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www.spbancarios.com.br nº 106 | setembro de 2005 CRISE POLÍTICA RICARDO BERZOINI FALA DA NECESSIDADE DE INVESTIGAR TUDO NEM PARECE BANCO OS LUCROS CONTINUAM EM ALTA, MAS A IMAGEM... CONTADORES DE HISTÓRIA TRADIÇÃO MILENAR QUE ENCANTA A CRIANÇADA SAI DA FRENTE Sem alarde da mídia, a polícia de São Paulo mata “em confronto” durante um ano mais que toda a polícia dos Estados Unidos CARTAAOLEITOR Publicação mensal do Sindicato dos Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região – Rua São Bento, 413, Centro, São Paulo, CEP 01011-100, ☎ (11) 3188-5200. www.spbancarios.com.br Telefones Sede: 3188-5200. Oeste: 3814-2583. Norte: 6979-7720. Leste: 6191-0494. Sul: 5641-6733. Paulista: 3284-7873. Osasco: 3682-3060. Centro: 3188-5295 Editores Maria Angélica Ferrasoli - MTb 17.299 Frédi Vasconcelos (interino) Vander Fornazieri - MTb 20.301 Impressão e CtP Bangraf ☎ (11) 6947-0265 Capa Foto de Jailton Garcia Tiragem 100 mil exemplares. Distribuição domiciliar gratuita aos associados FLOR NA MÃO E DINHEIRO NO BOLSO VANDER FORNAZIERI Presidente Luiz Cláudio Marcolino Diretor de Imprensa Hugo Tome Aquino Diretoria Adozinda Praça de Almeida, Adriana Oliveira Magalhães, Aladim Takeyoshi Iastani, Alexandre de Almeida Bertazzo, Alexandro Tadeu do Livramento, Ana Paula da Silva, Ana Tércia Sanches, André Luis Rodrigues, Antonio Alves de Souza, Antônio Inácio Pereira Junior, Antonio Joaquim da Rocha, Antonio Saboia Barros Junior, Bruno Beneduce Padron, Camilo Fernandes dos Santos, Carlos Miguel Barreto Damarindo, Clarice Torquato Gomes da Silva, Claudio Luis de Souza, Cleuza Rosa da Silva, Daniel Santos Reis, Daniela Santana da Costa, Denis Helena Rivas, Edison José de Oliveira, Edson Carneiro da Silva, Edvaldo Rodrigues da Silva, Elaine Cutis Gonçalves, Elias Cardoso de Morais, Ernesto Shuji Izumi, Fabiola Bertosse de Lima, Flavio Ferraz Dutra, Flávio Monteiro Moraes, Irinaldo Venancio de Barros, Ivone Maria da Silva, Jackeline Machado, João de Oliveira, João Gomes da Silva, João Paulo da Silva, João Vaccari Neto, José do Egito Sombra, José Osmar Boldo, Jozivaldo da Costa Ximenes, Juarez Aparecido da Silva, Juvandia Moreira Leite, Karina Carla Pinchieri Prenholato, Leandro Barbosa da Silva, Leonardo Martins Pereira, Luiz Carlos Costa, Manoel Elidio Rosa, Marcelo Defani, Marcelo Gonçalves, Marcelo Peixoto de Araujo, Marcelo Pereira de Sá, Marco Antonio dos Santos, Marcos Antonio do Amaral, Marcos Roberto Leal Braga, Maria Cristina Castro, Maria Cristina Corral, Maria do Carmo Ferreira Lellis, Maria Helena Francisco, Maria Selma do Nascimento, Mario Luiz Raia, Marta Soares dos Santos, Mauro Gomes, Neiva Maria Ribeiro dos Santos, Nelson Ezidio Bião da Silva, Nelson Luis da Silva Nascimento, Onísio Paulo Machado, Osmar Rodrigues de Carvalho Junior, Paulo Roberto Salvador, Paulo Rogério Cavalcante Alves, Rafael Vieira de Matos, Raimundo Nonato Dantas de Oliveira, Raquel Kacelnikas, Ricardo Correa dos Santos, Ricardo de Almeida Sartori, Rita de Cassia Berlofa, Rogerio Castro Sampaio, Roseane Vaz Rodrigues, Rubens Blanes Filho, Sandra Regina Vieria da Silva, Tania Teixeira Balbino, Vagner Freitas de Moraes, Valdir Fernandes, Vera Lucia Marchioni, Walcir Previtale Bruno, Washington Batista Farias, William Mendes de Oliveira Diretores honorários Ana Maria Érnica, José Ricardo Sasseron, Maria da Glória Abdo, Sérgio Francisco da Silva Os bancários também querem colher sua parte nos lucros que estão fazendo a alegria dos banqueiros estação em que a natureza se renova é também o momento de os bancários buscarem, na campanha salarial, mais salário, PLR, direitos. E de participar em busca de algo que dura o ano todo. Para isso a nova diretoria do Sindicato, que assumiu em julho, está criando diversos mecanismos para estimular ainda mais a interação com a categoria. Participação também estimulada pelo Ministério Público Democrático, que colabora para que as pessoas conheçam seus direitos, nem sempre respeitados. Como no caso da polícia paulista, que mata primeiro para perguntar depois, principalmente quando a vítima é pobre e mora na periferia. Tudo sem a devida apuração e atenção da mídia. Os mesmos veículos de comunicação que fazem seu papel de denunciar escândalos, mesmo que na pressa em condenar cometam erros e nem sempre revelem os interesses por trás de cada notícia. Mas cabe a todos, neste momento de grave crise política, exigir apurações e punições rigorosas para todos os envolvidos em irregularidades e crimes. Para que o país também possa se renovar e buscar justiça, principalmente a justiça social esquecida por séculos. A A diretoria [email protected] REVISTA DOS BANCÁRIOS | 3 D E S TA Q U E CAMPANHA SALARIAL DOS BANCÁRIOS TOMA AS RUAS FOTOS: GERARDO LAZZARI A campanha salarial deste ano começou com passeata pelas ruas do Centro em 11 de agosto, data em que foram entregues as reivindicações da categoria aos banqueiros da Fenaban. Na pauta estão as 100 cláusulas da convenção coletiva, entre as principais estão reajuste de 11,77% (5,69% de inflação projetada para o período e 5,75% de aumento real), PLR melhor, emprego, condições de trabalho e saúde. As reivindicações podem ser consultada no site do Sindicato, www.spbancarios.com.br “Queremos nossa parte na lucratividade dos bancos e reconhecimento pelo esforço que fazemos todos os dias”, afirma Juvandia Moreira Leite, secretária geral do Sindicato. “Optamos neste ano por uma proposta que mescla aumento real e uma PLR melhor para todos”, conclui. “Vamos conquistar essa primavera” é o tema da campanha deste ano. Acima a passeata pelo Centro e a entrega da minuta de reivindicações à Fenaban 4 | REVISTA DOS BANCÁRIOS CONQUISTAR A PRIMAVERA Na primeira manifestação da campanha salarial, os bancários tomaram as ruas e divulgaram o mote da campanha: “Vamos conquistar essa primavera”. Para a população foi lembrado também que “Banqueiro não é flor que se cheire” e distribuída carta aos clientes, que destacava: “...Não estamos satisfeitos com essa realidade, na qual uma política econômica beneficia banqueiros em detrimento dos demais segmentos da sociedade. Nós estamos ao lado do povo, solidários na luta pela diminuição dos juros, do desemprego, das tarifas bancárias e das filas nas agências.” “Você pode não perceber, NOSSA CAIXA PÁRA GERARDO LAZZARI NOVA PROPOSTA DE PLR Cem por cento do salário mais o valor fixo de R$ 788 mais 5% do lucro líquido das empresas a ser distribuído linearmente entre os funcionários. Essa é a nova proposta de Participação nos Lucros e Resultados aprovada durante a 7ª Conferência Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro. A justificava é que nos últimos anos vem aumentando o lucro das empresas e caído o percentual desembolsado para os trabalhadores. Se em 1995 ou 1996 os bancos gastavam cerca de 12% de seu lucro líquido, no ano passado eles despenderam em média de 7% a 8%. Com a nova regra, voltariam a se aproximar dos percentuais distribuídos na década passada e aumentaria a remuneração de todos os bancários. Paralisação de um dia foi recado para a direção do banco Cerca de trinta agências da Nossa Caixa pararam no dia 12 de agosto em São Paulo. Segundo a diretora do Sindicato Raquel Kacelnikas, “a direção da Nossa Caixa quer atacar os nossos direitos. Tem uma postura burra na forma de direcionar seu projeto, valorizando quantidade em vez de qualidade nos resultados. mas a cada dia mais e mais bancários sofrem para prestar um atendimento digno aos clientes. Em contrapartida, os bancos oferecem a exploração e a pressão insuportável para cumprir metas igualmente insuportáveis”. NEGOCIAÇÃO COM BANCOS FEDERAIS Para a discussão da pauta específica de reivindicações, os representantes dos empregados da Caixa Federal reuniram-se no dia 10 de agosto com a direção da Caixa Fede- Por isso explora o bancário não pagando hora extra e quer apenas fazer número com o suor dos trabalhadores”, diz. Nesta atividade, como na anteriores, a direção do banco, acionou a PM de Alckmin, que mostrou toda a sua truculência. Mesmo assim os bancários deram seu recado. ral. Pelos bancários, participaram os membros do Comando Nacional, da Comissão Executiva dos Empregados da Caixa (CEE-Caixa) e o presidente do Sindicato, Luiz Cláudio Marcolino. Foram entregues as reivindicações aprovadas pelo 21º Congresso Nacional dos Empregados da Caixa (Conecef), realizado em julho último. Pa- ra o presidente da CNB/CUT, Vagner Freitas, existe a necessidade de essas negociações produzirem resultados efetivos, uma vez que as discussões com a empresa, até aqui, não correspondem às expectativas das lideranças sindicais e, tampouco, às dos bancários da Caixa. A negociação específica com a direção do Banco do Brasil estava marcada para começar após o fechamento desta edição. FGTS: R$ 22 MILHÕES RECUPERADOS Mais de 5,5 mil pessoas já se beneficiaram da ação do FGTS que garante o pagamento integral das perdas inflacionárias dos planos Verão (42,72%) e Collor (44,8%). No total de onze lotes, a soma recuperada já atingiu a casa dos R$ 22 milhões. A conquista obtida pelo Sindicato na Justiça é histórica para a categoria. Para fazer a requisição é necessário preencher formulário e apresentar cópias do PIS, RG e das páginas da Carteira Profissional (nas quais constem foto, dados pessoais e registro dos empregadores de 1989, 1990 e 1993). É necessário marcar horário junto à Central de Atendimento Telefônico, pelo 31885200. Para saber mais acesse www.spbancarios.com.br Não tem direito à ação quem aderiu ao acordo de 2001 ou que já tenha recebido em ação individual. Depois da discussão e aprovação em congressos estaduais em todo o país e na sétima Conferência Nacional dos Bancários, a minuta de reivindicações desta campanha salarial foi aprovada na quadra do Sindicato com a participa- ção de cerca de 500 bancários. Fora as cláusulas econômicas, foi aprovada por ampla maioria a estratégia de negociação conjunta com bancos públicos e privados, deixando apenas os pontos específicos para negociações separadas. JAILTON GARCIA ASSEMBLÉIA EM SÃO PAULO Bancários aprovam minuta que foi entregue aos banqueiros REVISTA DOS BANCÁRIOS | 5 FOTOS: GERARDO LAZZARI S I N D I C ATO ENERGIA RENOVADA Nova diretoria do Sindicato assume e dá início à campanha salarial a campanha salarial e em todos os momentos dos próximos três anos, a prioridade da diretoria que tomou posse em julho passado é aproximar-se cada vez mais do dia-a-dia do local de trabalho para ajudar a resolver problemas e fortalecer a categoria para novas conquistas. Para isso, conta com bancários de todos os bancos, distribuídos por todas as regionais do Sindicato. Além desse atendimento descentralizado, outra possibilidade de entrar em contato é por meio da página do Sindicato na internet (www.spbancarios.com.br), que foi reformulada e permite enviar mensagens a todos os diretores. Basta ir à página principal, clicar em seu banco e, depois, na foto do diretor, para dar o seu recado. “Todas essas medidas são para facilitar o contato dos bancários com a diretoria, melhorar a interlocução com a categoria para podermos saber seus problemas, ajudar a resolvê-los e representar a todos da melhor maneira possível”, afirma Luiz Cláudio Marcolino, presidente do Sindicato. “Esse contato é importante na busca de nosso prin- N 6 | REVISTA DOS BANCÁRIOS cipal objetivo, que é melhorar as condições de trabalho e organizar a categoria para a conquista de uma sociedade mais justa.” O contato permanente também é importante neste momento de campanha salarial. Antes da definição das reivindicações, por exemplo, foi feita consulta à categoria para saber quais eram os princi- Passeata pelas ruas do Centro no dia 11 de agosto: primeira atividade pais pontos, como reajuste, proposta de PLR etc. E a idéia é continuar com essas enquetes em todos os momentos decisivos. “Queremos que os bancários participem e conheçam cada passo das negociações. Por causa das limitações que muitos têm de tempo e deslocamento é necessário buscar novas formas de participação para conquistarmos resultados melhores”, diz Marcolino. A nova diretoria mistura experiência com renovação: cerca de 30% participam pela primeira vez da entidade e praticamente metade são mulheres, que têm representação importante também na direção executiva. Há ainda bancários de todos os principais bancos públicos e privados. “Desde a formação da chapa, o objetivo foi termos a mais ampla representação possível. Mas o Sindicato não é só seus diretores, é cada bancário em seu local de trabalho, nas atividades promovidas pela diretoria e nas lutas por novas conquistas e melhores condições de trabalho, que faz a diferença. Por isso queremos cada vez mais a participação de todos”, conclui Luiz Cláudio Marcolino. ❚ BANCÁRIOS DE TODOS OS BANCOS Veja quem faz parte da nova diretoria do Sindicato Banco do Brasil Cláudio Luis de Souza Ernesto Shuji Izumi Fabíola Bertosse de Lima José