herefords miniatura para venda

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herefords miniatura para venda
Revista mensal Dezembro de 1991 Preço: 750$00
Em Questão
II Série
Bioética — alguns aspectos
Textos de Claudina Rodrigues-Pousada Algumas reflexões y João
Vasconcelos Costa, Biotecnologias moleculares ▼ Zilda Carvalho,
Fertilização in vitro V J. F. David-Ferreira, Fecundação artificial
y Orlando Leitão, Novas tecnologias médicas ▼ José Manuel J ara,
A filosofia y Guilherme Freire Falcão de Oliveira, Bioética
e legislação T Alfonso L. Escobar, A morte humana mudou ▼
Documentos: «Juramento de Hipocrates» e «Declaração de Helsínquia»
Em Estudo
«Realidade» do consenso e verdade fabricada. Baudrillard e a guerra que
nunca existiu (Christopher Norris) ▼ Ascenção da economia «clorofila»
(Beja Santos) ▼ Para a história do ensino da Arquitectura
(Cassiano Barbosa)
Em Movimento
Joaquim Namorado morreu há cinco anos
Uma poética da cultura, (António Pedro Pita) T «Falsos Poemas
Lógicos» e «Aviso à navegação» T Relembrar J. Namorado,
(F. Sobral Henriques)
O romance policial em Portugal
Escritores marginais (Orlando Guerra) ▼ S. Holmes em Portugal (Joel
Lima) y A literatura policiária em Fernando Pessoa (José Lança-Coelho)
J. F. David-Ferreira
Fecundação artificial
— Reflexões sobre o progresso
científico e tecnológico
A história da evolução
dos conhecimentos e conceitos sobre
a reprodução constitui um modelo
valioso não só para o estudo
da dinâmica do progresso científico
como da sociedade.
Mankind is now confronted by two inseparable problems
of awesome magniyude the uncontrolled growth of the
world population and a serious shortage of food for the
undernourished millions already bom and for the mil­
lions yet to be bom. [...] the fact remains that some
200 000 persons arc being added to the world popula­
tion every day 74 million new mouths to feed every
year.
Don W. Fawcett
as ultimas 1res décadas tem-se assistido ao desen^ volvimento dc um interesse progressivo pelos
estudos da reprodução. Esse interesse rcflccte-se no número
dc artigos c livros publicados assim como no número dc
Sociedades, Congressos e outras reuniões espccificamentc
dedicadas ao estudo dc temas sobre reprodução. Esse
interesse está, pelo menos cm parte, relacionado com a
tomada de consciência dos perigos potenciais, sociais e
económicos da explosão demográfica. Os gráficos são
conhecidos e apontam para um eventual desastre (Figu­
ras 1 c 2).
Em consequência dessa tomada dc consciência, o
problema da regulação da fertilidade adquiriu um esta­
tuto prioritário no campo da investigação biomédica e as
verbas para o estudo dos múltiplos aspectos da reprodu­
ção têm sido substancialmcnte reforçadas. Os benefícios
têm sido múltiplos c rcalizaram-sc grandes progressos nas
mais diversas áreas de conhecimento do progresso re­
produtivo, da biologia molecular à biologia do compor­
tamento.
Na nossa cpoca tcm-sc igualmcnte assistido a uma
mudança de atitudes cm relação aos problemas da repro­
dução e do sexo. Tornou-sc legítima a sua abordagem e
a sua divulgação sem escândalo nos meios dc comuni­
cação social. Em consequência dos progressos científicos
e sociológicos criaram-se nas últimas décadas os instru­
mentos necessários para, por um lado, controlar o cres­
cimento excessivo das populações e, por outro, para au­
mentar a produção animal. Neste último capítulo assume
uma importância muito particular a chamada fecundação
artificial cujos avanços tiveram reflexos cspcclacularcs não
VÉRTICE 45/Dezembro 1991
23
The nature of the population problem
6000
4000
2000
B.C. AD.
2000
Figura 1: Crescimento da população mundial desde o ano
6000 a. C. Reproduzido de Short (2)
Number of years for population to double
Figura 2: Relação entre a taxa anual de crescimento das
populações e o tempo necessário para a sua duplicação. Repro­
duzido de Short (2).
24
VÉRTICE 45/Dczcmbro 1991
só na melhoria quantitativa e qualitativa da produção
animal como na abordagem terapêutica da esterili­
dade.
