UnP – Universidade Potiguar Alquimy Art

Transcrição

UnP – Universidade Potiguar Alquimy Art
UnP – Universidade Potiguar
Alquimy Art
Pró- Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Lato Sensu
Curso de Especialização em Arteterapia
Ouvir - Brincar - Contar
HISTÓRIAS
para o desenvolvimento pessoal
com a mediação da Arteterapia
Zuleika Scatena Martins Cintra
São Paulo
2005
ZULEIKA SCATENA MARTINS CINTRA
Ouvir - Brincar - Contar
HISTÓRIAS
para o desenvolvimento pessoal
com a mediação da Arteterapia
Monografia apresentada à Universidade Potiguar,
RN e ao Alquimy Art, de São Paulo como parte dos requisitos para a obtenção do título de Especialista em Arteterapia.
Orientadora: MSC Dilaina Paula dos Santos
São Paulo
2005
C49
CINTRA, Zuleika Scatena Martins
Ouvir – Brincar – Contar Histórias para o desenvolvImento
pessoal com a mediação da arteterapia / Zuleika Scatena Martins
Cintra, São Paulo, 2005
84 p.
Monografia (Especialização em Arteterapia) –
Universidade Potiguar. Pró-Reitoria de Educação Profissional.
Alquimy Art.
1. Arteterapia
2.Histórias e desenvolvimento
CDD 616
UnP –Universidade Potiguar
Alquimy Art
Pró-Reitoria de Educação Profissional
Ouvir - Brincar - Contar
HISTÓRIAS
para o desenvolvimento pessoal
com a mediação da Arteterapia
Monografia apresentada pela aluna Zuleika Scatena Martins Cintra ao curso de
Especialização em Arteterapia em 16 / 04 / 2005 e recebendo a avaliação da Banca
Examinadora constituída pelos professores:
_______________________________________
Profª Drª Cristina Dias Allesandrini, Coordenadora da Especialização
_______________________________________
Profª MSC Dilaina Paula dos Santos, Orientadora
____________________________________
Prof. Dr. Liomar Quinto de Andrade
Aos grupos
“Brincar com Histórias” e “História Viva.”
Crianças e jovens que aprendemos juntas
compartilhar a amizade, o respeito fraterno
e acreditar no amor.
Eliseu,
Meu marido, meu amor, parceiro amigo,
pela força, atenção e carinho.
Pela paciência, durante as horas de estudos,
dúvidas e angustias.
Quantos ensinamentos.
Agradeço a Deus por você ser assim.
Luís Felipe,
Meu filho, que resgatou em mim
o amor às histórias
e me ensinou que há bruxas boas.
Neste caminhar nunca estive só .
Em cada momento recebi apoio e parceria que me deram ajuda necessária para
construir este sonho. Crescemos todos juntos e espalhamos esperanças:
Associação Crescer Sempre Parceria em Educação
Professores e Equipe da Escola de Educação Infantil Associação Crescer
Sempre
Professores, coordenadores pedagógicos, vice-diretores e diretores das
Escolas Estaduais da comunidade do Paraisópolis.
Em especial, agradeço aos mestres e colegas da turma D, do curso de arteterapia no Alquimy Art, em São Paulo.
Minhas amigas, Sonia Cabral e Sonia Regina, estamos juntas nesta jornada,
crescemos e descobrimos a magia das histórias, e construímos nossa união.
RESUMO
Esta monografia é um estudo sobre a arte de ouvir – brincar e contar histórias.
Considera importante justificar o vínculo dos esquemas funcionais das narrativas
com o nascimento humano, e com a própria história da humanidade. Na linguagem
simbólica das histórias encontra relação das matrizes perinatais e sua analogia com
a trajetória do herói. Procura mostrar que as histórias transmitem verdades através
de imagens simbólicas que atingem o ser humano integralmente, permitindo-lhe processar suas emoções, aspirações e conflitos. As histórias permitem ao ouvinte e ao
contador de histórias colocar em ordem a sua casa interior para dar início a um processo transformador. A metodologia de elaboração do estudo também se prende às
oficinas de “ouvir – brincar – contar histórias”, desenvolvidas durante os anos de
2000 a 2004 em escolas públicas de comunidade carente da cidade de São Paulo,
com crianças, jovens e professores, a arteterapia foi mediadora da práxis deste trabalho, oportunizando verdadeiras transformações ao resgatar a criança interior de
cada pessoa. As atividades desenvolvidas durante as oficinas integravam participação, respeito e atenção, despertavam a memória, a imaginação, os sentimentos, os
conflitos e as emoções, fortalecendo o processo de desenvolvimento pessoal. Por
fim constata que as histórias transmitem verdades através de imagens simbólicas
que atingem o ser humano integralmente. Entre os depoimentos colhidos pode-se
observar que “ouvir – brincar e contar histórias” provoca sentimentos e emoções que
despertam o indivíduo que está para o encontro com o indivíduo que é.
PALAVRAS-CHAVE
“Ouvir - Brincar - Contar Histórias”.
Desenvolvimento pessoal.
Arteterapia.
Matrizes perinatais.
Trajetória do herói.
ABSTRACT
This monograph is a study about the art of hearing – playing and telling tales.
It considers important to justify the link of the narratives‟ functional schemes to the
human origin, and to the humanity‟s history itself. It finds connection among per
childbirth matrixes and their analogy with the hero‟s trajectory, on the stories‟ symbolic language. It seeks to show that the histories pass on the truths through the symbolic images, which totally touch upon the human being, allowing him to process his
emotions, longings and conflicts. The histories allow the hearer and the storyteller to
set on order their inner home to begin a transforming process. The methodology of
the study‟s elaboration is also linked to the workshops of “hearing – playing – telling
tales”, developed during the years 2000 – 2004, at public schools of needy community of the São Paulo city, with children, youths and teachers. The art therapy was the
mediator of this work‟s praxis, giving opportunity to real changes, redeeming the child
inside of each person. The activities developed during the workshops have integrated
participation, respect and attention; have awaked the memory, the imagination, the
feelings, the conflicts and the emotions, strengthening the process of personal
growth. Finally, it confirms that the histories transmit the truths through the symbolic
images that totally touch the human being. We can note among the collected testimonies that “hearing – playing and telling tales” provokes feelings and emotions,
which rouse the person who temporary is (remains) to the finding of the person who
really is.
Key words
“Hearing – Playing – Telling Tales”.
Personal growth.
Art Therapy
Per childbirth matrixes
Hero‟s trajectory.
SUMÁRIO
1. Registrar o equilíbrio: minha introdução

Equilíbrio
01
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2. Instrumento de provocação: meus estudos
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
A origem das narrativas

As histórias e o desenvolvimento humano

A linguagem simbólica trazida pelas histórias

A funcionalidade dos textos narrativos

Histórias: vida e transformação
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3. Agir para transformar: minha ação
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
As oficinas

