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Revista mensal Dezembro de 1991 Preço: 750$00 Em Questão II Série Bioética — alguns aspectos Textos de Claudina Rodrigues-Pousada Algumas reflexões y João Vasconcelos Costa, Biotecnologias moleculares ▼ Zilda Carvalho, Fertilização in vitro V J. F. David-Ferreira, Fecundação artificial y Orlando Leitão, Novas tecnologias médicas ▼ José Manuel J ara, A filosofia y Guilherme Freire Falcão de Oliveira, Bioética e legislação T Alfonso L. Escobar, A morte humana mudou ▼ Documentos: «Juramento de Hipocrates» e «Declaração de Helsínquia» Em Estudo «Realidade» do consenso e verdade fabricada. Baudrillard e a guerra que nunca existiu (Christopher Norris) ▼ Ascenção da economia «clorofila» (Beja Santos) ▼ Para a história do ensino da Arquitectura (Cassiano Barbosa) Em Movimento Joaquim Namorado morreu há cinco anos Uma poética da cultura, (António Pedro Pita) T «Falsos Poemas Lógicos» e «Aviso à navegação» T Relembrar J. Namorado, (F. Sobral Henriques) O romance policial em Portugal Escritores marginais (Orlando Guerra) ▼ S. Holmes em Portugal (Joel Lima) y A literatura policiária em Fernando Pessoa (José Lança-Coelho) J. F. David-Ferreira Fecundação artificial — Reflexões sobre o progresso científico e tecnológico A história da evolução dos conhecimentos e conceitos sobre a reprodução constitui um modelo valioso não só para o estudo da dinâmica do progresso científico como da sociedade. Mankind is now confronted by two inseparable problems of awesome magniyude the uncontrolled growth of the world population and a serious shortage of food for the undernourished millions already bom and for the mil lions yet to be bom. [...] the fact remains that some 200 000 persons arc being added to the world popula tion every day 74 million new mouths to feed every year. Don W. Fawcett as ultimas 1res décadas tem-se assistido ao desen^ volvimento dc um interesse progressivo pelos estudos da reprodução. Esse interesse rcflccte-se no número dc artigos c livros publicados assim como no número dc Sociedades, Congressos e outras reuniões espccificamentc dedicadas ao estudo dc temas sobre reprodução. Esse interesse está, pelo menos cm parte, relacionado com a tomada de consciência dos perigos potenciais, sociais e económicos da explosão demográfica. Os gráficos são conhecidos e apontam para um eventual desastre (Figu ras 1 c 2). Em consequência dessa tomada dc consciência, o problema da regulação da fertilidade adquiriu um esta tuto prioritário no campo da investigação biomédica e as verbas para o estudo dos múltiplos aspectos da reprodu ção têm sido substancialmcnte reforçadas. Os benefícios têm sido múltiplos c rcalizaram-sc grandes progressos nas mais diversas áreas de conhecimento do progresso re produtivo, da biologia molecular à biologia do compor tamento. Na nossa cpoca tcm-sc igualmcnte assistido a uma mudança de atitudes cm relação aos problemas da repro dução e do sexo. Tornou-sc legítima a sua abordagem e a sua divulgação sem escândalo nos meios dc comuni cação social. Em consequência dos progressos científicos e sociológicos criaram-se nas últimas décadas os instru mentos necessários para, por um lado, controlar o cres cimento excessivo das populações e, por outro, para au mentar a produção animal. Neste último capítulo assume uma importância muito particular a chamada fecundação artificial cujos avanços tiveram reflexos cspcclacularcs não VÉRTICE 45/Dezembro 1991 23 The nature of the population problem 6000 4000 2000 B.C. AD. 2000 Figura 1: Crescimento da população mundial desde o ano 6000 a. C. Reproduzido de Short (2) Number of years for population to double Figura 2: Relação entre a taxa anual de crescimento das populações e o tempo necessário para a sua duplicação. Repro duzido de Short (2). 