“pelos meus olhos”. - Grupo de Estudos Culturais, Identidades e
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“pelos meus olhos”. - Grupo de Estudos Culturais, Identidades e
III SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GT 8 - Antropologia visual: um olhar sobre as imagens em movimento Violência perpetrada por parceiro íntimo: Uma reflexão antropológica do Filme “Pelos meus Olhos” Fabiana Santos Andrade VIOLÊNCIA PERPETRADA POR PARCEIRO ÍNTIMO: UMA REFLEXÃO ANTROPOLÓGICA DO FILME “PELOS MEUS OLHOS”. Fabiana Santos Andrade 1 Universidade Federal de Sergipe E-mail: [email protected] RESUMO O presente trabalho tem o objetivo de refletir sobre a violência perpetrada por parceiro íntimo, conhecida também como violência doméstica, através de uma análise antropológica. Para apresentar um certo número de práticas, discursos, representações e imaginários que empregam a violência na modernidade, pretende-se utilizar a análise do filme “Pelos meus olhos”. A escolha do tema se deve ao fato de que a violência perpetrada por parceiro íntimo ocorre em todos os países, independentemente do grupo social, religioso, cultural ou econômico e por ela ser representada em muitos filmes da Atualidade. Para este trabalho, serão utilizadas referências que abordam a temática a partir de autores como Mari-France Hirigoyen, Saffioti e Sabadell, sob a perspectiva da antropologia visual de Geertz, MacDougall e Cabrera incluindo análise do poder e dominação de Arendt e Pierre Bourdieu. Palavras-chave: Violência entre parceiros íntimos, Cinema, Pelos meus olhos, Poder. ________________________ 1 Mestranda em Antropologia na Universidade Federal de Sergipe (UFS), especialista em Violência, Criminalidade e Políticas Públicas (UFS). 1 INTRODUÇÃO No limiar do século XXI, o panorama mundial é marcado por questões sociais mundiais que se manifestam, de forma articulada e com distintas especificidades, nas diferentes sociedades. (TAVARES DOS SANTOS, 2004). Castel (2005) afirma que as sociedades modernas são construídas sobre o alicerce da insegurança, em virtude de não encontrarem em si mesmas a capacidade de assegurar proteção; caracterizam-se como individualistas e, com a crise da modernidade, provocaram o desemprego, e a precariedade das relações de trabalho dentre outros fatos importantes. Conforme Louis Dumont (2008), o sentido de individualismo não se refere ao indivíduo empírico ou à unidade do grupo social, mas à dimensão moral do termo que se relaciona à forma de consciência do homem moderno de pensar sobre si mesmo como indivíduo, logo, como autônomo em relação ao grupo social. O sociólogo Zygmunt Bauman (2001) relata sobre os dramas próprios das sociedades contemporâneas, inseridas na experiência da modernidade líquida, em que tudo é fluido e temporário e grande parte dos indivíduos estão permanentemente confrontados com sua condição de vulnerabilidade, desamparo e insuficiência sem que o Estado e as demais instituições políticas da própria sociedade ofereçam a atenção devida para os referidos dramas. O Relatório mundial sobre violência e saúde (OMS, 2002) afirma que a violência perpetrada por parceiro íntimo ocorre em todos os países, independentemente do grupo social, religioso, cultural ou econômico. A grande carga de violência de gênero (masculino/feminino) recai sobre mulheres em relação aos homens, embora as mulheres também possam ser violentas e a violência também possa ser encontrada em relacionamentos com parceiros do mesmo sexo. Mari-France Hirigoyen (2006) menciona que estudos epidemiológicos sobre a violência no casal são difíceis de ser realizados porque nenhum País conseguiu chegar a um acordo quanto a uma definição e porque as respostas são muito difíceis de ser interpretadas devido a uma grande subjetividade. Algumas dificuldades, a seguir, são 2 encontradas ao se analisar a violência no casal: a) o que é dito inaceitável numa época varia em função do tempo, da cultura e do casal; b) o grau de tolerância do indivíduo depende de sua história e sensibilidade; c) alguns atos não são condenados no plano jurídico mesmo causando prejuízos psicológicos. A autora trata a violência no casal como “um tratamento brutalizante que se produz na intimidade do casal, quando um dos dois parceiros, seja qual for o seu sexo, tenta impor seu poder pela força”. (HIRIGOYEN, 2006, p.15). Nesse caso, a proximidade afetiva cria a gravidade da violência na