A história da fecundação artificial é relativamente re­
cente. A sua prática hoje corrente, inclusive na espécie
humana com fins terapêuticos, constitui um êxito espectacular da biologia que só foi possível graças aos pro­
gressos realizados nos últimos 100 anos em diversas áreas
da ciência e da tecnologia.
Podem referenciar-se como partieularmcnte importan­
tes, na área propriamente científica, os progressos nas
ciências morfológicas — anatomia, histologia, embriolo­
gia e citologia — nas ciências fisiológicas e bioquímicas
—particularmente o estudo das glândulas endócrinas e hor­
monas. Na área das tcconologias merecem referência o
desenvolvimento das técnicas de microscopia e da cul­
tura de tecidos, os métodos de doseamento e estimula­
ção hormonal e as técnicas médicas de laparoscopia e
ultra-sonografia.
A história da evolução dos conhecimentos e concei­
tos sobre a reprodução constitui um modelo valioso não
só para o estudo da dinâmica do progresso científico e
da sociedade. O estudo dessa evolução é revelador de
alguns dos exemplos mais demonstrativos das interaeções
nem sempre bem compreendidas entre ciência e tecno­
logia.
A aplicação prática dos conhecimentos da biologia
da reprodução à nossa espécie é recente, mas a constru­
ção dos alicerces que a tornaram possível tem mais de
dois mil anos. A análise deste processo é reveladora das
interaeções entre ciência, tecnologia c sociedade. À medida
que o conhecimento científico avança assiste-se ao des­
montar de crenças e tabus que durante séculos molda­
ram o comportamento individual c colcctivo de grandes
agregados humanos.
Admitem os especialistas da história da ciência (3, 4)
que foi um discípulo de Hipocrates, talvez o seu gen­
ro Polybus, quem elaborou o corpo de conhecimentos
embriológicos que figuram nos tratados hipocrálicos
sobre «Rcgimcn» e «Geração». Além de muitas espe­
culações sobre a natureza da gestação, algumas hoje
difíceis de interpretar c compreender, há ideias que
se tomaram tema de debate durante séculos. Salienta­
mos a ideia da pré-formação, segunda a qual todas as
partes do embrião se formam simultaneamente, a ideia
de existência de dois «semens» o masculino e o femi­
nino, que era identificado com as secreções vaginais,
e ainda uma teoria sobre o mecanismo do nascimen­
to segundo a qual este resultaria da falta de alimento do
feto.
Mas o fragmento da teoria desse pai anónimo da
embriologia que mais impressiona c o seguinte: «Se qui­
serem verificar o que vos digo ponham duas ou 1res
galinhas a incubar 20 ou mais ovos. A partir do segun­
do dia abram diariamente um ovo c examinem-no. Aquele
que fizer estas observações ficará espantado em des­
cobrir um umbigo no ovo de um pássaro».
Um século depois Aristóteles repetia a experiência,
e algumas das observações que fez serviram de base para
o primeiro tratado conhecido de embriologia intitulado
«Sobre a Geração dos Animais». A contribuição de
Aristóteles, neste como noutros capítulos da biologia, re­
veste-se de uma importância muito especial, não só pelo
seu volume como pela influência que exerceu durante
quase 20 séculos.
No que se refere à geração, Aristóteles defende que
o sémen masculino é uma secreção c o elemento aclivo
que dá forma ao elemento plástico, a catamenia, repre­
sentado pela sangue menstrual. É de referir que na época
prevalecia a crença, provavelmente de origem egípcia,
segundo a qual só o pai era autor da gestação, a mãe
simplesmente fornecia ninho c alimento para o desenvol­
vimento. Assenta nesta crença o tratamento benevolente
dado aos prisioneiros do sexo feminino que depois das
vitórias eram incorporados como concubinas.
Um outro ponto importante das suas doutrinas sobre
a geração é a que se refere ao desenvolvimento em­
brionário em que Aristóteles contrapõe à ideia da préformação dos hipocrálicos a concepção epigénica segun­
do a qual as diferentes partes do embrião se formariam
umas após as outras.