24 VÉRTICE 45/Dczcmbro 1991 só na melhoria quantitativa e qualitativa da produção animal como na abordagem terapêutica da esterili dade. A história da fecundação artificial é relativamente re cente. A sua prática hoje corrente, inclusive na espécie humana com fins terapêuticos, constitui um êxito espectacular da biologia que só foi possível graças aos pro gressos realizados nos últimos 100 anos em diversas áreas da ciência e da tecnologia. Podem referenciar-se como partieularmcnte importan tes, na área propriamente científica, os progressos nas ciências morfológicas — anatomia, histologia, embriolo gia e citologia — nas ciências fisiológicas e bioquímicas —particularmente o estudo das glândulas endócrinas e hor monas. Na área das tcconologias merecem referência o desenvolvimento das técnicas de microscopia e da cul tura de tecidos, os métodos de doseamento e estimula ção hormonal e as técnicas médicas de laparoscopia e ultra-sonografia. A história da evolução dos conhecimentos e concei tos sobre a reprodução constitui um modelo valioso não só para o estudo da dinâmica do progresso científico e da sociedade. O estudo dessa evolução é revelador de alguns dos exemplos mais demonstrativos das interaeções nem sempre bem compreendidas entre ciência e tecno logia. A aplicação prática dos conhecimentos da biologia da reprodução à nossa espécie é recente, mas a constru ção dos alicerces que a tornaram possível tem mais de dois mil anos. A análise deste processo é reveladora das interaeções entre ciência, tecnologia c sociedade. À medida que o conhecimento científico avança assiste-se ao des montar de crenças e tabus que durante séculos molda ram o comportamento individual c colcctivo de grandes agregados humanos. Admitem os especialistas da história da ciência (3, 4) que foi um discípulo de Hipocrates, talvez o seu gen ro Polybus, quem elaborou o corpo de conhecimentos embriológicos que figuram nos tratados hipocrálicos sobre «Rcgimcn» e «Geração». Além de muitas espe culações sobre a natureza da gestação, algumas hoje difíceis de interpretar c compreender, há ideias que se tomaram tema de debate durante séculos. Salienta mos a ideia da pré-formação, segunda a qual todas as partes do embrião se formam simultaneamente, a ideia de existência de dois «semens» o masculino e o femi nino, que era identificado com as secreções vaginais, e ainda uma teoria sobre o mecanismo do nascimen to segundo a qual este resultaria da falta de alimento do feto. Mas o fragmento da teoria desse pai anónimo da embriologia que mais impressiona c o seguinte: «Se qui serem verificar o que vos digo ponham duas ou 1res galinhas a incubar 20 ou mais ovos. A partir do segun do dia abram diariamente um ovo c examinem-no. Aquele que fizer estas observações ficará espantado em des cobrir um umbigo no ovo de um pássaro». Um século depois Aristóteles repetia a experiência, e algumas das observações que fez serviram de base para o primeiro tratado conhecido de embriologia intitulado «Sobre a Geração dos Animais». A contribuição de Aristóteles, neste como noutros capítulos da biologia, re veste-se de uma importância muito especial, não só pelo seu volume como pela influência que exerceu durante quase 20 séculos. No que se refere à geração, Aristóteles defende que o sémen masculino é uma secreção c o elemento aclivo que dá forma ao elemento plástico, a catamenia, repre sentado pela sangue menstrual. É de referir que na época prevalecia a crença, provavelmente de origem egípcia, segundo a qual só o pai era autor da gestação, a mãe simplesmente fornecia ninho c alimento para o desenvol vimento. Assenta nesta crença o tratamento benevolente dado aos prisioneiros do sexo feminino que depois das vitórias eram incorporados como concubinas. Um outro ponto importante das suas doutrinas sobre a geração é a que se refere ao desenvolvimento em brionário em que Aristóteles contrapõe à ideia da préformação dos hipocrálicos a concepção epigénica segun do a qual as