Ricardo Sasseron Leandro Barbosa da Silva Leonardo Martins Pereira Osmar Rodrigues de Carvalho Júnior Rafael Vieira de Matos William Mendes de Oliveira ABN Real Karina Carla P. Prenholato Marcelo Gonçalves Maria do Carmo Ferreira Lellis Roseane Vaz Rodrigues Caixa Federal Alexandro Tadeu do Livramento Denis Helena Rivas Edvaldo Rodrigues da Silva Jackeline Machado João Gomes da Silva Sérgio Francisco da Silva (Cons. Funcef ) Banco Mercantil do Brasil Ana Paula da Silva Bradesco Adozinda Praça de Almeida Alexandre de Almeida Bertazzo Antonio Joaquim Rocha Edson Carneiro da Silva Elaine Cutis Gonçalves João Paulo da Silva Jozivaldo da Costa Ximenes Luiz Carlos Costa Marcelo Defani Marcelo Peixoto de Araújo Marcos Antonio do Amaral Marcos Roberto Leal Braga Maria Cristina Corral Neiva Maria Ribeiro dos Santos Ricardo Correa dos Santos Rubens Blanes Filho Sandra Regina Vieira da Silva Vagner Freitas (Pres. CNB-CUT) Unibanco Carlos Miguel B. Damarindo Clarice Torquato Elias Cardoso de Morais José do Egito Sombra Antonio Alves de Souza Mauro Gomes Nelson Ezidio Bião da Silva Rogério Castro Sampaio BankBoston Marco A. dos Santos HSBC Cleuza Rosa da Silva Nelson Luis da S. Nascimento Paulo Rogério Cavalcante Alves Valdir Fernandes Nossa Caixa Bruno B. Padron Irinaldo Venâncio de Barros Maria da Glória Abdo (honorária) Raquel Kacelnikas Ricardo de Almeida Sartori Tania Teixeira Balbino Washington Batista Farias Safra Flávio Monteiro Moraes Itaú Adriana Oliveira Magalhães Aladim Takeyoshi Iastani Antônio Inácio Pereira Junior Juarez Aparecido da Silva Maria Cristina Castro Maria Helena F. dos Santos Marta Soares dos Santos Onísio Paulo Machado Santander Banespa Ana Maria Érnica Camilo Fernandes dos Santos Daniela Santana da Costa Edison José de Oliveira Flavio Ferraz Dutra João Oliveira (Sec. Geral CUT-SP) João Vaccari Neto (Pres. Bancoop) José Osmar Boldo Marcelo Pereira de Sá Maria Selma do Nascimento Mario Luiz Raia Raimundo Nonato D. de Oliveira Rita de Cássia Berlofa Vera Lucia Marchioni JAILTON GARCIA Diretoria executiva Presidente Luiz Cláudio Marcolino (Itaú) Secretária Geral Juvandia Moreira Leite (Bradesco) Secretária de Finanças Ivone Maria da Silva (Unibanco) Secretária de Organização e Suporte Administrativo Rita de Cássia Berlofa (Santander Banespa) Secretário de Imprensa e Comunicação Hugo Tomé Aquino (Banco do Brasil) Secretário de Formação Sindical André Luis Rodrigues (Itaú) Secretária de Estudos Sócio-Econômicos Ana Tércia Sanches (Itaú) Secretaria de Assuntos Jurídicos Individuais Antonio Saboia Barros Junior (Nossa Caixa) Secretário de Assuntos Jurídicos Coletivos Daniel Santos Reis (Unibanco) Secretário de Saúde e Condições de Trabalho Walcir Previtale Bruno (Bradesco) Secretário de Relações Sindicais e Sociais Paulo Roberto Salvador (Santander Banespa) Secretário Cultural Manoel Elidio Rosa (Unibanco) REVISTA DOS BANCÁRIOS | 7 BANCOS ESPELHO, ESPELHO MEU... Para melhorar a imagem, os bancos realmente precisam parar de parecer bancos. Precisam mesmo ouvir mais a sociedade. E, para isso, nem precisam fazer mais que o possível Por Paulo Donizetti de Souza Procon de São Paulo acaba de conseguir sensibilizar a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) a participar de uma Câmara Técnica de Consumo para discutir como melhorar o atendimento aos clientes e usuários. O banco Itaú, aos 60 anos, descobriu que pode ser bom “ouvir você”. O Real garante que é possível fazer “mais que o possível”. Alguma coisa estranha está acontecendo. Será que o sistema bancário brasileiro – um dos mais sólidos, confiáveis, modernos, rentáveis e antipáticos do mundo – resolveu se dispor, enfim, a “discutir a relação”? Afinal, o setor nunca foi visto com bons olhos pela sociedade. Um dos pontos mais altos dessa disposição à autocrítica pode ser visto na recente estratégia de marketing do Unibanco: “nem parece banco”. O diretor da Escola Superior de Propaganda e Marketing, Paulo Sérgio Quartiermeister, vê na estratégia ousadia e bom senso. “O banco não só está construindo uma nova identidade visual, buscando melhorar e humanizar sua aparência, como está assumindo compromissos e desafios. Fala em taxas menores, em prazo de cinco dias para ressarcir um segurado”, comenta. “É ousado porque, se não entregar o que promete, pode se dar mal. E tem bom senso porque encara o fato de a imagem dos bancos não ser das melhores. As pessoas pagam para não ir a banco. Na sociedade, banco é uma coisa negativa”, O 8 | REVISTA DOS BANCÁRIOS avalia Quartiermeister, que também é professor de gestão de marcas na ESPM. E para cuidar das imagens e das marcas, haja maquiagem. O mundo dos negócios avalia, de acordo com um estudo da empresa de consultoria inglesa Interbrand, especializada em marcas, que somente a marca do Itaú vale cerca de 1,3 bilhão de dólares. A do Bradesco, 856 milhões. Do Banco do Brasil, 600 milhões. Unibanco, 235 milhões. Banco Real, 187 milhões de dólares. A reportagem da RdB tentou ouvir a direção do Unibanco sobre a abrangência da estratégia, mas não obteve retorno. Segundo entrevista com o diretor de pessoas e comunicação corporativa, Marcos Caetano, publicada no site da revista Meio&Mensagem, as pesquisas mostram que os consumidores têm percepções negativas com relação aos bancos: “Achamos que era hora de encarar isso de frente. Em vez de falar de coisas distantes da realidade do usuário, vamos falar de problemas e assumir o compromisso de resolvê-los”. Já em matéria de O Estado de S.Paulo, no final de maio, o diretor explica que o desafio – constituído após pesquisas sobre as principais queixas junto a 2 mil clientes da instituição – é liderar toda a categoria a uma nova postura. “Isso só pode ser feito se admitirmos que os bancos têm problemas e assumirmos o desafio de resolvê-los”. Missão impossível As queixas apuradas pela pesquisa do Unibanco – burocracia, tarifas pesadas, juros altos, atendimento melhor para quem tem dinheiro e péssimo para quem tem pouco – podem também ser encontradas nas listas de reclamações do Procon, que destaca ainda, nesse rol, problemas com as transações efetuadas por meios eletrônicos e o envio de cartões sem solicitação do cliente. De acordo com o chefe de gabinete do Procon-SP, Vinícius Zwarg, os bancos são o segundo segmento mais reclamado, só perdem para telefonia. “A sociedade está mudando, as leis vão se aprimorando, mas o setor bancário apresenta muito pouca mobilidade e concorrência praticamente não há. E as pessoas estão mudando em termos de consciência de seus direitos e de educação para o consumo”, acredita Zwarg. Para ele, o ranço da sociedade em relação ao sistema financeiro decorre, em parte, também do fato de que nem tudo que acontece no setor, apesar de legal, é bem visto, como os altos lucros e as altas tarifas. “O Brasil não tem política de crédito, as pessoas têm medo de tomar crédito e os bancos, por exemplo, ganham muito com os juros. Nem sempre quem está sufocado pelo cheque especial é orientado pelo banco sobre como diminuir ou eliminar seu endividamento.” O chefe de gabinete do Procon lembra que os bancos ainda mantêm ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Fedeal para não ter de responder ao Código de Defesa do Consumidor, mas considera que essa tese está começando a ser superada na prática. “A própria disposição da Febraban em participar da Câmara Técnica que discutirá co- insaciáveis A imagem dos bancos deixa a desejar, mas seus números são uma beleza (em R$ milhões). Em vários deles as receitas com tarifas superam as despesas com pessoal. No Itaú a relação chega a inacreditáveis 196%. 2000 2004 1º sem 2005* BRADESCO Receita Tarifas Rec/desp. pessoal Lucro Rentabilidade 2.480 108,2% 1.740 21,5% 4.170 99,2% 3.060 20,1% 3.400 140% 2,621 34,9% ITAÚ Receita Tarifas Rec/desp. pessoal Lucro Rentabilidade 2.172 158,3% 1.830 25,6% 6.165 185,7% 3.775 27,0% 3.645 196% 2.475 35% UNIBANCO Receita Tarifas Rec/desp. pessoal Lucro Rentabilidade 910 114,0% 739 13,4% 1.559 104,6% 1.283 15,8% 1.560 170% 854 21,4% BANESPA Receita Tarifas Rec/desp.pessoal Lucro Rentabilidade 469 20,6% 2.085 2,5% 1.270 95,5% 1.750 30,7% 778 878 32,4% BANCO DO BRASIL Receita Tarifas Rec/desp. pessoal Lucro Rentabilidade 3.434 61,4% 974 12,2% 6.114 87,0% 3.024 21,4% 4.085 119,6% 1.979 29,6% REAL Receita Tarifas Rec/desp. pessoal Lucro Rentabilidade 803 69,9% 257 5,5% 1.593 95,7% 625 7,3% — — 404 HSBC Receita Tarifas Rec/desp. pessoal Lucro Rentabilidade 837 83,5% 205 21,5% 1.370 99,9% 426 18,3% — — 435 — NOSSA CAIXA Receita Tarifas Rec/desp. pessoal Lucro Rentabilidade 203 26,4% 190 16,8% 436 36,7% 358 16,6% — — 379 38,2% * De acordo com resultados divulgados até 15/08 REVISTA DOS BANCÁRIOS | 9 Sete pecados capitais para a imagem dos bancos 10 | REVISTA DOS BANCÁRIOS 1 23 ORGULHO INVEJA GULA Os onze maiores bancos do país, que haviam somado lucros de R$ 1,3 bilhão em 1994, encerraram 2004 com R$ 16,3 bilhões. No primeiro semestre deste ano, Bradesco, Itaú e Unibanco já alcançaram 73% do lucro de todo o ano passado. Com resultados assim, por que iriam ouvir o que a sociedade pensa sobre sua imagem? Assistir aos bancos brasileiros “nadarem de braçada” aguçou o apetite dos estrangeiros nos últimos anos. O HSBC terminou o século 20, em 2000, com lucro de R$ 205 milhões no Brasil, fechou 2004 com R$ 426 milhões e o primeiro semestre deste ano em R$ 453 milhões. O Real ABN Amro, com R$ 257 milhões, R$ 625 milhões e R$ 404 milhões, respectivamente. E ainda teve quem acreditasse que a chegada dos estrangeiros seria bom para trazer alguma concorrência ao setor. A base de correntistas do Bradesco cresceu apenas 6,5% nos primeiros seis meses deste ano em relação ao primeiro semestre de 2004. Apesar disso, as receitas de serviços e tarifas cresceram quatro vezes mais: 27%. Os R$ 3,4 bilhões cobrados dos clientes bancaram em quase uma vez e meia todas as despesas com pessoal (entre as quais se incluem as com indenizações pelas milhares de demissões). mo melhorar essa relação de consumo já é um sinal de amadurecimento.” No entanto, na opinião do presidente da consultoria Austin Rating, Erivelto Rodrigues, novidades nas campanhas publicitárias ou em produtos não bastam: a imagem dos bancos está longe de mudar. Segundo Rodrigues, o preço dos produtos bancários é muito elevado. “Nos empréstimos, os consumidores chegam a pagar em um mês toda inflação de um ano inteiro.” Além disso, as receitas de serviços ganham cada dia mais peso no ganho total dos bancos. Em 1994, essas receitas, que incluem as tarifas bancárias, representavam 4% do faturamento total. Hoje, esse número saltou para 20%. Isso representa, em média, mais de 110% da folha de pagamento dos bancos. Juros altos O Tesouro Nacional também é uma fonte gorda de recursos. Só para lembrar, o governo anterior iniciou em janeiro de 1999 com a taxa Selic a 25% ao ano e chegou ao pico de 45% em março daquele ano; atravessou os dois anos seguintes oscilando de 15,5% a 19%; e passou o “bastão” na casa dos 25%. Já na atual gestão, bateu em 26,5% entre março e junho de 2003, chegou a ficar em 16% de abril a agosto do ano passado e em 19,75% até agosto último. É assim que os ganhos de tesouraria chegam a compor, em alguns casos, até um terço dos ganhos dos bancos. Negociando com títulos públicos, acabam botando menos dinheiro na economia do país. E pouco dinheiro é sinônimo de dinheiro caro. “Acho que aí está um dos grandes fatores que provocam a indignação da sociedade em relação aos bancos. Eles cobram juros muito altos. O spread bancário médio no Brasil em 2004 era duas vezes maior que o da Argentina, três vezes maior que o da Rússia e nove vezes o dos Estados Unidos”, diz o presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Luiz Cláudio Marcolino. “As operações são legais, mas o setor produtivo e mesmo as pessoas físicas se sentem roubados. Por isso o lucro no setor financeiro tem impacto ruim na percepção da sociedade.” O Sindicato manifestou interesse em participar da Câmara Técnica de Consumo junto com a Febraban. O chefe de gabinete do Procon, Vinícius Zwarg, disse que a participação da entidade não foi vista como primordial no momento, já que não envolverá questões trabalhistas, mas de relação de consumo. Já para o presidente do Sindicato, os bancários vivem o cotidiano das agências e teriam muito a contribuir para melhorar a relação dos bancos com os consumidores. “O problema é que os trabalhadores são tratados pelos bancos como máquinas de cumprir metas, não como personagens vitais para a melhoria da qualidade do atendimento”, protesta. A reportagem da RDB tentou ouvir a Febraban, mas não houve retorno. “Por mais que os bancos tenham investido em tecnologias alternativas fora das agências (internet, telefone, terminais eletrônicos etc.), a solução preferida dos consumidores é o atendimento pessoal, e isso não é só aqui, é um fenômeno internacional. Os bancos não vão melhorar sua imagem se não contratarem mais gente”, diz. Pesquisa