CAPÍTULO I - REFERENCIAL TEÓRICO
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CAPÍTULO I - REFERENCIAL TEÓRICO
CAPÍTULO I - REFERENCIAL TEÓRICO-CONCEITUAL Delmiro Gouveia, homem empreendedor no comércio e na indústria no final do século XIX e início do XX. Se destacou no cenário social da época, nos estados de Pernambuco e Alagoas, através de seus grandiosos empreendimentos, em sua maioria inovadores para a época. Isso trouxe para ele muita riqueza, mas também muitos inimigos, aos quais se sentiam prejudicados com o seu sucesso. Segundo Correia (1996), No início do século XX, Delmiro já era uma lenda viva entre os recifenses. O empresário jovem, elegante e charmoso que despontava no mundo dos negócios. Recém enriquecido através do comércio de couros, causava furor tanto pelo sucesso do moderno centro de comércio e lazer que criou, o Derby, quanto pela corajosa oposição que fazia ao poderoso grupo político situacionista liderado por Rosa e Silva. Sua tumultuada vida amorosa era alvo de mexericos, escândalos e denúncias na imprensa, não deixava de contribuir para mantê-lo em constante evidência. A retirada para o Sertão de Alagoas longe de ter implicado numa redução do interesse em torno de Delmiro, só veio a reforçar os mitos que já vinham se construindo em torno dele. A construção da usina elétrica no rio São Francisco, da fábrica de linhas de costura, a primeira do Brasil, e do núcleo fabril da Pedra, colocaram-se para seus admiradores como novos indícios dos dotes exemplares que reunia como empresário. Sua morte violenta, assassinado em 1917, aumentaria o interesse pelo personagem, que desde então tem sido tema de numerosos estudos, obras de ficção e homenagens. Coerente com a postura adotada por muitos industriais adeptos e difusores da ética do trabalho, Delmiro procurou incorporar à sua imagem empresarial a figura de um trabalhador infatigável. O trabalho era enaltecido por Delmiro que, através dele, procurava explicar seu sucesso nos negócios e a origem de sua rápida fortuna. Em artigo de 1898, Delmiro lançou mão da idéia de trabalho para responder às críticas de seus adversários políticos no Recife, que lançavam dúvidas quanto à probidade de seus negócios: "Enquanto eles viviam pelas ruas, cafés, casas de pensão, restaurantes, trens e mesmo em seus escritórios, onde à falta de trabalho passam o tempo a se ocupar da vida alheia, eu estava no labor do meu negócio, externuando-me na verdadeira luta pela vida, afim de conseguir o que tanto hoje os incomoda" (GOUVEIA, 1 jan. 1898, 2). Procurando rebater insinuações acerca do mistério que cercou seu breve trajeto de vendedor de bilhetes de trem até próspero comerciante, Delmiro argumentava: "Fiquem certos esses caluniadores de oficio que não ganho nem estrago dinheiro em jogatinas; não empresto a juros de vinagre; não sirvo de capacho, de limpa botas de quem está acima de mim em posição ou vantagens” (GOUVEIA, 5 jan. 1900, 2). De acordo com Marx e Engel (1888), entende-se por burguesia a classe dos capitalistas modernos, que são proprietários dos meios de produção social e empregam trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos trabalhadores assalariados modernos, que, não tendo meios de produção próprios, são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver. Esse tipo de pensamento evidenciava a relação de Delmiro Gouveia nesse meio social. Coerente com a glorificação do trabalho que ganha adeptos nas classes dominantes, percorrendo o pensamento burguês, o ideário positivista, o catolicismo social, doutrinas puritanas e evangélicas, Delmiro elege o trabalho como o principal atributo moral dos indivíduos. Vê no trabalho um sinal de personalidade bem formada do ponto de vista moral, um indício de honra, perseverança e energia. Ao trabalho, por outro lado, atribui a capacidade de engrandecimento do indivíduo, pelo enobrecimento moral e pelo acesso a bens materiais. O elogio do mérito individual e a noção de igualdade de oportunidades, outros dos princípios do pensamento liberal, são também mobilizados por Delmiro para explicar sua trajetória no mundo dos negócios, revidando críticas quanto à lisura de seus negócios feitas por adversários: Si eles tivessem no sangue, nos nervos, nas faces, vergonha, e no organismo alguma coisa de energia e sentimento, deviam orgulhar-se