CAPÍTULO I - REFERENCIAL TEÓRICO

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CAPÍTULO I - REFERENCIAL TEÓRICO
CAPÍTULO I - REFERENCIAL TEÓRICO-CONCEITUAL
Delmiro Gouveia, homem empreendedor no comércio e na indústria no final
do século XIX e início do XX. Se destacou no cenário social da época, nos
estados
de
Pernambuco
e
Alagoas,
através
de
seus
grandiosos
empreendimentos, em sua maioria inovadores para a época. Isso trouxe para ele
muita riqueza, mas também muitos inimigos, aos quais se sentiam prejudicados
com o seu sucesso.
Segundo Correia (1996), No início do século XX, Delmiro já era uma lenda
viva entre os recifenses. O empresário jovem, elegante e charmoso que
despontava no mundo dos negócios. Recém enriquecido através do comércio de
couros, causava furor tanto pelo sucesso do moderno centro de comércio e lazer
que criou, o Derby, quanto pela corajosa oposição que fazia ao poderoso grupo
político situacionista liderado por Rosa e Silva. Sua tumultuada vida amorosa era
alvo de mexericos, escândalos e denúncias na imprensa, não deixava de
contribuir para mantê-lo em constante evidência. A retirada para o Sertão de
Alagoas longe de ter implicado numa redução do interesse em torno de Delmiro,
só veio a reforçar os mitos que já vinham se construindo em torno dele. A
construção da usina elétrica no rio São Francisco, da fábrica de linhas de costura,
a primeira do Brasil, e do núcleo fabril da Pedra, colocaram-se para seus
admiradores como novos indícios dos dotes exemplares que reunia como
empresário. Sua morte violenta, assassinado em 1917, aumentaria o interesse
pelo personagem, que desde então tem sido tema de numerosos estudos, obras
de ficção e homenagens.
Coerente com a postura adotada por muitos industriais adeptos e difusores
da ética do trabalho, Delmiro procurou incorporar à sua imagem empresarial a
figura de um trabalhador infatigável. O trabalho era enaltecido por Delmiro que,
através dele, procurava explicar seu sucesso nos negócios e a origem de sua
rápida fortuna. Em artigo de 1898, Delmiro lançou mão da idéia de trabalho para
responder às críticas de seus adversários políticos no Recife, que lançavam
dúvidas quanto à probidade de seus negócios:
"Enquanto eles viviam pelas ruas, cafés, casas de pensão, restaurantes,
trens e mesmo em seus escritórios, onde à falta de trabalho passam o tempo a se
ocupar da vida alheia, eu estava no labor do meu negócio, externuando-me na
verdadeira luta pela vida, afim de conseguir o que tanto hoje os incomoda"
(GOUVEIA, 1 jan. 1898, 2).
Procurando rebater insinuações acerca do mistério que cercou seu breve
trajeto de vendedor de bilhetes de trem até próspero comerciante, Delmiro
argumentava: "Fiquem certos esses caluniadores de oficio que não ganho nem
estrago dinheiro em jogatinas; não empresto a juros de vinagre; não sirvo de
capacho, de limpa botas de quem está acima de mim em posição ou vantagens”
(GOUVEIA, 5 jan. 1900, 2).
De acordo com Marx e Engel (1888), entende-se por burguesia a classe
dos capitalistas modernos, que são proprietários dos meios de produção social e
empregam trabalho assalariado. Por proletariado, a classe dos trabalhadores
assalariados modernos, que, não tendo meios de produção próprios, são
obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver. Esse tipo de
pensamento evidenciava a relação de Delmiro Gouveia nesse meio social.
Coerente com a glorificação do trabalho que ganha adeptos nas classes
dominantes, percorrendo o pensamento burguês, o ideário positivista, o
catolicismo social, doutrinas puritanas e evangélicas, Delmiro elege o trabalho
como o principal atributo moral dos indivíduos. Vê no trabalho um sinal de
personalidade bem formada do ponto de vista moral, um indício de honra,
perseverança e energia. Ao trabalho, por outro lado, atribui a capacidade de
engrandecimento do indivíduo, pelo enobrecimento moral e pelo acesso a bens
materiais. O elogio do mérito individual e a noção de igualdade de oportunidades,
outros dos princípios do pensamento liberal, são também mobilizados por Delmiro
para explicar sua trajetória no mundo dos negócios, revidando críticas quanto à
lisura de seus negócios feitas por adversários:
Si eles tivessem no sangue, nos nervos, nas faces, vergonha, e no
organismo alguma coisa de energia e sentimento, deviam orgulhar-se de
haver um homem do povo, pobre porém trabalhador, capaz de mostrarlhes com exemplos que quem luta pela vida com honradez, atividade e
perseverança, pode conseguir uma posição na sociedade e, em vez de
andarem pelas ruas, cafés, trens e esquinas empregando-se na
maledicência, podiam dedicar-se ao trabalho proveitoso, que nobilita o
homem e dá-lhe sempre o direito de confundir seus inimigos gratuitos
(GOUVEIA, 1898, 2).
