixo.”17 Neste sentido é que o GATT, antecessor da OMC, sempre buscou pela regulamentação do comércio com vistas a reduzir as barreiras tarifárias, e, recentemente, também, as não-tarifárias. Assim, no âmbito da OMC, quotas e subsídios são, em re- 15 CALOÊTE, Emanuel malta Falcão. Agribusiness e economia brasileira, apud. BARRAL, Welber. O Brasil e a OMC: Os interesses brasileiros e as futuras negociações multilaterais, Florianópolis: Diploma Legal, 2000, p. 255-6. 16 “The government captures it as tariff revenue under the tariff option, consumers retain it under the subsidy option, and whoever holds the rights to import captures it under the quota option. Under the regulatory option, by the contrast, the surplus can be completely destroyed because of the socially wasted expenditure of t per unit of imports.” SYKES, Alan. Regulatory protectionism and the law of internacional trade. Op. cit., p. 11. 17 RAINELLI, Michel. Nova Teoria do Comércio Internacional, Bauru-SP: EDUSC, 1998, p. 58 264 instituição toledo de ensino gra, proibidos, podendo serem instituídos em casos excepcionais, devidamente dispostos. Tarifas, quotas e subsídios, portanto, não são, em geral, ilegais, desde que de acordo com as condições e para os produtos especiais previstos pela OMC. Quanto ao protecionismo regulatório, durante a Rodada Uruguai, dois grandes e relevantes acordos sobre barreiras regulatórias ao comércio foram concluídos: 1) o Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (Agreement on Technical Barriers to Trade - TBT Agreement) e, 2) o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitosanitárias (Agreement on the Applicantion of Sanitary and Phytosanitary Measures - SPM Agreement). O Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitosanitárias, parte do Acordo sobre Agricultura, concerne medidas para a proteção da saúde humana, de plantas e animais, dos perigos relativos aos produtos agrícolas.18 Em geral, contudo, o protecionismo regulatório é proibido pelas regras da OMC. As razões são evidentes: evitar o fechamento dos mercados, e suas conseqüências respectivas. No entanto, a opção pela adoção ou não das várias alternativas protetivas à indústria doméstica passa por um crivo político (public choice), como visto, e não por uma exclusiva análise econômica.19 Assim, perspectivas da escolha pública, quanto ao comércio internacional, podem ser evidenciadas com base nos interesses de seus agentes principais. Para a economia, como para a política, há três agentes importantes: 1) os consumidores; 2) os produtores; e 3) os políticos. Cada qual segue na busca pela satisfação de seus interesses, que no âmbito econômico, podem ser resumidos, respectivamente, em: 1) bem-estar econômico-social; 2) aumento dos lucros e; 3) votos.20 Uma análise econômica do mercado busca evidenciar, dentre destes parâmetros, quais as condições mais vantajosas21. A escolha pública, contudo, não segue 18 SYKES, Alan. Regulatory protectionism and the law of internacional trade. Op.cit., p. 16. A adoção do protecionismo regulatório passa, sem sombra de dúvidas, por uma decisão política voltada aos interesses de um grupo de pressão. O interessante é que os argumentos, em geral, utilizados para a defesa desta prática são extremamente altruístas, como a defesa do meio ambiente, ou a proteção aos direitos humanos. Os casos USA - Shrimps-turtles e USA -Tuna-Dolphin são bons exemplos (Estes e outros casos podem ser consultados em www.wto.org/wto/dispute/dispute.htm). 20 A busca pela satisfação de interesses privados conduz, no âmbito econômico mundial, à violação do princípio básico da OMC, qual seja, a não-discriminação. Isto implica dizer que, procurando satisfazer os interesses de um grupo ou setor, uma nação tende a criar barreiras discriminatórias à outra ou outras, dependendo do setor atingido e dos objetivos almejados. Esta barreiras freqüentemente manifestam em forma de protecionismo regulatório. Uma análise econômica do princípio da não-discriminação pode ser visto em: SCHWARTZ, Warren & SYKES, Alan. Toward a positive theory of the most favored nation obligation and its exception in the WTO/GATT System, Internacional Review of Law and Economics, New York: v. 16, n. 1, march 1996. 21 A situação teórica onde todos os agentes obtém vantagens com o processo chama-se “Ótimo de Pareto”. Trata-se de um ponto determinado, dentro de uma análise econômica específica, onde a economia cresce sem precisar prejudicar ninguém. Não há perdas absolutas. Passado este estágio, contudo, gera-se o desequilíbrio, onde vige o princípio segundo o qual um agente só pode obter ganhos reais se outro, em algum lugar da cadeia produtiva, houver de perder. SYKES, Alan. Regulatory protectionism and the law of internacional trade. Op.cit., p. 25. 19 instituição toledo de ensino 265 esta lógica, buscando os governantes sempre atender aos interesses daqueles que podem vir a atender aos seus.22 Isto explica não apenas a opção pelo Estado, muitas vezes economicamente equivocada, de um determinado instituto de proteção à sua indústria nacional (tarifas, quotas, subsídios, protecionismos regulatórios, barreiras sanitárias), como também explica o porque dos Estados, embora o queiram dos outros, são tão reticentes ao negociarem uma maior liberalização do comércio, o que implica, necessariamente, na redução destas medidas protetivas. Neste cenário, onde vige a máxima contraditória “Keynes at home, Smith abroad”, se encontra a Organização Mundial do Comércio, criada com o intuito de regulamentar o comércio internacional, com vistas a reduzir, ainda mais, os obstáculos à troca de mercadorias entre os Estados e evitar a prática predatória dos países do eixo (EUA, União Européia e Japão) sobre os demais. 3. DO GATT À OMC O cenário internacional deste final de século vê-se acirrado pelas inúmeras e constantes transformações advindas dos diferenciados processos de globalização que tomaram conta da agenda e das preocupações do empresariado em todo mundo. Destes, o processo globalizatório mais preocupante pauta-se, sem dúvida, no sistema financeiro e nas transferências simultâneas de capitais (em grande parte especulativos e desvinculados do sistema de produção) entre os Estados, o que movimenta cifras assustadoras em recursos e têm contribuído para um aumento desproporcional do volume do comércio internacional. Após a Segunda Guerra Mundial, a preocupação latente com a segurança e paz mundiais ensejou o fenômeno da colaboração entre os Estados, que no âmbito do direito internacional econômico resultou na criação das instituições de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional-FMI; Banco Mundial-BIRD e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio-GATT,).23 O Tratado Multilateral do Comércio, de 1947, conhecido como GATT-1947, tinha por objetivo a regulamentação da economia, com vistas à liberação do comér- 22 “Os economistas clássicos conceberam uma ordem econômica natural com leis próprias, independente da política, e funcionando para o maior lucro de todos quanto a autoridade política interferisse o mínimo possível em sua operação automática. Esta doutrina dominou o pensamento econômico, e, até certo ponto, a prática econômica do século dezenove.” CARR, Edward Hallet. Op.cit., p. 114. 23 A criação do FMI e BIRD deu-se em 1944, e do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) em 1947. A Organização das Nações Unidas ONU foi criada em 1945, tendo abarcado estas instituições em seu bojo, juntamente com outras já existentes, a exemplo da União Postal Internacional UPI. Sobre as Organizações Internacionais ver: SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais, 2ª ed., rev. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 266 instituição toledo de ensino cio, retraído após a crise de 1929, em caráter provisório até a criação da Organização Internacional do Comércio-OIC, prevista para o ano seguinte na Conferência de Havana. A criação da OIC, contudo, fracassou, uma vez que os EUA, na época já um dos pilares do comércio internacional, não ratificou a Carta de Havana. O GATT-1947 passou, assim, a concentrar as discussões sobre a matéria, buscando reduzir as barreiras tarifárias, por meio de rodadas de negociações periódicas, crescentes quanto ao número de Estados participantes, volume de recursos e temáticas relativas às preocupações do comércio internacional. Foram, ao todo, oito rodadas de negociações24, começando com a de Genebra, 1947, e terminado com a Rodada Uruguai, 1986-1994, que culminou, dentre os seus méritos, com a criação da Organização Mundial do Comércio-OMC, que deu início às suas atividades em 1º de janeiro de 1995. As seis primeiras rodadas de negociação, concluídas em 1967 com a Rodada Kennedy, focalizaram, prioritariamente, a redução recíproca das tarifas. Estas negociações alcançaram números surpreendentes, tendo reduzido as tarifas dos produtos manufaturados de 40% em 1947, para 5% hoje.25 A Rodada Kennedy foi a primeira a ampliar a pauta de negociações para além da discussão restrita às barreiras tarifárias ao comércio, abordando a questão das medidas antidumping. A Rodada Tóquio, da mesma forma ampliou os pontos de discussão, abordando as barreiras não-tarifárias. Mas foi sem dúvida com a Rodada Uruguai que o leque de temáticas envolvidas atingiu níveis impensáveis. “A Rodada Uruguai durou sete anos e meio ou quase o dobro do tempo inicialmente previsto, revelando a grande complexidade e o nível de tensão envolvidos. Ao final da Rodada, ficou evidente a necessidade do uso de novos instrumentos jurídicos que pudessem facilitar o processo de liberalização comercial, num momento de globalização acelerada da economia, especialmente naquelas áreas mais favoráveis aos países desenvolvidos.”26 24 A primeira foi a Rodada de Genebra, em 194, com 23 países envolvidos e 10 bilhões de dólares em recursos negociados. Seguiram-se a Rodada Annecy, 1949, 13 países; a Rodada Torquay, 1951, 38 países; a Rodada Genebra, 1956, 26 países e US$ 2,5 bilhões envolvidos; a Rodada Dillon, 1960-1961, 26 países e US$ 4,9 bilhões negociados; a Rodada Kennedy, 1964-1967, 62 países, US$ 40 bilhões; a Rodada Tóquio, 1973-79, 102 países, US$ 155 bilhões e, por fim, a Rodada Uruguai, 1986-1994, 123 países e US$ 3,7 trilhões em recursos negociados. Dados em BARRAL, Welber. De Bretton Woods a Seattle, apud BARRAL, Welber (org). O Brasil e ....p. 24. 25 Dados em TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. Op. cit., p. 21. 26 BARRAL, Welber & REIS, Geraldo Antônio dos. Globalização e o novo marco regulatório do comércio internacional: a inserção brasileira, Ensaios FEE, Porto Alegre: v. 20, n. 1, 1999, p. 185. instituição toledo de ensino 267 Os principais resultados alcançados foram: 1) a integração dos produtos agropecuários ao sistema multilateral de comércio e a redução das barreiras não tarifárias; 2) a incorporação dos produtos têxteis ao sistema, com a extinção do Acordo Multifibras de 1974; 3) o Acordo Geral sobre o Comércio e Serviços - GATS; 4) o Acordo sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio TRIPs; 5) o Acordo sobre Medidas de Investimentos Relacionadas ao ComércioTRIMs; 6) a criação da Organização Mundial do Comércio - OMC e 7) um novo sistema de solução de controvérsias. Tratou-se, sem dúvida, da mais ambiciosa das rodadas de negociações, ao congregar todos os capítulos tradicionais do GATT, inclusive questões de acesso a mercados e de política comercial em sentido amplo. Ousou-se também discutir as difíceis temáticas relativas aos setores têxteis (onde se buscou a supressão do Acordo Multifibras), além dos novos temas da propriedade intelectual, dos investimentos e dos serviços (GATS). Na área da agricultura, contudo, atuaram basicamente os grandes países exportadores, como EUA, União Européia e Canadá.27 A Rodada Uruguai, culminado com a criação da OMC, encerrou, portanto, as atividades do GATT como fórum legítimo para análise das questões envolvendo o comércio internacional, o que não implica em seu fim, mas em sua incorporação pelo novo sistema. O GATT, que funcionava por meio de rodadas de negociações, servia como um amplo foro, cujos pilares eram a cláusula da nação mais favorecida e o princípio do tratamento nacional.28 Assim, a evolução do GATT - no sentido de redução de barreiras tarifárias - se baseava, prioritariamente, no mecanismo pelo qual uma concessão feita a um dos Estados membros se estendia automaticamente aos demais Estados membros (teoria da cláusula mais favorecida). Do mesmo modo, consagrou-se a regra de que a mercadoria, uma vez interiorizada com o pagamento da tarifa negociada, não poderia sofrer discriminação, em face da mercadoria nacional (teoria do tratamento nacional). Muito embora, a pedido dos países em desenvolvimento, tenham sido criadas ainda por ocasião do GATT, exceções à aplicação do pilar fundamental, qual seja, a cláusula da nação mais favorecida, a regra continua a ser a busca pela plena igualdade de condições no comércio internacional. “Durante todo o pós-guerra, a estabilidade das relações econômico-comerciais entre os países capitalistas foi assegurada pela ade27 “Apesar de os produtos agrícolas representarem naquele ano (1990) tão-somente 10% do comércio mundial, foi nessa área que a liberalização dos mercados se revelou mais difícil, dada a proliferação de subsídios à produção e à exportação, sobretudo na Comunidade Européia e nos Estados Unidos, mas também no Canadá, no Japão e nos países nórdicos.” ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização. Porto Alegre: UFRGS, 1998, p. 136. 28 BARRAL, Welber. De Bretton Woods a Seattle, apud BARRAL, Welber (org). Op.cit., p. 23-4. 268 instituição toledo de ensino são a uma série de princípios cujos pilares são a cláusula da nação mais favorecida - NMF, a não-discriminação e a reciprocidade. Os países em desenvolvimento não poderiam, pela necessidade de industrialização, pressupor o funcionamento dessa regra em toda sua plenitude. Isto se dá pelo fato de que o equilíbrio das concessões e benefícios raramente se faz a seu favor, em virtude da natureza desbalanceada das trocas (manufaturados versus primários) entre os dois grupos de países.”29 O Artigo I do GATT30, agora parte dos acordos da OMC, proíbe o tratamento discriminatório, quanto aos encargos de importação e exportação, às partes contratantes da Organização, prevendo que a vantagem concedida à um Estado membro seja, nos mesmos termos, estendida aos demais. A política econômica de discriminação no comércio internacional tem sido estudada há décadas, em especial sobre seus possíveis efeitos positivos para o mercado mundial. SCHWARTZ & SYKES identificam, como política discriminatória, não apenas o protecionismo regulatório, mas as instituições de tarifas e subsídios, que protegem os produtores nacionais da concorrência estrangeira. E mais, com a adoção de tarifas ou subsídios sobre determinados produtos e não outros, um país pode incentivar seus consumidores a substituírem o produto taxado, ora com preço mais alto, por outra mercadoria fabricada por outro país, o que reverteria em uma maneira indireta de discriminação.31 Apesar das tentativas do GATT-OMC ao estabelecimento da igualdade entre as nações, a discriminação ainda parece ser extremamente vantajosa no cenário internacional. Os incentivos à discriminação vão desde o aumento das receitas públicas, por meio das tarifas, até a necessidade de combate à concorrência externa, com vis- 29 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Op.cit., p. 134. O Artigo I do GATT dispõe que: “Qualquer vantagem, favor, imunidade ou privilégio concedido por uma parte contratante em relação a um produto originário ou destinado a qualquer outro país, será imediata e incondicionalmente estendido ao produto similar, originário do território de cada uma das partes contratantes ou ao mesmo destinado. Este dispositivo se refere aos direitos aduaneiros e encargos de toda natureza que agravem a importação ou a exportação, ou a elas se relacionem, aos que recaiam sobre as transferências internacionais de fundos para pagamento de importações e exportações, digam respeito ao método de arrecadação desses direitos e encargos ou ao conjunto de regulamentos ou formalidades estabelecidos em conexão com a importação e exportação, bem como aos assuntos incluídos nos parágrafos 2 e 4 do Artigo III.” 31 “Such a polity would not really discriminate among countries but rather among producers, and perhaps even among different units of output from the same producer. Nevertheless, a loosely analogous form of imperfect price discrimination can be implemented such that goods from each country are changed a different tariff according to supply conditions in that country.” SCHWARTZ, Warren & SYKES, Alan. Toward a positive theory ... Op. cit., p.31. 30 instituição toledo de ensino 269 ta à proteção da indústria doméstica ou de outro Estado. O próprio sistema foi obrigado a fazer concessões, e permitir exceções a este princípio.32 Complementar ao princípio da não-discriminação encontra-se a cláusula da nação mais favorecida, disciplinada pelo o Artigo I do GATT-OMC, que como dito, estende aos demais membros da organização às vantagens concedidas a um Estado por outro. Da mesma forma que o princípio da não-discriminação, a cláusula da nação mais favorecida aponta ônus e bônus aos Estados obrigados. As vantagens pautamse nos investimentos despendidos pelos países acordantes, que não poderão vê-los desperdiçados, em razão de um novo acordo entre o país contratante e um terceiro Estado. A cláusula da nação mais favorecida evita que um novo acordo, com tarifas menores, entre o Estado contratante e um terceiro, venha a prejudicar o investidor, já que as novas condições terão de ser estendidas a todos. As desvantagens, por sua vez, centram-se nas negociações. Como todos os privilégios acordados entre dois, ou mais, Estados deverão ser estendidos a todos os membros da Organização, não há como evitar os ganhos reais dos caroneiros (free rider), que não sofrem os desgastes e concessões das negociações bilaterais, mas aproveitam todas as mercês firmadas.33 A alternativa ainda permitida pelo sistema GATT-OMC é a criação de blocos regionais, que dentre outras vantagens, minimiza os efeitos negativos do princípio da nação mais favorecida no que tange aos caroneiros. “Nos últimos anos, a integração de países formando blocos regionais com o objetivo de constituir mercados comuns, buscando a liberalização do comércio e outras vantagens exclusivas não estendidas a terceiros países, tem apresentado destacada relevância.”34 32 “Os sistemas de preferência do BENELUX, Common-wealth, União Européia e Mercosul são previstos no Artigo XXIV. Além destas, os Estados contratantes podem adotar medidas restritivas às importações quando encontrarem dificuldades na balança de pagamentos. Resta claro que a adoção destas medias tem um caráter transitório. Os países em via de desenvolvimento conseguiram, a partir de 1971, introduzir uma preferência tarifária para seus produtos. Foi a pressão exercida através da CNUCED que resultou nesta prerrogativa. Contudo, como no caso da balança de pagamentos, o Sistema de Preferências Generalizado deve ser temporário.” SEITENFUS, Ricardo. Op. cit., p. 161. Também sobre as exceções à cláusula da nação mais favorecida: SCHWARTZ, Warren & SYKES, Alan. Toward a positive theory ... Op. cit., p.45-50. 33 Sobre as vantagens e desvantagens da cláusula da nação mais favorecida ver: SCHWARTZ, Warren & SYKES, Alan. Toward a positive theory ... Op. cit., p.39-42. 34 OLIVEIRA, Odete Maria de. A OMC e a questão dos Acordos Regionais de Integração, (artigo não publicado), Florianópolis, 2000. (Material disponível aos mestrandos do Curso de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC, disciplina Organismos Internacionais). 270 instituição toledo de ensino De todo modo, as exceções permitidas pelo sistema à aplicação da cláusula da nação mais favorecida foram instituídas em caráter transitório. O objetivo ainda pauta-se no princípio da igualdade plena entre as nações no comércio internacional. Enquanto esta igualdade não é alcançada, as diferenças entre os Estados são arbitradas pelo sistema de solução de controvérsias, que ganhou maior força e efetividade com a criação da OMC. 4. O SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DA OMC Os conflitos internacionais são tão antigos quanto o próprio comércio entre as nações. A preocupação com a solução destas controvérsias de outra forma que não pela guerra intensificou-se no século XIX, após as atrocidades da 2ª Guerra Mundial e a corrida armamentista que se seguiu. Os Estados passaram a cogitar diferentes mecanismos de solução de conflitos, em especial, relativos ao comércio internacional. Neste contexto, o GATT 1947 já apresentava, nos artigos XXII e XXIII, a previsão de consultas bilaterais relativas a qualquer objeto do acordo, passando às consultas multilaterais caso não houvesse uma solução satisfatória. As partes envolvidas na disputa constituíam grupos de trabalho (working parties), buscando uma conciliação por via exclusivamente diplomática. A partir de 1952, os grupos de trabalho foram substituídos por painéis de peritos (experts), cujo relatório pendia de aprovação por unanimidade pelo Conselho de representantes do GATT, requisito este não constante do acordo.35 Motivadas por manifestações dos mais diversos países em aprimorar o sistema de solução de controvérsias do GATT 1947, foram, progressivamente, a partir das Rodadas Kennedy e Tóquio, codificadas e ampliadas as disposições relativas a este mecanismo de dissolução de conflitos. O Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias da OMC (ESC), aprovado em Marraqueche, 1994, veio a substituir todos estes diplomas. Com a criação da OMC ao final da Rodada Uruguai, a necessidade de se implementar um foro efetivo de resoluções de conflitos tornou-se imperiosa. A criação do Mecanismo de Solução de Controvérsias e do Órgão de Apelação reflete esta preocupação, tendo sido, segundo PETERSMANN, uma vitória da corrente legalista em face da diplomática, “um avanço que remete para o grau de desenvolvimento e maturação que atingiu o regime com a Rodada Uruguai e o acúmulo de cerca de 50 anos de experiência.”36 35 Do Conselho de Representantes do GATT faziam parte todos os Estados signatários, tendo direito a voto também o Estado demandado. Como a aprovação do relatório só se dava por consenso absoluto, restava a possibilidade da parte vencida bloquear a decisão do painel, o que tornava o sistema extremamente ineficiente. 36 PETERSMANN, Ernst-Ulrich. The GATT/WTO Dispute Settlement System, apud CALLIARI, Marcelo. O mecanismo de solução de controvérsias da OMC: uma análise à luz da teoria dos jogos, in MERCADANTE, Araminta de Azevedo instituição toledo de ensino 271 O processo de solução de controvérsias da OMC é o resultado da codificação e desenvolvimento progressivo do sistema do GATT. Esta é uma das alterações de procedimento trazidas pelo ESC. “A unificação de procedimentos representa a criação de um único modelo de solução de controvérsias independente da matéria tratada, solução que substitui a dispersão trazida pelos diversos códigos introduzidos pela Rodada Tóquio.”.37 Outra grande inovação do novo sistema é a inversão da regra do consenso. No sistema GATT vigorava a regra do consenso positivo. A OMC, ao contrário, adotou a regra do consenso negativo (reverse consensus), presente nos artigos 6:1, 16:4, 17:14, 21:6 e 22:6 do ESC.38 Por esta regra, o procedimento segue automaticamente todas as suas fases, a menos que exista um consenso (posição unânime em contrário) para bloqueá-lo. A grande evolução, no entanto, está centrada na criação de um Órgão de Apelação, previsto no artigo 17 do ESC. Este órgão funciona como um segundo grau de jurisdição e tem a função de analisar as apelações dos relatórios dos grupos especiais, mas somente quanto às questões de direito já tratadas pelos grupos especiais e as interpretações jurídicas por estes formuladas nos painéis. Busca evitar o não-cumprimento das obrigações pela parte vencida, sob o argumento de que o resultado do painel está errado, viciado ou incompleto.39 No procedimento previsto pelo ESC resta destacar suas principais fases, quais sejam: 1) as consultas bilaterais, já existentes no procedimento do GATT 1947; 2) processo de conciliação; 3) direito a instauração do painel, caso não tenha havido cooperação entre as partes na fase anterior; 4) direito de recurso ao Órgão de Apelação. 5) fiscalização do cumprimento do relatório aprovado pelo painel da decisão do Órgão de Apelação; 6) possibilidade de sanção ao não-cumprimento do relatório aprovado pelo Órgão de Solução de Controvérsias (OSC). & MAGALHÃES, José Carlos de (coord). Solução e Prevenção de Litígios Internacionais, Volume II, São Paulo: NECIN-Projeto CAPES; Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 400. 37 PRAZERES, Tatiana Lacerda. O sistema de solução de controvérsias. In BARRAL, Welber (org). O Brasil e a OMC...., p. 47. 38 “A regra do consenso negativo é fundamental para o fenômeno que Celso Lafer chama de ‘adensamento da juridicidade’ do sistema de solução de controvérsias da OMC, pois evita um problema bastante complexo existente nos ‘panels’ realizados no âmbito do GATT.” SILVA NETO, Orlando Celso da. O Mecanismo de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio: Análise de Caso - Contencioso Brasil e Venezuela X Estados Unidos, in MERCADANTE, Araminta de Azevedo & MAGALHÃES, José Carlos de (coord.). Solução e Prevenção de Litígios Internacionais, São Paulo: NECIN - Projeto CAPES, 1998, p. 211. 39 “The strictly legal function and expertise of the appellate body were perceived as rule-oriented substitute for the political consensus practice regarding panel reports in the GATT council, which had been increasingly abused during the last years of the Uruguay Round negotiations. The appellate review is expected to stop losing parties from claiming, as grounds of non-compliance, that the dispute settlement ruling was unfair, erroneous or incomplete because certain arguments had not been addressed.” PETERSMANN, Ernst-Ulrich. The GATT/WTO Dispute Settlement system. Apud. SILVA NETO, Orlando Celso da. Op. cit., p. 212, nota nº 40. 272 instituição toledo de ensino Celso Lafer explica este procedimento da seguinte maneira: “Na impossibilidade de uma solução negociada, assegura (a OMC) a qualquer membro um caminho jurídico que é dado pela automaticidade do direito a um panel e do direito de um recurso do relatório de um panel ao Órgão de Apelação, cabendo observar que a nova regra do consenso invertido tornou legalmente obrigatórios estes findings e recommendations. O cumprimento da decisão é monitorado multilateralmente pelos membros da OMC por meio da especialização funcional do seu Conselho Geral, que se reúne como Órgão de Solução de Controvérsias, para administrar o Entendimento de Solução de Controvérsias. O não-cumprimento das decisões é sancionável pela suspensão de concessões tarifárias. Estas sanções são disciplinadas por normas e caracterizam-se como sanções típicas do Direito Internacional de Cooperação, pois representam a não-participação do membro inadimplente nos benefícios de cooperação.”40 Muito embora o novo mecanismo de solução de controvérsias tenha inovado em pontos essenciais na busca pela efetividade de suas decisões, o regime ainda enfrenta muitas limitações para um sistema que se propõe administrar o conflito e a cooperação inerentes à vida do mercado mundial de hoje. As principais críticas levantadas pelos países em desenvolvimento pautam-se na dificuldade de acesso ao mecanismo, de sua falta de efetividade quando se trata da aplicação de sanções aos países desenvolvidos, e da necessidade de maior transparência no processo. A questão da dificuldade de acesso ao mecanismo, por parte dos países em desenvolvimento, centra-se no alto custo do processo, que envolve não apenas fatores financeiros, mas também políticos e de recursos humanos. Na sua maioria, os países menos desenvolvimento não dispõem de condições financeiras para manter, em Genebra, um quadro permanente de representação. Há, também, a carência de representantes qualificados, com conhecimento técnico-jurídico das normas e procedimentos da OMC. A assistência jurídica prevista pelo ESC, artigo 27:2, conta apenas com dois funcionários, disponíveis uma vez por semana, e que só pode ser acionada depois que os países decidirem submeter-se uma disputa à OMC. Não há assessoria anterior, consultoria ou aconselhamentos.41 40 LAFER, Celso. O impacto de um mundo em transformação no Direito Internacional Econômico: Reflexões sobre a OMC no cinqüentenário do sistema multilateral do comércio, in Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: Reflexões sobre uma experiência diplomática, São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 43-4. 41 Dados em PRAZERES, Tatiana Lacerda. Op. cit., p. 55 instituição toledo de ensino 273 Afora isto, o Estado ainda sofre as pressões políticas de submeter uma demanda à OMC contra um país desenvolvido, o que o leva, na maioria dos casos, a não o fazer. Também porque, a pouca efetividade da implementação da decisão por um país dependente, leva-o, de pronto, a assumir os danos sofridos. O caso que mais ilustra esta situação é o União Européia - Bananas42, em que EUA, Equador, Guatemala, Honduras e México são reclamantes. Vencida a União Européia, somente os Estados Unidos optaram pela retaliação. O que resta aos demais fazer? A sugestão proposta, para estes casos, foi a adoção de uma retaliação conjunta de todos os membros da OMC em favor do prejudicado. A alegação da necessidade de maior transparência do procedimento é levantada por quase todos os membros da OMC. O ponto central da discussão é a impossibilidade de particulares, empresas e organizações não-governamentais ONGs participarem do processo, ou mesmo de terem acesso às audiências, sendo obrigadas a se submeterem ao crivo governamental.43 De outra parte, contudo, alguns Estados são totalmente contrários à participação destas entidades no processo, reclamando para que o ESC torne bem claras estas proibições. Outras questões e sugestões, como a participação de advogados privados, a criação de medidas cautelares ou a flexibilização do legalismo do procedimento do ESC em prol do princípio da eqüidade, são argüidas por Estados que detém participação menos expressiva que a do Brasil no sistema de solução de conflitos da OMC. O Brasil é o sexto em número de casos na OMC. Especificamente são 15 os casos em que o país encontra-se envolvido, seis como reclamante e nove como reclamado, o que representa uma participação de 8,2% dos casos do sistema e um envolvimento de bilhões de dólares. Uma reflexão mais aprofundada sobre o tema e suas implicações torna-se, neste contexto, imprescindível para sobrevivência da economia nacional. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente ensaio buscou enfocar a evolução teórica do comércio internacional tendo por base suas teorias clássicas, conceitos e instituições. Procurou-se demonstrar que, apesar das inúmeras inovações e revoluções, industriais e tecnológicas, que muito influenciaram as revoluções ideológicas teórico-políticas, o comércio mundial continua pautado sob dois pilares fundamentais: O global e o local. Com passar do tempo, as discussões sobre as formas de protecionismo (preocupação com o mercado local e sua sustentação) e de cooperação e integração in42 Ver caso União Européia-Bananas, WT/DS27 no site da OMC: www.wto.org/wto/dispute/dispute.htm. “O fato de que apenas os Estados dispões de legal standing é bastante criticado, tanto por empresas privadas quanto por ONGs que, para terem acesso à OMC, precisam passar pelo que se convencionou chamar de ‘filtro governamental’.” PRAZERES, Tatiana Lacerda. Op. cit., p. 58 43 274 instituição toledo de ensino ternacionais (interesses voltados ao mercado global e sua manutenção) se acirram e tornam-se cada vez mais complexas. Novos elementos são introduzidos (subsídios, tarifas, quotas, salvaguardas) e novas retóricas são criadas (preocupação com a paz mundial, direitos humanos, meio ambiente) na preocupação constante pela manutenção e ampliação do status quo. Em verdade, o essencial não muda. No mundo da globalização, globalizados estão os recursos e fontes de renda. O mercado busca, para além das antigas fronteiras do Estado-nação, outros e novos meios de crescer e lucrar. No entanto, estas fronteiras invisíveis tornam-se massissas, e o velho Estado-nação empunha fortemente seu escudo de soberania, quando o trânsito mundial deixa de ser de capitais e produtos e passa a ser de pessoas e serviços. O protecionismo, regulatório ou não, não é outra coisa senão a expressão latente da dicotomia que impera neste final de século quanto à globalização-blocos regionais, mercado mundial-mercado-local. O princípio da não-discriminação e a cláusula da nação mais favorecida são mais discriminatório e exclusivistas que os objetivos que os embasam, uma vez que procuram tratar os desiguais, igualmente. Neste universo regido pela public choice, o sistema de solução de controvérsias da OMC pouco pode fazer. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização. Porto Alegre: UFRGS, 1998. BARRAL, Welber (org). O Brasil e a OMC: Os interesses brasileiros e as futuras negociações multilaterais, Florianópolis: Diploma Legal, 2000. BARRAL, Welber & REIS, Geraldo Antônio dos. Globalização e o novo marco regulatório do comércio internacional: a inserção brasileira, Ensaios FEE, Porto Alegre: v.20, n.1, 1999. CARR, Edward Hallet. Vinte anos de crise: 1919-1939, Brasília: UnB, 1981. CHOMSKY, Noan. A minoria próspera e a multidão inquieta, 2ª ed., Brasília: UnB, 1997. LAFER, Celso. Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: Reflexões sobre uma experiência diplomática, São Paulo: Paz e Terra, 1999. MERCADANTE, Araminta de Azevedo & MAGALHÃES, José Carlos de (coord). Solução e Prevenção de Litígios Internacionais, São Paulo: NECIN-Projeto CAPES; 1998. ________. Solução e Prevenção de Litígios Internacionais, Volume II, São Paulo: NECIN-Projeto CAPES; Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. OLIVEIRA, Odete Maria de. A OMC e a questão dos Acordos Regionais de Integração, Florianópolis, 2000. (no prelo) RAINELLI, Michel. Nova Teoria do Comércio Internacional, Bauru-SP: EDUSC, 1998. instituição toledo de ensino 275 SEITENFUS, Ricardo. Manual das Organizações Internacionais, 2ª ed., rev. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. SCHWARTZ, Warren & SYKES, Alan. Toward a positive theory of the most favored nation obligation and its exception in the WTO/GATT System, Internacional Review of Law and Economics, New York: v. 16, n. 1, march 1996. SYKES, Alan. Regulatory protectionism and the law of internacional trade. The University of Chicago Law Review, Chicago: v.66, n.1, winter 1999. TREBILCOCK, Michael & HOWSE, Robert. The regulation of internacional trade, 2ª ed., London: Routners, 1999. o enriquecimento sem causa na justiça do trabalho José Jorge Costa Jacintho Advogado, mestre em Direito no Programa do Centro de Pós-Graduação da ITE "...Perseu tinha um capacete que o tornava invisível, para perseguir os monstros. Nós, de nossa parte, nos embuçamos com nosso capuz mágico, tapando nossos olhos e nossos ouvidos, para poder negar as monstruosidades existentes...” (MARX, KARL - Prefácio da 1ª edição de O Capital). INTRODUÇÃO Durante dez anos de militância na Justiça do Trabalho e junto a entidade sindical, percebemos que, na maioria das vezes, os contratos de trabalho ou não são respeitados ou tornam-se onerosos para o trabalhador desequilibrando-o em suas prestações. A proximidade do contratado com o contratante aliada à sua infinita inferioridade econômica e o conseqüente temor do desemprego faz com que aquele se submeta a este, deixando de reclamar direitos assegurados pelas leis trabalhistas os quais, na maioria das vezes, são fulminados pela prescrição, ainda na vigência do pacto uma vez que não foram reclamados no qüinqüênio1; outros passam a desempenhar diversas atividades não contratadas, sem qualquer remuneração e ainda, dispendem valores para a execução da tarefa para a qual foi contratado2. O 1 CF, letra “a” e “b” do inciso XXIV do artigo 7º. Caso comum é o dos viajantes e dos técnicos de segurança do trabalho. 2 278 instituição toledo de ensino empresário, ávido por lucro, buscando maior trabalho com menos despesas com salários (MARX)3, é compelido a tirar o máximo do trabalhador, descuidando até mesmo das condições de segurança, deixa de dispender economizando para os seus cofres. Em outros ramos do direito, com o advento da prescrição, perde-se apenas o direito de ação específica (ARNOLD)4, encontrando na ação de locupletamento o último refúgio a suas pretensões. Para o trabalhador, empregado assalariado, o pacto laboral, já no início, oferece real desvantagem, haja vista que seu trabalho torna-se menos oneroso ao patrão que o escravo, para o seu senhor. É que no trabalho assalariado o operário sempre adianta sua prestação para receber sua contraprestação muito tempo depois. A única vantagem do assalariado é a "igualdade" e "liberdade" preconizada pelo Direito, que o permite vender apenas parte de seu patrimônio - força de trabalho - (SUSSEQÜID)5, as quais devem ser protegidas sob pena de colocar em risco o próprio sistema legal e premiar o enriquecimento injustificado. Sabemos que, pela sua inferioridade econômica, esta "igualdade" e "liberdade" são apenas ideais, divergindo flagrantemente da realidade. Situação esta agravada com a nova ordem Neoliberal. A importação de diversos modos de administração os quais buscam privilegiar o trabalho polivalente e qualificado enquanto que leva ao desemprego aqueles outros sem qualificação, ou com apenas uma, esquecendo-se da legislação nacional, agravando ainda mais o desequilíbrio contratual. A jurisprudência tem firmado entendimento pela impossibilidade de cobrança das verbas fulminadas pela prescrição e que no exercício de duas ou mais funções, na mesma jornada de trabalho não há direito ao recebimento de dois ou mais salários. Para dar maior proximidade a estes postulados, a nova doutrina sobre contratos traz formas de limitação à liberdade do mais forte, doutrina esta de há muito adotada - teoricamente - no direito do Trabalho e Previdenciário e, agora, no direito civil, mais precisamente nos direitos do consumidor. Buscando resolver esta questão, pensamos na ação de locupletamento ou de enriquecimento injustificado e/ou ilícito, aplicável na Justiça especializada para garantir o 3 MARX, Karl. SANT’ANNA (TRAD). O Capital, libro 1, vol. 1. Bertrand Brasil, 12ª edição. Onde o autor analisa o processo de produção do capital e a mais valia no processo e jornada de trabalho. 4 ARNOLD, Paulo Roberto Colombo. Ação de Enriquecimento sem causa no Direito Cambial. São Paulo: LEUD: 1987. O autor defende a aplicação da ação de enriquecimento sem causa no Direito Cambial, muito embora dê-lhe natureza civil. 5 SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio e VIANNA, Segadas, Instituições de Direito do Trabalho, 11a. Edição, São Paulo: LTR, 1991. instituição toledo de ensino 279 equilíbrio nas relações contratuais trabalhistas e, principalmente, para evitar ofensa aos princípios de: não lesar ninguém e dar a cada um o que é seu, através de indenização do serviço prestado, da vantagem patrimonial obtida. Pretendemos, no desenvolvimento, primeiramente demonstrar a existência e a viabilidade de referida ação no Direito Obreiro através da análise do locupletamento e dos elementos caracterizadores da hipótese injustificado, injusto ou sem justa causa e/ou ilícito, fazendo breve histórico das relações de trabalho; analisar perfunctoriamente a ação de enriquecimento injustificado, sua natureza jurídica, prescrição, procedimento e foro competente, trazendo à colação casos concretos para discussão, buscando evidenciar a impotência do direito numa visão exclusivamente idealista, para a diminuição das desigualdades e diminuição da exploração daqueles que não possuem os meios de produção tendo que alienar sua força de trabalho. Pensamos, portanto, ser a ação de locupletamento ou de enriquecimento sem causa ou ilícito aplicável na Justiça especializada para garantir o equilíbrio nas relações contratuais e, principalmente, evitando ofensa aos princípios de: não lesar ninguém e dar a cada um o que é seu por uma ordem jurídica justa e garantia de efetivo acesso à justiça. 1. O ENRIQUECIMENTO Segundo Aurélio6: 1. tornar rico ou opulento; dar riqueza. 2. Aumentar, desenvolver, melhorar. 3. Aformosear, ornar , ornamentar, abrilhantar. 4. Tornar-se rico ou opulento (conjug.: v. aquecer) § Enriquecido, adj. enriquecimento. S.m.. Num mundo voltado para o capitalismo, não há nada de ilegal no enriquecimento de alguém, mesmo que, para isto, outrem tenha seu patrimônio empobrecido, porém tal enriquecimento deve possuir causa justa e estar apoiado em atividade lícita. A lógica do capital é a mais valia, por conseqüência, deve o capitalista buscar maior rendimento possível, mesmo na exploração do trabalho humano ou sucumbirá, no entanto, obedecendo os limites legalmente impostos pelo sistema jurídico. Em se tratando de relações de trabalho, bem ou mal, há garantias para a proteção do economicamente mais frágil, na Constituição Federal7 e na Consolidação das Leis do Trabalho. 6 FERREIRA HOLANDA, Aurélio Buarque de. Dicionário da língua Portuguesa – Médio dicionário Aurélio. Nova Fronteira: 1980. 7 Exemplo, artigos 6º,7º e 8º da Constituição Federal. instituição toledo de ensino 280 Assim, interessa-nos não o enriquecimento com causa justa, porém aquele que extrapole os limites legais ou que não a tenha. Juridicamente, esclarece Plácido e Silva8 “O enriquecimento não se opera simplesmente pelo aumento material do patrimônio de uma pessoa. Também ocorre pela aquisição de vantagem, mesmo que não importe em aumento patrimonial”. Desta forma, há duas espécies de enriquecimento que merece nossa atenção neste trabalho: o sem causa e o e o ilícito (contrário a direito) aos quais Pontes de Miranda prefere chamar de injustificado por entender mais amplo o termo9. No ordenamento Pátrio, a base legal para a ação de enriquecimento estão no artigo 159, 160, 255 e 964 do Código Civil10, no Direito Cambiário, artigo 48 do Decreto 2.044/1908, Decreto 57.663/66, Lei Uniforme de Genebra e artigo 61 da Lei 7457/85, do cheque11. Tem por fundamento principal a justiça comutativa12, dar a cada um o que é seu. 1.1. O enriquecimento injustificado Pontes de Miranda13 prefere o termo enriquecimento injustificado ao sem causa, por entender ser o primeiro mais amplo que o segundo, alertando, portanto, que o fato jurídico é o injustificável, podendo adentrar o suporte fático tanto ato humano como fatos simplesmente naturais. O Mestre, na página 125, alinhava o suporte fático do enriquecimento injustificado e o faz da seguinte forma: A) PREJUDICADO VOLENTE.- Se no suporte fático do enriquecimento houve vontade do prejudicado, esse, pois que quis, deu justificação ao enriquecimento de outrem. Entende ser esta causa insuficiente, ineficaz por si só, nas relações de trabalho, principalmente hoje, há vários trabalhadores enriquecendo o patrimônio do capitalista tão-só para manter o alimento para si e os seus. B) PREJUDICADO NÃO VOLENTE.- Se no suporte fático do enriquecimento não houve vontade do prejudicado, ou porque tenha havido ato de terceiro, ou porque só tenha havido ato do enriquecido, o enriquecimento é injustificado. C) Se no suporte fático do 8 SILVA, De Plácido, Vocabulário Jurídico, vol. I e II, Forense, p.172. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, tomo XXVI, 2a. edição, Borsoi, 1959, pág. 119. 10 Código Civil: indenização por ato ilícito, enriquecimento do conjuge e pagamento indevido. 11 ARNOLD, Paulo Roberto Colombo. Ação de Enriquecimento sem causa no direito Cambial. São Paulo: LEUD, 1987, p. 75 a 84. 12 MIRANDA, Pontes. Pág. 120. 13 Op. Cit. 9 instituição toledo de ensino 281 enriquecimento não há ato, mas há fato stricto sensu, ou ato-fato de alguém, há enriquecimento injustificado: a) se o fato stricto sensu ou o ato-fato enriquece a um, e diminui a esfera econômica de outro, sem que a lei o tivesse estabelecido com tal fim (e.g., se, ao cessar a comunhão matrimonial de bens, os bens particulares de um dos cônjuges se enriquecerem a expensas dos bens comuns, ou a expensas dos bens particulares do outro cônjuge, cabe a condictio;....b) se se trata de ato-fato do próprio prejudicado, isto é, ato-fato que se há de tratar como fato: (e.g.: A põe a pastar em suas terras o gado de B, crendo que é seu; A manda reparar a canalização alheia crendo que é sua”. CARVALHO SANTOS14, ao tratar do pagamento indevido, ensina que, analisando o artigo 964, leciona, fincado no entendimento de CUNHA GONÇALVES, que o enriquecimento sem causa tem por fundamento os princípios clássicos da Justiça e do Direito, quais sejam: sum cuique tribuere, (dar a cada um o que é seu) e neminen laedere (não lesar ninguém). Acrescenta afirmando que pode o enriquecimento nascer tanto de um fato lícito como de um ilícito que provoca uma lesão ao patrimônio alheio devendo ser restituído ou indenizado, sob pena de cometer o devedor um ilícito, ... "é apropriar-se uma pessoa do que, de direito, não lhe pertence, ou aproveitar-se do sacrifício, do trabalho, ou do dano de outrem, contra a vontade deste, que de nenhum modo pretendeu beneficiar o locupletador” (obr. cit., número 607, in fine). após afirmar que os princípios de Justiça e de Direito supramencionados nada mais traduzem do que regras de eqüidade, pugna pela admissão geral, ... "como sanção da regra de eqüidade de que não é permitido a ninguém enriquecer injustamente a custa de outrem.", (op. cit. p. 377 a 390). “... o corolário natural será a restituição ou a indenização do valor ou da coisa que se adquiriu injustamente ou sem causa, o que se consegue por meio da ação própria de in rem verso, também denominada de locupletamento." (op. cit. p. 389/390). 14 CARVALHO SANTOS, J. M.. Código Civil Brasileiro Interpretado, 10ª edição, São Paulo: Freitas Bastos, 1977, p. 376 a 406. 282 instituição toledo de ensino "... Desde logo se percebe nessa doutrina uma restrição que não traduz a verdade. Realmente, a transmissão injustificada de certos elementos de um patrimônio a outro não é o traço característico do enriquecimento à custa alheia, de vez que é certo que este se pode verificar mesmo sem que transmissão alguma patrimonial se tenha verificado, como nas prestações de fato, ou quando alguém evita uma perda ou dano iminente, e até quando fornece uma valiosa informação, ou produz um benefício moral, embora com valor pecuniário; podendo também consistir numa valorização resultante de obras alheias, ou em prejuízo causado em coisa própria para salvar uma coisa alheia ou vice versa, num prejuízo involuntário em coisa alheia para salvar coisa própria” (CUNHA GONÇALVES, obr. cit., n. 607; DEMOGUE, obr. cit., vol. 3º, n. 150; BAUDRY-BARDE, obr. cit., volume 4º, n. 2.849; GIORGI, obr. cit., vol. 6º, n. 11). Qualquer proveito, ensina GIORGI, seja aumento de patrimônio, seja o evitar despesas ou perdas, constitui locupletamento no significado da palavra (obr. e loc. cits.), Na opinião de outros tratadistas, o princípio que veda o enriquecimento sem causa melhor se justifica com o conceito de "equilíbrio dos patrimônios" , ou de "segurança estática das fortunas", equilíbrio ou segurança que se rompe logo que se opera um deslocamento de valores, sem haver uma força-causa, ou energia criadora, que o justifique, ou que seja a contrapartida do empobrecimento de um dos interessados (DEMOGUE, obr. cit., n. 161; obr. cit., n. 23) ." p. 379 /380. As condições para a pretensão do enriquecimento sem causa elenca: 2 - Condições necessárias para se verificar o enriquecimento sem causa. Quatro são esses requisitos essenciais para se verificar o enriquecimento sem causa: a) o locupletamento; b) o empobrecimento correlativo da outra parte; c) a falta de justa causa; d) relação de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento. ...É bastante que tenham sido evitadas despesas ou a perda de determinada coisa, o que vale dizer que o enriquecimento pode consistir em não ter desfalcado o patrimônio. ..."p. 383. A nova teoria dos contratos acalenta, mesmo no cível, o princípio do “in dubio pro misero”, invertendo-se o ônus da prova em diversos momentos e, ainda, considerando nulas as cláusula abusivas impostas unilateralmente por uma das partes, face ao poder econômico. instituição toledo de ensino 283 CLAUDIA LIMA MARQUES15 - Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, 1995, 478 páginas, no capítulo 4, Proteção do Consumidor quando da Execução do Contrato, item 1.1, interpretação pro-consumidor. visão geral, ensina “...O primeiro instrumento para assegurar a eqüidade, a justiça contratual, mesmo em face dos métodos unilaterais de contratação em massa, é a interpretação judicial do contrato em seu favor. Inspirado no art. 1.370 do código civil Italiano de 1942, o CDC, em seu art. 47, institui como princípio geral a interpretação pro consumidor das cláusulas contratuais Segunda a regra tradicional do art. 85 do código civil, nas declarações de vontade deveria se "atender mais à sua intenção que ao sentido literal de sua linguagem", portando, sob pretexto de "procurar" a vontade "real", interna do aderente ao contrato, a jurisprudência brasileira foi evoluindo no sentido de interpretar cada vez mais positivamente para o consumidor as cláusulas dos contratos de adesão, principalmente em caso de dúvida ou lacuna do contrato. "(...)"a falar-se em presunção, mais curial é que milhe ela a favor de quem mais perde que ganha e não quem mais ganha que perde. ... "(...)" O direito opta por proteger o consumidor como parte contratual mais débil, a proteger suas expectativas legítimas, nascidas da confiança no vínculo contratual e na proteção do direito....” "...Citando os ensinamentos de Aliomar Baleeiro e Prado Kelly, o Min. Sálvio de Figueiredo ressalva o necessário efeito útil (e renovador) das normas, afirmando: "denega-se a vigência da lei não só quando se diz que não está em vigor, mas também quando se decide em sentido diametralmente oposto ao que nela está expresso e claro." ...." Portanto, hodiernamente, devemos levar em conta na análise da vontade, condição mais duvidosa apresentada por Pontes de Miranda e, considerando sempre, principalmente no caso em estudo, que é indiferente tenha havido modificação material no patrimônio das partes. 