da empresa KPMG feita em 54 países detectou que lugar de fechar negócio é na agência. Tanto é que o HSBC, pioneiro no funcionamento de agências das 9h às 18h no Brasil, já fala em abrir também aos sábados. O Sindicato dos Bancários sempre defendeu a abertura de agências por um tempo maior, para melhorar a vida do cliente, com dois turnos de trabalho, para gerar empregos no setor. Mas, aos sábados, não. O fim do trabalho aos sábados foi conquistado pela categoria há mais de 40 anos e não seria moderno andar tão para trás. Os bancos podem perfeitamente respeitar a jornada de 6 horas, pagar melhores salários, distribuir melhor seus resultados e ainda oferecer mais e melhores empregos. Para isso, nem precisam fazer mais que o possível. ❚ Negociando com os títulos públicos, os bancos acabam botando menos dinheiro na economia do país. E pouco dinheiro é dinheiro caro 45 67 LUXÚRIA IRA AVAREZA PREGUIÇA A perspectiva de inflação está um pouco acima de 5% – AO ANO. A taxa média de juros do cheque especial cobrada pelos bancos em junho ficou em 8,25%. AO MÊS. Ou 148% ao ano. A possibilidade de endividamento-sem-fim de um cidadão que se enrola no especial é grande. Porém, nem sempre os bancos o orientam a sair dessa situação. Já para quem aplicou num fundo de investimento, o banco pagou pouco mais de 1% no mês; na poupança, 0,8%. O negócio é bom. Pesquisas (que muitos bancos fazem e não divulgam) revelam que a sua imagem não é das melhores. Estão até fazendo os bancos cederem um pouco no pecado 1, o orgulho. O Unibanco, por exemplo, decidiu: será melhor porque não mais parecerá banco. Mas com lucros de R$ 854 milhões no semestre (aumento de 47%), receita com tarifas de R$ 1,56 bilhão, bancando 170% dos gastos com pessoal... parece banco, sim. O volume de dinheiro colocado pelos bancos à disposição da sociedade por meio do crédito corresponde, no Brasil, a 28% do PIB. Nos países de emergentes a desenvolvidos, passa de 80% do PIB. O Brasil tem 5.578 municípios. Destes, 1.759 não têm nem um único posto de atendimento, nem uma agência. Afinal, por que alguma das cerca de 180 instituições financeiras moveria uma palha para tentar proporcionar renda onde ela é escassa? As operações com tesouraria do Banespa, ou seja, com títulos do Governo, correspondiam no final de 2004 a 51% dos seus ativos, contra 21,9% das operações de crédito ao setor privado. O Grupo Santander gostou da privatização, mas continua chegado em ancorar dinheiro no Tesouro Nacional. A Nossa Caixa, então, nem se fala: escorou mais de 68% dos ativos nos títulos públicos. No tempo do Banespa banco público, banco público era outra coisa. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 11 ENTREVISTA RICARDO BERZOINI A SAÍDA É INVESTIGAR TUDO O deputado e ex-presidente do Sindicato, Ricardo Berzoini, assume missão das mais difíceis: dirigir a secretaria geral do PT neste momento de crise Por Renato Rovai ex-presidente do Sindicato, Ricardo Berzoini, tem nova missão difícil pela frente. Quando Lula assumiu o governo, foi convidado para o Ministério da Previdência para coordenar a reforma do setor. Foi um processo duro e desgastante, em que teve de contrariar interesses de diferentes setores, dos mais poderosos aos mais coorporativos. Na seqüência, foi para o Ministério do Trabalho, que também tinha e ainda tem reformas a ser realizadas e cujos projetos entregou prontos para o Congresso. Decidido a disputar novo mandato de deputado federal, comunicou o fato ao presidente, que determinou que todos os candidatos deveriam sair na última reforma ministerial. Não só em abril de 2006, como exige a lei eleitoral. Mal reassumiu o mandato de deputado, a direção do PT viu-se envolvida numa enorme crise ética. Seu nome passou a ser cogitado para a executiva do partido, indo para a secretaria geral. No cargo, está enfrentando talvez o maior desafio de todos os de sua carreira política. O partido que ajudou, como tantos outros militantes, a criar, é hoje acusado de realizar um esquema de operações financeiras ilegais. Nesta entrevista exclusiva para a Revista dos Bancários, Berzoini avalia a crise e aponta o que imagina necessário para superá-la, tanto do ponto de vista partidário como para a vida política do País. O Revista dos Bancários – Como o senhor está analisando o atual momento político? Ricardo Berzoini – Com extrema preocupação. O povo brasileiro não esperava um escândalo dessas proporções no primeiro governo de origem popular da nossa história. O futuro do PT e o apreço pela democracia por parte de boa parcela do povo brasileiro dependem da forma como vamos superar essa 12 | REVISTA DOS BANCÁRIOS crise. O governo Lula tem muitas realizações a mostrar e só poderá fazê-lo se superar de maneira digna essa turbulência. RdB – O que o senhor achou do depoimento do publicitário Duda Mendonça em relação a remessas de dinheiro ao exterior para pagamento de campanha? Berzoini – Primeiro é necessário apurar para verificar se o que ele disse é verdade inteira, parcial ou mentira. Não podemos prejulgar a veracidade do que ele declarou à CPI, porque ele também tem interesses jurídicos e financeiros. Em segundo lugar, se confirmado, é algo bastante grave. Agrava bastante a situação de ex-dirigentes do PT e de quem mais combinou de fazer esse tipo de eventual ilegalidade. A crise atinge proporções muito elevadas, mas a melhor maneira de resolvermos isso dentro da democracia é apoiar integralmente as apurações pelas CPIs, pelo Ministério Público e pela Polícia Federal. Precisamos ter tranqüilidade, não açodamento no julgamento do que foi praticado. O tempo correto é o de conclusão das CPIs. A partir dessa conclusão a tipificação de cada crime e a responsabilização jurídica e política de todos os envolvidos. RdB – Em relação ao pronunciamento do presidente em que ele diz que foi traído, mas sem dizer quem traiu, o que o senhor acha? Berzoini – Acho que tem um erro de forma, que foi o fato de ele ler um discurso escrito em lugar de falar espontaneamente. Num discurso transmitido pela TV, olhar diretamente para o telespectador passa mais credibilidade. Mas acho que o discurso avançou, pois o presidente reconhece erros, pede desculpas e diz que foi traído. Falta agora apurar ou o próprio presidente dizer, se souber, quem traiu. GERARDO LAZZARI REVISTA DOS BANCÁRIOS | 13 RdB – O senhor vê alguma possibilidade de um processo de impeachment do presidente da República? Enxerga alguma tentativa de golpe de setores da oposição? Berzoini – Alguns setores da oposição e da mídia estão tentando criar um ambiente propício ao impedimento do presidente Lula, e o Brasil tem uma sociedade muito dependente da mediação de grandes meios de comunicação. Nós defendemos as investigações e não podemos em hipótese alguma aceitar que se crie de forma artificial o clima de radicalização. RdB – Qual é a saída para o PT e para o governo? Berzoini – A saída para o PT e para o País é investigar com tranqüilidade e responsabilizar quem errou. Por exemplo, deputados ou dirigentes partidários que tenham recebido qualquer menção de haver recebido recursos ilegais provenientes dos empréstimos do Marcos Valério devem começar explicando o que fizeram com o dinheiro. Até porque aqueles que destinaram o dinheiro para campanha cometeram uma irregularidade eleitoral, mas não cometeram nenhum atentado contra a ética política do ponto de vista do enriquecimento ilícito, do ponto de vista de criar uma estrutura à margem da estrutura partidária. Agora, as pessoas que organizaram esse megaesquema têm outra responsabilidade do ponto de vista partidário e legal. Quero dizer claramente que, no momento em que falo, estou tratando dos senhores Delubio Soares e Marcos Valério, que, pelo que consta, organizaram um esquema ilegal e absolutamente suprapartidário. Nesse sentido, a CPI terá todo espaço e apoio do PT para ir até o fim e responsabilizar quem organizou esse mecanismo. Defendemos as investigações e não podemos aceitar que se crie de forma artificial o clima de radicalização 14 | REVISTA DOS BANCÁRIOS RdB – A reforma política é realmente tão necessária quanto alguns têm insistido? Berzoini – É necessária uma reforma política para que não se repita daqui a alguns anos um escândalo dessas proporções. As campanhas estão muito caras e longas, e a presença dos chamados marqueteirios fazendo a mediação entre os candidatos e a opinião publica é uma distorção que precisa ser corrigida. Isso aumenta muito o custo e faz com que as lideranças políticas fiquem reféns de esquemas de marketing. A meu ver, de imediato, para as próximas eleições, deve-se adotar as seguintes mudanças: redução de tempo de campanha, que deve ser de dois meses, com um mês de TV e rádio; proibição de qualquer artifício publicitário na TV e rádio, permitir simplesmente que o candidato converse com o eleitor; proibir “showmício” e propaganda de rua, exceto em imóveis particulares; além disso, aprovar a fidelidade partidária e o financiamento público de campanha. RdB – O governo tem buscado uma aproximação com o movimento social nesses últimos dias. Isso é positivo? Por que não foi feito antes e o governo priorizou apenas interlocução com o Congresso? Berzoini – Em relação aos movimentos sociais, que são, de fato, a origem genética do PT, acho que neste governo sempre houve grande diálogo e proximidade. E isso é muito positivo, mas a verdade é que esse é um governo eleito por 53 milhões de brasileiros, mas que não tem maioria parlamentar, que, de certa forma, não recebeu essa maioria parlamentar no processo eleitoral. Portanto o governo buscou uma estratégia de composição no Congresso Nacional com outras forças. O governo atua na medida do possível, porém o importante agora é saber como trabalhar o aspecto programático para garantir a interlocução e ampliá-la no que for possível com esses setores originários do PT. RdB – Houve avanços na área social? Berzoini – É preciso registrar que a política macroeconômica, muitas vezes criticada de forma dura e da qual eu também sou crítico em certos aspectos, é, em muito, responsável pela estabilidade econômica. Na área de política social e distribuição de renda, obtivemos aumento real do salário mínimo, temos uma gestão mais estratégica do Fundo de Garantia e geramos mais de 3,1 milhões de empregos com carteira assinada em apenas 30 meses, quase 12 vezes mais que o governo anterior gerou por mês em média. Além de termos feito o Bolsa Família atingir 7,1 milhões de pessoas no momento em que falo com você. Isso melhora a vida das pessoas, isso gera e distribui renda e tem a ver com o programa e os compromissos da esquerda brasileira. Mas, evidentemente, a rigidez da política monetária, que obriga a uma redução orçamentária, leva a uma insuficiência na área social em alguns setores, nos incomoda e também incomoda nossos aliados históricos do movimento social. Até porque no nosso governo o setor financeiro continua lucrando mais do que deve e isso acaba gerando certo constrangimento na militância. Eu, durante a minha campanha para deputado federal, sempre registrei que este seria um governo duro, que avançaríamos em alguns aspectos, mas que em outros acabaríamos obtendo pouco sucesso. Isso tem a ver com a herança que recebemos, que era de fato maldita, mas também tem a ver com a composição política possível para garantir governabilidade. RdB – Sua previsão, porém, nada tinha a ver com a atual crise. Berzoini – De maneira alguma, nunca imaginei que iríamos viver algo parecido. Imaginei outras crises, mas não essa. Mas vamos superá-la, confio, como já superamos outras. Decidi encarar o desafio de assumir a secretaria geral do PT num momento em que saía do Ministério do Trabalho e estava com o objetivo de tão-somente voltar à vida parlamentar e me dedicar a percorrer o país para debater com os bancários, por exemplo, propostas para o Brasil. Só aceitei assumir a secretaria geral do PT porque me foi dada, como sempre no PT, autonomia total para tocá-la. Sei da dureza da missão, mas ficar assistindo às coisas acontecerem de camarote não faz RdB – Em que setor social o senhor acha que o governo poderia ter investido mais e por algum motivo ainda está devendo? Berzoini – Um setor em que estamos devendo é o da habitação popular. Para isso estamos elaborando um programa que forneça capacitação e recursos para financiar os demais insumos. Imagino um programa que vincularia a capacitação nacional na construção civil com noções de cidadania e construções em mutirão, tendo como objetivo a construção de 1,5 milhão de habitações populares. Dá tempo, neste governo, de começar. Mas a principal marca deste programa é que ataca o déficit habitacional com geração de emprego e capacitação de mão-de-obra. A idéia é que as pessoas que vão construir as casas sejam formadas profissionalmente para poder tocar a vida depois. RdB – O senhor é uma das lideranças sindicais mais importantes da década de 90. Como analisa o atual momento do sindicalismo