Natural x Artificial
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Natural x Artificial
Natural x Artificial: transgressões da química Ronei Clécio Mocellin Doutor em Filosofia (Université Paris 10) Prof. Subst. do Dep. de Filosofia da UFPR [email protected] Resumo: Assume-se comumente que há uma divisão tácita entre coisas naturais e coisas artificiais. Longe de ser engendrada por problemas morais, éticos ou epistemológicos postos por novos programas de investigação científica, como a bionanotecnologia ou a nanoquímica, essa clivagem tem uma longa história na prática dos químicos. Essa oposição, somada à associação da química com a produção de factícios, fez desta ciência uma ‘inimiga’ potencial da natureza. Não se trata aqui de apagar toda e qualquer linha demarcatória, mas de apresentar um ponto de vista no qual natureza e química são indistinguíveis, o que pode contribuir ao longo debate acerca do estatuto dos produtos da téchne. Palavras-chave: química, natureza, artefato, século 18. Natural x Artificial: transgressions of chemistry Abstract: It is commonly assumed that a tacit division exists between natural things and artificial things. Far from being produced by moral, ethical or epistemological problems created by new scientific research programs - as bionanotechnology or nanochemistry - this cleavage has a long history in the practice of chemists. This opposition, added to the association of chemistry with the production of factitious substances, made this science a potential “enemy” of nature. The aim here is not to try to erase all and any demarcation line, but to introduce the point of view that chemistry and nature are indistinguishable, which in turn can contribute to the long debate around the status of the products of téchne. Key words: chemistry, nature, artifact, 18th century. 1 Apresentação Para o grande público, há uma clivagem bastante evidente entre o natural e o artificial. O natural seria tudo o que existe independentemente do homem e de suas intervenções, enquanto o artificial seria tudo o que existe pela ação humana. Essa ruptura não está dissociada de outras, como as de ciência e técnica, ciência e sociedade e natureza e sociedade. Dentre as disciplinas científicas, a química talvez seja aquela a que o público atribua mais frequentemente a responsabilidade pelas mazelas produzidas pelo conhecimento técnicocientífico, apontando-a como a grande inimiga do ambiente natural. O conhecimento químico encontrar-se-ia, nessa perspectiva, na paradoxal posição de ser, ao mesmo tempo, parte da ciência natural (regido por leis) e inimigo da natureza. Se no início do século 20 os químicos eram vistos como os promotores da modernidade e do conforto, hoje a opinião pública não lhes é tão favorável. Sem dúvida é saudável à reflexão crítica toda prudência quanto às grandes promessas, mas, dado que o conhecimento químico é essencial à sociedade contemporânea, o fosso que separa os especialistas (químicos) dos não-especialistas (opinião pública) diminuiu? Nada nos parecem menos certo. O aumento desse fosso é profundamente deletério, não apenas nos aspectos políticos, econômicos e ambientais, mas também para a própria pesquisa científica. No caso da química, sua história e sua filosofia são elementos fundamentais nesse trabalho de aproximação de públicos. Como promover uma “visão química do mundo”? Por certo os caminhos são múltiplos. Tentar confrontar a “ignorância” do público em relação à química lembrando as enormes contribuições desta à melhoria da qualidade de vida é, todavia, de pouca valia uma vez que a opinião também responde enumerando sua lista. Talvez essa “ignorância” não esteja simplesmente associada à falta de conhecimento do público sobre as conquistas obtidas pelos químicos, mas à falta de percepção de que este conhecimento é um produto histórico, com implicações sociais, políticas, econômicas e filosóficas. O limitado conhecimento dessas implicações favorece, certamente, a manutenção de estruturas de poder e de controle social que não primam pela participação democrática e cidadã, tanto na construção do conhecimento científico quanto na sua apropriação coletiva. Assim, uma análise conceitual da química, de seu lugar em nossa cultura, é extremamente importante no debate republicano sobre o papel da ciência e da técnica nas atuais sociedades capitalistas. 