Neste capítulo da biologia, como noutros, as doutri­
nas de Aristóteles vão prevalecer durante séculos entre
os mais letrados. Assim, ainda no século xvi, isto é, 1800
anos depois, é a concepção aristotélica sobre a geração
que será representada no tratado «De Conccptu et
Gcncrationc Hominis» publicado cm 1554 por Jacob Rueff
(Fig. 3).
Figura 3: Conceito aristotélico da concepção. Ilustrações
do Tratado De Conceptus el Generations Hominis de Jacob
Rueff, publicado em 1554. Reproduzido de Needham (4).
VÉRTICE 45/Dezembro 1991
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Durante o século Xlll, as doutrinas aristotélicas
(forma=sémcn; maléria=calcmina) foram incorporadas por
St. Tomaz de Aquino na sua «Summa Thcologica» onde
se afirma tcxtualmcnte: «O poder gerador da mulher c
inferior ao do homem; é como nas artes ou ofícios: os
operários preparam o material mas c o mestre que lhe
dá forma. São as virtudes, qualidades geradoras que
fornecem a substância, mas c o produto activo do ma­
cho que as transforma em produto acabado.»
Numa cpoca como a nossa cm que tanto se debate
a legitimidade moral das chamadas mães hospedeiras é
curioso assinalar como, durante muitos séculos, foi esse
o estatuto atribuído pelos mais letrados a todas as mães.
«Só o pai é autor da geração, a mãe simplesmente pro­
porciona ao feto o ninho e o alimento.»
Por muito bizarras que hoje nos pareçam essas ideias
elas alimentaram durante muitos séculos os preconceitos
machistas manifestados nas mais diversas formas. Assim,
no século xiii Albertus Magnus, de Colónia (que foi mestre
de St. Tomaz), defendia que os pintos machos nasciam
de vovos esféricos e as fêmeas de ovos mais alongados.
A justificação para este «facto» era de que a esfera é o
mais perfeito dos sólidos e o macho o mais perfeito dos
sexos.
Depois de Aristóteles e Galeno, c antes da Renas­
cença, é ainda de referir a corrente representada pelos al­
quimistas que acreditavam ser possível criar artificialmente um ser humano. Paracclso, cuja influência na
medicina do século xv não se pode considerar desprezível,
descreveu assim no seu tratado sobre a natureza das coisas
a maneira de preparar um «homunculus»: «deixar putrefazer durante 40 dias num alambique o sémen de um
homem. Quando o produto começar a mover e agilar-sc
juntar-lhe durante 40 semanas sangue humano manten­
do cuidadosamente a sua temperatura. Ao fim de 40
semanas surgirá uma criança como a que nasce de uma
mulher apenas muito mais pequena.»
Durante o Renascimento c ulteriormente integrados
no período que alguns historiadores denominam da
Revolução Cientifica dois factores vão dar um novo
impulso aos estudos sobre a geração. Ressurge o inte­
resse pelos estudos anatómicos talvez estimulados pelos
interesses artísticos da época. Autorizam-se e fazem-se
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VÉRTICE 45/Dezcmbro 1991
dissecções no corpo humano. Destes trabalhos vai resul­
tar a descrição pormenorizada da anatomia dos órgãos da
reprodução indispensável para um melhor conhecimento
das suas funções. Dá-se um avanço tecnológico impor­
tante — a descoberta do microscópio composto (1590)
c generaliza-se a utilização do microscópio no estudo dos
mais diferentes materiais.
São de assinalar neste período os trabalhos de Har­
vey que publica em 1651 o seu tratado sobre geração dos
animais «De Generationc Animalium» que tem no fron­
tispício o célebre aforismo “Omne vivum ex ovo”. Crê
que o ovo formado no útero da mulher é totipotente e
que são as influências do exterior que vão modelando sucessivamcntc (4), é pois como Aristóteles ovista e epigenista.
No mesmo século o cirurgião holandês Reinier Von
de Graaf (Fig 4) fez no campo anatómico uma desco­
berta importante, o reconhecimento do ovário, a que cha­
mou o testículo da fêmea (6). Durante muitos anos pensou-se que De Graaf não teria feito a identificação dos óvulos
mas sim dos folículos que têm o seu nome. Estudos mais
recentes da sua obra «De Mulierium Organis Generationi» sobre os órgãos de gestação da mulher, publicado em
1672, levam a pensar que De Graaf identificou não só
os folículos que têm o seu nome mas também os óvulos
e o líquido folicular que os rodeia. É assim que ele
descreve a analogia com os ovos da galinha: “Após
cozedura de ovários humanos o conteúdo folicular tinha
a mesma cor, sabor e consistência que a albumina dos
ovos da galinha.* E também ponto assente que De Graaf
observou pela primeira vez blastocitos humanos (de 72
horas) nas trompas de Falópio. Descrcvc-os ilustrando-os no seu tratado.