Nas oficinas o resgate da criança interior

Procedimentos
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4. Felicidade no transformar: final feliz
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
Mudanças observadas
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
Histórias e professores
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5. Considerações finais
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6. Referências bibliográficas
7. Anexos
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 História de Joãozinho e Maria
 O alfaiate desatento
 Uau! Ser pato é o máximo!
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Contador de Histórias
O objetivo dos contadores de histórias consiste em estimular
no ser humano a compaixão __ A miraculosa habilidade de um ser
se perturbar com a infelicidade do outro, de se alegrar com a felicidade do outro, de experimentar o destino do outro como se fosse o
seu (...). Porque é natural para a criança ficar ao lado do gentil, do
corajoso e do justamente ofendido ao ouvir um conto de fada. Nosso objetivo é despertar, nutrir, fortalecer na alma responsiva da criança a habilidade de sentir junto com o outro.
Kornei Ghukooski
Pedagogo e escritor russo
Início do século XX
1
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1. REGISTRAR O EQUILÍBRIO: MINHA INTRODUÇÃO
“A raiz do pensamento é o coração,
dele nascem quatro ramos:
o bem e o mal, a vida e a morte”.
Eclo 37,17
 Equilíbrio
Esta monografia é fruto de indagações e estudos que faço desde o momento
em que comecei a me envolver com a contação de histórias em salas de leitura, nas
escolas estaduais onde trabalhava, com a finalidade de provocar o prazer pela leitura formando pequenos leitores.
Desde 1980, quando iniciei meu trabalho com salas de leitura, observo o prazer
e o contentamento dos alunos ao ouvirem uma história, e como o adolescente, que
chega arredio, vai aos poucos sendo conquistado pela contação das histórias e volta
sempre para ouvir e até para pedir que se conte nova história, ou aquela história
contada em algum dia.
A ludicidade presente na literatura infantil pode ser vista como ponto de ancoragem, uma porta de entrada para mobilizar desenvolvimento e conhecimento de si
mesmo. O lúdico abranda a tensão causada pelo medo de errar, de fracassar, e motiva cada indivíduo a expor-se a estímulos através do prazer e do desejo de experienciar novas descobertas e aventuras, utilizando sua capacidade investigativa e criadora.
Quando em 1997, após minha aposentadoria, iniciei meu trabalho como monitora de sala de leitura em escolas estaduais localizadas em uma comunidade carente, pude desenvolver um trabalho melhor direcionado aos alunos e professores. Neste momento comecei a observar e a perceber o lúdico e o terapêutico das histórias,
quando e como estas conquistam o ouvinte. Ao serem percorridas deixam distração
e divertimento, mas, enquanto seduzem, abrem as portas da fantasia, trazem consigo rapidez e facilidade no aprendizado. Exercitam maneiras de ver, pensar, imaginar
e sentir, ao mesmo tempo que aproveitam o despertar de atividades criadoras, me-
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diante estímulos que proporcionam auto-expressão, socialização, satisfação e prazer.
Nesta introdução a qual denomino “Registrar o Equilíbrio” procuro mostrar meu
envolvimento com as histórias e como cheguei ao curso de pós graduação em Arteterapia.
Sou apaixonada por histórias. Mesmo sem saber, sempre fui. Hoje com o passar dos dias, com meus estudos e minhas observações me encanto e me envolvo
sempre mais. Mergulho neste mundo do faz de conta para buscar algo bom e agradável, fantasias e contos que confronto com a realidade, com a própria história do
ser humano. Procuro o princípio transformador que possa oferecer a mim, e principalmente ao outro, o autoconhecimento, ou seja, o encontro consigo mesmo.
Durante minha vida profissional me envolvi com o trabalho de sala de leitura e
achava muito triste a falta de interesse dos professores e alunos pela leitura. Comecei a convidar as crianças para, junto com seus professores, visitarem a sala de leitura. Nesse lugar contava histórias, brincava com as crianças e depois lhes entregava livros para que pudessem ler. Percebi que desta forma a demanda na sala de leitura aumentava, alunos e professores começavam a retirar livros emprestados para
leitura em sala de aula e também em casa.
Trabalhando em um “Projeto Parceria Escola-Empresa”, convidada por uma
amiga para trabalhar em uma região carente da cidade de São Paulo, passei a cuidar e a dinamizar a sala de leitura da escola. Fiz amizade com uma professora de
português e conversávamos muito sobre a importância das histórias para desenvolver o gosto pela leitura e sobre como faríamos para formar um grupo de alunas que
começassem a contar histórias ali na escola.
Na oportunidade de uma feira cultural, esta professora de português pediu-me
ajuda para preparar alunas que estavam pesquisando textos sobre a preservação da
natureza e o meio ambiente. Eram necessárias pesquisas com leituras para que as
mesmas produzissem seus textos e histórias. Este trabalho deveria ser apresentado
no dia da feira cultural, quando criaríamos o “Cantinho das Histórias”.
As alunas começaram a chegar timidamente, tinham força de vontade, e o entusiasmo que todas sentiam animava o grupo, era um desafio para todas nós. Apesar das dificuldades, descobriram que eram capazes. Este momento foi a oportunidade de apresentar o projeto para as escolas da comunidade que passou a ser co-
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nhecido como “Os Contadores de Histórias”. Agora o grupo estava formado e não
podíamos mais parar. Com o decorrer das atividades fui percebendo mudanças nas
atitudes e interesses dos jovens que participavam do projeto. Sentimentos e emoções afloravam, intuitivamente eu acolhia as crianças e jovens com carinho, dandolhes atenção, ouvindo-os, fazendo algumas intervenções. Percebi que era necessário me aprofundar, conhecer melhor a teoria para que eu pudesse conhecer e entender o porquê e o como as histórias interagem com as pessoas, com a individualidade de cada um, proporcionando transformações. Assim cheguei, no Curso de Arteterapia.
Desta forma, registro a quebra do equilíbrio e a busca de informações, as quais
causam forte provocação na construção de novos paradigmas.
No segundo momento, referente ao capítulo II, o qual nomeio “Instrumento de
Provocação”, é onde registro a base teórica da minha pesquisa sobre as histórias.
Penso ser oportuno fazer uma pequena reflexão sobre a origem das histórias. Recorro aos povos célticos em sua reverência ao sobrenatural. O homem tem necessidade de contar suas façanhas quando busca a sobrevivência no dia a dia, ou sobre
suas batalhas e conquistas tornando-se contador de histórias. Não posso deixar de
indicar a mitologia como fonte da simbologia que permeia as histórias. Para Darton,
as histórias criadas pelos homens são verdadeiras fontes de conhecimento no desenvolvimento social e cultural da humanidade. Penso que estas imagens se conservaram na memória do homem que ao ouvir histórias as resgata e estabelece relações afetivas e emocionais. Baseada em minhas experiências, julgo que as sensações despertadas pelas histórias podem ser elementos facilitadores para o desenvolvimento emocional e cognitivo. O lúdico presente nas histórias quebra alguns
obstáculos que impedem o desenvolvimento humano e auxilia o ouvinte a lidar melhor com sua insegurança. Assim, estudo a função terapêutica das histórias em suas
mensagens que favoreçam espaço para a fantasia e o que cada um tira para si destas mensagens ao contemplar seus próprios problemas. Esses problemas, que parecem muitas vezes insolúveis e incompreensíveis, encontram soluções através do
auxílio das personagens, pois estas, ao buscarem respostas e resoluções de conflitos, precisam passar por situações das mais diferentes e difíceis.
Este novo conhecimento, chamado no capítulo II de “Instrumento de Provocação”, foi meu desafio para o estudo que constitui a base teórica desta pesquisa.
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Ao ler Arcuri (2004), encontrei as matrizes perinatais, descritas por Groff, o qual
acredita no registro destas matrizes no inconsciente humano, na medida em que o
parto é descrito como processo de nascimento, morte e renascimento. Relaciono estes momentos à jornada do herói e à estrutura do esquema funcional das histórias
pesquisado por Larivaille nos contos.
Caminhando pela estrutura do esquema funcional dos contos, tomo o terceiro
momento deste estudo como o momento de “Agir para Transformar”, quando o herói
enfrenta o desconhecido, os perigos e defende a vida. Assim, procuro mostrar como
desenvolvo com grupos de estudantes as oficinas “Ouvir - Brincar - Contar Histórias”. O grupo se envolve com o jogo simbólico da história contada, cada um com a
história de sua vida, e isto promove o desenvolvimento pessoal, a relação do indivíduo com o mundo facilitando a consciência crítica, a libertação de sentimentos e a
ação concreta de transformação. A predisposição para esta transformação procuro
desenvolver com atividades que proporcionam prazer, satisfação, compartilhamento
de idéias e reflexões. Estes momentos constituem o cerne da ludicidade das histórias com a liberação de imagens inconscientes e se opõem à passividade, à alienação, à submissão e às relações interpessoais passivas. Com este momento de
transformação criadora e socializadora, surge prazer e satisfação pessoal no grupo
como elemento modificador do conhecimento do próprio ser.
“Felicidade no Transformar” é o momento no qual registro o “Final Feliz das
Histórias”, com espaço para relatos e depoimentos que facilitaram a percepção e a
transformação de participantes das oficinas de contação de histórias. A partir de minhas intervenções e de cada participante, durante as oficinas, percebo que através
da linguagem e dos gestos é possível exercer influência sobre o pensamento do outro. Este processo é um compartilhar de fantasias e conhecimentos que enriquecem
e transformam cada um dos participantes através dos confrontos de seus conflitos.
Com a intenção de fazer valer seu próprio ponto de vista, desenvolve-se a linguagem interior que permite levantar emoções e hipóteses e se preparar para argumentar e contra-argumentar. As histórias falam de medos, de dificuldades e de coragem,
de perdas e carências, de amor em todas as suas dimensões, de sofrimentos, de
descobertas, de encantos, de entregas, de início e término, de abandonos e de autodescobertas. Poder se encontrar, se conhecer, é primordial para o crescimento e a
descoberta da própria identidade. Para que isto aconteça é necessário imaginar, fan-
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tasiar e recriar a realidade. Assim como o herói supera obstáculos e perigos, nos apropriamos da fantasia nas histórias e percorremos o longo caminho do autoconhecimento, pelo encontro do verdadeiro sentido do eu, um caminho de transformação.
Julgar um mesmo assunto de diferentes formas pode ser um passo fundamental para a compreensão de si mesmo, do outro e do mundo. Desta forma as histórias
trabalhadas através da arteterapia, com experiências artísticas, conseguem tornar o
ouvinte brincante um ser humano imaginativo e criativo ao explorar suas potencialidades e ativar os estímulos perceptivos.
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2. INSTRUMENTO DE PROVOCAÇÃO: MEUS ESTUDOS
“Minha Senhora dona:
Uma criança nasceu
o mundo tornou a começar”.
Guimarães Rosa
Para pensar nas histórias na medida em que despertam competências, estimulam pensamentos, imagens e desenvolvimento pessoal, é necessário ir às suas origens. As histórias refletem a realidade do homem como um todo, mas é necessário
que estes dados sejam estudados de modo analítico afim de se entender o que pretendo considerar.
 A Origem das Narrativas
Desde os primórdios da vida humana o homem foi seduzido pelas narrativas,
que sempre lhe falaram da vida ou da condição humana, quer seja por sentir uma
força ou poder maior que sua vontade ou por causa dos mistérios que seus conhecimentos não conseguiam explicar ou compreender. A arte de contar histórias existiu
desde quando o homem começou a falar e articular as palavras, sentado em sua caverna ao pé do fogo, contando às mulheres e às crianças suas façanhas nas batalhas que travavam para poder subsistir.
É ao conto popular, cujas primeiras notícias datam do século 6 a.C., e que aqui
designo simplesmente como “história”, que me reporto. A maioria dos pesquisadores
entende que os contos populares podem ter surgido com o povo celta. É difícil dizer
algo dos celtas pois estes povos não deixaram registros. Mas diz a lenda que os celtas eram povos de muitas paixões e muitos amores, que mergulhavam e se entregavam a estas paixões sem medo. Apaixonavam-se quer pelas mulheres quer pelas
guerras ou magias. Tudo o de que gostavam e realizavam era pela paixão do fazer.
Não mediam esforços para ver acontecer os seus desejos, a felicidade ou magia.
Por outro lado foram omissos consigo mesmos, pois não cuidaram de perpetuar sua
cultura, a ponto de não fortificarem suas aldeias e nem registrar seus conhecimentos. Na verdade até hoje os celtas são uma grande incógnita para a humanidade.
Surgiram como poemas que enfatizam amores estranhos, eternos, essencialmente
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idealistas, construídos pelo homem preocupado com os valores eternos do ser humano e do seu espírito. Também em nossa cultura indígena podemos observar os
contos e as lendas que retratam amores de jovens que se transformam em cachoeiras ou pedras preciosas, lua e sol. O desconhecido sempre exerceu sobre o homem
um desafio constante, e assim, as sagas eram contadas como forma de reverência
ao sobrenatural ou até como forma de relatar suas experiências sagradas aos outros
membros da comunidade. Os celtas eram povos nômades, simples e guerreiros, os
quais para defenderem suas propriedades desenvolviam conteúdos mágicos, entre o
homem e a natureza, em seus rituais.
Achei oportuno quando em uma roda de contadores de histórias, da qual participei, a palestrante nos fez pensar como o homem pré-histórico, ao relatar o seu dia
a dia, já prendia a atenção de todos ao seu redor. E logo ele começou juntar à imaginação sua criatividade, viajar até as estrelas distantes, visitar deuses e novos
mundos. Nestas viagens e mundos tudo podia acontecer, era um mundo onde os animais raciocinavam e falavam, onde o homem encontrava explicações para coisas
e fatos inexplicáveis.
Passando para a vida organizada, o pajé deixou de ser apenas o contador das
histórias para se tornar depositário das tradições da tribo a serem transmitidas de
geração em geração. Surge a mitologia, quer dizer, as lendas, as sagas, os apólogos, as tradições folclóricas, as fábulas, as metáforas e as alegorias, as formas mais
antigas de histórias a guardar um certo saber fundamental. Nascem os grows e os
duendes, os seres elementais e as ninfas, em continuidade com as bruxas e as fadas, nascem os contos de fadas transmitidos oralmente de gerações a gerações até
nossos dias.
Esta fala não é um objeto, um conceito, uma idéia, conforme nos ensina Barthes (2003), ou uma fala qualquer, mas uma comunicação, uma mensagem com
significação e forma. O mito não é apenas um fenômeno com limites históricos, mas
pressupõe uma imagem inconscientemente organizada que transforma um sentido
em forma. Esta comunicação dos mitos pressupõe uma consciência significante e
por isto podemos de forma paciente organizar e tornar assimiláveis estas imagens,
transformadas em fala quando significam alguma realidade. “O mito não se define
pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como o profere: o mito tem limites
formais, contudo não substanciais”.
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Podemos registrar, conforme Rocha (1985), que mito é uma narrativa especial,
carregada de símbolos, com formas alegóricas, que nos permite perceber fatos históricos, naturais e filosóficos, de coisas inacreditáveis e fora da nossa realidade... É
a forma que as sociedades conseguiram para mostrarem suas contradições, seus
paradoxos, dúvidas e inquietações. É uma forma de pensar a existência da vida, do
cosmos, de viver neste mundo a relação com a natureza ou as relações sociais, cujo
sentido é difuso e pouco nítido. O mito revela os contos, que decorrem dele.Nos
contos notamos os mesmos elementos, a mesma estrutura e fabulação do mito.
Com o advento do budismo, na Índia do séc.V a.C., os sacerdotes descobriram
nos contos excelente meio de propaganda da espiritualidade e dos ensinamentos.
Na Idade Média, os contadores de histórias (conhecidos como trovadores, segréis,
jograis,bardos e menestréis) eram respeitados em todos os lugares que visitavam.
Reconheço, que esta antiga forma de narração, tem sentido mítico, natural, e
como narrativa tradicional, demonstra a poderosa influência que elas têm exercido
nas reformas sociais de todos os povos e no decorrer de seu próprio desenvolvimento. Hoje a sociedade começa a apreciar a contação de histórias, bem como dar valor
ao seu poder terapêutico.
 As Histórias e o Desenvolvimento Humano
Durante meus estudos, para conceituar o desenvolvimento humano encontrei
em Ferrer (2001) explicações com as quais me identifiquei por comungar com suas
idéias, pois desenvolvimento pressupõe crescimento. Este processo de desenvolvimento é um longo crescimento que tem inicio com o nascimento, o qual não podemos considerar como finalizado. É este processo que nos leva a “um caminho que
temos que percorrer individualmente”, de forma pessoal e intransferível, a “desenvolver ao máximo nossas potencialidades”. Crescer é doloroso, porque em muitos
momentos precisamos romper com o conhecido. Isto é assustador.
Desenvolvimento também significa “cortar cordões”, investigar novos caminhos
e aceitar novas formas de ser e pensar, olhar mais além. O perigo do processo de
