Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de
U n i ve r s i da de d o E s t a d o do R i o de J a ne i r o Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Mestrado em Educação Controlar para quê? Uma análise etnográfica da interação entre professor e aluno na sala de aula P a u l a Al m e i d a d e C a s t r o Rio de Janeiro 2006 Controlar para quê? Uma análise etnográfica da interação entre professor e aluno na sala de aula. Dissertação apresentada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação. Orientadora: Carmen Lúcia Guimarães de Mattos. Rio de Janeiro, 26 de Abril, de 2006. 12 APROVAÇÃO DA BANCA EXAMINADORA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO Dissertação: Controlar para quê? Uma análise etnográfica da interação entre professor e aluno na sala de aula. Elaborada por Paula Almeida de Castro Orientadora: Profª Carmen Lúcia Guimarães de Mattos Membros da banca examinadora: Profª Sueli Barbosa Thomaz Prof. Luiz Antonio Gomes Senna Profª Helena Amaral da Fontoura 13 Dedicatória A Deus, pois a ele recorremos em todos os momentos da nossa vida. Dedico este trabalho à minha família, que sempre esteve ao meu lado suportando meus momentos mais difíceis. À minha orientadora pelos ensinamentos, pelo carinho, paciência e compreensão que sempre teve comigo. À equipe de pesquisa do Núcleo de Etnografia em Educação e em especial a minha irmã Aline Leal da Silva, minha madrinha Érika Aroucha Silva e minha pastora Tatiana Bezerra Fagundes. "Dê-me um ponto de apoio e moverei o mundo”. Arquimedes Obrigada por tudo. 14 Agradecimentos Eu precisaria mais do que palavras bonitas para expressar o meu agradecimento a todos que durante a minha caminhada estiveram ao meu lado, especialmente à minha orientadora e à equipe de pesquisa. Gostaria de agradecer especialmente à oportunidade que tive de conhecer e trabalhar com pessoas tão talentosas como Aline, Érika e Tatiana. O apoio de vocês foi mais do que fundamental a mim e ao meu trabalho. Agradeço aos funcionários da escola onde foi realizado o trabalho de campo e à professora que abriu as portas da sua sala de aula para o nosso estudo. Agradeço aos professores do Programa de Pós Graduação em Educação pelo conhecimento compartilhado. À Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro pela concessão da Bolsa Nota 10. 15 Resumo Esta dissertação apresenta as análises produzidas a partir da investigação etnográfica de uma escola pública de ensino fundamental na cidade do Rio de Janeiro. O cenário da sala de aula foi estudado a partir do controle exercido pela professora sobre seus alunos e alunas desvelando como este ocorre no cotidiano de sala de aula. As observações dos conselhos de classe subsidiaram o entendimento e explicações dadas pelas professoras e demais membros desse conselho sobre a prática pedagógica em sala de aula e sobre a hierarquia escolar. Em nossas análises utilizamos cenas, eventos, atos, ações e falas para organizar o padrão de recorrência de forma hierárquica a fim de privilegiar o objeto de estudo – controle – e as categorias dele derivadas através de um processo de análise indutiva nos dois contextos: a sala de aula e os conselhos de classe. Os resultados dessa pesquisa serão apresentados em forma de vinhetas etnográficas de modo a propiciar ao leitor a mais vívida e precisa experiência pedagógica do controle exercido pela professora na sala de aula. Assim, este estudo pretende contribuir para uma visão crítica das práticas de sala de aula no intuito de ampliar o debate sobre as alternativas visando minimizar a exclusão escolar. Iniciamos a primeira parte do trabalho com a apresentação do tema no âmbito educacional justificando a relevância da escolha do mesmo. A seguir, descrevemos o objeto de estudo e sua inter-relação com o ambiente escolar. Finalizamos esta parte com a exposição da metodologia etnográfica que subsidiou as observações de campo e análise de dados. Na segunda parte, descrevemos as categorias temáticas relacionadas com o objeto de estudo tanto na sala de aula, quanto nos conselhos de classe e apresentamos os resultados gerais e as considerações finais. Esperamos que esta dissertação venha a contribuir na busca de alternativas às práticas que visem a superação das desigualdades educacionais e da exclusão escolar. Palavras-chave: Controle; Etnografia; Ensino – aprendizagem; Fracasso escolar. 16 Abstract This Master dissertation presents the analyses produced from the ethnographic inquiry of a public school of basic education in the city of Rio de Janeiro. The scene of the classroom was studied exploring the control exerted for the teacher on its pupils unveilling as this control in the daily one of classroom occurs. The comments of the classroom advice had subsidized the agreement and explanations given for the teachers and too much members of this practical advice on the pedagogical one in classroom and on the pertaining to school hierarchy. Our analyses had privileged the scenes, the events, the facts, the acts, the actions and you say them. The boarded subjects had been organized by the standard of hierarchic recurrence of form to privilege the object of study - control - and the categories of it derived through a process from inductive analysis in the two contexts: the classroom and the advice of classroom. The results will be presented in form of ethnographic vignettes in order to propitiate the reader in the most alive way and need the pedagogical experience the control exerted for the teacher in the classroom. Thus, this study intends to contribute for a critical vision of the practical ones of classroom in order to extend the debate on the