de haver um homem do povo, pobre porém trabalhador, capaz de mostrarlhes com exemplos que quem luta pela vida com honradez, atividade e perseverança, pode conseguir uma posição na sociedade e, em vez de andarem pelas ruas, cafés, trens e esquinas empregando-se na maledicência, podiam dedicar-se ao trabalho proveitoso, que nobilita o homem e dá-lhe sempre o direito de confundir seus inimigos gratuitos (GOUVEIA, 1898, 2). Segundo Correia (1996), ao lado do trabalhador, outro atributo que costuma ser associado à imagem empresarial de Delmiro é o de nacionalista. As bases para a construção desta noção foram lançadas pelo próprio industrial na década de 1910. Mobilizando uma argumentação em que procurava associar os interesses da indústria aos da Nação e sentimentos nativistas e cívicos que se propagavam no País na década de 1910, Delmiro apelou para idéias nacionalistas na promoção da fábrica de Pedra e no pleito de concessões e incentivos públicos. Obteve junto ao Governo de Alagoas amplas concessões que incluíram o direito de posse de terras devolutas, a isenção de impostos para a fábrica, a permissão para captar energia elétrica da Cachoeira de Paulo Afonso e recursos para financiar a construção de cerca de 520 quilômetros de estradas, ligando Pedra a outras localidades. Mobilizou ainda argumentos de cunho nacionalismo no intuito de sensibilizar os consumidores a darem preferência à linha "Estrela" fabricada em Pedra, em detrimento das fabricadas por empresas estrangeiras. A geração de empregos para brasileiros, a utilização de matéria-prima nacional e a quebra de monopólios eram os argumentos usados em anúncio veiculado na imprensa: Nossa Fábrica ocupa 2.000 operários brasileiros e nossa linha é fabricada com matéria prima exclusivamente nacional. Esperamos que o público não deixará de comprar a nossa linha, de superior qualidade, para dar preferência a mercadoria estrangeira ou com rótulo aparente de nacional. Se não fosse a linha "Estrela" o preço de um carretel estaria por 500 réis ou mais; o público deve o benefício do barateamento deste artigo de primeira necessidade, à nossa indústria (MENEZES, 1963, 134-135). Silva (2007), evidencia a intensa disputa de mercado entre Delmiro e a Machine Cotton, fabricante da linha "Corrente" contribuiu para convertê-lo em um dos símbolos mais fortes da causa nacionalista em todo o País. Matéria do Jornal do Comércio do Recife, de 1922, reproduzida pelo Correio da Pedra, mostrava a fábrica da Pedra como elemento de soberania nacional: "A importante fabrica de linhas, que era o inicio daquele faustoso empório industrial ai está produzindo em franca e vantajosa competência com suas similares, pondo-nos á salvo da tutela pesada do estrangeiro" (Correio da Pedra, 22 out. 1922, 1). Correia (1996), relata a disputa entre a Machine Cotton e a fábrica da Pedra se estendeu por longos anos, tendo-se acirrado na década de vinte. Esta concorrência acirrada levou a Fábrica da Pedra a sucessivos prejuízos no tocante à fabricação de linhas de coser, apenas parcialmente compensados pelos lucros decorrentes da produção de fios industriais. Em 1926, o Presidente Artur Bernades assinou o Decreto N. 17.383, elevando a taxa de importação sobre as linhas de coser. O Decreto, no entanto, foi revogado dois anos depois pelo Presidente Washington Luís, motivado, inclusive, por pressões do Embaixador e de banqueiros ingleses, que qualificavam o Decreto de ato de hostilidade comercial. Após haver tentado, sem sucesso, comprar Pedra a Delmiro, a Machine Cotton, em 1929, 12 anos após a morte deste, realizou seu intento de tirar a fábrica da Pedra da produção de linhas. Para tanto, a Machine Cotton adquiriu dos então proprietários de Pedra (os irmãos Menezes, também donos da Fábrica Têxtil de Camaragibe, em Pernambuco) as marcas registradas das linhas e os maquinismos específicos para sua fabricação. Pelo acordo, Pedra permaneceria fabricando apenas fios industriais; seus proprietários não poderiam por dez anos participar direta ou indiretamente de negócios relativos à fabricação de linhas ou venda de fios para a fabricação por terceiros. À aquisição, seguiu-se a destruição das máquinas, aniquiladas a golpes de picareta e atiradas ao Rio São Francisco. A violência deste gesto e a agressividade da disputa de mercado por parte