diferentes partes do embrião se formariam umas após as outras. Neste capítulo da biologia, como noutros, as doutri nas de Aristóteles vão prevalecer durante séculos entre os mais letrados. Assim, ainda no século xvi, isto é, 1800 anos depois, é a concepção aristotélica sobre a geração que será representada no tratado «De Conccptu et Gcncrationc Hominis» publicado cm 1554 por Jacob Rueff (Fig. 3). Figura 3: Conceito aristotélico da concepção. Ilustrações do Tratado De Conceptus el Generations Hominis de Jacob Rueff, publicado em 1554. Reproduzido de Needham (4). VÉRTICE 45/Dezembro 1991 25 Durante o século Xlll, as doutrinas aristotélicas (forma=sémcn; maléria=calcmina) foram incorporadas por St. Tomaz de Aquino na sua «Summa Thcologica» onde se afirma tcxtualmcnte: «O poder gerador da mulher c inferior ao do homem; é como nas artes ou ofícios: os operários preparam o material mas c o mestre que lhe dá forma. São as virtudes, qualidades geradoras que fornecem a substância, mas c o produto activo do ma cho que as transforma em produto acabado.» Numa cpoca como a nossa cm que tanto se debate a legitimidade moral das chamadas mães hospedeiras é curioso assinalar como, durante muitos séculos, foi esse o estatuto atribuído pelos mais letrados a todas as mães. «Só o pai é autor da geração, a mãe simplesmente pro porciona ao feto o ninho e o alimento.» Por muito bizarras que hoje nos pareçam essas ideias elas alimentaram durante muitos séculos os preconceitos machistas manifestados nas mais diversas formas. Assim, no século xiii Albertus Magnus, de Colónia (que foi mestre de St. Tomaz), defendia que os pintos machos nasciam de vovos esféricos e as fêmeas de ovos mais alongados. A justificação para este «facto» era de que a esfera é o mais perfeito dos sólidos e o macho o mais perfeito dos sexos. Depois de Aristóteles e Galeno, c antes da Renas cença, é ainda de referir a corrente representada pelos al quimistas que acreditavam ser possível criar artificialmente um ser humano. Paracclso, cuja influência na medicina do século xv não se pode considerar desprezível, descreveu assim no seu tratado sobre a natureza das coisas a maneira de preparar um «homunculus»: «deixar putrefazer durante 40 dias num alambique o sémen de um homem. Quando o produto começar a mover e agilar-sc juntar-lhe durante 40 semanas sangue humano manten do cuidadosamente a sua temperatura. Ao fim de 40 semanas surgirá uma criança como a que nasce de uma mulher apenas muito mais pequena.» Durante o Renascimento c ulteriormente integrados no período que alguns historiadores denominam da Revolução Cientifica dois factores vão dar um novo impulso aos estudos sobre a geração. Ressurge o inte resse pelos estudos anatómicos talvez estimulados pelos interesses artísticos da época. Autorizam-se e fazem-se 26 VÉRTICE 45/Dezcmbro 1991 dissecções no corpo humano. Destes trabalhos vai resul tar a descrição pormenorizada da anatomia dos órgãos da reprodução indispensável para um melhor conhecimento das suas funções. Dá-se um avanço tecnológico impor tante — a descoberta do microscópio composto (1590) c generaliza-se a utilização do microscópio no estudo dos mais diferentes materiais. São de assinalar neste período os trabalhos de Har vey que publica em 1651 o seu tratado sobre geração dos animais «De Generationc Animalium» que tem no fron tispício o célebre aforismo “Omne vivum ex ovo”. Crê que o ovo formado no útero da mulher é totipotente e que são as influências do exterior que vão modelando sucessivamcntc (4), é pois como Aristóteles ovista e epigenista. No mesmo século o cirurgião holandês Reinier Von de Graaf (Fig 4) fez no campo anatómico uma desco berta importante, o reconhecimento do ovário, a que cha mou o testículo da fêmea (6). Durante muitos anos pensou-se que De Graaf não teria feito a identificação dos óvulos mas sim dos folículos que têm o seu nome. Estudos mais recentes da sua obra «De Mulierium Organis Generationi» sobre os órgãos de gestação da mulher, publicado em 1672, levam a pensar que De Graaf identificou não só os folículos que têm o seu nome mas também os óvulos e o líquido folicular que os rodeia. É assim que ele descreve a analogia com os ovos da galinha: “Após cozedura de ovários humanos o conteúdo folicular tinha a mesma cor, sabor e consistência que a albumina dos ovos da galinha.