alternatives to minimize the pertaining to school exclusion. We initiate the first part of the work with the presentation of the subject in the current educational scope justifying the relevance of the choice of the subject. To follow, we describe the object of study and its interrelation with the pertaining to school environment. We finish this part with the exposition of the ethnographic methodology that subsidized the comments of field and analysis of data. In the second part, we in such a way describe the thematic categories related with the object of study in the classroom, how much in the classroom advice. To follow, we present the general results, the final considerations and the bibliography used in the theoretical basement of the work. We wait that this Master dissertation comes to contribute to extend the debate on the field of the Education and the search of alternatives for practical that they aim at the overcoming of the educational inequalities and the pertaining to school exclusion. Word-keys: Control; Ethnography; Education – learning; Failure schooling. 17 “O que faz a gente ser grande é não perder o futuro de vista. É chegar a um porto, fincar a bandeira da conquista e nesse mesmo instante começar a buscar outros portos. É criar desafios, calcular riscos, avançando sempre, porque a grande aventura é viver. E a vida, assim como as ondas, tem um jeito diferente de se repetir. De prometer descobertas e abrigar todos os tipos de sonhos e embarcações. O que faz a gente ser grande é ser como o mar; incansável na sua procura pela onda perfeita. Até descobrir que a perfeição está na própria busca.” Autor desconhecido. 18 PARTE 1 – SOBRE O TEMA ...................................................................... 20 1. INTRODUÇÃO .......................................................................................... 20 2. APRESENTAÇÃO ...................................................................................... 25 2.1. O ensino em ciclos: caminhos percorridos..................................... 25 2.2. Controle ......................................................................................... 33 2.3. A estrutura física do CIEP .............................................................. 37 3. SOBRE A ABORDAGEM TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICA-METODOLÓGICA. ............ 42 3.1. Etnografia....................................................................................... 42 3.2. Etnografia e Educação ................................................................... 45 3.3. Justificativa .................................................................................... 49 3.4. Objetivos ........................................................................................ 51 3.4.1 Objetivo Geral ............................................................................. 51 3.4.2 Objetivos Específicos.................................................................. 51 3.5. Questões de pesquisa ................................................................... 51 3.6. Instrumentos .................................................................................. 52 3.7. Participantes .................................................................................. 59 3.8.Setting............................................................................................. 61 3.9. Processo de análise e interpretação dos dados ............................ 63 3.9.1. Reflexividade do pesquisador: trabalho de campo à deriva ....... 63 3.10. Apresentação das categorias temáticas ...................................... 68 PARTE II ...................................................................................................... 85 1. ANÁLISE E RESULTADOS........................................................................... 85 1.1. A sala de aula ................................................................................ 86 1.1.1. Corpo: rebelde ou docilizado?.................................................... 86 1.1.2. Tarefa: “o dever” do aluno.......................................................... 93 1.1.3. Agressão: a norma pela força .................................................. 102 1.1.4. Espaço: o controle da movimentação e da ocupação.............. 109 1.1.5. Barulho: as vozes da sala de aula ........................................... 116 1.1.6. Tempo: chronos ou kairós?...................................................... 122 1. 2. O Conselho de classe ................................................................. 129 1.2.1. Problemas de aprendizagem: a discussão clínica-pedagógica 132 1.2.2. Problemas familiares: justificativa para o fracasso escolar ...... 139 1.2.3. Faltas: presenças controladas ................................................. 143 1.2.4. Medicalização .......................................................................... 148 1.2.5. Violência................................................................................... 152 1.2.6. Estigma .................................................................................... 158 1.2.7. Conceito x Nota........................................................................ 166 1.2.8. Para onde vão as faltas? Conselho Tutelar ............................. 171 2. RESULTADOS GERAIS ............................................................................ 