desenvolvimento é a desistência, no momento difícil da mudança, quando preciso do
conhecido, no entanto ameaçado: há o recuo por medo do desconhecido. “Estou
bem assim, sempre fui assim e não preciso mudar”. Mas, nossa fantasia nos inspira,
não aceitamos no fundo sermos patinhos feios, mas queremos ir mais longe e ser-
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mos cisnes, como na história do “Patinho Feio” ou na história moderna “Uau! ser Pato é o Máximo”. Urge transpor nossos conhecimentos, chegar à transformação e ser
feliz.
“O crescimento pessoal refere-se a qualquer aspecto de nossa vida
que nos faça superar-nos e ter maior consciência do que somos, do
que queremos e do que podemos vir a ser. Uma relação interpessoal
positiva nos ajuda a crescer” (FERRER, 2000, p.17).
Gostaria de poder transmitir neste trabalho o entusiasmo com a sabedoria
transmitida pelas histórias, ao mostrar como as pessoas são diferentes e que cabe a
cada um fazer sua opção de vida. São muitas as histórias que nos ensinam a enfrentar problemas acreditando na vitória do bem, a perceber que os obstáculos enfrentados e vencidos pelos heróis e heroínas nos fortalecem, para que novos obstáculos
sejam enfrentados e se restabeleça a ordem. Em oficinas de criatividade com o ouvir
– brincar – contar histórias supõe-se que a experiência com o jogo simbólico, o diálogo entre a fantasia e a realidade, é permitido que as pessoas sintam diferentes
emoções, como o amor, a raiva, a tristeza, a irritação, o bem estar, o medo, a alegria, a insegurança, e muitas outras. Ao vivenciar com profundidade o que as narrativas
provocam, os participantes das oficinas de ouvir - brincar - contar histórias provavelmente elaboram suas emoções, favorecendo seu crescimento interior com mais
confiança e podendo assim enriquecer a vida. É através de ouvir uma história e de
brincar com ela que enxergamos, vemos e sentimos com os olhos da fantasia e do
imaginário, recriando a realidade.
A linguagem simbólica presente nas histórias auxilia o ouvinte brincante a lidar
com estados emocionais, com sua insegurança, permitindo-lhe reelaborar perdas,
ressignificar e reinterpretar o próprio mundo.
A linguagem imagética presente nas histórias pode ativar os estímulos perceptivos. A percepção é determinada pelas necessidades subjetivas daquele que percebe. A maneira de compreender o mundo depende, em grande parte da percepção
que pode ser desenvolvida através de estímulos advindos da necessidade vital.
Vimos que o medo de fracassar faz o homem fixar-se apenas no já conhecido,
fechar-se a novas aprendizagens, deixando de crescer e de estabelecer relações.
Desta forma, uma maneira eficiente de desenvolver a capacidade de percepção é a
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conduta exploratória das histórias através da arteterapia como facilitadora para construir um novo ponto de vista.
A meu ver as histórias podem auxiliar no desenvolvimento pessoal porque sua
compreensão é emocional, afetiva. Ajudam tanto o cliente como o arteterapeuta, o
professor e o aluno, o leitor e o monitor de sala de leitura atingir um autoconhecimento, quando aplicadas como atividades agradáveis e prazerosas que elaboram
imagens inconscientes. O facilitador destas atividades precisa estar aberto para acolher os clientes, ao mesmo tempo em que deve se conhecer e resgatar sua fantasia
e a sua infância. Trata-se, para Radino (2003, p.201), de “um autoconhecimento e
uma maior integração do ego. Esse processo é subjetivo e longo”.
As histórias não têm como referência o mundo exterior, apesar de inicialmente
reviverem a convivência humana. No confronto e superação dos obstáculos e perigos, o herói segue sua luta na fantasia mágica e fantástica ao personificar os conteúdos internos que, quando solucionados, ajudam o desenvolvimento humano.
Acho importante ponderar que as imagens universais, formadas através da repetição de imagens latentes e gravadas no cérebro desde a pré-história, fazem parte
do inconsciente humano. Estas imagens criam resíduos violentos e benéficos que
poderão ser manifestados através de nossas atitudes, pensamentos e afetividade e
podem nos conduzir durante nossa vida.
“Quanto maior o número de experiências, mais numerosas as probabilidades de as imagens latentes tornarem-se manifestas. Eis por que
um ambiente rico e muitas oportunidades de educação e aprendizado fazem-se necessários para a individuação (tornar consciente) de
todos os aspectos do inconsciente coletivo” (HALL, 2003, p.33).
Dessa forma a violência e o medo presentes nos contos são os mesmos que
se apresentam e fazem parte da natureza infantil e do desenvolvimento da humanidade. A arteterapia, ao mediar em suas oficinas a fantasia das histórias, facilita a elaboração dessa violência que pode ser melhor compreendida, assim como trabalha
o aspecto afetivo e emocional das pessoas. Através das oficinas de ouvir – brincar –
contar histórias a arteterapia provoca mudanças de paradigma, busca autoconhecimento e melhoria da auto estima, estimulando o desenvolvimento do paciente. Para
encontrar um final feliz é necessário transgredir como o herói dos contos, o qual
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rompe com o que lhe é imposto, sai pelo mundo, vence seu medo e controla sua agressividade.
As imagens presentes nas histórias agem diretamente no inconsciente sem necessidade de interferências por parte do contador e ensinam como lidar com as contradições existentes em todo contexto ambiental e seu sistema de inter-relações física e humana. Para vencer é preciso travar no inconsciente verdadeira luta ao dialogar com as imagens enquanto houver medos, problemas, lutas e necessidade de vitórias. Para Radino, através das histórias são elaboradas as dificuldades concretas.
É quando se aprende a dominar os medos, melhorar as relações pessoais, conquistar espaços e reconhecer-se como individuo distinto e único. Ao brincar com as histórias permite-se criar imagens ricas em conteúdos simbólicos, mexer com as emoções básicas, ouvir afetos, dialogar com as bruxas e ser auxiliado por fadas, vencer
dragões e transpor muralhas, ser o herói ao solucionar o enigma ou salvar o indefeso, ser feliz para sempre ou aprender a lutar pela felicidade. Este movimento vital na
busca de soluções tem como função nos levar ao encontro da mudança, da transformação e funciona como recurso de desenvolvimento pessoal.
 A linguagem simbólica trazida pelas histórias.
Assim como o ser humano passa por quatro estágios para que possa nascer,
dentro do processo de parto, os quais tentarei mostrar mais adiante, as histórias podem estar retratando também o momento no qual atravessamos a floresta escura do
útero, saindo do rico castelo onde é protegido para ir no sentido do perigo pelo canal
de nascimento. Sinto este processo como a luta travada entre o príncipe que precisa
vencer e o dragão que mantém refém a princesa. Nesta matriz o príncipe precisa reaver a princesa, salvá-la para poder resgatá-la da opressão.
Para ser um herói era preciso enfrentar o medo da morte, o pior de todos os
temores. Jamais perder a dignidade e a lealdade, mesmo nos momentos mais difíceis. O autocontrole era o caminho para a vitória e a sabedoria. Ele deveria ser forte,
justo, leal, verdadeiro e simples, não ser prisioneiro da cólera, da ambição e da ignorância, defender os injustiçados e proteger as donzelas, saber lutar com inteligência
usando a força da arte e da astúcia, transformando a luta em um jogo de rapidez e
elegância.
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Ouvir, contar e brincar com histórias favorece um estado de espírito, mediando
aspectos: recreativo, educativo, instrutivo, religioso, ético e físico, abrindo as portas
para o encontro com o espaço interno, oferecendo segurança e desenvolvendo a
escuta, o pensar, o interpretar, o expressar-se. Conduzir a pessoa para mundos imaginários onde ela cria e vê, se emociona e vive o que lhe é narrado, desperta em
seu espírito uma série de valores desenvolvendo a sua imaginação pelo exercício,
reprodução e construção do conhecimento.
Se ouvir, contar e brincar com histórias é fazer uma viagem fantástica, repleta
de surpresas, sustos, medos ou aventuras que proporcionam alegrias, tristezas e estimulam vivências de emoções, é também a revelação de uma realidade simbólica.
Esta realidade pode ser fascinante ao oferecer rico material e oportunidade para a
construção de imagens. As histórias, ao permitirem a elaboração de imagens e resoluções de situações-problema, acessam símbolos que constroem e organizam pensamentos conscientes, libertando energias. Estas atividades preparam gradualmente
a própria compreensão e desenvolvimento da pessoa humana ao estimular valores,
sabedoria, solidariedade, reavivar emoções e despertar sentimentos. Conforme já
vimos, o crescimento pessoal para Ferrer (2001, p.20), “é um processo que nos leva
a desenvolver ao máximo nossas potencialidades”. Tecendo paralelos entre as histórias pessoais com os elementos das histórias da cultura popular, podemos envolver
nossa criança interior com o encanto que nos leva à fantasia e à criatividade, o que
nos ajuda a meditar sobre e a solucionar problemas, enquanto expandimos a organização do pensamento, da memória discursiva, bem como da auto-estima. Neste
procedimento os processos internos se revelam, se tornam mais compreensíveis,
mobilizam conhecimentos que já possuímos e nos impulsionam a amadurecer sentimentos adormecidos e inconscientes.
Segundo Arcuri (2004), referindo Groff (2000), psiquiatra tcheco, temos que a
consciência é fruto de processos fisiológicos e depende exatamente do corpo. Segundo este psiquiatra para a neurologia ocidental, essa concepção antropológica
básica é um dos mitos que influenciam e orientam as pesquisas materialistas ocidentais e a nossa sociedade. Para Groff, o longo processo da formação do feto e a vida
no útero materno, assim como o processo de nascimento, geram marcas profundas
na mente humana. Nesta fase de geração a criança está consciente, se estressa
emocional e fisicamente no momento do nascimento o que lhe acarreta registros que
15
instauram traumas intensos em seu inconsciente. Esta memória registrada em seus
mínimos detalhes provoca um efeito profundo em nosso desenvolvimento psicológico. Abaixo cito Irene quando se refere à Groff.
“Há, ao longo do processo de desenvolvimento da vida intra-uterina e
do nascimento, quatro momentos de experiências bem distintas, aos
quais Groff chamou de matrizes perinatais, uma vez que elas se tornam de fato, matrizes de comportamento, formas de compreensão
da vida, das relações humanas e de si mesmo.Na matriz I a experiência primordial é de se estar num lugar onde não há limites, barreiras, oposição ou qualquer experiência negativa. (Pensando em uma
gravidez sem problemas emocionais ou bioquímicos da mãe.) Permanece um bem estar paradisíaco.Quando as contrações do parto
iniciam, esta experiência do lugar, da matriz I, cede lugar para a matriz II onde há a pressão mecânica sob o feto, e a conseqüente diminuição de oxigênio pela compressão sobre o cordão umbilical. Isto
produz muito sofrimento mecânico, uma sensação de confinamento,
sem saída e medo, terror, pois ele não sabe que há uma saída. O
instinto de sobrevivência faz com que a atitude passiva da matriz
mude para uma luta ativa, pela vida, e entramos na matriz III, onde
prevalece a raiva, um movimento de expansão do corpo, de agressão.Após o nascimento, há um relaxamento, entramos na matriz IV,
onde prevalece novamente um sentimento positivo de tranqüilidade.
Tudo isto é vivido com muita intensidade de experiências físicas e
emocionais” (ARCURI, 2004, p.48-49).
Assim, como para Arcuri (2004), no nascimento, o ser humano faz uma verdadeira jornada à luz, e Groff descreve o parto como sendo um processo de nascimento, morte e renascimento. Morte porque o feto morre para a vida aquática e nasce
para a vida aeróbica; renascimento porque rompe relações simbióticas com a mãe e
passa a ter autonomia de vida própria. Espero demonstrar a importância das histórias populares ao retratar este mesmo processo, na jornada do herói vencendo os
obstáculos e conseguindo sua liberdade e autonomia. Se o ser humano luta para
nascer e enfrenta a morte no próprio parto, vejo que sua luta nesta ocasião é a luta
de um herói em busca da consciência e da sua vida para a luz. Cada momento da
vida é como o parto: morte e renascimento, saga heróica!
16
É necessário portanto propor um ambiente desafiador de resgate do universo
interior, recolhendo imagens que favoreçam o desenvolvimento da afetividade, de
perceber-se a si mesmo e ao outro. Ler representações artísticas através de histórias, desenhos, esculturas, gestos, pode ser o reviver destas experiências do nascimento. Elaborá-las pode ser um processo de cura e de libertação das amarras e opressões em seu relacionamento intra e interpessoal. A arte desempenha papel importante na educação e formação do homem como um todo, constitui um processo
de imaginação que seleciona, modifica e interpreta. Ao criar, a pessoa manifesta parte de si própria: como pensa, sente e vê, de forma dinâmica e unificadora a atividade
artística exterioriza a auto-expressão. O importante para a transformação é o fazer, o
decorrer do processo no desenvolvimento dos sentimentos, afetos, pensamentos,
percepções e reações, bem como das atitudes positivas durante seu reconhecimento e auto-identificação.
Para Radino (2003, p.56) “...o grande inimigo que cerca nossa existência, como
a vida e a morte, nunca puderam ser concebidas cientificamente e procuramos algumas respostas por meio dos mitos”. Para Campbell, citado por Radino a necessidade do mito mais do que dar sentido à vida é a verdadeira experiência de vida, é
Ser, é o instante em que se É, é a união do Estar e do Ser, do Viver. Desta forma
buscamos a verdade, o sentido da significação da vida enquanto contamos nossa
história. Neste processo compreendemos e enfrentamos a morte, pedimos ajuda para compreender nosso nascimento, e depois a morte.
As histórias expressam uma determinada experiência humana que dificilmente
deixam de se aproximar da realidade social da época em que elas surgem e se tornam verdadeiros documentos históricos.
Tomo como referência, Radino (2003) citando Campbell, ao registrar que a necessidade do mito é relatar a experiência de se estar vivo e que ao ressoar internamente faz pulsar o verdadeiro prazer de viver.
Quando uma história nos possui, ou seja, quando uma narrativa é recorrente, uma história sempre presente em nossa vida, seja ela Cinderela, (...), essa história se transforma em um tema fascinante que
se relaciona com a forma pela qual decodificamos nossas próprias
experiências (PRIETO, 1999, p.16).
17
Propp (1984), após pesquisar a estrutura de mais de cem contos, encontrou
estruturas idênticas ou similares, o que lhe fez observar que as histórias “possuem
uma origem comum relacionada a praticas comunitárias dos povos primitivos” e que
“o mito foi se transformando em conto no momento em que a história se desvinculou
da narração ritualística”. Desta forma, quando desapareceu o sistema social, no qual
o mito se originou, surgiu o conto popular. Propp, analisando os mitos e os contos,
afirma que “ambos incorporaram a experiência cumulativa de uma sociedade diante
da necessidade de transmitir a sabedoria dos antigos às gerações futuras”.
“O conto nasceu do povo e foi para ele.
É um documento vivo, denunciando costumes,
idéias, mentalidades, decisões e julgamento.
Para todos nós é o primeiro leite intelectual” (Câmara Cascudo).
Quando as histórias surgiram, no período feudal, elas não eram dirigidas às
crianças, que, aliás, não eram reconhecidas como um ser em formação e sim como
pequeno adulto, sendo que até o séc. XVI viviam sem nenhum valor ou expectativa
de vida, eram tratadas como adultos e maltratadas. Apesar de quererem bem aos filhos, não havia carinho e afeto por parte dos pais, cuja função era a conservação
dos bens, terem um ofício e protegerem a honra. A este fato deve-se a alta taxa de
mortalidade infantil, que na época compelia a certo desapego aos filhos, preparando
os pais para a perda das crianças. Muito comum também neste período era a morte
por asfixia de crianças que eram colocadas para dormir entre os pais, coisa que bem
feita era tida como acidente. Neste período a luta pela sobrevivência era constante,
com os camponeses trabalhando nos campos e submetendo-se aos senhores feudal. Se o homem trabalhava no campo, a mulher tinha muitos filhos na esperança
que alguém se salvasse e pudesse então auxiliar no trabalho e na sobrevivência da
família. Assim, não havia aceitação da infância na família, desde cedo era necessária a cooperação de todos. Entre os camponeses o abandono dos filhos era coisa
comum, quando já não agüentavam suportar a miséria e a fome dos filhos. Podemos
observar e sentir a angustia dos pais com a fome e as necessidades que os filhos
passavam, a preocupação com sustento levava o conseqüente abandono destes filhos. É o que encontramos no trecho da história de “Joãozinho e Mariazinha” que
segue abaixo:
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Chegou um ano muito ruim, e a fome foi tanta, que aquela pobre
gente resolveu se desfazer dos filhos Uma noite, em que não conseguia dormir de tanta preocupação, virando-se de um lado para outro
na cama, desabafou com a esposa:
- O que será de nós? Como vamos sustentar os nossos pobres filhos, se não temos o que comer?
- Sei de um jeito, respondeu a mulher. Amanhã cedo vamos levar as
crianças para o interior da floresta, onde ela é mais fechada, e lá faremos uma fogueira e daremos um pedacinho de pão a cada um.
Depois iremos trabalhar, deixando-os sozinhos. Não acharão o caminho para casa e estaremos livres deles (GRIMM, 1993, p.5).
Esta história tem início com a situação problemática da família que é a carência
tanto material como afetiva simbolizada pela fome e pela presença da madrasta, já
que as crianças são órfãs. Aqui a madrasta é o personagem que provoca separação,