Segundo Correia (1996), ao lado do trabalhador, outro atributo que costuma
ser associado à imagem empresarial de Delmiro é o de nacionalista. As bases
para a construção desta noção foram lançadas pelo próprio industrial na década
de 1910. Mobilizando uma argumentação em que procurava associar os
interesses da indústria aos da Nação e sentimentos nativistas e cívicos que se
propagavam no País na década de 1910, Delmiro apelou para idéias nacionalistas
na promoção da fábrica de Pedra e no pleito de concessões e incentivos públicos.
Obteve junto ao Governo de Alagoas amplas concessões que incluíram o direito
de posse de terras devolutas, a isenção de impostos para a fábrica, a permissão
para captar energia elétrica da Cachoeira de Paulo Afonso e recursos para
financiar a construção de cerca de 520 quilômetros de estradas, ligando Pedra a
outras localidades. Mobilizou ainda argumentos de cunho nacionalismo no intuito
de sensibilizar os consumidores a darem preferência à linha "Estrela" fabricada
em Pedra, em detrimento das fabricadas por empresas estrangeiras. A geração
de empregos para brasileiros, a utilização de matéria-prima nacional e a quebra
de monopólios eram os argumentos usados em anúncio veiculado na imprensa:
Nossa Fábrica ocupa 2.000 operários brasileiros e nossa linha é
fabricada com matéria prima exclusivamente nacional. Esperamos que o
público não deixará de comprar a nossa linha, de superior qualidade, para
dar preferência a mercadoria estrangeira ou com rótulo aparente de
nacional. Se não fosse a linha "Estrela" o preço de um carretel estaria por
500 réis ou mais; o público deve o benefício do barateamento deste artigo
de primeira necessidade, à nossa indústria (MENEZES, 1963, 134-135).
Silva (2007), evidencia a intensa disputa de mercado entre Delmiro e a
Machine Cotton, fabricante da linha "Corrente" contribuiu para convertê-lo em um
dos símbolos mais fortes da causa nacionalista em todo o País. Matéria do Jornal
do Comércio do Recife, de 1922, reproduzida pelo Correio da Pedra, mostrava a
fábrica da Pedra como elemento de soberania nacional: "A importante fabrica de
linhas, que era o inicio daquele faustoso empório industrial ai está produzindo em
franca e vantajosa competência com suas similares, pondo-nos á salvo da tutela
pesada do estrangeiro" (Correio da Pedra, 22 out. 1922, 1).
Correia (1996), relata a disputa entre a Machine Cotton e a fábrica da
Pedra se estendeu por longos anos, tendo-se acirrado na década de vinte. Esta
concorrência acirrada levou a Fábrica da Pedra a sucessivos prejuízos no tocante
à fabricação de linhas de coser, apenas parcialmente compensados pelos lucros
decorrentes da produção de fios industriais. Em 1926, o Presidente Artur
Bernades assinou o Decreto N. 17.383, elevando a taxa de importação sobre as
linhas de coser. O Decreto, no entanto, foi revogado dois anos depois pelo
Presidente Washington Luís, motivado, inclusive, por pressões do Embaixador e
de banqueiros ingleses, que qualificavam o Decreto de ato de hostilidade
comercial. Após haver tentado, sem sucesso, comprar Pedra a Delmiro, a
Machine Cotton, em 1929, 12 anos após a morte deste, realizou seu intento de
tirar a fábrica da Pedra da produção de linhas. Para tanto, a Machine Cotton
adquiriu dos então proprietários de Pedra (os irmãos Menezes, também donos da
Fábrica Têxtil de Camaragibe, em Pernambuco) as marcas registradas das linhas
e os maquinismos específicos para sua fabricação. Pelo acordo, Pedra
permaneceria fabricando apenas fios industriais; seus proprietários não poderiam
por dez anos participar direta ou indiretamente de negócios relativos à fabricação
de linhas ou venda de fios para a fabricação por terceiros. À aquisição, seguiu-se
a destruição das máquinas, aniquiladas a golpes de picareta e atiradas ao Rio
São Francisco. A violência deste gesto e a agressividade da disputa de mercado
por parte da fábrica escocesa deram subsídios para que Pedra fosse convertida
em marco da luta contra o imperialismo. No mesmo sentido, procurou-se
converter Delmiro Gouveia em mártir da causa nacionalista. Embora fosse então
amplamente aceito que seu assassinato houvesse sido conseqüência de disputas
com coronéis de cidades vizinhas, progressivamente dúvidas foram sendo
lançadas sobre suas causas. A Machine Cotton foi incorporada ao rol dos
suspeitos por uns, por outros acusada de haver promovido o assassinato.