175 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 185 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 189 19 PARTE 1 – Sobre o tema 1. Introdução “A pesquisa é talvez a arte de se criar dificuldades fecundas e de criá-las para os outros. Nos lugares onde havia coisas simples, fazse aparecer problemas” (BOURDIEU, 2004) O presente trabalho foi desenvolvido ao longo do curso de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Essa dissertação teve como objetivo estudar o controle exercido pela professora sobre os seus alunos e alunas em sala de aula, a implicação deste na rotina pedagógica1, suas conseqüências no desempenho e avaliação dos alunos e alunas e o aumento das condições de desigualdade em sala de aula. Para subsidiar o entendimento da sala de aula observamos as cenas, eventos, atos, ações e falas nos conselhos de classe compostos por professoras, diretora, vice-diretora e coordenadora pedagógica. Esta observação possibilitou uma visão macro da rotina escolar e dos 1 “A pedagogia é um esforço deliberado para influenciar os tipos e os processos de produção de conhecimentos e identidades em meio a determinados conjuntos de relações sociais e entre eles. Pode ser entendida como uma prática pela qual as pessoas são incitadas a adquirir determinado ”caráter moral”. Constituindo a um só tempo atividade política e prática, tenta influir na ocorrência e nos tipos de influência. Quando se pratica pedagogia, age-se com a intenção de criar experiências que, de determinadas maneiras, irão estruturar e desestruturar uma série de entendimentos de nosso mundo natural e social. O que estamos enfatizando aqui é que a pedagogia é um conceito que enfoca os processos pelos quais se produz conhecimento” (GIROUX & SIMON, In MOREIRA & SILVA, 1995, p.97). 20 procedimentos adotados pela professora com seus alunos e alunas na sala de aula estudada. “A vida de sala de aula, como a de qualquer outra situação social, não é dada a priori, nem tomada de empréstimo a outra situação, ao contrário, é construída, “definida e redefinida” a todo o momento, revelando e estabelecendo os contornos de uma interação em construção. Interação enquanto (encontro) em que os participantes, por estarem na presença imediata uns dos outros, sofrem influência recíproca, daí negociarem ações e construírem significados dia a dia, momento a momento” (CAJAL In COX e ASSIS-PETERSON, 2001, p.127). Essa construção diária na sala de aula implica no estabelecimento de uma interação que promova a inclusão dos alunos sem que para isso ocorram interpretações pré-concebidas das capacidades dos mesmos. Nesta perspectiva a sala de aula se configura como um espaço interacional que interfere na vida daqueles e daquelas que dela participam. Por isso a importância de estudá-la e voltar a ela toda vez que buscamos compreender a dinâmica que ocorre em seu interior. Na busca desse entendimento realizamos o estudo em um CIEP – Centro Integrado de Educação Pública – que em seu projeto inicial visava a implementação de escolas de horário integral no Rio de Janeiro. A idéia da construção de escolas de horário integral esteve vinculada com uma proposta política do então governador Leonel Brizola e do vice-governador e secretário de Estado e Cultura, Ciência e Tecnologia, Darcy Ribeiro e o projeto arquitetônico foi desenvolvido por Oscar Niemeyer. 21 O funcionamento diário dos CIEPs seria de oito horas, dividas em desenvolvimento do currículo básico, atividades de animação cultural, estudo dirigido e educação física. As escolas também possuíam um centro de saúde com atendimento médico e odontológico e uma biblioteca. Há época de sua implantação, a proposta das escolas de horário integral era vista como utópica pelos próprios educadores que passaram por treinamentos para desenvolveram suas atividades pedagógicas em oito horas diárias. O que vemos hoje é que não foi possível construir um espaço educativo inovador que ficou atrelado a ideais políticos divergentes. Alguns CIEPs foram entregues à administração municipal e passaram a integrar o projeto político pedagógico do município2. A escola onde realizamos o trabalho de campo tem seu funcionamento em horário integral com atividades criadas a partir das necessidades dos alunos com relação aos conteúdos pedagógicos. Uma dessas atividades é a recuperação paralela, onde os alunos e alunas com rendimentos abaixo da média a freqüentam durante o ano em horários especiais no intuito de melhorarem seu desempenho acadêmico. 2 O município do Rio de Janeiro, segundo o IBGE, possui 973 escolas de ensino fundamental e 28.446 docentes. No ano de 2004 foram matriculados 849.319 alunos no ensino fundamental, sendo 595.907 em escolas municipais e o restante em escolas estaduais e federais. Não cabe a nós salientar uma discussão sobre o sucesso ou fracasso do projeto dos CIEPs, o que nos interessa neste trabalho é entender o que é essa escola e como ela funciona. 22 Nesse contexto a etnografia crítica de sala de aula (MATTOS, 2002) contribuiu para que os aspectos observados convergissem para o controle dos alunos e alunas evidenciando como as formas de atuação das professoras, diretora e coordenadora pedagógica tanto na escola como na sala de aula não consideram o aluno enquanto principal ator escolar. Foi possível perceber em nosso estudo como o discurso e a prática funcionam de maneira excludente e que, apesar dos esforços de implementação de políticas pedagógicas que visam a criação de uma escola inclusiva, humanitária, voltada para o atendimento das necessidades educacionais de seus alunos, há ainda uma lacuna a ser preenchida. Lacuna esta relacionada com as formas de controle da professora sobre os alunos e alunas. Tais formas de controle são apresentadas nas categorias encontradas na análise indutiva de dados sendo elas: corpo, tarefa, agressão, espaço, barulho, tempo, problemas de aprendizagem, problemas