Ágora Palestra - Git Extremadura

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Ágora Palestra - Git Extremadura
Ágora
Palestra
NOVOS ARES?
ÚLTIMAS TENDÊNCIAS DE FLAMENCO E FADO
Página 212 (blanca)
NOVOS ARES?
ÚLTIMAS TENDÊNCIAS DE FLAMENCO E FADO
JOSÉ ANTONIO MORENO
FADOS KEEP FALLING ON MY HEAD. Era um dia bom para calçar botas. O primeiro em que chovia a sério depois do Verão. De facto havia meses que não
as calçava. E parecia-me uma coisa tão curiosa que sorri ao pensar que as
minhas passadas ressoavam no chão espelhado daquele salão do teatro López
de Ayala de Badajoz com um ar surpreendentemente flamenco. Não sei se
por inércia ou empatia.
Também era uma tarde triste para falar de tristezas. Ou era o que eu
pensava... Quando consegui chegar ao teatro as pessoas esperavam o começo, conferencistas, público, responsáveis pela coordenação, câmaras de televisão... Por um momento pareceu-me que a união dos tectos altos com o
plano inferior recreava um fresco ou, melhor ainda, um tapete goyesco do
Palácio do Escorial, quase imóveis, aparentando naturalidade. Como na Feria
Chica, a dos ciganos de Mérida, as pessoas uniam-se em círculos. Ou separavam-se, conforme se encarem as coisas. Os círculos do fado eram breves,
discretos, risonhos, amáveis.A gente do flamenco estava como Espanha, mais
dividida. Eram, em geral, mais numerosos e ruidosos, sorridentes como o
músico Paco Ortega. Ou sérios, misteriosos e elegantes até à gravidade,
como o responsável pela marca “Tablao” de BMG Ariola, Juan Verdú, vestido de fato escuro e lenço ao pescoço, como se fosse o senhor que recebe
a renda mensal dos inquilinos do López Ayala. A fadista Mafalda Arnauth
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sorria sem cessar. Marce Solís desfazia-se em atenções para com todos, mesmo antes de arrancar com o seu papel de moderador. Outros, simplesmente, faziam de despistados que farejam o terreno onde conviviam dois mundos tão paralelos como divergentes: o flamenco e o fado.
Descobrir os ares recém-chegados dos dois estilos musicais característicos da Península Ibéria parecia-me uma oportunidade apaixonante. Sobretudo porque um comité de peritos conscienciosamente seleccionados não
podia defraudar-me. Cantores, jornalistas e críticos que defenderiam – ou
não – a presença de novas tendências nas quais estes estilos são, por direito,
bandeiras musicais de Portugal e Espanha. Pensei então que falaríamos de
folk entendido como a música, a nossa música, com raízes; mas, claro está,
como iria espetar isso a um flamenco ou a um fadista! Tanta vida e tanta morte não podiam caber numa palavra tão feia que quase soa a curso de alemão
por correspondência... Folk!
Mas estávamos prestes a começar.
AGORA PALESTRA. NOVOS ARES? O NOVO FLAMENCO E O NOVO FADO. O comité de seis homens e uma mulher permanecia por detrás da gigantesca mesa
rectangular, deixando do outro lado os que ali se tinham congregado para
os ouvir. Ela, Mafalda Arnauth, fadista de prestígio, jovem e com formação,
a encarnação do fado na mesa, canta de uma forma muito diferente das suas
percursoras. Não passou necessidades como as de antes e, por isso, porquê
chorar? Corre tudo bem. O novo fado já não sofre, já não é triste. Diz. As
suas musas chamam a atenção para vivências pessoais, temas habituais, vulgares, isso a que chamamos a actualidade. Musicalmente, permite-se o luxo
de coquetear com o jazz, com o pop e, de passagem, de prestar homenagem
aos fadistas que mais a influenciaram, a propósito, quase sempre homens,
descartando assim a ideia da mulher cantora de fados como a única imagem que se exporta do género. Ela canta para exorcizar a tristeza, mas procurando um resultado claramente revelador: aquilo que interpreta não é
importante, a música é sentimento e este é um estado de alma. As diferenças entre o seu estilo e o standard marcado por Amália Rodrigues passam
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pela diferença das suas origens sociais. O berço de Amália Rodrigues estava
rodeado de marinheiros, prostitutas e proxenetas. O de Mafalda Arnauth não.