2 Produtora de factícios, a ciência química é inseparável da técnica, da tecnologia e da indústria. Sua história nos revela o quanto as fronteiras entre um artefato e um produto natural são móveis e contextuais. Sendo os artefatos o resultado de uma arte, a investigação dos caminhos que levam à sua produção oferece informações relevantes sobre a relação dinâmica e, muitas vezes, ambígua dos conceitos de téchne e de epistéme. Esta comunicação marca o início de uma investigação que tem por objetivo compreender a evolução e as complexas interrelações de alguns conceitos, tais como os de substância, de relação, de imitação, de representação, de realismo, de materialismo, de educação, etc., que acompanham a construção de uma identidade epistêmica à química. Aqui, restrinjo-me a algumas considerações sobre a dissolução das noções de natureza e de artefato promovida pela química do século 18. Natureza e Artifício Partindo do aforismo atribuído a Heráclito “A Natureza ama ocultar-se”, P. Hadot descreveu a origem e a evolução dos termos physis e natureza, sobretudo na passagem de uma visão orgânica do universo para uma visão mecânica. Ao término de sua enquete, Hadot conclui que “a natureza é arte e arte natureza, a arte humana não passando de um caso particular da arte da natureza” (HADOT, 2006, p. 338). A noção de natureza carece de uma definição precisa. Em uma primeira aproximação, o termo se refere ao mundo, ao conjunto de seus fenômenos, de suas entidades, enfim, a natureza diz respeito ao real e seria independente do homem e de suas invenções. Evidentemente, a fluidez da noção é resultado das diversas ‘imagens de natureza’ produzidas ao longo do tempo, que são, por sua vez, diretamente influenciadas pelas concepções científicas, religiosas e filosóficas da época em questão (ABRANTES, 1998, p.9). Todavia, dizer que é natural tudo o que se opõem às intervenções humanas não é propriamente dar uma definição. Seria somente uma confrontação com aquilo que representava seu oposto, ou seja, o artificial. Mas quando se analisa os produtos criados pelo homem não se encontra aí os elementos naturais? Todos os objetos inventados não são formados de coisas naturais? Dado que o homem não pode criar a partir do nada, tudo o que ele fabrica não seria mais do que a transformação de elementos já existentes na natureza? Isso 3 conduz a uma encruzilhada: ou aceitamos que há um critério de demarcação entre as coisas naturais e aquelas artificiais ou tal critério não existe. Ao contrário de uma natureza alheia às ações do homem, o artefato era a demonstração de sua intenção criadora. Um artefato pode ser definido como um objeto que foi intencionalmente feito ou produzido para certo fim, certo propósito. Para ser considerado um artefato, um objeto deve ser o resultado de um plano, de um método, ou seja, ser fruto do trabalho de um ou mais autores. Uma vez que a autoria de artefatos feitos pelo homem está ligada ao conjunto de propriedades que dependem das intenções descritas pelo autor, eles podem, portanto, ser avaliados no cumprimento desses objetivos, mas também nos efeitos secundários, previstos ou não. Até a idade moderna, o argumento teórico da separação entre arte e natureza fundamentava-se, sobretudo, na distinção feita por Aristóteles no livro 2 (cap. 2 e cap. 8) de sua Física. Para Aristóteles, a arte apenas imita a natureza e somente esta última possuía um princípio interno de movimento e de repouso, capaz de gerar um processo voltado à reposição desse mesmo princípio original. Somente a natureza pode reproduzir-se, ou seja, de um homem nasce um homem, mas de uma cama não nasce outra cama. Um dos objetivos da filosofia experimental proposta por F. Bacon consistia, justamente, na superação dessa separação ontológica entre a arte e a natureza, ou seja, de que não haveria nenhuma diferença essencial entre os produtos fabricados pelo homem e aqueles presentes no mundo natural. Bacon inspirou-se largamente nos trabalhos alquímicos na apresentação de seus argumentos, e não por acaso sua metodologia empirista norteará muitos químicos do século 18. Contudo, a questão estava longe de ser resolvida. Existe uma natureza natural? No sentido de uma ‘parte intocada’ e estranha aos efeitos das ações humanas, certamente não. Ela pode ser pensada como procedimento metodológico, como no caso de J.J. Rousseau, mas, como notou com pesar o próprio filósofo genebrino em seus devaneios, nada nos resta de natural, o que temos são sociedades, culturas, ou seja, artifícios. Embora por hábito pensemos, por exemplo, no algodão, na madeira ou no vinho como coisas naturais, elas são na