Um outro facto de maior importância que se passa
no século xvii é a descrição no semen humano e de outras
espécies animais por Leeuwenhoek e Ham de
“animálculos” animados de movimento. Leeuwenhoek (6,
7) (Fig. 5) era um comerciante holandês que linha como
dislracçõcs pulir lentes, construir microscópios e fazer
observações que descrevia minuciosamente cm cartas que
dirigia ao Secretário da Royal Society de Londres (8).
Em Novembro de 1677, na sua carta número 22,
descreve as observações que fez conjuntamcnlc com Ham
“sobre os animálculos engendrados no esperma” assina­
lando a sua forma e movimentos.
Na mesma carta conta que já tinha observado alguns
anos antes, prccisamcntc em 24 de Abril 1674, o mes­
mo material a pedido de Secretário da Sociedade. A forma
cuidadosa como faz c reveladora dos preconceitos da épo­
ca. “ O que aqui descrevo — escreve Leeuwenhoek —
não é resultado de um acto pecaminoso da minha par­
te pois utilizei os excessos que a natureza me deu nas
minhas relações conjugais. Mas se o Senhor Secretário
considera o assunto repugnante ou ofensivo para letra­
dos sinccramcnte lhe peço que considere este assunto
privado. Publique-o ou suprima-o de acordo com o seu
critério.”
f P-1 ci
Figura 4: Rcinicr Von de Graff (1641-1673) segundo uma
gravura publicada em 1677 na sua obra póstuma Opera Om­
nia. Reproduzido de Needham (4)
Fig. 5: Antony Van Leeuwenhoek (1632-1723) segundo um
retrato de J. Verkolje de 1686. Reproduzido de Dobell (8).
VÉRTICE 45/Dezembro 1991
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Se o Secretário da Royal Society tivesse muitos
preconceitos sobre a observação do sémen humano não
teríamos agora este elemento importante da história da
ciência c talvez também a descoberta do processo repro­
dutor tivesse ficado adiada alguns anos.
Figura 6: Desenhos de Leeuwenhoek (1679) de esperma­
tozóides humanos (1 a 4) e do cão (5 a 8) x 200. Reproduzi­
do de Hughes (7).
As observações c descrições microscópicas de Leeu­
wenhoek e Ham vão ser respetidas nos mais diversos ma­
teriais (Fig. 6). Vão alimentar muita especulação c dar
origem a um longo debate entre ovistas c espermatistas.
Também a teoria da pré-formação toma um novo alento.
São numerosas as descrições fantásticas da época que dão
conta dos voos sem limites da imaginação. A elas se refere
Celestino da Costa da seguinte forma: “ Dcscrevcram-se
os espermatozóides com forma humana, cm forma de
cavalo e outros animais e publicaram-se figuras conten­
do todos os pormenores morfológicos sem esquecer a
barba c os capuchos... Andry historia mesmo a seu modo
a fecundação. Descreve a competição dos espermatozóides
esforçando-se por penetrar no ovo por um orifício, uma
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VÉRTICE 45/Dczembro 1991
espécie de alçapão com tampa... Se por acaso vários
espermatozóides penetram no mesmo ovo, lutam entre si
até que um fique vencedor, não sem que um tenha per­
dido na batalha um membro ou um olho ou sofrido
qualquer outra mutilação. Teríamos assim explicada a
génese das monstruosidades!”
Deste período ficarão célebres as representações do
“humunculus” de Harlsoekcr (Fig. 7) e os desenhos de
Dolcnpalius (Fig. 8). Enfim, talvez pela qualidade dos
microscópios não ser muito boa cada um interpretava o
que via, como queria e até ao século xvm pouco se
progrediu.
Em 1758 o cientista russo Caspar Wolff (4) refuta as
observações de Malpighi que dizia ter observado pintos
cm miniatura nos ovos em desenvolvimento c faz revi­
ver a teoria da epigénese.