Estranha forma de vida (Amália Rodrigues)
Que estranha forma de vida
Tem este meu coração
Vive de vida perdida
Quem lhe daria o condão
Que estranha forma de vida
Aproximamo-nos assim da expressão viva do novo fado na primeira
pessoa. Começávamos a mesa redonda deste Agora Palestra com um doce
– embora não com Dulce Pontes –, como a abertura que nos antecipa desde o princípio os acordes das melhores canções, que virão depois. A nossa
atenção estava completamente presa, embora a única razão concreta para
começar com Mafalda Arnauth fosse a prova de som que a esperava para o
posterior concerto no teatro.
A questão é: por que razão despertam a nossa atenção essas carícias aos
novos ares se, na realidade, sempre existiram? De facto todos os clássicos se
forjaram através de influências, ora escolhidas, ora obrigatórias. Ou será que
a música popular se cria nos conservatórios? Se não queremos ganhar um
impropério, não devemos pedir aos puristas que gostem de músicas que
contêm apenas um ingrediente autêntico. Devemos ter cuidado em distinguir entre aquilo que é e aquilo que apenas soa a fado. Há até quem pense
que tudo o que se faz em Portugal é fado. Como os Madredeus. Embora
esta ideia seja uma verdadeira homenagem ao sempre erróneo universo dos
clichés, segundo o historiador e jornalista Nuno López.
O caso do flamenco é idêntico nas suas circunstâncias. Façamos um pouco de história. É sabido que ciganos, árabes, judeus e cristãos colaboraram
na sua criação. Uma mestiçagem determinada pelo chicote do século XVIII,
em que estes conviviam inclusivamente com os negros que desembarcavam
na costa andaluza.Acrescentemos a isto as milongas, as guajiras ou as alegrias,
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que são produto da emigração para a América. Raças diferentes uniam-se
como raízes emaranhadas que resultam num mesmo caule. Os seus ritmos
vêem-se claramente reflectidos em alguns palos flamencos. Há apenas que
buscá-los nos recantos da melodia, nas palmas e nos seus silêncios. E o ar
litúrgico conserva ainda longínquas paisagens interiores que hoje em dia se
custam, e muito, a encontrar. Embora a espiritualidade ronde cada lamento do flamenco e do fado. O sevilhano Juan Diego Martín Cabeza, jovem e
perito na matéria, vai mais além na sua reflexão e leva o quejío ao eterno
caldo das vanguardas. Se Picasso e tantos outros eram amantes da arte cigana, é absurdo, e quase egocêntrico, pensar no século XX como o momento único da revolução do flamenco.
Cheguei à conclusão de que aquilo que conhecemos como clássico é o
fruto de uma evolução constante. Então muitas perspectivas começaram a
mudar. É aí que a Internet, os meios de comunicação, a rádio, a televisão e,
claro, a fusão imperante no estilo dos grupos e cantores novos se convertem em elementos que desenham e reconstroem o retrato do fado e do flamenco de hoje. Parece que podemos fazer-nos amigos dos novos ares e até
tomá-los como apoio para os futuros clássicos. A questão era lançada por
Marce Solís: estes novos sons, as novas tendências, enriquecem ou destroem
o original?
Distingamos. O flamenco clássico não se vai perder, é uma forma de vida,
uma maneira de sentir com conotações aceites e invariáveis. Mas se salvarmos o consensual como clássico – que, de resto, está muito a salvo, por uma
questão que comentarei mais adiante –, só podemos esperar que os jovens
ditem sentença, como afirma Ortega, porque eles marcarão a linha, quer
queiramos, quer não: é estúpido aceitar ou rejeitar a mudança. A rua manda...