15 MARQUES, CLAUDIA LIMA. - Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 2ª edição, São Paulo: RT, 1995, no capítulo 4, Proteção do Consumidor quando da Execução do Contrato, item 1.1, interpretação pro-consumidor. visão geral. instituição toledo de ensino 284 2. AS RELAÇÕES DE TRABALHO É velho o fato de que o trabalhador, parte mais frágil nas relações de trabalho, torna-se presa fácil aos maus empresários capitalistas. Muito embora defenda-se no mundo capitalista a presença do lucro, da mais valia, necessário observar e punir os abusos freqüentemente cometidos na prática laboral. No trabalho escravo, além da parcela que o senhor desembolsa para o traficante, tem ele que pagar parte do trabalho do escravo, diariamente, adiantando, assim, a parcela da contraprestação já que lhe era fornecida alimentação, habitação etc., (GORENDER)16; enquanto que o assalariado adianta a prestação de serviços para o patrão, recebendo sua contraprestação 30 (trinta) a 40 (quarenta) dias após. Diante da debilidade do trabalhador, doutrinados do nível de TEIXEIRA FILHO17, vem assim se expressando: 16 GORENDER, JACOB. na obra O Escravismo Colonial, Ensaios 29, São Paulo: Ática, 1978, p. 174 e 175, esclarece "... É evidente que o sustento do escravo não representa dispêndio análogo à inversão inicial, uma vez que não resulta de um adiantamento, mas do próprio trabalho do escravo. Este se sustenta com uma parte do que ele próprio produz durante a jornada de trabalho, isto é, com o tempo de trabalho necessário à reprodução da sua força de trabalho desgastada no processo de produção. Qualquer que seja sua consciência do fenômeno, o escravista está obrigado a ceder ao escravo uma parte do tempo de trabalho deste último, sob pena de perder o escravo e impossibilitar a continuidade da produção. Proprietário da totalidade da força de trabalho do escravo, em hipótese alguma consegue o escravista esquivarse da necessidade de dispender uma parte dela no sustento do escravo. Só o excedente acima do trabalho necessário, ou seja, só o sobretrabalho do escravo é que se tornava apropriável pelo escravista. O trabalho escravo engendra uma aparência fenomenal diversa daquela derivada do trabalho assalariado. No mundo das aparências, o salário retribui todo o trabalho do operário, quando, na realidade, corresponde apenas ao trabalho necessário, ao passo que o sobretrabalho, cristalizado na mais-valia, é apropriado pelo capitalista sem restrição. Com o trabalho escravo parece o contrário: todo ele se manifesta sob o revestimento fenomenal de trabalho não-retribuído, de trabalho não pago. A relação de propriedade, escreveu Marx, dissimula aqui o trabalho do escravo para si mesmo e dá a idéia de que o trabalho do escravo é totalmente gratuito para o seu proprietário. Não só escravistas, mas também adversários do escravismo se deixaram enganar por semelhante aparência. Aristóteles, pelo contrário, afirmou"...o salário de um escravo é constituído pela alimentação...", sendo indispensável fornecer ao escravo alimentação suficiente para que não perca sua força. Temos, assim, dois dispêndios do escravista inteiramente distintos: o do preço de compra do escravo e do seu sustento. O preço de compra não é pago a este, porém, ao seu vendedor, personagem que nenhuma relação entretém com o processo de produção. O traficante embolsa a soma pela qual vendeu o escravo e desaparece com ela. O comprador do escravo diminui sua fortuna em dinheiro no montante correspondente ao preço de compra e se vê face a face com o escravo que se tornou sua propriedade. De direito, é proprietário também de toda a produção que o escravo venha a realizar. Na prática, o uso da força de trabalho do escravo implica a cessão em favor dele de uma parte da sua produção. Do ponto de vista do senhor do escravo, trata-se de um dispêndio. Enquanto, porém, o primeiro dispêndio - o do preço de compra - se deu fora do processo de produção, o segundo - o do sustento do escravo - se dá dentro dele. ...." 17 TEIXEIRA FILHO, MANOEL ANTÔNIO. A Sentença no processo do trabalho, 2a. edição, São Paulo: LTR: 1996, p.128/134. instituição toledo de ensino 285 "...Em rigor, não somente uma espécie de inferioridade, mas várias; ou, segundo se preferir, uma inferioridade que se reflete em diversos aspectos ou setores de sua vida cotidiana ou de sua atividade no processo. A primeira delas é a econômica, da qual de certa forma várias derivam. A segunda manifestação da inferioridade do trabalhador é de natureza técnica, pois respeita à produção de provas. ....Um critério adminicular poderia ser o do in dubio pro misero, a ser utilizado no exame e na valoração da prova ..." Poder-se-ia pensar em outras inferioridades do trabalhador, como a volitiva, segundo a qual ele não tem condições de manifestar a sua vontade com a mesma liberdade de que dispõe o empregador, mormente quando o contrato de trabalho ainda está a viger, porquanto o temor de perder o emprego, também aqui, é concreto e real. ..." MARTINEZ18 cuidando dos princípios interpretativos menciona no item 122 Princípio do in dubio pro misero "...face a 3ª conclusão a que chegou o IV Congresso Ibero-americano de Direito do Trabalho e Previdência Social: "O princípio in dubio pro operario incide no processo trabalhista, quando no espírito do julgador não existe uma convicção absoluta da análise das provas produzidas.” A dúvida residia se era aplicável apenas na interpretação de leis excluindo as provas. Pacífico que na relação entre capital e trabalho existe um contrato onde o trabalhador vende, aliena, sua força em troca de salário como contraprestação. Com este, cumpre ou deveria cumprir os preceitos instituídos da Constituição Federal19 e Consolidação das Leis do Trabalho20. Porém, ao que se vê no dia-a-dia, o capital ganha na relação de explorar e aumentar a mais valia. Não bastasse isto, agora temos a globalização da economia e, para tornar o país mais atraente ao capital internacional necessário que a mão de obra seja mais 18 MARTINEZ, Wladimir. Princípios de Direito Previdenciário. 2a. edição, São Paulo: LTR, 1985, p. 198/219. Artigo 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social: IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades básicas e de suas famílias como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim. 20 Salário-mínimo é a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, e capaz de satisfazer, (...) as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte. 19 286 instituição toledo de ensino barata do que vinha sendo praticada pelos empresários nacionais. Querem agora trabalhadores polivalentes, quais sejam, que coloquem à disposição do empregador toda a sua força de trabalho. JOSÉ EDUARDO FARIA21, em matéria veiculada no "O Estado de São Paulo", 23/08/96, página A-2, relata a crescente onda de desemprego, em nome de maior produtividade e a tendência das empresas da exigência de empregados com múltiplas qualificações, “....Na nova ordem econômica mundial em que o mercado de trabalho é o único que não está globalizado, quem não for eficiente, simplesmente, desaparece. Em linguagem direta, quem não for motoniveladora é estrada. ... "a estrutura formal do mercado de trabalho está assumindo a forma de uma ampulheta. A base é formada por contingentes expressivos de operários semiqualificados ou monoqualificados, cuja habilitação profissional foi sucateada com as novas tecnologias. A cúpula é integrada por uma quantidade cada vez mais restrita de mão-de-obra poliqualificada, apta a desenvolver múltiplas tarefas simultaneamente e ganhando por produtividade, o que liquida a padronização dos contratos trabalhistas. E o meio é ocupado por operários que estarão expulsos do mercado de trabalho com os próximos avanços tecnológicos. .... E muitas vezes, em posição de desvantagens. É por isso que os trabalhadores hoje estão atônitos, perplexos. A ocupação do Ministério da Fazenda, em São Paulo, por desempregados foi uma atitude violenta, irracional e até certo ponto inócua, não há dúvida. Mas ela tem um lado simbólico, revelando o desespero de quem, situado na estrada, viu chegar a motoniveladora." Enquanto isso, o capital cresce como podemos observar de notícias veiculadas no mesmo periódico: " o lucro médio de grandes empresas aumentou 90%, entre elas a indústria do papel."22 “o lucro do Bamerindus chega a vinte milhões de reais.”23 Num grande contra-senso: 21 FARIA, José Eduardo. "O Estado de São Paulo", 23/08/96, página A-2, RONDINO, RENATA. “O ESTADO DE SÃO PAULO”, página D-1, quarta-feira, 21/08/1.996. 23 HORITA, Nilton. “O Estado de São Paulo. 21/08/96, página B-3. 22 instituição toledo de ensino 287 "Fiesp constata queda de 0,25% no nível de emprego em S.P.", indicando ainda demissão de 5.131 trabalhadores”24. "Sindicalista tem previsão de futuro magro para o setor";25 "Funcionários da ‘Light’ protestam contra demissões"26 Quem nos esclarece quanto à quantidade de trabalho alienado no pacto laboral é Délio Maranhão27, que afirma que o faz tão-só quanto a determinado trabalho, sendo a subordinação da parte mais fraca a mais forte se faz tão-só quanto ao trabalho contratado. 3. A AÇÃO DE ENRIQUECIMENTO Tendo em vista que o trabalhador, ao alienar sua força de trabalho não o faz integralmente, mas apenas parte dela, que apenas no regime escravista o senhor é dono não só do corpo físico do escravo tendo a seu dispor a totalidade de força de trabalho, muito embora seja obrigado, desde a aquisição a dispender numerários para a retribuição do trabalho, entendemos haver diversas hipóteses ensejadoras da aplicação da ação de locupletamento na esfera trabalhista e que a prescrição de verbas no decorrer do pacto laboral implica necessariamente impedimento de que o trabalhador invoque a tutela jurisdicional ante a iminência de desemprego, face aos desequilíbrios contratuais praticados, tais como: acúmulo de funções; exercício de funções que exigem maior qualificação do que a pactuada, sem qualquer remuneração, inclusive despendendo valores para a execução da prestação para a qual foi contratado, os quais, ante a inferioridade econômica do contratado, aviltam o princípio da igualdade e da liberdade. Tal situação é agravada. Assim, é a ação de locupletamento apta, no âmbito trabalhista, a mitigar as desigualdades sociais evitando o enriquecimento injustificado nas relações obrigacionais trabalhistas, respeitando a justiça comutativa. 24 AGUIAR, Isabel Dias de. mesmo periódico idem. 26 ibidem. 27 MARANHÃO, DÉLIO. Instituições de Direito do Trabalho, 11ª edição, São Paulo: LTR, 1991, p. 236, "(...) O empregado não se obriga a prestar trabalho, mas a prestar determinado trabalho. (...)" "(...)Mas a subordinação do empregado é jurídica, porque resulta de um contrato: nele encontra seu fundamento e seus limites. O conteúdo desse elemento caracterizador do contrato de trabalho não pode assimilar-se ao sentido predominante na Idade Média: o empregado não é "servo" e o empregador não é "senhor". Há de partir-se do pressuposto da liberdade individual e da dignidade da pessoa do trabalhador. Como escreve Evaristo de Moraes Filho, "é de todo incompatível com a dignidade humana a teoria de alguns autores alemães - neste particular, verdadeiros precursores da Carta de trabalho nazista de 1934 - que vêem na relação de trabalho uma relação senhorial, na qual uma das partes tem todo o poder e à outra compete somente obedecer". Tem razão, portanto, Sanseverino, quando frisa que a subordinação própria do contrato de trabalho não sujeita ao empregador toda a pessoa do empregado, sendo, como é, limitada ao âmbito da execução do trabalho contratado." (...)”. 25 288 instituição toledo de ensino 3.1. Natureza jurídica ARNOLD28 nos ensina que há várias teorias em torno da natureza jurídica da ação de enriquecimento sem causa; no entanto, opta, na esteira de SARAIVA, ser ela Civil pois ditada por princípios de eqüidade. No caso da aplicação nas relações de trabalho, entendemos, seguimos os ensinamentos de ARNOLD29, uma vez que o que se pede não são salários, mas sim tudo aquilo em que o enriquecido se beneficiou (salários de mais um ou dois trabalhadores, recolhimentos previdenciários que deixou de recolher, férias, décimo terceiro salário (...), ou estes, quando prescritos, porém a título de indenização e não de verbas trabalhistas. Ainda, como vimos, vige na justiça obreira o princípio do in dubio pro operario ou pro misero, e neste caso, a natureza cível dá ao trabalhador mais tempo para provocar a atuação do órgão jurisdicional. Assim, fora os 05 (cinco) e 02 (dois) anos previstos na Constituição Federal para a prescrição, das reclamações trabalhistas para verbas de trabalhadores urbanos e rurais, o obreiro teria mais 20 (vinte) anos para repor o desfalque em seu patrimônio. Na área processual, a aplicação subsidiária do Direito comum ao do Trabalho encontra-se previsto no artigo 769 da CLT30. 3.2. Procedimento na justiça especializada Em face do que dispõe o artigo 769 da Consolidação das Leis do Trabalho “(...) exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste título”31, e haver previsão expressa quanto ao procedimento, entendemos deva seguir aquele previsto na legislação obreira. 3.3. Foro competente Em face do que dispõe o artigo 144 da Constituição Federal e tratar-se de litígio decorrente da relação de emprego, entendemos que o foro competente seja o da Justiça Especializada trabalhista. 28 ARNOLD, Paulo roberto Colombo. Ação de Enriquecimento sem causa no direito Cambial. São Paulo: LEUD, 1987, p. 75 a 84. 29 Op. Cit. 30 Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste título. 31 Título X – Do Processo Judiciário do trabalho. instituição toledo de ensino 4. 289 CONCLUSÃO Durante a militância no foro, nota-se grande descrença e repulsa na abordagem do tema, como se as ações possíveis neste ramo do direito fossem apenas aquelas previstas na Consolidação das Leis do Trabalho. Que este estivesse estanque aos outros ramos, ou que o direito não fosse um todo didaticamente dividido em partes que interagem entre si. Por desconhecimento ou em face de fatores ideológicos, ou, ainda, ante a cultura dos acordos com grande participação de leigos juízes temporários - aos quais a legislação atribui o poder jurisdicional já que o juiz togado, pelo parágrafo único do artigo 850 da CLT, apenas relata e profere voto de desempate, a justiça obreira parece se esquecer de outras hipóteses possíveis a amparar os trabalhadores, parte mais fraca na relação obrigacional trabalhista. Há quem defenda que atividades exercidas no mesmo horário de trabalho não gera direito a dois salários. Que o fato não dá origem a indenização. Que, quando exercida em função superior, esta supre a falta, ou que o direito do trabalhador seja o de buscar a similitude de funções. Afirma que o fato tem similitude com a súmula 129 do colendo TST, o qual veda a existência de dois contratos de trabalho na mesma jornada e, por fim, se o trabalhador pode exercer outra atividade na mesma jornada, significa que era ociosa na função para a qual foi contratada32. Na primeira hipótese, na ação de enriquecimento injustificado não se pede salários, mas, sim, indenização de toda a vantagem obtida com o exercício da função excedente. A terceira, a similitude de funções não remunera o patrimônio intelectual ou manual despendido a maior na prestação do trabalhador, menos ainda, quando percebe remuneração da menor. A quarta hipótese corrobora a tese ora apresentada; é que caso a argumentação estivesse no sentido de que a função excedente se agregasse ao contrato de trabalho antes de ser contrato de realidade, encontraríamos uma causa caso não fosse vedada a modificação do pacto laboral à luz do artigo 468 da CLT e somente a autoriza quando benéfica ao trabalhador, não podendo esta ser unilateral. Também não socorre quem defende tais teses o fato de ser ou não ociosa a função para a qual foi o trabalhador contratado. É que o risco da atividade econômica é do empregador, artigo 2º da CLT. Portanto, a segunda hipótese é igualmente falsa, isto é, é indenizável por enriquecimento sem causa a(s) funções suplementares por aplicação suplementar do artigo 964 do Código Civil C/C, parágrafo único do artigo 8º da CLT. A menor das hipóteses é a de enriquecimento injustificado por falta de causa, já que a legislação autoriza o empregado a rescindir o contrato por justa causa na exigência de serviços alheios ao contrato33. 32 33 Acordão 019638/98 TRT 15ª Região. 5ª Turma, Relatora Dra. Maria Cristina Matiolli. Consolidação das Leis do Trabalho. Artigo 482 “a”. 290 instituição toledo de ensino Tais argumentações são evidenciadas quando o § 4º do artigo 173 da Constituição Federal veda o aumento arbitrário do lucro. O contrato de trabalho, de adesão por natureza, tem sempre o mais forte obrigando o mais débil a aceitar cláusulas abusivas. O trabalhador ser obrigado a exercer uma ou mais funções além daquela para a qual foi contratado, naturalmente deve ser indenizado. Na vigência do pacto laboral, impossível qualquer tipo de reclamação face o empregador estar coberto pelo direito potestativo de resilir. Num caso análogo, Luiz Felipe Bruno Lobo34 decidiu da seguinte forma: “...Enuncia a doutrina um elemento caracterizador da relação empregatícia que da Lei não consta mas que do conjunto normativo deflui: a ajenidade (do espanhol ajeno - alheio), mal traduzida para alteridade, já que o vernáculo não registra significante análogo para o mesmo significado. Ajenidade (ou alteridade como queiram alguns) é para Manuel Alonso Oléia aquilo que Délio Maranhão identificou como "utilidade patrimonial do trabalho". O lucro para os capitalistas, a mais valia para os marxistas. Não importa a ótica, importa admitir que o trabalho humano, como origem de todas as coisas (por certo coisa não é) é que gera riqueza, notadamente o trabalho por conta alheia (o mais comum). Acumulando o terceiro (o alter) a utilidade patrimonial do trabalho, responde pelo risco do negócio (é só por isso que faz jus ao lucro). O trabalhador, por sua vez, não responde por risco nenhum, nada acumula como lucro e, por isso faz jus aos salários de maneira incondicional. É mau empregador o reclamado. Utilizou-se de expediente doloso para beneficiar-se da utilidade patrimonial de seu laborista sem contra-prestar adequadamente. Nesse diapasão praticamente reduziu o reclamante à condição análoga de coisa. Enquanto reclamante "explorava" o pátio "gratuitamente" vigiava o estabelecimento do empregador e seus caminhões e demais veículos. É não só injurídico o ato é imoral, próprio de pessoas que carecem conhecer de perto a força da lei e da justiça, inerente ao Estado Democrático de Direito. ..." 34 BRUNO LOBO, Luiz Felipe. Práticas de Sentenças. p. 79/87, utilidade patrimonial do trabalho. A nota consta da conclusão por se tratar de caso concreto decidido por Bruno Lobo. instituição toledo de ensino 291 É certo, também, que tanto numa perspectiva liberal quanto na socialista, há a parcialidade. A primeira desmobiliza a sociedade em nome de um Estado absolutista e a segunda, com a pretensão de auto regular o Estado reinventa condições mais favoráveis para o mercado capitalista. O certo, porém, é que todos se esquecem da extrema necessidade da participação popular, não dada, mas conquistada. A conquista de participação somente será possível através da informação, direito fundamental de todo cidadão para que possa reivindicar seus direitos e cumprir com os seus deveres de forma consciente. O fato de termos Leis escritas não é suficiente. Para a garantia deles, é necessário sejam conquistados, mesmo que no papel já existam, e isto, se faz somente com participação conquistada35. A ação de enriquecimento é caso típico. Existe desde os romanos, porém a desconhecemos e deixamos de aplicar e de informar. Negar ao trabalhador o direito à ação de enriquecimento injustificado, quer quanto a funções dúplices, quer quando prescritas, é injustiça contra o mais fraco, negar a justiça comutativa e ainda vedar-lhe o acesso à justiça. Apresentada a inicial, nela demonstrada a existência de dupla função, de verbas prescritas e a contestação, não sendo capaz de demonstrar o contrário, negar ao trabalhador o direito à ação visando à indenização quer numa ou noutra hipótese, a indenização, a nosso ver, é devida. A tese apresentada toma vulto quando vemos autores defendendo que o Direito só existe em face do homem, que o judiciário ter noção do processo histórico, Estado, cultura e da realidade social. Ter, ao julgar, o critério de justiça, buscando a efetividade e, para isto, defendendo inclusive o aumento dos poderes do juiz 36 37. 35 DEMO, Pedro. Pobreza Política. Vol. 27 Polêmicas de Nosso Tempo, São Paulo: Cortez, 1991, p. 65. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas Linhas de Processo civil. SP:RT,1993. O autor busca fazer uma leitura da teoria do acesso à justiça e dos institutos fundamentais do direito processual (jurisdição, ação, defesa e processo, a luz da T.G.E. e da historiografia demonstrando que são eles institutos de realização dos fins do Estado. Introdução - Toda teoria é do seu tempo e está ligada ao ser. Deve sempre estar ligada a sua causa, seus fins. Não se pode em nome da ciência, esquecer o homem. Qualquer ramo do direito deve ser pensado para servir o homem. A importância do acesso à justiça na teoria do processo está no ideal de justiça social. Nela, a igualdade deve ser real, não formal. Para se falar em sentido democrático, temos que estar de acordo com a realidade social. Nenhuma teoria pode ser dita finalizada, sempre há interrogações, mesmo que queiramos expulsá-las dando importância a forma (formalizando a teoria). A idéia de Estado e a noção de historicismo deve permear a teoria do processo para que possamos entender o que a inspiraram e em que época (Estado, cultura e realidade social de cada época). As normas constitucionais são ancoradouro para a interpretação teórica e revelação dos valores democráticos. O processo, como o direito, é instrumento da vida real, na modernidade não cabe o sonho do dogmatismo. Capítulo II - O acesso à justiça - Nasce a partir da idéia de Democracia Social - jurisdição, defesa, ação e processo retiram sua essência da noção de Estado. Devem realizar seus fins, por isso, o Direito Constitucional e a TGE fazem parte da moderna processualistica. Processo preocupado com a justiça social, pensando a realidade social e do Estado brasileiro. O estado Democrático de direito, deve buscar a participação efetiva de maior número de cidadãos deixando de lado a idéia de liberdade e igualdade formais, liberando o homem das formas de opressão e diminuindo 37 BEDAQUE, José roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. SP: RT, 1991. NALINI, José Renato. O Juiz e o Acesso a Justiça. São Paulo: RT. SP, 1994. 36 instituição toledo de ensino 292 Juízes que percebam a injustiça social, que fiquem atentos às regras do jogos, que não permitam façam da lei concessões, tornando-se não cumpridores de deveres mas doadores de favores com aviltante apologia da impunidade. Parece-nos, realmente, que a justiça especializada do trabalho contém em sua legislação todo o instrumental para buscar uma pacificação social com justiça, porém a postura que é passada nos bancos escolares, a política judiciária e, em muitos casos, a qualidade pessoal e profissional dos aplicados do direito faz dela um grande departamento de pessoal onde a única pretensão é acabar com o problema, quer este esteja sendo feito com justiça ou não. A cultura dos acordos a qualquer preço ao contrário de pacificar com eficácia e justiça, mantêm uma litigiosidade contida, haja vista a aceitação pelo mais fraco tão só porque aquele numerário o salvará da fome do dia. A pretensão não é a de esgotar o assunto, mas pôr em debate o desequilíbrio nas relações de trabalho e sugerir a ação de locupletamento como meio para amenizar e buscar o equilíbrio nestas relações, mais uma forma de limitação da vontade do mais forte em benefício do mais fraco. 5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA AGUIAR, Isabel Dias de. matéria veiculada no jornal O Estado de São Paulo; ARNOLD, Paulo Roberto Colombo. Ação de Enriquecimento sem causa no direito Cambial. São Paulo: LEUD, 1987; BRASIL. Constituição Federal. BRASIL. Código Civil. BRASIL. Consolidação das leis do trabalho. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. São Paulo: RT, 1991. CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. 19ª edição, São Paulo: Saraiva, 1995; CARVALHO SANTOS, J.M. - Código Civil Brasileiro Interpretado, Vol. XII - Direito das Obrigações. 10ª Edição, São Paulo: Freitas Bastos, 1977; DEMO, Pedro. Pobreza Política. 3a. Edição, Coleção Polêmicas de nosso tempo, vol. 27, São Paulo: Cortez, l991; ________. Ciências Sociais e Qualidade. São Paulo: ALMD,1985; DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 3a. edição, São Paulo: Saraiva, 1997; FARIA, José Eduardo. matéria veiculada no Jornal “O Estado de São Paulo de 23/08/96, pág. 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Doutorando da PUC-SP, professor de Direito Processual Civil, Procurador do Estado (aposentado) e Advogado em Presidente Prudente 1. NOÇÕES GERAIS Uma questão que não pode passar despercebida em toda relação de direito é a teoria da aparência. A aparência é circunstância norteadora de toda atividade negocial observada sob o ponto de vista jurídico. Todo negócio jurídico deve ser analisado sob o prisma da boa-fé e para a análise desta é necessário que se volte a atenção para a aparência com que o negócio foi realizado. Como ensinou RIZZARDO (1982): “As relações sociais se baseiam na confiança legítima das pessoas e na regularidade do direito de cada um”. Uma pessoa é tida, não raras vezes, como titular de um direito, quando não o é, na verdade. Aparece como portadora de um valor ou um bem, agindo como se fosse proprietária, por sua própria conta e sob sua responsabilidade”1 Atualmente, em todas as nações que cultuam o estado de direito, a teoria da aparência tem sido prestigiada, sob os mais variados fundamentos e princípios que podem ser invocados. 1 RIZZARDO, Arnaldo. Teoria da aparência. Revista AJURIS 24/222-223. Porto Alegre-RS. Março 1982. instituição toledo de ensino 296 Entre esses princípios podem ser lembrados o da dignidade humana e o da boa-fé, que sempre andam de mãos juntas. Não é sem razão que desde as mais antigas até as mais modernas doutrinas sempre houve a preocupação com a aparência que chegou a ser elevada à categoria de teoria. Prioritariamente, o que se leva em conta é a segurança jurídica nas relações de direito onde se coloca em evidência a boa-fé. A contemplação da boa-fé como princípio constitucional implícito, exige que se dê maior atenção à teoria da aparência em razão da íntima relação existente entre essas duas figuras. RIZZARDO (1982) disse que o que se denomina teoria da aparência é a circunstância pela qual uma pessoa, é considerada por todos como titular de um direito, embora não o seja, leva a efeito um ato jurídico com terceiro de boa-fé.2 Expressivos são os ensinamentos WALD (1996): “Em todos os países a teoria da aparência foi consagrada (...) Em todos eles têm, todavia, sido invocada a necessidade de garantir a segurança jurídica e a proteção da boa-fé para justificar a responsabilidade daquele a quem se atribuiu a declaração de vontade pela obrigação que aparentemente constitua um título e o direito bancário”.3 Também observou WHITAKER (1998): “São inúmeros os tipos da aparência, imbricada com a problemática de forma (dat esse rei) numa experiência cerâmica, que é a aparência das coisas, porque é a aparência do direito, surgida no Direito Mercantil, pioneiramente estudada por Heber, que tem a eficácia da realidade jurídica, por força da lei”.4 A teoria da aparência está intimamente ligada à prevalência da situação aparente, que embora, não seja a real, mas assim aparece a uma das partes. É com fundamento na confiança e na lealdade das partes que surgiu a teoria da aparência. Ao cuidar da teoria da aparência, lembra com precisão LANDIM (2001), que esse instituto amplamente desenvolvido da doutrina e na jurisprudência francesas dos dias atuais, que, de iuri condendo, deve-se, em certos casos, configuradores de aquisição a non domino, dispensar aos terceiros de boa fé a mais ampla proteção 2 RIZZARDO, Arnaldo. Obra citada pág. 223. WALD, Arnoldo. A teoria da aparência e o direito bancário. Revista de Direito Renovar –RDR. Vol. 6. Pág. 53. Rio de Janeiro: Renovar set/dez 1996. 4 WHITAKER, Fernando. Ao relatar o EI 142/96 na ap. 1360/93 do TJRJ. RDBMC 02/189. RT. Maio/agosto 1998. 3 instituição toledo de ensino 297 jurídica, garantindo-lhes a aquisição imediata da propriedade imóvel, quando, presentes à espécie, os requisitos da aparência de direito.5 As pessoas normalmente acreditam na veracidade de uma situação aparente e em tutela da boa-fé, os atos praticados sob o manto dessa aparência devem ser considerados como válidos. Quem está encarregado de aplicar o direito não pode ignorar o interesse daquele, que emprestou confiança em situação aparente, quando lhe parecia real. 2. TEORIA DA APARÊNCIA E A BOA-FÉ A boa-fé e a aparência andam necessariamente de mãos juntas e onde está a última, por certo estará a primeira e vice-versa. São entidades distintas, mas que caminham conjuntamente e que ao analisar uma, dever-se-á analisar a outra. Nesse diapasão é que RIZZARDO (1982), afirmou: “Sustenta a firmeza do negócio a necessidade de se emprestar proteção à boa-fé, manifestada através da confiança depositada na aparência”.6 Dissertando sobre a teoria da aparência e a aquisição a non domino LANDIM (2001), assim se expressou: “Num estudo desta natureza, entroncam-se, portanto, a propriedade e a aquisição a non domino, tendo como pano de fundo uma situação de confiança, criada ou mantida, no comércio jurídico, pelo verdadeiro dono da coisa, e à qual o direito, com vistas à proteção do terceiro de boa fé, empresta efeitos jurídicos, na justa consideração de sua relevância econômica e social”.7 A relação tão estreita entre a teoria da aparência e a boa-fé levou o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro a reconhecer a necessidade de acolher a primeira (teoria da aparência) para proteger a Segunda (a boa-fé), como se vê: “Na realidade, a exigência da preservação da segurança das relações jurídicas e o resguardo da boa-fé de terceiros devem justificar o acolhimento da teoria da aparência”.8 5 LANDIM, Francisco. A propriedade imóvel na teoria da aparência. Pág. 421. São Paulo: CD Livraria, Editora e Distribuidora. 2001. 6 RIZZARDO, Arnaldo. Obra citada pág. 224. 7 LANDIM, Francisco, obra citada, pág. 424. 8 TJRJ. Ap. 18.302. São Paulo: RT. 618/130, Abril 1997. 298 instituição toledo de ensino Seguindo o mesmo sentido, alertava RAO (1978) com amparo em Verge-Ripert e Daligny, que a teoria da aparência deve ser aceita por ser imposta pelas necessidades sociais e pelo interesse público. Diz ele que é muitas vezes impossível conhecer a situação jurídica de uma pessoa ou de um bem, ou saber se a situação exterior correspondente ou não, efetivamente, à situação real.9 Não foi por outra razão que AMARAL LEÃO e REGO (1978) advertiram: “O princípio da proteção à boa-fé de terceiro e a necessidade de se imprimir cada vez mais segurança às relações jurídicas justificam tal teoria”. A nossa legislação, além do art. 1600 do CC, acolheu a aparência em vários outros de seus dispositivos, como p. ex. os artigos 1318, 221 e 935, não havendo razão para que o princípio não seja aplicado analogicamente a outras hipóteses, como admite o art. 4° da LICC”.10 Partindo dessa postura e aplicando a analogia em todos os negócios jurídicos é possível concluir que a teoria da aparência deve ser acolhida em todas as relações jurídicas e, se assim é, deve também ser acolhida e aplicada nos negócios em que se alega a ocorrência de fraude à execução. Não se pode utilizar-se de dois pesos e duas medidas diferentes para casos extremamente análogos. Para os casos semelhantes ou análogos, dever-se-á aplicar os mesmos princípios e as mesmas normas. Com a acuidade e sensibilidade de sempre, RAO (1961) assim se expressou: “Nos atos por outrem praticados de boa fé com o titular de direitos aparentes, produzem-se declarações de vontade que à realidade não correspondem, pois enquanto este titular (agindo de boa ou má fé – é outra questão) declara, digamos, a vontade de ceder um direito que diz pertencer-lhe”.11 Esse autor, ao falar que “agindo de boa ou de má fé – é outra questão”, ele não estava se referindo ao agir adquirente, mas ao agir do alienante, pois, a boa ou má-fé do alienante, em nada pode influir no direito do adquirente de boa-fé, que o faz sob o manto da aparência. Mas o adquirente que o faz sob o manto da aparência de licitude e de boa-fé, deve ter o seu direito reconhecido e amparado em homenagem à teoria da aparência e o princípio da boa fé. 9 RAO, Vicente. O direito e a vida do direito. 2° Vol. Tomo I. Pág. 108-109. São Paulo: Resenha universitária. 1978. AMARAL LEÃO, Antonio Carlos e REGO, Gerson Ferreira. Aplicabilidade da teoria da aparência nos negócios jurídicos. São Paulo: RT. 618/32-33. 11 RAO, Vicente. Ato jurídico. pág. 233. São Paulo: Max Limonad, 1961. 10 instituição toledo de ensino 299 Tanto assim é que o mesmo VICENTE RAO, depois, em outro ponto assevera: “Assim, em certos casos, adquire-se com eficácia plena se a aquisição deriva de boa fé (em virtude de negócio jurídico) de um titular que só o é na aparência”.12 Idêntico entendimento é apresentado por RIZZARDO (1982), quando assim expôs: “Quem dá lugar a uma situação jurídica enganosa, ainda que sem o deliberado propósito de induzir a erro, não pode pretender que seu direito prevaleça sobre o direito de quem depositou confiança na aparência”.13 Também o grande jurista pátrio PONTES DE MIRANDA (1954) propugnava pela aplicação da teoria da aparência em respeito à boa-fé da parte que contratasse com um representante aparente. Isto é, quando se contratasse com alguém que não tivesse poder para representar o verdadeiro titular do direito, mas que pelas circunstâncias que envolvesse a questão, parecesse estar investido de tal de poder, embora não o tivesse. “A pessoa, que não tem poder de representação, pode, em certas circunstâncias, ter de ser considerada (sem ter) como se o tivesse, se aquele com quem trata há de a entender como tal”. “Não há, aí, poder, há, apenas, a aparência de poder, de jeito que o que se protege é a boa-fé, em que se achava aquele que teve de atender ao suporte fáctico, exteriorizado, aparente, de poder”.14 A preocupação maior foi sempre proteger a boa-fé do contratante, motivo pelo qual, ganhou força a teoria do respeito à aparência, pois, atrás desta sempre se apresenta a boa-fé da pessoa que realiza o negócio jurídico com o titular aparente de um direito. A boa-fé é norte de todo negócio jurídico, tanto que ao seu tempo AFRÂNIO DE CARVALHO, já dizia que ela sana a falta do direito na pessoa do transmitente em benefício do terceiro de boa-fé.15 Noticia LANDIM (2001) que Soriano Neto em adesão à doutrina de Sá Pereira, assim dissera: 12 RAO, Vicente. Ato jurídico citado, pág. 235. RIZZARDO, Arnaldo. Obra citada, pág. 225. 14 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, tomo III, pág. 253. Rio de Janeiro: Borsoi 1954. 15 AFRÂNIO DE CARVALHO. Registro de Imóveis. pág. 185. 13 300 instituição toledo de ensino “Longe de lobrigar, em nosso direito, um princípio geral, a cuja sombra se acolha o terceiro adquirente de boa-fé, como se dá no direito alemão e no suíço, limita-se a afirmar que, em certos casos, no conflito entre a boa-fé e domínio deve ser sacrificado este e não aquela”.16 3. TEORIA DA APARÊNCIA E O NEGÓCIO JURÍDICO Quando se trata de confrontar a teoria da aparência com o negócio jurídico, tanto a doutrina, bem como a jurisprudência, propugnam pela validade e eficácia do negócio realizado sob a aparência de sua licitude. Por isso MATTIA (1984) assim se expressou: “A aparência exerce, portanto, um papel criador, é a fonte dos direitos reconhecidos em proveitos de terceiros”. O ato praticado pelo titular aparente do direito escapa à ineficácia”.17 Ao seu tempo, o mesmo já citado RAO (1961), observara: “As relações sociais, seguindo esse conceito, se baseiam na confiança legítima de cada qual na regularidade de seu direito e a cada qual incumbe a obrigação de não iludi-la, de sorte que se por sua atividade ou inatividade violar esta obrigação, deverá suportar as conseqüências de sua atitude, quando, pois, um terceiro acreditou na operação realizada por um titular aparente, o titular verdadeiro não a poderá invalidar desrespeitando a confiança legítima que houver criado”.18 A referência que se faz à crença da pessoa que contrata com a outra sob o estigma da aparência, está diretamente ligada à grande relevância que alcançou a boafé nos negócios jurídicos, nos dias modernos, isto porque a terceira pessoa adquirente recebe o direito na situação em que se encontra no momento em que o negócio é realizado.19 Os negócios jurídicos são realizados sobre os princípios basilares da boa-fé e do respeito à dignidade humana, com a preponderância da teoria da aparência. Por 16 LANDIM, Francisco. Obra citada, pág. 420, nota 24. MATTIA, Fábio Maria. Aparência de representação. P. 202-206. 18 RAO, Vicente, Ato jurídico citado, pág. 237. 19 NONATO OROZIMBO, apud LANDIM, Francisco, obra citada, pág. 291. 17 instituição toledo de ensino 301 isso, na análise e interpretação de qualquer negócio jurídico, os dados relacionados à boa-fé e a teoria da aparência devem ser elevados à ultima potência e tratados com todas as salvaguardas constitucionais. Conforme os ensinamentos de RIZZARDO (1982), na espécie sobressai sempre a boa-fé, determinante da decisão tomada pelo agente. Esta a razão que leva a se atribuir valor ao ato perpetrado por quem enganado por uma situação jurídica contrária à realidade, mas revestida exteriormente por característica de uma situação jurídica verdadeira”.20 Esse pensamento pode ser completado com a exposição de LANDIM (2001) que, em estudo bastante específico, ao cuidar da questão da teoria da aparência não poupou ensinamentos, que, por seus brilhantes argumentos, merecem a devida atenção. Ao falar na aquisição a non domino de outra forma expôs: “Assim, na condição de res pode ser adquirida por um terceiro de boa fé, na esfera jurídica do qual perde o seu elemento contingente característico, e se põe a salvo, como jus in re definitivo e duradouro, de qualquer reclamação do verdadeiro dono da coisa, ou, se for o caso, de terceiros interessados”.21 O autor parte, inicialmente, desse raciocínio para depois dizer que o solvens tem o direito de reivindicar a coisa com quem quer que se encontre, exceto se o terceiro adquirente, em negócio com o accipiens houver contratado de boa-fé a compra e venda do imóvel.22 Ainda é o mesmo LANDIM (2001) quem adverte: “Esta última direção desdobra-se no princípio da aparência jurídica, e, na primeira delas, no princípio da proteção do comércio, que se constituem nas duas razões invocadas para justificar, numa aquisição a non domino, a perda da propriedade pelo verdadeiro dono do imóvel, em favor do terceiro adquirente de boa fé”.23 Acolhendo e aplicando a teoria da aparência, o Primeiro Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro considerou válido uma venda feita por sócio de empresa que não mais tinha poderes de gerência da mesma, como noticiam AMARAL LEÃO e REGO (1987): 20 RIZZARDO, Arnaldo, obra citada, pág. 225. LANDIM, Francisco, obra citada, pág. 422. 22 LANDIM, Francisco, obra citada, pág. 423. 23 LANDIM. Francisco, obra citada, pág. 423. 21 302 instituição toledo de ensino “Tal contrato de compra e venda acima descrito foi válido, segundo decisão unânime do I TARJ (ap. 40.885): “Válida a compra e venda mercantil quando praticada por sócio cotista que tem toda a aparência de representante legítimo da sociedade jurídica, deve prevalecer sobre a estática – registro comercial – quando por culpa dos próprios representantes jurídicos da sociedade o sócio cotista contrata com terceiros de boa-fé aparentando ter poderes suficientes”.24 Também o Egrégio Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul assim decidiu: “Quando todos pensam e tudo permite pensar que a situação aparente é a manifestação anterior da situação jurídica, não se pode desconhecer a situação criada nesta base, nem atingir a segurança dos negócios e a livre circulação de bens”.25 O mesmo entendimento foi profligado pelo Egrégio Tribunal de Alçada de Minas Gerais, em acórdão que assim foi ementado: “Os atos praticados pelo titular aparente do direito reputam-se válidos perante terceiros de boa-fé, razão por que não pode a pessoa jurídica opor contra estes restrições contratuais sobre poderes de gerência”.26 No Tribunal de Justiça de São Paulo também se encontram julgamentos no mesmo sentido e que podem ser representados pelo escólio seguinte: “Contrato – Nulidade – Inocorrência – Teoria da aparência – Aplicabilidade – Celebração com quem estava à testa dos negócios e aparentava capacidade para a conclusão da avença – Recurso não provido”. “A pessoa que não tem poder de representação pode, em certas circunstâncias, ter de ser considerada como se o tivesse, se aquele com quem trata há de entendê-la como tal”.27 24 AMARAL LEÃO e REGO, ª Carlos e Gerson Ferreira, RT. 618/31. JTARS 19/404-406. apud RT 618/32. 26 TAMG. Ap. 156.469-0. RTAMG 52/180. 27 TJSP. Ap. 244.058-2. JTJSP-Lex 189/41.b 25 instituição toledo de ensino 303 “(...) escapa da ineficácia contrato firmado em nome da pessoa jurídica por quem não tinha, sozinho, poderes para contratar em seu nome uma vez praticado o ato por titular aparente do direito, eis que, além de sumamente nocivo à rapidez com que devem realizar-se, em cada caso, de terceiros que examinem, nas Juntas Comerciais, os contratos ou estatutos das sociedades com que tratam”.28 Ainda, no mesmo sentido: RJTJESP-Lex 80/43, 121/31, 123/65, 136/34, 137/106; JTJ-Lex 146/77 e 159/48; RT. 671/143 e 689/215. A teoria da aparência tem sido levada em conta em todas as negociações e isto se dá em razão da necessidade jurídica de proteção ao terceiro que haja negociado de boa fé. Com razão RIZZARDO, afirmou: “Quem procedeu de boa-fé, levado pela aparência de uma situação de estado, deve ter assegurada a proteção de sua aquisição. (...) em todas as hipóteses importa se dê proteção aos terceiros, exigindo-se, somente, que seu erro provenha de circunstância apta para enganar o indivíduo médio. A aparência substitui a realidade em favor do que agiu levado por bons princípios e honestamente”.29 A primeira e principal exigência para a eficácia do negócio é a validade do negócio e por isso já proclamou LANDIM (2001) que, além de existente e válido, o título de aquisição do terceiro deve ser eficaz, na medida em que a titularidade aparente do alienante non dominus, ignorada pela boa-fé do comprador substitui, como fator de eficácia, a titularidade real para a realização do negócio jurídico dispositivo.30 4. TEORIA DA APARÊNCIA E A FRAUDE DE EXECUÇÃO Como foi visto acima, a teoria da aparência surgiu para proteger o contratante que acreditando nessa aparência, acaba por contratar com quem não é o titular do direito disposto, mas o fazendo de boa-fé, acreditando estar negociando com quem era o verdadeiro titular do direito ou com quem tinha poderes para representá-lo. 28 TJSP. RT. 643/95. RIZZARDO, Arnaldo. Teoria da aparência. Ajuris 24/231. Porto Alegre-RS: março 1982. 30 LANDIM. Francisco. obra citada, págs. 209/291. 29 instituição toledo de ensino 304 Lembra-se, neste passo, a expressiva lição de LANDIM (2001), que desta forma explicita a questão: “Além de existente e válido, o título de aquisição do terceiro deve ser eficaz, na medida em que a titularidade aparente do alienante non dominus, ignorada pela boa fé do comprador substitui, como fator de eficácia, a titularidade real para a realização do negócio jurídico dispositivo.”31 Nesse momento, é que se reclama do intérprete que tenha argúcia e perspicácia para interpretar e aplicar o direito buscando em seu encontro os métodos de interpretação mais condizente com o caso em espécie e que mais se aproxima da justiça. Assim é que se chama mais uma vez à colação, o sempre brilhante pensamento de LANDIM (2001), que se encontra nesses termos: “Aí, então, o problema deve ser resolvido a nível de princípios, como o da boa fé e o da aparência de direito, acolhidos, em nosso sistema jurídico, com o fim prático de auxiliar na interpretação das normas jurídicas, ou de preencher as lacunas da lei, resolvendo os casos omissos de proteção aos terceiros. Dentre estes, teve curso, em fecundo passado doutrinário, com duradouros reflexos em nossa atualidade jurídica, o princípio da boa fé. Porém, já nos dias de hoje, o princípio da aparência jurídica vai ganhando foros de cidadania na doutrina nacional, pois, estruturado pela teoria da aparência , explica, com atraente rigor científico, o fenômeno da propriedade aparente, e, apoiando-se na boa fé, ao lado de outros requisitos, atribui eficácia translativa à aquisição a non domino, que tem como objeto a aquisição da propriedade aparente pelo terceiro de boa fé”.32 Por isso que, tanto a jurisprudência bem como a doutrina sempre propugnaram pela validade e eficácia do negócio jurídico quando parecesse ao contratante que ele estava diante do verdadeiro titular do direito contratado, embora não o fosse. Diante desse descortino, mesmo que o contratante não seja o verdadeiro titular do direito, mas pelo simples fato de parecer sê-lo, o negócio acaba por ser convalidado e será perfeitamente eficaz. Em outras palavras, em homenagem à teoria da aparência e o princípio da boa-fé, a aquisição deverá ser considerada válida e perfei- 31 LANDIM, Francisco. obra citada, págs. 290-291. LANDIM, Francisco. obra citada, pág. 424. 32 instituição toledo de ensino 305 tamente eficaz, ainda que o terceiro de boa-fé negocie com quem não é o verdadeiro titular do direito negociado. Essa validade e eficácia a que se deve dar ao negócio realizado a non domino, não representa benefício ou privilégio ao adquirente, senão apenas, garantir a este a aplicação do princípio da boa-fé e a contemplação da teoria da aparência em busca da verdadeira justiça na aplicação do direito. Esse mesmo raciocínio deverá ser aplicado nos casos em que um terceiro de boa-fé adquira o bem do verdadeiro dono (vero dominus), desconhecendo ser este devedor ou que o bem está sujeito à alguma execução. A aparência (teoria da aparência) de que o bem está livre e desembaraçado, bem como a boa-fé de quem adquire devem ser prestigiadas e a aquisição tida e reconhecida como plenamente eficaz. Assim sendo, a aquisição feita por um terceiro adquirente de algum bem aparentemente livre de ônus não poderá ser considerada em fraude de execução. Ora, se aquele que não é o titular do direito ou da coisa, pelo simples fato de parecer sêlo já pratica ato válido e eficaz em razão da teoria da aparência, com muito mais e ainda maiores razões, deve ser considerado válido e eficaz a aquisição de um bem ou direito diretamente do verdadeiro dono (vero dominus) que se apresente à primeira vista como que estivesse livre de ônus. O confronto dessas questões não só se apresenta relevante como também é de extrema necessidade para a aplicação do direito e a realização da justiça. PONTES DE MIRANDA chegou a comparar as duas situações e com a proficiência de sempre ensinou que, no ato de disposição em fraude à execução, não há inexistência, nem nulidade da relação jurídica, o que há é a ineficácia, tal como ocorre com a compra e venda de coisa alheia.33 É de se ver que o grande e inesquecível jurista afirmara que na fraude à execução deve dar o mesmo tratamento de ineficácia que se dá em regra para o caso de venda de coisa alheia. Ora, sem assim é, também em relação à fraude à execução deve-se aplicar a teoria da aparência. Esse tema desafia ao mais arguto hermeneuta porque, em verdade, se coloca diante de um dilema, onde dois direitos na mais perfeita simetria são colocados lado a lado. Nesse momento há de se buscar socorro ao princípio da proporcionalidade. Entre aquele que adquire um bem de quem não é verdadeiramente o dono (apenas parece sê-lo) e aquele que adquire do verdadeiro dono, sob a aparência de estar o bem livre e desembaraçado, parece muito mais lógico e jurídico dar eficácia a este último. Se ao primeiro, desde há muito já se tem reconhecido a eficácia, com maior razão deve-se também reconhecer a eficácia ao segundo. Desponta, até mesmo, como um contra-senso, garantir eficácia da aquisição para quem compra de titular (possuidor e/ou proprietário) aparente e negar eficácia para quem compra do verdadeiro proprietário pelo simples fato de parecer (teoria da aparência) estar este bem livre e desembaraçado de ônus . 33 PONTES DE MIRANDA. Comentários ao CPC. t. IX. Pág. 447. Rio de Janeiro: Forense, 1976. 