brasileiro e o que imagina deva ser a prioridade dos trabalhadores nos próximos anos, já que neste momento o senhor pode tratar desse tema com mais tranqüilidade por não estar mais no ministério? Berzoini – As centrais sindicais, a CUT em especial, por sua abrangência, devem atualizar seu projeto organizativo. A estrutura sindical envelheceu muito nos últimos dez anos. A representatividade caiu, com raras exceções. Além disso, é preciso estabelecer metas claras de participação na renda nacional e na geração de emprego. É decisiva a capacidade de interferir nas negociações coletivas de forma articulada, pois o capital se desloca com velocidade cada vez maior, entre países e dentro do território nacional. RdB – Para os bancários, que balanço pode ser feito de seu mandato como deputado e como ministro da Previdência e do Trabalho? Berzoini – Primeiro, volto agora como deputado com a perspectiva de retomar as bandeira que sempre defendi no Parlamento, a transparência nas relações econômicas do país, a defesa dos trabalhadores e de um sistema financeiro mais justo, que proporcione mais crédito e de melhor qualidade para a produção e o consumo. Além de outros temas que sempre defendo na minha vida. Em relação ao trabalho nos ministérios fizemos, com todas as limitações que nosso governo sempre enfrentou, um trabalho sério de combate à corrupção. No caso da Previdência, realizar uma reforma necessária para o país, restaurando o teto do INSS para o valor acima de mil dólares, que é importan- te para o sistema, estabelecendo novas regras para o pagamento de benefícios e buscando combater as fraudes e a sonegação. No Trabalho, o melhor desempenho que tivemos foi na articulação das decisões de governo em relação ao emprego. Sempre defendemos que o Ministério esteja presente em todas as decisões para enfocar a geração de emprego, seja a decisão sobre uma norma, seja sua ação de fiscalização, seja nas empresas estatais em relação a investimentos e também na gestão do Fundo de Garantia e do FAT. Acho que esse foi o destaque, encerramos 30 meses de governo com a geração de 3,1 milhões de empregos, um recorde que valoriza o governo Lula, especialmente, e particularmente o que fizemos no Ministério do Trabalho. RdB – Quais são as chances de o presidente Lula se reeleger? E se ele for candidato, por que a sociedade brasileira deveria lhe dar o voto e qual deveria ser a bandeira de um segundo mandato? Berzoini – As chances são boas, pois as pesquisas demonstram que há reconhecimento do esforço que o governo fez para superar a tragédia financeira que o governo do PSDB/PFL promoveu. No início de 2003, o risco de hiperinflação e crise cambial era enorme, o que exigiu grande sacrifício do governo e do povo. O País foi reorganizado e cresceu fortemente em 2004. Em 2005, o crescimento continua e o emprego já alcança mais de 3,1 milhões em 30 meses. E, como já disse, os programas sociais deslancharam. Mas ainda há grandes desafios que o governo poderá superar com um segundo mandato. Parece-me que a grande bandeira deve ser a da redução da pobreza, os investimentos em infra-estrutura e a continuidade do crescimento dos empregos. O Brasil pode crescer vinte anos seguidos se completar um processo de democratização da economia, pela expansão do crédito e o apoio às exportações, com a ampliação da base de consumo interno e o apoio à economia solidária e ao microcrédito. RdB – O senhor acha que a crise não pode contaminar a economia, mas ao mesmo tempo é crítico de parte dela, principalmente dos juros altos. No caso dos bancos, estamos começando a campanha salarial e vendo novamente recordes atrás de recordes de lucratividade. Berzoini – O que disse foi que não podemos deixar contaminar o bom desempenho da economia. Temos um crescimento econômico com várias origens. Uma parte é a gestão fiscal equilibrada por parte do governo, mas defendo que a política econômica do governo erra quando exagera. Exagera no superávit primário, na taxa de juros, isso faz com que o Brasil cresça menos do que poderia crescer. Defendo uma política econômica austera, responsável, com critérios fiscais exeqüíveis e acho que nosso governo peca pelo excesso. Tem praticado juros mais altos que precisava e superávit primário alto demais. ❚ Colaborou Frédi Vasconcelos FOTOS: GERARDO LAZZARI parte da minha personalidade. O PT é um partido de 830 mil filiados, mas, além disso, há milhões de pessoas que confiam e confiaram em nós. Assumi a secretaria geral porque tenho compromisso de vida e de história com os rumos do PT e vou lutar para que volte a ser o que sempre foi: um instrumento político para a transformação da sociedade brasileira e uma referência internacional. É necessária uma reforma política para que não se repita daqui a alguns anos um escândalo dessas proporções REVISTA DOS BANCÁRIOS | 15 CIDADANIA DIREITO DE SABER Ministério Público Democrático ajuda a entender funcionamento da Justiça e trabalha para que mulheres e comunidades carentes busquem seus direitos Por Cida de Oliveira emocratizar o acesso de toda a população brasileira à Justiça e à plena cidadania. Foi pensando nisso que, há 14 anos, promotores e procuradores de justiça criaram o Ministério Público Democrático (MPD). A organização não-governamental sem fins lucrativos, no entanto, está muito longe de ser um canal de reclamação ou balcão de atendimento ou encaminhamento gratuito de questões jurídicas para pessoas que não podem arcar com o custo de um advogado. É, na realidade, voltada para o desenvolvimento de programas e projetos para a conscientização da sociedade sobre as funções do Ministério Público e direitos humanos. “O MPD foi criado numa época em que havia muita pressão para que as portas do Judiciário não fossem abertas para a imprensa”, lembra o procurador de Justiça Airton Florentino de Barros, presidente e um dos fundadores da entidade. “A idéia foi não só democratizar o entendimento da linguagem própria da lei, inacessível para a maioria, mas também divulgar informações do Judiciário como um todo”. Na prática, essa vocação político-educativa da ONG está pautada por várias iniciativas. Algumas delas ainda pendentes. É o caso da proposta de criação de uma lei que introduz o estudo de direitos humanos como disciplina obrigatória no currículo do ensino médio. Por enquanto, a idéia está sendo apresentada a diversas entidades da área, como a Ordem dos Advogados do Brasil, em busca de apoio. “O ideal é que a disciplina se torne obrigatória em âmbito federal”, explica o presidente. “Mas se for introduzida por alguns Estados, já é um bom começo.” D 16 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Outras, no entanto, caminham a passos largos para se tornarem realidade. Atualmente, a diretoria do MPD está se articulando com representante dos ministérios públicos de todos os países da América Latina. O objetivo é a criação de confederação inspirada no Medel, Magistrados Europeus para a Democracia e as Liberdades, com sede em Roma. A entidade congrega juízes e promotores dos países da Europa em defesa da manutenção dos direitos.“Em muitos países latino-americanos, como o Chile, por exemplo, os ministérios públicos estão vinculados diretamente aos governos e, por isso, são subservientes a eles. Precisamos ajudar essas instituições a se tornarem independentes”, diz o presidente. O Medel, aliás, deu total apoio ao MPD em junho do ano passado. Na ocasião, estava sendo muito discutida a redução de poderes de investigação do Ministério Público no Brasil. Comunicação Para levar à sociedade o debate de questões relacionadas à justiça, a entidade conta com vários canais de comunicação. Um deles é o programa de tevê Trocando Idéias, exibido semanalmente, em rede nacional, pela TV Comunitária da Cidade de São Paulo e pela TV Justiça, ambos canais por assinatura. Este ano, a atração completa quatro anos no ar. O conteúdo é formado essencialmente por entrevistas e debates sobre temas ligados à Justiça e à cidadania, sempre mostrando diferentes pontos de vista de membros do Ministério Público, da sociedade civil, de profissionais especializados, representantes de organizações não-governamentais e até do público, através de links montados nas ruas para ouvir a opinião das pessoas. Outro ramo é a revista MPD Dialógico, publicação bi- MULTIPLICADORA A advogada Lenira repassa suas experiências no Promotoras Populares mestral lançada no início de 2004. O site da entidade, aliás, também merece uma visita: nele é possível acessar as principais notícias relacionadas a temas como direitos humanos, discriminação racial e justiça, entre outros. Além de suas ações diretas, a ONG atua também em parceria com muitas outras entidades. Seus integrantes fornecem noções da Constituição, da Justiça e, principalmente, de cidadania por meio de palestras, oficinas e até fóruns de debates solicitados pelas organizações atendidas pela Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança. O CDHEP (Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo, e Fórum em Defesa da Vida Contra a Violência, do Jardim Ângela, ambos localizados em bairros violentos da zona sul da capital, também são parceiros. O GERARDO LAZZARI MPD atua diretamente na coordenação de cursos de formação de orientadores jurídicos populares do CDHEP. São programas nos quais são ministradas aulas para pessoas das comunidades, que aprendem noções básicas de direito e atuam como multiplicadores nas localidades onde atuam ou residem. O Fórum, composto de 250 entidades da sociedade civil e de movimentos populares, participa do debate de diversos temas relacionados à defesa da cidadania e combate à violência. Ao lado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e da Associação Juízes para a Democracia, eles participam ativamente do curso para formação de promotoras legais populares da União de Mulheres de São Paulo, que tem apoio de diversas outras associações e sindicatos. “Em conjun- to, as três entidades coordenam o curso de capacitação de mulheres para que elas reconheçam os seus direitos e saibam como atuar na vida pública”, explica a promotora Elaine Caravelas, diretora do MPD. E esse projeto já está fazendo escola. No começo de agosto foi aberto oficialmente o curso Mulher Cidadã, parceria entre a Subprefeitura da Mooca, Ordem dos Advogados do Brasil (seccional Tatuapé), e a Universidade São Judas. A advogada Lenira Domingues Ferreira, orientadora social da subprefeitura, conta que a idéia foi inspirada no Promotoras Populares, que ela cursou no ano passado. “Nosso objetivo é o mesmo: capacitar mulheres para o acesso à justiça e cidadania e torná-las multiplicadoras nos locais onde moram, trabalham ou atuam”, diz. As aulas do curso gratuito recém-aber- to acontecem nas dependências da Universidade São Judas, na Mooca, toda segunda-feira, das 9 às 11 horas, e são ministradas voluntariamente por advogados, juízes, promotores e dirigentes dos principais movimentos sociais. Começou com 67 alunas e muitas outras já procuraram a organização do curso para se matricularem. O período letivo será encerrado no final de novembro. Lenira destaca que a participação no projeto Promotoras Legais Populares foi fundamental também para o aprimoramento do que trabalho social que faz há mais de quinze anos. “É muito rico poder trocar experiências com mulheres com as mais diversas formações profissionais, operárias, donas de casa, líderes comunitárias, que têm em comum o desejo de aprender mais para compartilhar”, diz. ❚ REVISTA DOS BANCÁRIOS | 17 C APA Homicídios cometidos por policiais no Estado de São Paulo alcançam números alarmantes e intimidam, principalmente, os mais pobres Por Glauco Faria POLÍCIA QUE ADO : AGÊNCIA EST REPRODUÇÃO MATA Q SEM SENTIDO Flávio Santana com a noiva: atirar primeiro, investigar depois 18 | REVISTA DOS BANCÁRIOS uando o leitor ler esta matéria, provavelmente já saberá o resultado do julgamento dos cinco policiais militares que assassinaram Flávio Santana, em fevereiro de 2004. A morte do dentista, negro, aos 28 anos, é apenas um dos casos mais notórios, mas está longe de ser uma exceção no dia-a-dia da polícia paulista. Um mês antes, outra ocorrência policial chamou a atenção de todos. Em São José dos Campos, o estudante e ajudante-geral Ednilson da Silva, de 21 anos, foi morto com um tiro de submetralhadora na boca, disparado por policial militar. O motivo: o rapaz era gago e surdo de um dos ouvidos e não teria conseguido responder às perguntas do soldado, que alegou que o disparo foi acidental e que a vítima teria tentado “resistir à prisão”. Homicídios praticados por policiais se tornaram algo corriqueiro no Estado de São Paulo. Somente no ano passado, foram 739 casos qualificados como “resistência seguida de morte”. Para ter idéia do que significam esses números, nos Estados Unidos, entre 1998 e 2002, a média de mortes foi de 341, menos da metade das ocorrências só em São Paulo. Mas por que a polícia paulista mata tanto? Alguns dados ajudam a chegar perto das raízes dessa violência que, em geral, é dirigida a um segmento específico da sociedade.