qual os sofrimentos mais intensos são gerados nos mais fortes afetos. As condutas agressivas ligadas ao álcool são comuns pois geralmente na população os atos violentos cometidos sob o domínio do álcool abrangem mais da metade dos homicídios; “[...] não é o álcool que provoca diretamente a violência, apenas permite a liberação da tensão interna até então controlada, criando uma sensação de onipotência”. (HIRIGOYEN, 2006, p. 125). O cinema, por sua vez, é responsável por grande parte do imaginário criado sobre o corpo em uma dada sociedade; desta forma, analisa as representações corporais veiculadas por este meio e, de certa maneira, é uma ferramenta para desvelar quais símbolos e sentidos são atribuídos ao corpo por tal sociedade. Em contrapartida, as formas de pensar, sentir e desejar o mundo possuem um vínculo histórico com o espaço discursivo criado pelo cinema. Este tem papel fundamental na criação das sensibilidades modernas, na aprendizagem de como ser um sujeito moderno ou na incitação do desejo de sê -lo. (ADELMAN et al., 2011). De acordo com Simmel, a vida urbana instaura novas formas de percepção que se adequam ao seu ritmo acelerado; uma delas é o cinema que torna possível compreender através de fragmentos e criar novas formas de narrá-los. (ADELMAN et al., 2011). Sendo o cinema um âmbito de produção e reflexão do imaginário individual, ele é também responsável pela elaboração de uma cultura visual, na qual a relação entre o real e a representação se altera constantemente e produz a tendência de entender o real apenas em suas representações. (CHARNEY e SWARTZ apud ADELMAN et. al., 2011). Em virtude da relevância desse assunto na atualidade e do cinema ser um meio acessível para as possibilidades de discussões antropológicas, esse presente trabalho tem 3 como objetivo refletir sobre aspectos que fazem parte do ciclo de violência perpetrada por parceiro íntimo presente no filme “Pelos meus olhos” 2 3. O filme O filme “Pelos meus olhos” é um drama espanhol que se passa na cidade de Toledo. As cenas iniciais nos mostram um conjunto habitacional de prédios quadrados, com tijolos visíveis no período da noite; vê-se uma jovem (Pilar) ao jogar dentro de uma mochila três ou quatro roupas e vai imediatamente ao quarto do filho (Juan) que dorme, vestindo-o às pressas. Há uma grande urgência na ação e ambos correm do apartamento dirigindo-se para refugiar-se na casa da irmã (Ana) com seu filhinho que, apesar da hora, são recebidos por ela. Pilar ao ser espancada pelo marido resolve dar um novo rumo na vida e abandona o esposo (Antonio), situação que foi bem compreendida pela sua irmã. Em virtude de ser restauradora, Ana sugere que a irmã procure um emprego e faz uma recomendação num museu, sendo admitida em seguida. No entanto, Antonio vê-se sozinho e não como aceita essa condição passa a cortejar sua mulher com bilhetes, presentes, e palavras de amor. Aproxima-se de Pilar com a promessa de frequentar um grupo de ajuda para homens violentos como ele e então eles se amam, passando a se encontrar escondidos, como um casal de namorados. Ana desaprova esses encontros e volta a estimular sua irmã a se separar e ter vida própria. Ana está noiva de um escocês e juntas providenciam os preparativos do casamento, formando agora uma grande família: Ana, o noivo, Pilar, Juan e sua mãe. Esta é uma mulher viúva e que sempre foi infeliz no casamento por aguentar o temperamento difícil do marido em silêncio; como ela vem de outra geração pede que sua filha aceite seu infortúnio de qualquer modo. ________________________________ 2 Pelos meus olhos / Diretor: Icíar Bollaín / Argumento e Roteiro: Icíar Bollaín e Alicia Luna / Fotografia: Carles Gusi / Produção: Alta Productión, Producciones La Iguana / Música: Alberto Iglesias / Intérpretes: Laia Marull, Luis Tosar, Candela Peña, Rosa María Sardà, Nicolas Fernandez Luna / País e Ano: Espanha, 2003 / Dados técnicos e duração: Cor, 106 min. 3 Este filme brilhante foi o grande vencedor dos Goyas; levou o Oscar espanhol de filme, direção, atriz, ator, atriz coadjuvante, roteiro e som; No total, teve 39 prêmios e outras 17 indicações. 