familiares, faltas, medicalização, violência, estigma, nota, conselho tutelar. O entrelaçamento entre as categorias e o objeto de estudo apresentam o cotidiano escolar mediado pelo controle das práticas escolares estruturando a dinâmica de sala de aula a partir de um espaço de exclusão e miséria na escola. Este trabalho foi divido em duas partes. Na primeira parte fizemos uma apresentação do tema e do contexto pedagógico da escola. A seguir, 23 delineamos a metodologia utilizada, e descrevemos as cenas dos participantes e do lócus de estudo. Há ainda, uma consideração sobre o trabalho do pesquisador no campo. Na segunda parte apresentamos a análise de dados realizada com a descrição das categorias e os resultados gerais e finalizamos com as considerações finais do trabalho. Com este trabalho acreditamos que seja possível ampliar o debate sobre os desígnios da Educação que há tanto caminham na tentativa de oferecer condições de superação de uma realidade excludente e desigual. A escola pública é ainda, o espaço de construção de conhecimento que pode oferecer condições sociais, econômicas, culturais e educacionais aos que nela acreditam. 24 2. Apresentação 2.1. O ensino em ciclos: caminhos percorridos Compreender a proposta do ensino em ciclos de aprendizagem foi importante para o desvelamento da prática pedagógica observada na sala de aula estudada. As discussões sobre os ciclos entre as professoras nos Conselhos de Classe envolviam quais os procedimentos corretos a serem adotados quanto à possibilidade de reprovar o aluno e quanto ao conteúdo pedagógico de cada etapa. A falta de entendimento pelas professoras da proposta pedagógica a ser adotada parece gerar dificuldades na prática diária de sala de aula e acaba, prejudicando os resultados acadêmicos dos alunos e alunas levando a maioria deles e delas à reprovação / repetência escolar. “A repetência é um indicador claro da não-funcionalidade e da ineficiência interna do sistema escolar, para a sociedade, em geral, e a comunidade educacional, em particular, professores, pais, estudantes, diretores, deliberadores de políticas nos distintos níveis, a repetência é aceita como algo “natural”, como um componente inerente e até inevitável da vida escolar.” (TORRES In MARCHESI & GIL, 2004, p. 37) Nos anos 90 chegou-se à idéia de que a escola deveria deixar o papel de transmissão de conhecimento, passando a ser considerada como facilitadora do manejo de informações pelos alunos. Este modelo escolar tinha como premissa que o sujeito aprendia em todos os momentos da vida sendo, 25 portanto, necessário que a escola cultivasse os valores sociais, culturais e familiares de seus alunos e alunas. Tal prerrogativa parte do princípio que os programas escolares eram distanciados das questões sociais e alheios aos interesses e características dos alunos e alunas. A proposta era de que os programas escolares fossem diretamente referidos à vida dos alunos, funcionando como elemento de transmissão e unidade cultural e não visando apenas a diminuição dos custos do governo com as reprovações. Buscava-se uma visão global do aluno, valorizando a dimensão cognitiva, afetiva e social integrada à prática pedagógica. Nesse ínterim o artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996) é previsto o ensino em ciclo de aprendizagem: § 1º É facultado aos sistemas de ensino desdobrar o ensino fundamental em ciclos. § 2º Os estabelecimentos que utilizam progressão regular por série podem adotar no ensino fundamental o regime de progressão continuada, sem prejuízo da avaliação do processo de ensinoaprendizagem, observadas as normas do respectivo sistema de ensino. A partir de uma revisão de literatura sobre a implantação dos ciclos escolares no Brasil foi possível visualizar a trajetória percorrida pelas escolas brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro. Utilizamos o referencial teórico de Perrenoud (2004), Barreto e Mitrullis (2001) e do material fornecido pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro para tal fim (ANEXO I). 26 No Rio de Janeiro as escolas do Ensino Fundamental da rede municipal de educação implantaram gradativamente o sistema de ciclos de formação e foram se adaptando a este novo sistema abandonando o sistema seriado. A proposta do ensino em ciclos correspondeu à intenção de regularizar o fluxo de alunos ao longo da escolarização, eliminando ou limitando a reprovação / repetência. Os ciclos compreendem períodos de escolarização que ultrapassam as séries anuais, organizados em blocos cuja duração varia, podendo atingir até a totalidade de anos prevista para um determinado nível de ensino. Perrenoud (2004) em seus estudos propôs uma pedagogia diferenciada que fosse capaz de promover avanços progressivos no conhecimento, respeitando os diferentes ritmos de aprendizagem de cada aluno. Esta diferenciação está fundamentada na qualidade dos tratamentos pedagógicos e didáticos, dispensados, sobretudo aos alunos (as) que possuem dificuldades de aprendizagem, em detrimento do tempo de estudo. Barreto e Mitrullis (2001) discutem os esforços implementados na tentativa de pensar uma solução pra o alto índice de reprovações. Segundo as autoras, a questão do ciclo não é nova. Desde 1950, após a percepção da grande retenção de alunos na escola primária brasileira, vêmse discutindo o ciclo – então entendido como promoção automática – a fim de diminuir o quantitativo de repetentes. Nesse escopo foram realizadas experiências de implementação dos mesmos no país, sobretudo ao longo 27 das décadas de 60 e 70 sendo adotado por governos nos anos 80. Contudo, a expressão maior da implementação de ciclos acontece na década de 90. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN - 9394/96) cria a possibilidade de implementação dos ciclos, mas não obrigatoriamente: “A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de período de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar” (art. 23, p.34). A organização do ensino em ciclos era, antes de tudo, uma estratégia política e financeira. O alto índice de reprovações nas séries iniciais representava um aumento nos custos do governo com a Educação. As estatísticas apontavam que de cada 100 crianças matriculadas na 1ª série, apenas 16 concluíam as quatro séries do ensino primário após os 4 anos propostos para a sua duração. O tema repetência ou reprovação na Educação Primária ganhou destaque nas discussões educacionais, se resumindo à questão financeira como aponta Almeida Júnior (In PATTO, 1999): “(...) que se procure solucionar o grave problema da repetência escolar – que constitui prejuízo financeiro importante e retira oportunidades educacionais a considerável massa de crianças em idade escolar (...)”. Há, ainda, que se considerar, além da questão financeira envolvida na Educação, que a proposta de promoção automática foi criada por países com realidade sócio-cultural distinta do Brasil. Seria preciso preparar o professorado para receber tal proposta de ensino. 28 Esta preparação deveria considerar os programas e critérios de avaliação, a formação do professor e o aumento da escolaridade dos alunos para além dos quatro anos. O entendimento da proposta dos ciclos é fator que gera dúvidas por parte dos professores. Estes não chegaram a um consenso acerca dos conteúdos de cada etapa do ciclo e quanto à reprovação. Na impossibilidade de serem reprovados os alunos e alunas passam de um ciclo ao outro sem adquirirem os conteúdos básicos de cada etapa3. Tantos foram os equívocos observados na elaboração da proposta do ensino em ciclos que ainda hoje podem ser percebidos nas salas de aula. Em nossas observações de campo presenciamos discussões entre as professoras e coordenadora pedagógica sobre os ciclos. Isabel: Acho que daí o nome ciclo... É uma coisa cíclica... Um faz e o outro continua e o outro também. Arlete: Ah aí a outra turma vai achar que eu não ensinei direito. Coordenadora pedagógica: A gente sabe que são crianças que tem problema. Vem pra cá de mãos abanando. Arlete: A gente sabe dos problemas, mas no mapa estão outros. Coordenadora pedagógica: O índice mostra as expectativas de cada uma. A minha preocupação não é com o trabalho do professor, mas por não saberem ler e poderíamos salvá-los da progressão. É melhor pegar uma turma de vinte com seis com dificuldade, mas só aqueles que têm uma chance. Arlete: na 4ª série eles não estão sabendo chegar, a gente dá um teste para eles chegarem num nível de 4ª série, a gente Na proposta de Perrenoud (2004) os ciclos são a possibilidade do aluno aprender em seu tempo respeitando assim os diferentes ritmos de aprendizagem. Dentro da escola existe a implementação da proposta de ciclos ligada ao regime seriado de ensino. Por isso os professores consideram que o aluno passa de uma etapa para outra. 3 29 trabalha alfabetização, sala de leitura, mas eles saem da 3ª sem saber... então a lacuna que está quando saindo do ciclo. Isabel: a lacuna está no ciclo. Arlete: não do começo até o final. Os eventos de fala das professoras durante a discussão no Conselho de Classe sobre as dúvidas da proposta dos ciclos demonstra a compreensão equivocada das mesmas sobre o funcionamento e a finalidade do ensino em ciclos de aprendizagem. Na teoria a proposta sobre os ciclos tem como objetivo valorizar o tempo de aprendizagem do aluno. Contudo tal objetivo não tem se efetivado na prática. O que pode ser observado é a tentativa de homogeneizar as turmas agrupando-as de acordo com os níveis de aprendizagem e idade cronológica. A proposta dos ciclos que considerava uma flexibilização do tempo de aprendizagem (variável crucial de acordo com o princípio de que todos eram capazes de aprender) culmina com a nossa experiência verificada na sala de aula estudada. Verificamos que a professora não respeita tal princípio norteador da proposta pedagógica adotada pela escola, conclamando os alunos a finalizarem suas tarefas no tempo por ela determinado. Esta proposta tem como objetivo suplantar um antigo problema que é a defasagem idade / série. Nos anos 80 os estudos sobre repetência no Brasil (BRANDÃO et. ali., 1986) apontavam que: 30 “... menos de um terço da clientela está na idade ideal para a série que freqüenta os dois terços restantes encontram-se atrasados, seja porque entraram com mais de 7 anos na primeira série, seja porque abandonaram a escola por algum tempo, voltando mais tarde, seja porque repetiram alguma série” (p.96) Os dados se repetem no ano 2000 no relatório de desenvolvimento juvenil publicado pela UNESCO em 2004, onde lê-se que: “... mais de 50% dos jovens não freqüentam a escola. Mais grave ainda se torna a situação quando levamos em conta que, entre os que não estão na escola na faixa etária aludida [15 aos 24 anos] mais de 60% não se encontram nas séries correspondentes às idades que possuem. O problema das distorções idade ou atraso escolar num país como o Brasil é preocupante. (...) em um sistema educacional seriado existe uma adequação teórica entre a série e a idade do aluno. No caso brasileiro, considera-se a idade de 7 anos como a idade adequada para o ingresso no ensino fundamental e a idade de 14 para a conclusão.” (p.60) O que vemos, mais uma vez, é a contradição entre as propostas pedagógicas adotadas e a prática de sala de aula que gira em torno do cumprimento do currículo sem considerar