da fábrica escocesa deram subsídios para que Pedra fosse convertida em marco da luta contra o imperialismo. No mesmo sentido, procurou-se converter Delmiro Gouveia em mártir da causa nacionalista. Embora fosse então amplamente aceito que seu assassinato houvesse sido conseqüência de disputas com coronéis de cidades vizinhas, progressivamente dúvidas foram sendo lançadas sobre suas causas. A Machine Cotton foi incorporada ao rol dos suspeitos por uns, por outros acusada de haver promovido o assassinato. Ao longo de sua trajetória empresarial Delmiro construiu ainda uma reputação de empresário ousado e inovador. Três de seus empreendimentos, o Derby, a usina hidroelétrica em Paulo Afonso e a fábrica e vila operária da Pedra, evidenciam tais atributos. De acordo com relatos históricos destacados por Correia (1996), o Derby foi um centro comercial e de lazer, que incluía mercado, hotel, cassino, velódromo, parque de diversões e loteamento residencial - inaugurado no Recife em 1899. Depoimentos de observadores da época revelam a admiração causada pelo Derby junto a segmentos da população do Recife, e o orgulho diante deste empreendimento que parecia colocar a cidade em sintonia com o que havia de mais moderno e de bom gosto no mundo de então. O Derby surgia como expressão de progresso e civilidade, como um local ameno que ornava e dignificava a cidade, como um centro de diversões modernas que trazia ao Recife os prazeres inéditos produzidos com o auxílio da técnica e da ciência. Tal admiração era compartilhada por viajantes. Quando trata de Pernambuco no livro "The New Brazil", publicado em 1901, a escritora americana Marie Robinson Wright confere uma relevância especial ao Derby que visitou em outubro de 1899, ao qual reserva três das doze ilustrações do capítulo e um último parágrafo bastante elogioso: Muitos estrangeiros visitam o porto de Pernambuco todo ano, e não é raro ver meia dúzia de nacionalidades representadas nos hotéis de seus atraentes subúrbios, especialmente no Derby, que é um dos mais pitorescos lugares que se pode imaginar, com bonitas casas, sombras de arvoredos, leve movimento das águas do rio, pequenas pontes artísticas semi-enterradas na vegetação das margens, e canoas alegremente pintadas deslizando na superfície da água. Este subúrbio goza da distinção de possuir um dos melhores hotéis da América do Sul; o Hotel do Derby é perfeitamente moderno em todos os sentidos e orientado por um padrão metropolitano de serviço. O mercado do Derby é um dos maiores estabelecimentos do seu tipo, no Brasil, e está equipado para os amplos negócios que diariamente são nele realizados. O subúrbio deve seu aspecto atraente à empresa de um cidadão muito progressista, Senhor Delmiro Gouveia, o proprietário, que tem pessoalmente dirigido tudo em sintonia com o desenvolvimento do empreendimento (WRIGHT, 1901, 314). Conforme Hildebrando Menezes, Delmiro repetia sempre que não queria mestres a orientarem a execução das suas obras. Preferia homens que cumprissem bem as suas ordens e executassem os seus planos" (MENEZES, 1991, 71). Segundo Arno Pearse, se referindo a Pedra, que lá esteve em 1921, tratava-se de uma cidade especialmente construída, onde as casas são espaçosas e a arquitetura e o plano da cidade modernos" (LIMA JÚNIOR, 1963, 206). Plínio Cavalcanti, em artigos e conferência, narrou à epopéia, comandada por Delmiro, que teria representado a construção da usina hidrelétrica: o transporte das imensas máquinas até o sertão através de estradas precárias e de abismos, superando o descrédito, o desânimo e o temor de auxiliares (CAVALCANTI, 1927). Mas nenhum dos empreendimentos dirigidos por Delmiro despertou mais entusiasmo e admiração que a fábrica e a vila operária da Pedra. Para Assis Chateaubriand Pedra surge como uma reversão heróica das contingências do meio, como uma dupla vitória sobre os elementos e sobre a essência do sertanejo. Sublinhando a paisagem seca e desolada e as violentas variações de temperatura, o autor enfatiza a hostilidade do ambiente natural da região de Pedra e seu poder avassalador sobre o indivíduo. Em face da visão de uma natureza sem freios, diante de cujas forças imensas e ferozes o homem se sente ameaçado e impotente, a ação de Delmiro em Pedra surge como um vigoroso embate da técnica e da razão contra os