* E também ponto assente que De Graaf observou pela primeira vez blastocitos humanos (de 72 horas) nas trompas de Falópio. Descrcvc-os ilustrando-os no seu tratado. Um outro facto de maior importância que se passa no século xvii é a descrição no semen humano e de outras espécies animais por Leeuwenhoek e Ham de “animálculos” animados de movimento. Leeuwenhoek (6, 7) (Fig. 5) era um comerciante holandês que linha como dislracçõcs pulir lentes, construir microscópios e fazer observações que descrevia minuciosamente cm cartas que dirigia ao Secretário da Royal Society de Londres (8). Em Novembro de 1677, na sua carta número 22, descreve as observações que fez conjuntamcnlc com Ham “sobre os animálculos engendrados no esperma” assina lando a sua forma e movimentos. Na mesma carta conta que já tinha observado alguns anos antes, prccisamcntc em 24 de Abril 1674, o mes mo material a pedido de Secretário da Sociedade. A forma cuidadosa como faz c reveladora dos preconceitos da épo ca. “ O que aqui descrevo — escreve Leeuwenhoek — não é resultado de um acto pecaminoso da minha par te pois utilizei os excessos que a natureza me deu nas minhas relações conjugais. Mas se o Senhor Secretário considera o assunto repugnante ou ofensivo para letra dos sinccramcnte lhe peço que considere este assunto privado. Publique-o ou suprima-o de acordo com o seu critério.” f P-1 ci Figura 4: Rcinicr Von de Graff (1641-1673) segundo uma gravura publicada em 1677 na sua obra póstuma Opera Om nia. Reproduzido de Needham (4) Fig. 5: Antony Van Leeuwenhoek (1632-1723) segundo um retrato de J. Verkolje de 1686. Reproduzido de Dobell (8). VÉRTICE 45/Dezembro 1991 27 Se o Secretário da Royal Society tivesse muitos preconceitos sobre a observação do sémen humano não teríamos agora este elemento importante da história da ciência c talvez também a descoberta do processo repro dutor tivesse ficado adiada alguns anos. Figura 6: Desenhos de Leeuwenhoek (1679) de esperma tozóides humanos (1 a 4) e do cão (5 a 8) x 200. Reproduzi do de Hughes (7). As observações c descrições microscópicas de Leeu wenhoek e Ham vão ser respetidas nos mais diversos ma teriais (Fig. 6). Vão alimentar muita especulação c dar origem a um longo debate entre ovistas c espermatistas. Também a teoria da pré-formação toma um novo alento. São numerosas as descrições fantásticas da época que dão conta dos voos sem limites da imaginação. A elas se refere Celestino da Costa da seguinte forma: “ Dcscrevcram-se os espermatozóides com forma humana, cm forma de cavalo e outros animais e publicaram-se figuras conten do todos os pormenores morfológicos sem esquecer a barba c os capuchos... Andry historia mesmo a seu modo a fecundação. Descreve a competição dos espermatozóides esforçando-se por penetrar no ovo por um orifício, uma 28 VÉRTICE 45/Dczembro 1991 espécie de alçapão com tampa... Se por acaso vários espermatozóides penetram no mesmo ovo, lutam entre si até que um fique vencedor, não sem que um tenha per dido na batalha um membro ou um olho ou sofrido qualquer outra mutilação. Teríamos assim explicada a génese das monstruosidades!” Deste período ficarão célebres as representações do “humunculus” de Harlsoekcr (Fig. 7) e os desenhos de Dolcnpalius (Fig. 8). Enfim, talvez pela qualidade dos microscópios não ser muito boa cada um interpretava o que via, como queria e até ao século xvm pouco se progrediu. Em 1758 o cientista russo Caspar Wolff (4) refuta as