4 O terapeuta de Antonio é muito eficiente e simula situações percebidas como um calor que gera um desconforto incontrolável e se instala em seus pacientes antes da ira começar. Esse desconforto é identificado como fúria que precisa ser controlada e para tal alguns recursos são utilizados como pensar em uma cena de paz, sair do local para encontrar-se consigo mesmo ou escrever em um diário com páginas coloridas que oferece aos clientes; As páginas vermelhas escuras são para os momentos de desespero. Com o assédio amoroso dando resultado, Antonio consegue que Pilar volte para ele. Esse era um amor muito embasado “na pele” dos dois e no sexo de elevada excitação; eles tinham um jogo infalível em que havia uma troca de presentes, todavia eles eram seus corpos percebidos quando Antonio pedia as orelhas de Pilar, seus seios, suas coxas, seus braços e ela lhes dava, inclusive seus olhos. Pilar decide voltar para seu marido, durante a festa de casamento de Ana, momento em que triunfa um clima de amor e alegria; desentende-se com sua irmã, e em um momento de desabafo afirma que que ninguém pode saber melhor do que ela onde é o seu lugar, ou seja, ao lado do marido, que havia mudado; em seguida, Ana chora na festa pela decisão tomada por Pilar. O medo é uma constante na vida de Pilar durante os nove anos em que vivera com Antonio, no trabalho atual e em sua casa a qual retornara. Quando Antonio chega, ela e o filho sempre se assustam por não saberem o estado em que ele se encontra. Apesar da busca terapêutica, a essência de Antonio não mudou ao passo em que eles continuam formando um casal conflitante e imaturo. À medida que Pilar se estabelece no trabalho e convive com outras mulheres, adquire nova confiança que a deixa mais bonita e madura, o que não acontece da mesma forma para Antonio que possui uma autoestima baixa e medo de perder sua mulher, além de fantasiar situações medíocres tonando-se extremamente controlador. Tais problemas são exaustivamente discutidos com o terapeuta, mas para ele uma mudança de atitude provoca bastante angústia além de ter medo de perder o controle sobre si mesmo e seu relacionamento com sua mulher. Pilar faz um trabalho voluntário com muita eficiência, em uma igreja-museu em Toledo, cuja função é mostrar os quadros aos turistas e explicar o motivo pelo qual eles foram pintados daquela maneira, sempre com a mitologia de plano de fundo na origem das obras. Antonio mesmo não aceitando o trabalho de Pilar esforça-se e lhe dá um livro 5 de arte; ele vai se corroendo de ciúmes, aos poucos, pelo sucesso de sua mulher e tornase mais inseguro e agressivo e então passa a vigiá-la, no museu, durante suas explicações. Em uma situação, Pilar esquece de ligar o celular por não ter costume de ter esse tipo de aparelho; ele não para de tocar e a circunstância foge do controle de ambos, quando ela é convidada a trabalhar em Madri. O sonho deles era que eles fossem morar em um local bem longe de Toledo e do controle familiar, já que a possibilidade era grande porque ele trabalhava para seu pai como vendedor. A proposta da mulher de se mudarem para Madri para começarem uma nova vida fez com que ele se sentisse inferiorizado e parte para a coação e agressão verbal. Pilar não cede a seus apelos e Antonio tenta suicídio em sua presença, cortando-se com uma faca de cozinha; ele é levado ao hospital e fica bem uma vez que o corte foi superficial. Depois desse episódio, as duas irmãs voltam a ficar unidas e o filme termina com um final aberto no qual Pilar, escoltada por suas colegas de trabalho, entra em sua casa para fazer suas malas e pegar somente dois enfeites que gostava muito, ou seja, um prato e uma foto dela e seu pequeno Juan enquanto Antônio a olha pensativo. Pilar parte para seu novo destino e deixa Juan para ser cuidado por sua irmã Ana e o marido, devendo retornar para buscá-lo. Reflexões antropológicas sobre a violência apresentada no filme A Antropologia é também compreendida como um exercício do olhar e como consequência os filmes podem ser submetidos aos estudos antropológicos, uma vez que eles são também um exercício do olhar. Segundo MacDougall (2009, p.68), “antes que os filmes sejam uma forma de representar ou comunicar, eles são uma forma de olhar. Antes de expressar ideias, eles são uma forma de olhar. Antes de descrever qualquer coisa, eles são uma forma de olhar”. Nesse sentido, a proposta de Geertz (1989) de uma Antropologia interpretativa entende que os filmes são recortes do mundo, descrições de fatos pequenos, que estão entrelaçados densamente, e interpretações de segunda ou terceira mão. 6 Geertz (1997) sinaliza que a Arte é um elemento essencial da vida social pois ela denota e divulga modos