“A violência policial tem raça (75% são negros), sexo (a maioria são homens) e idade (entre 18 e 25 anos)”, explica Frederico dos Santos, secretário-executivo do Centro Santo Dias de Direitos Humanos. “Pessoas de classe baixa e negras são alvos de abordagens exageradas e até de assassi- TIRO PELAS COSTAS MÁRCIO FERNANDES/FOLHA IMAGEM A PM paulista tem armamento e viaturas modernas. Falta inteligência natos todos os dias”, relata Francisco José Taddei Cembranelli, promotor que está atuando no caso da morte de Flávio Santana. “A maioria não tem como se defender, como se justificar para os policiais nem quem as defenda naquele momento. Então, sobra apenas a versão trazida por eles, nada existe que a derrube.” Na ocasião da morte do dentista, os policiais que estiveram na ação mostraram alguns dos vícios que corroem a corporação. A cena do crime foi alterada para que passasse a impressão de ter havido um tiroteio, e não uma execução, mas o pai de Flávio não aceitou a versão e conseguiu desmontar a farsa. “Ele sabia o filho que criou e fez com que a verdade viesse à tona”, conta o promotor. “Há outros casos em que existe reação por parte da família, mas isso nem sempre é suficiente. No epi- sódio de Flávio Santana, tínhamos uma testemunha presencial que visualizou a execução e a orquestração da PM”, completa. “Se não fosse por ela, é provável que ficássemos com duas versões antagônicas por meses ou anos até.” “A polícia de São Paulo é estruturalmente violenta e sofre ciclos de pico dessa tradição. Os dados chocam mesmo nos momentos de queda, em que a situação está mais controlada”, aponta o deputado Renato Simões (PT). As estatísticass a respeito da violência praticada por policiais levaram à elaboração de um requerimento para que fosse aberta uma CPI sobre a violência policial. A comissão não foi instalada, assim como outras 56 pedidas na Assembléia Legislativa desde o início do governo Geraldo Alckmin. Se parte da polícia é historicamente vio- lenta, algumas medidas adotadas pelo governador e por seu secretário de Segurança Pública, Saulo Abreu de Castro Filho, contribuíram para que a situação se agravasse. “A Polícia Militar age rigorosamente de acordo com o comando. Dados da PM no fim da década de 90 mostram que, a partir do momento em que se adotou o acompanhamento psicológico para policiais que participassem de ações com vítimas, o número de mortes causadas pela famigerada ‘resistência seguida de morte’ caiu vertiginosamente”, explica o deputado estadual Ítalo Cardoso (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa. O atendimento psicológico a que Cardoso se refere era feito pelo Programa de Acompanhamento de Policiais Militares Envolvidos em Ocorrência de Alto Risco REVISTA DOS BANCÁRIOS | 19 (Proar), criado em 1995 pelo governador Mario Covas. O programa previa seis meses de reciclagem dos policiais que se envolvessem em confronto. A finalidade era combater o estresse causado por esse tipo de situação e diminuir o uso de armas de fogo nas ações. O programa conseguiu avanços em seu primeiro ano, os homicídios praticados por policiais diminuíram de 592 em 1995 para 368 em 1996. No entanto, a forte resistência de diversos setores da corporação e a “linha dura” adotada pelo governo Alckmin levaram à desativação do programa. Outro ponto negativo que pode ter contribuído para o aumento nos números da violência policial foi a desestruturação da Comissão de Controle do Índice de Letalidade por Armas de Fogo, um grupo multidisciplinar que, junto com a PM, estabelecia parâmetros para o treinamento e acompanhamento de crimes cometidos com armas de fogo. “A idéia era combater a concepção de que se atira para matar, mas o governo retirou o apoio oficial a essa ini- ciativa”, lamenta Renato Simões. “Há um problema grave de segurança pública que se chama Saulo de Abreu”, acusa Frederico dos Santos. “À frente da Secretaria de Segurança há três anos e meio, sabe-se comprovadamente por entidades de direitos humanos, pelo Ministério Público, que, desde sua posse, os índices de violência e homicídio vêm aumentando, bem como o número de envolvidos em casos de corrupção e extorsão”, complementa. “Saulo prefere apresentar números de quantas pessoas foram mortas. No ano passado, perto de 50% morreram com tiro nas costas e mais de 30% na cabeça. Isso mostra a impossibilidade de reação”, concorda Ítalo Cardoso. Um dos episódios ocorridos no início da gestão do secretário dá uma dimensão de como Abreu age. O governo estadual, paralisado por uma onda de seqüestros e fugas de presídios, resolveu dar uma satisfação à opinião pública com um espetáculo pirotécnico de violência. Em maio de 2003, no pedágio da ro- A questionável atuação do comando da segurança, que incentiva as ações truculentas, acaba afastando ainda mais a população dos policiais, que são encarados com medo e desconfiança dovia que liga a Castelo Branco a Sorocaba, doze pessoas foram executadas em uma ação que ainda pode resultar em condenação de Abreu na Justiça Federal. A “Operação Castelinho” teve a participação do Gradi (Grupo de Repressão a Análise dos Delitos e Intolerância) que, de acordo com o Ministério Público, recrutava presos para participarem de ações policiais. “Tanto no ‘massacre do Castelinho’ quanto na chacina da Favela do Coruja (seis pessoas mortas em fevereiro) fica clara a participação da PM em ações de extermínio. No caso Castelinho, o comando da polícia, inclusive do secretário, levou o Gradi a participar da ação”, denuncia. A questionável atuação do comando da segurança no Estado, que incentiva as ações truculentas da polícia, acaba afastando ainda mais a população dos policiais, que são encarados com medo e desconfiança. “Não podemos correr o risco de colocar a culpa só nos policiais e tratá-los como se fossem bandidos. Isso só agrava o clima de insegurança”, defende o padre Juarez Pedro Castro, do Movimento Nacional dos Direitos Humanos. “Ele acaba sendo um produto do meio, já que não possui condições dignas de salário. Isso não justifica o erro, mas temos que entender os fatores que facilitam a corrupção”, alerta. Na prática, a situação dos policiais pouMÃO DE FERRO LUIZ CARLOS MURAUSKAS/FOLHA IMAGEM Saulo e Alckmin: aumento da violência e CPI engavetada 20 | REVISTA DOS BANCÁRIOS FILME DE TERROR ANTÔNIO GAUDÉRIO/FOLHA IMAGEM Os bandidos são violentos e a polícia reage com mais violência: a cidade dá o cenário e a população o sangue. Aqui, nas escadarias da estação Patriarca do Metrô co mudou nos últimos anos. É o que afirma Gilberto Cintra Barra, vice-presidente da Associação de Cabos e Soldados de São Paulo. “Nossa reivindicação histórica é a salarial. Estamos tentando conversar com o governador para obter um reajuste decente desta vez”, afirma. Segundo Cintra, os baixos salários levam a categoria a apelar para os famosos “bicos” na área de segurança, o que estressa ainda mais o policial. “Somos contra o ‘bico’, que é contra a lei, porém sabemos que 90% da PM faz. O dado é informal, mas você pode colocar (sic) porque temos certeza dele.” Reação da sociedade Os constantes abusos praticados por policias levaram diversos setores da sociedade a reagir. Os lugares mais atingidos, aqueles localizados na região periférica das cidades paulistas, já se organizam para combater a violência policial. “As regiões pobres já sofrem com violências, desde a falta de saneamento básico, passando pela própria moradia e ausência de direitos elementares. Além de todas elas, vai lá a polícia para dar sua contribuição”, lastima Frederico dos Santos. “O Estado se faz ausente em todas as áreas. A única parte que chega, pra arrebentar (sic), é a polícia”, denuncia. Frederico e o Centro Santo Dias prestam assistência jurídica para moradores do Parque Novo Mundo, local que constantemente apresenta casos de abuso policial. “De tanto sofrerem com a violência, os moradores começaram um trabalho interno para enfrentar a questão e depois nos procuraram”, lembra. A atitude acabou gerando outros frutos. “Essa experiência rendeu uma reportagem em nosso jornal interno e algumas lideranças de um outro bairro, o Jardim Pantanal, leram e entraram em contato conosco”, recorda. Além da assistência jurídica, o centro Santo Dias também dá o que Frederico chama de “apoio político”. “Isso é o mais importante, o que dá mais resultados. É a organização popular que dá visibilidade para o que está acontecendo no bairro, junto de um trabalho de educação em direitos humanos, para que a população saiba sobre os seus direitos e a quem recorrer quando acontecem determinadas violações”, conta. “No Parque Novo Mundo conseguimos realizar audiências públicas em que estiveram, além da população local, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, a Ouvidoria, a Corregedoria de Polícia, o Ministério Público e outras entidades. Assim, conseguimos alguns avanços, como o afastamento de determinados policiais”, anima-se. Segundo ele, a comunidade atingiu uma organização tal que não permite mais que a polícia invada casas ou pare pessoas no meio da rua para a famosa “averiguação”. “A polícia não precisa ser letal para ser eficiente”, defende o ouvidor da Polícia paulista Antônio Tanuri Filho. “Estamos em uma sociedade de classes e obviamente os mais pobres vão ser os mais atingidos por esse tipo de violência. Mas, se a população se organiza, conseguimos afastar esses maus policiais e coibir essas ações”, explica. “Na própria Ouvidoria, estamos dando mais atenção a denúncias que vêm de entidades de classe como ONGs, sindicatos e sociedades de bairro. Precisamos aprofundar essa integração”, defende. ❚ Os lugares mais atingidos, na periferia da cidade, já se organizam para combater a violência policial Colaborou Anselmo Massad REVISTA DOS BANCÁRIOS | 21 CIÊNCIA Sítios arqueológicos revelam a história da cidade e do estado antes da colonização portuguesa Por Plínio Lima SÃO PAULO 4 HÁ MIL ANOS U m terreno baldio, na esquina das Ruas Jacunda com Zabumba, cercado por luxuosos condomínios e prédios de alto padrão, estava aparentemente abandonado e vinha sendo usado até como depósito de entulho. O que os moradores do Morumbi, um dos mais nobres bairros da capital paulista, não sabiam é que no local havia vestígios de que seus primeiros vizinhos, num tempo remoto, não foram os índios Tupinambás, co- 22 | REVISTA DOS BANCÁRIOS mo indicavam as cartas dos jesuítas, há pouco mais de 500 anos. Mas sim caçadorescoletores (que sobreviviam da caça e da coleta de alimentos) que habitaram a região 2 mil anos antes de Cristo. A descoberta é de pesquisadores do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), que se debruçaram em três lotes de terra, num total de 200 metros quadrados, e recolheram cerca de 100 mil lascas de pedras (silexito) e fizeram a descoberta. A área é con- siderada de alta relevância, pois é a única na cidade onde existem rastros de grupos anteriores aos índios encontrados e descritos pelos portugueses. O sítio arqueológico era uma espécie de pedreira utilizada como fonte de matériaprima para a fabricação de utensílios e armas de caça usadas pelo homem pré-histórico. O arqueólogo Paulo Antônio de Blasis conta que esses grupos humanos chegavam a se deslocar até 40 quilômetros para levar o material recolhido para suas aldeias. 