observações de Malpighi que dizia ter observado pintos cm miniatura nos ovos em desenvolvimento c faz revi ver a teoria da epigénese. Da mesma época são de salientar os estudos (6) de Lazaro Spallanzani (1729-1798) que cm 1780, isto é, um século depois da descrição dos espermatozóides por Leeu wenhoek tenta com uma série de experiências muito engenhosas, demonstrar qual a porção do sémen activa, se o seu vapor (Porção líquida) se a parte sólida. Na concavidade de um vidro de relógio colocou o sémen de vários sapos c noutro 26 ovos que faz aderir ao vidro pela sua porção gelatinosa. Depois sobrepôs o recipiente contendo os ovos ao que continha o sémen e expôs o conjunto ao sol de forma manter uma temperatura não superior a 25 'C. Ao fim de quatro horas vcrificou-sc que, apesar de os ovos estarem cobertos com pequenas gotículas evaporadas do sémen, não se observa qualquer desenvol vimento. Numa outra experiência misturou os ovos num mes mo recipiente com o resíduo humidificado do sémen uti lizado na experiência anterior. Nestas condições obser vou o desenvolvimento de girinos. Ainda numa outra série de experiências, cm que filtrou de várias formas água contendo uma suspensão de espermatozóides, verificou que a filtração fazia diminuir nitidamente a capacidade fecundante do esperma podendo mesmo suprimi-la complctamcnte. Pois apesar dos resultados destas expe riências Spallanzani, que era um ovista convicto, recu sou-se a admitir que os espermatozóides tivessem qual quer papel na fecundação. Só muito mais tarde, em 1827, Prévost e Dumas rcpclcm as experiências de Spallan zani c concluem que o poder fecundante do sémen resi dia de facto na sua porção sólida, isto c, nos esperma tozóides c não na sua porção liquida ou vapor (aura seminalis). Spallanzani, que linha o génio de um grande expe rimentador, ficará na história da biologia não pela sua teimosia como “ovista” mas por ter confirmado as ex periências do seu compatriota Francesco Redi sobre a geração espontânea c também porque foi o primeiro a realizar uma inseminação artificial no cão. No que já dissemos, resumimos cm traços muitos largos a história de dois mil anos de tentativas para compreender o processo de geração. Período recheado de acontecimentos que hoje nos fazem sorrir. Mas a ciên cia e a tecnologia vão entrar num período de progresso acelerado e cm pouco mais de um século vão ser lança das, em termos de conhecimento científico, as bases que vão permitir os sucessos tecnológicos a que hoje estamos a assistir. Dois acontecimentos, aliás interligados, vão ter uma influência decisiva do progresso nesta área. Um de na tureza tecnológica, a construção das lentes acromáticas, que permitiu a construção de microscópios de melhor qua lidade, e outro de natureza conceptual, a teoria celular, cujo impacte, nos conhecimentos biológicos será tremen do. As descobertas succdem-sc. O estoniano Von Baucr (4) observa e descreve em 1827 o óvulo dos mamíferos. Em 1867 Kolliker defende a natureza celular dos esper matozóides c demonstra a sua formação no testículo. Em 1875 Oskar Hcrtwig descreve a fertilização cm várias es pécies animais. Estes resultados c muitos outros que os confirmam c alargam permitem finalmcntc compreender nos seus traços essenciais lodo o processo de fecunda ção. É o fim dos “ovistas”, “espermatistas” e da teoria da pré-formação. Uma outra série de acontecimentos da maior impor tância terá ainda lugar antes do final do século. Em 1890 Walter Hcapc (Fig. 9), que hoje é reconhecido como o homem que lançou os fundamentos científicos da pecuária moderna e o patrono da transferência de embriões, rea- Figura 7: Espermatozóide humano segundo a concepção de Hartsoeker. Reproduzido de Needham (4) Figura 8: Espermatozóides humanos segundo Hartsoeker. Reproduzido de Needham Reproduzido de Needham (4). VÉRTICE 45/Dezembro 1991 29 Figura 9: Walter Hcapc (1855-1929). Fotografia que acom panha a notícia da sua morte por F. H. A. Marshall. Repro duzido de Bettcridgc (10). 