Da mesma época são de salientar os estudos (6) de
Lazaro Spallanzani (1729-1798) que cm 1780, isto é, um
século depois da descrição dos espermatozóides por Leeu­
wenhoek tenta com uma série de experiências muito
engenhosas, demonstrar qual a porção do sémen activa,
se o seu vapor (Porção líquida) se a parte sólida. Na
concavidade de um vidro de relógio colocou o sémen de
vários sapos c noutro 26 ovos que faz aderir ao vidro
pela sua porção gelatinosa. Depois sobrepôs o recipiente
contendo os ovos ao que continha o sémen e expôs o
conjunto ao sol de forma manter uma temperatura não
superior a 25 'C. Ao fim de quatro horas vcrificou-sc que,
apesar de os ovos estarem cobertos com pequenas gotículas
evaporadas do sémen, não se observa qualquer desenvol­
vimento.
Numa outra experiência misturou os ovos num mes­
mo recipiente com o resíduo humidificado do sémen uti­
lizado na experiência anterior. Nestas condições obser­
vou o desenvolvimento de girinos. Ainda numa outra
série de experiências, cm que filtrou de várias formas água
contendo uma suspensão de espermatozóides, verificou
que a filtração fazia diminuir nitidamente a capacidade
fecundante do esperma podendo mesmo suprimi-la
complctamcnte. Pois apesar dos resultados destas expe­
riências Spallanzani, que era um ovista convicto, recu­
sou-se a admitir que os espermatozóides tivessem qual­
quer papel na fecundação. Só muito mais tarde, em 1827,
Prévost e Dumas rcpclcm as experiências de Spallan­
zani c concluem que o poder fecundante do sémen resi­
dia de facto na sua porção sólida, isto c, nos esperma­
tozóides c não na sua porção liquida ou vapor (aura seminalis).
Spallanzani, que linha o génio de um grande expe­
rimentador, ficará na história da biologia não pela sua
teimosia como “ovista” mas por ter confirmado as ex­
periências do seu compatriota Francesco Redi sobre a
geração espontânea c também porque foi o primeiro a
realizar uma inseminação artificial no cão.
No que já dissemos, resumimos cm traços muitos
largos a história de dois mil anos de tentativas para
compreender o processo de geração. Período recheado de
acontecimentos que hoje nos fazem sorrir. Mas a ciên­
cia e a tecnologia vão entrar num período de progresso
acelerado e cm pouco mais de um século vão ser lança­
das, em termos de conhecimento científico, as bases que
vão permitir os sucessos tecnológicos a que hoje estamos
a assistir.
Dois acontecimentos, aliás interligados, vão ter uma
influência decisiva do progresso nesta área. Um de na­
tureza tecnológica, a construção das lentes acromáticas,
que permitiu a construção de microscópios de melhor qua­
lidade, e outro de natureza conceptual, a teoria celular,
cujo impacte, nos conhecimentos biológicos será tremen­
do. As descobertas succdem-sc. O estoniano Von Baucr
(4) observa e descreve em 1827 o óvulo dos mamíferos.
Em 1867 Kolliker defende a natureza celular dos esper­
matozóides c demonstra a sua formação no testículo. Em
1875 Oskar Hcrtwig descreve a fertilização cm várias es­
pécies animais. Estes resultados c muitos outros que os
confirmam c alargam permitem finalmcntc compreender
nos seus traços essenciais lodo o processo de fecunda­
ção. É o fim dos “ovistas”, “espermatistas” e da teoria
da pré-formação.
Uma outra série de acontecimentos da maior impor­
tância terá ainda lugar antes do final do século. Em 1890
Walter Hcapc (Fig. 9), que hoje é reconhecido como o
homem que lançou os fundamentos científicos da pecuária
moderna e o patrono da transferência de embriões, rea-
Figura 7: Espermatozóide humano segundo a concepção de
Hartsoeker. Reproduzido de Needham (4)
Figura 8: Espermatozóides humanos segundo Hartsoeker.
Reproduzido de Needham Reproduzido de Needham (4).
VÉRTICE 45/Dezembro 1991
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Figura 9: Walter Hcapc (1855-1929). Fotografia que acom­
panha a notícia da sua morte por F. H. A. Marshall. Repro­
duzido de Bettcridgc (10).