2 MIL ANOS ANTES DE CRISTO “O sítio do Morumbi fica a 2 quilômetros do Rio Pinheiros e provavelmente os homens o utilizavam para transporte”, diz. Para Blasis essa comunidade de caçadores-coletores pode ter baseado sua economia na circulação de bens, à base de trocas. A descoberta do local ocorreu meio por acaso. O engenheiro Casper Hans Luchsinger vez ou outra se arriscava como arqueólogo amador e, em 1964, achou que o tipo de rocha lascada encontrada no terreno pudesse ser algo interessante. Recolheu trezentas amostras, fez relatório e enviou ao extinto Instituto de Pré-História da USP, onde se constatou tratar-se de algo inédito para a cidade de São Paulo. A descoberta foi comunicada ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Vestígios No Estado, cerca de 650 sítios históricos e arqueológicos já foram registrados pelo Iphan, numa mostra de que o solo paulista é um terreno minado de cultura material, vestígios deixados por diversos povos. Algumas dessas áreas são de importância ímpar, como no Vale do Ribeira, onde os arqueólogos localizaram a ossada humana mais antiga do Estado, com 9,2 mil anos de idade. Na ilha do Mar Virado, em Ubatuba, outra ossada, com idade entre 2 a 4 mil anos foi localizada em uma urna redonda, utilizada em cerimoniais fúnebres. Os dezoito arqueólogos e dois etnólogos do MAE – a maior equipe do país – são sérios, minuciosos, pacientes, concentrados e chegam a frustrar quem os imagina à semelhança do ator Harrison Ford e seu destemido Indiana Jones, personagem imortalizado nas telas do cinema. Não há buscas de grandes tesouros em terras hostis, salvamentos de mocinhas, fuga dos vilões e muito menos o encontro do Santo Graal, o lendário cálice sagrado de Cristo. “O trabalho é voltado para a compreensão da evolução do gênero humano e de seus estilos de vida por meio dos artefatos deixados pelos povos ao longo do tempo ou pelo estudo de seus restos mortais”, explica a historiadora e educadora Carla Gibertoni Carneiro, de 32 anos, diretora do Serviço Técnico de Musealização do MAE. O professor Blasis, de 50 anos, explica que o Estado de São Paulo é uma área de fronteira, por onde passaram povos antigos vindos do Sul, ligados à tradição Itararé da população indígena Kaingang, e da cultura dos povos do Centro Oriente, da tradição Itaparica. “As diferenças entre esses grupos são verificadas no tipo de cerâmica que produziam, a pintura delas, cada qual feita de forma bem peculiar”, explica. Essas áreas, habitadas pelos dois grupos estão localizadas na região PAULO PEPE Explorações no terreno do Morumbi em 2001. Hoje o local (abaixo) está com uma obra embargada EPITACIO PESSOA/AE no do terreno permitiu o início de uma exploração aprofundada quando descobriu que sua casa não poderia ser construída. Porém, hoje o novo proprietário recebeu autorização para levantar um empreendimento imobiliário, sem que tenha sido realizado o resgate do material arqueológico, gerando um entrave judicial. Em junho último, a procuradora do Ministério Público Federal, Ana Cristina Bandeira Lins fez uma recomendação à Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município que, antes de conceder alvará de aprovação e execução da edificação, torne obrigatória a consulta ao cadastro de registros do Iphan. (Iphan), que cadastrou o sítio. Entretanto, a área não foi tombada, apenas teve seu uso restringido. Mas o que parecia um pontapé inicial para a pesquisa emperrou por mais de três décadas. Só em 1995, o Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura fez coleta de material na superfície do terreno, mas sem desenvolver o projeto. Em 2001, o do- REVISTA DOS BANCÁRIOS | 23 TRABALHO DE PACIÊNCIA dos municípios de Serra Azul (vestígios de 2 mil anos atrás), Rio Claro (registros de até 12 mil anos), Piraju (7 mil anos). Blasis também destaca a riqueza de cultura material encontrada no litoral paulista, ligada à Tradição Sambaqui (que na língua tupi significa monte de conchas). Na região denominada Baixada Cananéia/Iguape, no Litoral Sul, há registro material datado de cerca de 5 mil anos, antes da descoberta da escrita. Na Baixada Santista, os vestígios são ainda mais antigos, 6 mil anos. Os Sambaquis são os sítios arqueológicos mais comuns em todo o litoral brasileiro e consistem em montes de conchas que variam de dois metros de altura e dez de comprimento até 60 metros de altura por 500 metros de comprimento. As camadas de conchas, entremeadas de terra preta ou areia, são diferentes, o que sugere ocupação de vários povos, em épocas diversas. Além de alimentarem-se de moluscos dessas conchas, as sociedades sambaqueiras construíam esses montes como verdadeiros monumentos. “Todos os sambaquis em que eu trabalhei tinham indícios de que eram também utilizados em cerimônias fúnebres”, conta a arqueóloga Dorath Pinto Uchoa, de 78 anos, professora doutora de arqueologia e pré-história do Litoral da Universidade de São Paulo. Dorath coordena os trabalhos realizados em um sítio arqueológico na Ilha do Mar Virado, em Ubatuba, litoral de São Paulo. Ela recorda que, no início da década de 1990, um assessor do engenheiro que se diz dono da ilha, desabitada, encontrou um artefato diferente e enviou para o então Instituto de Pré-História da USP. As escavações foram iniciadas e as atividades estão a pleno vapor. Lá foram encontradas 24 | REVISTA DOS BANCÁRIOS FOTOS: WAGNER SOUZA E SILVA/DIVULGAÇÃO/MAE Com pincéis e pequenas espátulas os arqueólogos vão desvendando o passado em sítios no litoral paulista pontas de lanças, artefatos feitos com rocha lascada, ossos de animais, dentes, conchas. Também uma ossada humana dentro de uma urna funerária de forma oval. “Certamente esses artefatos e vestígios pertenciam a um grupo humano que viveu ali há mais de 2 mil anos”, diz. Dorath ressalta que o sítio, porém, não se trata de um sambaqui. “Encontramos indícios de que esses homens pré-históricos tinham noções rudimentares de navegação, pois localizamos em um outro sítio, na Rodovia Piaçaguera, perto da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), material de solo encontrado na ilha. Isso nos leva a deduzir que o grupo pode ter se deslocado por meio de embarcações”, explica. Ela calcula que os homens que por ali passaram tinham cerca de 1,60 metro de altura. A mortalidade infantil era alta, ocorrendo entre o período de nascimento até os 3 anos. Nos sambaquis, sempre há indícios de que os montes de conchas eram usados em rituais fúnebres e normalmente os mortos enterrados com algum artefato significativo”, lembra Dorath. Com o passar do tempo, as características nômades desses grupos foram cedendo espaço às ocupações sedentárias em aldeias. A economia forte passou a ser baseada em agricultura. “Os índios Tupi podem ter dizimado os homens pré-históricos, mas também terem aculturado grande parte deles”, diz a professora. Outra área arqueológica importante é o Vale do Ribeira, no sul do Estado, próxima ao Paraná, uma das únicas no país onde existem em quantidade significativa os sambaquis fluviais. E foi de um deles, batizado de Capelinha I, na bacia do Rio Jacupiranga, que os arqueólogos do MAE localizaram um crânio com cerca de 9,2 mil anos, o mais antigo material humano do Estado. A seu redor, conchas recolhidas confirmaram a idade do esqueleto préhistórico. O homem enterrado no sambaqui fluvial tinha cerca de 30 anos, 1,60 metro e traços físicos diferentes da maioria dos habitantes da pré-história nacional, normalmente de características orientais, mais semelhantes aos mongóis. Esse homem tinha traços mais graciosos, era pequeno. Na região, as ossadas mais velhas datavam de 8 mil anos e estavam em sambaquis costeiros. Muitos estudiosos acreditam que o ser humano chegou ao Brasil há 12 mil anos. A recolha e o estudo de materiais arqueológicos terrestres e subaquáticos encontrados nas cidades de Cananéia, Iguape e Ilha Comprida teve início há pouco mais de uma década. Entre os vestígios encontrados estão os de um navio a vapor afundado em 1858, dois canhões de ferro e sobras de um fortim do século XIX, além de inúmeros sambaquis. A necessidade de preservar a região exigiu que moradores e visitantes fossem bem informados a respeito de sua riqueza cultural. Para tanto, o Museu de Iguape foi criado e remonta a história do município através do material recolhido em suas terras e águas. ❚ LIÇÕES PARA O FUTURO FOTOS: PAULO PEPE Murillo Marx, diretor do MAE: trabalhos educativos, orientação para professores e profissionais requisitados por outros países. Ao lado, Sandra e uma das bonecas de argila dos índios Carajás PRECIOSOS CAQUINHOS DO PASSADO O Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE) foi criado em 1989 e hoje conta com 140 mil itens arqueológicos e etnográficos. Localizado ao lado do prédio da prefeitura da Cidade Universitária, funciona em instalações improvisadas e ainda não tem a visibilidade pública merecida. Por ano, apenas 15 mil pessoas visitam suas instalações. Segundo a educadora Carla Gibertoni, 95% delas são de estudantes de escolas públicas e privadas. O arquiteto, urbanista e professor Murillo Marx, de 60 anos, diretor do museu, explica que seus profissionais são requisitados para realizar trabalhos até fora do país, como no Uruguai. “O MAE ainda é um bebê de 16 anos, o irmão caçula dos quatro importantes mu- seus de São Paulo”, diz. Os artefatos do MAE são divididos em quatro categorias. Arqueologia Brasileira, Etnologia Brasileira (adquiridos em contato com tribos indígenas ainda existentes, como uma coleção de mil bonecas de argila dos índios Carajás conseguidas pela antropóloga Sandra Lacerda de Campos, algumas feitas no início do século passado), Etnologia Africana e Arqueologia Clássica. Murillo Marx explica que as peças que ficam em exposição não chegam a 1% do acervo. O museu também tem trabalhos educativos na favela São Remo, vizinha à USP, e para a terceira idade, além da orientação a professores e da exposição permanente Formas de Humanidade. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 25 PERFIL UM CERTO AGÊNCIA ESTADO ERICO O escritor gaúcho, cujo centenário de nascimento será comemorado em dezembro, conseguiu conciliar literatura de qualidade com alcance popular e luta por justiça social Por Anselmo Massad esmo nas tardes em que escrevia, ao som do rádio ligado, dos filhos e, depois, dos netos brincando, Erico Verissimo era conhecido por manter as portas de casa sempre abertas a visitantes, conhecidos ou não. Com uma produção vasta de romances, biografias, traduções e livros infantis, o escritor cujo centenário de nascimento se comemora neste ano (além dos 30 anos de sua morte) notabilizou-se como uma das grandes figuras da literatura brasileira do século 20. Com grande facilidade para criar empatia com as pessoas, além de grande escritor, tornou-se referência e conselheiro de diversos aspirantes às letras. O filho, Luis Fernando, também escritor, reforça o traço da personalidade: “Meu pai dizia que o melhor de ser escritor era a oportunidade de fazer amigos M 26 | REVISTA DOS BANCÁRIOS através dos livros, que muitas vezes o autor nem fica conhecendo”, brinca. O fato é que poucos escritores brasileiros “conheceram” tanta gente do modo como Erico, que experimentou grande sucesso de vendas antes ainda do auge literário. Erico Lopes Verissimo nasceu na cidade de Cruz Alta, no interior do Rio Grande do Sul, a 400 quilômetros de Porto Alegre, em 17 de dezembro de 1905. A separação dos pais o levou a Porto Alegre na juventude, onde tentou ser bancário, atividade descrita em seu livro de memórias Solo de Clarineta: “Minha mãe me conseguira um emprego numa casa bancária, onde, mediante um salário mensal de oitenta mil-réis, me encarregaram de escriturar o chiffrier, livro de importância menor, no qual cometi consideráveis erros e deixei inapagáveis borrões, jamais conseguindo acertar um balancete na primei- ra tentativa – coisa que deixava o nosso contador irritado. Sempre os números! Muito da literatura que produzi naquele tempo (mas afinal de contas eu era um desenhista ou um escritor?) me saiu em papéis com o timbre do Banco Nacional do Comércio”. Erico tentaria ainda uma empreitada no mundo dos negócios em 1926, em uma sociedade na Pharmácia Central, em sua cidade natal, depois do fracasso no banco. Reforçava o orçamento com aulas de inglês nos fundos da loja, já que a farmácia ia mal. Com a falência do negócio, em 1930, voltou a tentar a sorte na capital gaúcha. A publicação de alguns de seus contos em revistas rio-grandenses importantes e depois um emprego na Revista do Globo levaram-no a conviver com escritores como Mario Quintana, Augusto Meyer, Guilhermino César e outros, com os quais, à noite, freqüentava (“e contribuía para ela com meus silêncios”), a “rodinha de chope” do Bar Antonello. É na capital que Erico conseguiu se dedicar mais à literatura e publicar. Fantoches é o primeiro livro, uma compilação de contos de 1932, seguido de Clarissa, do ano seguinte. Esta última, assim como todas as doze de sua primeira fase, são um retrato do Rio Grande do Sul, da transição de uma realidade totalmente rural para a urbana. “A obra de Erico é muito vasta e, como toda obra vasta, é irregular”, avalia Flávio Chaves, professor de literatura brasileira da Universidade de Caxias do Sul-RS. “Alguns dos livros da primeira fase envelheceram como crônica de um determinado momento histórico”, avalia. Isso não quer dizer que sejam ruins. Chaves cita O Resto é Silêncio e Olhai os Lírios do Campo como obras de ótima qualidade, sendo que a última foi a mais vendida da história da literatura brasileira à época, com quase 1 milhão de exemplares comercializados em 1938. Esse é um aspecto que diferencia Erico de outros autores: a capacidade de criar personagens e tipos de grande identificação popular, por parecerem extremamente reais. Para Flávio Aguiar, professor de Literatura da USP e coordenador da reedição de toda sua obra pela Companhia das Letras, o recurso utilizado consiste numa economia de descrições, sempre apresentando paisagens e cidades por meio do olhar dos personagens e de seus sentimentos, o que os valoriza e os aproxima de quem lê. Assim como outros autores da geração de 30, como João Guimarães Rosa e José Lins do Rego, há um forte traço regionalista nas narrativas, mas que tocam questões universais. “O Rio Grande do Sul é o mundo de Erico”, lembra Aguiar. “Ele era discretamente apaixonado por sua terra de origem, mas veja bem: era um gaúcho ‘cidadão do mundo’, que tinha horror a qualquer