verdade o resultado de um longo processo de manufatura, incluindo sofisticados processos químicos. Se artefatos tais como moléculas sintéticas, nanoestruturas ou biomiméticos recolocam o problema da demarcação, B. Bensaude-Vincent 4 e W. Newman, organizadores da coletânea The Artificial and the Natural, optaram por uma oposição não absoluta, essencial, mas por uma distinção em ‘graus de naturalidade’ (BENSAUDE-VINCENT, NEWMAN, 2007). Química: território de transgressões O artefato produzido pelo alquimista (ou químico, os termos são sinônimos até meados do século 18) seria uma imitação de um objeto material existente na natureza, capaz quando muito de enganar os sentidos, ou seriam eles indistinguíveis? A arte alquímica era capaz de produzir substâncias inexistentes na natureza? O ouro artificial do alquimista era de fato o mesmo ouro encontrado in natura? Dado que na tradição cristã a natureza era vista como uma criação divina, os alquimistas e seus artefatos foram condenados pelo papa João XXII em 1317, o que provocou um considerável atraso na introdução do ensino de química nas universidades européias. J. Schummer identificou três noções de natureza em química: a estática, a teleológica e a dinâmica. A interpretação de que a arte alquímica altera a criação divina foi própria de filósofos cristãos próximos ao neoplatonismo e corresponde a uma noção estática de natureza, ou seja, de que tudo o que é natural originou-se no ato da criação. Outros filósofos cristãos, como Alberto o Grande e T. de Aquino, adotaram, contudo, o conceito teleológico aristotélico de natureza, ou seja, de que há um movimento natural em direção a um estado de perfeição, próprio de cada ser. De um ponto de vista teleológico, a alquimia imitava, ajudava e podia mesmo ultrapassar a natureza. Tanto na noção estática quanto na noção teleológica admite-se uma oposição por princípio entre os produtos da arte e os extraídos do ambiente natural. Na primeira, o natural seria caracterizado por alguma essência original, na segunda por um princípio motor (que a partir do século 18 será identificado a uma força vital). Enfim, a partir do século 17, e inspirada nos trabalhos de Paracelso e de Pico della Mirandola, emergiu uma noção dinâmica de natureza, que não mais opunha o natural e o artificial como uma petição de princípio (SCHUMMER, 2003). Como vimos acima, F. Bacon propunha a superação da separação ontológica entre arte e natureza, oferecendo com isso o componente fundamental de uma noção dinâmica de natureza. Certo, Bacon criticava a falta de método dos alquimistas de seu tempo bem como a associação feita por Paracelso entre filosofia natural e teologia. No livro II de seu Novum 5 Organum, contudo, ele fez uso do conhecimento alquímico para expor o que considerava ser “a obra e o fito da ciência humana”, qual seja descobrir “a forma de uma natureza dada”. De fato, a alquimia é omnipresente na obra de Bacon, tanto no desenvolvimento de sua filosofia natural quanto na elaboração de seu método cientifico. Talvez por isso, em seu ataque à tradição aristotélica, Bacon valorizava muito mais o trabalho experimental de um G. Agricola, um dos primeiros alquimistas a fazer uma abordagem empírica e experimental da natureza, ou do médico P. Severinus do que aqueles mais teóricos realizados por N. Copérnico e G. Galileu. A falta de interesse de Bacon pelas ciências mais matematizadas fez com que alguns comentadores considerassem o baconianismo como irrelevante para o desenvolvimento do conhecimento científico. No entanto, se o “movimento baconiano” não teve grande influência na elaboração de teorias astronômicas, a filosofia natural de Bacon foi seguida efetivamente por aqueles que direcionavam suas investigações na explicação de fenômenos empíricos produzidos nos laboratórios químicos. Os trabalhos do médico-químico holandês H. Boerhaave consiste num bom exemplo da aplicação prática de uma metodologia baconiana nas investigações sobre as mudanças matérias. No século 18, a química acadêmica dos sais e a Tabela de relações de E-F. Geoffroy contribuíram no fortalecimento de uma noção dinâmica de natureza no seio do pensamento químico. Em 1702, W. Homberg, membro da Academia de ciência de Paris, inaugurou um longo programa de pesquisa que tinha por objetivo a investigação dos sais médios (neutros). Neste programa, os sais (no século 18 o termo englobava não apenas o que hoje chamamos de sais, mas também o que identificamos como ácidos e bases) não eram mais considerados