Ao longo de sua trajetória empresarial Delmiro construiu ainda uma
reputação de empresário ousado e inovador. Três de seus empreendimentos, o
Derby, a usina hidroelétrica em Paulo Afonso e a fábrica e vila operária da Pedra,
evidenciam tais atributos.
De acordo com relatos históricos destacados por Correia (1996), o Derby
foi um centro comercial e de lazer, que incluía mercado, hotel, cassino,
velódromo, parque de diversões e loteamento residencial - inaugurado no Recife
em 1899. Depoimentos de observadores da época revelam a admiração causada
pelo Derby junto a segmentos da população do Recife, e o orgulho diante deste
empreendimento que parecia colocar a cidade em sintonia com o que havia de
mais moderno e de bom gosto no mundo de então. O Derby surgia como
expressão de progresso e civilidade, como um local ameno que ornava e
dignificava a cidade, como um centro de diversões modernas que trazia ao Recife
os prazeres inéditos produzidos com o auxílio da técnica e da ciência.
Tal admiração era compartilhada por viajantes. Quando trata de
Pernambuco no livro "The New Brazil", publicado em 1901, a escritora americana
Marie Robinson Wright confere uma relevância especial ao Derby que visitou em
outubro de 1899, ao qual reserva três das doze ilustrações do capítulo e um
último parágrafo bastante elogioso:
Muitos estrangeiros visitam o porto de Pernambuco todo ano, e não é raro
ver meia dúzia de nacionalidades representadas nos hotéis de seus
atraentes subúrbios, especialmente no Derby, que é um dos mais
pitorescos lugares que se pode imaginar, com bonitas casas, sombras de
arvoredos, leve movimento das águas do rio, pequenas pontes artísticas
semi-enterradas na vegetação das margens, e canoas alegremente
pintadas deslizando na superfície da água. Este subúrbio goza da
distinção de possuir um dos melhores hotéis da América do Sul; o Hotel
do Derby é perfeitamente moderno em todos os sentidos e orientado por
um padrão metropolitano de serviço. O mercado do Derby é um dos
maiores estabelecimentos do seu tipo, no Brasil, e está equipado para os
amplos negócios que diariamente são nele realizados. O subúrbio deve
seu aspecto atraente à empresa de um cidadão muito progressista,
Senhor Delmiro Gouveia, o proprietário, que tem pessoalmente dirigido
tudo em sintonia com o desenvolvimento do empreendimento (WRIGHT,
1901, 314).
Conforme Hildebrando Menezes, Delmiro repetia sempre que não queria
mestres a orientarem a execução das suas obras. Preferia homens que
cumprissem bem as suas ordens e executassem os seus planos" (MENEZES,
1991, 71). Segundo Arno Pearse, se referindo a Pedra, que lá esteve em 1921,
tratava-se de uma cidade especialmente construída, onde as casas são
espaçosas e a arquitetura e o plano da cidade modernos" (LIMA JÚNIOR, 1963,
206).
Plínio Cavalcanti, em artigos e conferência, narrou à epopéia, comandada
por Delmiro, que teria representado a construção da usina hidrelétrica: o
transporte das imensas máquinas até o sertão através de estradas precárias e de
abismos, superando o descrédito, o desânimo e o temor de auxiliares
(CAVALCANTI, 1927).
Mas nenhum dos empreendimentos dirigidos por Delmiro despertou mais
entusiasmo e admiração que a fábrica e a vila operária da Pedra. Para Assis
Chateaubriand Pedra surge como uma reversão heróica das contingências do
meio, como uma dupla vitória sobre os elementos e sobre a essência do
sertanejo. Sublinhando a paisagem seca e desolada e as violentas variações de
temperatura, o autor enfatiza a hostilidade do ambiente natural da região de
Pedra e seu poder avassalador sobre o indivíduo. Em face da visão de uma
natureza sem freios, diante de cujas forças imensas e ferozes o homem se sente
ameaçado e impotente, a ação de Delmiro em Pedra surge como um vigoroso
embate da técnica e da razão contra os elementos (CHATEAUBRIAND, 1990).