a heterogeneidade do tempo de aprender de cada aluno. Ao final, concordamos com a afirmação de Bourdieu (1998) sobre a instituição escolar que: “(...) tende a ser considerada cada vez mais, tanto pelas famílias quanto pelos próprios alunos, como um engodo, fonte de uma imensa decepção coletiva: essa espécie de terra prometida, semelhante ao horizonte, que recua na medida em que se avança em sua direção”. (BOURDIEU, 1998 p. 221). O aluno avança no ciclo de aprendizagem, mas ao chegar ao final ele é colocado numa classe de progressão. Solução adotada para acelerar a aprendizagem de alunos e alunas que não conseguiram atingir as metas 31 delineadas para cada etapa. O horizonte, mencionado por Bourdieu (1998), vai se afastando cada vez mais. 32 2.2. Controle No estudo que realizamos foi possível visualizar as instâncias tanto psicológicas como físicas regendo o cotidiano da escola e da sala de aula. Para definirmos o objeto de estudo foi necessário tecer considerações sobre os mecanismos de vigilância, a hierarquia escolar e a estrutura física que atuam como mecanismos de controle exercido na escola sobre os alunos e alunas. O conceito de controle que estamos utilizando parte dos pressupostos teóricos desenvolvidos por Foucault (1987, 1999, 2001 e 2003) e aplicados nos estudos sobre instituições. Utilizamos o referencial teórico de Goffman (2005) e Bourdieu (2005) subsidiando a teoria que fomenta o trabalho realizado. Por controle entendemos as estratégias utilizadas para monitorar, inspecionar e fiscalizar. Os espaços precisam ser vigiados e controlados de acordo com padrões normativos oriundos de uma sociedade que utiliza cada vez mais recursos tecnológicos de vigilância, tais como câmeras, escutas e identificadores de chamada. O termo controle aparece na obra de Foucault (1987) para designar mecanismos de vigilância que não servem exclusivamente para punir, mas corrigir e prevenir. Foucault (1987) nos fala de uma “ortopedia social, para a qual o desenvolvimento da polícia e da vigilância das populações são os 33 instrumentos essenciais”. Para ele o controle social não está relacionado somente com a justiça, mas com poderes laterais que seriam as instituições psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, médicas, pedagógicas. O poder disciplinar envolve o uso de instrumentos de vigilância que atuam subliminarmente4 no cotidiano escolar. Dentre os diversos instrumentos existentes destacamos: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e o exame. A aplicação de tais instrumentos e a adequação a eles ocorre o tempo todas nas interações entre os profissionais da escola e os alunos. “As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como um microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento” (FOUCAULT, 1987, p. 145). A escola não estaria relacionada apenas com a idéia de espaço para a aprendizagem. Ela abarcaria segundo Foucault (1987): “O ensinamento propriamente dito, a aquisição dos conhecimentos pelo próprio exercício da atividade pedagógica, enfim uma observação recíproca e hierarquizada. Uma relação de fiscalização, definida e regulada, está inserida na essência da prática do ensino: não como uma peça trazida ou adjacente, mas como um mecanismo que lhe é inerente e multiplica sua eficiência” (p.148). A esta hierarquização escolar consideramos, especificamente na escola estudada, a organização da gestão escolar. A coordenação pedagógica representa a figura central na determinação de regras na escola, juntamente com a vice-direção. A direção e os professores estariam no mesmo nível de tomada de decisão e os alunos e alunas estariam no último plano apenas se 4 O conceito de subliminar tem fundamentos na psicologia. Pode-se considerar subliminar um estímulo que, embora, não seja bastante intenso para que o indivíduo tome consciência dele, atua – quando repetido – no sentido de alcançar um efeito desejado. 34 adequando às sanções escolares. Esta hierarquia implica numa maquinaria de poder (FOUCAULT, 2001). “Passou-se de uma tecnologia do poder que expulsa, que exclui, que bane, que marginaliza, que reprime, a um poder que é enfim um poder positivo, um poder que fabrica, um poder que observa, um poder que sabe e um poder que se multiplica a partir de seus próprios efeitos”. (p. 61). As formas de exercício de poder para a obtenção de uma vigilância hierarquizada estão ligadas às relações de poder em que ela implica. Se o aluno sabe que seu comportamento está sendo avaliado pelo olhar do professor e ainda que será considerado no seu resultado final, ele permanecerá de forma que a professora o avalie positivamente. Foucault (1987) afirma que a vigilância assume um papel de supervisão direta do trabalho dos subordinados pelos superiores, assim como a execução da tarefa em sala de aula: os alunos sentam-se às mesas ou carteiras, normalmente dispostas em fileiras, todos em função do professor. Os alunos devem parecer alerta, ou então estar absorvidos em seu trabalho. Entretanto na prática, isso dependerá das habilidades do professor e das inclinações dos alunos no sentido de agirem de acordo com o que se espera deles. A escola e a sala de aula possuem um modelo quase ideal para o exercício da vigilância: a disposição das carteiras dos alunos e da mesa do professor é feita de modo a proporcionar o controle pelo olhar. É um diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral (FOUCAULT, 1987). 