HÁ QUE GRITAR, OU SUSSURRAMOS AO RELÓGIO? O RASTO DE CAMARÓN. Os
peritos afirmam que extraímos mensagens de dor e tristeza de quase 90%
das músicas do mundo. A Extremadura contribui para o flamenco clássico
com os jaleos e os tangos. Porrina de Badajoz foi o primeiro de uma estirpe
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que hoje em dia continua a encher-se de músicos de arte. O caso de Paco
Ortega é diferente. Não é cigano e canta “quase cigano”, como diria Raimundo entre gargalhadas, embora ele se orgulhe de ser flamenco por direito. Se descobriu Niña Pastori e compôs para Camarón, alguma coisa de flamenco deve ter. Em 1987 publicou um disco do então chamado “flamencopop” com Isabel Montero. Por esses anos aparecia na televisão e as pessoas
conheciam-no na rua. Não foi o seu primeiro trabalho, já em 1974 este jienense audacioso nos acordes e nos corredores das empresas discográficas
lançara no mercado um primeiro disco, com fortuna desigual. Com novas
canções em 2004 e uma nova marca recém baptizada como “El Pescador
de Sueños”, Paco Ortega é um dos que sabem realmente onde se encontra
o novo em Espanha, o bom e o mau, o bonito e o barato. Ele institucionalizou um termo que engloba aqueles que falam de “flamenco-pop-rock-fusãochill out e tudo o mais que vier”: o “flamenquito”. O termo é mais que aceite e, segundo o próprio Ortega, a sua novo marca nasce já arruinada, embora com a “ideia de levar a bom termo projectos lindíssimos e novos artistas”, e olhando para o futuro, como é o caso do pianista flamenco Pedro
Ricardo Miño, com quem se estreia.Agora há que trabalhar muito mais do
que antes. “Para que me vejam tenho que fazer 40 televisões e nem assim
a promoção é suficiente...”. É esta a vida de um novo flamenco com experiência.
O inconformismo é inerente aos novos tempos. Um colega jornalista perguntou uma vez a Tete Montoliu, um dos melhores pianistas da história do jazz na Europa, o que se passava se, ao dirigir o dedo para uma
tecla, se enganava e carregava noutra. Ele respondeu:“... é que eu procuro sempre a tecla do lado...”. O inconformismo dita a revolução das normas e cria as tendências dos novos sons. E dizem os puristas que cada velho que desaparece é um livro que se queima, um disco que se parte. Que
cada mudança que ameace a tradição formal não produz nada puro e os
seus efeitos são nocivos. Para Martín Cabeza, defensor da permanência do
clássico sem renunciar a correntes paralelas, a inimizade entre o flamenco
puro e o novo começou há 20 anos, quando Camarón se converteu em
Deus. E creio que é verdade. Porque se se começar a tomar mais a sério
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o recém-chegado que os pais da pátria estamos perante uma revolução. O
curioso é que o amigo das correrias de Camarón, Roncapino, defende o
canto com rectidão, uma guitarra e umas palmas, o demais não é flamenco,
diz. Para ele, ouvir uma seguirilla interpretada com uma guitarra eléctrica é
como ver um toureiro em fato de treino na praça. Mas a verdade é que
foram os jovens de então que escolheram José Monge Cruz, Camarón de
la Isla, não os puristas. Ele, com o seu cantar suavezinho e com mais peninha que a negra pena enrolou toda a sua geração a ponto de conseguir
que todos, ou uma ampla maioria dos que apareceram depois dele, buscassem a perfeição na identidade exacta do seu estilo, sem mudar nem um átomo. Camarón foi visto e venerado, novo e clássico ao mesmo tempo. Privilégio dos génios de uma vez e nunca mais. Ele criou o sussurrar flamenco e, sussurrando, abriu as veias à música. Já não fazia falta ter os pulmões
de um Golias para encontrar o quejío. Com o sussurro Camarón dissecava
a alma.
Os nossos sonhos (Camarón de la Isla)
Amo-te, minha vida...
Quero navegar contigo
Num mundo novo
E voar no espaço
Enrolado no teu cabelo,
E beijar-te entre as nuvens
Acariciando o teu corpo,
E voando, voando, voando,
E fundidos teus pés com os meus,
Com milhares de estrelas
Que iluminem o caminho
Dos nossos sonhos.
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INFLUÊNCIAS. TUDO MARCA, TUDO IMPORTA. Os novos ares refrescam a cara
ao grande público. Falar disso é dar nome às novas tendências do flamenco
neste momento histórico, como fez Ortega com o “flamenquito”. Em contrapartida, não se sabe com exactidão donde provém etimologicamente a
palavra flamenco.Aquilo que actualmente denominamos assim tem uns 150
anos e evolui de uma maneira surpreendente, tudo o afecta, tudo o muda.