306 instituição toledo de ensino Aquele que compra de quem não é dono, mas sobre a aparência de estar comprando de quem é o titular do domínio, está resguardado pela teoria da aparência e sua compra é considerada eficaz tanto pela doutrina, bem como pela jurisprudência conforme foram vistas nas anotações acima. Se assim é em relação àquele que compra de quem não é o dono, mas apenas parece sê-lo, com maiores razões deve sê-lo com relação a aquele que compra do verdadeiro dono que tem apenas dívidas, mas cujo bem parece estar livre de constrição e ônus. Tratamento de outra forma, constitui flagrante injustiça ao adquirente que ao comprar está pensando que o bem está desonerado. Levando este aspecto em consideração e pensando nisso é que o Legislador reformista, incluiu o parágrafo quarto do artigo 659, do CPC, para evidenciar e demonstrar ao terceiro adquirente de forma clara e induvidosa a eventual oneração ou constrição que recais sobre o bem. PONTES DE MIRANDA, com a superioridade de sempre, chegou a dizer que o terceiro adquirente só se tem de guiar pelo registro e que por isso não importa as informações extra-registro. Afinal nesta sua concepção, o terceiro que adquiriu o imóvel não precisa provar, ao fazê-lo, ter estado de boa fé.34 Esse emérito jurista nessa passagem consagra a já mencionada presunção da boa-fé, que deve prevalecer sempre em que não se prova haver o terceiro adquirente adquirido de ma-fé. Na tentativa de clarear ainda mais a questão e fornecer melhores subsídios para a análise desta problemática, melhor que se imagine hipoteticamente o caso de uma só pessoa ser ao mesmo tempo proprietária de uma coisa (verus dominus) e ao mesmo parecer (teoria da aparência) ser dona de outra coisa sem o ser verdadeiramente (non dominus). E, no exemplo figurativo, essa pessoa vender (aliena) as duas coisas. Aquela coisa que parecia ser sua e não o era, e que foi vendida para “X”, essa venda terá eficácia plena em razão da teoria da aparência e com isso o verdadeiro dono perde a coisa sofrendo um prejuízo fático e ao mesmo tempo jurídico, porque perde a coisa sobre o ponto de vista fático e ainda a perde sobre o ponto de vista jurídico. Por sua vez, a outra coisa que era verdadeiramente sua e que foi vendida para “Y”, poderá ser considerada ineficaz (por fraude à execução) pela simples razão de que o vendedor tenha dívida com “Z” e que o adquirente até mesmo desconhecia a existência dessa dívida ou desconhecia que a coisa estava constrita (onerada) para o seu pagamento. No primeiro caso, aplica-se a teoria da aparência e no segundo não. Não existe razão lógica para essa distinção. No caso de alienação a non domino, o verdadeiro proprietário perde a coisa, com prejuízo fático e também prejuízo jurídico e mesmo assim se leva em conta a 34 Apud. LANDIM, Francisco, obra citada, pág. 299. instituição toledo de ensino 307 teoria da aparência. No caso da existência de dívida, o credor não sofre prejuízo jurídico, pois o seu crédito (relação jurídica creditícia) continua como antes. Apenas e tão-somente tem um prejuízo fático consistente em não se poder buscar a coisa alienada para pagamento de seu crédito mas esse continua são e salvo e pode ser buscado em outros bens do devedor. Esta situação é muito menos drástica do que a anterior em que o verdadeiro dono perde e a coisa e não somente deixa de obter um pagamento imediato. Entre o verdadeiro dono que perde o direito sobre a coisa (perda do direito) e o credor que apenas perde a oportunidade de receber o seu crédito através daquela coisa e com isso deixa de receber de imediato o seu crédito (circunstância meramente fática), parece evidente que o primeiro será mais drasticamente prejudicado e mesmo assim em relação ao ele aplica-se o princípio da aparência, dando eficácia ao negócio jurídico. Entretanto, parece desarrazoado negar eficácia ao negócio realizado entre o devedor e o terceiro adquirente quando o credor não sofre prejuízo algum em seu direito, pois o seu crédito continua e poderá ser recebido de outra forma. No primeiro caso, o proprietário perde a coisa e não tem mais como recuperá-la e mesmo assim dá-se eficácia ao negócio em face da teoria da aparência. No segundo caso, o credor nem mesmo perde o seu crédito que continua intacto e por isso e com muito mais razões deve dar eficácia ao negócio realizado entre devedor e o terceiro de boa-fé. O direito moderno não pode conviver com tanta incoerência e desproporcionalidade, motivo pelo qual, além da teoria da aparência, devem ainda ser aplicados os princípios da boa-fé e o da proporcionalidade no caso de alegação de fraude à execução. Pode-se, em reforço do raciocínio até então desenvolvido, acrescentar mais uma passagem descrita por LANDIM (2001), que por ser esclarecedora, merece ser transcrita. “Assim, uma vez configurada a aquisição a non domino, o ordenamento jurídico, de imediato, põe o terceiro adquirente de boa fé a salvo das reclamações não apenas do proprietário prejudicado, que não terá ação para reivindicar o imóvel (art. 968, Parágrafo único do CC), como, também, dos credores fraudados, que não o alcançarão com a ação pauliana (art. 109, do CC), e dos terceiros lesados, na simulação fraudulenta, que não atingirão com a ação anulatória (art 105, do CC). É que a propriedade aparente, nestas circunstâncias aquisitivas, perdeu o seu elemento contingente, submetendo-se, a partir deste momento, ao regime jurídico do domínio em geral”.35 35 LANDIM, Francisco. obra citada, pág. 312. instituição toledo de ensino 308 Assim é que, no confronto dos dois direitos opostos, o do proprietário que perdeu a coisa e o do terceiro adquirente que comprou a coisa de boa-fé, deve prevalecer o direito deste último em detrimento do primeiro. É a observância e a prevalência do princípio da boa-fé que está a assenhorar-se de toda relação jurídica e assim deve se fazer presente nos casos em que se alegue a ocorrência de fraude à execução. A fraude à execução (venda de bem próprio) vista dentro do princípio da proporcionalidade é muito mais branda do que a venda por quem não é proprietário (venda de bem alheio ou a non domino). Mesmo assim, nesta se aplica a teoria da aparência. Assim é também a opinião de LANDIM (2001) para quem, “No embate destas duas realidades, prevalecerá o direito adquirido pelo terceiro de boa fé, com apoio na solução oferecida pelo princípio geral da aparência jurídica, que tem curso no ordenamento jurídico nacional, aplicando-se diretamente sobre os casos omissos, ou através de normas de direito positivo, as quais lhe exteriorizam a idéia diretora”.36 5. A NOVA NORMA DO ART. 659, § 4°, do CPC A nova redação dada ao artigo 659, §4°, do CPC, que obriga a inscrição da penhora de bem imóvel no registro imobiliário, veio exatamente, para através dessa publicidade facilitar o conhecimento do adquirente de imóvel, em caso de eventual oneração ou constrição. Essa norma tem caráter cogente e não admite opção diferente pelas partes. Sem o atendimento ao artigo 659, § 4° do CPC, a aquisição feita por terceiro deve ser considerada de boa-fé e resguardada pela teoria da aparência em razão de estar adquirindo aquilo que lhe parece livre de quaisquer constrições ou ônus. Em se podendo aplicar a teoria da aparência até mesmo em relação à questão de domínio ou mandato aparente, com maior razão esta teoria deve ser aplicada para o caso desoneração aparente e com isso dar eficácia à aquisição feita pelo terceiro de boa-fé, frente a proprietário verdadeiro, mas que aparentemente ainda não comprometera o bem com eventuais dívidas. Na hipótese de aquisição de bem sobre a aparência de estar o mesmo bem livre e desembaraçado, deve prevalecer a teoria da aparência e com isso, dar-se eficácia ao negócio realizado. A aparência torna eficaz aquilo que de outro modo, poderia ser ineficaz. 36 LANDIM, Francisco. obra citada, pág. 312-313. instituição toledo de ensino 309 Lembra-se, neste ponto, em relação a eficácia do negócio jurídico, a importante observação de MATTIA (1984), quando assim ensinou. “Daí a observação de Derrida de que o efeito essencial da aparência está na eficacização de um ato ineficaz, a aparência permite salvar um ato ineficaz”.37 O negócio jurídico de compra e venda realizado nessas circunstâncias deve ser considerado eficaz, porque do contrário, estar-se-ia prestigiando a inércia do credor que omissivamente deixa de dar publicidade ao ato constritivo ou oneroso na forma preconizada pela norma de regência. Não se pode premiar o credor relapso que deixa de dar publicidade ao ônus ou a constrição que recai sobre o bem na forma determinada pelo art. 659, § 4°, CPC, em detrimento do direito, da boa-fé e da dignidade humana do adquirente que age impulsionado pela aparência de que tal bem estava livre e desembaraçado de quaisquer ônus ou constrição. Ainda que esse credor não tenha agido deliberadamente para induzir a aparência de bem livre e desembaraçado, mesmo assim, não poderá pretender a prevalência de seu direito, como muito bem observou RIZZARDO (1982). “Quem dá lugar a uma situação jurídica enganosa, ainda que sem o deliberado propósito de induzir a erro, não pode pretender que seu direito prevaleça sobre o direito de quem depositou confiança na aparência”.38 A jurisprudência mais recente dos Tribunais locais, neste passo capitaneada pela excelência da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, vem decidindo pela eficácia do negócio jurídico quando o credor não diligenciado o registro da constrição na forma do art. 659, § 4°, do CPC, como se exemplifica. “FRAUDE À EXECUÇÃO – Inocorrência – Ausência de registro no cartório competente da penhora incidente sobre o imóvel – Inexistência de má-fé do adquirente, uma vez não demonstrado que este tinha ciência da constrição sobre o bem adquirido. Não havendo registro no cartório competente da penhora do imóvel, não há que se falar em fraude à execução, salvo se aquele que alegar a fraude provar que o terceiro adquiriu o bem sabendo que estava penhorado”.39 37 MATTIA, Fabio Maria. Op. Cit e loc cit. RIZZARDO, Arnaldo. Obra citada, pág. 225. 39 STJ. REsp 113.666. j.13.5.1997. DJU 30.6.1997. RT. 746, p. 209. São Paulo: Dezembro 1997. 38 instituição toledo de ensino 310 Esse julgado, muito embora não o disse expressamente consagrou o princípio da boa-fé e com isso albergou a teoria da aparência. No mesmo sentido encontram-se outros julgados: RT. 727/292, 737/425, 765/158, 769/179; RSTJ 128/25; JTACSP-Lex 134/76, 164/430; JTARGS 59/213, 60/325, 84/241, 101/155, 101/379; RDR 2/252, 7/253. 14/341, 17/189; JSTJ e TRF-Lex 32/194, 95/366, 102/385, 105/248, 105/251, 109/164; RTJ 111/690; RDDT 1/154; RDTJRJ 36/99; ESTJ 20/193, 26/149.; RJ 249/92; RJTAMG 56-57/225; JTJESP 169/58; RSDCPC 2/123, 5/125. 6. CONCLUSÕES Postas estas questões, é possível extrair algumas conclusões, como se vê a seguir: 1. A teoria da aparência é um instituto de direito utilizado para dar validade e eficácia a um negócio realizado com que não poderia realizá-lo de fato, mas que parece poder fazê-lo. 2. Essa validade e eficácia que se dá a um negócio realizado sob o influxo da teoria da aparência ocorre para não prejudicar o terceiro de boa-fé, que realiza o negócio pensando estar realizando um negócio possível. 3. A teoria da aparência existe para proteger a boa-fé, sendo esta princípio constitucional hoje albergado pela atual Constituição Federal. 4. Em sendo possível a aplicação da teoria da aparência para amparar a boa-fé do adquirente que adquire sob a aparência, com muito mais e maiores razões deve ser essa teoria aceita e aplicada nos casos de alegação de fraude de execução, quando o comprador adquire a coisa de seu verdadeiro dono (não só aparente), mas cujo vendedor é simplesmente devedor, mas o bem ainda se apresenta (aparenta) estar livre de constrição ou ônus. 5. O mais difícil dos enganos é comprar de quem não é o dono ou não tem poderes para vender e isso é protegido pela teoria da aparência, logo, o mais leve engano, que é adquirir um bem do verdadeiro proprietário e que aparentemente está livre de constrição ou ônus, também merece amparo por essa teoria 6. Nessa linha de entendimento, a teoria da aparência deve ser aplicada sempre que em algum negócio jurídico surge a alegação de fraude à execução e o adquirente tenha adquirido o bem sob a aparência de estar livre de constrição e ônus. 7. A análise da fraude à execução não pode ser feita sem a observância e o respeito aos princípios da dignidade humana, da boa-fé e da proporcionalidade, o que por via de conseqüência implica no acolhimento e aplicação da teoria da aparência. 8. Não se podendo desamparar aquele que adquiriu de quem não era o titular do direito, quando tenha assim agido de boa-fé e sob os influxos da aparência, da mesma forma não se pode negar amparo ao adquirente que negocia com o legítimo dono sob a aparência de que o bem se encontrava desonerado. instituição toledo de ensino 311 9. Aquele que negocia e adquire certo bem com o devedor, mas que o faz sob a aparência de que estaria adquirindo um bem livre de ônus e constrição, deve ser amparado pela teoria da aparência e o negócio jurídico considerado plenamente eficaz. 10. O adquirente de boa-fé adquire e receber a coisa na situação regente no momento do negócio e se nesse momento lhe parecia que o bem estava livre de ônus e desembaraçado de qualquer constrição, a aquisição é da mais plena eficácia e não pode poderá falar em ineficácia por fraude à execução. 11. Não se pode premiar o credor relapso que deixa de dar publicidade ao ônus ou a constrição que recai sobre o bem na forma determinada pelo art. 659, °± 4°, CPC, em detrimento do direito, da boa-fé e da dignidade humana do adquirente que age impulsionado pela aparência de que tal bem estava livre e desembaraçado de quaisquer ônus ou constrição. 12. A teoria da aparência que se faz presente em todos os campos do direito deve também aqui ser levada em conta e sempre que a aquisição for de boa-fé, amparada pela aparência, esta última deve ser acatada e respeitada, sob pena de criar a mais cruel injustiça ao adquirente de boa-fé. 13. A nova sistemática processual adotada a partir da reforma de 1994, com a inclusão da necessidade de registro da penhora no processo de execução, veio dar nova direção à questão da fraude de execução, que sem o registro para dar publicidade ao ônus não se pode mais falar em fraude à execução. 14. A fraude à execução deve ser analisada frente à teoria da aparência e sempre que ao adquirente parecer estar adquirindo o bem livre e desembaraçado, afastada fica qualquer pecha de fraude à execução. 15. Sempre que se colocar frente a frente o desleixo do credor em não registrar a constrição ou o ônus que recai sobre o bem e a boa-fé do terceiro adquirente que vivifica o seu desconhecimento da existência de ônus ou constrição, esta deve prevalecer em nome e em acolhimento à teoria da aparência. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL LEÃO, Antonio Carlos e REGO, Gerson Pereira. Aplicabilidade da teoria da aparência nos negócios jurídicos. São Paulo: RT. vol. 618. Abril, 1987. ARRUDA ALVIM. J.M. O terceiro adquirente de bem imóvel do réu, pendente ação reivindicatória não inscrita no registro de imóveis, e a eficácia da sentença em relação a esse terceiro, no direito brasileiro. Revista de Processo – REPRO 31. São Paulo: RT. Julho/setembro, 1983. BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica. 1996. CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense 1977. 312 instituição toledo de ensino LANDIM, Francisco. A propriedade imóvel na teoria da aparência. São Paulo: CD Livraria, Editora e Distribuidora Ltda. 2001. MATTIA, Fábio Maria. Aparência de representação. 1984. PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Tomo III. Rio de Janeiro. Borsoi 1954. PONTES DE MIRANDA. Comentários CPC. Tomo IX. Rio de janeiro. Forense 1976. RAO, Vicente. O Direito e a vida do direito. Vol. 2. Tomo I. São Paulo. 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Um exemplo: “O direito de votar negado às mulheres foi mais um tabu que se desfez”.1 Já, De Plácido e Silva, em sua obra tradicional, diz que, figuradamente, “é a expressão empregada para designar toda pessoa ou coisa que é tida como um mito, ou se transforma em coisa inatacável, quando em realidade não passa de pessoa, ou coisa comum, sem os atributos de que a crendice a investiu”.2 Talvez seja lícito dizer, então, que o processo penal brasileiro ainda tem alguns “tabus”, como, v.g., o entendimento de que a existência do Ministério Público de segunda instância, de modo a “falar” a acusação, e não a defesa, por último (já que esta não é intimada do parecer daquela), subvertendo-se clássico princípio processual penal, não ofende os princípios constitucionais da isonomia, do contraditório e, em última análise, da amplitude de defesa. “Tabus” como esse foram contemplados, infelizmente, com o beneplácito da jurisprudência, que neles não vê qualquer ofensa constitucional, apesar de respeitá1 MICHAELIS: Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1998, p. 2.006. Vocabulário Jurídico. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 792; destacamos. 2 314 instituição toledo de ensino veis insurgências contra a posição tradicional, inclusive de eminente membro do próprio Ministério Público.3 Porém, conquanto acabem sempre caindo, alguns “tabus” processuais penais parecem fazer “hora-extra” no mundo jurídico, mesmo quando se constata, na doutrina, farto e rico manancial de argumentos para, infirmando a jurisprudência prevalente, alterá-la. É o caso do entendimento de que no interrogatório judicial não se exige a presença de Defensor, não gerando sua ausência qualquer nulidade e nem ofensa ao princípio da ampla defesa (salvo quando se tratar de acusado menor, em que a presença de Curador é obrigatória, entendida a expressão “Curador”, conforme se verá mais tarde, como quase qualquer coisa, inclusive Advogado). Este o objeto de nossa singela investigação: tentar compreender porque tal “tabu”, embora já há muito chegada sua hora, ainda não caiu. 2. INTERROGATÓRIO: CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA Segundo o inesquecível José Frederico Marques, “Consiste o interrogatório em declarações do réu resultantes de perguntas formuladas para esclarecimento do fato delituoso que se lhe atribui e de circunstâncias pertinentes a êsse fato”,4 estando o seu procedimento detalhado nos arts. 185 usque 196 do Código de Processo Penal Brasileiro. A discussão sobre natureza de tal e importantíssimo ato processual, se meio de prova ou de meio de defesa, é antiga. Eduardo Espinola Filho, por exemplo, entendia que o interrogatório, além de ser uma fonte de prova, “pode constituir, êle próprio, prova, quando o réu confessa o fato”,5 apesar de lembrar que o Ministro Bento de Faria não se cansasse de recomendar que o interrogatório é considerado, substancialmente, um meio de defesa.6 Já Frederico Marques, em sua obra já citada, repelindo o conceito de que o interrogatório é apenas ato de defesa, achou aceitável o entendimento de Lincoln Prates, para quem o interrogatório é, concomitantemente, meio de prova e ato de defesa.7 3 Cf., a propósito, a excelente peça doutrinária do Promotor de Justiça Rogério Schietti Machado Cruz intitulado “O parecer do Ministério Público Ante a Isonomia e o Contraditório”. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, 1997, abril/97, nº 53, p. 5. 4 Elementos de Direito Processual Penal. Rio – São Paulo: Forense, 1961, vol. II, p. 322. 5 Código de Processo Penal Anotado. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960, vol. III, p. 25. 6 Op. cit., p. 20. 7 Op. cit., p. 21. instituição toledo de ensino 315 Mais recentemente, Fernando da Costa Tourinho Filho sustenta, com ênfase, que o interrogatório é meio de defesa, assim abordando o assunto: “A despeito de sua posição topográfica, no capítulo das provas, é meio de defesa; pode ‘constituir fonte de prova, mas não meio de prova: não está ordenado ad veritatem quaerendam’”.8 Tanto assim que, embora possa o Juiz formular ao acusado as perguntas que lhe parecerem apropriadas e úteis, transformando o ato numa oportunidade para a obtenção de prova, em face do texto constitucional (art. 5º, LXIII), que consagrou o direito ao silêncio, o réu responderá às perguntas a ele dirigidas se quiser, pelo que não se pode dizer seja o interrogatório meio de prova,9 lembrando ainda o mestre que, fosse o interrogatório meio de prova, “a Lei de imprensa também o exigiria” e “o Código Eleitoral não o dispensaria”,10 não se podendo sustentar que essa dispensa coarctaria a defesa, já que tanto no crime de imprensa como no crime eleitoral ela, defesa, já se fez, na resposta dada antes do recebimento da denúncia. O Excelso Pretório já se manifestou a respeito, deixando assentado que “O interrogatório do acusado constitui meio de prova e também meio de defesa, este pessoalmente exercido por aquele. Por ser meio de defesa, o defensor técnico, constituído ou dativo, pode considerá-lo dispensável, de acordo com as circunstâncias do caso concreto” (RTJ 73/760). Já o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, reconheceu: “O interrogatório, repita-se, é peça de defesa. O réu, por isso, tem direito de conhecer seu conteúdo, explicado pelo juiz. Ele responde a fatos; não se lhe exigem conhecimentos normativos” (DJU 05.02.96, p. 1.448). Com o máximo respeito dos que pensam de forma diversa, tendemos a aderir à posição do Prof. Tourinho Filho, porém não há como se negar que o interrogatório, sobre ser, de fato, meio de defesa, pode também constituir fonte de prova, sobretudo em face de eventual confissão do réu, daí porque talvez pudéssemos assim sintetizar a questão: a regra é que o interrogatório é meio de defesa; a exceção é que ele até pode ser meio de prova. 8 Código de Processo Penal Comentado. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, vol.1, p. 380. Op. cit., p. 381. 10 Op. cit., p. 381. 9 316 3. instituição toledo de ensino A PRESENÇA DO DEFENSOR NO INTERROGATÓRIO. O ENTENDIMENTO PREDOMINANTE NA JURISPRUDÊNCIA Sendo o interrogatório um meio de defesa, ou, na pior das hipóteses, também um meio de defesa, é intuitivo indagar-se se a presença do Defensor do acusado é indispensável ao ato, ainda que ele não possa, por expressa disposição legal (CPP, art. 187), também aplicável ao representante do Ministério Público,11 “intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas”. Formou-se entre nós maciça jurisprudência entendendo que a ausência do Advogado no interrogatório judicial não acarreta a nulidade do processo, ou seja, a presença do Defensor não é indispensável à formalidade do ato e à garantia da ampla defesa. Com efeito, é voz corrente tanto no Superior Tribunal de Justiça como no Supremo Tribunal Federal: “Embora seja o interrogatório judicial meio de defesa e fonte de prova, não está ele sujeito ao princípio do contraditório (STF, HC 68.929-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 28.02.92), não constituindo nulidade a ausência do defensor do réu, à míngua de obrigatoriedade de sua intimação, conforme inteligência do artigo 394, do CPP (STJ, RHC 1.280-0/MG - Rel. Min. Adhemar Maciel, "in" Ementário 7/289). Em tema de nulidade no processo penal, é dogma fundamental a assertiva de que não se declara a nulidade de ato se dele não resulta prejuízo para a acusação ou para a defesa ou se não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa (CPP, artigos 563 e 566)”.12 M. F. Podval, em festejado e recente repertório jurisprudencial,13 anotou nada mais nada menos que vinte e um julgados que entendem dispensável a presença do Advogado no ato do interrogatório, contra apenas um que a entende imprescindível. Em alguns daqueles acórdãos sustenta-se que a presença do Defensor é até “aconselhável”, embora “dispensável” (RT 604/424).14 Outros já são mais “generosos”: o processo só poderá ser anulado “se” da ausência do defensor decorrer “prejuízo para o réu” (RT 719/430).15 Mas, no último dos julgados selecionados, enten11 Apud JESUS, Damásio Evangelista de. Código de Processo Penal Anotado. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 137. STJ – Resp. nº 62.515-SP – Rel. Min. Vicente Leal – J. 04.12.95 – DJU 11.03.96. 13 FRANCO, Alberto Silva, et alii. Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo: RT, 1999, vol. 2, p. 2.228-30. 14 Op. cit., p. 2.228-9. 15 Op. cit., p. 2.229. 12 instituição toledo de ensino 317 deu-se que é irrelevante a presença do Defensor até mesmo no caso de réu preso (RT 721/534).16 De qualquer forma, dos Tribunais estaduais ao Supremo Tribunal Federal, o entendimento jurisprudencial predominante é no sentido de que não é nulo o processo em que o acusado foi interrogado sem a presença de um Defensor, principalmente porque esta não constitui exigência legal (RT 591/315),17 tratando-se o interrogatório de “ato pessoal” do Juiz que “não está sujeito ao princípio do contraditório” (RT 721/534),18 “mesmo porque o defensor do acusado não pode intervir ou influir nas perguntas e respostas” (STF – HC – Rel. Carlos Velloso – DJU 06.12.96, p. 4.871).19 Cremos que o resultado de pesquisa semelhante em qualquer outra compilação jurisprudencial não destoará muito daquele a que chegamos consultando a obra citada: algo em torno de vinte por um.20 4. UM VOTO HISTÓRICO Baseado em voto vencido do então Juiz Sérgio Pitombo, do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, hoje Desembargador do Tribunal de Justiça do mesmo Estado, que dava provimento a apelação em que se postulava a nulidade de processo contravencional porque feito o interrogatório do apelante sem a presença de Advogado, interpuseram-se embargos infringentes que, também por maioria de votos, foram improvidos pela 10ª Câmara daquela Corte, restando vencidos o Juiz Márcio Orlando Bártoli, com declaração de voto, e o quinto Juiz.21 Esse voto vencido, do eminente Juiz Márcio Bártoli, é, conforme cremos, histórico, pois, se não foi o primeiro, com certeza foi o mais extraordinário precedente aberto em termos de se reconhecer que a ausência do Advogado no interrogatório do acusado ofende o princípio da ampla defesa assegurado constitucionalmente. Acena inicialmente Márcio Bártoli, em seu voto primoroso,22 com o art. 261 do CPP, que preceitua que nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será pro16 Op. cit., p. 2.230. Op. cit., p. 2.229. 18 Op. cit., p. 2.229. 19 Op. cit., p. 2.229. 20 O entendimento de que a entrevista do acusado com um Advogado antes do interrogatório não é obrigatória e nem se constitui causa de qualquer nulidade também predomina na jurisprudência, indicando M. F. Podval, nesse sentido, os seguintes julgados: RT 748/632, RT 744/587 e 742/551 (op. cit., p. 2.230). Em sentido contrário, merece destaque acórdão relatado pelo Ministro Vicente Cernichiaro (STJ – Resp. 54.781-4 – DJU 26.02.96, p. 4.093). 21 TACRIM-SP – 10ª Câm. – EI 823.723/2 – Rel. Juiz Samuel Júnior – 26.04.95 – Revista dos Tribunais nº 719, p. 4304 – Setembro de 1995. 22 Cit., p. 431. 17 instituição toledo de ensino 318 cessado e julgado sem Defensor, para, ao depois, invocar a lição de José Frederico Marques, para quem “na falta de defensor do acusado o juiz está obrigado a nomear pelo menos um patrono ad hoc, para assistir a realização do interrogatório”,23 lição essa que segue a mesma linha de pensamento de Magalhães Noronha: o interrogatório é ato estritamente da autoridade e do acusado, não podendo o Advogado ou o Ministério Público intervir, exceto quando se verifique abuso da autoridade. “A presença do defensor, porém, é obrigatória pelo Código”.24 E prossegue Márcio Bártoli: “Não ser processado ou julgado sem defensor, significa que nenhum ato procedimental relevante” – e o interrogatório o é certamente – “referente a réu presente ou ausente, preso ou solto, poderá ser efetivado na ausência do defensor técnico”,25 pois, ainda segundo Frederico Marques, pode o processo seguir seus trâmites procedimentais, sem a presença do réu, mas “impossível, porém, será a sua movimentação sem que funcione e atue, em todos os atos e fases de seu transcorrer, o defensor técnico do acusado”.26 Rogério Lauria Tucci também é citado no histórico voto vencido: “para assegurar a liberdade e, sobretudo a igualdade das partes faz-se imprescindível que, durante todo o transcorrer do processo, sejam assistidas e/ou representadas por um defensor, dotado de conhecimento técnico especializado, e que, com sua inteligência e domínio dos mecanismos procedimentais, lhe propicie a tutela de seu interesse ou determine o estabelecimento ou restabelecimento do equilíbrio do contraditório”.27 Márcio Bártoli também argumenta com a dicção do art. 5º, LXIII, da Constituição Federal, que reafirma a necessidade da presença do Defensor técnico em todas as fases do processo, pois dispõe que o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de Advogado.28 E, comentando tal enunciado constitucional, o Juiz invoca o magistério de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, que salientam que “a Constituição prevê a possibilidade de assistência de advogado, seja no momento da prisão, seja – pela mesma extensão – no mo23 Cit., p. 431. Cit., p. 431-2. 25 Cit., p. 432; destacamos. 26 Cit., p. 432; destacamos. 27 Cit., p. 432; destacamos. 28 Cit., p. 432. 24 instituição toledo de ensino 319 mento do interrogatório (policial ou judicial), para que haja a interação entre a defesa técnica e a autodefesa”.29 Não é só. Aduz ainda Márcio Bártoli que sendo o interrogatório meio de defesa (cf. Tourinho Filho) esta “deve ser exercida em sua plenitude, como o garante a Constituição Federal (art. 5º., LV), ou seja, assegurando-se sua execução somente na presença de defensor técnico, possibilitando-se, ainda, contato precedente entre este e o réu, ainda em obediência à regra dos arts. 263 e 265 do CPP”.30 Alberto Silva Franco também é lembrado na decisão de Márcio Bártoli.. Então Juiz relator da apelação nº 271.835, da Comarca de Altinópolis, decidiu: “De nenhuma valia seria o princípio constitucional da ampla defesa sem a presença de um Defensor nos atos instrutórios. O princípio do contraditório, que participa do conceito de ampla defesa, implica na ‘paridade de potência nos contraditores’ e, como ensina Bellavista (...), ‘o imputado que não conhece o direito, tem necessidade de ser assistido por alguém que o conheça pois a própria natureza dialética do processo exige um duelo de armas iguais e não são as armas de um acusador, perito em direito e de um acusado, jejuno em direito’”.31 Aí intervém o Advogado para velar pela correção do ato, prossegue Márcio Bártoli, invocando agora Vicente Greco Filho: “isto é, para que fique preservada a liberdade e integridade do acusado contra coação ou induzimento, bem como para que o que constar do termo seja o que realmente foi dito”.32 Também é referido o art. 133 da Constituição Federal, que assegura que o Advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei, o que quer dizer, agora segundo José Afonso da Silva, que “A advocacia não é apenas um pressuposto da formação do Poder Judiciário. É também necessária ao seu funcionamento. A advoca29 Cit., p. 432; destacamos. Cit., p. 433; destacamos. 31 Cit., p. 433; destacamos. 32 Cit., p. 433; destacamos. 30 instituição toledo de ensino 320 cia não é apenas uma profissão, é também um munus e uma árdua fadiga posta a serviço da Justiça, como servidor ou auxiliar da Justiça. É um dos elementos da administração democrática da Justiça...”.33 O Supremo, aliás, como está no voto primoroso, já reconheceu, através de julgado relatado pelo Ministro Celso de Mello, “a importância irrecusável do advogado no dar concreção ao direito de ação e ao direito de defesa, que derivam, como postulados inafastáveis que são, do princípio assecuratório ao Poder Judiciário”.34 Então a conclusão do eminente Juiz Márcio Bártoli: “Enfim, como restaram violados preceitos do Código de Processo Penal e corolário do princípio constitucional da ampla defesa, a nulidade processual, no caso, é absoluta, insanável, não se cogitando de demonstração de prejuízo” (cit., p. 433; destacamos). E o arremate: “Reafirmadas pela Constituição de 1988, em enunciados mais claros e precisos, as regras do devido processo legal aos acusados em geral; do contraditório; da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; da necessidade de assistência de advogado; da essencialidade de sua presença à administração da justiça, tais princípios não podem ser olvidados nem ser objeto de uma interpretação chamada de retrospectiva – como observou a Profa. Ada Pellegrini Grinover, na apresentação do livro Presunção de Inocência e Prisão Cautelar, de Antonio Magalhães Gomes Filho – resultado dos interesses contrariados, do imobilismo e do conservadorismo, da indolência mental, ‘fatores que levam a uma certa propensão, da doutrina e da jurisprudência, a interpretar o texto novo de maneira que ele fique tão parecido quanto possível com o antigo: Põe-se ênfase nas semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou’”.35 33 Cit., p. 433. Cit., p. 433; destacamos. 35 Cit., p. 434; destacamos. 34 instituição toledo de ensino 321 Fizemos questão de reproduzir praticamente na íntegra os fundamentos do referido voto porque o temos, ainda que vencido, como documento jurídico de leitura obrigatória, seja porque reuniu num só texto quase toda a doutrina brasileira partidária da nulidade de processos em que o interrogatório judicial é feito sem a presença de Advogado,36 seja porque se constitui, verdadeiramente, num marco histórico de nossa jurisprudência. 5. OUTROS JULGADOS DISSONANTES Apesar do farto manancial de argumentos contidos no voto vencido de que se cuidou acima, de fato são poucos os julgados que seguiram pela mesma trilha. Voltemos, pois, àquele solitário acórdão selecionado por M. F. Podval, na obra já citada: “Interrogatório do réu realizado sem a presença do Ministério Público e da defesa técnica acarreta nulidade absoluta, insanável, por violação do disposto no art. 564, III, d, primeira parte, c/c o art. 261, do CPP. O princípio constitucional do contraditório, conjugado ao da defesa plena, exige que o réu tenha defensor em todo o transcurso da relação processual’ (TARS – AP – Rel. Paulo Cláudio Tovo – RT 595/423)”.37 Julio Fabbrini Mirabete, interpretando o art. 187 do CPP, indica algumas fontes jurisprudenciais que entendem que a ausência do defensor acarreta nulidade: JTAERGS 51/139, 52/127, 53/99 e 54/147; e RT 595/422-2.38 Lembremos apenas que ele também enumera julgados no outro sentido, em número de vinte e dois.39 De sorte que qualquer pesquisa que se faça hoje, seja em repertórios escritos, seja nos bancos de dados dos Tribunais ou instituições que mantêm páginas na Internet, o número de julgados “pró-nulidade” (chamemos assim) é, sempre, e incrivelmente, inferior. E o que é pior: parece ampliar-se na jurisprudência a tendência de não se ter por nulo até mesmo o interrogatório de acusado menor sem a assistência efetiva de Curador se não ocorrer “prejuízo”,40 fato que será abordado mais adiante. 36 Todas referências bibliográficas encontram-se detalhadas no corpo do voto, pelo que entendemos desnecessário fazê-lo novamente aqui. 37 Op. cit., p. 2.228. 38 Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1997, p. 267. 39 Op. cit., p. 267. 40 Cf., v.g., RT 722/573. 322 instituição toledo de ensino Fica feito, entretanto, o presente registro dos julgados que poderíamos chamar de “dissonantes”. 6. CONCLUSÕES DOUTRINÁRIAS PARADIGMÁTICAS Vimos já que é grande o número de juristas partidários da nulidade dos processos em que o acusado não se encontrava assistido por Advogado, apesar da jurisprudência predominante em nossos Tribunais. Merece, porém, destaque um texto relativamente recente de René Ariel Dotti, que, tratando de temas de processo penal discutidos no I Congresso Brasileiro de Direito Processual e Juizados Especiais, promovido pelo Instituto de Ciências Jurídicas e outras entidades profissionais e acadêmicas, realizado em Florianópolis em 27/29 de agosto de 1997, abordou, num dos tópicos do estudo (“O Interrogatório como Ato do Processo”), a questão ora discutida de forma concisa, incisiva e, mesmo, paradigmática.41 Diz o jurista, que entende “bizantina” a discussão sobre a natureza jurídico-processual do interrogatório, se meio de defesa ou de prova,42 o seguinte: “A colheita do interrogatório sem a assistência do defensor (dativo ou constituído) ofende os princípios constitucionais e legais do contraditório e da ampla defesa. Aliás, o próprio CPP, elaborado ao tempo da ditadura do Estado Novo, proclama que ‘nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor’ (art. 261). Não colhe o eventual argumento de que a proibição imposta ao defensor de intervir ou influir ‘de qualquer modo, nas perguntas e respostas’, dispensaria a presença do advogado para a validade desse ato essencial do processo cuja falta poderá acarretar a nulidade (CPP, art. 564, III, e, segunda parte). Com efeito, a assistência do patrono é necessária não somente no plano técnico-jurídico como também no moral, diante dos termos do Código de Ética e Disciplina do Advogado quando estabelece que é seu direito e dever assumir a defesa criminal, ‘sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado’ (art. 21)”.43 Lembra ainda o Prof. Dotti que, em face da Lei 9.099/95, o autor do fato deve ser assistido por Advogado (art. 72) e que a proposta de transação penal deve ser 41 “Temas de processo penal”. In: Revista dos Juizados Especiais. São Paulo: Fiuza Editores, 1997, julho/setembro, nº 5, p. 30. 42 Cit., p. 32. 43 Cit., p. 33; destacamos. instituição toledo de ensino 323 aceita pelo autor da infração e seu defensor, de modo que “não persiste nenhum fundamento jurídico para se marginalizar o defensor na audiência do interrogatório das infrações de maior potencial ofensivo que são processadas perante o juízo comum”.44 E um último e relevante argumento, este de ordem constitucional, é traçado pelo autor: “Finalmente, o advogado é ‘indispensável à administração da Justiça’, como o proclama a lei fundamental (CF, art. 133). Esta exigência, inerente ao princípio do devido processo legal, se torna mais evidente relativamente ao único ato em que o réu pode manter um diálogo direto com o Juiz: o interrogatório”.45 A propósito, é sempre bom recordarem-se as loquazes observações de Adauto Alonso S. Suannes, ao comentar certo acórdão do Supremo Tribunal Federal: “Se a Constituição considera a presença do Advogado indispensável para que tenhamos um fair trial, para que essa conquista duramente trabalhada ao longo da conceituação da due process clause não seja algo meramente formal, como aceitar-se que seu trabalho seja considerado algo absolutamente despiciendo? De fato, segundo a jurisprudência, a presença do defensor no interrogatório é dispensável, a defesa prévia é dispensável, a intimação do defensor da data da audiência que se realizará no Juízo deprecado é dispensável, as alegações finais são dispensáveis, a interposição de recurso contra a sentença condenatória é dispensável, as razões de recurso são dispensáveis, as contra-razões do recurso são dispensáveis, os embargos infringentes são dispensáveis, os embargos infringentes são dispensáveis, a atuação em revisão criminal é dispensável. E isso porque a Constituição diz que o Advogado é indispensável. Imagine-se se ela dissesse ser ele dispensável!”.46 Esses dois e tão enfáticos – e indispensáveis – artigos jurídicos, que resumem bem a doutrina moderna sobre o tema, ainda não comoveram nossos Tribunais, como também não o fizeram os igualmente irrespondíveis pareceres doutrinários anteriores. Lamentavelmente. O que nos reforça a convicção de que estamos a tratar, realmente, de um “tabu”. 44 Cit., p. 33; destacamos. Cit., p. 34. 46 “O ativismo judicial”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Ed. RT. 1999, julho/setembro, nº 27, p. 348-50; destacamos. 45 instituição toledo de ensino 324 É certo que simples modificações legislativas47 poderiam resolver o problema, bastando que se tornasse obrigatória, em enunciado expresso, a presença do Advogado em todos os atos do processo, inclusive no interrogatório, e assim, também expressamente, o direito de o acusado se entrevistar com um antes do ato, sob pena de nulidade absoluta do processo. Mas o mau vezo dos nossos legisladores em criar leis de ocasião, e em tornar piores leis já péssimas, não nos faz nutrir grandes esperanças de alterações imediatas. Daí porque estamos a defender a necessidade de uma revisão jurisprudencial diante do próprio sistema processual penal vigente, o que entendemos perfeitamente possível. 7. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. DEFESA TÉCNICA E AUTODEFESA. Uma pessoa é honesta ou é desonesta. Não existe pessoa “meio” honesta. Assim, segundo pensamos, é que deve ser entendido o direito à ampla defesa: ou ela é ampla ou não é. Não existe defesa mais ou menos ampla, ou “meio” ampla. Ou, com as palavras de Adauto Suannes: “ou algo é amplo ou é restrito. Uma mesa é larga ou é estreita. O contrário de mesa larga não é, até onde o bom senso permite afirmar, mesa inexistente. Logo, o contrário de defesa ampla é defesa restrita, reduzida, parca, escassa. Se a Constituição Federal exige que a defesa seja ampla, pena de nulidade, tem-se que – a menos que se revoguem os dicionários – uma defesa escassa, parca, reduzida, restrita implicará na nulidade do processo. Contrapor amplo a existente é escamotear a garantia constitucional”.48 Mas, afinal, no que se consubstancia o princípio da amplitude de defesa? Dilo a Constituição de 1988, que o previu, juntamente com o princípio do contraditório, em seu art. 5º, LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (destacamos), lembrando Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco que, “No processo penal, entendem-se indispensáveis quer a defesa técnica, exercida por advogado, quer a autodefesa, com possibilidade dada ao acusado de ser interrogado e de presenciar todos os atos 47 Ao menos nos arts. 185 e seguintes e 564 do CPP. “O ativismo...” cit., p. 350; destacamos. 48 instituição toledo de ensino 325 do processo. Mas enquanto a defesa técnica é indispensável, até mesmo pelo acusado, a autodefesa é um direito disponível do réu, que pode optar pelo direito ao silêncio”.49 Como já anotamos, René Ariel Dotti acha que a discussão sobre se o interrogatório é meio de defesa ou meio de prova é “bizantina”. Talvez ela seja mesmo. Pois sendo meio de defesa, meio de prova, ou meio de defesa e de prova, o interrogatório não deixa de ser um ato processual. Sendo um ato processual, onde se exercita a defesa ou onde se produz prova, ou onde se faz as duas coisas, a presença do Advogado é realmente indispensável, pois o acusado só pode renunciar ao seu direito à autodefesa em virtude da existência mesma da defesa técnica. De fato, se num interrogatório judicial o acusado queda-se silente, não estando presente um Defensor durante o ato de renúncia, a rigor não há defesa alguma, pois a autodefesa deixou a sala de audiências com a renúncia do acusado, e a defesa técnica nem a adentrou. Isso nos parece de uma clareza meridiana. Quase, mesmo, constrangedora. 8. INSUSTENTABILIDADE DOS PRINCIPAIS ARGUMENTOS DA JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE À vista do quanto expusemos até aqui, embora sem a pretensão de esgotar a matéria, quer nos parecer que ela está a reclamar uma urgente revisão jurisprudencial. Já há elementos suficientes para tal, tanto na doutrina, de forma quase unânime, como também nos poucos, mas brilhantes, acórdãos citados. Por outro lado, os principais argumentos que servem de base à jurisprudência prevalente, se bem examinados, não podem continuar a norteá-la – e bata-se aqui três vezes na madeira – rumo a súmulas. É que, um a um, podem ser abatidos. Enumeremos, então, para comentá-los em seguida, cada um deles: (a) o interrogatório judicial “não está sujeito ao princípio do contraditório”, pois o art. 187 do CPP veda a intervenção do Advogado; (b) a presença do defensor é até “aconselhável”, embora “dispensável”; (c) é “dogma fundamental” a assertiva de que “não se declara a nulidade de ato se dele não resulta prejuízo para a acusação ou para a defesa”; (d) a presença do Defensor “não constitui exigência legal”; (e) o interrogatório é “ato privativo entre o Juiz e o acusado”. Vamos à análise. (a) Diz a lei processual penal que o Defensor do acusado50 “não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e respostas” (CPP, art. 187). Não há falar-se, aqui, se há contraditório ou não no interrogatório. Pois não há, ante a 49 50 Teoria Geral do Processo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 56; destacamos. E assim, lembre-se, o órgão da acusação. 326 instituição toledo de ensino dicção da lei.51 O que aquela regra proíbe é a intervenção ou influência do Advogado e do Promotor de Justiça “nas perguntas e respostas”, e tão somente nas perguntas e respostas, o que vale dizer, não podem eles formular perguntas, questioná-las, impugná-las, etc., o que, segundo cremos, não os impede, Defensor e Acusador, de fiscalizarem o ato, velando para que as formalidades legais sejam observadas. O art. 188 do CPP, por exemplo, determina ao Juiz quais as perguntas que deverão, repita-se, deverão ser feitas ao interrogando. Uma delas é: “se é verdadeira a imputação que lhe é feita” (inciso V ). Suponhamos que o Defensor não esteja presente e essa pergunta, por um lapso do Magistrado, não seja feita, impedindo que o interrogando negue expressa e enfaticamente a imputação. Se o acusado estiver acompanhado de Advogado o equívoco poderá ser sanado, pois poderá o Advogado, antes do término do ato, pedir a palavra pela ordem e corrigir o equívoco, requerendo que a pergunta, obrigatória por força de lei, seja feita, pois se ela é, para o Juiz, uma obrigação, para o réu é um direito. Não se há falar, aqui, que o Advogado interveio ou influiu nas “perguntas e respostas”, até porque pergunta não houve. O mesmo ocorre se Defensor ou Acusador, fiscalizando o ato, notar que as respostas dadas ao Juiz estão sendo ditadas ao escrevente de sala (vamos dizer apenas isto:) equivocadamente. Eles não estarão “intervindo” ou “influenciando” na resposta, pois estarão apenas requerendo a consignação da resposta efetivamente dada mas equivocadamente ditada. Ou acaso não tem o réu o direito de ver registrado o que realmente disse? E é óbvio que o réu desacompanhado de Advogado, principalmente quando primário, humilde e inculto, não ousará tomar tal atitude, que por certo lhe soaria como uma forma de “enfrentar”ou “desrespeitar” seu interrogador. Demais disso, se o Juiz tem o poder de polícia para coibir os eventuais abusos perpetrados por Promotores de Justiça e Advogados em audiências de instrução, em que o contraditório é obrigatório, com maior firmeza poderá exercê-lo durante o interrogatório, em que a atuação deles é de fato limitada, por força de lei, não vingando, assim, o primeiro argumento. (b) Dizer-se que a presença de Advogado é até “aconselhável”, embora “dispensável”, é, no mínimo, inusitado. Pois se a presença do defensor é aconselhável, ela é (reabramos o MICHAELIS) recomendável.52 Ora, por que dispensar-se o que se recomenda, notadamente se quem recomenda é um órgão do Poder Judiciário? Se se recomenda a presença do Defensor, é porque ela poderá ser útil. Senão ela não seria recomendável, pois não se recomendam coisas inúteis. E sendo útil a presença do Advogado no interrogatório não há como sustentar-se sua “dispensabilidade”. 51 Se isso é bom ou ruim para o processo, não nos cabe discutir neste momento. Op. cit., p. 46. 52 instituição toledo de ensino 327 (c) A assertiva de que não se declara a nulidade de ato se dele não resulta prejuízo para a acusação ou para a defesa pode até ser um “dogma fundamental”, mas mais fundamental ainda é o dogma que garante aos acusados, inclusive em processos administrativos, o contraditório e a mais ampla defesa, até porque o primeiro dogma não se encontra no rol dos 77 incisos do art. 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, enquanto o segundo lá se encontra já faz um bom tempo, inclusive num inciso bem fácil de decorar: LV. De modo que, dogma por dogma, é preferível que se fique com o mais relevante e fundamental. Por outro lado, não é demais repetirem-se as argutas indagações de Adauto Suannes, ao tratar da “incrível exigência” da “prova de prejuízo”: “Acaso a restrição da liberdade não significa prejuízo? A simples quebra da primariedade não é prejuízo? Exige-se comprovar o que já está comprovado”.53 (d) Sustenta-se também que a presença do Defensor não constituiria “exigência legal”. Mas constitui sim. Já vimos isso. Diz o art. 261 do CPP: “Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor” (destacamos). Ora, se o processo é uma sucessão de atos processuais, e se o interrogatório é um deles, é naquele dispositivo que está a exigência da presença do Advogado, até porque se não há, do art. 185 ao art. 196 do CPP, nenhum artigo determinando expressamente a presença do Advogado, também não há nenhum vedando-a ou dispensando-a. (e) Diz-se, finalmente, que o interrogatório é um ato privativo entre o Juiz e o acusado, e que por isso não há a necessidade da presença do Advogado. Ora, a se levar ao pé da letra tal premissa, forçoso seria concluir que o Magistrado, além do Direito, deve dominar também, e necessariamente, a datilografia, a digitação ou a estenotipia, pois o escrevente de sala não é nem Juiz e nem acusado. De se anotar, por outro lado, que é da essência do processo penal brasileiro o contraditório em todo o seu transcorrer, tratando-se, portanto, aquele ato privativo de verdadeira exceção, fato que, paradoxalmente, torna ainda mais necessária a presença do Defensor no interrogatório, justamente porque mitigada, em tal ato, a regra, a essência do processo. Há quem alegue que os interrogatórios alongar-se-iam demasiadamente com a presença obrigatória do Defensor. Decerto eles se alongarão, se abusos forem praticados. Mas a perfectibilidade de um ato não se mede pelo tempo de execução, sim pela observância de suas formalidades intrínsecas, disso resultando que apenas os entusiastas de “interrogatórios-relâmpago”, que com freqüência se vêem por aí, têm o que comemorar com a ausência do Advogado. 53 “O ativismo...” cit., p. 350; destacamos. instituição toledo de ensino 328 De qualquer forma, pelos motivos já alinhados, mal algum existe na fiscalização do interrogatório, importantíssimo ato processual que é. Muito pelo contrário, tal fiscalização somente poderá torná-lo melhor, já que o Juiz agirá com mais exação na colheita da palavra do acusado. Assim, com o máximo respeito, não cremos sustentar-se qualquer dos argumentos que servem de base à jurisprudência predominante, data venia. 9. A PRÁTICA FORENSE A discussão a respeito da nulidade do interrogatório judicial sem a presença do Defensor parece travar-se, por vezes, apenas no plano teórico, a maior parte da jurisprudência defendendo a inexistência de nulidade e parcela significativa da doutrina sustentando o contrário, a primeira nas Cortes de Justiça, a outra em cátedras, congressos e editoras. E em pouquíssimos acórdãos. De modo que julgamentos são levados a cabo, votos vencedores e vencidos são brilhantemente produzidos, textos e estudos doutrinários são publicados, desvelando sempre a excelência de seus artífices. Mas é preciso que se projete, na prática, o exato alcance de uma ou outra posição. É preciso que abandonemos, por alguns instantes, as tribunas e os seminários, deixando de lado nossos escritos e arrazoados, e voltemos nossos olhos para o que ocorre no dia-a-dia forense, verificando, aí, se a presença do Advogado é de fato indispensável, e, em caso afirmativo, por que o é. Como sabemos todos, há duas espécies de Defensores, os constituídos (particulares) e os dativos. E desconhecemos casos em que o acusado abastado comparece para ser interrogado desacompanhado do Advogado que constituiu, ou um único caso em que o acusado que pode contratar um causídico dispense a presença dele inclusive no interrogatório, de sorte que deixaremos de lado tais situações para examinarmos, mais detalhadamente, os casos de réus hipossuficientes. Citado, deve o acusado comparecer, para ser interrogado, no dia, horário e local previamente designados. Normalmente o réu desafortunado lá vai ter sozinho, sendo certo que o Juiz, após interrogá-lo, nomeia-lhe Defensor ou o remete à Procuradoria do Estado, que lhe providenciará uma defesa gratuita. Isto, frise-se, normalmente é feito após o acusado ter sido interrogado. Ora, por que é que se nomeia Advogado após o interrogatório, quando o acusado, por ignorância ou temor, já pode ter confessado a prática do delito, ou não se defendido com veemência, ou não exercido o direito que tem de calar-se ou mesmo de não dizer a verdade, o que à sua defesa é perfeitamente lícito? Acaso conceberá um réu humilde e/ou primário a possibilidade de “mentir” para o Doutor Juiz? Acaso conceberá ele a possibilidade de dizer um veemente não ao Magistrado? Aca- instituição toledo de ensino 329 so não quererá o réu tacanho dar o fora dali o quanto antes, inclusive confessando e dizendo-se arrependido para fazê-lo? Já tivemos a oportunidade de, aguardando audiência de cliente nosso, presenciar um “interrogatório” precedente vazado mais ou menos nos seguintes e incríveis termos: Juiz: “Então, você pegou mesmo os tijolos da construção, conforme a denúncia que eu acabei de ler? Está arrependido?”