30 VÉRTICE 45/Dczcmbro 1991 lizou no coelho uma experiência que ficou históri ca (10). Os objcctivos dessa experiência eram investigar qual a influência do meio uterino sobre o fenótipo embrionário e se o desenvolvimento simultâneo de em briões de paternidades diferentes podia provocar modifi cações recíprocas nos seus fenótipos. No fundo destas questões estava uma ideia antiga de que a descendência de um macho podia cventualmente influenciar subsequen tes descendências de uma fêmea, o chamado fenómeno da tclegonia. Do cruzamento de dois coelhos Angorá, Heape ob teve por lavagem uterina da fêmea dois embriões que seguidamente transferiu para uma lebre Belga que tinha sido coberta horas antes por um animal da mesma raça. Dos seis animais resultantes dois eram coelhos Angorás com as características fcnotípicas próprias. Alem dos objcctivos da experiência, Hcapc conseguiu demons trar pela primeira vez: 1) a possibilidade de recuperar por lavagem embriões no estádio de pré-implantação; 2) a possibilidade de os transferir para uma mãe hospedei ra sem interromper o seu desenvolvimento. Pode dizerse que com uma cajadada matou dois coelhos. As experiências de Heape tiveram um efeito estimu lante nos investigadores interessados na cultura labora torial de embriões e assim, a partir de 1907, após os primeiros sucessos na cultura de células nervosas, por Ross e Harrison, succdcm-se as tentativas c são experi mentados os mais diversos meios de cultura, mas só cm 1949 são alcançados alguns êxitos por J. Hammond que consegue, com meios de cultura bastante complexos, obter o desenvolvimento de blastocistos a partir de embriões com oito blastómeros. Na década de 50 Whitten demonstra que os mesmos resultados se podem obter com meios de cultura mais simples e cm 1958 Mclaren e Biggcrs, utilizando o meio de cultura de Whitten c a técnica de transferência de Heape, obtêm, a partir de embriões com 8 blastómeros, embriões de ratinho no estádio de blastocisto que trans ferem para mães hospedeiras onde eles se desenvolverão normalmcntc. Assim, no que se refere à fertilização “in vitro” com gametas de mamíferos, só após 80 anos de tentativa de 1878 a 1958) se conseguem os primei ros resultados. Inicialmcntc pensava-se que era suficiente juntar espermatozóides e óvulos num meio adequado para se conseguir a fertilização c foram muitas vezes inter pretados como sucessos fenómenos de fragmentação ou resultados de partogénesc. Em 1951 Chang nos Estados Unidos e Austin na Inglaterra descobrem o fenómeno da capacitação ('*). Para que um espermatozóide penetre no óvulo tem que sofrer previamente uma série de modificações (cujo mecanismo não está ainda totalmcnte conhecido) de que resulta a activação dos seus movimentos c a libertação dos enzimas responsáveis pela dissolução de um dos invólucros do óvulo. Conhecido este fenómeno, esta vam explicados os insucessos c identificado um dos obstáculos a ultrapassar para ter sucesso na fertilização “in vitro”. Em 1959 Chang obtém a partir de ovos fertilizados “in vitro” embriões que transfere para mães hospedeiras. Teve obviamente o cuidado de nas suas experiências utilizar espermatozóides de machos com traços genéticos específicos não presentes nos animais dadores dos ovos. O desenvolvimento destas c de outras experiências, que revolucionaram os nossos conhecimentos sobre a re produção e permitem a sua utilização prática, só foram porem possíveis porque durante a primeira metade do scculo XX foram elaborados, a partir da observação c da experiência, os conceitos indispensáveis para a compreen são dos fenómenos hormonais relacionados com a repro dução. Além da descoberta das funções cndócrinas das gónadas c da identificação das hormonas nelas produzi das dcscobrcm-se as suas relações com a hipófise. Identificam-se