35 Foucault alude à estrutura física das salas de aula para salientar os mecanismos de vigilância utilizados. Ele explica que os velhos esquemas de encarceramento são substituídos pelos espaços vazios, as passagens, as janelas de vidro, entre outras formas de dar visibilidade ao interior dos ambientes fechados, como a sala de aula. Pela utilização de tais mecanismos a atuação escolar poderia ser considerada como local de aplicação de um controle rígido sob todo e qualquer desvio às normas estabelecidas que seriam: o cumprimento dos horários de saída e chegada na escola, a obrigatoriedade de permanecer em silêncio, sentados com “modos” e executando as tarefas. Desse modo a escola se constituiria de: “(...) uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência).” (FOUCAULT, 1987, p.149). A partir de tais considerações foi possível perceber a importância da estrutura física bem como das diversas formas de vigilância presente na escola para o exercício do controle. 36 2.3. A estrutura física do CIEP O projeto arquitetônico dos CIEPs foi desenvolvido por Oscar Niemeyer, com a seguinte estrutura física: no primeiro plano uma quadra de esportes e um refeitório. No segundo plano, estão as salas da direção, de aula, de leitura, de informática, banheiros e uma sala destinada ao atendimento do programa Bolsa Escola5. No terceiro plano somente salas de aula e no quarto plano a chamada residência – alojamentos para doze crianças que podem morar na escola quando necessitam e ficam sob os cuidados de um casal ou uma mãe social. As salas de aula são vazadas, a parede não atinge o teto, o que viabiliza o acompanhamento das aulas de uma turma por todos da escola. Durante as observações de campo era comum ouvirmos as aulas das outras turmas, principalmente a voz da professora. É possível, devido à estrutura das salas identificar vozes, gritos e ainda o conteúdo que está sendo trabalhado. Nos conselhos de classe os professores eram advertidos quanto à dinâmica de suas aulas. A diretora e a coordenadora alertavam as professores quanto aos gritos com os alunos e ainda com relação ao tratamento dispensado aos mesmos. Ela sugere, em 5 O Programa Nacional Bolsa Escola foi criado em 2001 com a proposta de conceder benefício monetário mensal a milhares de famílias brasileiras em troca da manutenção de suas crianças nas escolas. 37 uma das reuniões, que as professoras ao sentirem vontade de agredir um aluno que coloquem a mão no bolso e contem até dez. Diretora: Eu sou uma pessoa muito gostada na comunidade. As mães de modo geral, gostam de mim, as crianças e tal e eu já fui ameaçada aqui. Imagine uma pessoa que está chegando de repente. A gente não conhece a clientela assim, eu sei e eu vou repetir um pouquinho o tratamento. Volto, a gente não está aqui fazendo um favor, a gente ganha para trabalhar com a criança e eu presumo que a gente esteja trabalhando naquilo que gosta, até porque eu estou na estrada a trinta e oito anos por gostar, senão eu já teria pego o meu boné a muito tempo, c... Vamos maneirar assim nestas coisas. A coisa está ficando preta, e eu estou sempre em defesa do professor e, mas eu quero defender o professor com consciência, ta bom então? Vamos maneirar e tem um ditado que é assim: Se você está mais nervosa e quer tomar uma atitude drástica, conta até dez, senão conta até cem, senão até mil. (Conselho de classe). A diretora, no evento de fala acima, se refere aos alunos que freqüentam a escola como uma clientela desconhecida pelas professoras e que, portanto, devem adotar o comportamento sugerido pelo dito popular de contar até dez antes de “tomar uma atitude drástica”. A possibilidade de ouvir os gritos e saber qual o tratamento que os alunos estão recebendo por parte da professora, se dá pela configuração arquitetônica das salas de aula. Assim, a diretora pode a todo o momento gerenciar a dinâmica da sala de aula pelas vozes de professoras e alunos. Giddens (2005), Foucault (1987) e Goffman (2005) apontam em seus estudos que a arquitetura das instituições foi especialmente projetada para o atendimento e funcionamento a que se propõe. A divisão física possui particularidades relevantes para as atividades que são desempenhadas em seu interior. 38 “Uma escola, ao ser projetada, necessita de salas de aula, salas de direção, laboratórios, sala de leitura, refeitório, banheiros e uma área de recreação. Tal organização configura um layout específico de um ambiente escolar” (GIDDENS, 2005, p. 290). Giddens (2005) pressupõe a existência de uma semelhança entre os prédios que abrigam as organizações modernas. Isso se confirma quando relacionamos a estrutura física de uma organização com os propósitos de vigilância, controle e hierarquização de poder. Foucault (1987, 2001) demonstrou um envolvimento direto da arquitetura de uma organização na sua composição social e no seu sistema de autoridade. A disposição das salas, dos corredores e dos espaços abertos nos prédios de uma organização indicam o modo como se opera um sistema autoritário cuja ênfase está na visibilidade, determina e influencia padrões de autoridade. Encontramos na escola e na sala de aula estudada alguns exemplos desta visibilidade que possibilita ao professor controlar seus alunos e alunas pela submissão a esse controle. Para que um aluno seja incluído no sistema regular de ensino ele precisa incorporar (o controle é exercido fundamentalmente sobre os corpos dos indivíduos, como veremos na descrição das categorias temáticas) as normas escolares num processo de aprender o “ofício de aluno” (PERRENOUD, 1995). O ofício de aluno inicia-se com o ofício de criança: “(...) trata-se, para o indivíduo, desde o nascimento, de consagrar o melhor de si mesmo a adequar-se às expectativas dos adultos e, particularmente, a preparar-se para se tornar um bom aluno. O ofício 39 de aluno é apenas um componente do ofício de criança ou de adolescente nas sociedades