de se pensar a vida. Ao levar em consideração que os sentimentos que um povo tem pela vida surgem e são transmitidos na ciência, na moral, no direito e na arte, a expressão artística pode ser entendida como um sistema cultural, assim como o parentesco e a religião, revelando maneiras de estar no mundo e que estão inseridas nas formas de expressões sociais e nas atitudes. A variedade, que os antropólogos já aprenderam a esperar, de crenças espirituais, de sistemas de classificação, ou de estruturas de parentesco que existem entre os vários povos, e não só em suas formas mais imediatas, mas também na maneira de estar no mundo que encorajam e exemplificam, também se aplica a suas batidas de tambor, a seus entalhes, a seus cantos e danças (GEERTZ, 1997, p.146). Percebe-se que o autor concebe a expressão artística como consequência de uma sensibilidade coletiva, formada na totalidade da vida social e aponta que a ligação entre vida e arte acontece no plano semiótico, e não no plano instrumental. Compreende-se que essa proposta para Geertz (1997) é uma maneira de se pensar sobre o reflexo da vida, ou seja, as representações artísticas fornecem modos de experimentar a realidade e materializar preocupações recorrentes da vida. Neste ângulo o cinema, como um produto cultural, é a concretização de um trabalho de equipe que possui várias sensibilidades individuais, diferenciados e se direciona a um público determinado, que é capaz de compreender e interpretar e seus significados. Percebe-se que o filme é uma obra de ficção cuja relação com a vida social decorre da possibilidade de ser produto de uma experiência coletiva que o transcende. Desta forma, o cinema pode ser uma forma útil para refletir sobre questões presentes nas análises antropológicas, como, por exemplo, a violência. O meio de comunicação audiovisual de massa tornou-se uma experiência cotidiana para a maioria das pessoas pois ele pode fazer a mediação de nossas relações com o mundo; assim eles são instrumentos são de representação e divulgação de valores e traços culturais. O cinema faz um recorte na realidade, questiona e dramatiza o 7 cotidiano comum ao espectador, revelando particularidades e gestos sutis inseridos nos meios sociais. Assim como a Antropologia e, especificamente a Antropologia Visual, o cinema trabalha também com o cruzamento de olhares, e “é nesse cruzamento de intencionalidades que reside a possibilidade de pensar a imagem como um objeto fértil para a reflexão antropológica” (BARBOSA e CUNHA, 2006, p.54). O cinema faz parte da vida social contemporânea e se pode afirmar que a relação entre ele e a sociedade se fundamenta numa interferência dupla, ou seja, o cinema produz imagens de nossas fantasias, nossas necessidades, nossos desejos e constitui “nossos imaginários, nossas relações com o Outro, nossos conhecimentos, nossas opiniões” (FRANÇA, 2005, p.34). Nesse sentido, o cinema nos conta histórias, e, conforme afirma Cabrera (2006, p.21), “é claro que um filme sempre pode ser colocado em palavras. [...] Só que isto só será plenamente compreensível somente vendo- se o filme, instaurando a experiência correspondente, com toda a sua força emocional”. Muito mais que simples histórias, os filmes expõem experiências coletivas, questionamentos e formas de como estar no mundo, revelando ideologias e concepções acerca da realidade social, ou seja, [...] os conceitos -imagem do cinema, por meio desta experiência instauradora e plena, procuram produzir em alguém (um alguém sempre muito indefinido) um impacto emocional que, ao mesmo tempo, diga algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza etc. e que tenha um valor cognitivo, persuasivo e argumentativo através de seu componente emocional. (CABRERA, 2006, p. 22). A cineasta espanhola Icíar Bollain4 em seu filme trata com muita sensibilidade uma relação matrimonial desnudada pelo contexto da violência na qual o amor e a convivência desgastada são transformadas num inferno que atormenta a vida de Pilar, uma mulher submissa e mãe de um garoto que observa as brigas dos seus pais com olhos lastimosos. __________________ 4 Iciar Bollain nasceu em Madri, em 1967, em uma família basca; foi atriz em mais de 30 filmes e/ou episódios. 