rompe a estrutura familiar, que já existe em equilíbrio precário, e favorece às crianças o enfrentamento do desconhecido, para o qual ainda não estavam preparadas.
 Funcionalidade dos Textos Narrativos
Em Gillig (1999, p.57) me deparo com o modelo de grade de esquema funcional dos contos, apresentado pelo pesquisador Larivaille, onde observo uma encadeação lógica e cronológica que demonstra a seqüência elementar, e de um “estado inicial degradado, que atinge um estado final remediado”. Ao caminhar pelo texto,
sinto a dinâmica mediada pelo começo, meio e fim das histórias, com importante
significado para a elaboração do processo e para a transformação do desenvolvimento humano.
I
ANTES
Estado inicial
Equilíbrio
Precário
1
Equilíbrio
II
DURANTE
Transformação (efetuada ou sofrida)
Processo dinâmico
2
Provocação
(detonador)
(desencadeador)
3
Ação
III
DEPOIS
Estado final
Equilíbrio
4
Sanção
(conseqüência)
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A estrutura básica destas histórias, que apresento em seguida, expressa a caminhada para que o herói consiga sua auto realização existencial.
Nesta grade funcional o texto de qualquer narrativa é dividido em começo, meio
e fim, ou seja, antes, durante e depois. Larivaille subdivide a etapa que ele denomina
“durante” em provocação e ação, perfazendo então na estrutura básica das histórias
quatro momentos que partem de um estado inicial de equilíbrio precário, caminham
para um processo dinâmico de transformação, seguem através de provocações e
ações para na etapa do “depois” atingir estado final de equilíbrio obtendo a conseqüência ou a sanção. Retomo Arcuri (2004) quando explica que as matrizes perinatais são transformadas em matrizes de comportamento e a vida intra-uterina tem seu
início em estado de equilíbrio e bem estar sem barreiras negativas, se pensarmos
em uma gravidez normal, lembrando que nem sempre nas histórias e na vida real o
estado inicial corresponde a uma situação de equilíbrio. Com certeza muitas histórias iniciam seu texto em situação de equilíbrio precário ou até de desequilíbrio para
chegarem ao final em estado de equilíbrio estável, com uma conseqüência de felicidade e realizações pessoais. Estamos neste momento na matriz IV quando após o
nascimento há o relaxamento, o sentimento positivo. Durante o desenrolar da história há o momento de provocações e conflitos, quando o herói se sente ameaçado
passando por experiências desconhecidas e aflitivas, assim como na matriz II as
contrações que desencadeiam o início do parto, provocam pressão sobre o feto e
por conseguinte a falta de oxigênio e sofrimento, a sensação de medo e de dor, de
um momento sem saída que lhe provoca terror, pois este herói não tem conhecimento do que deve ser feito. Volto ao esquema das fases do conto e resgato o momento
da ação, do poder do objeto mágico, do momento da imaginação, da participação ativa do herói que defende a vida, e que me é sugerida por Larrivaile como a fase da
transformação, do processo dinâmico, enfim, da ação. Neste momento penso em
uma gravidez normal e encontro:
Na matriz I a experiência primordial é de se estar num lugar onde
não há limites, barreiras, oposição ou qualquer experiência negativa.
O instinto de sobrevivência faz com que a atitude passiva da matriz II
mude para uma luta ativa, pela vida, e entramos na matriz III, onde
prevalece a raiva, um movimento de expansão do corpo, de agressão. Após o nascimento, há um relaxamento, entramos na matriz IV,
20
onde prevalece novamente um sentimento positivo de tranqüilidade.
(ARCURI, 2004, p.48-49)
A compreensão do conflito permite ao herói lutar, sua coragem lhe traz esperança de sucesso, a punição do vilão é a devida recompensa. O final feliz é o sucesso, é a recompensa de se enfrentar o problema que leva o herói ao estado final de
equilíbrio. A vida nem sempre é plena de felicidade, no caminho há tropeços e sofrimentos e este aspecto simbólico encontrado nas histórias é com certeza o que desperta o interesse e a atenção dos ouvintes, desenvolve, entre outras coisas, a imaginação, a criatividade: vencer como herói os espinhos da vida. Vemos a expressão
de sentimentos, emoções e idéias, ao apontar situações nas quais se pode interagir
e possibilitar o desenvolvimento pessoal.
A maneira primitiva de narrar até hoje é uma constante, está presente nos diferentes gêneros literários que traçam histórias habilmente entrelaçadas de mitos, lendas, sagas, contos, compostos por provas de iniciação, nascimentos, mortes e ressurreições. Apresentam em seu conteúdo elementos representativos, refletindo a
época em suas características históricas e sociais; seus cultos e sua criticidade à
sociedade e ao indivíduo.
Assim, para ilustrar o estudo tomo como referência uma narrativa e ofereço a
História de Perrault, “Joãozinho e Mariazinha”. Nesta história escrita entre 1694 1695, o autor nos aponta uma situação de fome, um estado crítico de miséria que atravessava a família e que houve um abandono por amor. Retirei este quadro comparativo, apresentado por Larrivaille, apud Gillig (1999), porque me deparei com traços denunciadores de situações presentes não só na trajetória do herói, que é reabilitado por Perrault, mas, na trajetória do processo do desenvolvimento humano.
Ao analisar a história de João e Maria (anexo), através da grade de Larivaille
percebo que além de reviver a situação histórica do ser humano, durante a Idade
Média, esta história popular mergulha em nosso inconsciente buscando a simbologia
que nos leva ao útero materno. Ao encontrar a casa da bruxa, as crianças entram no
mágico da casa materna, a imagem do centro do mundo, sua mãe e seu útero. Sendo doce e gostosa, a casa oferece às crianças os elementos que lhes são necessários para o físico e o afetivo. Neste lugar repleto de fantasias eles vão poder resolver
seus conflitos e problemas, salvar-se, ao mesmo tempo em que este processo traz a
ambos o crescimento interior.
21
I. ANTES
1.
Estado inicial, equilíbrio precário.
Joãozinho, Mariazinha e seus pais passam muita fome.
II. DURANTE
2.
Desencadeamento, provocação.
Os pais decidem abandonar as crianças na floresta.
3.
Outras ações do meio
Abandono das crianças na floresta por duas vezes.
Na Segunda vez, crianças não encontram o caminho de volta.
Encontro com o pássaro que indica a casa da bruxa.
As crianças comem partes da casa da bruxa.
Aparecimento da bruxa, as crianças são alimentadas e colocadas
para dormir.
Aprisionamento de João e escravização de Maria.
Joãozinho é submetido a provas: episódios do dedo que não quer
engordar.
Preparação do sacrifício de Mariazinha.
Colocação da bruxa no forno e sua morte.
III. DEPOIS
4.
Sanção. Conseqüência
Descobertas as crianças em liberdade, retornam a casa, morte da
madrasta, enriquecimento graças às pérolas e pedras preciosas
roubadas da bruxa.
5.
Estado final
“Assim acabaram-se todas as preocupações e eles viveram junto
felizes para sempre.”
(apud. GILLIG,1999, p.58- 59).
Para Arcuri (2004), ao proporcionar às pessoas oportunidades de reviver estas
fases e experiências perinatais, “num estado ampliado de consciência, num ambiente protegido”, estamos facilitando algo curativo.
Acho importante colocar que para mim, quando contamos, brincamos e ouvimos histórias, podemos tocar na carga emocional ligada às matrizes perinatais que
são lembranças inconscientes, de vivências muito fortes e sofridas com muita intensidade, tanto físicas como emocionais.
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Se o nascimento traz um final feliz, propiciando ao bebê-herói relaxamento e
estado final de equilíbrio, as histórias redimensionam a realidade propiciando a este
herói fortuna e a felicidade do final: felizes para sempre!
Acredito que os finais felizes das histórias propiciam aos professores e contadores de histórias, reflexão, crítica e compreensão do mundo, da realidade de vida,
dos conhecimentos e criam novas idéias, colaborando assim para o crescimento
pessoal e o resgate de si mesmo e da própria infância.
É preciso lembrar que as histórias a princípio não foram escritas em especial
para as crianças. Como já foi dito, naquela época as crianças viviam anônimas, não
eram valorizadas. Somente a partir do século XVI e XVII é que de forma gradativa a
infância foi sendo reconhecida como um ser em formação. Para Darnton as histórias
são verdadeiros documentos históricos ao retratar a vida familiar, profissional e social do homem em sua trajetória de vida. A realidade das guerras, fome, epidemias, as
mortes, a existências das madrastas, o abandono dos filhos e o desejo de riqueza
estão registrados nas histórias. A fantasia e a imaginação surgiam como forma de
superar a humilhação a que eram submetidas as famílias no regime feudal, ou pela
própria vida.
Quando surge a economia capitalista a criança das classes populares começa
a ser reconhecida e valorizada. Com o estreitamento dos laços afetivos, a criança
começa a ouvir histórias, o que talvez seja uma forma de acessar o próprio interior,
criar fantasias, dominar as angústias e os medos projetados.
“O mundo das crianças não é tão risonho quanto se pensa. Há medos confusos e difusos, as experiências das perdas, bichos, coisas,
pessoas que vão e não voltam... O escuro da noite: o mundo inteiro
se ausentou” (ALVES, 1984, p.7).
 Histórias: vida e transformação
Aqui cabe uma pequena reflexão ao nos lembrar das “Mil e uma Noites”, quando Scherazade luta contra a morte das jovens da corte de seu país: seduz seu marido contando-lhe histórias, por noites e noites. Segundo Jorge Luis Borges “a palavra
mil é, para nós, quase sinônimo de infinito. Falar em mil noites é falar em infinitas
noites. E dizer mil e uma noites é acrescentar uma além do infinito”.
23
“As mil e uma noites são uma estória da luta entre o vento impetuoso
e o vento suave. Ela revela o amor que não se apaga nunca [...] Cada história contém uma outra, dentro de si, infinitamente...Não é uma
história de amor, entre outras. É, ao contrário, a história do nascimento e da vida do amor... É preciso saber ouvir. Acolher. Deixar que
o outro entre dentro da gente. Ouvir em silêncio...E é preciso saber
falar E, sobretudo, os que se dedicam à difícil arte de adivinhar: adivinhar os mundos adormecidos que habitam os vazios do outro. As
mil e uma noites são as histórias de cada um. Em cada um mora um
sultão. Em cada um mora uma Scherazade” (Alves,1997, p.23).
Mas, um conto popular da América Latina, que ouvi, em uma reunião de contadores de histórias, me faz novamente olhar a realidade do mundo. O encantamento
começa com o caminho entre a vida e a morte, a luta do herói, a garra da mãe para
salvar seu filho. Penso sempre neste conto como uma declaração de amor à vida,
quer dizer, acolher a vida em sua integridade. Assim de forma simples, mas amorosa, a imaginação e o real dão as mãos e criam com perfeição este conto anônimo:
Em um lugar bem distante daqui, vivia um casal muito bom, de cujo
casamento nascera uma filha.
Eram pessoas muito trabalhadoras apesar de viverem com grande
dificuldade financeira. Sua filha era uma criatura meiga , muito bonita
e obediente aos seus pais. Desde pequenina ajudava-os no trabalho,
conforme percebia a necessidade de cada um.
Apesar do trabalho, houve um período de grande prejuízo com as
terras e animais. Seus pais desta vez não tiveram como se livrar e
precisaram se socorrer da ajuda do senhor da região. Este era um
homem rude que cobiçava a linda garota há muitos anos, e só ajudaria o casal se eles lhe prometessem a mão da filha.
Desgostosos, mas esperando que um milagre acontecesse, como
não tinham como alimentar a filha e nem mesmo seus animais, aceitaram a imposição do grande senhor.
Pela obediência devida aos pais, e porque queria livrá-los da dívida e
da perseguição do senhor, a pobre garota casou-se e foi morar com
seu esposo distante dos pais.
Sua vida tornou-se um verdadeiro calvário. Além dos afazeres domésticos tinha que dar conta do trabalho no campo, cuidar dos ani-
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mais e à noite receber aquele homem tão rude que a maltratava e
até lhe batia.
Certo dia, a jovem tremendo de medo e emoção percebeu que em
seu ventre pulsava uma nova vida, ela seria mãe. Era necessário defender esta vida, jamais ela poderia deixar que seu filho sofresse, ela
não queria perder esta criança, este reinício da vida.
Quando à noite seu esposo chega, já enraivecido, querendo levantar
um chicote para ela, ela toda gentil e ao mesmo tempo firme, lhe diz:
- Agora, não. Ouça primeiro o que tenho para lhe contar.
Assim lhe contou uma longa história, mas não terminou, parou em
ponto estratégico, aguçando a curiosidade do marido.
Na noite seguinte ao voltar para casa seu marido logo pediu que ela
terminasse de contar aqueles fatos por ela narrados. Ela argutamente ao terminar a história, já iniciou outra, que contou até que seu marido se sentisse cansado e fosse dormir.
Desta forma o tempo foi passando e muitas outras ainda foram contadas. Após o período de gestação deu à luz uma linda menina, com
lindos cabelos encaracolados. Aquele rude senhor de imediato ficou
maravilhado com sua filha, assim como sem perceber se apaixonara
pela esposa. Desabrochava desta forma uma nova perspectiva de
vida sendo todos felizes em um novo lar que nascia. O pai se achega
à jovem esposa e filha, tocado em sua afetividade) 1.
Em nosso processo da aquisição de conhecimentos, ao aguçar a imaginação e
regredir em nossos desejos e culpas, compomos uma forma e podemos desenvolver
experiências e exteriorizar nossas angustias, tristezas.
“O ser sensível é como um espelho d‟água encrespando ao mais ligeiro vento e onde uma pedrinha jogada ao acaso traça ondas em
círculos sempre crescentes” (OSTROWER, 1987, p.73).
1
Congresso Internacional de Contadores de Histórias, 1999, SESC Vila Mariana, São Paulo.
25
26
3. AGIR PARA TRANSFORMAR: MINHA AÇÃO
“O homem
é resultado de uma longa herança,
que jamais rompeu os laços
que o ligam ao passado”
Jung
Baseada em minha vivência e experiência no trabalho com crianças, jovens e
professores em escolas públicas da periferia da cidade de São Paulo, seja desenvolvendo atividades em sala de leitura seja em oficinas de criatividade com contação
de histórias, tenho me dedicado a estudar e pesquisar sobre as histórias da tradição
oral, bem como do gênero moderno, e o seu envolvimento com o ser humano. Neste
trabalho, procuro despertar nos participantes do projeto o interesse investigativo para estimular o desenvolvimento da percepção de mundo e de si mesmo, dos estímulos às emoções, da afetividade à organização do pensamento. Uma direção para se
refletir sobre Ética e Cidadania.
27
Através das oficinas de criatividade para “Ouvir - Contar – Brincar com Histórias”, mediada pela arteterapia, desenvolvemos atividades variadas tendo como referência mitos, histórias, contos, causos.
 As oficinas
Ao desenvolver oficinas de criatividade, mediadas pela leitura ou contação de
histórias e o estudo do seu conteúdo, percebo o desenvolvimento da auto estima em
crianças, jovens e adultos como processo socializador e de auto controle.
Ao ouvir uma história, o ouvinte aprende a colocar-se no lugar do outro e assim
elabora diferentes pontos de vista. Com a intenção de fazer valer seu ponto de vista,
desenvolve uma linguagem interior que lhe permite levantar hipóteses e se preparar
para argumentar e contra argumentar. A preocupação com a argumentação, com a
clareza, na tentativa de evitar incompreensões e contradições, aos poucos estabelece coerência em suas argumentações. Ao oferecer valores formativos estabelece
vínculos significativos entre os presentes, para formação da individualidade em suas
dimensões éticas.
Através da interpretação das histórias utilizando diferentes linguagens, verbal,
escrita, corporal ou outras linguagens que transmitem sentimentos, podemos identificar o que é relevante e possibilitar a recuperação nas possibilidades do potencial
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de cada participante. Como suporte de trabalho, considero o desenho, a pintura, a
escultura, o ritmo, o som, a expressão corporal. Estas atividades propiciam vivências
e favorecem reflexão e compartilhamento permitindo a evolução da criatividade e do
autoconhecimento ao exercitar o trabalho coletivo, a responsabilidade individual e
grupal.
“Nas crianças, a expressão artística equivale a um experimento direto. Conquanto ocorra na área do sensível, o fazer não se coloca para
a criança num plano diferente de qualquer outra experiência de vida
apenas é feita com materiais que por nós são considerados “artísticos” Assim, a tensão psíquica correspondente à experiência, a criança a extravasa no momento da ação” (OSTROWER, 1987, p.74).
As oficinas para estudo das histórias aconteceram como projeto para resgatar a
tradição do contador de histórias, no período do mês de setembro de 2000 até dezembro do ano de 2004. Durante este período diversos grupos foram formados tendo como participantes alunos e professores. Cada grupo de crianças ou jovens era
formado com dez ou até quinze participantes. Já o grupo de professores era composto de até 25 pessoas e desenvolvido em Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo, espaço obrigatório nas escolas públicas do Estado de São Paulo.
Trata-se de projeto que desenvolvo em contexto de “aprender fazendo o que
não se sabe fazer”, transformando a oficina em procedimentos dinâmicos de aprendizagens vivas e enriquecedoras, na qual o grupo de alunos e professores presumivelmente poderia se tornar contadores de histórias.
Ao se tornar um contador de histórias cada um dos envolvidos passa a se expressar de diversas formas, com diferentes linguagens. Assim, ao desafiar o resgate
do desenvolvimento pessoal, abrem-se canais de comunicação que promovem a
fantasia e a imaginação, e provavelmente assimilam conflitos.
Ao envolver grupo de crianças, adolescentes e professores com a contação de
histórias, utilizando os recursos da arteterapia, estamos desenvolvendo competências conquanto procuramos:

Resgatar em cada participante a sensibilidade, as competências, a criatividade, a auto-estima.

Desenvolver a observação, a organização do pensamento, da memória, da
leitura e da escrita, da verbalização e da confiança em si.
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
Aumentar a auto-estima pela descoberta de potencialidades e pela própria
valorização pessoal.

Reencontrar e resgatar em cada participante a criança interior.
Os participantes desenvolveram ações que envolvem o seu pensar, sentir e fazer, a troca de experiências, a criação e a elaboração de sentimentos e conceitos.
Para a compreensão da história, o texto foi trabalhado por todo o grupo.
Além da respiração, foram realizados exercícios corporais, de voz, de espaço,
toques pessoais, exercícios com panos e reflexão.
Ressalto que com o suporte de materiais plásticos, como o papel, tintas, pincéis, giz de cera, argila, sucatas e massinhas de modelar, o grupo elaborou as imagens simbólicas vivenciadas pelas histórias, projetando emoções, conflitos, aspirações e reorganizando o eu interior. Com este procedimento a partilha dos comentários, utilizando a palavra e o gesto com respeito, sem criticar o outro, mas auxiliando
o crescimento do amigo, os participantes exercitaram aspectos afetivos e éticos. A
habilidade de observar o envolvimento dos presentes, do amigo com quem me comunico, e as diferentes possibilidades de participação considero, que facilitam a auto-estima e a socialização do grupo.
Durante a avaliação individual e grupal foram compartilhadas as dificuldades, o
crescimento, a ajuda, que consolidaram laços afetivos de companheirismo, amizade
e respeito.
“O homem descobriu, desde tempos remotos e imemoriais, que
qualquer habilidade é um recurso a mais à sua disposição; mas, só
depois que aprendeu a criar disponibilidades para seu próprio conhecimento, ele descobriu e cultivou os seus valores, fazendo-se admirado e respeitado. E é a Literatura Infantil que vai criar essas disponibilidades, porque ela é a básica; dela é que vêm todas” (CARVALHO, 1989, p.17).
Tal como embalar o bebê enrolado nos panos, criei procedimentos que embalam as histórias nas vivências que proponho. O envolvimento com os panos, como
suporte especial ao brincar com as histórias, evoca momentos de aconchego e prazer que resgatam a infância. Esta vivência e movimentos recuperam o amor e o carinho perdidos, mas inerentes a todo ser humano pela sua própria criação, contribuindo para o desenvolvimento pessoal.
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Farei em seguida considerações sobre o próprio dinamismo das oficinas
 Nas oficinas - o resgate da criança interior
Começava as oficinas com exercícios de sondagem procurando perceber as
habilidades de cada participante, através de jogos e perguntas variadas sobre aspectos observáveis do local, brincávamos de enumerar os móveis existentes no local, a cor da parede e do teto, alguma coisa que não havia anteriormente, etc.
O contador de histórias tem necessidade de desenvolver em si algumas habilidades como ser bom ouvinte, observar ao seu redor e o seu dia a dia. Perceber as
semelhanças, diferenças e sutilezas do ambiente e da natureza para poder sentir, vivenciar e saber transmitir instigando a imaginação de quem ouve. Para brincar com
as histórias é necessário compor seu cenário, visualizar e simbolizar seus personagens.
Criação do espaço de trabalho através de exercícios com comandos: andar
com passos largos até... diminuir os passos chegando até... caminhar levando as
mãos para frente e dando profundidade ao espaço, levantar os braços procurando
chegar o mais alto possível para chegar ao teto, abaixar andando bem próximo ao
chão, e outros exercícios usando a criatividade do próprio grupo.
Ouvindo música adequada para relaxamento, fazer exercícios com a respiração e com o corpo.
Os panos são integrados aos exercícios durante as atividades nas oficinas de
contação de histórias. Enquanto colocava músicas suaves e relaxantes, ou com ritmos variados, pedia aos participantes que sentissem as sensações motivadas pelo
toque dos panos, e que em seguida fizessem movimentos e ouvissem atentamente a
história que este momento lhe contava.
Os diálogos com os panos, são facilitadores para os participantes entrarem em
sincronia com seu íntimo, em contato com sua emoção. Ao trabalhar com movimentos e panos, as imagens internas tornam-se alertas e os recursos internos surgem
vivos, com presença e força. É o momento talvez em que a história age, é quando
acontece a aprendizagem e a transformação, por não haver solicitações externas,
pois a atenção está presa aos acontecimentos, às imagens interiores, às lembranças
que são valiosas, quer sejam conscientes ou inconscientes.
31
“Nossa experiência e nossa capacidade de configurar formas e de
discernir símbolos e significados se originam nas regiões mais fundas de nosso mundo interior, do sensório e da afetividade, onde a
emoção permeia os pensamentos ao mesmo tempo em que o intelecto estrutura as emoções” (OSTROWER, 1987, p.56).
Ao investigar a si mesmo o grupo pode expressar seus sentimentos, através da
palavra, dos gestos e do corpo.
 Procedimentos
A história, escolhida previamente, era contada para o grupo. O grupo era subdividido em grupos menores, para conversar sobre a história, através de atividades
sugeridas. Em cada oficina selecionava algumas atividades entre as seguintes:
1. Cada participante do grupo deve escolher seu personagem
2. Cada grupo deve encontrar um tema para a história
3. Dividir a história em partes, representar cada parte da história com o corpo,
congelando-a em um quadro fotográfico
32
4. Dar movimento a estas cenas
5. Colocar som nestas cenas
6. Representar com desenhos estas imagens.
7. Encerrar dando temas aos diferentes quadros (cenas) da história
8. Escrever uma história
9. Pedir a cada participante para escolher um pano que represente a cor do seu
personagem ou do seu tema. Em seguida criar um diálogo com este pano contando sua história.
10. Em outro momento peço que cada um procure uma pessoa do grupo e conte a
história do seu personagem e a seguir que ouça a história do amigo.
11. Com a dupla formada, sugiro que juntos, com seus personagens, recriem uma
nova história.
33
Acredito que ao trabalhar suas imagens com esta orientação, o grupo participa
da compreensão da história contada vivenciando experiências internas que vão se
contrapondo às experiências externas, e devagar auxiliam na construção da própria
história (pessoal) e do seu significado. Ao observarmos uma obra de arte, reagimos
de forma diferente em relação a outra pessoa e em relação a nós mesmos. Dependendo do momento, nossas reações são sempre diferentes e muitas vezes nos surpreendem.
34
35
4. FELICIDADE NO TRANSFORMAR: FINAL FELIZ
Contar histórias
é conversar com elas
Ouvir histórias
é sentir o que elas têm para nos dizer.
Zuleika S. M. Cintra
Cada pessoa se emociona, percebe e se identifica com algum aspecto, um determinado personagem ou momento da história. Conforme ela se vê refletida ou se
encontra em sintonia com o enredo, encontra seu significado. O tema poderá auxiliar
na construção do seu personagem, ou seja, do seu crescimento pessoal.
Neste sentido dar e receber ao mesmo tempo são experiências que nos transformam porque as histórias sempre têm alguma coisa para nós, como nós temos para a nossa história quando exercitarmos as idéias de imagens internas.
Relatarei em seguida a experiência que tive com as alunas de 3ª série do ensino fundamental em 2003, gostaram de brincar com os panos e assim se expressaram.
36

Gabi. - O pano dá mais vida à história, dá paz. É mais gostoso contar histórias com
panos. Ele lembra cama, sono, colo da mãe. Dá vontade de dormir, ficar embrulhada.

Fe. - Brincar com panos dá mais luz à história, mais realidade. Mexer é bom porque a gente se sente como quando sai da cama, pegando a roupa para se vestir,
se cuidar, dá vontade de dormir.

Wi. - Com panos dá mais vontade de contar histórias, dá mais energia na personagem. Ele é bem macio, traz conforto. Minhas mãos ficam confortáveis com os
movimentos dos panos. Eu lembro que estou lavando alguma coisa, que eu estou
com minhas irmãs e com minha mãe.
Observo que geralmente no primeiro momento brincar com os panos causa
vergonha. Quando o grupo se libera das amarras, se solta, se envolve e se permite
ser, ao brincar e dançar age espontaneamente. Na verdade a história que se conta e
cria é a verdade de cada um, é a humanidade de cada um. Cada um tem sua medida para encontrá-la e dar-lhe seu devido valor. É a metáfora da própria vida, é ela
que dá o sentido, mas não é direta. Muitas vezes ouvi do grupo: “Eu entendo. Mas,
na hora da roda, no grupo, não sei o que dizer. Só depois „cai a ficha‟ e vamos dar
valor à experiência”.
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 Mudanças observadas
Francisca, aluna da 6ª série do ensino fundamental, era uma jovem com grande dificuldade de comunicação. Sempre quieta, não participava das conversas com
as companheiras do grupo “Brincar com Histórias” e não se expunha. No dia em que
levei os panos para desenvolvermos a atividade, pareceu-me que Francisca se encontrou. A jovem trouxe uma história para o grupo, escolheu um lenço vermelho e
estampado para ser um príncipe que perambulava a procura de sua princesa perdida. Ele queria encontrar uma moça para se casar. Chegando a uma casa humilde
enamorou-se da jovem que ali morava e pediu-a em casamento. O pai da moça não
permitiu porque ela era pobre e o moço muito rico. Mas o moço provou ao pai que o
importante era o seu amor pela jovem. O pai da moça aceitou o jovem que se casou
com a moça e foram felizes para sempre.
A partir deste dia Francisca passou a contar histórias para as crianças de uma
creche da comunidade.
Clarice quando começou a participar do grupo estava na 6ª série do ensino
fundamental. Foi encaminhada para participar das oficinas de Contadores de História
pela coordenadora pedagógica da escola e com a indicação de que era uma menina
capaz, inteligente, mas insegura, fechada, não conversando com ninguém, não ten-
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do amizades e pedagogicamente não indo bem nos estudos. Não se expressava
adequadamente nas redações.
Realmente Clarice era uma adolescente que não olhava para as pessoas, vivia
de cabeça baixa, mal se ouvia o que ela dizia de tão baixo que se expressava. Seu
corpo era tenso, seus movimentos contidos, sua respiração curta, não sorria, sempre
envergonhada.
Timidamente foi participando, adquirindo confiança no grupo, começou a fazer
amigas, sorrir, falar um pouco mais alto, mas sempre com determinação para vencer.
Estava sempre presente nas reuniões do grupo, participava ativamente das criações
de histórias, cenários, personagens e começou a gostar de contar histórias, permitindo-se desta forma a percepção do seu eu. Ao criar seus versos, suas histórias e
personagens ela projetava seus “eu‟s internos”. Em sua comunicação expressava
idéias verbalizando seus sentimentos, apresentando a si própria sua beleza interior,
seu autoconhecimento.
Ouvir, contar e brincar com as histórias, nos permite entrar em confronto experimental com problemas práticos, como idéias, sentimentos, cultura, sociedade, experiências da vida, que devem ser acolhidos como um dom transformador que está
por vir.
39
Clarice é a certeza destas palavras. Quando entrou no ensino médio sugeri a
ela que se matriculasse em um curso de artes plásticas (ali na comunidade há alguns e gratuitos). Deste foi encaminhada para participar de curso técnico em Roteiro
de Cinema. Um dia chegou até mim com uma cartinha que aqui transcrevo:
Fiz para a senhora, que sempre será minha amiga:
Era uma vez... Há muito tempo...
Fui como um vaso que a senhora pode MODELAR
E me TRANSFORMAR.
Através do aprender,
Comecei a me conhecer.
Superar minhas dificuldades,
Lutar pelas minhas verdades.
Descobrir emoções,
Respeitar as opiniões.
Saber falar sem criticar,
Saber viver e compreender.
Ganhar e perder.
“Viver uma História”.
E lutar em toda a minha
TRAJETÓRIA.
E FORAM FELIZES PARA SEMPRE
Dona Zu
Obrigada por ensinar
A me expressar
A voltar a minha infância
A ter mais confiança,
Acreditar no meu potencial.
A senhora para mim foi muito Especial
Com a sua compreensão
Fez-me ter uma diferenciação.
Foi no curso de Contador de Histórias
Que eu pude alcançar minhas grandes Vitórias.
Posso até dizer:
Foi nele que eu comecei a me conhecer.
40
Alice, ela mesma conta a trajetória de sua transformação.
41
42
43
44
Este projeto permitiu-me auxiliar crianças e jovens no desenvolvimento de suas
potencialidades, que resultaram em:
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Auto-estima - apoiar jovens e crianças que passam a perceber suas capacidades, respeitando-se e resgatando valores de cidadania.
Organização de pensamento - facilitar a participação ativa através da exteriorização do pensamento, verbalização e oralidade.
Participação - através das formas de organização dos trabalhos propostos
Respeito - base de todo trabalho integrando afetivamente o grupo.
“...a passagem para um tipo mais elevado de atividade interior, uma
vez que uma nova forma de ver as coisas cria novas possibilidades
de manipulá-las. ...o fato de nos tornarmos conscientes de nossas
operações, concebendo-as como um processo de um determinado
tipo – como, por exemplo, a lembrança ou a imaginação – nos torna
capazes de dominá-las” (VYGOTSKY, 1998, p.115)
A magia de ouvir, contar e brincar com histórias toca em problemas e desenvolve competências ao propor para a criança interior de cada um o encanto que nos
leva à imaginação e à criatividade, nos auxiliando a meditar, refletir e conhecer nos
melhor. Os processos internos se revelam e se tornam mais compreensíveis com o
desenvolvimento e o conhecimento de uma história. Isto auxilia a traduzir realidades
mentais e inconscientes em imagens que, por sua vez, trarão discernimento e compreensão ao interlocutor.
Ao contar histórias propomos a nós e aos ouvintes intuitivamente tarefas que
nos desafiam e nos motivam a despertar sentimentos adormecidos, estimular compaixão e solidariedade, avivar sabedoria e memória, perspicácia e imaginação, sentir
e acreditar que as pequenas ações também são importantes e assim nos levam a
agir, a fazer. As histórias nos alertam que o mal existe, não podemos ignorá-lo e precisamos aprender lidar com ele.
“Mar de Histórias é a expressão que se usava em sânscrito para se
referir ao universo das narrativas.(...) é sempre bom ter em mente a
metáfora do mar. Ou seja, é preciso ter um caminho, é preciso manter o leme firme, mas é também necessária a consciência de que se
navega em águas que ora podem ser muito tranqüilas, ora podem se
transformar em verdadeiros maremotos” (PRIETO, 1999, p.23).
Acredito que ouvir, contar e brincar com as histórias mobiliza conhecimentos
que já possuímos e nos anima a ir em busca de novos caminhos, como desenvolver
46
a ética e a cidadania e preparar o jovem para a convivência no trabalho e na sociedade.
 Histórias e Professores
Esta minha vontade e prazer de transmitir o valor educacional e terapêutico das
histórias, apoiada em experiências com crianças e jovens, transportou-me para grupos de professores que haviam presenciado anteriormente o trabalho e queriam aprender a contar histórias. Estavam prontos para fazê-lo, porém não imaginavam o
que ganhariam eles próprios e seus alunos com o decorrer do processo.
É possível transformar e transformar-se enquanto ouvimos e contamos histórias. Não é só a criança ou o jovem que se apaixonam pelas histórias, mas também
o professor. Este, independente do currículo, da série ou matéria com a qual trabalha, geralmente termina por apaixonar-se com a contação de histórias.
Para crescer é preciso deixar de lado as histórias? Nosso lado afetivo sente
necessidade destas atividades? Como fica o professor que não gosta de histórias?
Quem não ouviu histórias quando criança, ao atingir a fase adulta, não gosta de histórias?
O professor habituado ao raciocínio, sua metodologia, ao cumprimento de conteúdos utiliza a história como forma de ensinar; leitura, ortografia, e principalmente
moral. É preciso que ele deixe este lado tão intelectual, deixe este sentir histórias no
aspecto mental e comece a percebê-las em sua interioridade, em seu inconsciente,
em suas sensações e afetividades resgatadas, para se permitir ser participante da
história que construirá com seus alunos
Ao se apropriar das histórias o ouvinte/contador cria sua própria história, ao rever sua infância retoma a afetividade perdida, chega mais junto ao aluno. A contação
de histórias contagia porque “a pessoa tem uma riqueza interior que precisa ser
mostrada ao exterior” (Ferrer,1999,p.17). Inconscientemente cria vínculos de emoção, de amizade. O grupo tece junto sua história de vida, aprende a respeitar a individualidade do outro, transpondo a pedagogia das salas de aula e favorecendo o
despertar de novas percepções.
“Seja em sala de aula, seja no espaço familiar, é importante lembrar
que as histórias constituem um material de grande carga afetiva. Re-
47
lacionar uma pessoa a uma determinada história pode significar aprisiona-la dentro dela” (PRIETO, 1999, p.22)
Ouvir, contar e brincar histórias desperta no ouvinte/contador sutilezas de sua
vida e características próprias, que aprimoram habilidades de sentir-se enquanto
percebe o outro, estimulam experiências de sentir com o outro, de expressar-se,
verbalizar com segurança seus sucessos e insucessos, lançar-se na imaginação e
criação, desenvolvendo-se como pessoa.
Contar histórias, também nos ajuda a interagir com aquele aluno que apresenta
dificuldade em se comunicar. É, através das histórias que o ouvinte se mostra ao
compartilhar a sua visão e seu comportamento com o outro. A história infantil é o
grande tesouro que a humanidade possui para o desenvolvimento pessoal do cidadão.