elementos (CHATEAUBRIAND, 1990). Neste confronto, demonstrando um poder que seus contemporâneos vêem como inelutável, a técnica suplanta aos seus olhos, uma a uma, todas as até então consideradas invencíveis resistências que, acreditava-se, a natureza inóspita do Sertão impunha à penetração do progresso e da civilização no seu território. Na luta para subjugar esta natureza, vê-se a técnica aliada à tenacidade de Delmiro. Transpor a distância do litoral a Pedra, suplantar a fúria das águas da cachoeira, ultrapassar seus abismos e íngremes encostas, desbravar a vegetação agressiva, vencer a resistência do rígido arenito do subsolo e sobre ele levantar cidade, pomares e jardins, tudo isto sob um sol escaldante, um clima seco e um calor asfixiante, era visto como um empreendimento heróico. Tal empreendimento, considerava-se, além de conhecimentos técnicos, exigia muito de entusiasmo, autoconfiança, força de vontade, liderança, teimosia e audácia. "Todos os dias, pela manhã, invariavelmente, Delmiro fazia demorado passeio de fiscalização pela vila operaria, aconselhando uns, repreendendo os faltosos, impondo costumes de educação domestica, verdadeira romaria de evangelizador exercendo a catequese de civilização naquele centro semi-bárbaro" (SANTOS, 1947, 37). Salomão Filgueroa apontava nessas casas a rigorosa uniformidade de estilo na construção e absoluta higiene" e Plinio Cavalcanti dizia serem "irrepreensivelmente limpas" (FIGUEROA, 1925; CAVALCANTI, 1927, 51). Antes de tudo, falo do asseio. É irrepreensível. Dentro e fora da fábrica, individual e coletivo. A vassoura é ali uma instituição. Tudo é escovado, brunido, polido. Não vi em parte alguma por onde tenho andado, limpeza tamanha e tão rigorosa. Nas ruas seria impossível encontrar um cisco, um pedaço de papel atirado ao chão. Aqui e ali se vêem os barris para coleta dos papéis servidos. As carrocinhas passam e vão esvaziando-os. Passase como passamos várias vezes por aquelas calçadas extensas e não se vê uma mancha, um sinal de cuspe no chão. É tudo lavado, varrido, escovado (CHATEAUBRIAND, 1990, 65-69). Hildebrando Menezes conta que, em Pedra, Delmiro era extremamente absorvente, somente ele mandava" (MENEZES, 1991, 97). Lima Júnior relata que Delmiro costumava prevenir os récem-admitidos na fábrica que na Pedra, ele era tudo: Deus, o Diabo, a mais alta autoridade" (LIMA JÚNIOR, 1963, 315). Quem manufatura nunca esta fazendo bem feito de mais. Por mais minuciosa e bem cuidada, nunca a fiscalização é suficiente e completa. Nunca se conseguirá ser tão asseado quanto se deveria. Jamais se poderá dizer que o produto é irrepreensível, ou livre de defeito. Enfim, todos os dias deve-se cuidar do melhoramento do produto. Não seguindo estes conselhos, tudo baqueará (LIMA JÚNIOR, 1963, 152). Para Correia (1996), o sucesso empresarial de Delmiro dependeu de favores e concessões públicas. A realização de iniciativas empresariais arrojadas, como as levadas a cabo por Delmiro, dependeram de concessões públicas, obtidas graças a alianças com políticos de Pernambuco e Alagoas. Apesar da estreita relação entre política e negócios que presidiu sua trajetória no mundo do comércio e da indústria, Delmiro se empenhou em desqualificar sua atuação política. Adotando um discurso coerente com a imagem do indivíduo independente e do empreendedor auto-suficiente que procurou encarnar, buscou negar sua intimidade com a atividade política: "Nada tenho que ver com a política. Não sou político. Não sou partidário. A política influi apenas indiretamente nos meus negócios pela ação dos impostos ou pelas garantias constitucionais que ela anima" (GOUVEIA, 12 jul. 1899, 3). A oposição feita por Delmiro a Rosa e Silva, político que comandou durante mais de quinze anos a política estadual - provocou grandes danos aos seus negócios no Recife e inviabilizou sua permanência em Pernambuco. Antigo membro do Partido Conservador no Império. Delmiro Gouveia foi um adversário ferrenho de Rosa e Silva, travando com os partidários deste, no Recife, violentas trocas de acusações pela imprensa. A situação acusava Delmiro de especulador e a oposição o defendia, enfatizando o autoritarismo e a intransigência do governo. Na vasta produção intelectual sobre Delmiro, é enfatizado seu aspecto empreendedor e ousado. Mostra-se um industrial