8 Na violência contra a mulher, o abuso pelo parceiro íntimo é mais comumente parte de um padrão repetitivo, de controle e dominação, do que um ato único de agressão física. O abuso pelo parceiro pode tomar várias formas, tais como: agressões físicas (como golpes, tapas, chutes e surras), abuso psicológico (por menosprezo, intimidações e humilhação constantes), coerção sexual etc. (OMS, 2002). A violência no seio da família tem uma dinâmica própria, diferente da violência nas ruas ou no ambiente de trabalho. Ela ocorre entre pessoas muito próximas e as vítimas mais frequentes são mulheres, crianças e idosos (SCHRAIBER, 2007). O conceito de violência doméstica está ligado ao conceito de território englobando as situações nas quais os envolvidos desfrutam de uma certa intimidade e convivência dentro de um espaço que pode ser simbólico ou concreto. “Estabelecido o domínio de um território, o chefe, via de regra um homem, passa a reinar quase incondicionalmente sobre seus demais ocupantes. O processo de territorialização do domínio não é puramente geográfico, mas também simbólico” (SAFFIOTI, 2004, p. 72). A violência entre cônjuges ou companheiros constitui uma das faces da violência familiar que está relacionada com os valores do mundo patriarcal. Em vários casos, a mulher fica numa posição de bode expiatório uma vez que grande parte da violência, produzida numa sociedade marcada pela cultura patriarcal caracterizada pela competitividade como também pelo aumento da agressividade, é orientada para o seu corpo. (SABADELL, 2005). O autor afirma que “O problema não é a postura de certos homens, mas uma cultura que influencia toda a sociedade. Trata-se do patriarcado que consiste em uma forma de relacionamento, de comunicação entre os gêneros, caracterizada pela dominação do gênero feminino pelo masculino” (SABADELL, 2005, p. 264). Assim, percebe-se que o patriarcado indica o predomínio de valores masculinos, fundamentados em relações de poder que é exercido através de complexos mecanismos de controle social que oprimem e marginalizam as mulheres. A dominação do gênero feminino pelo masculino costuma ser marcada (e garantida) pela violência psíquica e/ou física em uma situação na qual as mulheres (e as crianças) encontram-se na posição mais vulnerável, sendo desprovidas de meios e reação efetivos. O autor afirma ainda que: 9 No âmbito das relações privadas, a violência contra a mulher é um aspecto central da cultura patriarcal. A violência doméstica é uma forma de violência física e/ou psíquica, exercida pelos homens contra as mulheres no âmbito das relações de intimidade e manifestando um poder de posse de caráter patriarcal. Podemos pensar na violência doméstica como uma espécie de castigo que objetiva condicionar o comportamento das mulheres e demonstrar que não possuem o domínio de suas próprias vidas. (SABADELL, 2005, p. 235-236 ). A temática do poder é vista por Arendt (2004) como sinônimo de consenso, interação dialógica. Enquanto o poder for significado como forma de submeter o outro à própria vontade, como sinônimo de violência, haverá sempre espaço para configurar legitimação a essa forma de gerenciamento de conflito. Violência é ausência de poder, incapacidade de argumentação harmoniosa respeitosa e construção conjunta de consensos. Apesar dos golpes e das humilhações que Pilar suporta do seu marido, ela continua a acreditar na paixão que a uniu a Antonio, homem ciumento e brutal, que possui uma consciência alterada em relação a realidade. A esposa, ao retornar ao lar, acredita na possibilidade de nunca mais acontecer e se volta contra as pessoas que confrontam a situação real, ao mesmo tempo em que o mundo passa a ser perseguidor daquele amor que é parte dela mesma; esse outro é parte de si mesma, o que revela que ambos não pouco saudáveis na relação. Vários estudos quantitativos e qualitativos mostram que a violência praticada por parceiro íntimo associa-se à aceitação da violência e normas hierárquicas de gênero, como o “direito” masculino para controlar bens e comportamentos femininos. Esse aspecto pode propiciar o surgimento de conflitos caso a mulher desafie esse controle ou o homem não possa mantê-lo. (D’Oliveira et al., 2009). Segundo Yves Michaud (1989), do ponto de vista antropológico, as causas da violência podem ser explicadas a partir do estudo da agressividade. Para tal, alguns pontos de vista são levados em consideração como: o neurofisiológico (os organismos se mantêm em vida reagindo aos estímulos do ambiente que são agressores para eles); o etológico (entendendo que a agressividade é própria do homem bem