Neste confronto, demonstrando um poder que seus contemporâneos vêem como
inelutável, a técnica suplanta aos seus olhos, uma a uma, todas as até então
consideradas invencíveis resistências que, acreditava-se, a natureza inóspita do
Sertão impunha à penetração do progresso e da civilização no seu território.
Na luta para subjugar esta natureza, vê-se a técnica aliada à tenacidade de
Delmiro. Transpor a distância do litoral a Pedra, suplantar a fúria das águas da
cachoeira, ultrapassar seus abismos e íngremes encostas, desbravar a vegetação
agressiva, vencer a resistência do rígido arenito do subsolo e sobre ele levantar
cidade, pomares e jardins, tudo isto sob um sol escaldante, um clima seco e um
calor
asfixiante,
era
visto
como
um
empreendimento
heróico.
Tal
empreendimento, considerava-se, além de conhecimentos técnicos, exigia muito
de entusiasmo, autoconfiança, força de vontade, liderança, teimosia e audácia.
"Todos os dias, pela manhã, invariavelmente, Delmiro fazia demorado passeio de
fiscalização pela vila operaria, aconselhando uns, repreendendo os faltosos,
impondo costumes de educação domestica, verdadeira romaria de evangelizador
exercendo a catequese de civilização naquele centro semi-bárbaro" (SANTOS,
1947, 37). Salomão Filgueroa apontava nessas casas a rigorosa uniformidade de
estilo na construção e absoluta higiene" e Plinio Cavalcanti dizia serem
"irrepreensivelmente limpas" (FIGUEROA, 1925; CAVALCANTI, 1927, 51).
Antes de tudo, falo do asseio. É irrepreensível. Dentro e fora da fábrica,
individual e coletivo. A vassoura é ali uma instituição. Tudo é escovado,
brunido, polido. Não vi em parte alguma por onde tenho andado, limpeza
tamanha e tão rigorosa. Nas ruas seria impossível encontrar um cisco, um
pedaço de papel atirado ao chão. Aqui e ali se vêem os barris para coleta
dos papéis servidos. As carrocinhas passam e vão esvaziando-os. Passase como passamos várias vezes por aquelas calçadas extensas e não se
vê uma mancha, um sinal de cuspe no chão. É tudo lavado, varrido,
escovado (CHATEAUBRIAND, 1990, 65-69).
Hildebrando Menezes conta que, em Pedra, Delmiro era extremamente
absorvente, somente ele mandava" (MENEZES, 1991, 97). Lima Júnior relata que
Delmiro costumava prevenir os récem-admitidos na fábrica que na Pedra, ele era
tudo: Deus, o Diabo, a mais alta autoridade" (LIMA JÚNIOR, 1963, 315).
Quem manufatura nunca esta fazendo bem feito de mais. Por mais
minuciosa e bem cuidada, nunca a fiscalização é suficiente e completa.
Nunca se conseguirá ser tão asseado quanto se deveria. Jamais se
poderá dizer que o produto é irrepreensível, ou livre de defeito. Enfim,
todos os dias deve-se cuidar do melhoramento do produto. Não seguindo
estes conselhos, tudo baqueará (LIMA JÚNIOR, 1963, 152).
Para Correia (1996), o sucesso empresarial de Delmiro dependeu de
favores e concessões públicas. A realização de iniciativas empresariais arrojadas,
como as levadas a cabo por Delmiro, dependeram de concessões públicas,
obtidas graças a alianças com políticos de Pernambuco e Alagoas.
Apesar da estreita relação entre política e negócios que presidiu sua
trajetória no mundo do comércio e da indústria, Delmiro se empenhou em
desqualificar sua atuação política. Adotando um discurso coerente com a imagem
do indivíduo independente e do empreendedor auto-suficiente que procurou
encarnar, buscou negar sua intimidade com a atividade política: "Nada tenho que
ver com a política. Não sou político. Não sou partidário. A política influi apenas
indiretamente nos meus negócios pela ação dos impostos ou pelas garantias
constitucionais que ela anima" (GOUVEIA, 12 jul. 1899, 3).
A oposição feita por Delmiro a Rosa e Silva, político que comandou durante
mais de quinze anos a política estadual - provocou grandes danos aos seus
negócios no Recife e inviabilizou sua permanência em Pernambuco. Antigo
membro do Partido Conservador no Império. Delmiro Gouveia foi um adversário
ferrenho de Rosa e Silva, travando com os partidários deste, no Recife, violentas
trocas de acusações pela imprensa. A situação acusava Delmiro de especulador
e a oposição o defendia, enfatizando o autoritarismo e a intransigência do
governo.