A revolução é feita por aqueles que têm arte.Voltemos outra vez ao passado. Nas primeiras décadas do século XX, a Niña de los Peines, nas suas
actuações pelos teatros, acrescentou um piano; aliás, outra mudança notável, foi essa que pressupôs passar da tasca aos grandes palcos, durante o mesmo período. É claro.As novas tendências nutrem-se de actos heróicos. E nos
antípodas do conceito que nos ocupa, também a permanência sem fazer
concessões às modas dos clássicos tem a sua dificuldade. Não é por acaso
que jovens como Arcángel ou Estrella levam até ao extremo pormenor as
linhas heróicas do flamenco, embora, ainda segundo Martín Cabeza, quando as interpretam as façam imediatamente suas, e uma pessoa esquece-se do
pai, como é normal. Ninguém vive numa coisa que não seja o presente, e
ninguém se livra do novo, por muito que queira.
Ruy Mota, responsável pelos ciclos de música popular da Expo Lisboa 98, afirma que o fado esteve intimamente ligado à ditadura de Salazar,
exactamente como o país de guitarra e pandeireta que vendeu Franco fora
de Espanha, tão difamado no novo milénio.Apesar disso, o fado e o flamenco
agradam hoje aos jovens porque eles continuam a cantá-los. A resposta ao
porquê destes dois estilos soa a ranço e é muito simples: em ambos os casos
foram os portadores das mensagens de tristeza, dor e esperança das pessoas
que viveram a segunda guerra mundial e a guerra civil espanhola. Os tempos mudam e os meios de expressão acompanham-nos. Os velhos cantam
velhos fados, os novos compõem outros novos. Eram tempos tristes de tristes canções. Com as mãos abertas e quase como quem reza em pé cantam
também os fados de sempre, nas velhas tascas de Lisboa, fadistas velhos e
jovens. Até crianças.
O tempo é um factor determinante no tema que nos ocupa e converte-se num inimigo natural quando fica muito por descobrir. E esclareço isto
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porque naquela tarde o tempo foi a razão pela qual não pudemos abordar
a inter-relação entre flamenco e fado em plena raia, que é um dos fenómenos mais interessantes dos últimos anos. Graças ao Gabinete de Iniciativas
Transfronteiriças vou encontrando a correr montões de artistas extremenhos
que se deixam seduzir pelo doce sabor das lágrimas do fado. Para recordar
num segundo mencionarei apenas Candi2 Banda, Perroflauta, Acetre,
Manuela Roque ou, aquilo que do meu ponto de vista já é o cúmulo: a
família de guitarristas Vargas, que complicou incrivelmente as coisas ao criar
o Flamenfado, fusão cozinhada a vapor dos dois lados da raia hispano-lusa.
Isso sim é um casamento exemplar. Quem sabe se dentro de duas décadas
o Flamenfado se converterá em mais um palo do flamenco. É um bom momento para lembrar que os clássicos de hoje foram os revolucionários do seu
tempo.
A propósito, aos numerosos palos do flamenco correspondem duas, as duas
únicas linhas do fado: o de Coimbra e o de Lisboa. O primeiro costuma ser
apresentado como a cara amável deste canto de sereias e o de Lisboa aparece amarrado ao costado amargo da despedida por a capital portuguesa ser
um porto de mar, cenário idílico para lamentos, lágrimas de tristeza e esperanças chegadas do oceano Atlântico. Neste rosário de destinos forja-se a
emoção do fado. É que o fado português também goza da credibilidade que
outorga o ser filho do povo. De facto, a Casa do Fado e da Guitarra portuguesa pediu à UNESCO que considere o fado típico lisboeta património
oral e imaterial da humanidade.As suas origens populares convidam à identificação imediata de modos de vida que o povo reconhecia e protagonizava mais ou menos de perto, e convertem-no em testemunho excepcional
de uma expressão cultural viva, que tristemente corre o risco de desaparecer.
DEFINA-ME “NOVO”, COMPADRE. Segundo o perito Nuno López, não podemos falar de um “Novo Fado”. Embora sim de uma constante evolução
do género. Lenta, mas firme. Salvo uma excepção. Ruy Mota, quase como
anedota, abriu-nos a porta a certas experiências que não gozaram de força
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suficiente para ocuparem um top. Com a intenção de revitalizar o género
durante a década de 70, realizaram-se várias tentativas de misturas com pop,
rock e estilos da juventude, muito próprias da década dos excessos em que
todos tinham a impressão de que havia que forçar a mudança definitiva para
a modernidade, para abrir dignamente o terceiro milénio com um pé em
Plutão.Tal revelação ficou-se por uma tentativa falhada, o português prefere esperar que chegem os novos ares e o tempo decida o futuro do património musical do país.