Professora Regina:
“As histórias infantis apresentam um grande número de títulos que podem ser usufruídos por crianças e adultos permitindo-lhes entrarem num
mundo de magia. Para mim trabalhar com contos infantis trouxe uma
grande mudança em meus trabalhos e um novo olhar de como trabalhar
com as crianças. Pude observar, como as histórias infantis podem tocar
os sentimentos mais íntimos de uma criança e que podemos trabalhar
valores com flexibilidade e habilidade sem ferir os alunos”

Professora Jana
“Projeto de capacitação para professores – “Contadores de Histórias”
Conduzido por: Zuleika
As orientações a partir das narrações de histórias, vieram de encontro aos meus interesses em sala de aula, aprimorou a minha capacidade de reflexão, permitiu compartilhar conhecimento e desenvolver através dos meus projetos de leitura estratégias diferenciadas de ensino.
Passei a contar histórias de forma mais dinâmica, desenvolvi um
trabalho de expressão corporal (primeiramente em mim) e utilizei recursos que cativaram os alunos.
Vi-me tão envolvida nos encontros com a Zuleika, que acredito ter
ouvido as histórias narradas por ela com ouvidos de criança e assim de
forma lúdica e criativa pude compartilhar tal aprendizado com meus alunos.
48
Espero que este trabalho tenha continuidade no próximo ano, o
professor precisa desse tipo de suporte/apoio para poder desenvolver
ou aperfeiçoar suas estratégias de ensino”.
Considero que a fantasia das histórias não é privilégio do mundo infantil, mas
que o adulto se apropria destas imagens utilizando-as como recurso natural e terapêutico. Ao propor tornar claras suas emoções, o adulto se permite reconhecer as
dificuldades e harmonizar suas ansiedades. Em busca do crescimento interior, do
desenvolvimento psíquico e maturação afetiva, busca aliviar pressões inconscientes
e lidar com o pensamento, a afetividade e as emoções, encorajando o desenvolvimento de empatias e de gestos de acolhimentos. Ao envolver o outro, os professores
e alunos se aproximam em um abraço profundo, repleto de sensibilidade e afetividade que vai facilitar a comunicação, a possibilidade de vitória e sucesso no ensino aprendizagem.
As histórias favorecem mudanças quando influenciam nossa zona de conforto.
Ao nos ajudar a enfrentar o desconforto como os grandes desafios dos heróis dos
contos, promovem transformações. Conforme nos reconhecemos e nos sentimos valorizados, aumenta a disposição para a busca de idéias e ideais, o grau de motivação se expande ao estruturar a autonomia e fortalecer o ego.
O desenvolvimento da percepção, a organização do pensamento e a elaboração de linguagens expressivas, significam que:
“O pensamento tem que passar primeiro pelos significados e depois
pelas palavras.(...) O pensamento propriamente dito é gerado pela
motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções. Por trás de cada pensamento há uma tendência
afetivo-volitiva.(...) os motivos que estão por trás das falas de seus
personagens” (VYGOTSKY, 1998, p.186 -187).
A arte de contar histórias é própria de todo ser humano, ela nos encanta quando crianças e resgata a criança adormecida nos adultos.
A criança ouve histórias percebendo o mágico, através da fantasia cria imagens, cores, sente alegria, prazer, dor, medo, ativa sua sensibilidade. Com o passar
dos anos entendemos que não somos mais crianças, achamos as histórias infantis
tolas, que é preciso deixá-las de lado para mostrar que crescemos. Mas, continua-
49
mos contando “nossas histórias, histórias dos outros, causos,” sem perceber que
continuamos gostando de histórias.
Contar história com a intenção de transmitir mensagens ou conceitos morais, filosóficos, religiosos, políticos, pressupõe que os ouvintes devam concluir isto ou aquilo. Desse modo, cortamos a possibilidade de jogo vivo, distorcemos nossa função
de contadores de histórias, para nos tornarmos moralistas, filósofos, políticos ou religiosos. Os ouvintes precisam sentir-se em plena liberdade para usufruírem a narrativa conforme desejarem.
Na verdade devemos reconhecer que aprendizagem se constitui pela interação
dos processos de construção do conhecimento com os da linguagem e da afetividade, como conseqüência das relações interpessoais entre os vários participantes de
um contexto escolar. No entanto a relação professor aluno hoje está em crise, quer
seja na relação pedagógica quer seja na relação afetiva. Obtive essa constatação na
observação da vivência escolar e relatos de professores, nas escolas por onde trabalhei. Foi possível verificar que a ação docente é muito complexa, que seu desempenho não depende exclusivamente do professor e que existem diversos fatores que
influenciam este desempenho como, por exemplo, o mito do domínio da classe, de
que o aluno que não fica quieto não aprende a ler e escrever. Fica claro que as reais
condições de trabalho levam os professores ao autoritarismo, com receio de perder
autoridade perante seus alunos.
“O adulto nega à criança a fantasia, o prazer lúdico, porque teve de
esquecê-los, teve de reprimir sua infância, sua emoção e sua criatividade. Poder resgatar o inconsciente de seu aluno só pode ser possível, a meu ver, se o professor puder resgatar sua infância e seu desejo” (RADINO, 2003, p. 217).
Entre os docentes que participavam das oficinas de criatividade com histórias,
havia aqueles que inicialmente sufocavam seus sentimentos, eram contra as atividades e diziam não gostar de histórias e nem de brincar com os panos, ou outras
críticas. Estes professores liam histórias para depois trabalhar exclusivamente aspectos gramaticais, ou dar uma moral para o texto. Quando na primeira oficina foram
solicitados a construir um texto coletivo, utilizaram elementos materiais e frívolos,
uma história sem conteúdos e conceitos. Com este contexto procuramos dar continuidade oferecendo inicialmente orientação técnica com livros imagéticos para em
50
seguida ir aos poucos introduzindo contos da tradição oral. Apresentamos “O Patinho Feio” e trabalhamos com panos; a mudança começou a se operar e aos poucos
os professores começaram a buscar orientações. Qual história deveriam contar em
sala de aula? Como contar esta ou aquela história para seus alunos? Como proceder depois de contar a história? Qual livro poderia ser lido para seus alunos que tinham determinadas características? Houve um aprendizado compartilhado e prazeroso, verdadeira descoberta motivada pelas histórias. Este aprendizado incluiu compreensão e análise das histórias apresentadas, da maneira como sentiam os movimentos do texto. Começaram a se expressar não se restringindo à própria interpretação, mas a partilhar e criar passo a passo a reconstrução qualitativa da atenção e
da afetividade para com os alunos. Neste ponto nada melhor do que citar as palavras da professora Nice:
“Contar história é transportar quem a ouve para um mundo novo (o
mundo das fantasias, das idéias). O ouvir e o contar histórias facilita a
criatividade, desperta emoções.
Quando descobri como trabalhar com a contação de histórias, o meu
dia a dia ficou maravilhoso. Eu passei a ter um novo olhar, passei a ver
qualidade nos alunos nos quais antes não percebia. O retorno que tive
com estes alunos foi muito positivo, depois de alguns meses eles, não
queriam só ouvir histórias. Para minha surpresa e alegria começaram a
ler as histórias, a procurar livros com as histórias, mesmo quem não estava alfabetizado fazia questão de interpretar as gravuras. No bimestre
seguinte, todos estavam lendo.
“A história, para mim é a melhor forma de despertar na criança o gosto pela leitura, é a forma de instigar no aluno a curiosidade e a criatividade necessárias para a construção do conhecimento e da aprendizagem”.
Houve oficinas em que as palavras de encerramento muito significaram, pois
demonstraram atitudes observadas como paciência, esperança, harmonia, coragem,
enriquecimento, perseverança, coragem e organização que são todas habilidades
necessárias para a prática pedagógica e conseqüentemente para o desenvolvimento
do entrosamento, da aprendizagem produtiva e da sabedoria.
A apresentação da história “O Alfaiate Desatento” (anexo), mediada pela utilização de panos e tendo como suporte expressivo a confecção de mandalas, trouxe
reações significativas que foram levadas para a sala de aula por várias professoras.
51