Na vasta produção intelectual sobre Delmiro, é enfatizado seu aspecto
empreendedor e ousado. Mostra-se um industrial que se antecipou na introdução
de inovações técnicas, no controle da reprodução operária e na exploração das
potencialidades do Sertão para a indústria. Mostra-se um homem de pulso e
visão, convertido em empresário exemplar. Delmiro é representado como um
indivíduo destemido, homem de grandes embates, que teria enfrentado sozinho a
prepotência das oligarquias estaduais, a fúria do poder internacional, a violência
dos coronéis e a ignorância dos camponeses sertanejos. Surge, também, como o
homem com rara habilidade para ganhar dinheiro e organizar empreendimentos
inovadores, mobilizando amplamente os recursos oferecidos pela técnica e pela
ciência.
Para alguns autores, solidários com o mito burguês da ascensão social
como uma possibilidade aberta a todos, Delmiro aparece como um nordestino
pobre que deu certo. Como o rapaz humilde que, por esforço próprio conquistou
conhecimentos, prestígio e riqueza. Sintetizando esta visão, Gilberto Freyre o
qualifica como exemplo de "self made man" (FREYRE, 1959, 121). Nesta ótica,
Delmiro converte-se em testemunho de que, dependendo unicamente de suas
qualidades
individuais,
qualquer
indivíduo
teria
condições
de
ascender
socialmente, aproveitando as chances que a sociedade burguesa oferece.
CAPÍTULO II – O MUNICÍPIO DE DELMIRO GOUVEIA E SUAS ORIGENS
Baseando-nos em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, Delmiro Gouveia (anteriormente Pedra), é um município e cidade do
Estado de Alagoas, Brasil, localizado no Sertão Alagoano, Microrregião Alagoana
do Sertão do São Francisco. Com área de 605,395 km², faz fronteira com as
cidades alagoanas de Pariconha, Água Branca e Olho D’Água do Casado. Em
Sergipe - Canindé do São Francisco, na Bahia - Paulo Afonso. Está localizada a
256 metros acima do nível do mar. Foi elevado a município em 1952. Tem um
clima quente e seco, uma população acima de 47.000 habitantes, a economia se
baseia na indústria têxtil, comércio, agricultura e pecuária. Uma de suas principais
atrações é o museu Delmiro Gouveia, como atrativo também se encontra na
cidade, uma parte do cânion do São Francisco. Entre os festejos, estão a festa da
padroeira e o carnaval. Anteriormente denominado Pedra, teve seu nome alterado
para Delmiro Gouveia em homenagem ao empreendedor e industrial que ali
residiu no início do século XX, tendo fundado uma importante indústria de linhas
de costura, a Cia Agro Fabril Mercantil, e construído a Vila Operária Padrão. O
povoado se criou graças à construção de uma estrada de ferro da Great-Western,
denominada Ferrovia Paulo Affonso. Em grande parte graças às ações pioneiras
de seu afamado morador Delmiro. Hoje o município que leva seu nome tornou-se
uma das mais importantes cidades do interior de Alagoas.
Segundo Silva (2007), Delmiro Augusto da Cruz Gouveia era filho de
Delmiro Porfírio de Farias, de Leonilda Flora da Cruz Gouveia. De família pobre,
teve que trabalhar cedo para se manter e ajudar a mãe e aos 19 anos, mudou-se
com ela para a cidade de Goiana, em Pernambuco e depois para o Recife. Foi
bilheteiro da estação Olinda do trem urbano, trabalhando também na estação de
Apipucos, bairro do Recife, e trabalhou ainda como despachante de barcaças.
Interessado na compra e venda de couro e peles de cabras e ovelhas vai para o
interior de Pernambuco, onde casou-se (1883) com Anunciada Cândida de Melo
Falcão, na cidade de pesqueira.
Trabalhou inicialmente como intermediário entre os produtores de peles de
cabra, carneiro e couros de boi espalhados por todo o sertão nordestino e os
comerciantes estrangeiros sediados no Recife. Trabalhou depois para a Keen
Sutterly & Co., da Filadélfia, e tornou-se gerente de sua filial (1892). No ano
seguinte, quando a matriz faliu, ele comprou seus escritórios no Recife e fundou a
Casa Delmiro Gouveia & Cia (1896). Ligou-se à firma L. H. Rossbch, Brothers de
Nova York e, com seu apoio financeiro e com postos de compra espalhados por
todo o Nordeste, enriqueceu e tornou-se conhecido como o Rei das peles. Partiu
para outros empreendimentos, urbanizou o bairro do Derby, no Recife, onde só
havia manguezais, abrindo ruas, construindo casas e um grande mercado modelo
sem similar no Brasil, o Mercado Coelho Cintra (1899), incendiado (1900),
reformado (1924) e hoje sede do quartel general da Polícia Militar de
Pernambuco, e construiu uma refinaria de açúcar que chegou a ser a maior da
América do Sul.