Amália Rodrigues fez história com o seu estilo peculiar. Ela foi uma
“fadista way of life”, a verdadeira deusa do fado, e também sabemos que se
atreveu a cantar flamenco, viaja inclusivamente pela Internet uma versão deliciosa do eurovisivo La-la-la de Massiel cantado pela diva lusa. Para além disso, renovou a métrica habitual. Se tudo isso é ser clássica, que venham
Mozart, Cole Porter, Jobim e The Beatles, só para mencionar uns quantos
distintos revolucionários, e o vejam. Porquê desprezar o vaudeville, instrumentos como a guitarra espanhola, o contrabaixo ou, como fez também
Amália Rodrigues, o piano? Se formos a ser puristas, este estilo é acompanhado por um só instrumento: a guitarra portuguesa.Tudo aquilo que se
acrescenta depois tem a sua própria razão de ser, mas não é a original. Por
exemplo, o conhecido acordeão que vemos em múltiplas gravações e actuações em Portugal tornou-se clássico devido a circunstâncias realmente
curiosas: o labor dos acordeonistas de finais do século XIX era mais que
notório, já que, no seu afã de comparecerem em todas as festas (havia pouquíssimos músicos e muitos mesones para animar), iam tocando por todo o
lado, para ganharem o sustento. Não é que houvesse muitos acordeonistas,
é que os poucos que havia estavam notavelmente “pluriempregados”. E o
contrabaixo já então se utilizava, por isso talvez devêssemos ser mais honestos e pensar que talvez não haja motivos para considerar demoníacos os
recentes contributos instrumentais.
Em conclusão, a ideia que se extrai dos conferencistas lusos é que em
Portugal a evolução da música identitária seguiu uma linha diferente da
espanhola. Os tempos marcam, os tempos mudam, mas não havia motivo
para mudar aquilo que tinha consolidado a unidade sonora de todo um
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povo, pelo menos não era o momento de mudá-lo de um modo excessivamente radical. Deixemos pois que as novidades floresçam ao seu ritmo.Ao
fim e ao cabo a linha que continua a identificar os fadistas década após década é a cadência, a postura, as melodias e a emoção.As letras mudam, os sentimentos não. A única questão é encontrar onde se esconde a parte sentimental da música.
Se o fado resiste a realizar mudanças significativas, o flamenco empenha-se
em fundir-se com o hip-hop, chill-out, pop, bossa-nova... são duas formas de
entender o mesmo. Por um lado, o tempo. Por outro, os sentimentos, aquilo que nos torna livres e humanos, como a liberdade e a humanidade que
tanto se achava em falta em tempos de guerra. Por fim atrevemo-nos a desprezar as etiquetas e reconhecemos que aquilo que buscamos é a emoção,
venha ela donde vier. Porque estes tempos também são duros à nossa maneira.
SEM ORIGINALIDADE NÃO HÁ CLÁSSICOS. No meu empenho em perguntar
coisas a mim próprio, vícios de entrevistador, coincidi com Juan Verdú ao
tentar achar a resposta a por que motivo Enrique Morente é um clássico
contemporâneo capaz de gravar com os músicos de rock granadinos Lagartija Nick e sair airoso e com a credibilidade de flamenco com raízes intacta
e reluzente. Deve ser porque é bom, ou não será? Talvez por isso os Ojos
de Brujo não agradam nada nem a Ortega nem a Verdú. Ou talvez porque
o ingrediente flamenco que estes últimos acrescentam ao seu cocktail particular de tendências se fica por um mero corante, quer dizer, por um sotaque do sul com palmas ou guitarras espanholas numa odisseia de darbukas,
congas, sitares, samplers, scratchs, pluggins, sintetizadores e guitarras eléctricas. Neste caso estaríamos antes perante um chill-out com sabor andaluz.
“É um flamenco muito payo”, como dizem aqui. Alejandro Sanz, em contrapartida, é mais honesto segundo Verdú porque faz um pop claro e diáfano. Mas dêem-lhe uma guitarra espanhola, a ver o que canta, o “corazón
partío” ou as bulerías do “pátio jerezano”. Ainda por cima Alejandro Sanz,
por ser verdadeiramente aficionado, adaptou muitas frases do flamenco à sua
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visão particular do pop. Falando de gostos, gostaria de fazer referência ao
excelente público que nos acompanhava na sala. Apenas vinte, mas brilhantes, respeitadores, cultos, audazes e em alguns casos perfeitamente bilingues.As poucas intervenções que se fizeram do outro lado da mesa deixaram-me descansado. Pensei “com estes aficionados, tudo continuará a salvo”.