Professora Lourdes
“Contar história para criança é trabalhar com a sua afetividade, seu
imaginário e seus valores. É um brincar de faz de conta que no final invade o pensamento e encanta quem conta e quem ouve.
Para mim a experiência de contar histórias para meus alunos é muito
gratificante, pois através desta atividade tive oportunidade de trabalhar
mais a oralidade deles. Foi possível nesta oportunidade conhecê-los um
pouco mais, porque sempre no final das histórias dava oportunidade para que eles se expressassem oralmente. Também através do desenho e
da escrita notei como cresceram ao mostrar sua criatividade. Neste
momento contavam muitas coisas sobre eles mesmos. Isso ajudou muito no crescimento do grupo e no relacionamento professor aluno. Quando ativamos a fantasia e a criatividade desenvolvemos a auto-estima e a
confiança em si próprio, muitos sentimentos são desbloqueados”.
Radino (2003) cita Rodari que nos mostra que o professor não precisa atuar
como psicanalista e interpretar as revelações de seus alunos, presentes em todas as
suas manifestações. Mas o professor pode compreender o que se passa com seu
aluno e acolher seus erros, seu inconsciente e seu desejo. Ele dá oportunidade de
vida e pensamento. Se o professor deixar que a afetividade faça parte do processo
52
educacional, é possível trabalhar com a fantasia. A fantasia não é distinta da mente,
mas é a própria mente, e esta se desenvolverá se puder enriquecer essa fantasia
pelos jogos criativos, os quais ao mesmo tempo são prazerosos e convidam a criança a exercitar seu pensamento.
53
54
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quem conta um conto,
aumenta um ponto.
Um ponto a mais em sua vida
(Anônimo)
História, para mim é um jeito de representar o mundo, no sentido de descobrir,
observar, sentir, refletir enriquecendo a imaginação e dando-lhe condições de criar,
libertar-se e sentir o outro. Ao provocar a reelaboração do seu eu interno através das
imagens e simbologia das histórias, os conflitos afetivos e emocionais, as inseguranças e medos, que por ali permeiam podem ser resolvidos através da fantasia e da
imaginação. O ouvinte, o contador e principalmente a pessoa que brinca com as histórias, no final expressam uma imagem otimista de mundo, compreendendo melhor
a si mesmos e a seus problemas, especialmente compreendendo que estes problemas e situações podem ser enfrentados ou até solucionados.
Não é minha pretensão finalizar esta pesquisa agora, mas sim levantei questões que precisam ser discutidas, analisadas e refletidas por todos nós, arteterapeutas, educadores e contadores de histórias.
Lembro da situação do século XVII o sofrimento das mães gestantes que não
tinham confiança na gestação, no viver de seus filhos, e nem mesmo na sua própria
vida, pois a hora do parto era muito difícil. Se a sobrevivência dos filhos e a sua própria eram incertas, precisamos pensar nas marcas e memórias que eram repassadas ao feto como feridas abertas em seu inconsciente. Segundo Groff a memória do
período vivido no útero materno deixa marcas profundas no inconsciente humano.
A escola educa os pensamentos. E as emoções, onde são apresentadas e trabalhadas? O interessante em uma escola não é contar histórias para seus alunos. O
que importa é a forma como esta história é contada e quais as finalidades dessa atividade.
A escola trabalha o pensar, o raciocínio, o construir, o aprender, mas precisa
encontrar junto com seus professores e alunos o caminho da mudança, da transformação, dando ênfase ao sentir e ao agir, a autonomia. É quando a contação de histórias nos remete à idéia de transmissão de conhecimentos de geração a geração,
pois elas são repletas de simbologias e guardam, escondidas nos seus elementos,
55
verdades e ensinamentos, carregados de significações profundas, essenciais ao ser
humano.
56
Essas verdades, transmitidas por imagens simbólicas atingem o ser humano integralmente, permitindo-lhe processar suas emoções, aspirações, conflitos, enfim
permitindo-lhe colocar em ordem a sua casa interior e dar início a um processo
transformador. Como mostra Radino (2003, p.218), “O medo maior é a perda de identidade do professor, que detém uma verdade e um campo seguro que pode ser
transmitido”. Assim, é preciso colocar o professor em contato com sua condição humana, com seus medos, ódios, amores e fantasias, para resgatá-lo como pessoa e
buscar sua infância e sua fantasia adormecida.
“Para melhor conhecer a criança
é preciso saber ouvi-la
e saber falar-lhe” (Daniel Widlocher).
O ouvir, brincar e contar histórias provoca sentimentos e emoções que nos remetem ao contato com os sentimentos das experiências vivenciadas através do imaginário. É uma maneira de despertar o indivíduo que está para o indivíduo que é.
Para que este dê maior atenção aos seus processos de sentir, porque os indivíduos
ampliam os seus conhecimentos através do seu sentir. O bebê, a criança, o jovem, o
adulto e o velho, primeiro sentem e depois pensam e racionalizam este sentir. O
processo do conhecimento articula-se entre aquilo que é vivido (sentido) e o que é
simbolizado (pensado). A arte permite maior vivência dos sentidos e desta forma abrange o processo da aprendizagem com um todo.
Ao refletir sobre a utilização dos panos como recurso material e expressivo e
da criação dos personagens durante as oficinas de ouvir – brincar – contar histórias,
penso nos tipos de fala da criança, ou seja, a interna e a externa as quais, para Vygotsky, precisam ser estimuladas para que haja o desenvolvimento pleno das idéias.
Para ele é na fala interior que em especial há a comunicação da pessoa consigo
mesma enquanto integra esta linguagem com o pensamento. Neste monólogo interior é que se constroem a identidade, o conhecimento de si mesmo e do mundo. Nas
oficinas de arteterapia, mediadas pela contação de histórias e atividades expressivas, criação de personagens e reescritas de narrativas, estimulamos a descontração
para a verbalização e assim o mundo da imaginação entra em ação ativando a memória e a criatividade, disciplinando o pensamento, a autonomia, bem como a autoestima e autoconhecimento.
57
As mães, os professores, os contadores de histórias e demais pessoas que usam a palavra como instrumento de construção modificam a realidade, modificam o
modo de ser, provocam alterações, transformando quem as recebe. “Platão dizia
que as narrativas moldam almas, com mais carinho do que por meio das mãos e atribui às narrativas a grande capacidade de plasmar almas. Walter Benjamin diz que
„narrar é curar‟” 2, faz uma relação interessante entre voz e gestos, trazendo a questão da carga corporal que a palavra falada carrega. Há quem diga que na narrativa
oral a palavra falada é corpo modulado pela voz humana, a palavra é, então sem
dúvida o corpo. Palavra oral é isso: ligação de signo e corpo.
“Ouvir - Brincar - Contar Histórias”
O irreal nas histórias por certo é o mais real de nós mesmos, escondido por
tantos véus que a fantasia remove. A Arte “Ouvir - Brincar - Contar Histórias” é Terapia para nossos mais profundos desejos, ao liberar, entre herói e amante, o mais
forte de nosso self. O herói que luta pelo pão de cada dia e a amante que acolhe o
feto e o alimenta. Entre amor e ódio nada melhor do que a paz. Paz que constrói a
reciprocidade com os outros, todos se encontrando consigo mesmos na Contação
de Histórias!
RENASCER
Cadê a luz que estava aqui?
A estrela trocou.
Vem cá estrela
Eu quero você pra mim!
Não me deixe só.
Veja
Este é o meu caminho,
Ponto de Partida
Tudo gira ao redor
Quero ouvir a história
Dar tempo ao tempo.
Tempo para ouvir o coração,
Esperar a redenção,
2
Congresso Internacional de Contadores de Histórias, 1999, SESC Vila Mariana, São Paulo.
58
Pra dizer a todos
Quanto importante é o irmão.
Neste renascer não quero a razão
Quero que seja o afeto
A aquecer meu coração.
Pra colher e entender
O que nasce deste mundo
Repleto de sensação e emoção
Zuleika S. M. Cintra - 2003
59
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60
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VIGOSTYKI, L S. Pensamento e Linguagem. Trad. Jefferson Luís Camargo. 2ª ed. São
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61
7. ANEXOS
JOÃOZINHO E MARIAZINHA
Próximo a uma grande floresta viva um pobre lenhador, com sua mulher, a madrasta de um casal de filhos. O nome do menino era Joãozinho, e o da menina, Mariazinha. Como fossem muito pobres, mal tinham o que comer e, numa ocasião em
que uma grande crise se abateu sobre o país, o lenhador não era mais capaz nem
de trazer para casa o pão de cada dia.
Uma noite em que não conseguia dormir de tanta preocupação, virando-se de
um lado para outro na cama, desabafou com a esposa: - O que será de nós?Como
vamos sustentar nossos pobres filhos, se já não temos nem mesmo o que comer?
Sei de um jeito, respondeu a mulher. Amanhã cedo, vamos levar as crianças
para o interior da floresta, onde ela é mais fechada, lá faremos uma fogueira e daremos a cada um, um pedacinho de pão. Depois iremos trabalhar, deixando-os sozinhos. Não acharão o caminho para casa, e assim estaremos livres.
- Não, respondeu o pobre homem. Isso eu não farei! Como meu coração poderia permitir tal coisa, deixar meus filhos sozinhos na floresta? Logo viriam os animais
selvagens e os devorariam.
- Ah, seu tolo! Respondeu ela. Então nós quatro iremos morrer de fome você já
pode ir preparando as taboas para os caixões! E não lhe deu sossego, até que o marido acabou concordando.
- Mesmo assim tenho pena das crianças e sentirei muita falta delas, disse o lenhador.
Como as crianças estavam com fome, também não haviam podido dormir e assim escutaram tudo o que a madrasta tinha dito ao pai. Mariazinha começou chorar
e disse a Joãozinho: - Estamos perdidos!
- Calma, Mariazinha, consolou o irmão: Você não precisa ficar preocupada. Eu
darei um jeito.
E depois que os pais adormeceram, ele se levantou, vestiu seu casaquinho,
abriu a porta e, sem fazer barulho, saiu. O luar estava claro e iluminava as pedrinhas
de cascalho diante da casa, que brilhavam como diamantes, Joãozinho se abaixou e
encheu seus bolsos de pedrinhas. Depois voltou para casa e falou para Mariazinha:
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- Você não tem nada a temer, querida irmãzinha, durma tranqüila. Deus não
nos abandonará.
E deitou-se novamente em sua cama. Quando o dia começou a amanhecer,
mesmo antes do nascer do sol, veio a mulher e acordou as duas crianças.
- Levantem, seus preguiçosos, nós vamos à floresta buscar lenha.
Então deu a cada um, um pedacinho de pão e falou:
- Isto é o que vocês têm para o almoço, mas não comam logo, pois nada mais
ganharão.
Mariazinha guardou o pão no avental, pois Joãozinho tinha as pedrinhas guardas no seu bolso. Depois disso, foram todos juntos para a floresta. Após terem andado um pouco, Joãozinho parou, olhou para trás em direção da casa, repetindo esse gesto várias vezes. O pai lhe perguntou:
- Joãozinho, por que você está olhando tanto para trás e assim se distanciando
de nós? Distraia-se menos e trate de andar mais depressa.
- Ah, pai, respondeu ele, estou me virando para ver o meu gatinho branco, que
está sentado em cima do telhado, e quer me dizer adeus.
A mulher contestou:
- Seu tolo, não é seu gatinho é o sol da manhã que está brilhando sobre a
chaminé.
Mas Joãozinho não estava se virando para olhar o gatinho, mas sim para jogar
as pedrinhas e, com isso, marcar o caminho de volta.
Quando chegaram no meio da floresta, o pai disse: __ Vão juntar lenha crianças, eu vou acender uma fogueira para que vocês não fiquem com frio. Joãozinho e
Mariazinha apanharam gravetos ata formar uma pequena pilha. A fogueira foi acesa
e, quando as chamas já estavam bem altas, a mulher recomendou:
- Cheguem-se mais para perto do fogo, crianças, e descansem, nós vamos cortar madeira. Quando estivermos prontos viremos buscá-los.
Joãozinho e Mariazinha ficaram sentados diante do fogo e ao meio dia, cada
um comeu o seu pedacinho de pão. E, como ouviam as batidas do machado, acreditavam que seu pai ainda estivesse por perto. Mas não era o machado e sim um galho que o lenhador tinha amarrado numa pequena árvore, e que o vento fazia bater
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de um lado e de outro. Depois de ficarem sentados assim por muito tempo, seus olhos se fecharam de sono, e as crianças caíram em um sono profundo.
Finalmente, quando acordaram, já era noite escura. Mariazinha começou a
chorar e falou:
- Como vamos conseguir sair desta floresta?
Mas Joãozinho a consolou, dizendo:
- Espere um pouco até que apareça a lua e, então, acharemos o caminho de
volta para casa. E, quando a lua surgiu no céu, Joãozinho tomou sua irmãzinha pela
mão e seguiu o caminho marcado pelas pedrinhas, que brilhavam e lhes indicavam
o rumo da volta. Caminharam a noite inteira e, ao raiar do dia, chegaram à casa do
pai. Bateram à porta e, quando a mulher abriu e viu que eram Joãozinho e Mariazinha exclamou:
- Seus malvados, por que vocês dormiram lá na floresta? Nós pensamos que
vocês não queriam mais voltar.
O pai ficou feliz, pois não se conformara de ter abandonado os filhos na floresta. Algum tempo depois, a miséria voltou a assolar o país, e as crianças ouviram
quando, à noite, a mulher voltou a queixar ao marido:
- Já não há mais comida alguma. Só temos ainda um pedaço de pão, depois
estará tudo acabado. As crianças têm que ir embora, nós os levaremos ainda mais
longe na floresta, para que não tornem a achar o caminho de volta; do contrário, não
haverá salvação para nós.
O infeliz pai não queria concordar e pensou:”Seria melhor se eu dividisse o último pedaço de pão com meus filhos”. Mas a mulher, discordando do que o lenhador
propunha, começou a insultá-lo, lembrando que, se ele já tinha concordado uma vez,
deveria fazê-lo novamente. Como as crianças ainda estivessem acordadas, ouviram
a conversa dos pais. Quando os velhos adormeceram, Joãozinho novamente levantou e procurou sair para juntar pedrinhas como da primeira vez, mas a mulher tinha
trancado a porta e assim ele não pôde sair. Apesar disso consolou sua irmãzinha
tranqüilizando-a:
- Não chore, Mariazinha, durma em paz, Deus nos ajudará.
Ainda de madrugada veio a mulher e tirou as crianças da cama. Estas receberam seu pedacinho de pão, ainda menor que o da vez anterior. No caminho para a
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floresta, Joãozinho começou a esfarelar o pão no seu bolso, jogando as migalhas de
longe em longe.
- Joãozinho, por que você pára e põe-se a olhar para trás? Perguntou o pai: Vamos, siga o caminho! - Estou olhando para a minha pombinha que está no telhado, querendo me dizer adeus, respondeu o menino.
- Tolo, disse a mulher. Não é a sua pombinha, é o sol que está nascendo e brilha na chaminé!
Joãozinho, aos poucos, foi jogando todos os farelos de pão pelo caminho.
A mulher levou as crianças ainda mais para dentro da floresta, onde nunca tinham estado. Aí novamente foi feita uma fogueira, e a mulher falou:
- Fiquem sentadas aí, crianças! E, quando estiverem cansadas, podem dormir
um pouco. Nós vamos cortar madeira e, à noite, quando estivermos prontos, viremos
buscá-las.
Ao meio dia, Mariazinha dividiu seu pedaço de pão com Joãozinho, que tinha
espalhado o seu pelo caminho. Então adormeceram, e a noite chegou, mas ninguém
veio buscar as pobres crianças. Acordaram no meio da noite e Joãozinho tentou
consolar sua irmãzinha dizendo: __ Espere até que a lua desponte no céu, Mariazinha, e então eu poderei ver as migalhas de pão que espalhei e que nos mostrarão o
caminho de volta.
Quando o luar surgiu, começaram a procurar pelas migalhas, mas nada encontraram, pois os milhares de pássaros que voam pela região as tinham comido. Joãozinho disse à mariazinha:
- Nós ainda vamos achar o caminho.
Mas não o encontraram. Andaram toda a noite e também todo o dia seguinte,
da madrugada ao anoitecer, mas não conseguiram sair da floresta. A fome aumentava cada vez mais, pois não tinham comido nada a não ser algumas amoras que encontraram pelo chão. E, como estavam tão cansados, que suas que suas pernas
não podiam mais carrega-los, deitaram-se debaixo de uma árvore e adormeceram.
Três dias já haviam se passado desde a saída de casa. Recomeçaram a andar, mas
com isso, penetravam cada vez mais pela floresta e, se não encontrassem logo ajuda, acabariam morrendo.
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Ao meio dia viram um lindo passarinho branco pousado no galho de uma árvore, e seu canto era tão melodioso que as crianças pararam para escuta-lo. Terminando de cantar, sacudiu as asas e voou diante deles, e os dois o seguiram até chegarem a uma casinha, em cujo telhado o passarinho pousou. Quando as crianças se
aproximaram, viram que a casinha era construída de pão coberta de bolo e com as
janelas feitas de açúcar branco.
- Vamos lá! Falou Joãozinho.
Iremos fazer uma boa refeição. Eu quero comer um pedaço do telhado, e você
Mariazinha, comerá um pedaço da janela, pois é doce. Joãozinho ergueu o braço e
pegou um pedaço do telhado, para experimentá-lo, e a Mariazinha se aproximou da
janela, da qual mordiscava pequenas porções. De repente, uma vozinha gritou lá de