que se antecipou na introdução de inovações técnicas, no controle da reprodução operária e na exploração das potencialidades do Sertão para a indústria. Mostra-se um homem de pulso e visão, convertido em empresário exemplar. Delmiro é representado como um indivíduo destemido, homem de grandes embates, que teria enfrentado sozinho a prepotência das oligarquias estaduais, a fúria do poder internacional, a violência dos coronéis e a ignorância dos camponeses sertanejos. Surge, também, como o homem com rara habilidade para ganhar dinheiro e organizar empreendimentos inovadores, mobilizando amplamente os recursos oferecidos pela técnica e pela ciência. Para alguns autores, solidários com o mito burguês da ascensão social como uma possibilidade aberta a todos, Delmiro aparece como um nordestino pobre que deu certo. Como o rapaz humilde que, por esforço próprio conquistou conhecimentos, prestígio e riqueza. Sintetizando esta visão, Gilberto Freyre o qualifica como exemplo de "self made man" (FREYRE, 1959, 121). Nesta ótica, Delmiro converte-se em testemunho de que, dependendo unicamente de suas qualidades individuais, qualquer indivíduo teria condições de ascender socialmente, aproveitando as chances que a sociedade burguesa oferece. CAPÍTULO II – O MUNICÍPIO DE DELMIRO GOUVEIA E SUAS ORIGENS Baseando-nos em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, Delmiro Gouveia (anteriormente Pedra), é um município e cidade do Estado de Alagoas, Brasil, localizado no Sertão Alagoano, Microrregião Alagoana do Sertão do São Francisco. Com área de 605,395 km², faz fronteira com as cidades alagoanas de Pariconha, Água Branca e Olho D’Água do Casado. Em Sergipe - Canindé do São Francisco, na Bahia - Paulo Afonso. Está localizada a 256 metros acima do nível do mar. Foi elevado a município em 1952. Tem um clima quente e seco, uma população acima de 47.000 habitantes, a economia se baseia na indústria têxtil, comércio, agricultura e pecuária. Uma de suas principais atrações é o museu Delmiro Gouveia, como atrativo também se encontra na cidade, uma parte do cânion do São Francisco. Entre os festejos, estão a festa da padroeira e o carnaval. Anteriormente denominado Pedra, teve seu nome alterado para Delmiro Gouveia em homenagem ao empreendedor e industrial que ali residiu no início do século XX, tendo fundado uma importante indústria de linhas de costura, a Cia Agro Fabril Mercantil, e construído a Vila Operária Padrão. O povoado se criou graças à construção de uma estrada de ferro da Great-Western, denominada Ferrovia Paulo Affonso. Em grande parte graças às ações pioneiras de seu afamado morador Delmiro. Hoje o município que leva seu nome tornou-se uma das mais importantes cidades do interior de Alagoas. Segundo Silva (2007), Delmiro Augusto da Cruz Gouveia era filho de Delmiro Porfírio de Farias, de Leonilda Flora da Cruz Gouveia. De família pobre, teve que trabalhar cedo para se manter e ajudar a mãe e aos 19 anos, mudou-se com ela para a cidade de Goiana, em Pernambuco e depois para o Recife. Foi bilheteiro da estação Olinda do trem urbano, trabalhando também na estação de Apipucos, bairro do Recife, e trabalhou ainda como despachante de barcaças. Interessado na compra e venda de couro e peles de cabras e ovelhas vai para o interior de Pernambuco, onde casou-se (1883) com Anunciada Cândida de Melo Falcão, na cidade de pesqueira. Trabalhou inicialmente como intermediário entre os produtores de peles de cabra, carneiro e couros de boi espalhados por todo o sertão nordestino e os comerciantes estrangeiros sediados no Recife. Trabalhou depois para a Keen Sutterly & Co., da Filadélfia, e tornou-se gerente de sua filial (1892). No ano seguinte, quando a matriz faliu, ele comprou seus escritórios no Recife e fundou a Casa Delmiro Gouveia & Cia (1896). Ligou-se à firma L. H. Rossbch, Brothers de Nova York e, com seu apoio financeiro e com postos de compra espalhados por todo o Nordeste, enriqueceu e tornou-se conhecido como o Rei das peles. Partiu para outros empreendimentos, urbanizou o bairro do Derby, no Recife, onde só havia manguezais, abrindo ruas, construindo casas e um grande mercado modelo sem similar no Brasil, o Mercado Coelho Cintra (1899), incendiado (1900), reformado (1924) e hoje sede do quartel general da Polícia Militar de Pernambuco, e construiu