. Réu: “Sim.”. Juiz: “O sr. quer acrescentar alguma coisa?”. Réu: “Não.”. Juiz: “Já foi preso ou processado antes?”. Réu [talvez referindo-se a um antigo inquérito policial arquivado, que o tem por “processo”]: “Sim.”. É claro que o Juiz que assim age, age mal, tratando-se de mau Juiz, como também age mal o Advogado que se cala diante de arbítrio perpetrado contra seu cliente, sendo, também, mau Advogado. Mas, felizmente, aquele “diálogo” é exceção. O que não significa dizer que, nesse campo, uma única exceção seja tolerável. Pois não pode haver duas espécies de Justiça, duas espécies de defesa, duas espécies de réus: aqueles que têm defesa e aqueles que não têm. Nem se alegue que o direito de defesa do réu pobre será eficazmente exercido depois, por Procurador do Estado ou Advogado dativo, pois por melhor que seja o serviço da Procuradoria, e mesmo o trabalho do Advogado nomeado, é sobre o interrogatório que se estrutura e se organiza uma boa defesa técnica. Daí porque a orientação prévia é mesmo indispensável à ampla defesa. Além disso, o que ocorre freqüentemente é que o acusado pobre e ignorante só “conhece” o Defensor que se lhe nomeou, ou o Procurador do Estado encarregado do caso, em audiências de instrução. Dir-se-á: mas ele que procurasse o Defensor nomeado antes delas! Tudo bem, todo acusado deve interessar-se por sua defesa. Mas quem lhe disse, afinal de contas, o que é defesa e como se pode exercê-la de forma integral? E como “interessar-se por sua defesa” depois de seu interrogatório, que segundo a doutrina e a jurisprudência nacionais é, na pior das hipóteses, também meio de defesa? Como se suprimir uma instância, justamente a primeira e mais importante, de sua defesa, cujo exercício tem de ser, por comando constitucional, sempre pleno e amplo? O legislador constituinte de 1988 cometeu ao Estado a obrigação de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (CF, art. 5º, LXXIV ). Assim, se o denunciado não puder contratar um Advogado, é obrigação do Estado fornecer-lhe um, que o defenderá gratuitamente. E apesar de gratuita esta defesa há de ser, igualmente, ampla e plena (CF, art. 5º, LV ). Lembremos mais uma vez que a defesa não pode ser mais ou menos ampla, ou “meio” ampla. Ela é ampla e efetiva ou não é. Poder-se-ia argumentar que o Estado não dispõe de recursos pessoais e materiais para tal. Pouco importa. A “culpa” não é dos acusados pobres. O Estado que se vire para cumprir o que a Constituição lhe determina. Ou então que se suprima a 330 instituição toledo de ensino garantia constitucional de ampla defesa para todos, distinguindo-se, expressamente, quem pode tê-la e quem não pode. Essa questão é aguda, e já foi abordada por José Afonso da Silva, para quem a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos vem configurada, relevantemente, como direito individual, sendo certo que “Sua eficácia e efetiva aplicação, como outras prestações estatais, constituirão um meio de realizar o princípio da igualização das condições dos desiguais perante a Justiça”,54 lembrando, contudo, que a Constituição deu um passo importante ao prever, em seu art. 134, a Defensoria Pública, que se incumbirá “da orientação e defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.55 Mas a idéia da Defensoria Pública ainda não é uma realidade. E, na prática, o que se vê é isto: o acusado é interrogado e, após, pode “contar” com um Defensor, de modo que sua defesa foi “assegurada” e a Constituição, cumprida; o Defensor dativo, na defesa prévia, à míngua de outros elementos e informações, justamente porque não teve contato prévio com o acusado, arrola as mesmas testemunhas da denúncia, de sorte que a defesa “foi feita”, tendo o Estado “cumprido” sua obrigação. Tudo isto com a chancela da jurisprudência majoritária, que não vê qualquer violação constitucional nesse mito, nessa coisa inatacável. Então nos vem a seguinte e surrealista imagem: Legislativo, Executivo e Judiciário, de mãos dadas em alegre ciranda, fazendo de conta que os réus pobres têm assegurado amplo direito de defesa, quando, na realidade, sequer defesa mínima têm. Argumenta-se muito, como já visto, com o velho brocardo de que as nulidades só serão declaradas se do ato que se pretende nulo decorrer “prejuízo”. Ora, é intuitivo, não refugindo sequer ao senso comum, que um réu defenderse-á melhor se tiver a oportunidade de entrevistar-se previamente com um Advogado, que lhe esclarecerá sobre suas garantias constitucionais e sobre seu direito de calar-se, informando-lhe ainda que não estará cometendo crime se ocultar, para defender-se, a verdade. E também é certo que a presença do Advogado no interrogatório fortalecerá, no espírito do inocente, suas convicções, impedindo, por outro lado, que abusos sejam cometidos pelo interrogador, que por certo não agirá como o Magistrado do estranho “diálogo” reproduzido acima, ao menos se o réu estiver acompanhado de um diligente Advogado. Demais disso, o conceito do que seja prejuízo, além de relativo, é muito subjetivo. Reconheceu-se, em certo julgado do Tribunal de Alçada do Estado do Paraná, a inexistência de nulidade do interrogatório de um réu menor de 21 anos desassis- 54 Curso de Direito Constitucional Positivo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 559; destacamos. Op. cit., p. 560; destacamos. 55 instituição toledo de ensino 331 tido de Curador porque ele negou sua participação nos crimes imputados, tendo sido assistido, posteriormente, durante a instrução, por Advogado, não tendo havido, assim, “prejuízo” para sua defesa.56 Já em outro acórdão, este do Supremo Tribunal Federal, ficou decidido: “PENA - Atenuante da confissão feita apenas na polícia, mas retratada em Juízo. O réu que mente ao Juiz durante o interrogatório judicial demonstra tão intensa deslealdade processual que não se credencia a obter o benefício da circunstância atenuante da confissão (CP, artigo 65, III, "d"): inexistência de contradição na sentença”.57 Esses julgados dão bem mostra que a interpretação do interrogatório, e assim de eventual “prejuízo” à defesa, é mesmo relativa e subjetiva, pois, no primeiro caso, reconheceu-se que não houve “prejuízo” porque o acusado, quando interrogado, negou a imputação que lhe foi feita, pelo que foi mantida a condenação, ao passo que no segundo a condenação foi mantida porque, negando o réu, em juízo, a imputação, viu-se nessa negativa “intensa deslealdade processual” (!!!) a inviabilizar o benefício de atenuante... Ou seja, negar a imputação passa a ser uma faca de dois gumes, comportando mais de uma interpretação, embora sempre em desfavor do acusado. No mais, é de se anotar que realmente vem se avolumando o número de julgados com o seguinte teor: “INTERROGATÓRIO JUDICIAL – Réu menor de 21 anos – Falta de assinatura do termo pelo Curador – Nulidade – Inocorrência – Inteligência: artigo 563 do Código de Processo Penal. A simples falta de assinatura do Curador no termo de interrogatório judicial de réu menor de 21 anos constitui mera irregularidade, que não tem o condão de viciar o processo, máxime não havendo prejuízo à parte”.58 Ora, os que militam no dia-a-dia do foro sabem que muitos termos de interrogatório são assinados por Curadores convocados posteriormente, seja em juízo ou na polícia, isto é, o réu ou o preso em flagrante menor de 21 é interrogado e, após, providencia-se um Curador para assinar o termo, fazendo-se de conta, mais uma vez, que garantias constitucionais e legais foram cumpridas. 56 TAPR – Rev. Crim. nº 110.906.200 – Telemaco Borba – 2º Gr. Câm. Crim. – Rel. Juiz Conv. Eduardo Fagundes – J. 12.11.97 – DJ 12.12.97. 57 STF – HC nº 77.134 – SP – Rel. Min. Maurício Corrêa – J. 08.09.98 – DJU 16.10.98. 58 RJTACRIM-SP 30/205; destacamos. 332 instituição toledo de ensino Bem, mas depois de se ter reconhecido que “inocorre nulidade do auto de prisão em flagrante em decorrência da nomeação de Curador ao réu na pessoa de Policial Civil”,59 pode-se esperar qualquer coisa... De todo modo, o problema nos parece gravíssimo, sobretudo porque a jurisprudência sobre a “ausência” de nulidade do interrogatório realizado sem a presença de Advogado vem possibilitando interpretações cada vez mais conservadoras e preocupantes em relação a certos direitos dos acusados, tendo mesmo, em relação a estes, regredido. 10. RESPEITO AOS DIREITOS DOS ACUSADOS: INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO À ADMNISTRAÇÃO DA JUSTIÇA Apesar de constatarmos, como já frisado anteriormente, a existência de farto material doutrinário sustentando a nulidade de processos em que realizado o interrogatório sem a presença de Defensor, nossos Tribunais, em sua maioria, caminham no sentido contrário, interpretando as normas processuais e constitucionais cada vez mais em desfavor dos acusados, sobretudo dos hipossuficientes. Resta, pois, indagar-se o porquê dessa renitência pretoriana, que simplesmente ignora a doutrina mais moderna sobre o tema, fazendo apenas repetir argumentos já há muito superados, data venia. Um único argumento se nos afiguraria discutível (já o ouvimos mais de uma vez, informalmente): a de que a presença obrigatória do Defensor no interrogatório e a necessária orientação prévia do acusado seriam “prejudiciais” à marcha processual, embaraçando e atrasando a tramitação dos feitos criminais, além de encarecêlos para o Estado. Entretanto, o que estamos a sustentar é a necessidade da observância efetiva de garantias constitucionais dos acusados, pois se a Constituição lhes garante defesa ampla e plena, a defesa deve ser, de fato, ampla e plena, sem meios termos. E se o Estado, por comando constitucional, está obrigado a propiciar defesa gratuita para réus pobres, deve propiciá-la e ponto final. E essa defesa gratuita deve igualmente ser ampla e plena, pois não se pode conceber duas espécies diferentes de defesa. E nem por isso, segundo cremos, a marcha processual restaria comprometida, “embaraçada”. Porque o indispensável é que se faculte ao denunciado a possibilidade de consultar-se previamente com um Advogado antes do interrogatório, mesmo não possuindo ele recursos. Para tanto, basta que se insira obrigatoriamente, em todos os mandados de citação, como aliás já o determinam vários Magistrados, e com destaque, aquela possibilidade, indicando-se, com clareza, onde e em que dias 59 RJTACRIM-SP 42/333. instituição toledo de ensino 333 e horários poderão ser recebidos pelo serviço de Assistência Judiciária Gratuita, observadas as peculiaridades locais. Custo dessa providência: zero. Estaria o problema parcialmente resolvido. Aliás, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, ao referirem que mesmo antes do advento da Constituição de 1988 a jurisprudência mais sensível havia fixado a necessidade de se possibilitar ao réu, antes do interrogatório, contato com o Defensor, lembram que o “O VI Encontro Nacional dos Tribunais de Alçada assentou o mesmo entendimento, recomendando que o ato citatório contivesse a advertência ao citando para, querendo, fazer-se acompanhar de advogado: TACrim-SP, Julgados 74/13, nota de rodapé. E, em São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça recomendou aos juízes providências no sentido de possibilitar aos acusados entrevista com o defensor, antes do interrogatório (DJE 10.12.83, p. 14)”.60 E foi justamente com base nessa recomendação que o Ministro Celso de Mello, apesar de também vencido, no Supremo Tribunal Federal, “concedia ordem de habeas corpus, por cerceamento defesa, em favor de acusado cujo patrono sequer postulara o cumprimento dessa regra salutar (STF, HC 68.682-DF)”.61 (Abra-se aqui um parêntese: já não estaria na hora de, pelo menos, essa recomendação ser transformada em lei? Ou se trata apenas de mais uma recomendação “dispensável”?) Por outro lado, no ato do interrogatório, comparecendo o acusado sem Defensor, deve o Juiz nomear-lhe um, inclusive para o ato, pois o direito à defesa técnica é irrenunciável. É certo que isso implicará maiores despesas ao Estado, seja em termos de ampliar-se o quadro de Procuradores do Estado, seja em termos de remunerar os Advogados dativos que eventualmente venham a ser nomeados para o ato e principalmente aqueles que aderiram a Convênios de Assistência Judiciária, como o celebrado, no Estado de São Paulo, entre a Procuradoria Geral do Estado e a Seção Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. Mas, que se há de fazer? A garantia da ampla defesa não está na Constituição da República Federativa do Brasil apenas para enfeitá-la, mas sim para ser cumprida. O Estado que cumpra seu dever, ou que se empenhe em mudar a Constituição, em termos retirar dos hipossuficientes o direito a uma defesa ampla e efetiva – e gratuita. O que vale dizer: à defesa mesma. 60 61 As Nulidades no Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 75. Apud GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: RT, 1997, p. 151. instituição toledo de ensino 334 Em síntese, nenhum “prejuízo” à administração da Justiça resultaria do efetivo exercício da ampla defesa, que, repita-se, existe ou não existe, é ampla ou não é. Não nos opomos a que se sustente o contrário do que sustentamos, mas, nesse caso, que se fale em qualquer outra coisa, menos em “ampla defesa”, ou melhor, que não se fale sequer em “defesa”. 11. NOVAS TENDÊNCIAS PROCESSUAIS PENAIS. LEI 9.099/95 E CONTRADITÓRIO NO INTERROGATÓRIO JUDICIAL Diante da riqueza doutrinária existente acerca do tema objeto destas notas, que a ela aliás nada acrescentam, nós bem poderíamos estar a tratar de assuntos mais palpitantes e ainda em fase de amadurecimento intelectual, ditados principalmente a partir do advento da Lei 9.099/95, que trouxe profundas modificações em nosso ordenamento jurídico, com reflexos marcantes tanto no direito penal como no direito processual penal. De fato, nas causas penais de menor potencial ofensivo, que tramitam sob o rito sumaríssimo, o interrogatório do acusado é o último ato processual antes dos debates orais, ao contrário do que ocorre no processo convencional, em que ele é o primeiro. Trata-se, no nosso cuidar, de norma muito bem-vinda, por dois motivos principais: (a) consolida-se a importância do ato como efetivo meio de defesa do acusado, principal personagem do processo, que, aqui sim, “fala” por último, no apagar das luzes da arena instrutória; (b) encerra-se de vez a discussão sobre a presença do Defensor no interrogatório, pois ele já deverá estar presente nos atos conciliatórios e instrutórios precedentes. Daí porque já seria oportuno postular-se a extensão dessa importante inovação nas causas de “maior potencial ofensivo”, pois a amplitude de defesa, porque fundada em dogma constitucional, deve ser assegurada em quaisquer procedimentos judiciais, independentemente da gravidade dos delitos. Por outro lado, já vicejam discussões sobre a conveniência do contraditório no interrogatório, com a possibilidade da formulação de perguntas, após a inquirição do Juiz, por parte da acusação e da defesa (o que pressupõe sensível alteração legislativa). Por exemplo: como anotado por Antonio Magalhães Gomes Filho, “deve-se lembrar que muitas vezes o interrogatório contém versões incriminadoras para co-réus; nesses casos, a delação, que constitui talvez o mais poderoso elemento de prova em certos crimes, acaba sendo aceita sem que possa o delatado exercer o contraditório sobre o meio de sua introdução no processo”.62 62 Direito à Prova... cit., p. 151. instituição toledo de ensino 335 Ademais, de acordo com o sistema vigente, o interrogatório não deixa de ser uma espécie de “loteria” para o Defensor, pois se o interrogando, por nervosismo, se esquecer de ressaltar algum ponto que seu patrono entendeu relevante ao orientá-lo, a defesa, dali para diante, poderá restar comprometida, já que, v.g., a acusação poderá alegar, ou o Juiz poderá decidir, algo assim: “Sequer o acusado afirmou, em seu interrogatório, que chovia e a iluminação era pouca!”. Mas aquelas novas tendências, a nosso ver, ficam esvaziadas quando constatamos o descaso da jurisprudência prevalente para com a doutrina (Frederico Marques, Magalhães Noronha, Lauria Tucci, Grinover, Scarance, Magalhães, Tourinho Filho, Silva Franco, Vicente Greco Filho, René Ariel Dotti, Adauto Suannes e tantos outros), praticamente unânime em reconhecer que a presença do Defensor, durante o interrogatório, e assim a necessidade de possibilitar-se ao acusado uma orientação prévia antes do ato, são indispensáveis. Sabemos que a matéria tratada nestas notas não é de “alta indagação”, daquelas que suscitem sofisticada investigação científica. Muito ao contrário, é mesmo singela, de fácil compreensão, intuitiva. Mas foi justamente por causa disso que nos dispusemos a tomá-la e examinála, pois se a jurisprudência se mantém insensível diante de coisas simples, que se dirá de sua postura com relação às mais complexas? 12. O PAPEL DO ADVOGADO Por último, é de se frisar que talvez os Advogados tenham também uma parcela de culpa diante desse intolerável estado de coisas, em razão, muito provavelmente,63 do inexpressivo número de alegações de nulidade já na defesa prévia de processos em que se nomeou Advogado ao acusado somente após a realização do interrogatório, embora a doutrina, e mesmo alguns poucos – mas formidáveis – julgados ofereçam farta “munição” para tal. Com efeito, a função do Advogado, diante de tal quadro, é fundamental, pois os direitos dos acusados só podem ser postulados e assegurados a partir de sua efetiva atuação, daí porque a Constituição, em seu art. 133, o tem como peça indispensável à administração da Justiça. O eminente Prof. Paulo Luiz Netto Lôbo, aliás, adverte que “A advocacia, sobretudo quando ministrada em caráter privado, é exercida segundo uma função social intrínseca. A função social é a mais importante e dignificante característica da advocacia. O in- 63 É claro que não temos qualquer espécie de estatística a respeito, daí a simples presunção, que porém entendemos bastante plausível. instituição toledo de ensino 336 teresse particular do cliente ou o da remuneração e o prestígio do advogado não podem sacrificar os interesses sociais e coletivos e o bem comum. A função social é o valor finalístico de seu mister”.64 Assim, na concreção desse munus o Advogado está mesmo obrigado a participar da construção e aprimoramento da Justiça Social, à qual está umbilicalmente ligada à estrita observância das liberdades públicas e das garantidas constitucionais dos cidadãos, dentre as quais a da amplitude de defesa. É certo que o papel do Judiciário, nesse contexto, é primordial, pois, como adverte Adauto Suannes, em seu texto já citado, “se um Juiz se recusa a cumprir um preceito constitucional, com que autoridade moral exigirá dos jurisdicionados que cumpram algo bem menos relevante, como uma lei, um decreto ou uma portaria?”65 Entretanto, somente a partir da reiterada e intransigente defesa da nulidade ora tratada, que é de natureza absoluta, e, assim, insanável, não se cogitando de demonstração de prejuízo, ex vi do disposto no art. art. 564, III, “d”, primeira parte, c/c o art. 261, do CPP, nulidade essa decorrente não apenas da ausência de Defensor no interrogatório, como também da sonegação ao acusado do direito de entrevistar-se com um antes do ato, é que se efetivará um processo de revisão jurisprudencial, levando-se a alegação, sempre, às últimas instâncias, da defesa prévia ao recurso extraordinário, do Juiz a quo substituto ao Supremo Tribunal Federal, pois, a rigor, é a partir da atuação do Advogado criminalista, constituído ou dativo, que a jurisprudência penal se constrói, se desenvolve e se modifica. Anote-se, finalmente, que essa nova postura, que ora se propõe, urge não apenas em termos de se modificar um entendimento jurisprudencial que não mais se sustenta, se bem examinados seus principais e sofísticos pressupostos, mas para que também sejam refreadas perigosas tendências repressivas da jurisprudência em não ver sequer na ausência de Curador em interrogatórios de réus menores de 21 anos qualquer tipo nulidade, se inexistente “prejuízo”. 13. CONCLUSÕES É maciça a jurisprudência no sentido de que a ausência de Defensor durante o interrogatório judicial é dispensável, não ensejando qualquer tipo de nulidade, o mesmo ocorrendo com relação à orientação prévia do acusado. Porque não aceitáveis os argumentos que esteiam a posição pretoriana majoritária, e, por outro lado, por existir farto e rico material doutrinário em sentido oposto, que inclusive orientou brilhantes, mas poucos, julgados, entendemos tratar64 Comentários ao Estatuto da Advocacia. 2ª ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 32; destacamos. “O ativismo...” cit., p. 350. 65 instituição toledo de ensino 337 se de verdadeiro “tabu” a manutenção de tal estado de coisas, que vulnera de forma explícita a garantia constitucional da ampla defesa. Esse mesmo estado de coisas, aliás, tem propiciado o alastramento de julgados no sentido de que até mesmo a ausência de Curador durante o interrogatório de réu menor de 21 anos é “dispensável”, configurando, verdadeiramente, séria regressão processual penal nesse campo, de modo que uma revisão jurisprudencial, principalmente porque elementos para tal há de sobra, urge, pena de incidir o direito processual penal brasileiro em verdadeiro paradoxo, pois se por um lado garantias constitucionais como o contraditório e ampla defesa ganharam, com a Carta Magna de 1988, maior clareza e expressão, ou, segundo Márcio Bártoli, “enunciados mais claros e precisos”, elas e eles vêm sendo, na prática, cada vez mais afrontados. E o que é pior: através de verdadeiros malabarismos jurídicos, data venia. Simples alterações legislativas poderiam resolver o problema de forma eficaz, mas é perfeitamente possível a revisão da jurisprudência majoritária mesmo diante do sistema processual penal vigente. Imperativo, por último, que a revisão jurisprudencial seja impulsionada pela ação dos próprios Advogados, que não podem mais deixar de alegar, insistente e veementemente, até para o aprimoramento de uma ordem jurídica justa e conforme os preceitos constitucionais vigentes, a nulidade de processos em que o acusado foi interrogado sem a presença de Defensor, bem como daqueles em que não se lhe possibilitou entrevistar-se previamente com um profissional, levando a alegação, sempre, às últimas instâncias, pois, a rigor, a jurisprudência penal só se constrói, se desenvolve e se modifica a partir das teses que emergem do seio da própria Advocacia, em decorrência de sua intrínseca função social. Assim, quem sabe um dia nossos dicionários registrem, como exemplo para o vocábulo “tabu”: O não reconhecimento do direito do réu de ser assistido por um Advogado durante seu interrogatório, após orientação prévia, foi mais um tabu que se desfez.66 66 No dia 6 de dezembro de 2000, portanto cerca de dez meses após a conclusão deste trabalho (que foi encaminhado pela primeira vez para publicação em fevereiro do mesmo ano), Comissão formada por notáveis juristas pátrios entregou ao Ministro da Justiça sete anteprojetos de lei para reforma do Código de Processo Penal. Um deles trata especificamente do “INTERROGATÓRIO DO ACUSADO E DEFESA EFETIVA”, assegurando a presença do Defensor durante o ato e possibilitando às partes a formulação de reperguntas ao acusado. Já em outro anteprojeto, este referente aos “PROCEDIMENTOS, SUSPENSÃO DO PROCESSO E EFEITOS DA SENTENÇA CONDENATÓRIA”, posterga-se a realização do interrogatório para depois da produção da prova, manifestando-se o acusado, portanto, por último. Todos os anteprojetos, oficial ou extra-oficialmente, ainda têm sido objeto de acaloradas discussões, e não se sabe o que, ao final, acabará sendo aprovado pelo nosso operoso Congresso Nacional, fonte inesgotável de leis mal feitas. Mas, na essência, e a despeito de certas imperfeições, as alterações referentes aos direitos do acusado no ato do interrogatório são bem-vindas, apesar de continuarmos a entender que mesmo diante do sistema vigente a ausência de Advogado durante o interrogatório é causa de nulidade, como também o é a não possibilidade de o acusado se entrevistar e ser orientado por um Defensor antes do ato., continuando, aprovados ou não os citados anteprojetos, marcadas indelevelmente no tempo as iniqüidades pretéritas. 338 instituição toledo de ensino BIBLIOGRAFIA CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, et alii. Teoria Geral do Processo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999. CRUZ, Rogério Schietti Machado. “O parecer do Ministério Público Ante a Isonomia e o Contraditório”. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, 1997, abril/97, nº 53. DOTTI, René Ariel. “Temas de processo penal”. In: Revista dos Juizados Especiais. São Paulo: Fiuza, 1997, julho/setembro, nº 5. 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MIGUEL REALE, em sua Teoria Tridimencional que contempla o FATO, o VALOR e a NORMA, ensina que não são todos os fatos da sociedade que interessam ao mundo jurídico, mas somente aqueles valorados, ou seja, com valor para o direito é que se transformam em normas. As mudanças ocorridas na sociedade sempre repercutem na transformação do Direito e, hoje, a rapidez das informações e a tecnologia avançaram tanto que o Direito não as está acompanhando na mesma velocidade, principalmente no que diz respeito à fertilização humana artificial. O Direito, como ciência social, deve tentar seguir na mesma proporção de modernidade o salto dado pela biogenética, o que na realidade não tem acontecido. Outro aspecto relevante a ser explanado seria a classificação dos direitos fundamentais do homem, segundo o pensador italiano Norberto Bobbio, que agrupa os direitos em gerações, classificando-os conforme os fatos históricos. Como direitos de 1ª geração, estariam os direitos à liberdade, igualdade e segurança, basicamente e surgiram na 1ª fase do Estado Moderno - o Estado de Direito. O DIREITO À VIDA estaria incluído nesta 1ª geração de direitos. 340 instituição toledo de ensino Os Direitos de 2ª geração surgiram mais tarde como Estado de Bem-Estar Social, abrangendo os relativos aos trabalho, saúde, transporte. Já os de 3ª geração, direitos referentes ao meio-ambiente equilibrado, consumidor, patrimônio histórico etc., surgiram com o Estado Democrático de Direito. Hoje, já podemos falar nos direitos de 4ª geração, e entre esses estão principalmente os que têm por finalidade normatizar os efeitos da revolução biotecnológica sobre a sociedade em geral - direitos reprodutivos, direitos sobre material genético etc. O tema proposto para esta noite, então, podemos dizer que abrange direitos de 1ª e 4ª gerações. Muito bem, tendo situado, portanto, o tema como REALIDADE SOCIAL a ser ainda normatizada e localizando os direitos a serem tratados de acordo com as situações históricas, inicio o assunto propriamente dito que é "DIREITO À VIDA e INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL". E aqui, caberia a questão: O QUE É VIDA? Pode ser definida como um conjunto de funções vitais; ou como o espaço de tempo entre o nascimento e a morte; ou ainda simplesmente como a existência de um ser vivo. Para nós, estudiosos do direito, a VIDA é o bem mais precioso do ser humano, já que, não havendo a VIDA, não há de se falar na existência de outros direitos. A vida e o direito a ela devem ser assegurados já que constituem pré-requisitos à existência e exercício de todos os demais direitos. Como poderíamos falar em direito à propriedade, direito à honra, direito de família, se não tivéssemos assegurado o direito à VIDA? Em 1690 a.C., a 1ª codificação a consagrar um rol de direitos comuns a todos os homens que foi o Código de Hamurábi, já trazia entre eles o DIREITO À VIDA. Desde então, os grandes princípios e as diretrizes fundamentais da vida foram sendo criados e se estenderam progressivamente ao longo dos anos. Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos condensou toda a riqueza da longa elaboração teórica e proclamou, em seu artigo 3º, o Direito do Homem à VIDA. Em 1969, a convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecido como "PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA", em seu artigo 4º, reconhece o DIREITO À VIDA nos seguintes termos: "TODA PESSOA TEM O DIREITO DE QUE SE RESPEITE SUA VIDA. ESSE DIREITO DEVE SER PROTEGIDO PELA LEI E, EM GERAL, DESDE O MOMENTO DA CONCEPÇÃO. NINGUÉM PODE SER PRIVADO DA VIDA ARBITRARIAMENTE". Nossa Constituição Federal de 1988 traz expresso no artigo 5º, caput, o direito à VIDA, cabendo ao ESTADO assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a 1ª instituição toledo de ensino 341 relacionada ao direito de continuar vivo e a 2ª de se ter vida digna quanto à subsistência. Além do art. 5º, a Constituição Federal traz também, em outros dispositivos, a imposição ao respeito à VIDA como no art. 196 (direito à saúde); art. 227 (proteção à criança e ao adolescente; seres em desenvolvimento); art. 230 (amparo aos idosos). Observa-se que a Constituição Federal demonstra que a proteção à vida assume caráter de verdadeiro princípio a nortear todo o ordenamento jurídico brasileiro; por exemplo, a proteção ao direito à vida dispensado no Código Penal - artigos 121, 124, 128, entre outros. E a questão aqui não é outra senão definir quando se inicia a vida, ou seja, a partir de que momento passa o direito a protegê-la? O assunto é conflituoso, em razão das várias teorias existentes. AS PRINCIPAIS TEORIAS SÃO: 1º) alguns sustentam que a origem da vida se confunde com o instante em que o espermatozóide se une ao óvulo, o que naturalmente ocorre durante a CONCEPÇÃO; 2º) outros dizem que a vida só se origina com a formação do SISTEMA NERVOSO; 3º) uma 3ª corrente considera que só se pode falar em individualidade humana quando o pré-embrião atinge o estágio de desenvolvimento de oito células; 4º) e há ainda quem sustente haver vida humana e individualidade somente quando há o implante do pré-embrião no útero materno, ou seja, depois da NIDAÇÃO. Tal discussão é grande e muito complexa, porém se analisarmos o art. 5º, da Constituição Federal de 1988 onde é assegurado a todos a inviolabilidade do direito à vida e observarmos que o Brasil ratificou o PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA, o entendimento que predomina é o de que a VIDA HUMANA deve ser protegida a partir da CONCEPÇÃO, pois é neste momento que ela se inicia. Se assim é, podemos afirmar que o óvulo fecundado, já no início, é o destinatário da normatividade do artigo 5º, de forma que não há como afastar igual proteção aos embriões humanos obtidos e mantidos com auxílio de técnicas de reprodução medicamente assistida. E aqui, fazemos o elo, a ligação para o desenvolvimento do tema da noite, ou seja, A VIDA E A INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL. Ao admitir-se ao embrião a natureza de ser humano, impõe-se reconhecer a necessidade de sua proteção jurídica, assegurando-se o direito à vida e o respeito a sua dignidade. Reconhecemos também a necessidade de respeitar a vida dos embriões IN VITRO, ou seja, na proveta, pois se assemelha à vida dos já nascidos, posto que pulsante, já com potencialidade suficiente para desenvolver-se e integrar-se no mundo das pessoas nascidas. Vida que se representa inicial como a de todos os seres humanos viventes, com a diferença de que os primeiros momentos se desenvolvem mediante assistência médica especializada. instituição toledo de ensino 342 A Procriação Assistida constitui-se no conjunto de técnicas que possibilitam driblar os problemas da infertilidade. E, como infertilidade, entende-se a situação da não-ocorrência da gravidez no período de um ano e meio de vida sexual, sem o uso de métodos contraceptivos. E, hoje, as técnicas principais de Reprodução Medicamente Assistidas ou também chamadas Técnicas de Inseminação Artificial são: - INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL; - TRANSFERÊNCIA INTRATUBÁRIA DE GAMETAS; - TRANSFERÊNCIA INTRATUBÁRIA DE ZIGOTOS; - FERTILIZAÇÃO IN VITRO SEGUIDA DE TRANSFERÊNCIA DE EMBRIÕES. Essas técnicas classificam-se em dois grandes gêneros: Inseminação Artificial HOMÓLOGA e Inseminação Artificial HETERÓLOGA. É HOMÓLOGA, a inseminação realizada com o sêmen do próprio marido e HETERÓLOGA quando feita em mulher casada com sêmen originário de 3ª pessoa ou, ainda, quando a mulher não é casada. Nesse caso, a pessoa recorre a um banco de sêmen e se submete à inseminação. Quanto a esta forma de inseminação, domingo passado, o Jornal da Cidade de Bauru trouxe uma matéria muito interessante com o título "CRESCE A PROCURA PELA PRODUÇÃO INDEPENDENTE" sendo, para algumas mulheres, a possibilidade de engravidar sem assumirem os compromissos de uma relação a dois, mais um passo à total independência. Falarei suscintamente de cada uma das técnicas para analisarmos os principais problemas jurídicos daí advindos. 1º) INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL: É o processo pelo qual se dá a transferência mecânica de espermatozóides previamente recolhidos e tratados, para o interior do aparelho genital feminino. Os espermatozóides colhidos, seja do marido ou de 3ª pessoa, passam por processos de seleção e são implantados no fundo do canal vaginal por meio de cânulas ou seringas. É uma técnica simples e é quase total a ausência de riscos para a receptora. Pode ocorrer também de o sêmen não ser implantado de imediato no corpo da mulher e, então, é CONGELADO com as técnicas de crioconservação. Esse congelamento de gametas pode manter o sêmen com suas características inalteradas por um período de até 20 ANOS, havendo quem diga que esse período é menor, 5 anos. instituição toledo de ensino 343 2º) TRANSFERÂNCIA INTRATUBÁRIA DE GAMETAS Aqui os óvulos da mulher são captados por meio de LAPAROSCOPIA que é um exame endoscópico da cavidade abdominal por meio de uma pequena incisão na parede do abdome ao mesmo tempo em que se capta o esperma do marido. Na mesma operação, colocam-se ambos os gametas (óvulo e espermatozóide), devidamente preparados em uma cânula especial, introduzindo-os em cada uma das trompas de FALÓPIO no interior do corpo da mulher, lugar onde se produz naturalmente a fertilização. Essa técnica possibilita a concepção de gêmeos, pois para garantir o êxito, recolhem-se vários óvulos, pois a porcentagem de sucesso desta técnica é baixa - entre 35 a 40% de chance de gravidez. 3º) TRANSFERÊNCIA INTRATUBÁRIA DE ZIGOTOS: Nesta técnica, o óvulo e o espermatozóide são postos em contato in vitro, ou seja, na proveta, em condições apropriadas para sua fusão. O zigoto ou zigotos resultantes desta fusão são transferidos para o interior das trompas uterinas - para o interior do corpo da mulher = TROMPAS DE FALÓPIO, num número máximo de QUATRO, tendo a mulher a chance de aproximadamente 20 a 25% de conseguir engravidar. Sendo baixa a porcentagem de êxito para a gravidez. Os zigotos restantes são conservados congelados. Então, se não ocorrer a gravidez poderão ser utilizados esses zigotos congelados em nova inseminação, porém se a gravidez ocorre, o casal decide o que vai fazer com eles, surgindo daí problema ético-jurídico que será analisado. A diferença entre a transferência de GAMETAS e a transferência de ZIGOTOS é que, na 2ª, a fecundação se realiza fora do corpo da mulher, enquanto que, na 1ª, o encontro do óvulo com o espermatozóide, formando o embrião, ocorre nas trompas. 4º) FERTILIZAÇÃO IN VITRO SEGUIDA DA TRANSFERÊNCIA DE EMBRIÕES: A técnica é a mesma da anterior, porém os zigotos continuam no mesmo meio em que surgiram até a SEGMENTAÇÃO, ou seja, quando atingem o estágio de 2 a 8 células e só então são transferidos para o útero ou para as trompas da mulher. Essa fertilização em laboratório é a conhecida como "bebê de proveta". Então, ZIGOTO é diferente de EMBRIÃO. Embrião seria o ser mais desenvolvido, porém o zigoto também chamado Préembrião, já é fruto da fertilização, ou seja, da concepção. 344 instituição toledo de ensino 5º) Podemos falar ainda da situação das MÃES DE SUBSTITUIÇÃO que são comumente chamadas de "MÃES DE ALUGUEL". Não se trata de técnica biológica, mas da utilização de mulheres férteis que se dispõem a carregar o embrião durante o período de gestação, pela impossibilidade física, daquela que quer ser mãe, de suportar o período gestacional. Essa prática tem tido repercussões bastante negativas pelo fato de muitas vezes a mãe substituta afeiçoar-se ao ser que gera, descumprindo a obrigação contratual de devolver o recém-nascido à mulher que a contratou. POIS BEM! Dessas técnicas apresentadas, já se pode imaginar os problemas trazidos ao mundo jurídico ...... Como exemplo, poderíamos levantar algumas questões: - A procriação artificial HETERÓLOGA (aquela feita com o sêmen de 3ª pessoa - no caso do casal) importa em registro do filho de outrem como próprio. Neste caso, aplicar-se-ia a presunção da paternidade do marido? - Quem exercerá o pátrio poder e administrará os bens das crianças? A mãe SUBSTITUTA que empresta a barriga ou a BIOLÓGICA que transferiu o patrimônio genético ao nascituro? - O que fazer com o embrião congelado que fique órfão ou que algum dos pais se torne incapaz? Todas essas questões e muitas outras são hoje de possível ocorrência diante da moderna engenharia genética e, como se vê, trazem problemas muito complexos para a área jurídica, porém o Brasil não possui legislação específica sobre o tema, o que, ao meu ver, não se pode atribuir apenas ao descaso do Poder Legislativo ou da classe jurídica. Creio que a falta de legislação deva ser vinculada à dificuldade em se produzir normas que dizem respeito a fatos revestidos de ALTO GRAU de subjetividade e que, ao mesmo tempo, tocam um grupo de valores fundamentais em nossa sociedade que são os VALORES DE FAMÍLIA. Aliás, a procriação humana assistida perturba valores, crenças e representações que se julgavam intocáveis, pois ela separa a SEXUALIDADE da REPRODUÇÃO; a CONCEPÇÃO da FILIAÇÃO; a FILIAÇÃO BIOLÓGICA dos LAÇOS AFETIVOS e EDUCATIVOS; a MÃE BIOLÓGICA da SUBSTITUTA. Provoca, assim, uma revolução nos valores da família. Portanto, estamos diante de grandes desafios para os legisladores e principalmente para os atuais profissionais do Direito. Porém, o que não se pode perder de vista é que, para dirimir tais questões, o princípio a ser adotado seria o da PRIORIDADE DA PESSOA HUMANA sobre os interesses da ciência, pelo simples fato de que a ciência só tem sentido na medida em que está a serviço da humanidade. instituição toledo de ensino 345 Existe uma RESOLUÇÃO do Conselho Federal de Medicina, de 1992, que é a RESOLUÇÃO n.º 1358. Embora não apresente o caráter de LEI FORMAL, é também indicativo de substancial significado às limitações à manipulação de embriões humanos. São normas médicas que estabelece: = que a finalidade das técnicas de procriação assistida é a de auxiliar na resolução dos problemas de infertilidade humana facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham sido ineficazes ou ineficientes para a solução da situação atual de infertilidade. = Proíbe a fecundação de oócitos humanos (óvulos) com outra finalidade que não seja procriação humana, proibindo com isso experiências diversas com embriões, proibindo também que as técnicas de reprodução sejam utilizadas para selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do novo ser; EXCETO se a intenção for evitar doenças ligadas ao sexo – HEMOFILIA, por exemplo, que afeta somente pessoas do sexo masculino. = Quanto ao destino dos denominados embriões criopreservados, tal ato normativo disciplina que os cônjuges ou companheiros devem expressar, por escrito, a vontade, em casos de divórcio, doenças graves, falecimento de um deles ou de ambos ou quando desejarem doá-los. = Proíbe o descarte dos embriões ou sua destruição, porém como já afirmado anteriormente, é uma normatização sem o caráter legal, portanto não há sanções jurídicas para a desobediência de qualquer destas proibições, podendo ocorrer apenas na área médica. No momento, são três os projetos de lei tramitando no Congresso Nacional que serão comentados posteriormente. Até que se resolva a situação da norma legal, prega-se a adequação das já existentes, principalmente respeitando-se os princípios da Dignidade da Pessoa Humana e a VIDA dos seres embrionários em todos os desdobramentos fáticos que se originarem do emprego das técnicas biocientíficas, pois ainda que adotado este ou aquele projeto, situações conflitantes não previstas vão surgir e caberá aos juristas a orientação, que observará sempre os princípios básicos do Direito, norteando-se pelas Normas Constitucionais. Com a engenharia genética evoluindo como está, não é impossível a existência de experiências bárbaras em torno de embriões, por isso, nós estudiosos do Direito, devemos nos unir num alerta jurídico no sentido de ressaltar os princípios constitucionais, da Dignidade da Pessoa Humana - um dos fundamentos do Estado de Direito e o Direito à Vida, pois repetindo a frase de Afonso Arinos, digo: "SEM RESPEITO À PESSOA HUMANA NÃO HÁ JUSTIÇA E SEM JUSTIÇA NÃO HÁ DIREITO". Parecer concessão de serviços públicos de energia elétrica - teoria da imprevisão aplicável ao contrato entre geradoras e distribuidoras fundamentos constitucionais - parecer Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito da Universidade Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi titular de Direito Econômico e de Direito Constitucional CONSULTA Formula-me, a ABRAGE, a seguinte consulta: “Considerando a implementação das medidas constantes do programa emergencial de redução de consumo de energia elétrica e os reflexos dele decorrentes nos contratos de compra e venda de energia chamados Contratos Iniciais, com as suas variações, doravante designados Contratos, firmados entre empresas geradoras e distribuidoras; considerando que os Contratos foram firmados numa fase de transição do regime de monopólio estatal de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica para o regime de livre mercado (livre concorrência), com cláusulas pré-estabelecidas pelo Poder Concedente, que assim determinou os montantes contratados e regulou os preços a serem praticados; considerando que as medidas recentemente implementadas para combater a crise energética repercutiram diretamente nas obriga- instituição toledo de ensino 350 ções decorrentes dos Contratos, gerando prejuízos no montante aproximado de R$ 12,4 bilhões contabilizados em sete meses de projeções, correspondendo a 189% da receita das geradoras advindas dos referidos Contratos. Questiona-se: 1) Nesta situação de notória excepcionalidade, aplicam-se as condições estabelecidas nos Contratos? 2) Considerando-se os efeitos econômicos mencionados, quais serão as conseqüências para os Agentes de Geração?” RESPOSTA Algumas considerações iniciais são necessárias para a compreensão da inteligência que ofertarei às questões formuladas, à luz da teoria geral do direito e dos princípios de direito constitucional, administrativo e privado. Enceto o parecer refletindo a respeito dos instrumentos constitucionais para enfrentar crises sistêmicas, institucionais ou provocadas pela natureza, que terminam por levar à quebra de padrões normais da sociedade no cumprimento das leis correntes. É interessante lembrar que, inúmeras vezes, o Constituinte abriu espaço para a intervenção extraordinária, como nos veículos excepcionais do Título V, dedicado à Defesa das Instituições (Estado de Defesa e de Sítio - artigos 136 a 141); na veiculação, em casos de relevância e urgência, de medidas provisórias (art. 62); ou mesmo para atuar na ordem econômica (art. 173), através da intervenção concorrencial, nos casos de relevante interesse coletivo ou segurança nacional, ou ainda para coibir distorções de mercado (art. 173 § 4º e 149). A própria lei delegada é uma forma de autorização legislativa para situações excepcionais que não podem ser combatidas pelas armas normativas tradicionais1. 1 “Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”. “Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II – a declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para decretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta”. instituição toledo de ensino 351 Sempre que as instituições, a democracia, a estabilidade econômica ou jurídica da Nação possam estar em risco, há veículos constitucionais e caminhos excepcionais, no direito maior, que permitem o retorno à normalidade, com a adoção de soluções jurídicas diferenciadas daquelas sugeridas para os períodos de estabilidade2. Não é desavisado rememorar que, em nível de direito privado, soluções para enfrentar “excepcionalidades” já vinham sendo hospedadas desde remota antiguidade, sendo admirável o “Canon” 48 do Volume XIV do Código de Hamurábi, que para ocorrências imprevisíveis, dispunha: “XIV - § 48. Si un señor tiene una deuda y (si) el dios Adad há inundado su campo y há destrozado la cosecha, o bien (si) a causa de la sequía, el campo no produce grano, en ese año no entregará grano a su acreedor; cancelará su tablilla (de contrato) y no pagará el interés de ese año”3. “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias”. “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (...) § 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. “Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional. § 1º Não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privada da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre: I – organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; II – nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; III – planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos. § 2º A delegação ao Presidente da República terá a forma de resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício. § 3º Se a resolução determinar a apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação única, vedada qualquer emenda”. 2 “Pinto Ferreira lembra que: “O Estado democrático e constitucional deve assegurar os meios necessários à sua preservação, garantindo o direito de necessidade estatal. A liberdade e a democracia não devem permitir o seu aniquilamento. A liberdade não se auto-destrói. Daí advêm determinados enunciados lingüísticos prescrevendo a manutenção do regime, com a utilização de várias expressões, tais como segurança do Estado, defesa da República, razão de Estado, suspensão de garantias constitucionais, salvação pública, empregadas freqüentemente. É um direito de exceção e de necessidade, que leva à pré-compreensão de uma delimitação normativoconstitucional de instituições e medidas nas situações emergentes de anormalidade, consagrando um direito de necessidade constitucional” (Comentários à Constituição brasileira, Saraiva, 1992, v. 5, p. 187). 3 Código de Hammurabi, Federico Lara Peinado, Ed. Nacional, Madrid, 1982, p. 97. 352 instituição toledo de ensino De rigor, muito embora cuide de força maior ou caso fortuito, as sementes da denominada cláusula rebus sic stantibus ou da teoria da imprevisão foram lançadas por aquele texto codificado, há quase 4.000 anos. O Código Civil admitiu, no artigo 1058, as hipóteses de força maior e de caso fortuito, estando redigido da forma que se segue: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito, ou força maior, se, expressamente, não se houver por eles responsabilizado, exceto nos casos dos artigos 955, 956 e 957. Parágrafo único. O caso fortuito, ou de força maior, verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”4 E vasta teoria foi elaborada, no campo do direito privado, a partir do “caso fortuito ou força maior”, para chegar-se à teoria da imprevisão. A diferença entre elas reside na inevitabilidade, imprevisibilidade e impossibilidade de cumprimento da obrigação, nas hipóteses de “força maior ou caso fortuito”, enquanto na teoria da imprevisão, a impossibilidade de cumprimento é elemento despiciendo, valendo apenas a inevitabilidade e a imprevisibilidade. Em termos diversos, pela teoria da imprevisão, o que se busca evitar é o enriquecimento indevido de uma parte à custa do empobrecimento da outra, por fatores alheios à contratação, que, sem eles, faria lei entre as partes5. 3 Clovis Bevilaqua assim o comenta: “Conceitualmente o caso fortuito e a força maior se distinguem. O primeiro, segundo a definição de HUC, é o “acidente produzido por força física ininteligente, em condições, que não podiam ser previstas pelas partes”. A segunda é o “fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer”. Não é, porém, a imprevisibilidade que deve, principalmente, caracterizar o caso fortuito, e sim, a inevitabilidade. E, porque a força maior também é inevitável, juridicamente, se assimilam esta duas causas de irresponsabilidade. Uma seca extraordinária, um incêndio, uma tempestade, uma inundação produzem danos inevitáveis. Um embargo da autoridade pública impede a saída do navio do porto, de onde ia partir, e esse impedimento tem por conseqüência a impossibilidade de levar a carga ao porto do destino. Os gêneros que se acham armazenados para ser entregues ao comprador são requisitados por necessidade da guerra. Nesses e em outros casos, é indiferente indagar se a impossibilidade de o devedor cumprir a obrigação procede de força maior ou de caso fortuito. Por isso, o Código Civil reuniu os dois fatos na mesma definição: o caso fortuito ou de força maior é o fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir” (Código Civil, Vol. IV, Ed. Paulo de Azevedo Ltda, Rio de Janeiro, 1955, p. 173). 