provincianismo ou bairrismo”, conta. Em sua autobiografia, sobre sua relação com os leitores, conta que encontrou um “gauchão simpático” na cidade de Uruguaiana. Leitor, ele confessou que, ao terminar o capítulo de O Continente, uma das partes de O Tempo e o Vento em que é descrita a morte do Capitão Rodrigo, “não pôde conter o pranto, e naquele dia ficou em casa, de luto, como se tivesse perdido um membro da própria família”. Romance histórico Esse é um dos aspectos que ganha espaço na segunda fase da produção, inaugurada com sua obraprima, O Tempo e o Vento. É um romance histórico marco na literatura brasileira. A obra é dividida em três partes, publicadas em sete volumes, no total: “O Continente”, “O Retrato” e “O Arquipélago”. A história rio-grandense de meados do século 18 até a queda do presidente Getúlio Vargas, em 1945, é pano de fundo para histórias pessoais ficcionais. Os mais conhecidos são Ana Terra e Capitão Rodrigo Cambará, representantes das duas famílias que conduzem toda a narrativa. De certo modo, ambos são símbolos de gaúchos. Obstinada, Ana Terra passa por toda sorte de dificuldades. Estabelece a relação entre o vento (do título) e acontecimentos importantes, que lhe despertam a memória feminina. Quanto ao Capitão, um sinal da fibra e da coragem podem ser notados em sua convicção em recusar se confessar a um padre quando parecia agonizar, depois de ferido em duelo: “Nunca acreditei em padre, igreja, santo e essas coisas de religião. Veja bem, amigo Juvenal. Se eu morresse sem me confessar e depois descobrisse que havia outra vida... bom, eu sustentava a nota e agüentava os castigos porque não havia outro remédio. Se eu me confessasse e não morresse, ia ficar com uma vergonha danada de ter me entregado só por medo da morte. Todo mundo ia dizer que afrouxei o garrão, e isso, amigo, era o diabo... (...) Agora, se eu me confessasse, tomasse a comunhão e morresse... e se houvesse um outro mundo e Deus e mais essas lorotas todas, o que é que acontecia? Acho que Ele logo ia ver que eu tinha me confessado só por conveniência e aí não valia de nada o arrependimento. (...) E se eu morresse e não encontrasse nada do outro lado, então... então nada tinha importância e tudo estava muito bem”. A influência de O Tempo e o Vento transcende a literatura brasileira. O colombiano Gabriel García Márquez declarou que a cidade imaginária de Macondo, em torno da qual se desenrola seu Cem Anos de Solidão (1967), inspira-se na cidade imaginária de Santa Fé, onde se passa grande parte da ação do romance. Junto de outros autores latino-americanos, Erico e García Marquez fulguram entre escritores que participaram de uma revisão da identidade histórica do continente por meio da literatura. A partir dali, os livros tornaram-se mais e mais politizados. “O Prisioneiro (1970) discute tortura, e Incidente em Antares (1971) é um grito de liberdade, ambas em pleno regime militar”, aponta Chaves. O dito incidente na fictícia cidade de Antares é uma greve de coveiros. Não exatamente a greve, mas a conseqüência dela, após a morte de sete habitantes da cidade. Sem ter quem os enterrasse, eles voltam para devassar a vida política e moral da cidade, controlada por duas famílias tradicionais que se unem apenas no combate às lutas operárias. Sem nada a perder, ficam livres para revelar as mazelas e a podridão moral dos amigos e poderosos. Metáforas muito atuais. ❚ A separação dos pais levou Erico Verissimo a Porto Alegre na juventude, onde tentou ser bancário, atividade descrita em seu livro de memórias Solo de Clarineta REVISTA DOS BANCÁRIOS | 27 T R A D I C¿ Ã O SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA A tradição de encantar crianças não sai de moda e é retomada em livrarias, teatros e hospitais com interatividade e uso de objetos cênicos Por Clara Quintela 28 | REVISTA DOS BANCÁRIOS tribo se reúne ao redor do fogo, enquanto os caçadores contam como foi o dia. Milhares de anos depois, uma menina se prepara para entrar no mundo dos sonhos ouvindo histórias fantásticas no colo da avó. Num sábado à noite, as televisões são desligadas e os computadores desconectados para que, ao redor de uma pizza, o casal de amigos conte como foi a viagem de férias. Separados por dias, anos, séculos, os eventos relembram o fascínio do ser humano de contar e ouvir histórias. Reais ou fictícias, fantásticas ou dramáticas, tristes ou alegres. De gente, de assombração, de bicho, de coisa. Há sempre um gênero para cada gosto. Há quem goste de lê-las. Outros preferem ver e ouvir, no cinema ou no teatro. Mas o jeito primitivo, a forma oral, não sai de moda. Quando alguém diz “era uma vez”, é hora de prestar atenção. E os bons contadores procuram dar cor àquilo que des- A FOTOS: GERARDO LAZZARI ERA UMA VEZ A atriz Kiara Terra conta histórias numa livraria desde 2001 crevem. Mudam de voz, imitam os sons dos fenômenos atmosféricos e o rugido das feras. Atribuem significados a objetos. E se especializaram tanto que criaram uma profissão. É o caso da atriz Kiara Terra, 27, que conta histórias para crianças desde 1998. Tudo começou acidentalmente, quando algumas pessoas de uma editora a viram numa peça e a chamaram para fazer um teste. Kiara não parou mais. Desde 2001, trabalha sozinha numa das lojas da Fnac, rede de livrarias em São Paulo. Ela ressalta a importância de contar histórias hoje. “A gente vive num mundo com poucos espaços públicos e pouca convivência. Antigamente as famílias eram mais numerosas. Além disso, havia mais praças, mais quintais, mais brincadeiras na rua. Hoje, o pouco espaço que sobra fica na escola. Daí, as sessões de histórias que estimulam a criança a ouvir o outro, a trocar idéias”. Funciona mesmo. Os pequenos mergulham tão fundo na história que querem tomar parte da trama. Em vez de apenas ouvirem, debatem e propõem soluções criativas para os personagens. Kiara chama de “história aberta” esse método de contar um conto com a participação do público. “O motivo da história é também ouvir o que as crianças têm para dizer. Às vezes elas inventam ou contam coisas da sua própria experiência. E é comum a história final ficar mais interessante do que a escrita no livro”. Ela recorda respostas surpreendentes, dadas por crianças menores de 10 anos: – O que é o rio? – É um caminho que vai. – O que é o vento? – É o que leva tudo para cima. – Quem fez Deus? – Foi o Mistério. Manter o interesse de crianças com idades diferentes é outro desafio. “Eu costumo dizer que cada idade tem uma sabedoria. Mas nesse momento o maior ouve a pergunta do menor, o pequeno pode se interessar pelo que o grande perguntou, todos riem juntos e a experiência fica mais rica”. Como a atenção do público infantil se dispersa facilmente, Kiara usa objetos abstratos ou utensílios comuns de cozinha. A platéia atribui significados a eles à medida que se fazem necessários à trama. “É uma cobra”, diz um menino de 3 anos quando perguntado sobre um pedaço de cano. Um fio de lã pode virar a vida e as memórias de uma avó, onde estão amarradas diversas lembranças como um saquinho de pão e fitilhos de cetim. Reais ou fictícias, fantásticas ou dramáticas, tristes ou alegres. De gente, de assombração, de bicho, de coisa. Há sempre um gênero para cada gosto O tapete mágico Outro método de contar histórias é o do grupo de teatro carioca Os Tapetes Contadores, que prefere usar cenários de tecido, cheios de bolsos, por onde os personagens passeiam e a história se desenvolve. Nascido em 1998, o grupo é formado por sete amigos que se conheceram na faculdade de Artes Cênicas da UniRio. Depois de algum tempo de trabalho juntos, Os Tapetes se estruturaram como grupo e ganharam o mundo, apresentando os trabalhos de contação de histórias. Além de apresenREVISTA DOS BANCÁRIOS | 29 FOTOS: GERARDO LAZZARI ALEGRIA E DISTRAÇÃO Márcia (acima) e Maria José, voluntárias da Associação Viva e Deixe Viver, contam histórias para Tiago e Ben Hur 30 | REVISTA DOS BANCÁRIOS tações no Brasil, também participaram de festivais na América Latina. “Contar histórias é importante porque o ser humano é ávido por experiências, principalmente a criança, porque ela está descobrindo o mundo. A história é uma maneira de estabelecer uma relação entre o adulto e a criança para passar a sabedoria dos mais velhos através da narrativa”, diz Warley Goulart, um dos integrantes do grupo. O grupo reduz a interação e prefere que as crianças mais assistam que intervenham. Apesar disso e da utilização de recursos cênicos, os atores garantem que o resultado final está longe do teatro. “A gente não mantém uma ‘relação espetacularizada’. Não usamos os recursos do teatro, como iluminação especí- fica e trilha sonora, embora às vezes criemos músicas para contar determinada história. Tudo se baseia numa relação bem simples, que é o ato de narrar e sugerir uma animação com o material”, explica Warley. Ele também descarta qualquer semelhança com o teatro de bonecos, visto que não existem diálogos entre os personagens; é o narrador que promove a comunicação entre eles enquanto a história se desenvolve. Então, para que usar objetos? Assim como Kiara, Warley diz que isso prende a atenção das crianças. “A maneira como a gente trabalha com a palavra e com o material faz com que elas fiquem mais mergulhadas no enredo. Por mais que queiram participar, sabem que escutar é muito importante”. Aí é possível que a história cumpra sua função pedagógica, que é trabalhar valores. “Quando uma avó conta uma história, ela propõe uma questão para o neto”, diz Warley. “A história é um pretexto para tocar num assunto de uma maneira abstrata e não falar diretamente, ‘você não deve falar com estranhos porque é perigoso’ ”. Há sempre a possibilidade de haver na platéia uma criança mais dispersa, que demora a entrar no clima. “Eu percebo que é uma questão sociocultural. Quando a gente se apresenta numa comunidade carente, normalmente a criança respeita o universo imaginário que se propõe para ela. Tem mais abertura. O ser humano é ávido por novidades, quando você propõe algo novo, ela compreende que aquilo é um espaço misterioso, um lugar vivo e se interessa. Ela se pergunta ‘o que é isso?’ e quer tomar parte. É uma maneira responsável de se relacionar com elas”. gostam bastante. No hospital elas ficam ociosas e as histórias levam um pouco de distração a elas”. As crianças adoram. Ben Hur, 7 anos, está internado há quase quatro meses. A mãe, a professora Marcklane Metzker, manteve a rotina de estudos para que o filho não tivesse que repetir a 2ª série. Mas nas tardes de quarta-feira há outra atividade. As contadoras ficam 20 minutos com Ben Hur, que no fim também lê uma história para elas. “É um paliativo, mas ajuda. Ele passa por uma rotina pesada para um menino de sua idade e fica cabisbaixo na maior parte do tempo, mas a gente vê uma mudança no humor quando elas chegam aqui”, diz a mãe. Tiago dos Santos Alves, 2, companheiro de quarto de Ben Hur, participa da agitação, mesmo sem entender. Ele fica em pé na cama ao lado, segurando na grade e sorrindo com as duas visitantes coloridas. Depois é a vez dele. A história escolhida veio num livro cheio de figuras em relevo sobre um papagaio. Ana Lina de Souza Alves, tia de Tiago, também é só sorrisos: “Distrai a gente, né?”