Os aficionados fazem com que o estilo clássico perdure, embora, como
afirma Juan Verdú, o flamenco e o fado tenham que viver com o seu tempo,
se não ficam para os museus. No do Prado, sem ir mais longe, há muitos
copistas, gente que tem talento para reproduzir a obra dos génios da pintura universal. Daí a expor junto deles Rubens ou Tiziano vai um abismo.
Mafalda Arnauth é uma artista, e se o tempo a tratar bem perdurará porque
entretanto terá encontrado um estilo próprio. Mas para saber o que é bom
há que conhecer os clássicos, neste caso há que ter cultura musical. Caso
contrário, uma inovação pode ficar-se por uma simples experiência ou por
uma declaração de boas intenções. E já sabemos todos que delas está o inferno cheio. Este é o terreno em que o novo se nutre dos clássicos. Depois,
com os alicerces sólidos, o artista contará o que quiser como melhor lhe
apetecer.
Chegamos assim à conclusão de que não podemos aceitar a mudança
nas músicas que os jovens propõem sem nos lembrarmos que a música
standard é, nada mais, nada menos, que o som dos que revolucionaram a
música no passado. E que os clássicos devem ser respeitados, mas não devem
ficar-se pela antecâmara dos tempos.
OS MAUS. Polícias do flamenco, flamencólicos, cães de guarda do canto...
Assim descrevem os conferencistas os defensores do flamenco a qualquer
preço, que não suportam sequer uma piscadela de olho a sons não catalogados como verdadeiros, apesar de, por um lado, já existir uma geração
que ultrapassou o debate entre purismo e renovação e que, por outro lado,
está claramente demonstrada a fusão do flamenco desde a sua origem. O
irmão de Mairena disse que uma pessoa que não é de Cádiz não pode cantar
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flamenco.Viva a tolerância.“Alguns dizem que de Velázquez para cá só pintam para se entreterem” afirma um inspiradamente divertido Juan Verdú,
que imediatamente acrescenta o “mas” à sua aposta. Defender as novas
correntes não significa que tudo seja bom para nos lançarem aos ouvidos.
Se disse que havia que ser selectivo e exigente com aquilo que se ouve,
agora dou-me conta de que nos nossos dias há que sê-lo muito mais. Já
não há apenas dois canais de televisão e na rede dão-nos (à entrada) quase tudo de bandeja.Acrescento que ninguém aplaude um tenor por afinar
a garganta. Sempre gostei desta frase. E se recordo-é porque até os bons
podem enganar-se. A questão é que há quem, com um mero balbuciar e
uma simples mancha numa tela, sem nada mais para oferecer, nos possa
manipular apelando ao nosso desconhecimento e acusar-nos de não estarmos na moda (e não falo de Pollock ou de Rothko, nem sequer de Barceló). É tão fácil como vestir-se à moderna e insultar toda a gente. Ainda
que aqueles que passam mais tempo a etiquetar sejam justamente os que
não sabem tocar. Só um músico, neste caso Paco Ortega, podia ser tão
explícito com os críticos, não é? Diz que a mestiçagem é o caminho, a
expressão única, a arte global multidisciplinar. Porque o futuro nos espera
com novos clássicos ou com grupos musicais e artistas que passados dois
ou três anos já terão dito tudo. Cumpriram a sua função. E quase ninguém
se diverte a ouvir seguiriyas de Cádiz. E Tabletom não é, nem por sombras,
flamenco puro, e quando uma pessoa o ouve joga-se ao chão a rir. E o fado
de agora é positivo porque Portugal (diz a positiva Mafalda Arnauth) é
positivo...
Vou-me embora com uma sensação percentualmente optimista.
Embora me tenha dado conta, ao reflectir, de que os recantos mais obscuros e inesperados continuarão a ser a fonte das revoluções artísticas.
Das Três Mil Vivendas de Sevilha nasceram os sons mais estimulantes do
flamenco dos últimos anos.Talvez a pobreza seja uma influência, a necessidade, não sei. Ou, como afirma Roncapino, para ser cantaor há que passar
fome.
Ou então fico com a ideia de que já não queremos ser toureiros ou cantaores à antiga e se não é assim, que o digam a Mayte Martín, que é capaz
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de publicar os melhores discos de flamenco legítimo e de boleros matadores
que ouvi desde há anos. E sem corar. ❖
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