5 Paulo Carneiro Maia rememora o início da albergagem da teoria da imprevisão pelo direito brasileiro “O primeiro adepto, no campo do direito privado, entre nós, reconhecem-nos todos, foi Jair Lins. Em conhecido parecer, dado em 1923, o ilustre jurista mineiro, sob motivação mais benévola, relacionada com a ausência de consentimento, apelando para o velho adágio “voluntas non extenditur ad incognitum”, fixou, assim, sua opinião como vanguardeiro. A súmula de suas conclusões, nas quais se encerram aplicações práticas da mesma teoria – o que já ficou estimado – reflete, por si só, o sentido dos fundamentos em que apoiou: “Existe, no direito, a cláusula “rebus sic stantibus”, que opera quando as condições do mercado se tenham tão profundamente alterado que, se essa alteração fosse prevista, a parte não teria, certamente, se obrigado ou teria celebrado o contrato sob outras condições”. instituição toledo de ensino 353 Nestas circunstâncias, a teoria do pacta sunt servanda cede terreno àquela da clausula rebus sic stantibus. Aspecto que releva acentuar, é que do direito privado a matéria foi levada para o direito administrativo, hoje sendo importante elemento pactual, em licitações para concessão, permissão ou autorização de serviços públicos, o denominado “equilíbrio econômico-financeiro” do contrato, de resto condição indispensável para que o serviço prestado seja adequado. Desde o Decreto-Lei 2.300/86 - de concepção intelectual do eminente jurista Saulo Ramos, quando Consultor Geral da República - normatizou-se a tendência até então jurisprudencial de hospedar, nos quadros do direito administrativo, a teoria nascida no campo do direito privado, prevalecendo sobre princípios de ordem pública ou da servidão ao pacto firmado6. É de se lembrar que o artigo 175 da Constituição Federal está assim redigido: Daí por diante o problema passou a merecer a atenção de outros juristas. E os adeptos da teoria da imprevisão foram aumentando de tal forma que, na quadra atual, seria difícil relaciona-los sem receio de lacuna. Com efeito, seja através de monografias, de estudos avulsos, de pronunciamentos incidentes, seja mediante pareceres específicos ou envolvendo aplicações casuísticas, enfim, sob modalidades as mais variadas, avolumam-se aqueles que, autorizadamente, prestigiam essa teoria. Distinguem-se, dentre outros e tão bons, Arnaldo Medeiros da Fonseca, Arthur Rocha, Abgar Soriano de Oliveira, Nehemias Gueiros, Eduardo Spinola, Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho, Virgilio de Sá Pereira, Epitácio Pessoa, Adhemar de Souza Monteiro, Oswaldo de Carvalho Monteiro, Caio Mario da Silva Pereira, Jorge Americano, Noé Azevedo, Vicente Ráo, Lino de Moraes Leme, F.C. de San Tiago Dantas, Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Francisco Campos, J.R. Vieira Netto, Alfredo de Almeida Paiva, Alcino Salazar, José Campos, Themistocles Brandão Cavalcanti, Caio Tácito, Miguel Maria de Sepa Lopes, Geraldo Serrano Neves, J. do Amaral Gurgel, e Orlando Gomes.” (Da Cláusula Rebus Sic Stantibus, Edição Saraiva, São Paulo, 1959, p. 253-254) (grifos meus). 6 Diogo Figueiredo explicita tal hospedagem administrativa “Trata-se da equivalência das prestações recíprocas ajustadas, apreciável em termos econômico-financeiros quando da formação do vínculo contratual. No contrato administrativo, essa característica relacional assume fundamental importância, expressando-se no denominado equilíbrio econômico-financeiro ou, mais simplesmente, na equação financeira, explícita ou implicitamente estabelecida inicialmente pelas partes. Quaisquer que sejam as flutuações da execução, decorrentes da vontade da Administração, de atos de terceiros ou de fatos imprevisíveis, que influam na comutatividade, é imperiosa a manutenção desse equilíbrio, fundamento da equidade no contrato administrativo e garantia do contratante privado. O reajustamento contratual dessas prestações financeiras, sejam preços sejam tarifas, é a solução para as correções de desajustes que se situam numa faixa de razoável previsibilidade, como as que decorrem da desvalorização da moeda e do encarecimento de matérias-primas, o que não afasta a revisão extracontratual sempre que de eventos imprevisíveis decorra uma insuportável carga para uma das partes e enriquecimento sem causa para a outra. Distingue-se, portanto, o reajustamento, fundado no contrato e de natureza consensual, da revisão, fundada na equidade, extracontratual e pretoriana, cabível sempre que ocorrerem os pressupostos aludidos. De resto, o reajustamento atinge apenas o preço, como elemento do contrato, ao passo que a revisão pode comprometer todo o contrato” (Curso de Direito Administrativo, Ed. Forense, 11a edição, Rio de Janeiro, 1996, p. 122) (grifos meus). 354 instituição toledo de ensino “Art. 175. Incumbe o Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. Parágrafo único. A lei disporá sobre: I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; II – os direitos dos usuários; III – política tarifária; IV - a obrigação de manter serviço adequado.” impondo o “serviço adequado”, o que vale dizer: o concessionário não pode ser obrigado a prestar serviço com prejuízo, percebendo preço inferior ao custo da prestação delegada ou, mesmo que em igual valor, sem que restem asseguradas condições de reinvestimento para manter a prestação de serviço com eficiência. O mesmo princípio é reproduzido no artigo 37, inciso XXI, da Lei Maior,7 cuja dicção é a seguinte: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) 7 Celso Bastos comenta o dispositivo da ordem econômica: “Da mesma forma, as tarifas não podem deixar de ser justamente remuneratórias do capital investido. Caso assim não fosse, estaríamos quebrando a justa expectativa de todo aquele que desempenha atividade econômica no regime capitalista, qual seja a de auferir lucros no fim do exercício. É certo, por outro lado, que o Poder Público não está obrigado a cobrir as despesas decorrentes de uma Administração perdulária ou mesmo desarrazoadamente incompetente. A justa remuneração deve ser apurada considerando-se os custos do serviço, levados a efeito de forma eficiente e econômica. O concessionário não pode beneficiar-se de um lucro certo, independente da forma por que administrou a concessão. Cumprida a sua parte, consistente na geração do serviço debaixo de estrita economicidade, não pode também o concessionário deixar de fazer jus a tarifas que lhe assegurem uma lucratividade normal, sob pena de a concessão converter-se numa forma sub-reptícia de confisco. De qualquer sorte, o concessionário goza, na verdade, de um regime que de um certo ângulo o privilegia ante o comum dos empresários, que mesmo agindo diligentemente não se pode pôr a salvo de áreas advindas do mercado. Em síntese, mesmo o empresário diligente e parcimonioso está sujeito a resultados adversos. Ao concessionário há de se assegurar uma tarifa remuneratória, uma vez que esta não é fixada segundo leis de mercado, não comparecendo a seu favor aquelas situações extremamente favoráveis que propiciam ao empreendedor comum lucros extraordinários. A fixação, portanto, de uma tarifa que seja justamente remuneratória do capital é a compensação ofertada ao concessionário pela perda do controle sobre ela, assim como da privação da eventualidade e lucros fora do razoável” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º volume, 2º ed., Ed. Saraiva, 2000, p. 123). instituição toledo de ensino 355 XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações” (grifos meus). Ora, a crise energética, nitidamente, é uma crise em que vários componentes se aliaram. A seca, fator da natureza imprevisível, nos níveis em que vem ocorrendo; a escassez de recursos aplicados pelo governo nos últimos anos no setor; o aumento de consumo decorrente do aumento do PIB e, por que não dizer, a excessiva tributação federal e estadual (ICMS, PIS, COFINS, CPMF etc) sobre um bem essencial, retirando disponibilidades para reinversão, levaram à crise, que, segundo o Presidente da República - supremo mandatário na Nação - apenas lhe foi comunicada duas semanas antes de ele mesmo torná-la pública para a Nação! Ora, se até o Presidente da República desconhecia a gravidade da crise, o que dizer dos cidadãos comuns, no setor privado ou público concorrencial, que não possuem a totalidade dos dados e informações que o Governo Federal possui !!! Foi necessário criar-se um “Ministério da Crise” para mostrar sua gravidade e a adoção de medidas antipáticas para geração de recursos e redução do consumo da energia, única forma de se evitar o mal maior, que seria o corte periódico de seu fornecimento. Teve, inclusive, o Governo, o ônus de ingressar com ação declaratória de constitucionalidade junto ao Pretório Excelso para assegurar o racionamento e as tarifas diferenciadas, com inequívoco desgaste político, tendo a Suprema Corte entendido serem, a crise e o momento nacional, de tal gravidade, que as medidas adotadas se justificavam, do ponto de vista jurídico, tecendo, todavia, em alguns momentos, considerações de natureza política8. 8 Escrevi, um dia antes do julgamento: “No mérito, as disposições legais editadas pelo Planalto destinam-se a regular a utilização de um produto escasso de forma a poder atender eqüitativamente a todos os consumidores, sem necessidade de se chegar ao extremo do corte de energia generalizado em determinadas horas do dia, em grande parte do país. A primeira questão é a de saber se poderia haver tarifas diferenciadas para quem não cumprir as metas estabelecidas de redução de consumo da energia, a ser distribuída. Entendo que sim. Antes da crise energética, havia tarifas diferenciadas em função do usuário, em face de sua condição de pequeno consumidor ou de produtor rural, sem que houvesse ferimento do princípio da isonomia da Constituição. A condição do usuário é que definia a maior ou menor tarifa. O produto tornou-se escasso e, hoje, a diferenciação das tarifas decorre da quantidade de sua utilização, sendo, a meu ver, correta a medida provisória, justificando-se, inclusive, seu aumento para os que consomem mais, para encaminhamento de tais recursos exclusivamente para cobrir custos, inclusive de investimentos, no intuito de prestação de serviço adequado (inciso IV, 356 instituição toledo de ensino Neste contexto, portanto, não há que se alegar a “previsibilidade” e “evitabilidade” da crise, assim como a permanência da pactuação anterior entre geradores, distribuidores e consumidores. Estes, inclusive, já estão sendo onerados pelo aumento de tarifa. A energia, “produto essencial” – é considerada “mercadoria” para efeitos do ICMS - passou a ser de uso limitado, com desequilíbrios evidentes entre as diversas regiões de um país continental, com “escassez” em algumas delas e “sobras” e “excessos” em outras. Tais relações, portanto, à luz da teoria geral do direito, do direito contratual, do direito administrativo e do direito privado devem ser reexaminadas para que o descompasso da crise não seja agravado, com maculação evidente aos princípios do “equilíbrio contratual”, “do relevante interesse nacional”, da “imprevisibilidade”, do “enriquecimento sem justa causa” de alguns, que podem beneficiar-se da crise, em vez de colaborar na sua solução. A meu ver, portanto, a M.P. 2.152-2 caracterizou o estado de emergência, de crise, de desequilíbrio nas condições de fornecimento, distribuição e consumo de energia, com severas medidas, respaldadas pelo Supremo Tribunal Federal, impondo a revisão das relações contratuais entre geradores e distribuidores até a volta à normalidade, revisão esta que pode ser restrita às determinações dos contratos provocadoras do desequilíbrio, prevalecendo as restantes não vinculadas à situação mencionada9. Um último aspecto merece consideração, a saber, o regime jurídico concernente à dualidade de iniciativa econômica. do parágrafo único do artigo 175 da CF), no futuro. Tarifas diferenciadas em função da quantidade do uso de energia, portanto, não maculam a Constituição. O segundo aspecto diz respeito à bonificação daqueles que ficam abaixo das metas propostas, algo também que não agride o princípio da isonomia, nem o direito do consumidor, antes beneficiando aquele que, patrioticamente, der maior colaboração ao esforço da nação para sair da crise. Todos podem consumir menos, razão pela qual um maior benefício poderia ser obtido por todos, se todos tiverem o mesmo espírito cívico. Por fim, o terceiro aspecto concerne ao corte de energia elétrica de quem pretender, após um primeiro aviso, continuar a usar mais do que o setor pode oferecer, colocando em risco a própria distribuição eqüitativa da energia racionada para todos os que dela necessitam. Parece-me medida profilática e que pode o Poder Público exigir para que uns poucos não prejudiquem a totalidade da nação, ainda aqui não sendo tisnada a lei maior. Embora apenas exemplo analógico, lembro que os motoristas que não cumprem as regras de trânsito, pondo em risco a vida alheia, podem perder sua carteira de habilitação. Ora, os consumidores que colocarem o plano de racionamento em risco, expondo a nação ao corte de energia generalizado, podem, a meu ver, ser punidos, por se utilizarem de recurso escasso mais do que o permitido” (O Estado de S.Paulo, 26/06/01). 9 Ricardo Grinbaum e David Friedlander lembram que: “Se tudo der certo, o racionamento pode virar um excelente negócio para as distribuidoras de energia. Elas poderão ganhar mais dinheiro sem vender eletricidade do que com o fornecimento normal de luz. A mágica se chama anexo 5, item da legislação dos contratos entre empresas de geração e de distribuição de energia que coloca em jogo mais de 5 bilhões, de acordo com o governo”(Folha de São Paulo, 01/07/2001, p. B1). instituição toledo de ensino 357 Discuti a questão, com a participação de inúmeros professores da área, no 1º Simpósio Nacional de Direito Econômico do Centro de Extensão Universitária, à luz da Constituição anterior. As conclusões do referido conclave - ainda quando a Lei Suprema não se referia à existência de um ramo do direito, com o batismo de “econômico” - foram no sentido de que a ordem econômica comporta duas claras atuações de seus agentes, ou seja, na exploração de atividades de conteúdo mercantil, abrangendo, inclusive, os serviços, e na prestação de serviços públicos com densidade econômica. Na primeira, prevaleceriam as normas de direito privado, com a presença indireta dos ramos de direito público relacionados e, na segunda, as regras do direito público seriam mais relevantes, principalmente de direito administrativo, embora também com influência indireta do direito privado10. A meu ver, a Constituição de 1988 veio consagrar essa linha de interpretação, conforme já procurei demonstrar em inúmeros artigos e trabalhos jurídicos. Toda a ordem econômica está voltada a um liberalismo-social ou a um socialismo liberal, que, no dizer de Miguel Reale e Oscar Corrêa, compõe a terceira via da economia moderna11. Ambos os autores mostram que a economia de mercado, perfilada pelo constituinte de 1988, está temperada por valores sociais, ao ponto de os dois fundamentos maiores do artigo 170 referirem-se, de um lado, à valorização do trabalho humano e, de outro, à livre iniciativa12. Esta última, só é possível em face da livre concorrência (art. 170, inciso IV), estando balizada por dois mecanismos de cerceamento de desvios, quais sejam, na ponta da produção e circulação de merca- 10 O Caderno n. 1 de Direito Econômico do Centro de Extensão Universitária e Editora Resenha Tributária, sob o título “Disciplina Jurídica da Iniciativa Econômica” hospedou trabalhos dos seguintes autores: Áttila de Souza Leão Andrade Jr., Edvaldo Brito, Eros Roberto Grau, Fábio Nusdeo, Geraldo de Camargo Vidigal, Ives Gandra da Silva Martins, Jamil Zantut, José Carlos Graça Wagner, José Tadeu de Chiara, Luiz Felizardo Barroso, Raimundo Bezerra Falcão, Roberto Rosas e Washington Peluso Albino de Souza (São Paulo, 1983). 11 Miguel Reale escreve: “Como se verá, a Queda do Muro de Berlim somente surpreendeu os intelectuais dominados pelo ópio do marxismo, porquanto a precariedade do regime soviético já havia sido mais do que demonstrada pelos novos doutrinadores do liberalismo, os quais também puseram à mostra todos os equívocos em que se enredavam os partidários da Social-Democracia, cada vez mais incapaz de se afirmar como solução plausível e segura, visto padecer do mesmo mal do comunismo, que era a vinculação às idéias marxistas da luta de classes e da economia dirigida, posta como fundamento único e legitimador do Estado. Foi assim que, se, de um lado, os liberais extremados se deixavam fascinar pelos sortilégios da livre concorrência, apontada como única fonte de bem-estar, de outro, os social-democratas mais conscientes deram-se conta da necessidade de proceder à revisão de suas diretrizes básicas. É desse contraste ou entrechoques de idéias que iria emergir o fato político mais relevante de nosso tempo, o da convergência das ideologias, não no sentido de uma solução única, mas sim no sentido de recíprocas influências entre elas, levando a diversos programas revisionistas” (O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, Saraiva, 1998, p. XI/XII). 12 Miguel Reale, “O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias”, Saraiva, 1998 e Oscar Corrêa, “O Sistema Político-Econômico do Futuro: O Societarismo”, Forense Universitária, 1994. instituição toledo de ensino 358 dorias e serviços, pelo controle do abuso do poder econômico (art. 173, § 4º da C.F.), e na ponta do consumo, pela proteção ao direito do consumidor (5º, inciso XXXII e 170, inciso V )13. A opção pela economia de mercado, todavia, torna-se clara no artigo 174, caput, cuja dicção é a seguinte: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (grifos meus), tornando o planejamento apenas indicativo para o segmento privado, embora obrigatório para o setor público, apesar de a disciplina legal de incentivos e fiscalização ser comum aos dois ramos14. O artigo 173, em seu caput, não alterado pela E.C. n. 19/98, declara que: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”, apenas permitindo, na exploração da atividade econômica, a presença do Estado para atender: 1) a interesse coletivo relevante ou 13 Os dispositivos estão assim redigidos: “Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: ...IV. livre concorrência; V. defesa do consumidor”; “Art. 173 - § 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”; “Art. 5º - XXXII. O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. 14 Manoel Gonçalves Ferreira Filho comenta o dispositivo: “PLANEJAMENTO: Como se sabe, há dois tipos de planejamento. Um, de caráter indicativo, visa a orientar os agentes econômicos, propondo metas, indicando investimentos, mormente estatais etc. Este é compatível com a economia social de mercado, embora seja renegado pelo liberalismo clássico. O outro, o planejamento de caráter compulsório, aqui chamado de determinante –mas por muitos designado por planificação para fácil distinção em relação ao primeiro--, é típico da economia centralizada. Por meio dele, procura-se substituir o mercado por avaliações administrativas de que defluem ordens sobre o cálculo de quantidades físicas e valores de caráter meramente contábil (cf. meu Direito Constitucional Econômico, cit., p. 10). Difícil é conceber a possibilidade de um planejamento compulsório, ainda que apenas para o chamado setor público da economia, no quadro de uma economia de mercado, a qual indiscutivelmente resulta da Constituição em estudo” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, vol. 4, Saraiva, 1995, p. 15). instituição toledo de ensino 359 2) imperativos da segurança nacional. Nas duas hipóteses, os comandos normativos a serem seguidos são próprios do direito privado - mais amplos no texto original (170, §§ 1º e 2º), e mais restritos no texto da E.C. n. 19/98 (173, § 1º) - visto que certas normas pertinentes ao direito administrativo passaram a ser exigidas expressamente, a partir de 199815. Os parágrafos dos dois Textos Supremos estão assim redigidos: Constituição de 1988 (redação original): “Art. 173 ... § 1º A empresa pública, a sociedade de economia mista e outras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias. § 2º As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”; E.C. n. 19/98: “Art. 173… § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I. sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II. a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; 15 Celso Ribeiro Bastos preleciona: “Este preceito, muito embora tenha sido modificado pela Emenda n. 19/98, ainda assim guarda grande similitude com o § 2º do art. 170 da Constituição de 1967, que recebeu nova redação com a Emenda n. 1, de 1969, que rezava: “§ 2º Na exploração, pelo Estado, da atividade econômica, as empresas públicas e as sociedades de economia mista reger-se-ão pelas normas aplicáveis às empresas privadas, inclusive quanto ao direito do trabalho e ao das obrigações”. É um parágrafo muito importante para revelar a índole da organização jurídica da nossa economia. Ele desempenha um papel de ordem sistemática que transcende em muito o comando que encerra. Neste parágrafo, especificamente no seu inc. II, agasalha-se a idéia de que é possível ao Estado, através de pessoas descentralizadas, desempenhar um papel assemelhado àquele cumprido pelas empresas privadas. Fixou-se no nosso direito crença de que essa convivência é possível. Assim o que se procura é que as empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica submetam-se ao regime jurídico previsto para as empresas privadas” (Comentários à Constituição do Brasil, 7º vol., Saraiva, 2000, p. 67). instituição toledo de ensino 360 III. licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV. a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V. os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores” (grifos meus). Ora, em nenhum momento o artigo 173 comporta a exploração de serviços públicos, mas apenas a exploração de atividades econômicas – daí a prevalência do direito privado -, lembrando-se que o § 1º, na redação da E.C. n. 19/98, refere-se à: a) exploração de atividade econômica de b) produção e comercialização c) de bens ou d) prestação de serviços sem qualquer adjetivação16. Ocorre que, repetidas vezes, o Estado pode intervir em área de prestação de serviços ou comercialização de bens por interesse coletivo relevante ou imperativos de segurança nacional, sem que tais serviços ou circulação de bens possam ser considerados serviços públicos, como, por exemplo, já aconteceu durante a segunda guerra mundial, em 16 No volume 7 dos Comentários que Celso Ribeiro Bastos e eu elaboramos, lê-se como nota de rodapé n. 1, na página 67, o seguinte: “No direito francês, por exemplo, há dois tipos clássicos de empresas públicas. Em primeiro lugar aparecem aquelas com estatuto de sociedade; em segundo vêm as empresas com estatuto de estabelecimento público. A distinção baseia-se, fundamentalmente, na natureza do serviço que uma e outra prestam. Justamente em função da natureza das tarefas levadas por essas empresas é que se vai descobrir qual o regime jurídico aplicável, numa graduação que vai desde um regime quase puro de direito público (caso dos estabelecimentos públicos desempenhando serviço público) até um regime quase puro de direito privado (sociedades públicas de caráter comercial e industrial, que atuam paralelamente, no mercado, com as empresas privadas). Vale dizer que tal critério foi criado pela doutrina francesa, não constando em texto legal algum (cf. a respeito Luís S. Cabral de Moncada, Direito Econômico, 2a. ed., Coimbra Ed., p. 190, nota de rodapé)”. instituição toledo de ensino 361 que houve período de racionamento de alimentos (leite, pão etc.). Poderia, se quisesse, criar empresas para explorar tais atividades. Mais recentemente, na importação da borracha, instituiu a contestada TORMB (taxa de organização e regulamentação do mercado da borracha), objetivando regularizar segmento descompassado da economia. Durante o conflito de 1939/45, a distribuição de combustíveis passou a ser de segurança nacional, assim como a produção da borracha. E a “Petrobrás” surgiu, no fim da década de 40, como imperativo de segurança nacional, sem que se possa dizer que a extração, produção e comercialização de combustíveis sejam serviços públicos17. Desta forma, a dicção constitucional sinaliza no sentido de que imperativos de segurança nacional e interesse público relevante podem conformar exploração de atividades econômicas que impliquem serviço, no texto constitucional, sem que sejam necessariamente públicos. O segundo regime jurídico para atuação do Estado na prestação de serviços públicos com densidade econômica, desenhado está no caput do artigo 175 da C.F., sendo seu discurso o seguinte: “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos” (grifos meus). Aqui, ao contrário do § 1º do artigo 173, nitidamente o constituinte fala em serviços públicos e não apenas em serviços, sendo este regime de direito administrativo, devendo, por conseqüência, as empresas privadas que nele atuem seguir as estritas regras daquele ramo da árvore jurídica18. 17 O artigo 21 e § 1º da Lei n. 5227/67 estava assim redigido: “Art. 21 - É instituída a taxa de organização e regulamentação de mercado da borracha, de natureza específica e incidente sobre as borrachas e látices vegetais e químicas, nacionais e estrangeiras. § 1º Compete ao Conselho Nacional da Borracha estabelecer as alíquotas da taxa a que se refere este artigo para cada categoria de elastômeros, não podendo aquelas exceder a 1/20 (vinte avos) do valor de produção das borrachas e látices nacionais e do preço f.o.b. dos produtos importados”. 18 Diogo de Figueiredo esclarece: “Os instrumentos de intervenção do Estado na ordem econômica, por estarem estabelecidos como exceções aos princípios constitucionais da democracia econômica, tidos como fundamentais, para a nação brasileira (art. 1º, IV) e gerais para toda a atividade econômica (art. 170, caput – livre iniciativa -- e inciso IV –livre concorrência), estão taxativamente previstos na própria Carta Magna. Mas, diferentemente da sistemática utilizada para a enunciação dos princípios gerais da atividade econômica, os preceitos definitórios das instituições interventivas na economia ficaram disseminados em vários Capítulos, de quatro distintos Títulos (IV, VII, VIII e IX) da Constituição. Essas instituições interventivas se classificam em quatro tipos: regulatórias, concorrenciais, monopolistas e sancionatórias. Pela intervenção regulatória, o Estado impõe uma ordenação coacta aos processos econômicos; pela intervenção concorrencial, o Estado propõe-se a disputar com a sociedade no desempenho de atividades econômicas empresariais; pela intervenção monopolista, o Estado se impõe em exclusividade na exploração econômica de certos bens ou serviços; e pela intervenção sancionatória, o Estado pune os abusos e excessos praticados contra a ordem econômica e financeira, a economia popular e certos interesses gerais de índole econômica” (Curso de Direito Administrativo, Forense, 11a. ed., 1996, p. 365/366). instituição toledo de ensino 362 Não há como confundir os dois regimes. São distintos. No primeiro, o Estado atua como agente vicário na exploração própria da atuação particular, regida por normas que pertinem ao direito privado e, no segundo, o segmento privado pode atuar como agente acólito do Estado na prestação de serviços públicos, que não se confundem com os aspectos pertinentes ao artigo 17319. Não consigo vislumbrar outra interpretação, tendo procurado expor, em inúmeros estudos, esta minha inteligência, que reitero no presente parecer, ainda recentemente o fazendo, em palestra, perante ministros da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça, em Seminário Jurídico sobre Concessões em Foz do Iguaçu da Escola Nacional da Magistratura e da Academia Internacional de Direito e Economia (8/6/2001). Ora, claramente o constituinte determinou que as leis de mercado regeriam os serviços não públicos, à luz do disposto no artigo 173 e as leis que amparam o interesse público regeriam a exploração dos serviços públicos, no regime do artigo 175. Em outras palavras, a livre concorrência e o livre mercado determinam o regime jurídico do artigo 173 e o interesse público, com equilíbrio econômico e financeiro dos contratos, conforma a disciplina legal do artigo 175. Nitidamente, as regras do mercado não podem prevalecer sobre o regime jurídico da prestação de serviços públicos. Admitir-se que as regras do mercado é que devem definir a qualidade e o custo dos serviços públicos, pelo prisma do direito privado e não do direito administrativo, poderia levar, à consideração, também, que qualquer tipo de prestação de serviços públicos, deveria ser regida pelo direito privado e não pelo direito público, no que haveria inequívoca violação da lei suprema. Colocadas tais premissas essenciais, passo a examinar as diversas questões formuladas pela consulta sobre a matéria, que implicam, a meu ver, a necessidade de revisão dos termos pactuados atinentes à situação anômala que se apresenta para o setor energético no momento. 1ª Questão Toda a legislação infraconstitucional, a partir de 1986, seguindo orientação jurisprudencial e doutrinária é no sentido de exigir, nos contratos de concessão de 19 Escrevi: “O Estado, sobre não poder ter qualquer espécie de preferência na sua atuação econômica em relação ao setor privado, somente é chamado a participar de tal processo para suprir, complementar, preencher áreas não atendidas pelo mais vocacionado a tal atividade, que é o da livre iniciativa. À tal atuação vicária, sem privilégios, denomina a doutrina de “intervenção concorrencial”, no que me parece que bem rotulou tal secundária participação do Estado na Economia. Pelo artigo 175, o regime jurídico do serviço público, com densidade econômica, faz do Estado o agente principal e o sujeito privado mero coadjuvante, pelos mecanismos da concessão, permissão e autorização” (A Constituição Aplicada 7, Ed. CEJUP, 1993, p. 112). instituição toledo de ensino 363 serviços públicos, a inclusão de cláusulas protetivas de seu equilíbrio econômico e financeiro, assegurando-os contra desequilíbrios futuros, mediante a hospedagem dos princípios que conformam a teoria da imprevisão20. Do Decreto 2.300 de 21 de novembro de 1986, que dispunha sobre licitações e contratos da Administração Federal e outras providências, constava, no art. 55, II, "d", o seguinte: "Art 55. Os contratos regidos por este Decreto-Lei poderão ser alterados nos seguintes casos: ........................................................................ II – por acordo das partes: a) para restabelecer a relação, que as partes pactuaram inicialmente, entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do inicial equilíbrio econômico e financeiro do contrato." (grifos meus) Revogando o Decreto-Lei 2.300/86, sobreveio a Lei n. 8.666 DE 21/06/1993 DOU 22/06/1993, regulamentadora do art. 37, Inciso XXI, da Constituição Federal, e que institui normas para Licitações e Contratos da Administração Pública e dá outras Providências. Sobre a teoria da imprevisão, consta, do art. 57 inserido no CAPÍTULO III Dos Contratos (artigos 54 a 80), SEÇÃO I - Disposições Preliminares, o seguinte: "ART. 57 - A duração dos contratos regidos por esta Lei ficará adstrita à vigência dos respectivos créditos orçamentários, exceto quanto aos relativos: 20 Leia-se do Superior Tribunal de Justiça o seguinte acórdão: “Recurso Especial 52.696 – Distrito Federal (94 24939-0) Relator: O Exmo Sr. Ministro Ari Pargendler Recorrente: Santa Bárbara Engenharia S/A Advogados: Drs. Laurindo Eing e outro Recorrida: Companhia Urbanizadora na Nova Capital do Brasil – NOVACAP Advogados: Drs. Marivânia Palmeira de Oliveira e outros Ementa: Administrativo. Contratos de Empreitada. Desequilíbrio econômico-financeiro resultante do plano cruzado. Exigibilidade da correção monetária. Contrato que, celebrado na vigência do Plano Cruzado sem cláusula de reajustamento, teve sua base econômica comprometida pela inflação ocorrida no período. Direito da parte que o cumpriu à correção monetária das prestações. Recurso especial conhecido e provido. Acórdão: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da SEGUNDA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, conhecer do recurso e dar-lhe provimento, nos termos do voto do Sr. Ministro-Relator. Participaram do julgamento os Srs. Ministros Antônio de Pádua Ribeiro, Hélio Mosimann, Peçanha Martins e Adhemar Maciel. Brasília, 05 de dezembro de 1996 (data do julgamento)”. 364 instituição toledo de ensino § 1º Os prazos de início de etapas de execução, de conclusão e de entrega admitem prorrogação, mantidas as demais cláusulas do contrato e assegurada a manutenção de seu equilíbrio econômico-financeiro, desde que ocorra algum dos seguintes motivos, devidamente autuados em processo: I - alteração do projeto ou especificações, pela Administração; II - superveniência de fato excepcional ou imprevisível, estranho à vontade das partes, que altere fundamentalmente as condições de execução do contrato; III - interrupção da execução do contrato ou diminuição do ritmo de trabalho por ordem e no interesse da Administração; IV - aumento das quantidades inicialmente previstas no contrato, nos limites permitidos por esta Lei; V - impedimento de execução do contrato por fato ou ato de terceiro reconhecido pela Administração em documento contemporâneo à sua ocorrência; VI - omissão ou atraso de providências a cargo da Administração, inclusive quanto aos pagamentos previstos de que resulte, diretamente, impedimento ou retardamento na execução do contrato, sem prejuízo das sanções legais aplicáveis aos responsáveis. (grifos meus) Na mesma lei, sobre o equilíbrio econômico financeiro, ainda consta o art. 65, cuja dicção é a seguinte: "ART. 65 - Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos: I - unilateralmente pela Administração: a) quando houver modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos; b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei; II - por acordo das partes: a) quando conveniente a substituição da garantia de execução; b) quando necessária a modificação do regime de execução da obra ou serviço, bem como do modo de fornecimento, em face de verificação técnica da inaplicabilidade dos termos contratuais originários; c) quando necessária a modificação da forma de pagamento, por imposição de circunstâncias supervenientes, mantido o valor ini- instituição toledo de ensino 365 cial atualizado, vedada a antecipação do pagamento, com relação ao cronograma financeiro fixado, sem a correspondente contraprestação de fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço; d) para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da Administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando área econômica extraordinária e extracontratual. * Alínea "d" com redação dada pela Lei nº 8.883, de 08/06/1994 (DOU de 09/06/1994, em vigor na data da publicação). § 5º Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados ou extintos, bem como a superveniência de disposições legais, quando ocorridas após a data da apresentação da proposta, de comprovada repercussão nos preços contratados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos, conforme o caso. § 6º Em havendo alteração unilateral do contrato que aumente os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer, por aditamento, o equilíbrio econômico-financeiro inicial. (grifos meus) Da Lei 8.880 DE 27/05/1994 - DOU 28/05/1994, que dispõe sobre o Programa de Estabilização Econômica e o Sistema Monetário Nacional, institui a Unidade Real de Valor - URV e dá outras providências, constam dispositivos relacionados ao equilíbrio econômico financeiro nos seguinte termos: "ART. 7 - Os valores das obrigações pecuniárias de qualquer natureza, a partir de 1º de março de 1994, inclusive, e desde que haja prévio acordo entre as partes, poderão ser convertidos em URV, ressalvado o disposto no art. 16. Parágrafo único. As obrigações que não forem convertidas na forma do "caput" deste artigo, a partir da data da emissão do Real prevista no art. 3, serão, obrigatoriamente, convertidas em Real, de acordo com critérios estabelecidos em lei, preservado o equilíbrio econômico e financeiro e observada a data de aniversário de cada obrigação. "ART. 15 - Os contratos para aquisição ou produção de bens para entrega futura, execução de obras, prestação de serviços, locação, uso e arrendamento, vigentes em 1º de abril de 1994, em que forem 366 instituição toledo de ensino contratantes órgãos e entidades da Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, seus fundos especiais, autarquias, inclusive as especiais, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades por ela controladas direta ou indiretamente, serão repactuados e terão seus valores convertidos em URV, nos termos estabelecidos neste artigo, observado o disposto nos artigos 11, 12 e 16. (...) § 7º É facultado ao contratado a não repactuação prevista neste artigo, podendo, nesta hipótese, a Administração Pública rescindir ou modificar unilateralmente o contrato nos termos dos artigos 58, inciso I e § 2º, 78, inciso XII, e 79, inciso I e § 2º, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993." (grifos meus) A Exposição de Motivos da Medida Provisória n. 542 de 30.06.94, que instituiu o Real, menciona que o Plano tem como objetivo "preservar o princípio da livre negociação dos contratos entre as partes, tendo em vista a manutenção do equilíbrio econômico financeiro e o respeito ao ato jurídico perfeito" (conf. EM. Interministerial n. 205, de 30.06.94 DOU de 30.06.94) Como se percebe, há todo um complexo de comandos normativos a assegurar o serviço adequado (art. 175 § único inciso IV da C.F.) através da permanência do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos. À luz dos dispositivos acima citados, portanto, não se pode dizer que a cláusula nº 7 § 3º do contrato de compra e venda de energia elétrica perdeu a validade por força da revogação do Decreto nº 93.901 de 9/1/1987. Está o dispositivo assim redigido: “Parágrafo Terceiro – Os faturamentos integrais relativos à compra de ENERGIA e DEMANDA, pela COMPRADORA, referem-se a períodos normais de fornecimento, podendo não vigorar nos períodos de racionamento, durante os quais deverá ser observado o disposto no Decreto nº 93.901, de 9 de Janeiro de 1987, ou legislação que venha a substituí-lo ou complementa-lo.” O argumento contra a sua permanência é pueril. A cláusula só poderia referirse, naturalmente, à legislação vigente à época, que veio a ser substituída, legislação esta que previa – e corretamente – a regência do direito administrativo para a matéria, como, de resto, determina a Constituição Federal. A revogação destas normas, por outras, não retira a validade de princípios constitucionais, como são o da manutenção do serviço adequado (artigo 175 § úni- instituição toledo de ensino 367 co inciso IV ) e da garantia do equilíbrio econômico-financeiro do contrato (37 no XXI)21. Ora, se houver desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, com a possibilidade de enriquecimento ilegítimo de uns à custa do empobrecimento de outros, por fatores inevitáveis, imprevisíveis e imponderáveis, à evidência, o serviço tornarse-á inadequado, visto que as empresas concessionárias, permissionárias ou autorizadas não poderão ser obrigadas a trabalhar com prejuízo, por imposição governamental. Terão direito de ingressar com ações de indenização contra o Poder Público, que, por sua vez, poderá responsabilizar aqueles agentes que tenham provocado o prejuízo por dolo ou culpa, ação de ressarcimento, esta imprescritível em face dos §§ 5º e 6º e artigo 37 da Lei Suprema22. Vale dizer, a revogação do Decreto nº 93.901/87 não modifica o conteúdo da cláusula contratual plenamente aplicável à situação presente, que é não permitir o desequilíbrio econômico-financeiro por fatores momentâneos, imprevisíveis e inevitáveis23, devendo, na verdade, haver regulamentação legal específica nesse sentido. À evidência, a manutenção da obrigação de pagamento por energia não ofertada, em decorrência de imposição do governo, ou de adquiri-la de forma mais onerosa no mercado aberto para revendê-la com prejuízo para as concessionárias, são 21 Toshio Mukai lembra que “Admite o § 2º que os contratos poderão prever mecanismos de revisão de tarifas, a fim de manter-se o equilíbrio econômico-financeiro. É a positivação expressa da orientação doutrinária e jurisprudencial a respeito do assunto. O que a disposição contempla é a revisão das tarifas. Convém, diz Caio Tácito, “distinguir, nesse termo, as cláusulas de variação de preços e tarifas (ou cláusulas automáticas) e as cláusulas de revisão (ou cláusulas de princípio). Nas primeiras o ajuste se realiza, automaticamente, na conformidade de índices ou referências previamente estipulados (paramètres) que usualmente se relacionam com as alternativas salariais (paramètres salaires), da matéria-prima (paramètres-matières) ou das cargas fiscais. Nas últimas, convenciona-se o princípio da revisão obrigatória pela superveniência de fatores especificados; mas, o novo preço ou tarifa será fixado mediante o processo de revisão. Não há automatismo na modificação do elemento financeiro, embora assegurada às partes a manutenção da equivalência contratual” (Direito Administrativo Sistematizado, Saraiva, 1999, p. 431). 22 O artigo 37, §§ 5º e 6º, está assim redigido: “§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento. § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (grifos meus). 23 Manoel Gonçalves Ferreira Filho sobre a imprescritibilidade da responsabilidade do agente escreve: "Parecem deduzir-se duas regras deste texto mal redigido. Uma, concernente à sanção pelo ilícito; outra, à reparação do prejuízo. Quanto ao primeiro aspecto, a norma "chove no molhado": prevê que a lei fixe os respectivos prazos prescricionais. Quanto ao segundo, estabelece-se de forma tangente a imprescritibilidade das ações visando ao ressarcimento dos prejuízos causados" (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, volume 1, Saraiva, 1990, p. 260) (grifamos). 368 instituição toledo de ensino exigências inadmissíveis, por ferirem tanto a legislação sobre concessões públicas, quanto o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, sobre provocarem prejuízo ilegítimo a uma das partes e benefício imerecido para outra, ante a ocorrência de fatores inevitáveis, imprevisíveis e imponderáveis, alguns deles atribuíveis ao próprio governo. Na atual situação, portanto, que é de notória excepcionalidade, não se aplicam as condições estabelecidas nos contratos que provoquem o desequilíbrio econômico financeiro aduzido. É de se lembrar, por fim, que a cláusula 4 do Anexo 5 do retrocitado contrato determina que: “As quantidades de ENERGIA deste CONTRATO não serão afetadas por racionamento da carga dos clientes da COMPRADORA que seja imposto pela ANEEL, exceto na forma descrita no item 1, quando ocorrerem simultaneamente as condições referidas no item 2”, (grifos meus) cuidando do “racionamento rotineiro” e não do “racionamento imposto por questões de relevante interesse público e de segurança nacional, veiculado por Medida Provisória – e não pela ANEEL - , com a criação de um Ministério, dirigido pelo Ministro Pedro Parente, e o recurso extremo à Suprema Corte, em ação declaratória, para assegurá-lo. Nitidamente, cuidando a cláusula 4, anexo V, de racionamento sem maior impacto e determinado exclusivamente pela ANEEL, é cláusula inaplicável ao drama nacional que se vive no momento retratando um “quase estado de emergência” e que afastou a ANEEL da condução do processo, para que o próprio Presidente da República interviesse, baixando medida provisória de racionamento24. 24 Nunca é demais lembrar o magistério do saudoso Hely Lopes Meirelles: “A teoria da imprevisão consiste no reconhecimento de que eventos novos, imprevistos e imprevisíveis pelas partes e a elas não imputáveis, refletindo sobre a economia ou a execução do contrato, autorizam sua revisão, para ajustá-lo às circunstâncias supervenientes. É a aplicação da velha cláusula rebus sic stantibus aos contratos administrativos, a exemplo do que ocorre nos ajustes privados, a fim de que sua execução se realize sem a ruína do contratado, na superveniência de fatos não cogitados pelas partes, criando ônus excessivo para uma delas, com vantagem desmedida para a outra. A aplicação desta teoria, entre nós, assentava-se mais na equidade que no Direito, visto que nenhuma lei a consagrava para os contratos administrativos. Foi a jurisprudência pátria que, seguindo os rumos do Conselho de Estado da França e estimulada pela doutrina, acabou admitindo a revisão de ajustes administrativos em razão de fatos supervenientes e altamente oneroso para o particular contratado” (Direito Administrativo Brasileiro, ob. cit., p. 220). instituição toledo de ensino 369 2ª questão O quadro seguinte representa a repercussão econômico-financeira e o desequilíbrio que acarretaria a manutenção dos acordos existentes, conforme informações obtidas junto às empresas associadas à consulente. EFEITO DO RACIONAMENTO sem acordo recompra R$ milhões com acordo recompra D G D G 1. variação da receita -745 -110 -745 -110 2. receita recompra anexo V 784 -784 5 -5 3. custo/receita compra de 193 -193 193 -193 4. custo com energia livre 146 -399 146 -399 5. total mês (1+2+3+4) 378 -1486 -401 -707 6. total 7 meses (7 x linha 5) 2646 -10402 -2807 -4849 7. total/receita s/ racionamento 0,12 -1,52 -0,13 -0,72 8. = 7 anualizado (7 x linha 7+5)% ÷ 12 1,07 0,11 0,92 0,58 energia secundária R$ milhões/mês D G Receita sem racionamento 3092 973 Receita com racionamento 2347 674 “Como se pode ver, considerou-se além da alternativa de validade do acordo de recompra aprovado no MAE, uma outra em que o mesmo não existia. Devido ao efeito do racionamento, o gerador livre deixa de atender ao mercado não coberto pelos contratos e passa a deslocar as geradoras do MAE, transferindo desse modo, o custo correspondente, das distribuidoras para as geradoras. As informações mais relevantes do quadro estão nas linhas 7 e 8 , que mostram que, com o acordo de recompra do MAE, os geradores terão 72% da sua receita comprometida com encargos que não existiam quando não havia racionamento. Se não for considerado o acordo de recompra, os geradores terão que devolver ao mercado R$ 1,52 de cada Real que faturarem com a venda de energia, o que é um contrasenso. 370 instituição toledo de ensino Além das dificuldades mostradas acima, que consideram geradores e distribuidores de modo agregado, ao se entrar no universo dos sub-mercados, uma outra grande distorção acontece. No sub-mercado onde não houver racionamento, por hipótese no Sul, a redução dos contratos iniciais em decorrência do Anexo V e a redução da energia alocada à ITAIPU, exporia as empresas distribuidoras a um custo estimado da ordem de R$ 330 milhões por mês, não identificado no quadro Efeito do Racionamento, porque representa um fluxo intra classe de distribuidores” (texto da consulente). Como se percebe, as conseqüências econômicas são devastadoras para a geração, a saber: 1. comprometem a qualidade do serviço adequado; 2. afetam o equilíbrio econômico-financeiro do contrato; 3. sujeitam, aos sabores do mercado, um serviço público essencial; 4. transferem a regência do serviço público do artigo 175, que cuida especificamente dele para o regime da livre iniciativa do artigo 173 da C.F.; 5. atingem, de forma grave, a própria estabilidade dos agentes de geração; 6. prejudicam qualquer plano de recuperação que o governo possa estabelecer no setor de geração de energia25. De qualquer forma, o aspecto jurídico mais relevante é que a legislação, a jurisprudência e a doutrina não admitem possa, neste tipo de contrato, haver benefícios para as distribuidoras por fatos imprevisíveis, inevitáveis e imponderáveis, imputáveis, alguns, ao próprio governo, arcando todas as geradoras com prejuízos decorrenciais, mesmo aquelas cujos contratos não façam menção às situações de racionamento. Em outras palavras, se a manutenção dos acordos pré-estabelecidos não atender ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro, estará o governo, deliberadamente, ofertando lucro às distribuidoras a custa de um prejuízo imerecido das geradoras. Exatamente para evitar tais distorções é que toda a legislação sobre concessões de serviços públicos exige o reequilíbrio, com suspensão das cláusulas acordadas, lembrando-se que a cláusula 4 do Anexo 5, que prevê a hipótese do racionamento 25 É interessante notar que o contrato atrás mencionado possui cláusula que hospeda a teoria semelhante à da imprevisão, como se lê na “Cláusula 22. Caso alguma das PARTES não possa cumprir qualquer de suas obrigações por motivo de força maior ou caso fortuito, o presente CONTRATO permanecerá em vigor, mas a obrigação afetada ficará suspensa por tempo igual ao de duração do evento e proporcionalmente aos seus efeitos”. instituição toledo de ensino 371 se, por absurdo fosse aplicável a racionamentos excepcionais, não poderia se sobrepor à Constituição e à legislação ordinária, por sinalizar que: a) ou as tarifas anteriores seriam excessivas, ao ponto de serem capazes de absorver o racionamento, hipótese em que a ANEEL deveria ser punida por atingir o consumidor com tarifas superiores às que deveriam prevalecer; b) ou as tarifas anteriores seriam justas, e se estaria impondo prejuízos às geradoras, o que inviabilizaria a prestação de serviços adequados, ao arrepio da Constituição26. Em outras palavras, nenhuma cláusula contratual em matéria do serviço público pode prevalecer sobre a Constituição, sobre o equilíbrio econômico-financeiro em contratos administrativos e sobre a prestação de serviços adequados, nos termos da Carta Magna. Por esta razão, a referida cláusula 4 do Anexo V, do contrato retrocitado não pode prevalecer para a situação anômala atual, em face das conseqüências danosas que adviriam para as geradoras de energia, lembrando, uma vez mais, que cuida de “racionamento rotineiro” imposto pela ANEEL e não de “racionamento por questão de segurança nacional” determinado pelo Presidente da República, em medida provisória. Não pode, portanto, a referida cláusula propiciar a lucratividade denunciada pela manchete da FOLHA de 30/6/2001, para gáudio das distribuidoras de energia, nos termos seguintes: 26 “SERVIÇO DE JURISPRUDÊNCIA - D.J. 1/8/97 – EMENTÁRIO N. 1876-04 17/6/97 – 1ª Turma RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 183180-4-DISTRITO FEDERAL Relator: Min. Octávio Gallotti - Recorrente: União Federal – Adv.: Adv.-Geral da União – Recorrida: Transbrasil S.A Linhas Aéreas – Advs.: Luiz Carlos Bettiol e Outros EMENTA: 1. Questão de ordem processual diretamente apresentada pela recorrente ao Supremo Tribunal e rejeitada pela Turma, em face da preclusão que sobre ela se operara. 2. Recurso extraordinário tempestivamente interposto. 3. Violação do art. 167, II, da Constituição de 1967 (Emenda n. 1/69) argüida pela recorrente no pressuposto da condição de simples permissionária da empresa de navegação aérea recorrida, ao passo que se qualifica esta como concessionária do serviço público, a teor do contrato celebrado pelo Governo Federal em conformidade ao disposto no Decreto n. 95.910-88, no art. 18 da Lei n. 7565-86 e no art. 8º, XV, c, da referida Carta de 1967. 