uma refinaria de açúcar que chegou a ser a maior da América do Sul. Autoritário e de temperamento difícil, à medida que enriquecia, criava mais inimigos, especialmente entre os políticos pernambucanos, o que o levou a se separar da esposa (1901) e a refugiar-se durante um ano na Europa. De volta ao Brasil, no ano seguinte fugiu com uma adolescente, Carmela Eulina do Amaral Gusmão, fixando-se em Vila da Pedra, uma localidade a cerca de 280 km de Maceió, hoje Delmiro Gouveia, perto do rio São Francisco, no sertão alagoano (1904), e voltou ao comércio de peles. Era um povoado formado por uma meia dúzia de casebres em torno de um terminal da ferrovia que unia Piranhas a Petrolândia, pela qual circulava um trem por semana. Com apoio financeiro dos irmãos Rossbach, uniu-se a dois sócios italianos, Lionelo Iona e Guido Ferrário, fundando a firma Iona e Cia., com sede em Maceió. Para Pedra eram levadas peles e couros dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe, onde elas eram tratadas e enfardadas. Seguiam de trem até Piranhas, desciam o São Francisco até Penedo e por mar seguiam para Maceió, de onde eram exportadas para os Estados Unidos. Em pouco tempo recuperou-se financeiramente e viajou diversas vezes à Europa e aos Estados Unidos, onde conheceu a nova revolução industrial provocada pelo uso da energia elétrica. Quando ele conheceu a cachoeira de Paulo Afonso, teve a idéia de realizar ali um grande projeto e trouxe um grupo de engenheiros e investidores estadunidenses (1909-1910), para o projeto e a construção de uma grande hidrelétrica, que geraria energia suficiente para iluminar e abastecer o Recife e um grande um empreendimento agro-industrial nas terras em torno da cachoeira, em áreas da Bahia, Alagoas e Pernambuco a serem adquiridas pela empresa. Porém o governador de Pernambuco, Dantas Barreto, desconfiou da enormidade do projeto e ele foi forçado a reduzir as dimensões do projeto. Com o apoio dos irmão Rossbach, ele organizou a Cia. Agro-Fabril Mercantil e com turbinas e geradores alemães e suíços, instalou, num dos saltos da cachoeira de Paulo Afonso, o de Angiquinho, no lado alagoano do rio, uma usina hidrelétrica que gerava 1.500 HP, com uma voltagem de 3 KV. Pessoalmente, escolheu, na Inglaterra, máquinas da indústria Dobson & Barlow, para uma fábrica, a Cia Agro-Fabril, que iniciou (1914), a produção de linhas de coser, para rendas e bordados, fios e cordões de algodão cru em novelos, fios encerados e fitas gomadas para embrulhos. Essa indústria tinha características revolucionárias, no campo social, com uma vila operária, assistência médica, escola e cinema. Segundo Correia (1996), em Pedra, houve um esforço realizado por Delmiro no sentido do controle e recondicionamento físico e mental dos moradores. O baixo valor da terra em plena caatinga não criava dificuldades na expansão da vila. Os blocos de casas se espalhavam, dando lugar a ruas largas, generosas vias sanitárias, amplos quintais e vastas extensões de terras desocupadas. Seus amplos blocos de casas padronizadas definiam ruas retas e largas, ao mesmo tempo grandiosas e singelas. As casas eram de alvenaria, revestidas com reboco, caiadas, cobertas de telhas de barro do tipo canal e tinham piso de tijolo. Estavam agrupadas em compridos blocos de residências térreas conjugadas. As casas-padrão em Pedra compunham-se de cinco vãos: duas salas, dois quartos e cozinha, além de sanitário no fundo do quintal. Esta divisão funcional do espaço, assinalando o lugar de cada indivíduo no território doméstico, esteve intimamente ligado ao controle dos contatos e das trocas afetivas na família. A especialização funcional dos espaços domésticos conforme as atividades e os indivíduos destinados a ocupá-los definia-se melhor, no caso de Pedra, nas casas maiores, destinadas a funcionários mais graduados, gerentes e engenheiros. Tais casas contavam com cinco quartos (entre os quais uma alcova), três salas, cozinha, despensa e dependências. Sua localização nas esquinas permitia a existência de jardim interligado ao quintal. Requisitos de higiene, conforto, segurança e economia presidiram a organização dos espaços coletivos e das habitações em Pedra. Noções de segurança se expressaram na estratégia de reter a família trabalhadora em local isolado e confinado, submetendo-a a