30
VÉRTICE 45/Dczcmbro 1991
lizou no coelho uma experiência que ficou históri­
ca (10). Os objcctivos dessa experiência eram investigar
qual a influência do meio uterino sobre o fenótipo
embrionário e se o desenvolvimento simultâneo de em­
briões de paternidades diferentes podia provocar modifi­
cações recíprocas nos seus fenótipos. No fundo destas
questões estava uma ideia antiga de que a descendência
de um macho podia cventualmente influenciar subsequen­
tes descendências de uma fêmea, o chamado fenómeno
da tclegonia.
Do cruzamento de dois coelhos Angorá, Heape ob­
teve por lavagem uterina da fêmea dois embriões que
seguidamente transferiu para uma lebre Belga que tinha
sido coberta horas antes por um animal da mesma
raça. Dos seis animais resultantes dois eram coelhos
Angorás com as características fcnotípicas próprias. Alem
dos objcctivos da experiência, Hcapc conseguiu demons­
trar pela primeira vez: 1) a possibilidade de recuperar
por lavagem embriões no estádio de pré-implantação; 2)
a possibilidade de os transferir para uma mãe hospedei­
ra sem interromper o seu desenvolvimento. Pode dizerse que com uma cajadada matou dois coelhos.
As experiências de Heape tiveram um efeito estimu­
lante nos investigadores interessados na cultura labora­
torial de embriões e assim, a partir de 1907, após os
primeiros sucessos na cultura de células nervosas, por
Ross e Harrison, succdcm-se as tentativas c são experi­
mentados os mais diversos meios de cultura, mas só cm
1949 são alcançados alguns êxitos por J. Hammond que
consegue, com meios de cultura bastante complexos, obter
o desenvolvimento de blastocistos a partir de embriões
com oito blastómeros.
Na década de 50 Whitten demonstra que os mesmos
resultados se podem obter com meios de cultura mais
simples e cm 1958 Mclaren e Biggcrs, utilizando o meio
de cultura de Whitten c a técnica de transferência
de Heape, obtêm, a partir de embriões com 8 blastómeros,
embriões de ratinho no estádio de blastocisto que trans­
ferem para mães hospedeiras onde eles se desenvolverão
normalmcntc. Assim, no que se refere à fertilização
“in vitro” com gametas de mamíferos, só após 80 anos
de tentativa de 1878 a 1958) se conseguem os primei­
ros resultados. Inicialmcntc pensava-se que era suficiente
juntar espermatozóides e óvulos num meio adequado para
se conseguir a fertilização c foram muitas vezes inter­
pretados como sucessos fenómenos de fragmentação ou
resultados de partogénesc.
Em 1951 Chang nos Estados Unidos e Austin
na Inglaterra descobrem o fenómeno da capacitação ('*).
Para que um espermatozóide penetre no óvulo tem que
sofrer previamente uma série de modificações (cujo
mecanismo não está ainda totalmcnte conhecido) de que
resulta a activação dos seus movimentos c a libertação
dos enzimas responsáveis pela dissolução de um dos
invólucros do óvulo. Conhecido este fenómeno, esta­
vam explicados os insucessos c identificado um dos
obstáculos a ultrapassar para ter sucesso na fertilização
“in vitro”.
Em 1959 Chang obtém a partir de ovos fertilizados
“in vitro” embriões que transfere para mães hospedeiras.
Teve obviamente o cuidado de nas suas experiências
utilizar espermatozóides de machos com traços genéticos
específicos não presentes nos animais dadores dos ovos.
O desenvolvimento destas c de outras experiências,
que revolucionaram os nossos conhecimentos sobre a re­
produção e permitem a sua utilização prática, só foram
porem possíveis porque durante a primeira metade do
scculo XX foram elaborados, a partir da observação c da
experiência, os conceitos indispensáveis para a compreen­
são dos fenómenos hormonais relacionados com a repro­
dução. Além da descoberta das funções cndócrinas das
gónadas c da identificação das hormonas nelas produzi­
das dcscobrcm-se as suas relações com a hipófise.
Identificam-se no soro e urina de fêmeas grávidas os cstrogénios e as gona dotrofinas. Estabclcccm-se métodos
progressivamente mais sofisticados para o seu doseamen­
to. Utilizam-se hormonas para induzir a supcrovolução
e o método é aplicado para a realização da fertilização
“in vitro”. Finalmenic dominam-se todos os passos do
processo da obtenção dos gametas à transferência de em­
briões preparados “in vitro”.