4. Prejuízo julgado comprovado pelas instâncias ordinárias e decorrente de atos omissivos e comissivos do poder concedente, causadores da ruptura do equilíbrio financeiro da concessão, não abstratamente atribuível a política econômica normativamente editada para toda a população (“Plano Cruzado”). 5. Recurso extraordinário de que, em conseqüência, não se conhece, por não se reputar contrariado o citado art. II, da Constituição de 1967 (Emenda n. 1/69), sem se a prequestionado tema pertinente ao disposto no art. 107 daquela magna Carta. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em primeira Turma, na conformidade da Ata de julgamento e das Notas taquigráficas, por unanimidade de votos, não conhecer do recurso extraordinário. Brasília, 17/6/97 – Moreira Alves – Presidente – Octávio Gallotti – Relator” (grifos meus). 372 instituição toledo de ensino “SALTO NO ESCURO. Distribuidoras devem receber pelo que não forneceram a preço de mercado atacadista, dez vezes maior. RACIONAMENTO PODE VIRAR GRANDE NEGÓCIO”27. A solução da crise, na proposta das geradoras, parece-me adequada, por procurar preservar um regime acordado, embora, a meu ver, juridicamente, não precisassem elas cumprir as cláusulas contratuais de regime de mercado, incompatíveis com as disposições do artigo 175 da C.F. para a prestação de serviços públicos. A proposta das geradoras é a seguinte: “No anexo 2, encontra-se um resumo desta proposta, cujos principais pontos são os seguintes: • mantém o Anexo V dos contratos iniciais;28 27 Lembro lição de Caio Tácito (O equilíbrio financeiro na concessão de serviço público, publicado na RDA) retirada do direito americano em que diz: “Finalmente, em 1944, com o Hope case, a Corte define o grau de sua interferência sobre os atos das Comissões, em matéria de tarifas, em função do resultado objetivamente consumado, tendo-se em visto o conceito legal de tarifas justas e razoáveis. Em princípio, a competência administrativa é livre e não se subordina a standards judiciais. Douglas, como relator do feito, proclama que não é a teoria, mas o impacto da norma tarifária que importa. Não sendo injusta, ou desarrazoada, cessa a jurisdição da Corte: “Under the statutory standard of “just and reasonable”, it is the result reached not the method employed which is controlling … It is not theory but the impact of the rate order which counts. If the total effect of the rate order cannot be said to be injust and unreasonable, judicial inquiry under the Acts is at an end” (p. 26/27), e continua: “A regra do equilíbrio financeiro nos serviços de utilidade pública também inspira, nos Estados Unidos, a noção de que não deve subsistir a obrigação de explorar o serviço, quando se tornar cronicamente deficitário. Não pode o tratado exigir a permanência de serviço que, de modo contínuo, seja operado com prejuízo (operation at a loss). A jurisprudência da Suprema Corte, em mais de um caso, confirmou esse princípio, como, por exemplo, em Railroad Commission v. Eastern Texas Railroad (264 U.S. 79), ou, mais expressivamente, em Telephone Company v. Tax Commission (297 U.S. 403), no qual Brandeis anotou que a empresa não pode ser obrigada a prosseguir no empreendimento com prejuízo, indefinidamente: “A public utility cannot be compelled to carry on a business indefinitely at a loss. If because of such loss a corporation, seeing no prospect of betterment, wishes to discontinue its business and were prevented from doing so by law might be held to be void as imposing an unconstitutional condition upon the privilege of engaging in it” (p. 30/31). E lembra que: “Nove anos após o voto no caso Munn v. Illinois, o próprio Waite, completaria o seu pensamento, exprimindo a opinião da Corte renovada: “This power to regulate is not a power to destroy, and limitation is not the equivalent of confiscation. Under pretense of regulating fares and freights, the state cannot require a railroad corporation to carry persons or property without reward; neither can it do that which in law amounts to a taking of private property for public use without just compensation or without due process of law” (p. 19) (grifos meus). 28 O Anexo 5 está assim redigido: “Redução da energia contratada em situação hidrológica crítica: 1. Considerando as ALTERAÇÕES DE MERCADO descritas no Anexo III e sendo satisfeitas as condições relacionadas no item 2 deste Anexo, o montante de ENERGIA contratual para cada período de apuração será reduzido como segue: ECCR = PCV . EAV + [PLMAE . (ECC – PCV . EAV) + PCVT . CVT] / PMAE Onde: instituição toledo de ensino 373 • mantém o acordo de recompra aprovado no MAE para todos os contratos, inclusive ITAIPU; • difere a parte do pagamento aos geradores livres que exceder os custos variáveis; • transfere o custo do gerador livre dos geradores aos distribuidores, através de adicional na tarifa de venda de energia; • transfere o custo da geração livre dos distribuidores para o encargo emergencial; • a parte do custo da geração livre diferida é paga com título a ser resgatado quando o encargo emergencial puder ser transferido para tarifa, limitando-se o período de diferimento a 1 ano; e • o título deve ser garantido pelo governo e, eventualmente também resgatado, se for entendido, na data do seu vencimento, que não é aconselhável aumento da tarifa de fornecimento. Esta proposição implicaria um adicional na tarifa de fornecimento, a ser aplicada após o racionamento, durante 1 ano, de 7% a 10%, dependendo do nível de recuperação do mercado após o racionamento. A adoção dessa proposição exigiria que se solucionasse 3 questões: • exposição dos distribuidores situados no sub-mercado onde não há racionamento; • definição do esquema de garantia e resgate dos títulos; e • lançamento contábil do título de modo a não afetar o Resultado Econômico do emissor.” ECC = Montante de ENERGIA contratual estabelecido para cada período de apuração, conforme o Anexo IV deste CONTRATO e o item 2.2.5 do Anexo III; ECCR = Montante de ENERGIA contratual reduzido; PCV = Participação deste CONTRATO no volume total dos CONTRATOS INICIAIS da VENDEDORA contratados no sub-mercado da COMPRADORA; EAV = ENERGIA alocada ao PARQUE GERADOR DA VENDEDORA no sub-mercado da COMPRADORA, considerando o MRE; PMAE = Preço do MAE no sub-mercado da COMPRADORA; PLMAE = Preço limite fixado em R$ 150,00/MWh e atualizado anualmente, no mês de agosto, com base na variação do índice IGP-M; PCVT = Participação deste CONTRATO no volume total de ENERGIA contratado pela VENDEDORA, em todos os sub-mercados; CTV = Total de créditos pecuniários atribuídos pelo MAE ao PARQUE GERADOR DA VENDEDORA, em todos os sub-mercados, em função do acerto de diferenças entre as quantidades contratadas e as quantidades alocadas considerando o MRE e da eventual alocação dos excedentes financeiros dos intercâmbios entre sub-mercados. 2. A redução descrita no item precedente só será realizada se, no período de apuração correspondente, forem satisfeitas simultaneamente as seguintes condições: (i) PMAE maior que PLMAE; (ii) ECV maior que EAV; instituição toledo de ensino 374 Em face do que foi exposto, devem ser consideradas válidas as cláusulas dos contratos não afetadas pelo racionamento, assim como dar-se especial relevo à cláusula 7º § 3º do contrato retrocitado, que estabelece, durante o racionamento, regra do reequilíbrio econômico-financeiro das relações pactuadas entre geradoras e distribuidoras29. Entendo pois, em conclusão, que as geradoras poderão fornecer, neste período, por força de fatos imponderáveis, inevitáveis e imprevisíveis, às distribuidoras, a energia que produzirem, sem necessidade de recorrer ao mercado (MAE), e sem necessidade de pagar pela energia não fornecida, visto que os serviços públicos que prestam não podem ser regidos pelas regras dos artigos 173, mas sim pelas regras do artigo 175. E se adquirirem no MAE, poderão repassar o custo da aquisição para as distribuidoras, para restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. S.M.J. São Paulo, 05 de Julho de 2001. IGSM/mos Pabrage2001-17 (iii) A condição anterior não decorra de indisponibilidade técnica das unidades do PARQUE GERADOR DA VENDEDORA; (iv) ECCR menor que ECC. Onde: ECV = ENERGIA total contratada pela VENDEDORA sob os CONTRATOS INICIAIS, no sub-mercado da COMPRADORA. 3. Nos anos 2003, 2004 e 2005, EAV não será a ENERGIA total atribuída ao PARQUE GERADOR DA VENDEDORA, mas deverá ser multiplicado por um fator de proporcionalidade que reflita a diminuição dos volumes dos CONTRATOS INICIAIS DA VENDEDORA. Esse fator de proporcionalidade deverá ser igual à divisão do Volume de energia contratado sob os CONTRATOS INICIAIS DA VENDEDORA pela ENERGIA ASSEGURADA do PARQUE GERADOR DA VENDEDORA no ano em curso. 4. As quantidades de ENERGIA deste CONTRATO não serão afetadas por racionamento da carga dos clientes da COMPRADORA que seja imposto pela ANEEL, exceto na forma descrita no item 1, quando ocorrerem simultaneamente as condições referidas no item 2”. 29 José Cretella Júnior ensina: “Com o decorrer do tempo verifica-se claro desajuste entre as tarifas estabelecidas e as condições econômicas vigentes, o que é bastante visível nos países de ritmo inflacionário acentuado, como o nosso. Aqui é que entra a política tarifária, a que se refere a regra jurídica constitucional de 1988. A situação do concessionário torna-se insustentável. Pensa-se na revisão das tarifas para atualiza-las, atendendo a interesses de três ordens: do Estado, do concessionário e do público. O grande princípio informador, nesse caso, é o interesse público, quer se trate de majoração, quer de redução das tarifas, o que nunca ocorreu, no Brasil. No caso de majoração, o interesse coletivo é consultado quando, para atender ao concessionário, a Administração examina o princípio da justa retribuição capital, a fim de que não se sacrifique a possibilidade econômica do particular.” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1993, p. 4137). núcleo de pesquisa docente kierkegaard disse: “para atingir a fé, a razão tem que dar um salto” 1 Maria Isabel Jesus Costa Canellas Mestre em Direito pela ITE-Bauru e em Literatura Norte-Americana pela USC-Bauru. Professora de Direito Civil na Faculdade de Direito de Bauru - ITE. Advogada e Presidente do Núcleo Municipal do IBDFAM em Bauru/SP. Membro do Núcleo de Pesquisa Docente da Faculdade de Direito de Bauru - ITE. “Embora a metafísica cristã seja uma reelaboração da metafísica grega, muitas das idéias gregas não poderiam ser aceitas pelo cristianismo... O problema principal para os cristãos foi o de encontrar um meio para reunir as verdades da razão (Filosofia) e as verdades da fé (religião), isto é, para reunir novamente aquilo que, ao nascer, a Filosofia havia separado, pois separara razão e mito... e como conseqüência [de todas essas concepções], provar que fé e razão, Revelação e conhecimento intelectual não são incompatíveis nem contraditórios e, quando o forem, a fé ou Revelação deve ser considerada superior à razão e ao intelecto, que devem submeter-se a ela. Evidentemente, os pensadores cristãos nunca se puseram de acordo sobre todos esses aspectos, e uma das marcas características da metafísica cristã foi a controvérsia... A metafísica clássica ou moderna [rompeu com a tradição medieval e partiu da] afirmação da incompatibilidade entre fé e razão, acarretando a separação de ambas, de sorte que a religião e a Filosofia possam seguir caminhos 1 Ao Professor Luiz Antonio Rizzatto Nunes, cujos ensinamentos inspiraram-me este trabalho. instituição toledo de ensino 378 próprios... [Posteriormente] Os místicos experimentam a fusão plena no seio de Deus, sentem estar nele e nele viver. Para a Filosofia, não sentimos Deus, mas o conhecemos pela razão... Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião. De fato, para competir com a Filosofia e suplantá-la, a religião precisou oferecer-se sob a forma de provas racionais, conceitos, teses, teorias. Tornou-se teologia, ciência sobre Deus. Transformou os textos da história sagrada em doutrina. Todavia, certas crenças religiosas jamais poderão ser transformadas em teses e demonstrações racionais sem serem destruídas. Não há como provar racionalmente que Jeová falou a Moisés, no monte Sinai... São verdades da fé e, como tais, mistérios. Estes são verdades inquestionáveis, isto é, dogmas. Eis por que o apóstolo Paulo declarou que “a razão é um escândalo para a fé” (grifou-se) ... O que queremos destacar aqui é a peculiaridade da relação que, na cultura ocidental, criadora da Filosofia e da ciência, se estabeleceu entre a razão e a fé. As dificuldades dessa relação ocuparam os medievais, modernos e nossos contemporâneos, parecendo insolúveis. A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo, enquanto ambas acusam a religião de dogmatismo, atraso e intolerância. Vários filósofos procuraram conciliar Filosofia e religião. Das tentativas feitas, mencionamos três, cronologicamente mais próximas de nós: a de Kant, a de Hegel e a da fenomenologia”. (Marilena Chaui, Convite à filosofia) INTRODUÇÃO “... justifica-se o silêncio de Abraão. Ele não pode falar, compete-lhe apenas obedecer aos secretos desígnios de Deus, e oferecer seu próprio filho em holocausto, ainda que o seu coração se rompa de angústia no peito. No alto da montanha de Morija, que lembra tantas outras montanhas onde Deus se comunicou aos homens, Abraão, como Indivíduo, está sozinho diante do eterno. Não lhe podem valer a sua sabedoria, a sua hierarquia social, nem os ritos religiosos existentes (e os que venham a existir, se cada um de nós se colocar no papel de Abraão) - porque a opção é inteiramente sua, ele deve realizar-se, deve escolher a sua diretriz e dar o seu salto no desconhecido. Essa decisão, que é um comportamento existencial ditado pela vontade individual, constitui a prova. Em instituição toledo de ensino 379 que instante, porém, de sua existência, o homem vence a sua prova: quando a recebe, com ânimo disposto a cumpri-la, ou quando a cumpre, independente de todas as injunções que seu espírito sofra, das relações humanas e do conflito de seus próprios sentimentos?” (Torrieri Guimarães, Prefácio, in:Temor e tremor, Sören Kierkegaard) A proposta de reflexão sobre o ponto de partida do paradoxo fundamental do pensamento existencial kierkegaardiano: “fé e razão” - constitui, antes de tudo, uma tentativa a uma explicação da fé filosófica e fé religiosa, da experimentação das “situações-limites” entre a existência e a transcendência, da opção entre o racionalismo e o irracionalismo, assim como visto no final do século XIX e no século passado. Assim, um pensador que, no século XIX, angustiado diante da oposição entre filosofia e religião, se propõe a realizar um “salto” para atingir a plenitude, isto é, faz a sua opção pela idéia do Ser Absoluto através da filosofia religiosa, porque, para ele, Deus é o “Infinito Ausente”, não o “Infinito Presente”, aparenta ser bastante pretensioso. Paradoxalmente, utilizando pseudônimos, Sören Kierkegaard se dispôs a escrever sobre o conflito bíblico do episódio Abraão e Isaac, sobre a fé de Jó e outros. O filósofo, no entanto, parece antever que o paradoxo fé e razão é permanente no caminhar da humanidade, visto que as teorias filosófico-religiosas se sucedem, não sem barulho. Prova disso é a Carta Encíclica do Papa João Paulo II aos bispos da Igreja Católica: Fides et ratio. Vale dizer, apesar dos profundos estudos que o espírito humano, principalmente nos dois últimos séculos, tem dedicado à filosofia da história, o enigma da história não está solucionado. Cada vez mais se evidencia o derradeiro e misterioso problema levantado pela filosofia da história: “Que é o homem? De onde vem e para onde vai”? De outro lado, indaga-se: se a contribuição de Kierkegaard (que se dizia não ser filósofo), diretamente, para a filosofia é mínima, onde está, pois, o nexo e o mérito no pensamento kierkegaardiano? Justamente no fato de, desmascarando o cristão “acomodado” e recompondo a História da Filosofia, nela inserir e dela extrair a mensagem existencial do homem - de sua luta com as situações-limites do existencialismo cristão, da tentativa de conciliar fé e razão. Este é o conteúdo filosófico-cristão de Kierkegaard - fé e razão - o pensador se volta para o horizonte da preocupação humana existencial: a irresistível necessidade da comunicação secreta e íntima com o seu Criador. O homem é o único ser que se sabe mortal. “É o ser dos longínquos”, no dizer de Heidegger. A consciência de sua finitude lhe dá a certeza do passado e do advir. “Tudo isso é ilusão”, diz Einstein! No entanto, quem, diante da magia de um pôr-de-sol, não terá refletido - ainda que por um instante - sobre o espetáculo universal do nascimento, do envelhecimento, da morte... Familiar - e próxima de nossa experiência cotidiana - é a certeza inexorável do tempo que escoa para a eternidade. instituição toledo de ensino 380 Aparente é a serenidade do céu... As estrelas nascem, morrem, explodem em anãs brancas, pulsares enigmáticos, buracos negros. Aparente é a idéia do instante que escapa ao indivíduo, no exato momento em que se dispõe a defini-lo, como limite entre o anterior e o posterior. A experiência temporal do ciclo vital é, no entanto, vivida por mim. O tempo que passa e que me marca existe por e para o meu espírito. “É a imagem móvel da eternidade”, disse Platão. Ante a problematização desse tema, almeja-se chegar à possibilidades de interpretação de alguns temores, esperanças e contradições da alma humana, por meio da análise do conflito kierkegaardiano sobre fé e razão. 1. CONTEÚDO DA FILOSOFIA DE KIERKEGAARD: EXISTÊNCIA CRISTà Considerar a incerteza objetiva como sendo a condição da “verdade existencial” de Kierkegaard, tomando a fé como definição da verdade e, a certeza, derivando tão-somente da prova da vida e da ação, e não da razão pura, é a expressão de uma luta tão desesperada e angustiadora do filósofo, que poderia servir para definir a sua própria personalidade. Isto porque é impossível compreender o pensamento de Kierkegaard sem conhecer sua personalidade concreta, sua obstinada busca de uma verdade para a qual pudesse viver e morrer, a compreensão de si mesmo na dramática relação da existência com a divindade e o esforço para tornar inteligível o paradoxo da fé, pois não buscava um sistema. Deste modo se explica facilmente a razão pela qual, para ele, a filosofia resumia-se em tomar consciência, apropriando-se, de forma cada vez mais radical, solitária e penetrante, através de uma profunda interiorização, do viver a verdade da sua própria existência, em todas as exigências do cristianismo, mas de um cristianismo rigorosíssimo, impregnado de um misto de calvinismo e luteranismo. Sua alma inquieta, angustiada e melancólica, desesperada com o drama do ‘devir cristão’, manifesta-se de maneira decisiva nos seus escritos, de que são exemplos as afirmações: “crer apesar da razão é um martírio...”; “somente o horror que atingiu o desespero desenvolve no homem suas mais altas forças”, [porque] “a fé encontra-se além da morte”, diz o pensador2. Assim, não podendo resolver pela reflexão o desígnio da existência, o fim para o qual existimos, aliados à impossibilidade de comunicação possível entre a existência e o Ser Absoluto, acrescenta, em outra de suas obras famosas, Temor e tremor, a seguinte reflexão: 2 Sören Kierkgaard, Tratado do desespero, p. 16-18 instituição toledo de ensino 381 “De uma parte, a fé é a expressão do supremo egoísmo: empreende o aterrorizante, efetua-o por amor a si mesmo; de outra parte é a expressão do mais completo abandono, age por amor de Deus... A fé é o tal paradoxo, e esse Indivíduo não pode de modo algum fazer-se entender por quem quer que seja...”3 Conforme demonstrado, por meio das breves citações representativas do existencialismo cristão do autor, suas numerosas obras desmascaram o falso cristão. Além disso, denunciam a Teologia e a Igreja por se arrogarem o direito de manobrar algo excessivamente individual, como seja a salvação eterna4 e, ainda, demonstram a repercussão dos problemas religiosos nas culturas dos povos. Desse modo, influenciou, embora sob formulações diversas, figuras geniais deste século, tais os nomes de Pascal, Nietzsche, Dostoiewski, Miguel de Unamuno, Leon Chestov e alguns outros mais, como, surpreendentemente, ficará evidenciado em William Faulkner. No seu embate dialético entre razão, desespero e fé, Kierkegaard conclui que certeza e verdade não andam a par, porque a verdade não pode ser imposta do exterior, mas da opção que o seu eu deve fazer, conforme o que nele há de infinito e de eterno. É assim que ele conhece simultaneamente a inquietação e a paz e este é o motivo por que escolher é sempre para ele saltar para além de todas as verossimilhanças racionais, transpor os abismos da razão abstrata, arriscar tudo incluindo a sua própria pessoa,5 trazendo à lembrança do leitor episódios memoráveis de persistência na fé, tais como, em João (4: 4,5): “Porque tudo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé. Quem é aquele que vence o mundo, senão aquele que crê ser Jesus o Filho de Deus”? No mesmo sentido, em Paulo (2 Tim. 4:7): “Combati o bom combate, encerrei a minha carreira, guardei a fé”. Igualmente, no belíssimo salmo de Davi (54): “Dá ouvidos, ó Deus, à minha oração; não te escondas da minha súplica. Atende-me, e responde-me; sinto-me perplexo em minha queixa, e ando perturbado, por causa do clamor do inimigo e da opressão do ímpio... Estremece-me no peito o coração, terrores de morte me salteiam; temor e tremor me sobrevêm, e o horror se apodera de mim... Eu, porém. invocarei a Deus e o Senhor me salvará. ... confiarei em ti.”6 3 Cumpre mencionar aqui: Ojebilikke (O momento); Enter-Ellen (Ou um ou outro. Traduzido, porém, como, A alternativa); Trygt og baeven (Temor e tremor); Begrebet angst (O conceito de angústia); Tratado do desespero (originalmente intitulado A doença mental). Podem, ainda, ser mencionadas: Etapas no caminho da vida; O diário; Migalhas filosóficas, dentre outras. 5 Régis Jolivet, Curso de filosofia, p. 49-51. 6 Todos os grifos são da autora. 382 instituição toledo de ensino William Faulkner, romancista moderno norte-americano, influenciado pelos fundamentos filosóficos do existencialismo materialista de Sartre nos escritos da crítica literária,7 surpreendeu o mundo ao proferir seu famoso discurso, impregnado da mais autêntica fé, nos moldes kierkegaardiano, quando agraciado com o Prêmio Nobel, em 1950. Disse o escritor naquele sagrado momento: “Eu me nego a aceitar o fim do homem. Eu me recuso a aceitá-lo. Acredito que o homem fará mais que perdurar: ele prevalecerá [ultrapassará]. Ele é imortal, não porque somente ele, entre as criaturas humanas, possui uma voz inexaurível, mas porque tem uma alma, um espírito capaz de compaixão, tolerância e sacrifício”.8 Estarrecida com tal revelação de fé, espiritualidade e otimismo, noticiou a crítica mundial a atitude enigmática do autor, pois Faulkner, que retrata na maioria de suas obras a degeneração moral e física das antigas e decadentes famílias sulistas, o fatalismo sombrio e calvinista de seus remanescentes, o caos cronológico da ação ficcional, à semelhança de uma visão do inferno dos trágicos gregos ou da genealogia bíblica, realiza o seu salto para a plenitude da condição humana e a ligação que com ela tem a divindade, no polêmico discurso proferido em Estocolmo, em 1950. Outros autores poderiam ser mencionados, a título exemplificativo, mas em sede apropriada, num trabalho de maior fôlego sobre a matéria. A mensagem existencial de Kierkegaard, evoluindo da estética para a ética, e atingindo o estádio religioso, situa-se, todavia, em terreno diferente, a ponto de ter sido considerado como o profeta do existencialismo moderno, muito embora, segundo sua concepção, a noção de existência implique a negação da filosofia como sistema, pois a “filosofia da existência” apenas corresponde à análise da existência no que ela tem de mais individual e mais concreto. Como se vê, era contrário a toda sistematização filosófica e, partindo do sentimento religioso ou da subjetividade religiosa da alma, apresenta o homem como ser desesperado, para quem a ciência não preenche o vazio de sua realidade existencial. Assim, em suas obras, o autor conduz, coerentemente, o fio de sua reflexão. Segundo Kierkegaard, a objetividade despoja a alma da sua paixão e do seu interesse pessoalmente infinito. E este interesse infinito constitui o princípio da fé. A razão apenas pode duvidar. Portanto, cumpre analisar seu pensamento na seção seguinte, de forma conduncente à elucidação da questão proposta para reflexão. 7 Como os volumes de Situations (em que também foram introduzidos: Dos Passos e Kafka): um caso novo de fecundação da literatura pela filosofia. 8 ”I decline to accept the end of the man. I refuse to accept it. I believe that man will not merely endure: he will prevail. He is immortal, not because he alone among creatures has an unexhaustible voice but because he has a soul, a spirit capable of compassion and tolerance and sacrifice”. (Tradução da autora) instituição toledo de ensino 383 2. PARA UMA IDÉIA GERAL DO PENSAMENTO KIERKEGAARDIANO Lutava o pensador dinamarquês com outra forma de existencialismo, o da idéia da “existência cristã”. Daí sua inquietude romântico-cristã entre fé e razão, pois o que buscava era a compreensão de si mesmo na existência concreta. O estádio religioso é o último salto que Kierkegaard empreende para a plenitude, ou seja, interpretar-se e dar um sentido à existência, o que lhe causa, contudo, angústia e desespero, devido ao paradoxo da contradição entre fé e razão9 existente em sua época. A esse respeito, preleciona José Van Den Besselaar: “Investe também contra toda a apologética: é uma blasfêmia pior do que negar a Deus, querer provar a existência de Deus; é uma pancada no rosto do nosso Redentor querer provar a divindade de Cristo pela história. O Cristianismo é um paradoxo (nós diríamos: um mistério), um escândalo, e a fé vai contra a razão (nós diríamos: está acima da razão). Aqui Kierkegaard confunde o conteúdo da fé que é incomensurável com os argumentos racionais, e o ato humano de crer que, ao abrir-se para o dom divino da fé, não se efetua sem a cooperação da razão.10 Kierkegaard vê no ‘Deus dos Filósofos’ um ídolo, uma usurpação do intelecto humano, uma espécie de paganismo irreconciliável com o Cristianismo: nas suas invectivas contra a razão, é filho de Lutero, desprezando (ou, desconhecendo o verdadeiro alcance de) o princípio tomista de ‘analogia’, distanciando-se da tradição cristã, e afastando-se do ensinamento da própria Bíblia que frisa a possibilidade do conhecimento natural de Deus. A Igreja Católica, que sempre intervém em favor 9 Régis Jolivet, op. cit., p. 260, define: “O termo racionalismo é empregado em muitos sentidos, que é necessário cuidadosamente distinguir. Utiliza-se, de início, como o fazemos aqui, para afirmar a capacidade da razão humana de conhecer com certeza as verdades que são do seu domínio. É sob este aspecto que se agrupam sob o nome de filosofias racionalistas ass doutrinas que fazem do conhecimento da verdade a obra própria da inteligência humana, por oposição às filosofias do sentimento e do coração, que atribuem a aquisição da verdade a processos ou métodos irracionais. - O termo racionalismo recebeu historicamente um sentido mais estrito, que designa toda doutrina que professa a absoluta e exclusiva suficiência da razão humana para a descoberta da verdade em toda a sua extensão, e que repudia por conseguinte toda afirmação dogmática de que a razão humana seria impotente para estabelecer seus próprios meios e para compreender adequadamente. Concretamente, o racionalismo assim entendido se apreenta como uma recusa da revelação divina dos mistérios, e do conhecimento de fé”. 10 “L’erreur fondamentale (de Kierkegaard) consiste à identifier deux termes aussi différents que ceux-ci: démontrer par la raison la vérité d’un objet qui est au-dessus de la raison, démontrer par la raison les raisons de croire à un objet qui dépasse la raison”. R. Jolivet, Introduction, p. 63. Apud, José Van Den Besselaar, As interpretações da História através dos séculos, p. 60-61. instituição toledo de ensino 384 dos valores humanos e do intelecto humano, defendeu a ‘teologia natural’ no concílio do Vaticano; a posição extremista de Kierkegaard teve profunda repercussão na chamada ‘teologia dialética’ de Karl Barth e outros teólogos protestantes”. Ainda, conforme já afirmado, lutou veementemente contra a Igreja estabelecida, representada em seu país pela Igreja luterana nacional. Dizia ele que não há ilusão pior do que confundir ‘Cristianismo’ e ‘Cristandade’, o primeiro é divino e transcendente, a segunda é humana e histórica. No entanto, deixou para a posteridade a raiz da filosofia existencialista, pois à unanimidade dos autores, a gênese do existencialismo está em Kierkegaard e Nietzsche. Na verdade, sabe-se que a expressão “existencialismo” é imprópria quando atribuída como englobante das tendências da filosofia existencial. Preferível, segundo os autores, a designação “filosofia existencial” como análise da existência humana, do mistério do existir e suas implicações de ordem metafísica, diferente do ato de viver, procurando, Régis Jolivet11 defini-lo “como o conjunto de doutrinas segundo as quais a filosofia tem como objetivo a análise e a descrição da existência concreta, considerada como ato de uma liberdade que se constitui afirmando-se e que tem unicamente como gênese ou fundamento esta afirmação de si”. Caracteriza-se, ainda, essa filosofia, pela afirmação de que a existência precede a essência, ou seja, que a essência é a própria obra da existência, não tendo essência distinta dela mesma,12 sendo quatro as doutrinas mais significativas da filosofia existencial contemporânea, mas que podem ser divididas em dois grupos diferentes, os quais correspondem às duas principais correntes existencialistas que não seguem exatamente no mesmo sentido. “Kierkegaard e Jaspers, que representam a primeira, não admitem que a análise existencial possa conduzir a uma verdade universal. Para eles, tudo se reduz a uma pura experiência, que não é comunicável (directamente, pelo menos), nem universalizável, e que é um contacto inteiramente pessoal com o absoluto do ser, consciência vivente do ‘instante eterno’... O autêntico existente é silêncio mesmo para si. Olhada sob este ponto de vista [e, coerentemente, Kierkegaard notou esse paradoxo], a filosofia existencial exaure-se na sua própria e radical negação, - Heidegger e Sartre não admitem esta forma de existencialismo. Ambos são, profundamente, ontologistas: propõem-se constituir uma ‘ciência do ser’... 11 12 As doutrinas existencialistas, p. 21. Cf. se lê nas obras de Sartre e Heidegger. instituição toledo de ensino 385 Falta dizer, por fim, que, tanto para uns como para outros, a filosofia tem sempre como princípio a análise concreta, nas sua formas mais singulares, para que, através dessa análise, se chegue à descoberta quer de uma verdade, inefável e estritamente pessoal, quer de uma noção universal do homem, e do mundo, no seio do qual se desenrola o destino humano. G. Marcel também perfilha este último ponto de vista, mas não admite o aspecto imanentista que caracteriza o existencialismo de Heidegger e de Sartre; neste particular, G. Marcel está muito mais perto de Kierkegaard que todos os outros existencialistas - e também de Pascal e de Santo Agostinho...”13 (sic) O pensamento de Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855), conforme visto, se caracteriza como uma violenta reação contra os pensadores especulativos e abstratos, afastados daquilo que é fundamentalmente humano: a existência. Atacou sobretudo, a antítese hegeliana - que é uma mediatização entre a tese e a antítese, um momento lógico e necessário de um processo contínuo e lento, pelo qual se realiza essa mediatização. Divergindo do sistema, Kierkegaard buscava não uma verdade universal, abstrata, mas uma verdade pessoal, um ajustamento crítico e existencial do homem ao seu “mundo”. Segundo ele, isto não pode ser obtido por meio de teorias que terminam em construções sistemáticas, como faziam os filósofos anteriores, mas, somente, por meio da vivência individual, refletivamente orientada. Para tanto, “Kierkegaard opõe os limites absolutos entre o sim e o não, a alternativa radical (Ellen-enter), o ‘salto brusco’ de uma fase para outra, em virtude de uma decisão absolutamente original, que não é conseqüência lógica da fase anterior, mas sua negação completa. Hegel é o filósofo do imanentismo que procura reconciliar a multiplicidade das coisas numa ampla síntese e acaba por racionalizar a fé; Kierkegaard é o arauto da transcendência que mantém as coisas absolutamente separadas e acaba por transformar a fé num paradoxo, num escândalo para a razão... cada nova geração, ou melhor, cada indivíduo tem de começar completamente de novo, no que diz respeito à sua ‘existência’ humana”.14 13 14 Delfim Santos, Prefácio, apud, Régis Jolivet, op. cit., p. 9-10. José Van Den Besselaar, op. cit., p. 56. 386 instituição toledo de ensino De acordo com sua concepção, a “existência” é o que determina o homem. Por este motivo, pela ameaça contínua a que esta está sujeita, permanece como que debruçada sobre um abismo. Kierkegaard nega a idéia de Hegel, segundo a qual existe uma concatenação universal lógica. Não via, pelo menos, razões para se chegar a tal conclusão, pois “segundo ele, a única forma legítima de filosofar é pensar com ‘paixão’ (páthos), e o pensamento ‘existencial’ consiste num interesse apaixonado pela verdade, num esforço sumamente pessoal para apropriar-se dela totalmente. O sistema (hegeliano) declara necessária a existência da Idéia, e necessária a existência de tôdas as manifestações concretas e finitas da mesma, arrogtando-se a competência de deduzí-las lògicamente; o pensador abstrato tem a absurda pretensão de demonstrar sua própria existência pelo pensamento. Contradição flagrante, segundo Kierkegaard, porque, na medida em que pensamos da maneira abstrata, somos forçados a fazer abstração do fato de que existimos. A existência é radicalmente contingente, e irredutível a todo e qualquer conceito racional”.15 O autor de Tratado do desespero16 revela todos os elementos básicos de busca da realidade, de afirmação de sua personalidade, do esforço de reflexão, com seu cortejo de angústia e desespero, para estabelecer a sua opção em face da existência, em suas obras. Sensível e introvertido, freqüentemente oprimido pela dúvida de toda certeza, a angústia do sofrimento interior, a busca incessante do âmbito da verdade, constituem os fundamentos de sua convicção moral e religiosa. Último filho de um simples camponês que enriquecera, sofreu prematuramente todos os tormentos de um pai idoso, severo, hipocondríaco e de uma educação alicerçada numa religião sombria, moldada na mensagem do Antigo Testamento, Kierkegaard era um enigma para si mesmo e para os outros, comparável a Hamlet, inclusive nas coincidências dos acontecimentos de sua vida, conforme descrito no seu célebre Sonho de Salomão.17 15 Ibid., , v. II, p. 55-56. Tradução de José Xavier de Melo Carneiro, 1ª. ed brasileira, março de 1969. 17 Interpreta José Van Den Besselaar, idem, nota n. 105, p. 55, o seguinte. “Os dois são dominados por uma melancolia doentia e incurável; para Hamlet, o grande acontecimento de sua vida é a descoberta do pecado de sua mãe, para Kierkegaard, a descoberta dos dois pecados de seu pai (este, como menino, amaldiçoara a Deus, quando apascentava o rebanho nas charnecas de Jutlândkia, e seduzira a governanta da sua casa, a mãe de Sören; Kierkegaard descreveu esse ‘terremoto’ no seu célebre ‘Sonho de Salomão’, sublime expressão do seu terrível sofrimento, quando soube dos pecados de seu pai adorado); Hamlet rejeita Ofélia, julgando-a incapaz de lhe ser companheira na profunda tristeza; Kierkegaard rompe com sua noiva Regina Olsen por motivos análogos”. 16 instituição toledo de ensino 387 De fato, suas obras completas, editadas em quatorze volumes, no ano de 1909, na sua cidade natal, refletem toda a sua vida e concepções, cumprindo, ainda, esclarecer sobre a noção de “transcendência”. A liberdade do homem só pode, com efeito, exercer-se na opção; a opção exige, para ser um verdadeiro saltus do existente, que a verdade lhe seja proposta como enigma e a ação como imbroglio. Para o existencialismo kierkegaardiano, a “transcendência” é, justamente, o salto, de um estádio espiritual a outro. 3. A RELAÇÃO ENTRE A ‘FÉ’ E A ‘RAZÃO’ Kierkegaard disse: “para atingir a fé, a razão tem que dar um salto”. Interpretar a crucial afirmação do pensador dinamarquês constitui, conforme anteriormente afirmado, o cerne da questão proposta para o presente trabalho. Assim, para a perfeita compreensão do tema, é necessário fixar alguns pontos-chave de reflexão crítica, de teorias que explicam as causas do que acontece e da busca da realização do homem. Para tanto, destacam-se os seguintes tópicos: 3.1 Fixação do texto na memória histórica18 A afirmação kierkegaardiana supramencionada é considerada a primeira reflexão existencialista, trazendo até aqui a marca da sua época.19 Reveste-se, pois, de grande importância, já que seu autor viveu e elaborou seu pensamento filosófico no século XIX, segundo a corrente do existencialismo cristão, que contrariou o Racionalismo da época.20 Ora, sabe-se que “todo o existencialismo é uma filosofia do homem antes de ser uma filosofia da natureza. Portanto, quer seja ou não cristão, caracteriza-se sempre... por uma concepção singularmente dramática do destino do homem...21 Sobre as duas facções do existencialismo, acrescenta o autor: “Para o existencialismo cristão, a minha contingência tem a sua raiz na contingência original do acto criador gratuito, duplicado pela gratuita misericórdia da Encarnação e da Redenção. Esse 18 Cf. José Auri Cunha, Filosofia: iniciação à investigação filosófica, p. 9-10: “significando que, sendo obras humanas, os textos precisam ter sua existência referida ao tempo de existência dos homens, que é o tempo histórico; ou seja, textos surgem em algum lugar e em determinadas datas, remetendo-se ao contexto da vida de seus autores, pessoas que neles fixaram alguma intenção comunicativa” 19 Vide: Emmanuel Mounier, Introdução aos existencialismos, p. 132. 20 Em, Manual de filosofia, Theobaldo Miranda Santos, p. 567, define Racionalismo - “Doutrina segundo a qual existem verdades a priori, universais e necessárias, independentes, da experiência, e que afirma que a razão é inata, imutável e igual em todos os homens. Doutrina que estabelece a autoridade soberana da razão e que rejeita a revelação sobrenatural”. 21 Emmanuel Mounier, op. cit., p. 49. instituição toledo de ensino 388 acto tempera o horror sagrado que o mistério primitivo inspira, através do sentimento de bondade que envolve. Mas permite suficiente obscuridade para que certos temperamentos forcem a bondade e outros a absoluta dependência do homem em relação ao acto criador, a absoluta distância que o separa de Deus - miséria do homem sem Deus e transcendência divina...No existencialista não-cristão a contingência da existência nunca assume o carácter de mistério provocador, mas de irracionalidade pura e de absurdidade total. O homem é um facto nu, cego. Está aí, assim, sem razão. É o que Heidegger e Sartre chamarão a sua facticidade. Cada um de nós, por sua vez, se encontra aí (Befindlichkeit), aí, agora. Por que aí e não aqui, não o sabemos, não há razão, é absurdo 22 (Eterno silêncio dos espaços infinitos, segundo Heidegger). 3.2 Reflexão crítica Ocorre que a verdade alcançada pela via da reflexão filosófica e a verdade da Revelação não se confundem, nem uma torna a outra supérflua. Por isso, lê-se em Fides et Ratio23 que o Concílio Vaticano I ensina: “Existem duas ordens de conhecimento, diversas não apenas pelo seu princípio, mas também pelo objeto. Pelo seu princípio, porque, se num conhecemos pela razão natural, no outro fazemo-lo por meio da fé divina; pelo objeto, porque, além das verdades que a razão natural pode compreender, é-nos proposto ver os mistérios escondidos em Deus, que só podem ser conhecidos se nos forem revelados do Alto”. Deve-se a S. Tomás de Aquino o grande mérito de estabelecer a harmonia que existe entre a razão e a fé, 24 lembrando, todavia, o Doutor Angélico a existência das já apontadas formas complementares de sabedoria: a filosófica e a teológica. A primeira se baseia sobre a capacidade que tem o intelecto de investigar a realidade, dentro dos próprios limites naturais. A segunda, tem como fundamento a revelação, examinando os conteúdos da fé.25 Logo, as verdades da fé são tidas como mistérios e, pois, são inquestionáveis, isto é, dogmas. Eis por que o apóstolo 22 Ibid., p. 50-54. Carta encíclica do Sumo pontífice aos bispos da Igreja católica sobre as relações entre fé e razão, Papa João Paulo II, p. 16-17. 24 Cf. Summa contra gentiles, I, VII. 25 Fides et ratio, op. cit., p. 56. 23 instituição toledo de ensino 389 Paulo declarou que “a razão é um escândalo para a fé”.26 Esclarecidos estes argumentos a respeito da fé filosófica e da fé religiosa e fazendo-se, agora, a necessária ligação com o pensamento kierkegaardiano anteriormente estudado, a solução parece óbvia, ou seja, somente quando o estádio religioso, em Kierkegaard, devora o existencial (o ético e o estético), denominado por ele próprio “um salto”, opera-se o conforto moral, não oferecendo mais razões para a dúvida. É por esta razão que José Xavier de Melo Carneiro, na Introdução da obra, Tratado do desespero,27 esclarece com lucidez: “Assim no campo da existência humana, que Kierkegaard considera uma síntese de finito e infinito, de necessidade e liberdade, de temporal e eterno, existência na qual, portanto, tudo é dialético. No curso dessa existência Kierkegaard visualiza três estádios, três formas da vida do espírito que se colocam dialeticamente para o homem como alternativas possíveis, as quais pode atravessar sucessivamente, mas numa das quais termina por instalar-se, sempre porém implicando num salto qualitativo e numa absorção ou dissolução - das demais toda passagem de uma para outra. São elas o estético, o ético, e o religioso. No estádio estético predominam o instante, o imaginário, o sensível, a fruição, o finito. No ético o tempo, a consciência do bem e do mal, a razão que entre outras coisas introduz a possibilidade do ‘escândalo’ ante a fé... No religioso, estádio superior aos demais e que os transcende, a eternidade se insere no temporal, o infinito cruza o finito, surge a consciência de estar perante o poder que nos criou, entrevislumbra-se o possível e a liberdade, e com isso a fé... Ora, somente quando o espírito adquire a consciência do religioso, mergulhando assim nas suas próprias raízes, a dialética da existência atinge o clímax da sua dramaticidade, porque o latente se manifesta e o encoberto se desnuda.” Conforme se depreende do pensamento supra, o “filósofo” dinamarquês concentra sobre o momento crucial da opção religiosa toda a sua dialética. Portanto, a esta altura do trabalho, já é possível traçar a conclusão sobre o assunto. 26 27 Cf. Marilena Chaui, Convite à filosofia, p. 312. Op. cit., p. 15-16. 390 instituição toledo de ensino CONCLUSÃO Por fim, como se pode analisar, comparativamente, a mensagem temática que se pode extrair da obra de Kierkegaard não se choca com aquela demonstrada pela carta encíclica: Fides et ratio, pois, conforme analisado, o pensador dinamarquês concentra sobre o momento crucial da opção religiosa toda a sua dialética. Melhor dizendo, diante do perigo assustador que domina a época atual: ecletismo, ateísmo, nihilismo, cientificismo, pragmatismo e outros, em que o homem perdeu-se a si próprio, é importante a construção de um novo humanismo. É nesse sentido o clamor da Carta Encíclica Fides et ratio sobre a necessidade de nova reflexão sobre fé e razão, atual e cristã. Na questão kierkegaardiana, utilizando raciocínio análogo, embora a obra tenha sido escrita em linguagem metafórica e para uma outra época, igualmente problemática, somente quando o estádio religioso adentra a consciência do homem é que o movimento da fé é impelido para as suas culminâncias, que não leva em conta lei alguma, assim também como não leva em conta o que a ética declarou, simbolizado no dramático episódio de Abraão e Isaac (também no de Jó). Vê-se, hoje, no limiar do terceiro milênio, o mundo desvairado e flagelado por guerras fratricidas em diversos continentes. No Ocidente, o libertinismo de costumes, a sensualidade baixa e blasfema nas multidões, vêm a ser indiretamente um apelo a sinalizar a correção do rumo de que a humanidade está carente. Sabe-se que a bandeira que determinou o anúncio dos tempos modernos: individualismo, antropocentrismo, racionalismo e nacionalismo conduziu a humanidade a uma sede de liberalismo que dividiu os homens e dividiu os povos. Os abismos e suas conseqüentes pressões vêm colocando o homem diante de um enigma que nos permite parodiar o “decifra-me ou te devoro”, por “repensa-te ou te autodestruirás”. Há, nos tempos atuais, apesar dos interesses em jogo, uma urgência coletiva de revaloração da vida e de todas as suas exigências básicas. Assim como a peste negra, a AIDS é uma ameaça de dizimação. A natureza clama e alerta. Um dilúvio, a grande água registrada por todos os povos, promoveu uma reciclagem universal. Hoje, assiste-se a potências aterrorizadas diante de terremotos; o clima se desequilibra no planeta. A alma humana anseia pelo místico, pelo metafísico, pelo transcendental. Impotente ante a magia de sua própria psique invisível, o homem não aceita mais pagar pelo fato de ter exorcizado e expulsado todos os demônios e deuses. Nessa busca, o reencontro com suas origens naturais, com o Divino através do outro, do semelhante - perto ou longe - parece ser o caminho. Nesse contexto, as relações humanas são repensadas. Valores como justiça, família e religião se impõem como caminho e solução para que se recomponha a ordem. Laços sangüíneos e opções conscientes ganham o amparo da lei, amparo esse inserido em um novo conceito de mundo. Fidelidade, comprometimento, doação, instituição toledo de ensino 391 renúncia, solidariedade - palavras gastas e, às vezes, esquecidas - voltam a ser proclamadas à exaustão. Uma nova sociedade se reestrutura em função do mercado e dos interesses privados e empresariais, acreditando que a solução dos problemas sociais não virá do Estado, mas da livre iniciativa. Uma sociedade que se adequa a um modelo materialmente insustentável. No entanto, o mais dramático é que parece implantar uma cultura humanamente indesejável em seu consumo individualista, oferecendo fraca sustentação para a vida moral, quando a máxima consiste em abdicar da solidariedade e defender o interesse próprio. Está criado, pois, um mundo ambíguo, marcado pelo avanço científico e tecnológico, ao lado de níveis alarmantes de exclusão e miséria. Nele, os meios massificadores da comunicação social, dirigidos por um sentido mercadológico, modelam mais efetivamente a conduta, inculcando no indivíduo símbolos do sucesso e prestígio social. Ao desembocar na prática do darwinismo social, o trabalhador especializado cede lugar ao polivalente sendo que a sua máxima de ser: aprender a desaprender aquilo que se tornou obsoleto, pois ficar parado sgnifica regredir. Recortando o tecido social, hoje, no Brasil, já é difícil escolher um filamento entre os desassistidos, dada a variedade de opções. Um elemento, no entanto, pela sua peculiaridade dentro da realidade brasileira, oferece as condições ideais para reflexão, a fé. Dentro dessa linha de pensamento, a reflexão existencialista cristã de Kierkegaard traz até hoje a marca da sua época, muito embora, segundo alguns autores, deva-se a Pascal a gênese do existencialismo religioso. Nesse sentido, é possível lembrar as palavras de Hemingway: “o homem pode ser destruído, jamais derrotado”. Justamente a fagulha da divindade é que o impulsiona para a descoberta de si mesmo, para cima, para frente. A fé, nesse contexto, não é um pensar diminuído em relação à realidade do pensado, mas um pensar potenciado em proporção com a existencialidade do pensante. 392 instituição toledo de ensino BIBLIOGRAFIA BESSELAAR, José Van Den. As interpretações da História através dos séculos. Coleção da Revista de História. São Paulo: Herder, 1958. 296 p. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 9. ed. São Paulo: Ática, 1997. 440 p. CUNHA, José Auri. Filosofia: iniciação à investigação filosófica. São Paulo: Atual, 1992. 326. DE SILENTIO, Johannes [Sören Kierkegaard]. 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Perfil das tutelas de urgência no processo civil brasileiro Rossana Teresa Curioni Mestre em Direito Processual Civil na Instituição Toledo de Ensino (ITE), Bauru. Professora da Faculdade de Direito da ITE e da Faculdade de Direito de Jaú. Juíza de Direito em Ibitinga-SP. Membro do Núcleo de Pesquisa Docente da Faculdade de Direito de Bauru - ITE. Glauco Gumerato Ramos Mestrando em direito processual civil na PUC-SP. Professor da Faculdade de Direito de Jaú. Membro do Conselho de Redação do Boletim Jurídico da 33ª OAB/SP. Advogado em Jundiaí-SP. 1. INTRODUÇÃO Não há tormento maior ao processualista do que a preocupação gerada pelos efeitos daninhos que o tempo causa ao processo. A partir daí, observa-se uma crescente valorização do estudo da tutela jurisdicional com o objetivo de aperfeiçoar os mecanismos tendentes a propiciar que os resultados práticos a serem obtidos pelo processo no plano material sejam efetivamente alcançados. Vale dizer, deve a tutela jurisdicional cumprir sua missão de satisfazer integralmente o direito da parte. Em tempos de agigantamento do número de demandas ajuizadas, e do conseqüente assoberbamento do Poder Judiciário, fica evidente a inaptidão do modelo clássico de processo, que exige o exaurimento da ampla defesa e do contraditório, para resolver todas as situações a serem solucionadas através da via processual, onde muitas delas reclamam uma providência emergencial sob pena do direito material ameaçado restar lesado. Nesse sentido, surge o mandamento constitucional que garante a plenitude do acesso à Justiça – aqui entendido como o atingimento substancial da justiça em 394 instituição toledo de ensino decorrência da observância do direito abstratamente previsto pelo legislador democrático – através do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que deverá se fazer presente para evitar lesão ou ameaça a direito (CR, art. 5º, inc. XXXV ). Enfocando o ordenamento infraconstitucional, temos que um dos aspectos que foram valorizados pelo legislador da Reforma do Código de Processo Civil foi a preocupação quanto à efetividade da tutela jurisdicional, sendo de se destacar o enaltecimento da tutela de urgência enquanto gênero cuja tutela cautelar e a tutela antecipatória pertencem. Aquela – tutela cautelar – já bem conhecida e estruturada no processo civil brasileiro como um tertium genus de processo (CPC, Livro III); esta – tutela antecipatória – agora revigorada e prevista como expediente a ser utilizado em todo e qualquer processo de conhecimento, bastando, para tanto, a observância dos requisitos autorizadores para que se torne viável a respectiva concessão. A tutela de urgência no processo civil brasileiro atualmente tem um perfil que lhe é próprio, uma vez que a Reforma do CPC acabou por abolir antiga deformação do processo cautelar que era o artifício da utilização de sua estrutura a fim de se obter as chamadas cautelares satisfativas, o que encerrava uma contradição em si mesmo, uma vez que jamais foi da índole do processo cautelar satisfazer direitos, missão essa específica do processo de conhecimento e do processo de execução. Verdade seja dita, essa solução, conquanto dogmaticamente equivocada, era a única capaz de conjurar do impacto do tempo sobre o processo, e com isso evitar que direitos deixassem de ser satisfeitos... De qualquer forma, essa inversão foi corrigida, sendo que hoje as hipóteses que reclamam a satisfação urgente do direito pleiteado serão salvaguardadas pela concessão da antecipação da tutela. Enfim, uma tentativa de contribuir para traçar o perfil das tutelas de urgência no direito positivo, bem como a tentativa de demonstrar que o clássico poder geral de cautela não é mais uma exclusividade do processo cautelar – eis que este poder atualmente também é exercido através daquilo que chamamos de tutela antecipatória assecurativa – são os objetivos a que se propõe este ensaio. 