dentro: - Bolacha, bolachinha, Quem belisca minha casinha?
As crianças responderam: É o vento oeste, o filho celeste.
Continuaram comendo, sem se perturbar. Joãozinho, que gostou muito do telhado, arrancou um grande pedaço, e mariazinha tirou uma boa parte da janela, sentou no chão e começou a comer. De repente a porta se abriu, e uma velha, apoiada
numa bengala, arrastou-se para fora. Joãozinho e mariazinha levaram tamanho susto que deixaram cair tudo o que tinham nas mãos. Mas a velha balançou a cabeça e
falou: - Ei, crianças queridas, quem trouxe vocês até aqui? Entrem e fiquem comigo,
nenhum mal lhes acontecerá.
Ela pegou os dois pela mão e os levou para dentro de sua casinha. Ali havia
coisas boas para comer, leite e sonhos com açúcar, maçãs e nozes. Depois foram
preparadas duas caminhas com lençóis brancos, e nelas as crianças se deitaram,
com a sensação de estarem no céu.
Mas a velha estava só fingindo ser tão boazinha, pois era uma bruxa malvada,
que andava à procura de crianças e só tinha construído a casinha de pão para atraílas.
Quando uma criança estava em seu poder, ela a matava, cozinhava e comia, e
isso para ela era um dia de festa. As bruxas têm olhos vermelhos e não podem enxergar muito longe, e percebem quando alguém se aproxima. Quando Joãozinho e
Mariazinha chegaram perto da casa, a malvada deu uma gargalhada e disse ironicamente: - Esses eu peguei, esses não me escaparão!
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Ao amanhecer, antes das crianças terem acordado, ela já havia levantado e,
quando viu os dois dormindo tão tranquilamente, com as bochechas tão coradas,
murmurou: - Serão um bom petisco!
Com a sua magra mão agarrou Joãozinho, carregando-o até uma porta de grade. Por mais que o menino gritasse, de nada lhe adiantava. Então a bruxa foi acordar Mariazinha e, sacudindo-a, gritou: - Levante, sua preguiçosa, vá buscar água. E
trate de cozinhar algo de bom para seu irmão, ele está preso lá fora e tem que engordar. Quando estiver bem gordo, eu vou comê-lo.
Mariazinha começou a chorar amargamente; mas era tudo inútil, pois tinha que
fazer o que a bruxa mandava. Joãozinho comia o que havia de melhor, especialmente preparado para ele; mas sua irmã não recebia nada, a não ser sobras. Todos os
dias pela manhã a velha ia até a casinha e gritava:
- Joãozinho, dê-me seu dedinho para que eu possa sentir se já está mais gordo.
Joãozinho, em vez do dedo, lhe apontava um ossinho, e a velha, como não enxergasse bem, não percebia, e achava que fosse o dedo de Joãozinho, e ficava desapontada e se admirava de o menino não engordar. Após terem se passado quatro
semanas e vendo que Joãozinho continuava magro, sua paciência esgotou, e a bruxa não queria esperar por mais tempo.
- Ei, Mariazinha! gritou ela para a menina. Vá buscar água. Estando gordo ou
magro, amanhã vou matá-lo e cozinhá-lo.
Ah, como chorou a pobre irmãzinha, enquanto carregava água, e como as lágrimas lhe corriam pelas faces!
- Deus do céu, nos ajude! Implorou ela.
Teria sido melhor se os animais selvagens tivessem nos devorado na floresta,
assim pelo menos teríamos morrido juntos.
- Trate de parar com esse choro, disse a velha. Nada poderá ajudar.
Bem cedo, na manhã seguinte, Mariazinha teve que encher um caldeirão com
água e acender o fogo.
- Primeiro faremos um pão, disse a velha. Eu já aqueci o forno e já preparei a
massa. Ela empurrou Mariazinha apara fora até o forno, no qual já ardia o fogo.
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- Entre, disse a bruxa, e veja se ele já está bem aquecido, para que possamos
colocar o pão!
E, quando a menina estivesse lá dentro, ela pretendia fechar o forno, para assá-la e depois come-la também. Mas Mariazinha percebeu quais eram as suas intenções e falou:
- Eu não sei como faze-lo; como poderei entrar no forno?
- Sua boba! Disse a velha. A abertura é grande o suficiente; olhe só, eu mesma
poderia passar por ela. A bruxa se aproximou e colocou a cabeça dentro do forno.
Então Mariazinha lhe deu um empurrão, ela caiu para dentro do forno. A menina fechou a porta de ferro e a trancou. Como a velha berrou! Mas mariazinha saiu correndo, e a bruxa malvada acabou morrendo queimada. Mariazinha foi direto soltar o
irmão e falou:
- Joãozinho, nós estamos livres, a velha bruxa está morta! E Joãozinho pulou
para fora da casinha como um pássaro pula da gaiola quando a porta se abre. Como
estavam felizes e contentes, se abraçaram, pularam e se beijaram! E, como não
precisavam mais ter medo de coisa alguma, entraram na casa da bruxa, onde encontraram caixas com pérolas e pedras preciosas por todos os lados.
- Estas são bem melhores que as pedrinhas de cascalho, comentou Joãozinho.
E encheu seus bolsos com tudo o que foi possível. E Mariazinha igualmente se manifestou:
- Eu também quero levar algo para casa. E encheu o seu avental.
- Mas agora vamos embora daqui, disse Joãozinho. Vamos sair logo desta floresta. Depois de terem andado algumas horas, chegaram a um grande lago.
- Nós não podemos alcançar o outro lado, falou Joãozinho. Eu não vejo nenhum lugar por onde pudéssemos passar.
- Aqui também não anda nenhum barquinho, observou mariazinha. Mas lá está
nadando um pato branco; se eu pedir, ele nos ajudará a atravessar. E então chamou:
patinho, patinho! Aqui estão Joãozinho e Mariazinha. Nenhuma porta, nenhum caminho. Leve-nos nas suas costas brancas! O patinho se aproximou, e Joãozinho se
sentou nas suas costas e quis que sua irmãzinha fizesse o mesmo.
- Não, respondeu Mariazinha. Ficará muito pesado para o patinho, é melhor levar um de cada vez. O bom bichinho concordou e, quando estavam do outro lado do
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lago e já tinham andado um bom pedaço, a floresta foi lhes ficando cada vez mais
conhecida, até que avistaram a casa do pai lá longe. Então começaram a correr, entraram na casa aos tropeções e caíram nos braços do pai. O pobre homem não conhecera mais nenhum momento de felicidade desde que tinha seus filhos na floresta, e sua mulher tinha morrido. Mariazinha esvaziou seu avental, e as pérolas e pedras preciosas rolaram pela casa, e Joãozinho jogava um punhado após o outro de
tudo o que tinha em seu bolso. Todas as preocupações, então, tiveram fim, os três
viveram juntos e muitos felizes.
Minha história acabou. Ali vai um ratinho e, quem o pegar, poderá fazer dele
um belo casaco de peles.
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O ALFAIATE DESATENTO
Era uma vez, a menos de mil quilômetros daqui, um alfaiate viuvo que vivia
com a filha pequena. Apesar de ser um ótimo artesão, era uma pessoa que não
prestava atenção em algumas coisas. Assim, costumava sair à rua com a mesma
roupa velha, toda esfarrapada, que usava o dia inteiro em casa.
As pessoas comentavam: “Um homem que anda tão mal vestido, não pode ser
um profissional competente. Esse alfaiate não deve ser bom”.
Os comentários se espalhavam, e ninguém mais encomendava roupas para o
alfaiate, QUE FOI FICANDO POBRE. Um dia sua filha disse: “Pai, não temos quase
nada para comer. O senhor precisa fazer alguma coisa, senão vamos morrer de fome”.
O alfaiate foi até o sótão da casa, onde fazia muito tempo guardava coisas que
considerava sem utilidade. Ao remexer nas pilhas empoeiradas, descobriu que entre
elas havia objetos de valor. Ele nem se lembrava mais quando os tinha posto ali,
nem por quê. Juntou uma porção desses objetos num carrinho e foi vendê-los no
mercado da cidade. Com o dinheiro que recebeu, comprou comidas deliciosas para
ele e para sua filha.
No caminho de volta para casa ele viu, pendurado na porta de uma tenda, um
tecido magnifico, como nunca tinha visto. Era inteiro bordado com fios de ouro de
todas as cores do arco íris, formando várias figuras distintas. Nele também havia padrões ornamentais com fios de ouro e prata entrelaçados que brilhavam ao sol. O alfaiate, maravilhado, resolveu comprar aquele tecido com o dinheiro que havia sobrado.
Assim que chegou em casa, esticou o tecido sobre a mesa, pensou um pouco,
e depois cortou e costurou um belíssimo manto que quase arrastava no chão.
Quando saiu à rua com aquele manto, as pessoas o rodearam e perguntaram:
- Onde foi que você comprou este manto? No Oriente, na ilha de Java ?
- Não __ Respondeu o alfaiate. __ Eu mesmo o fiz.
- Então, nós também queremos um manto lindo como este.
E foram levar tecidos para ele, formando uma fila à porta de sua casa. Eram
tantas pessoas, e tantos mantos ele fez, que acabou ficando rico.
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Mas ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Ele
não tirava seu manto: costurava com ele, fazia comida, cuidava do jardim.
Passou-se muito, muito tempo. O manto ficou velho e estragado. As pessoas,
vendo-o tão mal vestido na rua, começaram a achar que ele não devia ser um bom
profissional. E deixaram de fazer encomendas. E ele ficou pobre outra vez.
Certo dia, não tendo nada para fazer, o alfaiate ficou observando o manto e
descobriu que ainda havia um pedaço do tecido que não estava estragado. Pôs o
manto sobre a mesa, cortou, cortou as partes rasgadas, desmanchou as costuras,
pensou um pouco e fez um lindo casaco, com uma gola enorme
Quando saiu com o casaco, as pessoa queriam saber:
- Onde foi que você comprou este casaco? Na Austrália, no pólo norte?
- Não, eu mesmo o fiz.
E foram tantas as encomendas de casacos, que o alfaiate ficou rico outra vez.
Mas continuava sendo aquele homem que não prestava atenção em algumas
coisas. A qualquer tipo de comemoração, casamento, batizado, enterro, festa de aniversário, lá ia ele com o casaco.
Passou-se muito, muito tempo. E o casaco ficou todo esburacado, cheio de
manchas. Ninguém mais fazia encomendas. Ele ficou pobre.
Percebendo que o casaco ainda tinha um pedaço bom de tecido, o alfaiate o
desmanchou e fez um colete tão lindo que todos na rua lhe perguntavam:
- Onde foi que você comprou este colete? No Afeganistão? Na Terra do Fogo?
- Não, fui eu que o fiz.
E com tantas encomendas de coletes, o alfaiate ficou rico. Mas, não sei se já
lhes contei. Ele era uma pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Não
tirava o colete para nada, nem mesmo para tomar banho.
Passou-se muito, muito tempo. E o colete ficou em petição de miséria. Pobre
mais uma vez, o alfaiate aproveitou o pequeno pedaço de tecido do colete que ainda
estava perfeito e sabem o que ele fez? Uma gravata borboleta. Mas não era uma
gravata borboleta qualquer. Era tão linda e brilhava tanto, que todos queriam gravatas como aquela.
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Depois de muito trabalhar, ele acabou ficando rico. E não deixava de ser aquela pessoa que não prestava atenção em algumas coisas. Nem para dormir ele tirava
a gravata.
Passou-se muito tempo. E a gravata ficou torta, ensebada, irreconhecível. O alfaiate ficou pobre outra vez, já que ninguém mais lhe fez encomendas.
O alfaiate ainda descobriu na gravata um pedacinho de tecido que podia servir
para alguma coisa. E então fez um superultrabelíssimo botão, redondo, que costurou
na sua roupa velha, no meio do peito. Ninguém notava os farrapos que ele vestia: o
botão era tão brilhante e magnífico que todos queriam botões como aquele.
E tantos fez, que ficou rico.
Mas continuava sendo aquela pessoa que Não Presta Atenção em Algumas
Coisas. Passou-se muito, muito tempo. E ele ficou pobre.
Desmanchou o botão e ainda sobrou um pedacinho de tecido bem pequenino,
que conservava intactos alguns padrões de fios dourados e prateados, entremeados
com todas as cores do arco-íris, que brilhavam intensamente.
O que o alfaiate fez com aquele pedaço minúsculo que sobrou do magnífico tecido?
Pois o contador de histórias que narrou este conto para mim disse que cada
um de nós é que tinha que inventar no que o alfaiate transformou aquele paninho
precioso, porque esta é uma história que continuará sendo contado para sempre,
noite e dia, em qualquer lugar do mundo onde haja gente. Porque sempre vão existir
pessoas que não prestam atenção em muitas coisas.
E sempre vão existir coisas que guardam seu brilho num lugar cada vez mais
profundo.
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Uau! Ser pato é o máximo!
Lili veio no último ovo que a Mamãe-Pata botou. Foi a última a sair da casca, a
menorzinha e a mais magrinha
Só depois que os outros patinhos saíram dos ovos, é que o ovo de Lili começou a rachar. Lili espiou para fora...
Ela viu o olho da mamãe, depois viu as penas da mamãe e os pés da mamãe.
CRACHHH! Lili caiu do ovo bem dentro do GRANDE MUNDO. A mãe de Lili estava
muito orgulhosa. Queria que todos admirassem a pequena Lili.
- Venha nadar! Venha nadar!, grasnaram seus irmãos e irmãs mais velhos.
- Vamos, Lili, grasnou Mamãe-Pata. Você precisa aprender a nadar, senão a
Raposa Perna-peluda-rabo-comprido-focinho-pontudo-língua-rosada vai devorar você.
Mas Lili não queria tirar os pés do chão: - “Eu avisei que ia me afogar!” Assim,
enquanto seus irmão e irmãs nadavam e mergulhavam, Lili saiu caminhando Plé,
plé, plé, com um pé na frente do outro, para dentro da escura floresta verde.
Andou pelas curvas do longo caminho até que encontrou dona Perna-peluda:
- Que está fazendo uma patinha linda como você dentro desta escura floresta
verde? perguntou dona Perna-peluda.
- Estou andando __ respondeu Lili, toda orgulhosa.
- Você é muito pequena e magrinha, notou dona Perna-peluda. - Vou mostrar
onde você pode comer folhas de capuchinha. Você precisa engordar!
Lili comeu tantas folhas de capuchinha, que mal conseguiu voltar gingando para casa.
Uma semana depois encontrou dona Perna-peluda-Rabo-comprido.
- Nossa! Você anda muito bem... para um pato, disse dona perna-peluda-Rabocomprido.
- Muito obrigada, disse Lili.
- Eu nunca vou tirar meus pés do chão. É muito perigoso.
- Eu também gosto de nadar, disse dona Perna-peluda-Rabo-comprido: - Vamos passear na floresta. Vou encontrar coisas gostosas, que um pato que está cres-
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cendo deve comer. Lili comeu uma porção de amoras. Comeu até que suas penas
ficaram roxas.
- Como se sente agora? perguntou a nova amiga.
- Gorda! respondeu Lili.
- Ótimo, disse dona Perna-peluda-Rabo–comprido. - Gosto de patos gordos.
Na semana seguinte, Lili voltou à moita de amoras. E encontrou lá dona Pernapeluda-Rabo-comprido-focinho-pontudo. Enquanto Lili procurava as últimas amoras,
elas conversaram.
- Você tem família grande? perguntou sua companheira.
- Sim, eu tenho uma porção de irmãos e irmãs maiores, disse Lili.
- É mesmo? Então vou mostrar a você onde encontrar caracóis. Acho que eles
são ótimos para fazer patos ficarem GRANDES...fortes...e gordos.
Os caracóis estavam gostosos, tão incrivelmente deliciosos, que Lili não foi
embora enquanto não comeu todos.
- Da próxima vez, traga seus irmãos e irmãs, disse dona Perna-peluda-Rabocomprido-focinho-pontudo.
- Combinado! exclamou Lili. Só que eles não conseguem andar tão depressa
quanto eu. E clã foi gingando, com o rabo se arrastando pelo chão.
Na semana seguinte, dona Perna-peluda-Rabo-comprido-focinho-pontudoLíngua–rosada, andando na floresta, encontrou Lili sozinha, soluçando, e perguntou:
- Por que você está aí chorando?
- Minha família foi embora para uma lagoa maior, queixou-se ela.
- Oh, que pena! Eu queria tanto fazer uma festa com todos vocês... Mas, então,
venha comigo!
Lili parou de chorar. - Como você é boa, disse ela, fungando e seguindo sua
amiga pela escura floresta verde.
- Vamos! Vamos! Ande mais depressa, disse dona Perna-peluda-Rabocomprido-Focinho-pontudo-Lígua-rosada, lambendo os beiços.
- Que grosseira ela é! pensou Lili, descansado um pouco.
- Depressa! Vamos! disse a outra, rosnando.
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- Quem ela pensa que é? Grasnou Lili, olhando para cima. E Lili viu suas pernas peludas. Reparou em seu RABO COMPRIDO. Observou seu focinho pontudo. E
arregalou os olhos quando sua língua rosada passou por uma fila de dentes finos e
afiados. Lili chiou e grasnou, quando ela viu... Dona Perna-peluda-Rabo-compridoFocinho-pontudo-Língua-rosada, é a RAPOSA!
Bem depressa Lili deu meia volta e correu...plá, plá...plé, plé! Cada vez mais
depressa pelas curvas do caminho atravessando a escura floresta verde de volta para a lagoa. TCHIBUM! Caiu na água. Bate pé, chap-chap, bate pé, chap-chap... mais
depressa, mais depressa. Lili até ouvia a respiração ofegante de dona Raposa. Lili
até sentia os bigodes dela espetando seu rabinho.
E lili bateu os pés, chap-chap-chap. E lili bateu as asas, flap-flap-flap. De repente... lili estava voando!, Voou, voou por cima da lagoa. Voou,voou, por cima das
árvores. Voou bem alto, fora do alcance de dona Raposa. Voou, voou, por cima do
morro, até o outro lado. E lá em baixo, numa grande lagoa, Lili avistou sua família.
Ela desceu, planando, posou na água como se tivesse muita prática.
- Olhem, olhem! – grasnaram seus irmãos e irmãs.
- Oi, Lili! Nós pensávamos que você só soubesse andar!
- Eu também pensava, disse Lili, mas agora sei fazer de tudo!
E ela sabia mesmo! UAU! SER PATO É O MÁXIMO!

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