como dos outros animais); antropológica pré-histórica (percebendo que a agressão acompanha a conquista, a destruição e a exploração na medida em que há uma violência humana que 10 anima invenções, descobertas e produção de cultura); psicológico e psicanalista (estudando elementos ligados a agressividade e violência a partir de situações de interação, de personalidade, o papel da frustração, modos de socialização, etc). A violência pode ser compreendida através de uma microfísica do poder, de FOUCAULT, uma vez que existe uma rede de poderes que envolve todas as relações sociais, marcando as interações entre classes e os grupos. Apresenta-se como uma “microfísica da violência” na vida cotidiana da sociedade contemporânea cuja prática violenta se insere em uma rede de dominações de vários tipos – classe, gênero, etnia, etária, por categoria social, ou a violência simbólica – que resultam na produção de uma teia de exclusões, possivelmente sobrepostas.(TAVARES DOS SANTOS, 2002). Para Pierre Bourdieu (1989), o poder simbólico é construtor da realidade, como conhecemos e construído por ela, e perpetua-se por instrumentos simbólicos de dominação: a divisão do trabalho (classes sociais), a divisão do trabalho ideológico (intelectual, formador do discurso) e a função de dominação que existe nestas duas divisões. Também os mitos, as lendas, as ideologias dominantes, bem como a língua de um povo são considerados instrumentos de dominação. O autor afirma também que todos os tipos de expressão cultual aparecem como instrumentos de perpetuação de um poder que é simbólico: ditados, discursos, provérbios, enigmas, cantos, poemas, representações decorativas, etc. Além desses, a organização do espaço, a divisão do tempo, mas, sobretudo, a divisão de papeis e de lugares para homens e mulheres funcionam também para esse fim. (BOURDIEU, 1995). Numa pesquisa realizada pelo antropólogo americano Dr. David Guilmore, com homens de cultura latina, foram identificados cinco pontos básicos que definem uma espécie de código de virilidade. Neste, para que o indivíduo seja considerado homem é preciso cumprir as seguintes regras: 1. Ser competitivo; 2. Ser sexualmente potente; 3. Ter autocontrole; 4. Ser um bom provedor; 5. Fazer-se respeitar pela mulher. Assim, o homem que não conseguir satisfazer as expectativas impostas terá a sua identidade ameaçada e não encontrará embasamento para sua masculinidade no imaginário cultural (MINISTERIO DA SAUDE, 2001). 11 A violência praticada contra parceiro íntimo compreende fenômenos como a humilhação, desqualificação, exposição a situações vexatórias, críticas destrutivas, desvalorização da mulher como mãe e amante, o seja, formas de violência psicológicas que culminam com a violência física. No filme, Antonio humilha a esposa, Pilar, não apenas em casa mas também em seu local de trabalho, trazendo prejuízos como a perda da autoestima, da liberdade (de pensar, de sentir), da individualidade acreditando que o amor justifica todas as tentativas e sacrifícios, nos quais a noção do abismo em que se encontra é perdida. Percebe-se alguns jogos românticos do casal e que mais caracteriza a doação de Pilar ao seu marido encontra-se na seguinte frase: “te dou meu corpo, meu sexo, minha boca, minhas orelhas, meu nariz, meus olhos". A princípio parece uma brincadeira inocente, mas se transforma numa armadilha uma vez que ela coloca todo seu corpo e sua alma nas mãos do esposo. Ruth Benedict (2006) desenvolve a ideia de que no nível da cultura o tipo básico da personalidade se manifestava como um padrão cultural, ou seja, cada cultura tem seu estilo, sua configuração ou modelo cultural. Personalidade é entendia como um vínculo de hábitos organizados e relativamente persistentes que se encontram rodeados por zonas de elementos de conduta mais fluidos que estão num processo de se tornar hábito; ela é formada pelas normas e valores e costumes que são transmitidos pelos padrões culturais e que ditam parâmetros que orientam as ações dos indivíduos. Evidencia-se atualmente que em muitos casos existe uma relação de codependência entre vítima e opressor e a violência torna-se como um ingrediente emocional para a mulher; a vítima, por sua vez, acredita ser um indivíduo de menor valor que precisa do seu opressor para sobreviver, e então “mergulha” num círculo vicioso no qual o homem humilha e agride e a mulher sente medo, vergonha e culpa. A situação pode