disciplina rígida. O espaço cercado, com seqüências de casas padronizadas ao longo de ruas largas e regulares, facilitava o controle do acesso ao núcleo e dos movimentos no seu interior. A dimensão reduzida, as baixas densidades e os grandes vazios também eram solidários com a inspeção minuciosa dos moradores. Tal distribuição eliminava amontoamentos, altas densidades, ajuntamentos, misturas e confusões, desfavorecendo contatos suspeitos, comportamentos autônomos e desregramentos. A segurança em Pedra foi ainda pensada na disposição, nas esquinas - pontos estratégicos - das casas destinadas a funcionários mais graduados, aos quais era atribuída a tarefa adicional de zelar pela limpeza e ordem do núcleo. Padronizadas, conjugadas e agrupadas em extensos blocos, as casas operárias em Pedra seguiam um partido que facilitava o controle da esfera doméstica. Sua concepção remetia à noção da moradia como alojamento e "habitat moderno", o qual é concebido reunindo a fórmula conjugal legítima (não existe habitat de solteiro), a exclusividade do uso residencial, a abolição da noção da casa como lugar inviolável de autonomia da família e como espaço franqueado a não-membros da família. Em Pedra não havia casas ou alojamentos para solteiros, apenas uns poucos moradores, professoras, comerciantes entre outros, tinham a casa também como local de trabalho. O patrão e seus auxiliares interferiam profundamente no interior do espaço doméstico, procurando afastar tudo o que fosse julgado contrário à moralidade, à salubridade e à tranqüilidade e o acesso de estranhos, sobretudo de homens solteiros, era regulado pela fábrica. Do ponto de vista da arregimentação de trabalhadores para a indústria, ao oferecer casa, emprego e água abundante, Pedra tinha condições de interceptar famílias de retirantes desprendidas do seu local de origem pela seca de 1915 e pela fome e de atrair famílias de agricultores das áreas próximas. No núcleo, havia lugar, também, para os foragidos da justiça ou perseguidos por inimigos em decorrência de intrigas pessoais ou conflitos políticos, prática rotineira numa época em que a justiça tinha enorme dificuldade de penetrar nos domínios particulares de homens ricos e poderosos. Havia ainda, em Pedra, um pequeno número de técnicos mais especializados, originários do Recife, de Maceió e do exterior. Assassinos, viúvas desamparadas com família numerosa e retirantes miseráveis, eram portanto, os alvos principais da estratégia de arregimentação de mão-de-obra para o trabalho fabril. Vivendo em circunstâncias precárias, muitas sem posses e desligadas do seu lugar de origem, estas pessoas estavam menos propensas a rejeitar as condições oferecidas por Delmiro, a resistir ao ingresso nesse mundo novo que lhes alterava completamente o cotidiano, do trabalho à forma de morar, da diversão ao vestuário, por meio de uma radical ingerência externa sobre suas existências. Portanto, a dificuldade da retirada de pessoas de outras atividades para a indústria que expressava o penoso processo de adaptação, com todo o sofrimento e conseqüente resistência ao trabalho fabril, era amenizada no caso de Pedra, por sua localização no Sertão. No controle social do grupo operário um elemento central era o isolamento espacial e o caráter autárquico do núcleo. Em Pedra, Delmiro Gouveia colocava-se simultaneamente como patrão e líder político local. Ao mesmo tempo em que se opôs a qualquer interferência, em Pedra, dos coronéis da região, criou todo um aparato policial e administrativo próprio. Vigias, guardas e funcionários o auxiliavam no controle da ordem e na administração do núcleo. Delmiro dispensou inclusive a colaboração da Igreja Católica, tão cara à maioria dos industriais construtores de núcleos fabris. Fato espantoso, considerando-se a religiosidade do sertanejo. Na rotina de Pedra, as cerimônias religiosas que pautavam a vida das pequenas cidades foram substituídas por atividades profanas, como cinema, bailes, patinação e futebol. A ausência da Igreja em Pedra pode ser explicada pela intenção de Delmiro de evitar uma outra autoridade que competisse e eventualmente se chocasse com a sua em Pedra. Não é difícil imaginar a emergência de choques entre a Igreja e a insistência de Delmiro em manter práticas como o "tronco" e os espancamentos. Por outro lado, sem igreja