Autoritário e de temperamento difícil, à medida que enriquecia, criava mais
inimigos, especialmente entre os políticos pernambucanos, o que o levou a se
separar da esposa (1901) e a refugiar-se durante um ano na Europa. De volta ao
Brasil, no ano seguinte fugiu com uma adolescente, Carmela Eulina do Amaral
Gusmão, fixando-se em Vila da Pedra, uma localidade a cerca de 280 km de
Maceió, hoje Delmiro Gouveia, perto do rio São Francisco, no sertão alagoano
(1904), e voltou ao comércio de peles. Era um povoado formado por uma meia
dúzia de casebres em torno de um terminal da ferrovia que unia Piranhas a
Petrolândia, pela qual circulava um trem por semana. Com apoio financeiro dos
irmãos Rossbach, uniu-se a dois sócios italianos, Lionelo Iona e Guido Ferrário,
fundando a firma Iona e Cia., com sede em Maceió. Para Pedra eram levadas
peles e couros dos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe, onde elas eram tratadas e enfardadas.
Seguiam de trem até Piranhas, desciam o São Francisco até Penedo e por mar
seguiam para Maceió, de onde eram exportadas para os Estados Unidos.
Em pouco tempo recuperou-se financeiramente e viajou diversas vezes à
Europa e aos Estados Unidos, onde conheceu a nova revolução industrial
provocada pelo uso da energia elétrica. Quando ele conheceu a cachoeira de
Paulo Afonso, teve a idéia de realizar ali um grande projeto e trouxe um grupo de
engenheiros e investidores estadunidenses (1909-1910), para o projeto e a
construção de uma grande hidrelétrica, que geraria energia suficiente para
iluminar e abastecer o Recife e um grande um empreendimento agro-industrial
nas terras em torno da cachoeira, em áreas da Bahia, Alagoas e Pernambuco a
serem adquiridas pela empresa. Porém o governador de Pernambuco, Dantas
Barreto, desconfiou da enormidade do projeto e ele foi forçado a reduzir as
dimensões do projeto. Com o apoio dos irmão Rossbach, ele organizou a Cia.
Agro-Fabril Mercantil e com turbinas e geradores alemães e suíços, instalou, num
dos saltos da cachoeira de Paulo Afonso, o de Angiquinho, no lado alagoano do
rio, uma usina hidrelétrica que gerava 1.500 HP, com uma voltagem de 3 KV.
Pessoalmente, escolheu, na Inglaterra, máquinas da indústria Dobson & Barlow,
para uma fábrica, a Cia Agro-Fabril, que iniciou (1914), a produção de linhas de
coser, para rendas e bordados, fios e cordões de algodão cru em novelos, fios
encerados e fitas gomadas para embrulhos. Essa indústria tinha características
revolucionárias, no campo social, com uma vila operária, assistência médica,
escola e cinema.
Segundo Correia (1996), em Pedra, houve um esforço realizado por Delmiro
no sentido do controle e recondicionamento físico e mental dos moradores. O
baixo valor da terra em plena caatinga não criava dificuldades na expansão da
vila. Os blocos de casas se espalhavam, dando lugar a ruas largas, generosas
vias sanitárias, amplos quintais e vastas extensões de terras desocupadas. Seus
amplos blocos de casas padronizadas definiam ruas retas e largas, ao mesmo
tempo grandiosas e singelas.
As casas eram de alvenaria, revestidas com reboco, caiadas, cobertas de
telhas de barro do tipo canal e tinham piso de tijolo. Estavam agrupadas em
compridos blocos de residências térreas conjugadas. As casas-padrão em Pedra
compunham-se de cinco vãos: duas salas, dois quartos e cozinha, além de
sanitário no fundo do quintal. Esta divisão funcional do espaço, assinalando o
lugar de cada indivíduo no território doméstico, esteve intimamente ligado ao
controle dos contatos e das trocas afetivas na família. A especialização funcional
dos espaços domésticos conforme as atividades e os indivíduos destinados a
ocupá-los definia-se melhor, no caso de Pedra, nas casas maiores, destinadas a
funcionários mais graduados, gerentes e engenheiros. Tais casas contavam com
cinco quartos (entre os quais uma alcova), três salas, cozinha, despensa e
dependências. Sua localização nas esquinas permitia a existência de jardim
interligado ao quintal.