como princípios, mas como produtos de certas combinações. Em 1736, H-L. Duhamel conseguiu isolar um álcali fixo que entrava na composição do sal marinho, demonstrando que o sal marinho obtido na combinação desse álcali com ácido marinho era idêntico ao colhido nas salinas. Ou seja, não havia nenhuma diferença entre o sal artificial e o sal natural. A Tabela de Geoffroy (fig.1) ofereceu, por sua vez, o modelo de arranjo das operações químicas. Ela é composta de dezesseis colunas. Encabeçando cada coluna temos “os principais materiais com que costumamos trabalhar em química” e no interior de cada coluna estão dispostos as substâncias em ordem decrescente de relação (ou afinidade...). Não cabe aqui discutir as interpretações dessa tabela, mas apenas destacar que a substância química é considerada sob o ângulo de uma composição-combinação, e a reação 6 sob o ângulo da associação e da dissociação. Um corpo químico não é mais identificado através de suas propriedades-qualidades, mas através de suas relações. Assim, a matéria deve ser compreendida a partir da relação, e pode ser explorada a partir das possibilidades de criação e de destruição de suas relações (BENSAUDE-VINCENT e STENGERS, 1993, p. 74). Fig. 1: Tabela de Geoffroy Cabe, isto sim, um breve comentário sobre outro componente da ontologia dinamista da química do século 18: a mixis (mixte ou mixto, para diferenciar de misto, associado à idéia de mistura). Além de propor uma teoria hierárquica da matéria, G. Stahl também delimitou o grau de materialidade que interessava aos químicos. O mixto é a primeira etapa de composição. As substâncias iniciais perdem sua individualidade quando reunidas para formar um mixto. O mixto pode ser composto de dois, três ou quatro princípios em quantidades variadas. A união mixtiva é muito forte, difícil a romper, mas a análise química pode chegar à suas partes constituintes. As partes constituintes são os princípios dos corpos, ou seja, são substâncias de naturezas diferentes que, em se unindo, constituem os corpos mixtos. Por 7 exemplo, as partes constituintes do sal comum são o ácido marinho e o álcali, de cujo sal é composto e que devemos considerar como seus princípios. Os químicos das Luzes davam o nome de elemento aos corpos que eram de tal simplicidade, que todos os esforços da arte eram insuficientes para decompô-los e mesmo de causar alguma alteração. A esse seres davam o nome de fogo, ar, água e terra. Mas os quatro elementos ensinados não são mais aqueles de Aristóteles/Empédocles (como qualidade atual que contém em potência seu oposto, quente/frio, seco/úmido...), nem são os constituintes últimos e universais da matéria. Funcionavam, na verdade, como conceitos bastante amplos e que tinham uma realidade referencial evidente. É mesmo bastante provável que estas substâncias, embora reputadas simples, fossem elas mesmas compostas. Não é a elementaridade essencial da matéria que interessa aos químicos, mas o grau de simplicidade que a técnica permite oferecer. Por isso alguns evitaram o uso do termo elemento, preferindo o termo princípio. Os mixtos são sempre heterogêneos e seu número na natureza é limitado. Por exemplo, a menor parte do sal comum que conservaria suas propriedades é o mixto (ácido marinho + álcali). A união destes mixtos forma o agregado, que reconhecemos como sal comum. Estas moléculas primitivas são chamadas de partes integrantes. As forças de adesão das partes integrantes são menos intensas que aquelas existentes entre as partes constituintes e podem ser vencidas por meios mecânicos. Ou seja, enquanto o agregado pode ser rompido por meios mecânicos, o mixto somente é destruído por meios químicos. Assim, todo corpo material aparece obrigatoriamente ao observador sob dois pontos de vista, simultâneos e heterogêneos: na forma de agregados (suscetíveis de ser divisível em massas menores) e na forma de mixtos (massas materiais que possuem propriedades específicas e que permitem as reconhecer). A distinção entre Agregado e Mixto constituiu o argumento utilizado pelo autor do importante artigo “Chymie” da Enciclopédia de D. Diderot e de J. d’Alembert, o médicoquímico G-F. Venel, na defesa da identidade epistêmica da química. Os agregados são objeto da física, enquanto os mixtos são objetos da química. Os mixtos constituem, assim, os principais seres na ontologia dos químicos das Luzes. Segundo Bensaude-Vincent, essa ontologia se caracteriza por dois traços principais: o primado da relação sobre a substância