. Ela não foi a única adulta a se divertir naquela tarde. A agente de turismo Terezinha de Jesus Lopes Santos, 54, estava internada há 11 dias quando recebeu as contadoras que lhe relembraram a lenda da serpente adormecida no subsolo da sua terra natal, São Luís, Maranhão. Depois foi a vez de Terezinha, que, como boa agente de turismo, falou da história de Ana Jansen, também personagem famosa do folclore local. No final da sessão, paciente e contadoras enriqueceram suas histórias. “Foi muito bom, muito gratificante. Um momento de prazer. Quem está passando por um problema como eu, sempre sente aquela tristeza. Faz bem para a alma e para o físico quando chega alguém para conversar com a gente”, diz Terezinha. “Eu não pensei que ia rir tanto e ficar tão bem hoje.” ❚ Há sete anos foi fundada a Associação Viva e Deixe Viver, uma ONG voltada para a formação de contadores de histórias, que presta serviços em diversos hospitais em São Paulo FOTOS: DIVULGAÇÃO Histórias para o coração Prova de que sempre há espaço para uma boa história é o crescimento dessa atividade longe de espaços relacionados à educação e cultura. Há sete anos foi fundada a Associação Viva e Deixe Viver, uma ONG voltada para a formação de contadores de histórias, que presta serviços em diversos hospitais em São Paulo. Os voluntários fazem curso que dura um ano, em que são avaliadas a dinâmica e a assiduidade, até serem considerados aptos a contar histórias mundo afora. Uma das contadoras aprovada após a seleção foi a professora Márcia Freitas. Mesmo com dois empregos, Márcia dedica as tardes das quartas-feiras para contar histórias para os pacientes da ala pediátrica do Hospital do Câncer. Formada em Pedagogia, sempre deu importância ao hábito da leitura e colabora com esse projeto há quatro anos. “As histórias cativam as pessoas, grandes ou pequenas, porque assim você vive outras realidades”, diz. Como o público-alvo são as crianças, o uniforme é característico. Márcia usa um jaleco com bonecos aplicados, tiara de plumas e uma sacola cheia de livros para faixas etárias diferentes. O trabalho com pessoas doentes tem regras: nunca mencionar a doença, não perguntar há quanto tempo o paciente está internado ou sobre o tratamento, nem falar em “semana que vem”. “O propósito é simplesmente contar histórias, não lê-las. O contador tem que envolver o ouvinte”, explica Márcia. Outra contadora da Associação e parceira de Márcia nas tardes de quarta é a funcionária pública aposentada Maria José Limberto. Ela ficou sabendo do trabalho desenvolvido pela ONG há dois anos pelo rádio. Ao ouvir a história do Uirapuru contada por outro voluntário, resolveu participar. Há dois meses, Zezé, como ela prefere ser chamada, conta histórias no hospital com auxílio de dobraduras. “As crianças CENÁRIOS DE TECIDO A turma carioca do Os Tapetes Contadores prende a atenção da criançada com objetos e personagens de pano REVISTA DOS BANCÁRIOS | 31 VIAGEM À MODA INGLESA Lugar de onde se vê o mar, Paranapiacaba leva a um passeio pela história e pelas trilhas da Mata Atlântica Por Luciana Mendes. Fotos de Jailton Garcia ercada pela Mata Atlântica, a Vila de Paranapiacaba encanta por seu estilo europeu, com casinhas avermelhadas de madeira, que dão a sensação de conhecer uma típica vila inglesa. No meio da tarde, o forte nevoeiro reforça a impressão. Construída a partir de 1860, surgiu como acampamento para os trabalhadores das obras da ferrovia, a São Paulo Railway. Mas Paranapiacaba, que significa “lugar de onde se vê o mar”, hoje proporciona uma viagem no tempo e um retorno à natureza. A vila tornou-se parte do patrimônio histórico por decisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). Paranapiacaba também está entre os 100 monumentos mais importantes do mundo, de acordo com a World Monuments Fund, uma organização não governamental norte-americana, que atua na área de preservação do patrimônio histórico e cultural. Tudo começou em 1856, quando o governo brasileiro concedeu autorização para que Irineu Evangelista de Souza, o Visconde de Mauá, buscasse no exterior uma C 32 | REVISTA DOS BANCÁRIOS Castelinho: preservação da memória Até no “fog” a Vila remete aos ingleses companhia disposta a construir uma estrada de ferro de Jundiaí, importante ponto de comunicação com o interior do Estado, ao porto de Santos. Tempos depois surgiu a SPR, financiada com capital nacional e inglês, com direito a explorar o trecho por 90 anos. As dificuldades para a subida da serra deram origem ao acampamento dos operários formado por casas de pau-a-pique e sapê. Foram ocupados dois pontos, um deles no Alto da Serra, embrião da futura Vila de Paranapiacaba. Sem planejamento, o acampamento tinha traçado irregular e ficou conhecido como Vila Velha ou Varanda Velha, onde se instalavam os trabalhadores e prestadores de serviços. Em 1874, a partir da pressão do governo imperial, a empresa transformou o antigo pátio de manobras local em uma estação. A partir de 1895, após a duplicação da estrada, a empresa construiu uma vila planejada para abrigar os trabalhadores. Foram trazidos da Inglaterra muitos profissionais, como engenheiros, técnicos e também os materiais utilizados para a construção do local. Isso fez com que a vila, na época chamada de Alto da Serra, adquirisse um ar britânico e um relógio nos moldes do famoso Big Ben, assim como o original, construído Museu Funicular na Inglaterra em 1888. Em 1897, foi inaugurada a Vila Nova ou Martin Smith, homenagem a um dos primeiros diretores da companhia. Dividida em quadras, com as vias principais, secundárias e vielas, obedecendo a uma hierarquia. Acima de todas, a residência do engenheiro-chefe, o Castelinho, que tornouse restaurante e garante uma vista panorâmica. Abaixo, as casas dos engenheiros, seguidas das construções geminadas de duas moradias, destinadas aos chefes da estação, e as geminadas de quatro residências, ocupadas pelos ferroviários que tinham famílias. Finalmente, os alojamentos para solteiros, que tinham de dez a vinte quartos. O Museu Castelinho hoje expõe objetos e instrumentos de trabalho dos ingleses e funciona como sede do Centro de Preservação da Memória de Paranapiacaba. Há o Museu Funicular, instalado nos galpões que abrigaram as máquinas para movimentar as locomotivas. Ecoturismo Localizada na região sudeste do município de Santo André, além das edificações históricas, há também ótimas opções para os amantes de ecoturismo. Em 2002, o município de Santo André comprou a vila e, Residências foram transformadas em hospedarias O Clube Lyra foi todo restaurado Monitores estão em todas as partes... aos poucos, vem transformando o local. Foi atrás de parceiros para trazer de volta um pouco do antigo charme à vila, cenário do primeiro jogo de futebol do país, promovido por Charles Miller, funcionário da São Paulo Railway. Entre as ações estão a recuperação de prédios históricos e o treinamento dos habitantes para receber os turistas. Entre os imóveis reformados estão a Casa Fox, construída entre 1897 e 1901, o Mercado Municipal, de 1899, o Clube União Lyra Serrano, de 1938, o Castelinho, de 1897, e o relógio, de 1898, fabricado em Londres, que ainda mantém o mecanismo interno original. Atualmente são cerca de 1,5 mil moradores, sendo que muitos deles passaram Tony Gonzagto: recebendo em casa ...para atender ao renovado interesse pela Vila por programas de qualificação para trabalhar com os turistas, que são recebidos em suas próprias casas. Nove das 13 hospedagens existentes oferecem pernoite e café da manhã. Os preços são acessíveis. Também há nove ateliês-residência, onde os artistas abrem suas casas e expõem trabalhos. É o caso do artista plástico Tony Gonzagto, de 59 anos, que há cinco mora em Paranapiacaba. “É muito bom trabalhar e morar no mesmo local. Receber os turistas dentro da minha casa. Estou sempre conhecendo pessoas bacanas e expondo minhas peças”, diz. O mesmo sistema foi implantado na área de alimentação, onde 33 casas da vila servem comida caseira, quitutes, petiscos, lanches, chás e bolos. Boa pedida é saborear na Flor da Benedetti o croquete de jabá com provolone, além da pinga de aquário, que leva gengibre e mel. A cachaça fica exposta em um aquário vertical. O cliente mesmo pode se servir. Outra opção é o passeio no Parque Natural Municipal Nascentes de Paranapiacaba, onde funciona o sistema de captação de água da vila e são desenvolvidas atividades de educação ambiental com estudantes. São cerca de 4 milhões de metros quadrados de Mata Atlântica preservada. História e natureza se misturam. Há três tri- Turistas tomam as ruas durante o festival de inverno lhas no parque com visitação controlada, realizada com monitores ambientais, moradores da vila que foram capacitados pela prefeitura em conjunto com o Instituto Florestal. O parque fica aberto à visitação pública de terça a domingo, das 8h às 17h. Na Trilha da Pontinha, com pouco mais de 1 quilômetro, é possível apreciar muitas espécies da flora, como o manacá-daserra e as bromélias. Na Trilha da Água Fria, o percurso é de 1,2 quilômetro pela mata e dura cerca de 30 minutos, chegando à cachoeira do mesmo nome. Na Trilha da Comunidade, a caminhada é mais longa, 1h30 de subida, mas garante uma paisagem maravilhosa do topo da serra. ❚ SERVIÇO Como chegar de carro: seguir pela Via Anchieta até o km 29 (placa para Ribeirão Pires), entrar na SP 148 (Estrada Velha de Santos) até o km 33 e pegar a Rodovia Índio Tibiriçá (SP 31) até o km 45,5. Daí pegar a SP 122 direto a Paranapiacaba. Ônibus: do Terminal Rodoviário de Santo André (Tersa) a cada 30 minutos; ou de Rio Grande da Serra a cada hora. Trem e ônibus: a cada 20 minutos saem da Estação da Luz, tendo como trecho final a Estação de Rio Grande da Serra. Depois pegar o ônibus da integração de uma em uma hora. REVISTA DOS BANCÁRIOS | 33 ARTIGO TRANSPARÊNCIA NOS FUNDOS DE PENSÃO Participação dos trabalhadores aumenta controle na utilização e aplicação de recursos para que fundos cumpram sua função Por José Ricardo Sasseron s fundos de pensão brasileiros começaram a ser criados na década de 70 e garantem aposentadoria complementar a quase 2,5 milhões de trabalhadores. Concebidos no regime financeiro de capitalização, acumularam quase 300 bilhões de reais nesse período – soma que chama a atenção e desperta interesses poderosos. De início, eram controlados exclusivamente pelas empresas patrocinadoras, que indicavam todos os seus dirigentes. Como grande parte deles era patrocinada por empresas públicas, tornava-se muito grande o poder de interferência de governos e de empresários que viviam à sombra desses governantes. Assim acumularam-se denúncias de investimentos mal feitos e prejuízos aos participantes. Se, nos fundos de estatais essas denúncias vinham à luz, nas empresas privadas nem apareciam, pois a imagem de caixa-preta se lhes aplicava muito bem. Ao verem seu patrimônio em risco os trabalhadores, por meio de seus sindicatos e associações de aposentados, passaram a reivindicar participação nos organismos de gestão. Desde o início da década de 80 vieram conquistando o direito de eleger diretores, conselheiros deliberativos e fiscais e dividiram o poder absoluto das empresas, até que o Congresso Nacional reconheceu a importância desse espaço democrático em 2001. Os parlamentares aprovaram a nova legislação, que obrigou os fundos de empresas estatais a cederem metade das vagas nos conselhos deliberativo e fiscal para participantes eleitos pelos trabalhadores e um terço das vagas nos fundos de empresas privadas. Com esse avanço, a transparência vai se implantando e os participantes firmam sua convicção de que as reservas previdenciárias são de sua propriedade, e não da empresa que fez parte das contribuições. A fiscalização passa a ser uma preocupação central e permanente e as informações aos participantes são obrigatórias. Esse movimento de democratização produziu muitos frutos. Hoje todo participante tem, obrigatoriamente, de receber cópia de estatutos, regulamentos, balanços e balancetes, informações sobre investimentos e rentabilidade, valor de suas reservas, gastos com consultorias e advogados, entre outras informações. Os investimentos devem ser feitos segundo critérios técnicos e obedecem a pa- JAILTON GARCIA O José Ricardo Sasseron é presidente da Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão (Anapar) e conselheiro deliberativo eleito da Previ 34 | REVISTA DOS BANCÁRIOS râmetros estabelecidos em legislação, os fundos têm de se submeter a auditoria interna e externa e a fiscalização permanente da Secretaria da Previdência Complementar (SPC). São também obrigados a criar mecanismos de controles internos e implantar processos de decisão que deixem claras as responsabilidades de funcionários e dirigentes, que podem ser punidos pessoalmente por eventuais irregularidades. Até 2001, as penalidades por irregularidades praticadas nos fundos recaíam sobre as próprias entidades. A partir daquele ano, dirigentes, funcionários e até consultores podem arcar com pesadas multas, caso pratiquem algum ilícito ou serem inabilitados para o exercício de atividades em fundos de pensão. Mas mesmo com todo controle e fiscalização, os fundos não estão imunes a perdas. Por exemplo, vários deles sofreram prejuízos no Banco Santos – em alguns casos por deficiência nos critérios de análise de risco; em outros, por má-fé de dirigentes e funcionários; e, em outros, pela sedução das elevadas taxas pagas pelo banco em fase pré-falimentar. Houve demissão de dirigentes e gerentes, multas foram aplicadas pela SPC e processos de decisão precisam ser revistos. As perdas aconteceram tanto em fundos patrocinados por empresas privadas como por empresas públicas federais e estaduais. As mais freqüentes aconteceram exatamente nos institutos de servidores públicos municipais e estaduais – cujos participantes não conquistaram o direito de eleger representantes. Como efeito benéfico da transparência, podemos citar outro exemplo: a derrota imposta pelos fundos de pensão ao banqueiro Daniel Dantas. No processo de privatização das empresas de telefonia do governo FHC, dez fundos de pensão se tornaram sócios de Dantas e do Citigroup na Brasil Telecom, Amazônia Celular e Telemig Celular. Ajudado e protegido por FHC, Dantas montou uma complicada teia de fundos de investimento e firmas de papel para controlar as empresas, em prejuízo dos fundos. Liderados pela Previ, os fundos estão vencendo longas disputas judiciais, afastando Dantas do controle das teles e recuperando o valor dos investimentos. E isso só foi possível graças à interferência decisiva de dirigentes eleitos pelos trabalhadores na Previ e em outros fundos. ❚