Em 1952 é obtido o primeiro vitelo Frosty I
(Fig. 10) nascido de uma inseminação artificial com sé­
men previamente congelado a -70 °C c cm 1973 o pri­
meiro vitelo (Frosty II) (Fig. 11) resultante da transfe­
rencia de um embrião que esteve previamente congela­
do a - 196 ’C. A produção animal entrou assim dccididamente na época industrial (12-14).
No que se refere à espécie humana foi ainda ne­
cessário a adaptação de muitos dos conhecimentos obti­
dos no laboratório com várias espécies animais, assim
como a introdução de metodologias mais apropriadas;
refiram-se, entre outras, a laparoscopia e as técnicas para
monotorização do status cndocrinológico.
Quando cm 25 de Julho de 1978 Robert Edwards c
Patrick Steptoe anunciaram o nascimento de Louise
Brown, a surpresa dos cientistas foi sobretudo pelo ar­
rojo de que deram provas. As bases científicas c tec­
nológicas para a sua realização eram conhecidas desde
os finais da década de sessenta. Só era preciso prepara­
ção c arrojo para as levar a cabo na espécie humana. Entre
outros tiveram esse mérito. Passados oito anos a sua
realização já faz parle do trivial quotidiano.
Há mais de 5 000 anos (3 000 a.c — Império An­
tigo), provavelmente no Egipto, foi pela primeira vez posta
em prática a técnica de incubação artificial de ovos de
aves. A descoberta empírica de que a partir de um ovo
era possível promover o desenvolvimento de uma ave c
Figura 10: Frosty /, o primeiro vitelo nascido após inse­
minação artificial com sémen de boi conservado por congela­
ção a - 70 1 C. Reproduzido de Fawcett. (').
VÉRTICE 45/Dczembro 1991
31
utilizadas na alimentação, já permitiu por um lado
aumentar a produção de carne e de leite e por outro
constitui globalmcntc uma das bases experimentais cm que
assentam as técnicas de fertilização “in vitro” e transfe­
rência de embriões humanos.
Quais as consequências da sua aplicação na espécie
humana? No imediato, para além de constituírem a so­
lução terapêutica de alguns casos de infertilidade, as novas
tecnologias têm dado origem a muita controvérsia e a uma
saudável reflexão sobre as interaeções entre a Ciência e
a Sociedade. Embora sejam possíveis muitas especulações,
optimistas ou pessimistas, é difícil, se não impossível,
avaliar objcclivamentc as consequências de acontecimen­
tos tão próximos. Só podemos desejar que as novas des­
cobertas c realizações sejam, como tem acontecido até
hoje nesta área da Ciência, uma fonte inspiradora para
novos avanços do conhecimento c de novos benefícios
para a Humanidade.
Bibliografia
Figura 11 : Frosty II, o primeiro vitelo nascido em conse­
quência da implantação numa mãe hospedeira de um blastocisto que foi previamente mantido congelado a - 196 9 C. A
mãe hospedeira c negra e o vitelo da raça Hereford. Repro­
duzido de Fawcett (l).
a exploração desta descoberta ao longo de séculos, ate
à versão moderna dos nossos aviários, teve consequên­
cias. Não só permitiu alimentar muitas bocas, c muita
especulação, como constituiu um contributo importante
para o progresso da ciência, cm particular da embriolo­
gia.
A mais recente aplicação das técnicas da fertilização
“in vitro”, transferência c congclamcnto de embriões, só
foi possível após o desenvolvimento lento c progressivo
da Ciência c a aplicação sistemática do método científico.
Este progresso também já teve consequências. A sua
prática, hoje corrente cm muitas espécies tradicionalmcntc
32
VÉRTICE 45/Dc7.cmbro 1991
(’) Fawcclt, D. W.: «How research on the cell biology of
reproduction can contribute to the solution of the population
problem», in Wcissmann, G. (ed.): The biological revolution.
Plenum Press, N. York. 1979.
(2) Short, R. V.: «Reproduction and human society», in
Austin, C. R. & Short, R. V. (ed.): Artificial control o f Re­
production, Cambridge at University Press, Cambridge, 1972.
(3) Sarton, G.: A history o f Science, John Wiley & Sons,
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