no soro e urina de fêmeas grávidas os cstrogénios e as gona dotrofinas. Estabclcccm-se métodos progressivamente mais sofisticados para o seu doseamen to. Utilizam-se hormonas para induzir a supcrovolução e o método é aplicado para a realização da fertilização “in vitro”. Finalmenic dominam-se todos os passos do processo da obtenção dos gametas à transferência de em briões preparados “in vitro”. Em 1952 é obtido o primeiro vitelo Frosty I (Fig. 10) nascido de uma inseminação artificial com sé men previamente congelado a -70 °C c cm 1973 o pri meiro vitelo (Frosty II) (Fig. 11) resultante da transfe rencia de um embrião que esteve previamente congela do a - 196 ’C. A produção animal entrou assim dccididamente na época industrial (12-14). No que se refere à espécie humana foi ainda ne cessário a adaptação de muitos dos conhecimentos obti dos no laboratório com várias espécies animais, assim como a introdução de metodologias mais apropriadas; refiram-se, entre outras, a laparoscopia e as técnicas para monotorização do status cndocrinológico. Quando cm 25 de Julho de 1978 Robert Edwards c Patrick Steptoe anunciaram o nascimento de Louise Brown, a surpresa dos cientistas foi sobretudo pelo ar rojo de que deram provas. As bases científicas c tec nológicas para a sua realização eram conhecidas desde os finais da década de sessenta. Só era preciso prepara ção c arrojo para as levar a cabo na espécie humana. Entre outros tiveram esse mérito. Passados oito anos a sua realização já faz parle do trivial quotidiano. Há mais de 5 000 anos (3 000 a.c — Império An tigo), provavelmente no Egipto, foi pela primeira vez posta em prática a técnica de incubação artificial de ovos de aves. A descoberta empírica de que a partir de um ovo era possível promover o desenvolvimento de uma ave c Figura 10: Frosty /, o primeiro vitelo nascido após inse minação artificial com sémen de boi conservado por congela ção a - 70 1 C. Reproduzido de Fawcett. ('). VÉRTICE 45/Dczembro 1991 31 utilizadas na alimentação, já permitiu por um lado aumentar a produção de carne e de leite e por outro constitui globalmcntc uma das bases experimentais cm que assentam as técnicas de fertilização “in vitro” e transfe rência de embriões humanos. Quais as consequências da sua aplicação na espécie humana? No imediato, para além de constituírem a so lução terapêutica de alguns casos de infertilidade, as novas tecnologias têm dado origem a muita controvérsia e a uma saudável reflexão sobre as interaeções entre a Ciência e a Sociedade. Embora sejam possíveis muitas especulações, optimistas ou pessimistas, é difícil, se não impossível, avaliar objcclivamentc as consequências de acontecimen tos tão próximos. Só podemos desejar que as novas des cobertas c realizações sejam, como tem acontecido até hoje nesta área da Ciência, uma fonte inspiradora para novos avanços do conhecimento c de novos benefícios para a Humanidade. Bibliografia Figura 11 : Frosty II, o primeiro vitelo nascido em conse quência da implantação numa mãe hospedeira de um blastocisto que foi previamente mantido congelado a - 196 9 C. A mãe hospedeira c negra e o vitelo da raça Hereford. Repro duzido de Fawcett (l). a exploração desta descoberta ao longo de séculos, ate à versão moderna dos nossos aviários, teve consequên cias. Não só permitiu alimentar muitas bocas, c muita especulação, como constituiu um contributo importante para o progresso da ciência, cm particular da embriolo gia. A mais recente aplicação das técnicas da fertilização “in vitro”, transferência c congclamcnto de embriões, só foi possível após o desenvolvimento lento c progressivo da Ciência c a aplicação sistemática do método científico. Este progresso também já teve consequências. A sua prática, hoje corrente cm muitas espécies tradicionalmcntc 32 VÉRTICE 45/Dc7.cmbro 1991 (’) Fawcclt, D. 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