2. CONSTITUIÇÃO E PROCESSO: FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DAS TUTELAS DE URGÊNCIA É inevitável a influência das regras constitucionais sobre o processo. Modernamente, desenvolvem-se estudos voltados à análise das normas de processo consagradas na Constituição, sendo mesmo de se considerar a existência de uma nova disciplina preordenada ao estudo dos princípios formados pela proximidade da Constituição e do processo. Trata-se do chamado direito processual constitucio- instituição toledo de ensino 395 nal1, cujos resultados positivos estão favorecendo a revisitação de antigos institutos concebidos no auge da fase de autonomia do direito processual civil, iniciada a partir de 1868 com a revolucionária obra de Oscar von Bülow2. Princípios constitucionais como o do devido processo legal e do acesso à justiça representam a tônica da preocupação do processualista moderno no sentido de pensar e operar com o sistema de direito positivo visando o alcance dos propósitos superiores a serem atingidos pelo processo, máxime no que tange ao seu escopo de colaborar para a consecução de uma ordem jurídica verdadeiramente justa, proporcionando ao titular do direito lesado ou ameaçado tudo aquilo que naturalmente – em razão do cumprimento voluntário das regras abstratas do ordenamento jurídico – lhe caberia, não fosse a lesão ou ameaça ao seu direito. Quando se parte da idéia de que a Constituição traz em seu núcleo imodificável o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, asseverando que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CR, art. 5º., inc. XXXV ), surge daí a noção de “norma jurídica vinculativa”3, acarretando a necessária vinculação dos titulares do poder-dever oriundo do Estado Democrático de Direito (legislador, julgador e administrador) em pautar a respectiva atuação de maneira a concretizar – ao menos no plano do “dever ser” – os resultados pretendidos pela mencionada diretriz constitucional. É imperioso, portanto, que o sistema de di1 Exemplo disso são as monografias que, sobre o tema, foram produzidas no Brasil principalmente a partir da década de noventa, em especial: Nelson Nery Jr., Princípios do processo civil na Constituição Federal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, 6ª. edição; Roberto Rosas, Direito processual constitucional, São Paulo: Revista dos Tribunais , 1997, 2ª. edição; Marcus Orione Gonçalves Correia, Direito processual constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998; Antônio Scarance Fernandes, Processo penal constitucional, São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 2000, 2ª. edição. Ainda sobre o tema, porém, à guisa de ensaio, vide, do Min. do STJ Sebastião de Oliveira Castro Filho, “Princípios constitucionais aplicáveis ao processo civil”, RePro 70/154, e de Angélica Arruda Alvim, “Princípios constitucionais do processo”, RePro 74/20; 2 No tocante a ter sido a obra de Bülow (Die Lehre von den Prozesseinreden und die Prozessvoraussetzungen) o marco do surgimento do direito processual como ciência autônoma, v. Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol. I, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, 7ª. edição, p. 43/44; também Ovídio A. Baptista da Silva e Fábio Luiz Gomes, Teoria geral do processo civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 35/36. Por intermédio desta obra do jurista alemão, demonstrou-se que a relação processual é distinta da relação material, eis que dotada de pressupostos, condições e objeto que lhe são próprios. A partir daí, surge a preocupação com a construção dos grandes institutos do direito processual, donde a autonomia então propalada serviu de mote para considerar o processo como um fim em si mesmo, chegando muitas vezes a sobrevalorizar a importância deste em detrimento do direito material. Acerca das “linhas evolutivas” do direito processual, iniciada com o sincretismo (teoria civilista ou imanentista da ação), passando pela fase de autonomia e atualmente estando sob os influxos da instrumentalidade, vide Araújo Cintra, Grinover e Dinamarco, Teoria geral do processo, São Paulo: Malheiros, 1993, 9ª. edição, p. 42 a 45; 3 Sobre a idéia de “norma jurídica vinculativa”, cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 1998, 3ª. edição, pág. 354; Ensina o prof. da Universidade de Coimbra, que toda vez que o legislador constituinte traz da esfera metajurídica um determinado princípio, para positiva-lo no texto constitucional, tal atitude obriga a observância irrestrita do respectivo princípio positivo; daí a idéia de “norma jurídica vinculativa”, vale dizer, o Estado está vinculado ao seu cumprimento; 396 instituição toledo de ensino reito positivo seja estruturado no sentido de proporcionar ao jurisdicionado os mecanismos tendentes à materialização da promessa constitucional de que ao Poder Judiciário cabe, efetivamente, conjurar os males provocadores da lesão ou da ameaça a direitos. Para tanto, é imprescindível dotar o processo de técnicas que satisfatoriamente possibilitem à jurisdição conceder uma tutela jurisdicional apta a ministrar a correta terapêutica pedida pela fattispecie que sofrerá os influxos da norma processual, sendo que isso, necessariamente, ocorrerá por força do exercício do direito de ação, que muitas vezes deverá ser utilizado sob inequívoca situação de urgência. Se é a própria ordem constitucional que garante o exercício do direito de ação para que o Poder Judiciário aprecie qualquer lesão ou ameaça a direito (CR, art. 5º., inc. XXXV ), é obvio que garantido também estará a utilização dos mecanismos extraídos do ordenamento jurídico condizentes à efetivação de uma tutela jurisdicional de urgência adequada ao respectivo caso concreto, sendo que nem mesmo óbices calcados em formalismos procedimentais poderão desautorizar o concessão da tutela de urgência pleiteada, o que garantirá a posterior satisfação, tão mais plena quanto possível, do direito material cuja respectiva tutela existe para salvaguardar. Além de ser uma realidade presente no sistema processual, a tutela de urgência é, antes de tudo, um imperativo constitucional fundado no direito de acesso à ordem jurídica justa, corolário do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, que cada vez mais estará atendendo sua finalidade quanto maior for sua potencialidade de evitar as patologias decorrentes da não-satisfação voluntária do direito abstratamente previsto no ordenamento jurídico. Quando se dá o fundamento constitucional da tutela de urgência, necessariamente se está a legitimar a respectiva tutela como gênero, onde toda e qualquer forma de tutela jurisdicional concedida após cognição sumária seria identificada como espécie. Assim, a tutela cautelar (típica ou atípica)4 e a tutela antecipatória (típica ou atípica)5 seriam os exemplos de espécies do gênero tutela de urgência.6 No manejo das tutelas de urgência, seja a cautelar, seja a antecipatória, o operador do direito não pode, nem mesmo por um instante, olvidar do compromisso constitucional destas modalidades de tutela jurisdicional, sob pena do acesso à justiça restar obstado em virtude do apequenamento daqueles que se apegam aos exageros procedimentais, que nada mais fazem do que impedir a utilização do processo como instrumento viabilizador do direito material. 4 A idéia de tutela cautelar típica e atípica será melhor desenvolvida no item “5” infra; Idem, no item “6”; 6 Parece não haver mais dúvida no plano doutrinário de que a tutela cautelar e a tutela antecipatória (desde que não fundada no inc. II do art. 273 do CPC) são espécies do gênero tutela de urgência. Para se ter uma abrangente visão dessa realidade, v. o excelente estudo de José Roberto dos Santos Bedaque, onde o processualista da USP confirma essa tendência (Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgências - tentativa de sistematização, São Paulo: Malheiros, 1998, passim); 5 instituição toledo de ensino 3. 397 A VALORIZAÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL DE URGÊNCIA7 Uma das preocupações atuais no estudo do processo civil diz respeito à tutela jurisdicional. É através de seu aperfeiçoamento que se viabiliza a satisfatividade ou a cautelaridade tendentes a permitir a “atuação da vontade concreta da lei”, para usarmos a proposição de Chiovenda a respeito da atividade jurisdicional8. Vale dizer, é através da tutela jurisdicional que o Estado, detentor do monopólio da jurisdição, cumpre a promessa constitucional de apreciar – e evitar – toda lesão ou ameaça de lesão a direito (CR, art. 5º, inc. XXXV), e com isso proporcionar o efetivo acesso à Justiça. A instrumentalidade do processo, verdadeiro “método de pensamento”, impõe ao processualista o compromisso de pensar o processo sob seus aspectos externos, vale dizer, sob a ótica dos resultados que por ele – processo – podem ser alcançados no plano do direito material, o que gera a necessidade crescente de se criar técnicas processuais votadas a permitir uma tutela jurisdicional diferenciada. Por tutela jurisdicional diferenciada deve ser entendida toda forma de tutela que se obtenha por caminhos procedimentais diferentes da tutela que se obtém por intermédio do clássico – e já não mais eficaz a tutelar todas as situações ocorrentes no mundo da vida – procedimento comum ordinário, onde a respectiva ordinariedade, conquanto tenha representado a consagração absoluta de princípios como o do contraditório e o da ampla defesa, exigidos para o direito processual imediatamente posterior à Revolução burguesa de 1789, tornou-se vilã perante o jurisdicionado dos tempos contemporâneos, onde a complexidade dos problemas intersubjetivos que eclodem da “sociedade de massas” reclama soluções que o processo civil clássico9, como não poderia deixar de ser, não oferece. Ao que tudo indica, o primeiro a chamar a atenção efetiva para a necessidade de reflexão para o aperfeiçoamento da idéia sobre a tutela jurisdicional diferenciada teria sido Andrea Proto Pisani, que no final da década de setenta produziu o ensaio “Sulla tutela giurisdizionale diferenziata”10, hoje clássico no estudo do tema. José Roberto dos Santos Bedaque, amparado na doutrina de Proto Pisani, afirma que “A expressão tutela jurisdicional diferenciada pode ser entendida de duas manei7 A respeito da atual preocupação em torno da tutela jurisdicional, v. Donaldo Armelin, “Tutela jurisdicional diferenciada”, RePro 65/45, 1992; Cândido Rangel Dinamarco, “Tutela jurisdicional”, Fundamentos do processo civil moderno, tomo II, São Paulo: Malheiros, 2000, p. 797, tb. na RePro 81/54 ; José Roberto dos Santos Bedaque, Direito e processo –Influência do direito material sobre o processo, São Paulo: Malheiros, 1995; Flávio Luiz Yarshell, Tutela jurisdicional, São Paulo: Atlas, 1999; 8 Cf., Enrico Tullio Liebman, Manual de direito processual civil, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 06, trad. e notas de Cândido Rangel Dinamarco. A propósito, na nota “2” ao Manual do processualista italiano, Dinamarco lembra que, no Brasil, a posição chiovendiana a respeito da finalidade da jurisdição é preponderante; 9 Cf., sobre a idéia de processo civil clássico, Arruda Alvim, ob.cit., p. 61/62; 10 O referido ensaio está encartado na Revista de Diritto Processuale, Padova: CEDAM, 1979, vol. XXXIV, p. 536; 398 instituição toledo de ensino ras diversas: a existência de procedimentos específicos, de cognição plena e exauriente, cada qual elaborado em função de especificidades da relação material; ou a regulamentação de tutelas sumárias típicas, precedidas de cognição não exauriente, visando a evitar que o tempo possa comprometer o resultado do processo”.11 Como se vê, as questões atinentes à tutela jurisdicional diferenciada, que nada mais é do que o aperfeiçoamento da tutela jurisdicional em si mesma, estão cada vez mais ligadas à necessária relativização que atualmente se propõe para o binômio direito-processo12, com o fim de adequar o fenômeno processual o tanto quanto possível às peculiaridades do direito material a ser tutelado. Eis a grande virtude da tutela jurisdicional diferenciada: ser diferente da tutela jurisdicional clássica, obtida através do procedimento ordinário, para poder representar uma tutela jurisdicional efetiva, que realmente sirva para resolver as lesões ou ameaças a direitos. Portanto, as tutelas de urgência, enquanto modalidades de tutela jurisdicional diferenciada, devem ser estudadas e utilizadas para que o processo civil possa, cada vez mais, firmar-se como um poderoso instrumento a serviço do direito material eventualmente não respeitado. 4. ESTRUTURA DO SISTEMA PROCESSUAL POSITIVO O direito processual positivo, consoante as regras de sua teoria geral, assenta-se numa estrutura tripartida correspondente ao processo de conhecimento, ao processo de execução e ao processo cautelar, onde cada um destes “processos” (rectius: relação processual + procedimento adequado) tem uma típica finalidade delineada pelo sistema. Em linhas gerais, o processo de conhecimento parte dos fatos para o direito, onde a respectiva sentença rompe com a crise de certeza ensejadora da não-satisfação voluntária do direito abstratamente reconhecido pelo ordenamento jurídico. O processo de execução, por sua vez, parte do direito – não satisfeito – previsto no título executivo para os fatos, onde a atuação do poder jurisdicional interferirá no mundo da vida para compelir o devedor a satisfazer o direito do credor, direito este, vale dizer, cuja estabilidade decorre da certeza de sua existência, que se encontra materializada naquelas hipóteses onde o legislador prevê a existência de título executivo. Por fim, o sistema processual brasileiro conhece um tertium genus de processo, representado que é pelo processo cautelar. Tal processo nada mais faz do que 11 Cf. Bedaque, Tutela cautelar e tutela antecipada..., p. 23, cujo raciocínio buscou subsídio, como foi dito, em Proto Pisani, Appunti sulla giustizia civile, Bari: Caccuri Editore, 1982; 12 Sobre a relativização do binômio direito-processo, vide, mais uma vez, Bedaque, Direito e processo – Influência do direito material sobre o processual, São Paulo: Malheiros, 1995, passim; instituição toledo de ensino 399 garantir a eficácia prática de um outro processo – de conhecimento ou de execução – tido, perante o cautelar, como principal; daí o porque de se considerar como característica básica do processo cautelar a “referibilidade”, ou seja, refere-se ele sempre a um outro processo de caráter principal, além de não ser de sua índole conceder “direitos” ao respectivo sujeito. O processo cautelar apenas assegura, provisoriamente, a viabilidade prática do resultado prático a ser obtido em outro processo, de conhecimento ou de execução. Essa estrutura tripartida do processo civil, que, diga-se de passagem, é característica fundamental nos sistemas processuais da família romano-germânica, máxime em virtude da maciça influência exercida a partir da última quadra do século XIX pelo direito alemão e italiano, faz com que a satisfação do direito reconhecido no processo de conhecimento condenatório só mesmo possa ocorrer, em não havendo satisfação voluntária, por intermédio do processo de execução, ou seja, é necessário um outro processo, com finalidade e características próprias, para que o direito inscrito no título executivo seja integralmente satisfeito sob a ótica do respectivo titular. Contudo, a tripartição da estrutura do processo civil positivo não significa que em cada um desses “processos” (conhecimento, execução e cautelar) não possa haver, em maior ou menor escala, certas atividades que preponderantemente ocorrem noutros. A estrutura fundamental de cada um dos três tipos de “processos”, cujas respectivas finalidades, num primeiro momento, não se confundem, evidentemente não o tornam imunes à influência de um sobre outro. A atividade de conhecimento, de execução ou cautelar é, no bojo do respectivo processo, preponderante, e não absoluta! No processo de conhecimento, por exemplo, a partir da divisão quinária das ações proposta por Pontes de Miranda - em ações meramente declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas lato sensu e mandamentais -, ficou muito mais fácil perceber que o processo traz consigo uma carga maior de declaração, de constitutividade, de condenação, de executividade ou de mandamentalidade, mas jamais cada uma dessas eficácias sobejará isolada. Dessas cinco modalidades de ações de conhecimento, somente a ação condenatória é que necessita de posterior processo de execução para a plena satisfação do direito contido na sentença, salvo, é claro, na tão messiânica quanto distante hipótese do condenado cumprir voluntariamente o direito reconhecido no respectivo processo civil condenatório. Com relação às outras modalidades de ações cognitivas (meramente declaratória, constitutiva, executiva lato sensu e mandamental), a satisfação do direito aclarado após o rompimento da crise de certeza que ensejou o respectivo processo de conhecimento independe de processo de execução autônomo, ou seja, a satisfação no plano do direito material depende unicamente do trânsito em julgado sob o qual jazerá a sentença proferida. Também, no tocante ao processo de execução, já não paira mais dúvida de que tanto atividade cognitiva, quanto atividade cautelar, podem ocorrer in executi- 400 instituição toledo de ensino vis. No que tange à atividade de conhecimento, basta que se tenha em mente a cognição, e respectivo pronunciamento, feita pelo juiz nos incidentes atinentes à penhora, à avaliação e à arrematação, onde o órgão judicante deve ouvir as partes antes de decidir; também não deve ser esquecido que a exceção de pré-executividade, comumente aceita no processo de execução, nada mais faz do que dar margem à atividade cognitiva tendente a identificar vícios insanáveis na relação processual executiva. Com relação à atividade cautelar in executivis, o arresto previsto no art. 653 caput do CPC é medida de cunho cautelar tendente a viabilizar a eficácia prática do processo de execução. No processo cautelar a lógica é a mesma. Não bastasse sua estrutura assemelhar-se à estrutura do processo de conhecimento, com fases postulatórias, instrutórias e decisórias, a grande maioria das sentenças proferidas no processo cautelar serão passíveis de execução imediata, ou seja, protegem a situação a ser acautelada por força de determinação contida na respectiva sentença. Portanto, cognição existe no processo de execução e no processo cautelar; executividade existe no processo de conhecimento e no processo cautelar; e cautelaridade existe no processo de conhecimento e no processo de execução. É essa a lógica do processo! Para efeito específico do presente estudo, que versa sobre o perfil das tutela de urgência, que se tenha em mente, desde já, que a cautelaridade não é fenômeno de ocorrência exclusiva no processo cautelar. É possível haver cautelaridade na atuação de tutela jurisdicional diferenciada concedida também no processo de conhecimento. Vale dizer, o direito positivo brasileiro admite a concessão de tutela assecuratória concedida à guisa de antecipação de tutela, e tudo em razão do poder geral de cautela que, como se demonstrará, não é categoria especifica do processo cautelar, haja vista que por seu intermédio acautela-se situações através de tutela obtida na própria relação processual de conhecimento. 5. O PODER GERAL DE CAUTELA COMO CATEGORIA META-CAUTELAR É evidente que o poder geral de cautela, enquanto possibilidade outorgada ao juiz de determinar certas providências de caráter acautelatório, não é prerrogativa exclusiva do processo cautelar13. Aliás, a idéia de um processo civil comprometido com a efetividade de seu resultado redunda nas características estruturais alhu13 TRF, 3ª Região – 1ª Turma – AI nº. 99.03.00.008633-7 – rel. Des. Fed. Roberto Haddad – DJU 07.12.1999, p. 147PROCESSO CIVIL. TUTELA ANTECIPADA. CONVENCIEMTNO. PODER GERAL DE CAUTELA DO MAGISTRADO. POSSIBILIDADE. RECURSO IMPROVIDO. AGRAVO REGIMETNAL PREJUDICADO. “O magistrado detém o Poder Geral de Cautela e, assim, tem o livre arbítrio de suas decisões para conceder ou denegar a antecipação da tutela pleiteada. A r. decisão agravada, se encontra devidamente fundamentada, não contendo qualquer eiva de ilegalidade ou abuso de poder. Agravo de Instrumento improvido. Agravo Regimental prejudicado”; em sentido idêntico, do mesmo TRF e do mesmo relator, AI nº. 99.03.00.046781/3, j. em 15.08.00, v.u., instituição toledo de ensino 401 res mencionadas, onde a atuação da chamada tutela jurisdicional diferenciada não admite que se restrinja, no bojo do respectivo processo, as atividades cognitivas, executiva e cautelar, que são, como já foi dito, preponderantes e não exclusivas do processo de conhecimento, de execução e cautelar. A grande verdade, é que o legislador não pode mudar a natureza das coisas, não podendo ser esquecido que vários dos chamados “procedimentos cautelares específicos”, não obstante catalogados na sistemática do Livro III do CPC, são totalmente destituídos de cautelaridade, sendo mesmo de se considerar que a intenção da lei, nesse aspecto, foi imprimir um rito mais célere para a obtenção da respectiva tutela através de técnica que restringe a atividade cognitiva do juiz. É o caso, por exemplo, daquelas que Humberto Theodoro Júnior chama de “medidas submetidas apenas ao regime procedimental cautelar”14 que, consoante entendimento pacífico da doutrina, são destituídas de caráter cautelar, estando, portanto, fora da incidência do dispositivo legal que exige a propositura da ação principal no prazo de trinta dias contados da data da efetivação da tutela cautelar, quando esta for concedida em caráter preparatória (CPC, art. 806). A idéia de que ao juiz é concedido um poder geral de cautela, consistente em tomar providências acautelatórias distintas daquelas previstas especificamente pelo legislador, remonta a certo posicionamento de Chiovenda acerca do Código de Processo Civil italiano de 186515. Naquela época, o direito positivo italiano consagrava apenas providências cautelares típicas, o que fazia com que o remansoso posicionamento doutrinário fosse totalmente infenso à possibilidade do juiz, ainda que necessariamente instado pela parte, conceder providências cautelares diversas daquelas consagradas no Código de Processo, onde eventual atividade jurisdicional tendente a interferir na esfera de liberdade da parte, sem a devida autorização legislativa, opunha-se à ideologia liberal ainda fortemente influenciadora do Direito e da sociedade do séc. XIX e início do séc. XX. Um dos grandes críticos de Chiovenda à época foi Calamandrei, categórico em afirmar que “mesmo reconhecido as grandes vantagens práticas que apresentaria a solução ensinada pelo nosso Mestre, não me parece que esta seja sustentável no nosso direito positivo”16. Em síntese, Chiovenda acreditava ser o juiz dotado de 14 Cf. Humberto Theodoro Júnior, Processo cautelar, São Paulo: LEUD, 2000, 19ª. edição, p. 91. O processualista mineiro, alicerçado no entendimento majoritário, considera como “medidas submetidas apenas ao regime procedimental cautelar”, as seguintes: justificação (CPC, art. 801); protesto, notificações e interpelações (CPC, art. 867); homologação do penhor legal (CPC, art. 874); protesto de títulos cautela cambiários (CPC, art. 882); interdição e demolição de prédio para resguardar saúde e segurança (CPC, art. 888, VIII); entrega de bens pessoais do cônjuge (CPC, art. 888, II); 15 Calamandrei lembra que a proposição de Chiovenda fundava-se na einstweilige verfügung do direito alemão, prevista nos §§ 935 e 945 da ZPO; se lá havia uma disciplina geral das medidas cautelares, seria lícito considerar que na lei italiana existisse de forma implícita “figura geral do procedimento cautelar”, cf. Introdução ao estudo sistemático dos procedimentos cautelares, Campinas: Servanda, 2000, trad. bras. de Carla Roberta Andreasi Bassi, p. 79; 16 Cf. Calamandrei, ob. cit. p. 79/80; 402 instituição toledo de ensino um poder geral de cautela apto a garantir que situações de perigo, representadas basicamente pelo excesso de tempo de duração do processo, não tornassem ineficaz a tutela jurisdicional finalmente alcançada, após a realização plena da ampla defesa e do contraditório. A preocupação de Chiovenda, contudo, logo foi reconhecida pelo legislador do processo civil italiano, sendo que o art. 700 do Código de 1942 consagrou a existência do poder geral de cautela17. No Brasil, a consagração do poder geral de cautela está positivada no art. 798 do CPC, onde o legislador franqueou ao juízo a possibilidade de determinar providências cautelares distintas daquelas cuja sistemática do processo cautelar reservou procedimento específico. Daí o porque da tutela cautelar obtida por força do poder geral de cautela ser denominada de atípica, eis que o juiz não está restrito a um modelo tipicamente previsto na lei para a concessão da necessária tutela cautelar. Quando se fala em poder geral de cautela, antes de se estar falando na possibilidade de uma tutela obtida por intermédio do processo cautelar, está se referindo a um poder geral conferido ao juiz de determinar, sempre que instado pela parte interessada, toda e qualquer providência assecurativa, bastando, para tanto, que se esteja diante de “fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”(CPC, art. 798), ou que “haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação”(CPC, art. 273, inc. I), ou, ainda, que esteja “havendo justificado receio de ineficácia do provimento final”(CPC, art. 461, § 3º). Note-se que em todas essas hipótese, a mola propulsora que legitima o juiz a conceder uma tutela de urgência é exatamente o clássico periculum in mora, que deve ser prevenido (rectius: acautelado) em todas essas situações. Trata-se da chamada situação cautelanda18, sem a qual os efeitos decorrentes da tardança da tutela jurisdicional final não seriam neutralizados. Quando o juiz concede a tutela cautelar decorrente do art. 798 do CPC, ou quando concede a antecipação dos efeitos - e não da própria - tutela, necessariamente lhe é conferida a possibilidade de determinar toda e qualquer providência que se fizer necessária para neutralizar o periculum in mora e garantir a plena efi17 Diz o art. 700 do CPC italiano, sob a rubrica “provvedimenti d’urgenza”: “700. Condizioni per la concessione. Fuori dei casi regolati nelle precedenti sezioni di questo capo, chi ha fondato motivo de temere che durante il tempo occorrente per far valere il suo diritto in via ordinária, questo sai minacciato da um pregiudizio imminente e irreparabile, puó chiedere com ricorso al giudice i provvedimenti d’urgenza Che appaiono, secondo le circonstanze, più idonei ad assicurare provvisoriamente gli effetti della decisione sul merito”, cf. Nelson Nery Jr., Atualidades sobre o processo civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996, 2ª edição, p. 67; 18 A expressão é de Ovídio Baptista da Silva, cuja contribuição ao estudo do processo cautelar no Brasil é conhecida de todos. Em síntese, “situação cautelanda” é toda situação passível de proteção assecurativa. Eis as palavras do processualista gaúcho: “Como podem ser objeto de proteção simplesmente assegurativa tanto os direito subjetivos quanto as pretensões, ações e até as simples exceções, valemo-nos do conceito de situação cautelanda, por ser mais abrangente e capaz de envolver as mais variadas situações que se possam mostrar carentes de proteção cautelar”, cf., ob. cit., p. 344; instituição toledo de ensino 403 cácia da tutela jurisdicional que, afinal, poderá ser concedida. Ora, que outra coisa é o poder geral de cautela senão a possibilidade de o juiz determinar qualquer providência, à guisa de tutela cautelar ou de tutela antecipatória, para neutralizar os efeitos perversos que o tempo causa ao processo? Na verdade, o que se pretende demonstrar é que a situação cautelanda, passível que é de uma tutela de urgência, não será salvaguardada apenas pela tutela cautelar, mesmo porque, cautelaridade antes de mais nada significa prevenção provisória de uma certa situação, sendo que essa prevenção, à luz do sistema de direito positivo, também pode ser feita através da tutela antecipatória, não evidentemente, quando se antecipa a tutela pedida em si mesma, mas, sim, quando se antecipa algum efeito colateral que seria alcançado por força da concessão da tutela jurisdicional cognitiva ao final alcançada. Portanto, poder geral de cautela é a possibilidade do juiz determinar qualquer providência de urgência para salvaguardar uma situação que merece ser acautelada, o que, pela sistemática do direito positivo, se torna possível através de tutela cautelar atípica (CPC, art. 798) ou de tutela antecipatória assecurativa (CPC, art. 273, inc. I; art. 461 § 3º), que ocorrerá sempre que a antecipação for de algum efeito colateral da tutela cognitiva efetivamente pleiteada. Tomemos como exemplo a clássica hipótese da sustação do protesto cambiário. Antes da Reforma do Código de Processo Civil, quando o sistema de direito positivo ainda não conhecia a tutela antecipatória, a jurisprudência consagrava a possibilidade de, através do poder geral de cautela (CPC, art. 798), ser concedida tutela cautelar para sustar o protesto cambiário, garantindo, assim, a eficácia prática dos efeitos obtidos no posterior processo de conhecimento voltado à declaração de nulidade da cártula. Ou seja, por falta de previsão de procedimento cautelar específico - cautelar típica, portanto - o juiz concedia a tutela cautelar adequada à espécie, de acordo como permissivo do art. 798 do CPC, o que, na verdade, gerava a satisfatividade de efeitos da tutela visada pelo processo de conhecimento principal. Atualmente, o regime de antecipação da tutela parece ter albergado a sustação do protesto cambiário19, uma vez que o protesto obtido liminarmente, à guisa de antecipação de tutela, representa a efetiva antecipação de efeitos colaterais da tutela que ao final poderá ser concedida, uma vez que o pedido se circunscreve na declaração de nulidade da cambial. Ocorrendo tal nulidade, o que despojaria a respectiva cártula de efeito cambiário, um dos efeitos daí decorrentes seria exatamente a 19 TARS – 2ª Câm. – apel. 195.168.323, rel. juiz Carlos Alberto Bencke, j. em 07.12.1995 – Julgs. TARS 97/220: “... A hipótese contida no inc. I do art. 273 guarda semelhança com a do art. 798, ambas com nítida carência de uma tutela urgente. O fundado receio é em relação a um dano prestes a ocorrer, decorrente de matéria fática objetiva, e, se não-antecipada a tutela, será irreversível ou de difícil reparação. O protesto e o cadastramento em serviços de proteção ao crédito, em nossos dias, representam um verdadeiro pavor para quem é devedor. Por isto, também representa um receio objetivo, prático e irreversível, ou de difícil reparação; 404 instituição toledo de ensino vedação do protesto. Resta claro, portanto, que a sustação liminar do protesto, como reflexo da concessão de tutela antecipatória assecurativa, faz parte de um poder geral concedido ao juiz (CPC, art. 273, inc. I) de determinar as providências, quaisquer que sejam elas, para antecipar os efeitos colaterais a serem obtidos com a tutela definitiva. Esse poder geral de determinar quaisquer medidas assecurativas - acautelatórias, portanto - seja por força de tutela cautelar atípica (CPC, art. 798), seja por força de tutela antecipatória (CPC, art. 273, inc. I; art. 461 § 3º c/c § 5º), nada mais é do que a verdadeira representação do poder geral de cautela, que, à luz do direito positivo, hoje não é mais uma categoria exclusiva do processo cautelar. O resultado prático desse raciocínio permite identificar nas liminares especificamente previstas nas leis extravagantes, desde que tais liminares, evidentemente, não estejam antecipando a tutela em si mesma, um verdadeiro poder geral de cautela, sem que com isso estejamos diante, a priori, de uma tutela cautelar (rectius: tutela obtida por intermédio de processo cautelar). Portanto, se o poder geral de cautela é a possibilidade dada ao juiz de determinar as providências necessárias para neutralizar os efeitos do perigo de demora do processo satisfativo20, que pode ocorrer por intermédio de tutela cautelar atípica ou de tutela antecipatória assecurativa; se a proteção da situação cautelanda também é possível através da antecipação dos efeitos colaterais da tutela definitiva, conforme a nova disciplina pós Reforma do CPC; se a atividade de conhecimento, de execução e cautelar, não é exclusividade dos respectivos processos; logo, o poder geral de cautela, à luz do atual regime de direito positivo, não é exclusividade do processo cautelar. A rigor, o poder geral de cautela hodiernamente deve ser considerado uma categoria meta-cautelar (rectius: meta-processo cautelar), pois seus efeitos podem ser sentidos também no processo de conhecimento, através da tutela antecipatória dos efeitos colaterais da tutela que poderá ser ao final concedida em definitivo.21 6. TUTELA CAUTELAR TÍPICA E ATÍPICA A tutela cautelar é a tutela jurisdicional obtida por intermédio do processo cautelar, seja através de procedimentos cautelares específicos (v.g., arresto, seqües20 Entende-se por processo satisfativo, aquele que é apto a satisfazer o direito abstratamente previsto no ordenamento jurídico. São satisfativos, portanto, o processo de conhecimento e o processo de execução. Vale lembrar que o processo cautelar apenas assegura a eficácia prática do provimento final a ser obtido no processo principal - de conhecimento ou de execução -, não sendo de sua índole, portanto, satisfazer direitos; 21 No mesmo sentido, ao que tudo indica, J.E. Carreira Alvim, para quem o “provimento antecipatório, que, antes era possível quase só no âmbito do processo cautelar, espraia-se agora para todo o processo de conhecimento, numa indiscutível consagração do poder geral de cautela do juiz”, Código de Processo Civil Reformado, Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 96; instituição toledo de ensino 405 tro, caução), seja através do procedimento cautelar comum (CPC, arts. 801 a 803), que sempre terá espaço quando a respectiva situação cautelanda não contar com solução procedimental específica, viabilizando, dessa forma, a plenitude do poder geral de cautela consagrado no sistema processual (CPC, art. 798). Além das tutelas cautelares reflexas do poder geral de cautela previsto no art. 798 do CPC, o procedimento cautelar comum também se aplica às hipóteses em que a lei, muito embora tenha previsto certa medida cautelar típica, a ela não tenha previsto procedimento específico. É o que ocorrer, v.g., com as cognominadas “medidas provisionais” do art. 888 e incs., onde por disposição expressa será aplicado o procedimento cautelar comum para a obtenção da respectiva tutela (CPC, art. 889); Dentro da lógica estrutural da sistemática do Livro III do CPC, onde está previsto o processo cautelar, observa-se uma nítida distinção entre dois grandes grupos de medidas cautelares, o que se percebe independentemente da disciplina procedimental prevista. De um lado, temos as medidas cautelares previstas no Código de forma expressa, as quais o legislador identifica e nomina, tal como acontece como o seqüestro, o arresto, a caução etc., cuja respectiva disciplina subsume-se a arquétipos procedimentais específicos; a essas medidas cautelares nominadas e de procedimento cautelar específico, ladeiam-se as medidas cautelares nominadas de procedimento cautelar comum, o que se dá com as “medidas provisionais” previstas no rol do art. 888 do CPC. Vale lembrar que muito embora o legislador tenha previsto todas essas medidas sob a rubrica do Livro “Do Processo Cautelar”, algumas delas são totalmente destituídas de cautelaridade, eis que acabam por satisfazer o direito em si mesmo, deixando clara a intenção legislativa em tutelar de forma diferenciada, através de um procedimento mais expedito - particularidade de todos os procedimentos cautelares -, algumas situações da vida que só a tutela de urgência é capaz de solucionar. Quanto a essas medidas cautelares nominadas, é senso comum chamá-las de típicas, redundando delas, portanto, uma tutela cautelar típica. O outro grande grupo de medidas cautelares é reflexo direto do poder geral de cautela, que legitima o juiz, desde que a parte interessada o requeira por intermédio de processo cautelar com procedimento comum (CPC, art. 801 a 803), a determinar toda e qualquer medida adequada quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento definitivo do processo principal, cause ao direito da outra lesão grave ou de difícil reparação (CPC, art. 798). Ou seja, não se adequando a situação cautelanda a nenhuma das tutelas cautelares típicas, deve ser determinada uma tutela cautelar apta a conjurar o perigo existente. 406 instituição toledo de ensino Tais medidas cautelares, como se vê, se opõem àquelas cujo legislador previu de forma nominada, eis que derivam do poder geral de determinar a medida adequada à situação concreta de perigo; face à impossibilidade de se prever todas as situações onde o perigo deva ser rechaçado, essas medidas cautelares reflexas do poder geral de cautela não são previstas com nomen juris próprio, sendo, portanto, chamadas de inominadas. As medidas cautelares obtidas por intermédio do poder geral de cautela são comumente chamadas pela doutrina e pela jurisprudência de medidas atípicas, gerando, daí, a idéia da tutela cautelar atípica, concedida que é em decorrência do art. 798 do CPC e por força de processo cautelar com procedimento comum (CPC, art. 801 a 803). Percebe-se, portanto, que a tutela cautelar poderá ser considerada típica ou atípica. Típica, é a tutela cautelar para a qual o legislador previu no sistema a respectiva providência (CPC, art. 813 a 887, aqui, sob procedimento cautelar específico; e, CPC, art. 888 e incs., sob o procedimento cautelar comum previsto nos art. 801 a 803). Por sua vez, atípica é a tutela cautelar obtida por força do poder geral de cautela, cujo respectivo processo tramitará sob procedimento cautelar comum. 6.1. Tutela cautelar atípica como espécie do poder geral de cautela Conforme tentamos demonstrar através da argumentação expendida no item 4 supra, o poder geral de cautela não é uma exclusividade do processo cautelar, devendo mesmo ser considerado um categoria meta-cautelar, eis que o sistema de direito positivo, à luz da disciplina da tutela antecipatória, permite que se previna certas situações identificadas como efeito colateral da tutela jurisdicional pleiteada. É o que acontece, v.g., na concessão de tutela antecipatória assecurativa para sustar o protesto cambiário quando, em processo de conhecimento, pedese a declaração de nulidade da respectiva cártula (CPC, art. 273, inc. I). Ou seja, antecipa-se algum efeito que só seria sentido em caso da concessão, ao final, da tutela jurisdicional pleiteada, o que é de todo possível na atual disciplina da antecipação da tutela. Assim, o caráter eminentemente assecurativo da tutela cautelar atípica (CPC, art. 798), que em hipótese alguma se confunde com a antecipação da tutela, viabiliza a concessão da tutela de urgência adequada a conjurar o perigo que ameaça a frutuosidade - rectius: satisfatividade - plena que deve ser alcançada pelo processo principal, de conhecimento ou de execução. Toda atividade assecurativa, consistente na autorização dada ao juiz para, instado pela parte, determinar as medidas provisórias adequadas para evitar os males do perigo da tardança se constitui no poder geral de cautela, que se for exercido por intermédio do processo cautelar representará uma das espécies desse poder geral conferido ao juiz, qual seja, a tutela cautelar atípica. instituição toledo de ensino 407 6.2. Breve notícia sobre a correta compreensão das medidas cautelares ex officio Não raramente, imputa-se ao art. 797 do CPC caráter de mecanismo de autorização legislativa para o juiz conceder medidas cautelares de ofício, sob fundamento de que o interesse público do Estado na salvaguarda do processo legitimaria a atuação judicial do poder geral de cautela mesmo sem a iniciativa da parte interessada. Vale dizer, prestigiada doutrina admite que o juiz possa conceder quaisquer medidas corolárias do poder geral de cautela ainda que não instado pela parte interessada - portanto, ex officio - alegando-se que “seria ilógico e contraproducente admitir que a tutela dos poderes oficiais do juiz ficasse condicionada à iniciativa e disponibilidade da parte”22. Ainda dentro da idéia de possibilidade de concessão de ofício de medidas cautelares atípicas, afirma-se que se impõe “reconhecer que, quando está em jogo a garantia do próprio processo em andamento e do interesse estatal na efetiva aplicação da lei, as medidas cautelares inominadas, compreendidas dentro dos limites dos poderes processuais do juiz, tanto podem ser tomadas a requerimento da parte como ex officio”.23 Em síntese, tal posicionamento propõe uma interpretação conjugada dos art. 797 e 798 do CPC. Explica-se: já que em casos excepcionais, expressamente autorizado por lei, determinará o juiz medidas cautelares sem audiência das partes (CPC, art. 797), e que em casos para os quais não haja procedimento cautelar específico poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas (CPC, art. 798), é possível, segundo tal doutrina, que o juiz determine ex officio medidas cautelares atípicas fundadas no poder geral de cautela. Contudo, em que pese o estofo dos defensores da admissão de medidas cautelares ex officio fundadas no poder geral do juiz de determinar quaisquer medidas que entender necessária, segundo seu isolado entendimento de quando e do que venha a ser necessário para este ou aquele caso concreto, venia concessa, não parece ser essa a melhor compreensão a ser dada ao alcance do art. 797 do CPC. O equivocado espectro pretendido para a concessão, ex officio, de medidas cautelares atípicas, confunde-se com a idéia de um Estado totalitário, onde existe uma hipertrofia dos poderes conferidos ao juiz em detrimento de garantias fundamentais do processo. Não se pode admitir, sem que haja a necessária provocação da parte interessada, que se adentre na esfera de liberdade da pessoa pelo simples fato de que este ou aquele juiz ache que neste ou naquele caso deve ser tomada de ofício esta ou aquela medida cautelar! Ora, tal posicionamento rompe como o princípio da ação - nemo judex sine actor (CPC, art. 2º) -, bem como com o prin22 23 Cf. Humberto Theodoro Júnior, ob. cit., p. 104; idem, desta vez com apoio em Willard de Castro Villar, Medidas cautelares, São Paulo, 1971, p. 107; 408 instituição toledo de ensino cípio dispositivo que norteia todo o direito processual, ainda mais se considerarmos que a estrutura constitucional do país assenta-se no Estado Democrático de Direito (CR, art. 1º). Admitir a possibilidade do juiz conceder medidas cautelares atípicas de-ofício, antes de ser um problema de técnica processual, é um problema a ser solucionado pela Teoria do Estado; se a opção constitucional for por um Estado totalitário, dotado de poderes absolutos de intervenção na esfera de liberdade do indivíduo, aí sim será possível admitir que medidas cautelares atípicas possam ser concedidas ex officio; por outro lado, em sendo o perfil constitucional moldado no Estado Democrático de Direito, tal como acontece no Brasil, é totalmente infenso à idéia de segurança jurídica admitir ser possível ao juiz determinar, de-ofício, as eventuais medidas cautelares atípicas que o seu “bom-senso” lhe sugerir. A rigor, a compreensão exata das chamadas medidas cautelares ex officio deve ser no sentido de que nenhum dos processos da estrutura tripartida do direito positivo - de conhecimento, de execução ou o cautelar -, está imune de receber os influxos da atividade que prepondera em outro, mesmo porque, como já foi dito, a atividade cognitiva, executiva e cautelar é preponderante, mas não absoluta, no respectivo processo de conhecimento, de execução e cautelar. Vale dizer, qualquer processo que não o cautelar, seja o de conhecimento ou de execução, não impede seja exercido no seu bojo atividade de natureza cautelar, independentemente da instauração de processo cautelar, ou, até mesmo, de requerimento da parte interessada. É o que classicamente ocorre no caso do arresto previsto no art. 653 do CPC; trata-se de atividade cautelar desenvolvida no bojo do processo de execução, independentemente da provocação do credor. O que pretende o art. 797 do CPC, ao contrário do elastério que se lhe quer dar, no sentido de ser o permissivo da concessão ex officio de medida cautelar atípica, é exatamente consagrar a possibilidade da existência de atividade judicial cautelar no processo de conhecimento ou de execução. A preocupação do legislador foi tão grande no sentido de evitar o abuso de atividade cautelar atípica ex officio, que deixou claro só ser possível tal medida em casos excepcionais expressamente autorizados por lei (CPC, art. 797)24. Ou seja, os “casos excepcionais, expressamente autorizados por lei”, a que faz menção o art. 797, são, especificamente, os casos em 24 Em sentido emblemático: TJRJ - 5ª Câm. - AI nº. 256/93, rel. Des. Miguel Pachá, j. em 26.05.1993; ADV, de 13.10.1993, nº. 63435: “O art. 797 do CPC estabelece que, só em casos expressamente autorizados por lei, determinará o Juiz medidas cautelares sem audiência das partes. Ante os termos da lei, a possibilidade do julgador deferir a liminar em medida cautelar não é de arbítrio amplo e limitado, estando restrita ao balizamento estreito ditado pelo texto legal. Assim, quando não se trata de caso excepcional, expressamente previsto em lei, não pode o Magistrado deferir a liminar, sem audiência da parte contrária, sendo de inquinar-se de ilegal e abusivo o deferimento, com inobservância de tais regras, pois é sabido que o Juiz não possui poderes supralegais, só podendo agir dentro do estabelecido na lei”; instituição toledo de ensino 409 que, no processo de conhecimento ou no de execução, se admite atividade cautelar ex officio. Portanto, não é lícito ao juiz determinar medida cautelar atípica ex officio. Medida cautelar atípica só pode ser concedida após requerimento da parte interessa e por intermédio do processo cautelar, sob pena do rompimento estrutural do sistema de direito positivo às custas de um gigantismo inaceitável, e não consagrado na lei, da atividade jurisdicional. 7. TUTELA ANTECIPATÓRIA TÍPICA E ATÍPICA Aproveitando a tendência universal de engajamento nos movimentos em prol da efetivação da tutela jurisdicional25, o legislador da Reforma do Código de Processo Civil consagrou no direito positivo a generalização da possibilidade de antecipação da tutela pleiteada no processo de conhecimento (CPC, art. 273 caput), que antes era característica isolada de algumas situações onde a lei previa uma tutela jurisdicional diferenciada a ser obtida através de processo cognitivo de rito especial. É inegável que a antecipação da tutela, conquanto não tratada com este nomen juris, e apenas reservada a alguns procedimentos especiais, já era observada no sistema processual mesmo antes da Reforma. A liminar das ações possessórias é exemplo clássico de que a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional pleiteada não é novidade, eis que a dita liminar nada mais faz do que entregar, à guisa de antecipação, o bem da vida pretendido pelo autor, e tudo no mesmo processo (CPC, art. 928). O mesmo se diga da liminar do mandado de segurança, onde é plenamente possível a suspensão do ato violador do direito líquido e certo (LMS, art. 7º, inc. II), o que acaba por antecipar o efeito da tutela pleiteada, qual seja, permitir a viabilização do direito violado pelo ato co-ator. Ante a generalização da antecipação da tutela, que atualmente pode ser concedida em qualquer processo de conhecimento, permitindo ao juiz antecipar os efeitos da tutela pretendida através da determinação de qualquer medida que atinja essa finalidade, é plenamente possível classificar a hipótese do art. 273 do CPC como uma tutela antecipatória atípica, eis que terá espaço em qualquer processo e em qualquer situação, bastando apenas a ocorrência dos requisitos autorizadores. 25 Cf., Cândido Rangel Dinamarco, A Reforma do Código de Processo Civil, São Paulo: Malheiros, 1998, 4ª. edição, p. 07; 410 instituição toledo de ensino Paralelamente à tutela antecipatória atípica, repita-se, cuja incidência é possível em qualquer processo de conhecimento, existem as tutelas antecipatórias típicas, que são aquelas que derivam da especialidade do respectivo procedimento que a autoriza, onde a situação de direito material é que sugere a especialidade do procedimento26. É o que ocorre, por exemplo, com a ação possessória, o mandado de segurança, o habeas corpus, a ação popular, a medida liminar concedida em ação de busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente (Decreto-lei 911/69), dentre outros27. 