Requisitos de higiene, conforto, segurança e economia presidiram a
organização dos espaços coletivos e das habitações em Pedra. Noções de
segurança se expressaram na estratégia de reter a família trabalhadora em local
isolado e confinado, submetendo-a a disciplina rígida. O espaço cercado, com
seqüências de casas padronizadas ao longo de ruas largas e regulares, facilitava
o controle do acesso ao núcleo e dos movimentos no seu interior. A dimensão
reduzida, as baixas densidades e os grandes vazios também eram solidários com
a inspeção minuciosa dos moradores. Tal distribuição eliminava amontoamentos,
altas densidades, ajuntamentos, misturas e confusões, desfavorecendo contatos
suspeitos, comportamentos autônomos e desregramentos. A segurança em Pedra
foi ainda pensada na disposição, nas esquinas - pontos estratégicos - das casas
destinadas a funcionários mais graduados, aos quais era atribuída a tarefa
adicional de zelar pela limpeza e ordem do núcleo. Padronizadas, conjugadas e
agrupadas em extensos blocos, as casas operárias em Pedra seguiam um partido
que facilitava o controle da esfera doméstica. Sua concepção remetia à noção da
moradia como alojamento e "habitat moderno", o qual é concebido reunindo a
fórmula conjugal legítima (não existe habitat de solteiro), a exclusividade do uso
residencial, a abolição da noção da casa como lugar inviolável de autonomia da
família e como espaço franqueado a não-membros da família. Em Pedra não
havia casas ou alojamentos para solteiros, apenas uns poucos moradores,
professoras, comerciantes entre outros, tinham a casa também como local de
trabalho. O patrão e seus auxiliares interferiam profundamente no interior do
espaço doméstico, procurando afastar tudo o que fosse julgado contrário à
moralidade, à salubridade e à tranqüilidade e o acesso de estranhos, sobretudo
de homens solteiros, era regulado pela fábrica.
Do ponto de vista da arregimentação de trabalhadores para a indústria, ao
oferecer casa, emprego e água abundante, Pedra tinha condições de interceptar
famílias de retirantes desprendidas do seu local de origem pela seca de 1915 e
pela fome e de atrair famílias de agricultores das áreas próximas. No núcleo,
havia lugar, também, para os foragidos da justiça ou perseguidos por inimigos em
decorrência de intrigas pessoais ou conflitos políticos, prática rotineira numa
época em que a justiça tinha enorme dificuldade de penetrar nos domínios
particulares de homens ricos e poderosos. Havia ainda, em Pedra, um pequeno
número de técnicos mais especializados, originários do Recife, de Maceió e do
exterior. Assassinos, viúvas desamparadas com família numerosa e retirantes
miseráveis, eram portanto, os alvos principais da estratégia de arregimentação de
mão-de-obra para o trabalho fabril. Vivendo em circunstâncias precárias, muitas
sem posses e desligadas do seu lugar de origem, estas pessoas estavam menos
propensas a rejeitar as condições oferecidas por Delmiro, a resistir ao ingresso
nesse mundo novo que lhes alterava completamente o cotidiano, do trabalho à
forma de morar, da diversão ao vestuário, por meio de uma radical ingerência
externa sobre suas existências. Portanto, a dificuldade da retirada de pessoas de
outras atividades para a indústria que expressava o penoso processo de
adaptação, com todo o sofrimento e conseqüente resistência ao trabalho fabril,
era amenizada no caso de Pedra, por sua localização no Sertão. No controle
social do grupo operário um elemento central era o isolamento espacial e o
caráter autárquico do núcleo.
Em Pedra, Delmiro Gouveia colocava-se simultaneamente como patrão e
líder político local. Ao mesmo tempo em que se opôs a qualquer interferência, em
Pedra, dos coronéis da região, criou todo um aparato policial e administrativo
próprio. Vigias, guardas e funcionários o auxiliavam no controle da ordem e na
administração do núcleo. Delmiro dispensou inclusive a colaboração da Igreja
Católica, tão cara à maioria dos industriais construtores de núcleos fabris. Fato
espantoso, considerando-se a religiosidade do sertanejo. Na rotina de Pedra, as
cerimônias religiosas que pautavam a vida das pequenas cidades foram
substituídas por atividades profanas, como cinema, bailes, patinação e futebol. A
ausência da Igreja em Pedra pode ser explicada pela intenção de Delmiro de
evitar uma outra autoridade que competisse e eventualmente se chocasse com a
sua em Pedra. Não é difícil imaginar a emergência de choques entre a Igreja e a
insistência de Delmiro em manter práticas como o "tronco" e os espancamentos.