e o primado da ação. Além das substâncias que constituem os corpos simples e complexos, o químico postula a existência de seres individuais 8 definidos pela sua capacidade de entrar em relação com outras entidades individuais. Ou seja, a razão de ser dos ‘corpos químicos’ é a relação (BENSAUDE-VINCENT, 2008, p. 61). A química também transgredia outra separação clássica, aquela entre natureza e sociedade. Isso porque ela mistura os recursos da natureza com uma lógica econômica de competição, que constitui a base de sustentação do processo de industrialização. Foi no século 18 que os químicos começaram a substituir produtos naturais por aqueles que eles mesmos produziam em condições controladas. Eles denominavam estes produtos de factícios, que diferiam dos naturais unicamente por seu processo de fabricação. Isso mudou consideravelmente a relação com o ambiente natural. A fabricação de factícios mudava a paisagem não somente do local de produção (poluição, chegada de trabalhadores...), mas também a distribuição geográfica de riquezas e de recursos naturais. Tanto quanto a natureza, os produtos factícios mudaram profundamente a sociedade na medida em que eles permitiam reduzir os custos de produção, de mão de obra, mas também na estruturação de novas políticas econômicas e industriais. Enfim, a química proclama a dignidade e a nobreza do factício e a partir do século 18 os produtos da Arte não serão mais considerados como uma imitação da natureza, mas como seu potencial substituto. Isso não quer dizer, contudo, que a noção estática ou teleológica dos químicos em relação à natureza tenha desaparecido... Conclusão A preocupação com a demarcação entre o natural e o artificial não é exclusiva do grande público. A clivagem também envolve questões ontológicas, epistemológicas e metodológicas. Também não se trata de uma novidade trazida pelas questões morais, éticas, políticas... colocadas por novas áreas da ciência como, por exemplo, a bionanotecnologia. A alquimia e a química dos sais também tiveram que submeter-se ao mesmo veredito. Não será diferente com a química das sínteses orgânicas do século 19 (BENSAUDE-VINCENT, LARRERE, NUROCK, 2008). Ciência do factício, a química pode ser facilmente apontada como a responsável pelos desequilíbrios ambientais cada vez mais evidentes. A presença de seus produtos no cotidiano cresceu consideravelmente desde as primeiras amostras de ácido sulfúrico e de soda obtidas nos ateliers dos químicos das Luzes. Julgar o conhecimento químico nesta perspectiva 9 equivale, todavia, a assumir a posição contrária, ou seja, de que tudo o que é de origem natural é melhor. O que não parece ser o caso... Nenhuma fronteira é intransponível. Além disso, a linha divisória entre o natural e o artificial é traçada de acordo com contextos específicos e daí, justamente, o interesse do estudo das diferentes maneiras de desobediência. A química sempre foi o modelo de transgressão. Das noções químicas de natureza, a única que não distingue por princípio as operações da arte e as operações da natureza é a noção dinâmica. Para a química, a vantagem na abolição da fronteira está em assumir a produção de um artefato, com tudo o que isso implica, visto que um artefato é um objeto de autor e deve ser avaliado em seus efeitos previstos, mas também pelos não previstos. A química também deixa, assim, de se diferenciar da natureza, pois a natureza é química e a química é natural. Enfim, não distinguir o químico do natural, ou seja, não fazer do rótulo natural uma qualidade em si, faz com que os compostos químicos (independente de sua origem) sejam avaliados em função dos valores cognitivos e sociais que eles representam. 10 Referências ABRANTES, Paulo. Imagens de Natureza, Imagens de Ciência, São Paulo, Papirus, 1998. ARISTÓTELES. Física I- II, Campinas, Editora da UNICAMP, 2009, BACON, Francis. Novum Organum, São Paulo, Nova Cultural, 1999. BENSAUDE-VINCENT, Bernadette, STENGERS, Isabelle. Histoire de la chimie, Paris, Éditions La Découverte, 1993. BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. La science contre l’opinion, Paris, Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2003. BENSAUDE-VINCENT, Bernadette, NEWMAN, William (Org.). The Artificial and the Natural: An Evolving Polarity, Massachusetts, MIT Press, 2007. BENSAUDE-VINCENT, Bernadette, LARRERE, Raphaël, NUROCK, Vanessa. Bionanoéthique, Paris, Vuibert, 2008. BENSAUDE-VINCENT, Bernadette. 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