7.1. Tutela antecipatória assecurativa A tutela antecipatória, enquanto modalidade de tutela de urgência, poderá ser concedida no bojo de qualquer processo de conhecimento28, indistintamente, bastando, para tanto, a ocorrência dos requisitos legais que a autorizam. A antecipação, que será total ou parcial, consoante autorização expressa do legislador da Reforma do CPC será dos “efeitos da tutela pretendida no pedido inicial”(CPC, art. 273), o que significa ser possível a antecipação de qualquer efeito - a norma não faz nenhuma ressalva - inclusive aqueles efeitos colaterais que serão atingidos com a concessão final da tutela. Uma gama infinita de situações pode ocorrer para justificar, após a verificação do periculum in mora, a antecipação de efeitos no sentido de permitir que o provimento final reste integralmente satisfeito; vale dizer, antecipa-se determinado efeito colateral que jamais seria percebido não fosse a ameaça ou lesão praticada ao direito do autor da ação, que é quem está autorizado a requerer a tutela antecipatória. É o caso, por exemplo, do cancelamento provisório da inscrição do nome do mutuário de banco de dados de inadimplente quando este ajuíza ação de revisão de contrato bancário29. Uma vez julgado procedente o pedido de revisão contratual, um dos efeitos colaterais daí advindos será a impossibilidade de se considerar o autor da respectiva ação inadimplente e, portanto, incluir seu nome em banco de dados para tal fim. Em casos dessa natureza, onde não se antecipa a tutela em si pleiteada, mas sim algum importante efeito colateral, o resultado empírico da situação será no sen26 Acerca da compreensão e da sistemática dos procedimentos especiais, v. Antonio Carlos Marcato, Procedimentos especiais, São Paulo: Malheiros, 1994, em especial p. 34 a 43; 27 V. Nelson Nery Jr., ob. cit., p. 65; 28 TJSP – 7ª Câm. – AI nº. 5.979-5/1 – rel. Des. Albano Nogueira, j. em 19.08.1996 – ADV de 02.02.1997, nº. 77.047: “A concessão antecipada da tutela é possível em qualquer processo de conhecimento, desde que preenchidos os requisitos legais”; 29 TARS – 9ª Câm. – AI nº. 196.190.995 – rel. juíza Maria Isabel, j. em 22.10.1996 – Adcoas de 30.05.1997, nº. 8.154.131: “É de ser deferida a tutela antecipada em ação de revisão de contrato bancário, para o efeito de cancelar provisoriamente a inscrição do nome do mutuário em banco de dados de inadimplentes. Por outro lado, não se pode de maneira preventiva a genérica impedir o credor de apresentar título de crédito para protesto. A apreciação desta providência há de ser feita à luz do exame do título no caso concreto”; instituição toledo de ensino 411 tido de assegurar que determinado efeito danoso, ocorrido em virtude da demora da tutela definitiva, seja sentido pelo autor da ação. Daí o porque de se considerar a antecipação de tutela nessas circunstâncias como uma tutela antecipatória assecurativa, onde é lícito ao juiz, sempre após requerimento do autor, determinar, dentro dos limites do que foi requerido, certa providência assecurativa à guisa de tutela antecipatória. Ou seja, antecipa-se algum efeito colateral da tutela pleiteada para assegurar sua plena frutuosidade na hipótese de, afinal, ser concedida. 7.2. Tutela antecipatória satisfativa Observado o limite do que está sendo requerido a título de tutela jurisdicional, nada há que impeça a antecipação de qualquer – repita-se: qualquer! – efeito da tutela pretendida no pedido inicial. Dessa forma não só efeitos colaterais poderão ser evitados através de tutela antecipatória assecurativa, como também a tutela pleiteada, em si mesma, poderá ser antecipada para viabilizar o caminho da satisfação do direito ameaçado ou lesado. No caso, estaremos diante da tutela antecipatória satisfativa, plenamente possível à luz do atual regime da antecipação da tutela, devendo ser notado que nenhuma incompatibilidade há com o sistema, bem como nenhuma ressalva em sentido contrário foi feita pelo legislador da Reforma do CPC, que teve em mira, quando da positivação do instituto da antecipação da tutela, dotar o processo de mecanismos aptos a viabilizar o atingimento dos valores constitucionais aplicáveis à espécie. É essa a real dimensão da tutela antecipatória, não se admitindo qualquer compreensão em sentido contrário, sob pena do esvaziamento de seu conteúdo. Será satisfativa, portanto, a tutela antecipatória que antecipar totalmente a pretensão deduzida no pedido inicial, mantendo, não obstante, o caráter provisório característico da antecipação da tutela, que somente se transformará em definitiva após o necessário trânsito em julgado da respectiva sentença de mérito que de uma vez por todas estabilizará os efeitos satisfativos obtidos por intermédio da concessão da tutela antecipatória. 7.3. Tutela antecipatória assecurativa como espécie do poder geral de cautela Como ficou dito, a tutela antecipatória assecurativa tem por escopo prevenir efeitos colaterais da tutela pretendida no pedido inicial, o que torna possível conjurar o eventual dano surgido em virtude do periculum in mora. Para a obtenção do asseguramento de determinada situação identificada como efeito colateral da tutela pretendida, após pedido do autor e verificação dos requisitos legais, torna-se possível ao juiz determinar quaisquer providências tendentes a tutelar antecipadamente os efeitos – sejam os principais, sejam os colaterais – do provimento final. É o que ocorre, por exemplo, com os provvedimenti 412 instituição toledo de ensino d’urgenza do art. 700 do CPC italiano, reconhecidamente o núcleo legitimador do poder geral de tutela daquele sistema processual, onde através dele é totalmente possível a concessão da tutela antecipatória na Itália, obtida que é através do respectivo dispositivo consagrador do clássico poder geral de cautela.30 Não há motivo para refutar a característica da tutela antecipatória assecurativa em ser um reflexo do poder geral de cautela, que como foi dito alhures é uma categoria meta-cautelar31. Se ao juiz é conferida a autorização de prevenir certo dano através da técnica de antecipação dos efeitos colaterais da tutela pretendida, determinando qualquer medida que seja adequada a conjurar o perigo da demora, é evidente que tal possibilidade, ainda que ocorra por força de tutela antecipatória, nada mais é do que o poder geral de cautela de que o juiz é titular. Antes da Reforma do CPC, o indigitado poder geral tinha assento apenas no art. 798 - lembremos das chamadas cautelares satisfativas, que de cautelar só tinham o procedimento -; atualmente, face ao regime da antecipação da tutela, essa possibilidade ocorre também no bojo do processo de conhecimento, onde a tutela antecipatória assecurativa permite alcançar os mesmos efeitos preventivos. A tutela antecipatória assecurativa é espécie do poder geral de cautela, que é categoria meta-cautelar que abarca, além desta hipótese de antecipação de tutela, também a tutela cautelar atípica (CPC, art. 789). O que o legislador pretendeu através do poder geral de cautela foi viabilizar a tutela de urgência preventiva – não, evidentemente, a satisfativa, própria do gênero tutela antecipada – seja ela obtida através da tutela antecipatória assecurativa, seja através da tutela cautelar atípica. A tutela antecipatória assecurativa será concedida no bojo do processo de conhecimento, e desde que se trate de efeito colateral da própria tutela pretendida no pedido inicial (CPC, art. 273 caput). Por sua vez, a tutela cautelar atípica, de acordo com a sistemática do processo cautelar, será concedida em processo cautelar autônomo, e desde que se trate de asseguramento de situação que não se constitua em efeito da tutela que se pretende obter por intermédio do respectivo processo principal, de conhecimento ou de execução (CPC, art. 796 c/c art. 798). 8. FUNGIBILIDADE PLENA ENTRE AS TUTELAS DE URGÊNCIA Para que sejam alcançados todos os propósitos visados pelas tutelas de urgência, é imperioso que se admita a fungibilidade plena entre as respectivas tutelas, seja no tocante às tutelas cautelares típicas e atípicas, seja com relação às tutelas caute30 Sobre a tutela antecipatória na Itália, obtida mediante os provvedimenti d’urgenza, v. Luiz Guilherme Marinoni, A antecipação de tutela, São Paulo: Malheiros, 1999, 5ª edição, p. 41 a 44; 31 Cf., item 4, supra; instituição toledo de ensino 413 lares e antecipatórias, sob pena de não ser salvaguardada a situação emergencial em nome do apego à forma que inviabiliza a instrumentalidade do processo. Arruda Alvim considera a fungibilidade, em linhas gerais, como a “aceitação de algo contrário à nossa convicção em razão da existência de posicionamento em sentido oposto”, chegando mesmo a asseverar que, antes de tudo, a fungibilidade é “um ato de humildade”.32 Conquanto a atividade judicial possa redundar em interpretações diversas sobre a mesma questão, feita por este ou aquele órgão judicial, o sistema jurídico apenas admite uma interpretação como sendo a verdadeira, sendo que as demais seriam apenas prováveis. Daí a importância das súmulas enquanto mecanismo de uniformização da interpretação feita pelos Tribunais; por elas se estabelecem critérios de segurança jurídica. A rigor, a fungibilidade acaba por viabilizar aquilo que a insegurança jurídica dos posicionamentos judiciais conflitantes é incapaz de fazer, ou seja, dar ao jurisdicionado e ao operador do direito a certeza de que, salvo erro grosseiro ou manifesta má-fé, a atividade jurisdicional assenta-se em critérios de razoabilidade. Nem mesmo o argumento comumente utilizado e defendido, no sentido de que não haveria fungibilidade entre medidas cautelares típicas e atípicas - eis que a inexistência de algum requisito procedimental específico da tutela cautelar típica afastaria a possibilidade da respectiva concessão - é apto a desautorizar a fungibilidade, não sendo correta, venia concessa, a compreensão de que “a própria redação do art. 798 revela o caráter residual e subsidiário das medidas atípicas”33. Ora, pensar o problema dessa forma é sobrevalorizar o formalismo procedimental em detrimento da neutralização dos efeitos do perigo da demora, o que, em última análise, é o desprestígio, em si mesmo, da tutela de urgência enquanto gênero constitucionalmente garantido. Não há óbice a impedir a concessão da tutela de urgência justamente requerida e efetivamente necessitada, ainda que se pleiteie tutela cautelar atípica, quando, em princípio, seria o caso de tutela cautelar típica; ou quando se requer conces- 32 semestre de Em preleção feita, acerca das tutelas de urgência, no curso de mestrado da PUCSP, no primeiro 2001; 33 Cf. Araken de Assis, “Fungibilidade das medidas inominadas cautelares e satisfativas”, RePro 100/33. Muito embora o eminente processualista gaúcho admita a fungibilidade entre as tutelas de caráter satisfativo (CPC, art. 273; art. 461 § 3º), não lhe parece possível que haja fungibilidade entre as tutelas cautelares típicas atípicas, lembrando que este é o posicionamento de Galeno Lacerda, Frederico Marques, Sydney Sanches e Humberto Theodoro Jr., vide, ob. cit., p. 49; instituição toledo de ensino 414 são de tutela cautelar atípica e, ainda em princípio, seria o caso de tutela antecipatória, e assim por diante. Afastar a fungibilidade das tutelas de urgência, seja ela de que natureza for, significa o cometimento simultâneo de dois equívocos: de um lado, seria a admissão da idéia, nem sempre correta, de estar o juiz invariavelmente certo quando do exame de admissibilidade das tutelas de urgência; outro equívoco, que seria ainda pior, é impedir que a proteção do direito seja observada em razão da não concessão da tutela de urgência, quando essa, antes de mais nada, é um imperativo constitucional. 9. CONCLUSÃO Em razão do fundamento constitucional das tutelas de urgência, onde o valor maior é a utilização do processo com escopo de evitar lesão ou ameaça a direitos, temos que o poder geral de cautela, em razão da novíssima sistemática da generalização da antecipação dos efeitos da tutela (CPC, art. 273), não é mais uma característica exclusiva da estrutura do processo cautelar (CPC, art. 798). Atualmente, é possível o asseguramento de determinadas situações tanto por intermédio da tutela cautelar atípica, quanto da tutela antecipatória assecurativa, que é aquela que antecipa os efeitos colaterais pretendidos com a tutela requerida no pedido inicial. A partir dessa compreensão, tem-se que a fungibilidade entre as tutelas de urgência é uma realidade inequívoca no sistema de direito positivo. A vocação constitucional da tutela de urgência, em evitar lesão ou ameaça a direito, não admite que se negue a concessão da respectiva providência em razão da parte postulante, eventualmente, ter optado pela via procedimental inadequada; estando o magistrado diante de uma situação de verdadeiro perigo, a tutela de urgência, a despeito de em tesa mal postulada pela parte, deverá ser concedida, mesmo porque o comprometimento do juiz é no sentido de operar com a jurisdição de forma a impedir a ocorrência de lesão ou ameaça a direito (CR, art. 5º, inc. XXXV ). As tutelas de urgência no processo civil brasileiro poderão ser pleiteadas e obtidas através do processo de conhecimento, por intermédio da tutela antecipatória satisfativa ou assecurativa, ou através do processo cautelar, seja ele fundado, ou não, no poder geral de cautela. As transformações operadas com a Reforma do Código de Processo Civil, especificamente no que tange à disciplina da antecipação da tutela, acabaram por alçar o clássico poder geral de cautela a uma categoria meta-cautelar, sendo que atualmente é possível a obtenção de provimentos assegurativos à guisa de tutela antecipatória, o que será verificado na hipótese do juiz antecipar algum efeito colateral da tutela pretendida no processo de conhecimento. instituição toledo de ensino 415 BIBLIOGRAFIA ASSIS, Araken de. “Fungibilidade das medidas inominadas cautelares e satisfativas”. RePro 100/33, São Paulo. ALVIM, J.E. Carreira. Código de Processo Civil reformado. Belo Horizonte: Del Rey, 1995; ARAÚJO CINTRA. 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Estudos Jurídicos Instituições Políticas e Constituição na Alemanha Contemporânea Marcílio Toscano Franca Filho Professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Paraíba, aluno do Mestrado em Direito Econômico da UFPB, assessor de juiz federal na SJ/PB, ex-aluno da Freie Universität Berlin. 1. Do mesmo modo que da boa música e da Filosofia do Direito, falar da Alemanha - terra dos melhores vinhos e dos grandes poetas - é-me sempre um grande prazer. Tratarei da Alemanha e de sua organização como Estado de Direito a partir de uma experiência pessoal. Vivi Berlin durante um ano. Cheguei à capital da reunificada República Federal da Alemanha com a queda das primeiras folhas do outono de 1993. Fora participar de um programa de intercâmbio estudantil fomentado pelo governo alemão. Além de estudar em uma de suas mais prestigiosas escolas de alemão, fui aluno da Faculdade de Direito da Freie Universität, uma das três universidades de Berlin - todas, é de se dizer, públicas e laureadas internacionalmente. Nas digressões que ora inicio, tentarei descrever brevemente o funcionamento das instituições político-jurídicas alemãs. Tratam estes apontamentos, pois, de um conjunto de notas a respeito de Direito Constitucional Comparado que intenta responder em que medida é a Alemanha contemporânea um Estado de Direito e o que a caracteriza como tal. 2. Como na totalidade dos modernos Estados de Direito, a organização jurídica da República Federal da Alemanha regula-se pelos princípios da Estatalidade, Unicidade e Racionalidade, segundo os quais há apenas um único direito válido e vigente no seu território: o direito que obedece aos critérios lógicos da hierarquiza- 422 instituição toledo de ensino Portão de Brandeburgo (Berlim) ção, da coerência e da codificação e é emanado do Estado - que detém o monopólio da nomogênese. O fundamento de validade e a origem formal da organização jurídica alemã como Estado residem, portanto, num conjunto de normas estatais hierarquicamente superiores às demais. Entretanto, devido a circunstâncias político-históricas peculiares, estas normas a rigor não perfazem uma Constituição (“Verfassung”) na acepção do termo que nós latinos utilizamos. Com a capitulação do III Reich e o final da II Guerra Mundial, os Aliados, através do Tratado de Potsdam (agosto de 1945),dividiram o território alemão em quatro zonas de ocupação. Por aquele acordo, o norte do país ficou então sob controle inglês; o sul, com os EUA, o oeste, sob o controle de Paris e o leste, com a antiga URSS, que desde logo quis edificar ali um Estado socialista. A fim de garantir os seus objetivos, Moscou mostrava-se cada vez mais empenhada na intenção de constituir um Estado alemão separado. São dessa época as iniciativas de Stálin em criar uma moeda própria para a Alemanha Oriental (a Reforma Monetária) e o bloqueio do fornecimento de energia elétrica e gêneros alimentícios a Berlim Ocidental.1 Em setembro de 1948, cessadas as conversações das potências ocidentais com a então URSS acerca da reunificação alemã, representantes dos parlamentos estaduais das zonas francesa, americana e inglesa reuniram-se em assembléia para a elaboração da “Lei Fundamental” (“Grundgesetz”), cuja denominação - em lugar de 1 Durante cerca de oito meses, em 1948, a cidade sobreviveu graças a uma “ponte aérea” com a Alemanha Ocidental: aviões das potências capitalistas lançavam sobre a cidade os gêneros de primeira necessidade. instituição toledo de ensino 423 “Constituição” (“Verfassung”) - teve por objetivo denotar o caráter transitório e provisório daquele ordenamento. No seu próprio preâmbulo, consta a expressão da transitoriedade: a Lei Fundamental foi aprovada para “dar à vida pública, durante um período de transição, uma nova organização”. E o seu último artigo diz: “Esta Lei Fundamental perderá sua vigência na data em que em entrar em vigor uma Constituição que tenha sido aprovada por todo o povo alemão, em livre decisão”. A Lei Fundamental (“Grundgesetz”) passou a valer em 23 de maio de 1949 na Alemanha Ocidental e, a partir de 03 de outubro de 1990, com a reunificação, em todos os estados-membros da antiga Alemanha Oriental. Logo depois do preâmbulo, já no seu primeiro artigo, e até o de número dezessete, a Lei Fundamental elenca os Direitos Fundamentais do Homem, fato que expressa com suprema clareza a basilar importância que adquirem os Direitos Fundamentais no ordenamento constitucional alemão. Todo o poder e ordenamento estatais posteriormente descritos ficam sujeitos à superioridade dessas garantias individuais. Todos esses direitos fundamentais não são meros pontos programáticos da carta constitucional, dispositivos simbólicos ou de eficácia contida. Os direitos individuais elencados na Lei Fundamental são sim normas de eficácia imediata, plenamente aplicáveis2. Uma vez elencados os direitos individuais, a Constituição alemã passa a tratar da organização estatal, ou seja, passa a dispor como se organiza o Estado a fim de que assegure as demandas da sociedade civil e as possa atender da melhor forma possível. Na base da ordem jurídica do Estado alemão encontram-se a Forma Republicana e o Federalismo. É de se louvar como é construída a experiência federativa alemã. A descentralização não é apenas legal-administrativa, mas sobretudo factual: ao lado da repartição de competências legislativas, tributário-financeiras e administrativas, há a própria descentralização dos núcleos de decisão governamental e de bens culturais pelo país. Os vários Tribunais Superiores, por exemplo, encontram-se espalhados pelo território nacional, como o caso do Tribunal Administrativo, em Berlim, e do Supremo, em Karlsruhe. Do mesmo modo, não se acha na Alemanha uma grande e única biblioteca com todo o acervo nacional, mas importantes bibliotecas regionais temáticas em todos os estados-membros (como a Biblioteca Nacional Romântica em Weimar, cidade onde moraram Goethe, Schiller e Hölderlin). Por ser um Estado Democrático (art. 20, §1º, da Lei Fundamental), na Alemanha “todo o poder estatal dimana do povo” e é exercido por ele “por meio de elei2 O Recurso Constitucional (Verfassungsbeschwerde), instituído pela Emenda à Lei Fundamental nº 19/69, é um instituto processual constitucional por onde o Bundesverfassungsgericht decide se o cidadão foi ou não prejudicado pelo Poder Público, em seus direitos e garantias fundamentais, por não haver meio processual ordinário de sua proteção. 424 instituição toledo de ensino ções e votações e através de órgãos especiais dos poderes legislativo, executivo e judiciário” (art. 20, §2º, da Lei Fundamental). Perceba-se que são simultaneamente duas as formas de exercício do Poder popular: a democracia semi-direta (plebiscitos, referendos e votações) e a indireta, através dos órgãos constitucionais. Pode-se dividir estes mencionados órgãos constitucionais alemães tomandose por base a clássica divisão tripartite do Poder proposta por Montesquieu. Assim, teremos: 1) Com funções basicamente legislativas, o Bundestag (o Parlamento Federal) e o Bundesrat (o Conselho Federal); 2) Com funções executivas, o Bundesregierung (o Governo Federal), chefiado pelo Chanceler Federal, e a Presidência da República; e 3) Com tarefas judicantes, o Tribunal Federal Constitucional (Bundesver-fassungsgericht) e os demais juízes e tribunais nacionais. 3. O Bundestag (o Parlamento Federal) e o Bundesrat (o Conselho Federal) compõem o Poder Legislativo alemão. Segundo a Lei Fundamental, o Bundestag (a Câmara Federal) é o órgão supremo da República, pois representa diretamente o povo alemão na “execução da soberania nacional”.3 Cabe ao Bundestag, através de deputados eleitos para mandatos de quatro anos e que gozam de imunidade e total liberdade de atuação parlamentar, a eleição do Chanceler Federal, a fiscalização das eleições, o controle do Governo (através de instrumentos formais como a requisição de informações das autoridades governamentais, a convocação de ministros ao Parlamento e as comissões de inquérito), a elaboração do Orçamento e a legislação nacional. Têm acento no Bundestag atualmente seis partidos políticos: 1) a União Democrata Cristã da Alemanha (CDU), partido de centro-direita e que, desde 1982, está no poder com o chanceler Helmut Kohl (a sua última reeleição foi em outubro de 1994); 2) a União Social Cristã (CSU), facção da democracia cristã sediada na Baviera (estado ao sul do país e cuja capital é Munique) e uma das principais bases na coalisão governista; 3) o Partido Social Democrático da Alemanha (SPD), a mais antiga organização partidária em atividade no país, representante da social-democracia européia e principal força de oposição no Parlamento4; 4) o Partido Liberal Democrático (FDP), representado o interesse do empresariado e da tradição liberal alemã; 5) o Partido do Socialismo Democrático (PDS), herdeiro do antigo Partido Socialista Unitário da Alemanha (único e estatal na antiga RDA); e 6) os Verdes5. 3 Cf. FREY, Klaus. Os Órgãos Constitucionais e a sua Atuação no Sistema Político-administrativo da República Federal da Alemanha (RFA).In: ANDRADE, Régis de Castro e JACCOUD, Luciana. Estrutura e Organização do Poder Executivo. Brasília, Centro de Documentação, Informação e Difusão Graciliano Ramos/Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), 1993. 4 Em crise desde a derrota nas eleições parlamentares de 1994 e agravada com vitória da CDU nas últimas eleições para o governo de Berlin. instituição toledo de ensino 425 Pres. Roman Herzog No que tange ao financiamento das campanhas eleitorais, ressalte-se que na Alemanha o partido que obtiver mais de 0,5% dos votos dados “faz jus a um ressarcimento de custos de campanha eleitoral, no valor de aproximadamente US$ 2,90 por voto obtido. Esse ressarcimento é o componente principal de seu financiamento, precipuamente para partidos menores, de poucos membros, e que portanto têm renda modesta proveniente de contribuições.”6 O outro órgão integrante do Poder Legislativo Federal alemão é o Bundesrat (o Conselho Federal), “mediante o qual os 16 estados federados participam da legislação e administração da União”7. Respeitadas algumas diferenças, pois, o Bundesrat eqüivaleria ao nosso Senado Federal. O art. 50 da Lei Fundamental estabelece que “os estados cooperam na legislação e administração federal por intermédio do Conselho Federal”. O Bundesrat é formado por membros dos governos estaduais ou seus delegados (não são eleitos diretamente por voto popular) e, muito mais que representar interesses partidários, o integrantes do Bundesrat têm a função precípua de garantir os interesses estaduais na esfera legislativa federal. Nos seus estados de origem, cada membro do Conselho Federal é ministro (similar aos nossos secretários de estado), administrador de alguma cidade importante ou deputado estadual. 5 Nas mais recentes eleições estaduais de Berlin, os Verdes elegeram uma vereadora brasileira de nascimento e naturalizada alemã: Maria Stollenwerk. Mulher, negra e imigrante, a sua plataforma era basicamente de ajuda às minorias sociais. 6 LEICH, Cornelia. O que é o Estado de Direito. In: LEICH, Cornelia e JAHN, Friedrich-Adolf. Estrutura do Estado de Direito na República Federal da Alemanha. São Paulo: Fundação Konrad-Adenauer, 1994. Série Papers nº 13. 7 FREY op. cit., p. 194. 426 instituição toledo de ensino Entre as suas principais funções está a de cooperação no processo legislativo (“a participação do Conselho Federal em muitas iniciativas legislativas elaboradas na Câmara Federal introduz experiências políticas e administrativas dos estados na legislação e administração federal”8). De um modo geral, o processo legislativo federal é bem complexo, a demandar muitos debates e negociações entre o Bundestag, o Bundesrat e o Gabinete do Chanceler, processo que só reforça o controle recíproco entre os Poderes. Otto von Bismarck, o grande herói da unificação alemã (1871) e primeiro chanceler do Reich, tem uma frase lapidar para adjetivar o processo de produção legislativa na Alemanha: “só Deus sabe como são feitas as leis e as salsichas”. 4. A Alemanha é uma República Parlamentarista. Desse modo, a sua principal característica na execução das políticas públicas e na representação do Estado é a bipartição do Poder Executivo Federal entre um Chefe de Governo e um Chefe de Estado. O Presidente da República (Bundespräsident) é o Chefe de Estado na República Federal da Alemanha. Constitucionalmente, ele é eleito, dentre cidadãos com mais de quarenta anos e que possuam direito a voto para o Parlamento Federal, a cada cinco anos de maneira indireta pela Assembléia Federal, órgão constituído especialmente para este fim e composto por integrantes do Bundestag e igual número de delegados escolhidos pelas Assembléias Legislativas Estaduais. Ao Bundespräsident cabem majoritariamente funções representativas e simbólicas, entre as quais se destacam: 1) A representação da Federação Alemã no Di- Residiencia oficial do Presidente em Berlim 8 LEICH op. cit. instituição toledo de ensino 427 reito Internacional, assinando e celebrando os acordos e tratados internacionais; 2) A representação interna e externa do Estado alemão; 3) O exame, assinatura e promulgação das leis federais; 4) A declaração de estado de emergência; 5) Proposta, nomeação e exoneração do Chanceler e dos Ministros Federais (segundo proposta vinculativa do Chanceler), de acordo com as maiorias parlamentares (inclusive com o poder de convocar eleições antecipadas); 6) Nomeação e exoneração dos juízes federais, funcionários federais e oficiais das forças armadas; e 7) Decisão sobre o direito de clemência e indulto. O pouco poder político imediato concentrado na Presidência da República resultado devido às experiências históricas da República de Weimar e do Terceiro Reich - não faz do Bundespräsident uma estátua inoperante. É notável que: “O Presidente da República personifica, de uma maneira especial, a unidade da coletividade política. Ele encarna na sua pessoa, acima de qualquer laço partidário, o elemento unificador no Estado e na ordem constitucional. Embora suas tarefas sejam preponderantemente representativas, o Presidente da República pode adquirir, pela sua personalidade, uma autoridade muito grande para equilibrar, na sua neutralidade, as forças opostas na lide política diária. Com seus pronunciamentos e posicionamentos fundamentais a respeito de temas atuais, ele tem a possibilidade de dar uma orientação política e moral aos cidadãos, destituída do debate político-partidário.”9 O Governo Federal (Bundesregierung), por seu turno, é formado pelo Gabinete e pelo Chanceler Federal (Bundeskanzler), que o escolhe e preside (art. 62 a 65 da Lei Fundamental). Como já foi salientado, é uma atribuição constitucional do Presidente da República indicar, nomear e destituir o Chanceler, observadas as maiorias parlamentares. Embora seja a terceira autoridade no cerimonial do país, atrás do Presidente da República e do Presidente do Bundestag, o Chanceler é, de fato, o mais alto e importante cargo da democracia alemã, já que cabe a ele estabelecer as diretrizes políticas da nação interna e externamente. Por tal razão o regime alemão é conhecido como “Democracia de Chanceler”. O fundamento do poder do Chanceler encontra-se no Bundestag, diante de quem o Bundeskanzler responde por seus atos políticos. É, pois, essencial à estabilidade do seu governo a permanente confiança do Bundestag no Gabinete, já que a ele cabem funções de sustentação, controle e impedimento da atuação do go- 9 KAPPLER, Arno e GREVEL, Adriane. Perfil da Alemanha. Frankfurt/Main, Societäts-Verlag, 1993,.p. 140. 428 instituição toledo de ensino verno/chancelaria. Na prática, a responsabilidade do Chanceler perante o Parlamento se expressa na “moção de desconfiança construtiva” e no “voto de confiança”. Com a pronúncia de uma “moção de desconfiança construtiva”10, o Bundestag pode pedir ao Presidente da República a exoneração do Chanceler e eleger um novo Kanzler. Se, por outro lado, um “voto de confiança” do Chanceler Federal não tiver a aprovação da maioria dos membros do Parlamento Federal, o Presidente pode dissolver o Parlamento Federal, nomeando um Chanceler Substituto enquanto não se realizam novas eleições. O Chanceler é eleito pela Câmara dos Deputados, sem prévio debate, após indicação do Presidente da República. O seu mandato termina toda vez que houver a constituição de um novo Bundestag (a cada quatro anos ou antes). Atualmente, o Gabinete é formado por dezenove ministros majoritariamente da coalizão CDU/CSU/FDP. Como estabelece o art. 65 da Lei Fundamental, dentro Chanceler Helmut Köln das diretrizes políticas determinadas pelo Chanceler, cada Ministro dirige a sua pasta com autonomia e sob sua própria responsabilidade. No caso de divergências ministeriais, intervirá o Chefe de Governo para decidir. Tradicionalmente, os ministros do Gabinete são políticos de carreira, já que a Lei Fundamental (art. 66) proíbe a concomitância de atividades privadas. Outro fato que singulariza o Gabinete alemão é o de que são raras as exonerações individuais e as “reformas ministeriais”. 10 Teve êxito apenas uma única vez, em 1982, quando saiu Helmut Schmidt (SPD) e foi eleito Helmut Kohl (CDU/CSU). instituição toledo de ensino 429 5. Todo o arcabouço jurídico-político descrito até aqui não teria sentido se não houvesse um meio eficaz de se controlar a adequação à legislação alemã vigente de todos os atos do Estado e dos Indivíduos na República Federal da Alemanha. Ao Judiciário cabe essa tarefa de zelo e fiscalização. Apenas dessa forma, através do controle jurisdicional, se pode garantir a ambos - Estado e indivíduo - limitação e proteção recíprocas. Ordena o art. 20, § 3º, da Lei Fundamental que “o Poder Legislativo está vinculado à ordem constitucional; os Poderes Executivo e Judiciário obedecem à lei e ao direito”. Conta-nos ROCHA11 evocando as mais antigas tradições teutônicas, que “nunca houve na Alemanha clima de desconfiança para com o Poder Judiciário, como, por exemplo, existiu na França. Ao contrário de terem medo da ação jurisdicional, os alemães sempre respeitaram e confiaram cegamente em seus juízes.” E continua, relembrando fato ocorrido com Frederico, O Grande, Rei da Prússia: “Nas vizinhanças do Palácio Real de Sanssouci, em Potsdam, diz a tradição, havia um moinho de vento, cujo ruído incomodava o rei. Este exigiu que se paralisasse o moinho, com o que não concordou o seu dono. Tendo, então, o rei ameaçado tomar violentamente o moinho, respondeu-lhe o moleiro: ‘Sim, se não houvesse o Tribunal de Berlim’”. O Poder Judiciário na RFA é marcado por uma rica especialização. A Justiça Alemã está dividida em cinco ramos12, a saber: 1) A Justiça Ordinária, competente para causas penais e civis e para o segmento da jurisdição voluntária (registro de imóveis, tutela e partilha, p. ex.); 2) A Justiça do Trabalho, com competência sobre os litígios individuais e coletivos de natureza laboral; 3) A Justiça Administrativa, de cuja alçada são todos os feitos de natureza administrativa à exceção daqueles que discutam matéria tributária, previdenciária ou constitucional; 4) Os Tribunais Sociais, com jurisdição sobre causas reativas à seguridade e assistência sociais; e 5) A Justiça Fiscal, que se ocupa das matérias tributárias. Normalmente, cada um destes segmentos possui, além da primeira instância, um Tribunal (ou Corte) Estadual e um Tribunal Superior Federal respectivos. Todas 11 ROCHA, João Batista de Oliveira. O Controle da Constitucionalidade das Leis na República Federal da Alemanha e no Brasil - um estudo de Direito Constitucional Comparado. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal. Ano 17, nº 66, abril/junho 1980, p. 80. 12 De acordo com a classificação proposta em RÖMER, Karl; DREIKANDT, Ulrich e WULLENKORD, Claudia. A Alemanha de Hoje. Gütersloh, Bertelsmann Lexicon Verlag, 1987. 430 instituição toledo de ensino essas jurisdições estão a cargo de cerca de 20.000 juízes, 4.000 promotores e 60.000 advogados. Afora e acima destes cinco ramos em que se divide a Justiça alemã encontrase o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht), localizado em Karlsruhe, cidade situada ao sul do país, no estado de Baden-Württemberg, próxima à francesa Strasbourg O Bundesverfassungsgericht é a corte constitucional da federação alemã13, cabendo-lhe, basilarmente, o monopólio das decisões acerca de matéria constitucional, como estabelece o art. 93 da Lei Fundamental14 (interpretação da constituição, esclarecimento acerca de dúvidas sobre a compatibilidade formal e material da legislação inferior em face da Lei Fundamental, direito e deveres da Federação e dos estados-membros etc.). Estruturalmente, o Tribunal Federal Constitucional é divido em dois Senados: o Senado dos Direitos Fundamentais, a quem todo cidadão tem direito de recorrer, depois de esgotadas todas vias inferiores, quando se sinta lesado em seus direitos fundamentais pelo Estado; e o Senado de Assuntos Estatais, com jurisdição sobre litígios entre a União e os estados-membros ou entre órgãos federais. Como muito bem observou Gilmar Ferreira MENDES15, em texto de singular qualidade: “Há muito não se limita o Bundesverfassungsgericht a declarar, simplesmente, a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de uma lei. A par dessas técnicas clássicas de decisão e do especial significado emprestado à ‘interpretação conforme a Constituição’ (‘verfassungskonforme Auslegung’), a Corte Constitucional Alemã desenvolveu determinadas variantes de decisões que conferem maior relevo à eterna discussão sobre o binômio ‘direito e política’. (...) A influência dos grupos de pressão sobre o legislador, o déficit de racionalidade identificado no processo legislativo e a possibilidade de que as decisões majoritárias do corpo legislativo venham a 13 A jurisdição constitucional alemã também é exercida - em nível estadual - pelos Tribunais Constitucionais dos Estados-membros. 14 Anota GILMAR FERREIRA MENDES (in Controle de Constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990, p.137) que “o modelo de jurisdição concentrada concebido por Kelsen, e consagrado pela Constituição austríaca de 1920-1929, veio a ser adotado, inicialmente, na Itália e na Alemanha. Estruturalmente, os sistemas apresentam evidentes semelhanças. A utilização da ação direta (Organklage), cuja titularidade se deferiu a determinados órgãos políticos (...) e a eficácia erga omnes das decisões proferidas pela Corte Constitucional são traços inequívocos do modelo desenvolvido pelo mestre austríaco.” 15 O Apelo ao Legislador - Apellentscheidung - na Práxis da Corte Constitucional Federal Alemã. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal. Ano 29, nº 114, abril/junho 1992, p. 474 e 478 instituição toledo de ensino 431 lesar direitos de minorias constituem elementos detonadores de uma mudança do papel desempenhado pela lei nos modernos sistemas constitucionais.” Ao lado da tradicional “declaração de inconstitucionalidade”, própria dos tribunais constitucionais ocidentais, o Bundesverfassungsgericht possui dois outros institutos político-constitucionais, particularmente germânicos, que visam proteger a unidade e a segurança do ordenamento jurídico. São eles a “declaração da inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade” e a “decisão de apelo ao legislador” (Apellentscheindung). Ressaltando-se que a diferenciação incisiva e a especificação doutrinária entre ambas é ainda muito problemática para o constitucionalismo teutônico - e que refoge aos objetivos aqui intentados - grosso modo, pode-se afirmar que estas similares ferramentas jurídicas caracterizam-se por um caráter condenatório-mandamental, na medida em que elas não tornam nula de pronto a norma apontada como inconstitucional, mas tão só obrigam o legislador a empreender uma nova normatização que substitua a anterior. Capítulo interessante na ordem jurídica alemã é o que trata do ingresso dos bacharéis em Direito na magistratura e no ministério público, disciplinado pela Lei Alemã da Magistratura (Deutsches Richtergesetz), aplicada a todos os ramos da jurisdição teutônica. O primeiro requisito exigido para esse ingresso, comum, na verdade, a todos os que pretendem exercer uma profissão na seara jurídica, é a aprovação nos dois “Exames de Estado” (Staatsexamen), provas obrigatórias realizadas pelo Governo ao término da faculdade e com interstício mínimo de um ano entre elas. Os Staatsexamen só podem ser repetidos uma única vez, sendo a aprovação no primeiro exigência para a prestação do secundo. Versam sobre matérias teóricas e situações práticas simuladas, durando uma semana inteira. Ao contrário do sistema nacional, não há um concurso público destinado ao preenchimento dos cargos de juízes (Richter) e promotores (Staatsanwalt). Os candidatos interessados em ingressar na magistratura ou no ministério público, de nacionalidade alemã e aprovado nos Staatsexamen, podem inscrever-se nos respectivos quadros, para as cidades com vagas a preencher, requerendo a sua nomeação. O exame do curriculum vitae é de fundamental importância. Uma vez nomeados, e passado um período de avaliação inicial no cargo, podem alternar-se nas funções ministeriais e da magistratura. Observa Mairan Gonçalves MAIA JÚNIOR16 que “a formação dos juízes e o contínuo aperfeiçoamento constituem uma das funções da Academia Alemã de 16 in Breves Observações sobre a Jurisdição Federal e a Organização do Poder Judiciário na República Federal da Alemanha. In: Revista da Associação dos Juízes Federais (AJUFE). nº 50, jun./jul. 1996., p. 51 432 instituição toledo de ensino Juízes, que anualmente apresenta programação de cursos e seminários destinados aos juízes e promotores públicos”. Centro de Berlim 6. De todo o exposto resta claro que se, há cinqüenta anos, a Alemanha saía da II Guerra Mundial derrotada, completamente destruída e como a grande vilã mundial por ter ensejado o mais sangrento totalitarismo já visto na história, vem ela construindo a partir de então uma democracia exemplar, que só melhora e amplia as conquistas da liberal República de Weimar. Hoje, a Alemanha reconstruída (e recém-reunificada) garante aos seus cidadãos, através desse Estado Social e Democrático de Direito, um conjunto eficaz de equipamentos sociais públicos como educação, transporte público, creches, cultura, assistência e previdência social, entre tantos outros, de excelência mesmo para padrões europeus. E todo esse patrimônio social só contribui à consolidação e ao aprimoramento democráticos. *Todas as fotografias foram retiradas de sites oficiais do Governo Alemão na Internet. A MUNDIALIZAÇÃO DO DIREITO LABORAL (O RETORNO HIGH TECH AO FEUDALISMO) Rodolfo Capón Filas Doctor en Ciencias Jurídicas y Sociales; Juez en la Cámara Nacional de Apelaciones del Trabajo (Buenos Aires); Profesor universitario de Derecho del Trabajo e Miembro Honorario de la ABRAT; Autor de numerosos libros y publicaciones. Mario Antonio Lobato de Paiva Advogado-titular do escritório Paiva Advocacia; Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional; Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática; integrante de la Red Mexicana de Investigadores del Mercado Laboral; colaborador de várias revistas jurídicas; Autor de diversos artigos e livros. I- INTRODUÇÃO Um breve exame da História revela-nos uma tendência crescente na aproximação dos povos, facilitada pelos novos meios de transporte e comunicação, a ponto de, em dado momento, falar-se em uma “aldeia global”. O maior incremento em tal aproximação nos últimos anos assumiu características especiais, não apenas pela intensificação maior do intercâmbio entre os povos, mas por outras características especiais como a mudança na estrutura das organizações econômicas e do processo produtivo. A humanidade resolveu substituir a construção de muros pela construção de pontes, que trouxeram, como conseqüência, dentre outras a quebra de barreiras comerciais desencadeando, também, a ruptura de barreiras ideológicas, políticas e culturais. A mundialização impulsionada por elementos econômicos e por fatores políticos neoliberais tem causado um dos ajustes estruturais no mercado de trabalho 434 instituição toledo de ensino mais selvagens da História, gerando des/ocupação crescente, marginalidade social, deterioração da qualidade de vida e nos países periféricos, ainda mais, o crescimento da dívida externa. Em virtude destes acontecimentos, o novo milênio apresenta sérios desafios para a humanidade. As questões mais do que nunca apresentam-se em nível global, e a solução dos graves problemas que ameaçam a estabilidade do planeta necessitam da construção de um novo modelo de Estado, de sociedade, de economia e do Direito do Trabalho. Nesta fase da história, torna-se fundamental que o tema Mundialização do Direito Laboral seja amplamente discutido, a fim de que os valores já conquistados pelos trabalhadores não comecem a ser relegados. II - A NOVA VERSÃO DO FEUDALISMO O termo “globalização” teve sua origem na literatura destinada às firmas multinacionais, designando inicialmente um fenômeno limitado a uma mundialização da demanda enriquecendo-se com o tempo até o ponto de ser identificado atualmente a uma nova fase da economia mundial. Não há, entretanto, uniformidade na conceituação do termo podendo-se encontrar vários significados distintos mas semelhantes. A nova versão do imperialismo, a atual globalização econômica e financeira não é uma novidade histórica pois faz parte do próprio desenvolvimento capitalista. Assim, a globalização ou mundialização não é um fenômeno imprevisto. A progressiva unificação do mundo, a formação da chamada aldeia global, foi um processo percebido com nitidez crescente neste ciclo. Desnudada, a globalização é o imperialismo atualizado, o neoliberalismo, o retorno high tech ao feudalismo. Na Idade Média, a aristocracia ainda precisava dos serviços no ciclo de produção. Mas agora essa necessidade está em retrocesso, embora a massa da população ainda tenha de cumprir seu papel de consumidora. Uma vez eliminado esse inconveniente “probleminha” (e há indícios de que sua “solução” está em andamento), uma anti-séptica limpeza econômica tomará o lugar da tão incivilizada limpeza étnica. Da leitura de Chesnais e Krugman, depreende-se que a chamada globalização nada mais é do que uma estratégia das grandes corporações financeiras e conglomerados industriais, visando à expansão de mercados, mediante aproveitamento, em escala mundial, da experiência acumulada em suas regiões de origem. Mas ninguém questiona se a experiência é aproveitável de maneira enriquecedora para as populações locais. Tudo parece ser uma busca de caminhos para se manter a atual repartição da renda mundial, ou concentrá-la ainda mais na direção dos países industrializados. Ou seja, a mesma coisa que vem sendo feita há mais de quatro séculos de exploração colonial, exercida praticamente pelos mesmos países que, hoje, se empenham em desenvolver explicações teóricas. instituição toledo de ensino 435 III - O PAPEL DO ESTADO Na importante questão que envolve a definição do papel do Estado na sociedade contemporânea, parece fundamental admitir que a redução do tamanho do Estado não pode torná-lo incapaz de mediar os conflitos, sob pena de deixar a grande maioria dos trabalhadores sem qualquer defesa completamente dominada pelos grandes grupos econômico e financeiros , que têm no lucro o único objetivo de suas ações. Desta forma, o Estado tem como finalidade importante a função de reagir e conservar. Conservar o modelo de sociedade e reagir com sua força a qualquer tentativa de mudança fora das permitidas pelo modelo posto. Mesmo com o atual enfraquecimento do Estado nacional, este ainda é importante dentro do sistema globalizado para reagir a qualquer tentativa de mudança fora dos limites estabelecidos, agora, pelo grande capital transnacional globalizado, conservando, desta forma, o modelo existente e seus interesses e sistema de privilégios. O papel do Direito do Trabalho, da Constituição é o de estabelecer as margens, os limites desta sociedade trabalhadora, e, embora estes limites sejam cada vez mais largos, eles continuam a existir, como requisito e mesmo, razão de ser do Estado. Fenômenos como o da globalização, desregulamentação, flexibilização e do direito do trabalho mínimo correspondem apenas, a um novo espírito do Estado menos centralizado, pois, uma assistência excessiva cria mais problemas que soluções, mais abertos aos grupos naturais e mais preocupado com a eficácia e bem estar da comunidade como um todo e não apenas de um parcela de privilegiados. Um Estado social, inspirado em princípios de solidariedade e subsidiariedade. IV - O HOMEM COMO CENTRO REFERENCIAL DO DIREITO O direito laboral se interessa pela justiça social, a solidariedade, a cooperação que se manifestam nos Direitos Humanos inter/nacionalmente reconhecidos, cuja a relação com o mundo do trabalho tem se estudado. Precedido de aspectos religiosos, a consciência ética media da humanidade tem reconhecido a pessoa e os setores sociais diversos direitos que se correspondem pela situação biológica e social. Tais faculdades são anteriores ao Estado e não surgem do ordenamento jurídico positivo algum. A humanidade instituiu primeiro os direito políticos, e que nos horrores da Segunda Guerra fizeram compreender que o ser humano concreto podia ser massacrado pelo Estado. Em um segundo nível de consciência ética, foram reconhecidos os direitos econômicos, sociais, culturais e que o homem vive em uma determinada sociedade. Em um terceiro nível, se está reconhecendo os direitos globais a paz, ao desenvolvimento, a livre determinação dos povos, a um meio ambiente sadio e equilibrado ecologicamente, aos benefícios ao patrimônio comum da humanidade. Tais direitos 436 instituição toledo de ensino concentram em seu espírito a justiça social solidariedade e cooperação. Penetram em todo o ordenamento jurídico formal através dos princípios gerais, prescindindo de ratificação estatal de documentos inter/nacionais que os reconheçam. A medida que se condense esta consciência, se incutiram novos direitos aos anteriores existentes e os reconhecidos. Tal intuição é inerente a evolução humana para melhores condições de vida. Algumas constituições políticas como a brasileira, os tipificam como imediatos, superando a discussão entre normas operativas e programáticas. Todo país sério respeita e promove os direito humanos. À luz do exposto deve-se avaliar o ajuste estrutural de tal modo que sirva para todos e não só para alguns privilegiados. De acordo com eles, cada país há de transformar suas estruturas, dentro de um adequado modelo de desenvolvimento com rosto humano, garantindo não só o respeito a tais direitos e sim também sua promoção. Se não enfrentarmos tal tarefa o país pode ser taxado de subdesenvolvido em matéria de direitos humanos, com sérias conseqüências políticas e econômicas. Na realidade, se mostra refratária ao respeito aos Direito humanos não só no aspecto político mais também no aspecto social e econômico. De assim que as diversas organizações defensoras de tais direitos deveriam atender aos vários elementos problemáticos sem se deter especificamente em algum. Por tal razão, os atores sociais hão de potenciar o componentes de toda sociedade ativa (consciência, compromisso e poder) e transformar a realidade para o homem ocupe o centro referencial do sistema. V - DIREITO À VIDA O Direito do Trabalho constitui um reconhecido, “importante espaço experimental para novas construções jurídicas”, mas igualmente um espaço especialmente permeável às mutações do “mundo da vida”. Por isso, o Direito do trabalho vive um momento de transição, num caminho de múltiplas incertezas, tantas quantas as que resultam das transformações tecnológicas, sociais, econômicas, políticas e históricas que confluem para transformar o início do século num período de dúvidas sistemáticas. A tradicional visão do Direito do Trabalho como ramo jurídico (tendencial ou permanentemente) em crise, feito de avanços e retrocessos e próprio de um Direito especialmente sujeito às modificações sociais), com uma inexistentes fratura do continuum do sistema jus laboral, encontra hoje um eco na reconhecida ineficácia desse mesmo sistema, incapaz de atingir os seus objetivos em resultado da crescente desarticulação entre o corpo normativo vigente e fenomenologia laboral objeto de regulamentação. Mesmo diante de tal estado de coisas, o Direito do trabalho ainda é uma da ramificações do ordenamento jurídico em que mais se trava decisivas batalhas pela instituição toledo de ensino 437 manutenção e progressão da qualidade de vida dos cidadãos e, em especial, das suas relações com o Es