Por outro lado, sem igreja e padre, evitava que o calendário religioso
interferisse no ritmo de trabalho da fábrica e assegurava seu monopólio
sobre a ação de controle moral da aglomeração, onde também não havia
polícia e representantes da justiça. Visando neutralizar as interferências
externas, Delmiro arrematou, junto à Prefeitura de Água Branca, os
impostos sobre comércio, feira a lojas, passando a controlar diretamente
estas atividades em Pedra (LIMA JÚNIOR, 1963, p.194).
Retratando o papel da escola, podemos dizer que exercia função central no
preparo das crianças para o emprego fabril. Nela recebiam os conhecimentos e
instruções básicas para se converterem nos futuros operários eficientes, sóbrios,
obedientes e disciplinados desejados pela fábrica. Havia, em Pedra, escolas
diurnas para crianças e noturnas para adultos.Todas as crianças, a partir de cinco
anos, freqüentavam obrigatoriamente uma das seis escolas existentes. A fábrica
exercia controle direto sobre o ensino, fiscalizando as faltas dos alunos e
oferecendo prêmios para os que se destacassem. Para entrar no cinema, as
crianças precisavam apresentar comprovantes de freqüência às escolas.
Simultaneamente aos incentivos, a fábrica utilizava-se de drásticos mecanismos
de coerção para exigir o ingresso de todas as crianças nas escolas. O conteúdo
do ensino das escolas de Pedra enfatizava preceitos de obediência e moral e
regras de boas maneiras.
Tratava-se de domesticar os instintos e reprimir as paixões, fazendo as
crianças assimilarem hábitos julgados civilizados, de modo a tornarem-se adultos
pacíficos, moralizados e asseados, cientes e respeitadores das regras de
civilidade e de higiene corporal. Ensinar a acatar ordens, compreender regras e
cumprir regulamentos surgia como outro dos eixos centrais deste ensino. A idéia
da instrução como instrumento de controle social foi expressa claramente por
Delmiro. Referindo-se aos rígidos castigos que impunha aos operários em Pedra,
os teria justificado como meios de evitar o crime e a desordem, argumentando, no
entanto, que esses métodos violentos seriam abandonados progressivamente, à
medida que os métodos da educação surtissem efeitos amplos.
Em Pedra, formas discretas e sutis de disciplina conviveram com o uso de
violência aberta contra os moradores. Ao lado da concessão de ajudas e prêmios,
do aconselhamento e da vigilância, adotou-se uma diversidade de mecanismos
de punição. O respeito às normas impostas foi buscado através do medo de um
patrão que construiu uma reputação de ser implacável, determinando as regras,
fiscalizando pessoalmente seu cumprimento e punindo severamente quem
deixasse de segui-las. A imposição de uma disciplina rigorosa no interior das
fábricas e vilas operárias é uma característica básica destes empreendimentos. O
que chama a atenção, em Pedra, são as formas de punição: o patrão muitas
vezes envolvia-se diretamente na execução do castigo, que chegava a incluir
agressões corporais. Desempenhando funções policiais e judiciais no limite do
núcleo fabril, Delmiro, auxiliado por capangas e vigias, impunha suas próprias leis
na regulação da vida privada e do trabalho, policiando, julgando e punindo os que
as violavam. Em Pedra, a polícia não entrava sem autorização e a justiça não
interferia nos conflitos: o patrão era a lei. As punições aplicadas consistiam em
multas para as transgressões consideradas leves e castigos corporais e
humilhações
públicas
para
aquelas
julgadas
graves.
A
expulsão
era
freqüentemente precedida de ritual público de degradação. Nesse sentido, via-se
o trabalhador como indivíduo não completamente racional, que deveria ser tratado
com mão de ferro para respeitar as regras do jogo da sociedade capitalista. Na
visão de homens letrados da época, tal violência parecia aceitável, surgindo como
um tributo exigido pelo progresso. O rígido domínio de Delmiro sobre operários
vistos como despreparados e resistentes ao trabalho, aparecia como ação
exemplar na eliminação de obstáculos à penetração do progresso no Sertão.
Vista parcial de Pedra. Primeiros anos da fábrica de linhas. (fonte: ARARIPE, 1997, p. 263)
Rua da Vila Operária de Pedra – início do século XX (fonte: ARARIPE, 1997, p. 264)
Fachada da Fábrica de Linhas da Pedra (Fonte: SILVA, 2007, p. 145)
Interior da Fábrica de Linhas da Pedra (Fonte: SILVA, 2007, p. 151)

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