e padre, evitava que o calendário religioso interferisse no ritmo de trabalho da fábrica e assegurava seu monopólio sobre a ação de controle moral da aglomeração, onde também não havia polícia e representantes da justiça. Visando neutralizar as interferências externas, Delmiro arrematou, junto à Prefeitura de Água Branca, os impostos sobre comércio, feira a lojas, passando a controlar diretamente estas atividades em Pedra (LIMA JÚNIOR, 1963, p.194). Retratando o papel da escola, podemos dizer que exercia função central no preparo das crianças para o emprego fabril. Nela recebiam os conhecimentos e instruções básicas para se converterem nos futuros operários eficientes, sóbrios, obedientes e disciplinados desejados pela fábrica. Havia, em Pedra, escolas diurnas para crianças e noturnas para adultos.Todas as crianças, a partir de cinco anos, freqüentavam obrigatoriamente uma das seis escolas existentes. A fábrica exercia controle direto sobre o ensino, fiscalizando as faltas dos alunos e oferecendo prêmios para os que se destacassem. Para entrar no cinema, as crianças precisavam apresentar comprovantes de freqüência às escolas. Simultaneamente aos incentivos, a fábrica utilizava-se de drásticos mecanismos de coerção para exigir o ingresso de todas as crianças nas escolas. O conteúdo do ensino das escolas de Pedra enfatizava preceitos de obediência e moral e regras de boas maneiras. Tratava-se de domesticar os instintos e reprimir as paixões, fazendo as crianças assimilarem hábitos julgados civilizados, de modo a tornarem-se adultos pacíficos, moralizados e asseados, cientes e respeitadores das regras de civilidade e de higiene corporal. Ensinar a acatar ordens, compreender regras e cumprir regulamentos surgia como outro dos eixos centrais deste ensino. A idéia da instrução como instrumento de controle social foi expressa claramente por Delmiro. Referindo-se aos rígidos castigos que impunha aos operários em Pedra, os teria justificado como meios de evitar o crime e a desordem, argumentando, no entanto, que esses métodos violentos seriam abandonados progressivamente, à medida que os métodos da educação surtissem efeitos amplos. Em Pedra, formas discretas e sutis de disciplina conviveram com o uso de violência aberta contra os moradores. Ao lado da concessão de ajudas e prêmios, do aconselhamento e da vigilância, adotou-se uma diversidade de mecanismos de punição. O respeito às normas impostas foi buscado através do medo de um patrão que construiu uma reputação de ser implacável, determinando as regras, fiscalizando pessoalmente seu cumprimento e punindo severamente quem deixasse de segui-las. A imposição de uma disciplina rigorosa no interior das fábricas e vilas operárias é uma característica básica destes empreendimentos. O que chama a atenção, em Pedra, são as formas de punição: o patrão muitas vezes envolvia-se diretamente na execução do castigo, que chegava a incluir agressões corporais. Desempenhando funções policiais e judiciais no limite do núcleo fabril, Delmiro, auxiliado por capangas e vigias, impunha suas próprias leis na regulação da vida privada e do trabalho, policiando, julgando e punindo os que as violavam. Em Pedra, a polícia não entrava sem autorização e a justiça não interferia nos conflitos: o patrão era a lei. As punições aplicadas consistiam em multas para as transgressões consideradas leves e castigos corporais e humilhações públicas para aquelas julgadas graves. A expulsão era freqüentemente precedida de ritual público de degradação. Nesse sentido, via-se o trabalhador como indivíduo não completamente racional, que deveria ser tratado com mão de ferro para respeitar as regras do jogo da sociedade capitalista. Na visão de homens letrados da época, tal violência parecia aceitável, surgindo como um tributo exigido pelo progresso. O rígido domínio de Delmiro sobre operários vistos como despreparados e resistentes ao trabalho, aparecia como ação exemplar na eliminação de obstáculos à penetração do progresso no Sertão. Vista parcial de Pedra. Primeiros anos da fábrica de linhas. (fonte: ARARIPE, 1997, p. 263) Rua da Vila Operária de Pedra – início do século XX (fonte: ARARIPE, 1997, p. 264) Fachada da Fábrica de Linhas da Pedra (Fonte: SILVA, 2007, p. 145) Interior da Fábrica de Linhas da Pedra (Fonte: SILVA, 2007, p. 151)