ser piorada caso a vítima esteja rodeada por pessoas que sugerem que é melhor a mulher continuar num relacionamento violento do que ficar longe do esposo como é o caso do discurso da personagem Aurora, mãe de Pilar: “Uma mulher nunca está melhor sozinha”. Na trama, Antonio busca auxilio psicológico através de terapia individual e de grupo no qual são retratadas diferentes pessoas com o mesmo problema de 12 agressividade e emocionais; em uma cena, Pilar confronta Antonio lendo suas anotações e ao dizer que ele não tinha motivo por sentir medo, ele sente insegurança, falta de amor próprio e continua a projetar suas frustrações em sua esposa. O processo terapêutico de Antonio embora reforce a identificação do padrão de pensamentos e sensações que podem disparar o comportamento agressivo dispensa a participação da esposa e omite o envolvimento do álcool nesses episódios. Os estudos sobre grupos socioterapêuticos com agressores pesquisados por com Ramos, Santos e Dourado (2009), têm se mostrado pertinentes para a apresentação de situações dos conflitos. Eles propiciam reflexões sobre as relações sociais, familiares e conjugais nas quais os homens inicialmente alegam que reagem agressivamente à violência e em seguida passam a acessar livremente as emoções presentes no momento em que ocorreram as agressões. Nesse sentido, Fontoura e Ramos (2009) acreditam que a intervenção socioterapêutica com esse tipo de grupo é fundamental para que sejam ampliadas reflexões acerca das relações interpessoais e dos papeis sociais, para a promoção da co-responsabilização pelas relações estabelecidas pelos atores envolvidos e para a compreensão da lei. No final do filme, Pilar percebe que a sua história é semelhante a de sua mãe e que se repete mais uma vez; a mãe conta que permaneceu no matrimônio por causa das filhas conta e ao discutir com Pilar, esta se dá conta de que não é aquilo que queria mais para si mesma. Assim como a personagem exibida na trama, muitas mulheres vítimas de violência praticada por seus companheiros repetem histórias de gerações anteriores na mesma família. Culturalmente, muitas aprenderam a silenciar na relação e a se conformar com os atos violentos praticados diariamente e nem sempre existe apoio familiar nesses casos ou um suporte social para proteger essas pessoas. Na trama, quando Pilar decide trabalhar e estudar ela passa a conhecer novas perspectivas diante do mundo além de ter o apoio de sua irmã Ana. Considerações Finais Diante do que foi exposto, considera-se importante refletir sobre a conduta violenta não como um discurso social de aspecto único e singular, mas sim como um fenômeno inserido na realidade do mundo social que se expressa de diversas maneiras. 13 Acredita-se também que este fenômeno é um fator proveniente de múltiplas causas, podemos destacar: história pessoal, personalidade, influência da cultura e sociedade, etc. Conforme MacDougall (2009) os filmes representam uma forma de olhar antes mesmo de expressarem ideias ou comunicarem o que se predispõem a mostrar. Ao meu ver, tornam-se instrumentos profundos e possíveis para se refletir sobre problemáticas muito frequentes na sociedade contemporânea e que ainda é marcada fortemente por resquícios de uma cultura que percebe o homem como gênero detentor de ditar normas, comportamentos, discursos e atitudes da mulher, sobretudo quando são cônjuges. Em contrapartida, é notório que muitos avanços já foram feitos na Sociedade, sobretudo, no que se refere aos dispositivos legais e sociais que protegem a mulher quando estão em condição de vulnerabilidade, assim como os benefícios trazidos pela sua inserção no mercado de trabalho. As reflexões e análises apontam para um recorte sobre a violência sob a perspectiva conjugal observada na relação vivenciada pelos personagens apresentados. Compreende-se que diante de qualquer perspectiva sobre a temática há uma leitura parcial desse fenômeno mas também se tem a clareza de que o desenvolvimento deste trabalho traz contribuições importantes de autores para a compreensão da questão. Referências Bibliográficas ADELMAN, Miriam et al. (orgs.) Mulheres, homens, olhares e cenas. Curitiba: Editora UFPR, 2011. ARENDT, Hannah. Crises da República. Trad. José Volkmann. São Paulo: Editora Perspectiva. 2004. p. 93-156. (Coleção Debates). BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. 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