em que esta fase da existência é definida, antes de mais, como uma preparação” (PERRENOUD, 1995, p. 15). Dessa forma o desenvolvimento humano passa por uma série de normatizações que tem como objetivo o atendimento de expectativas sociais controlados pelos adultos e professores. Berger e Luckmann afirmam que o controle institucional prevê que “toda atividade humana está sujeita ao hábito” (1985). Assim como as normatizações que são impostas por alunos e alunas na instituição escolar. Os alunos e alunas devem “aprender a comportar-se” e, uma vez que tenham aprendido, precisam manter este comportamento. O mesmo se dá naturalmente com os adultos. Quanto mais a conduta é institucionalizada tanto mais se torna predizível e controlada (BERGER & LUCKMANN, 1985). O controle não é exercido exclusivamente pelos professores sobre seus alunos. Ao estarem sob as normas e exigências de uma instituição os professores são controlados a partir da hierarquização de poder produzida no interior da escola. A caracterização da relação estabelecida entre o controle e a escola se dá pela homogeneização do ambiente escolar. Ao instituir um controle diário sobre seus alunos o professor mascara a prática pedagógica utilizando o controle como método para avaliar o desempenho e os resultados acadêmicos dos mesmos. 40 Dessa forma torna-se inerente à prática pedagógica a utilização de instrumentos de controle que atuam no intuito de prever comportamentos, medir e avaliar o desempenho acadêmico e garantir o cumprimento das normas impostas pelo cronograma escolar. A vigilância e controle que atuam diretamente na escola foram identificadas nesse trabalho como produzindo um espaço de exclusão escolar pelo não enquadre às normas e regras impostas. 41 3. Sobre a metodológica. abordagem teórico-epistemológica3.1. Etnografia Etnografia vem do grego ethno, que significa povo, nação e graphein, escrever. É um método por excelência utilizado pelos antropólogos como forma de coleta de dados, baseando-se no contato intersubjetivo6 entre o pesquisador e o seu objeto de estudo. A escolha pela utilização da etnografia neste estudo levou em conta as características básicas da pesquisa qualitativa apresentadas por Lüdke e André (1986). A primeira seria a de que a pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como fonte direta de obtenção de dados e o pesquisador como principal instrumento de observação. Via de regra esse contato direto do pesquisador no ambiente investigado e o envolvimento na situação de pesquisa é prolongado e se dá através de um trabalho intensivo no campo de observação. A segunda característica é de que os dados são predominantemente descritivos. O material é rico em descrições de pessoas, situações, acontecimentos, incluindo transcrições de áudio, desenhos que serão utilizados para subsidiar uma afirmação ou esclarecer um ponto de vista de acordo com C. Geertz (1989) essas são descrições densas. A 6 Para intersubjetivo diz-se do campo formado por sistemas organizados diferentemente e interagindo reciprocamente: os mundos subjetivos. (ORANGE, ATWOOD & STOLOROW, 1997). 42 terceira característica é que a preocupação com o processo é muito maior do que com o produto, isto é a verificação de como o problema estudado se manifesta nas atividades, nos procedimentos e nas interações cotidianas. Estamos preocupados com a visão geral e concreta das situações, mas estamos igualmente preocupados com a visão particular e subjetiva dessas situações. A quarta relaciona-se ao “significado” que as pessoas dão às coisas e à sua vida. Estas são focos de atenção especial pelo pesquisador, isto seria a tentativa de capturar a “perspectiva dos participantes”, sendo a maneira como os informantes encaram as questões que estão sendo focalizadas. Nesta dissertação, destaco esta como a principal característica para análise, pois procurei, o quanto possível, captar a percepção que o aluno teve sobre o controle que a professora exerceu sobre ele no ambiente de sala de aula. Por último, estaria o procedimento indutivo da análise de dados, onde os pesquisadores se preocupam em buscar evidências que consubstanciam as inferências sobre as categorias levantadas antes do início do estudo tanto quanto durante o processo de coleta, quanto depois no processo de análise propriamente dito. Em resumo, a pesquisa qualitativa envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa em retratar a perspectiva dos participantes (BOGDAN e BIKLEN, 1982 In LÜDKE e ANDRÉ, 1986, p. 13) 43 Desse modo, ao seguir tais características, a utilização da etnografia tornou possível um aprofundamento no campo estudado a fim de buscar explicações pelo cotidiano dos participantes. A observação de gestos, comportamentos e falas nos ofereceram pistas sobre o entendimento que eles possuem sobre as suas próprias práticas. A abordagem etnográfica utilizada nesse trabalho foi baseada nos estudos de Mattos (1992, 2005) onde a pesquisadora argumenta a importância da contribuição da etnografia nos estudos sobre as desigualdades e exclusões sociais. Mehan (In MATTOS, 2002) aponta que a relevância da etnografia estaria em: primeiro, por se preocupar com uma análise holística ou dialética da cultura. A cultura não é vista como um mero reflexo de forças estruturais da sociedade, mas como um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e a ação humana; e segundo, por introduzir os atores sociais com uma participação ativa e dinâmica no processo modificador das estruturas sociais. 44 3.2. Etnografia e Educação O interesse pela utilização da abordagem etnográfica na Educação tornouse evidente no final dos anos 70 com o olhar voltado para o estudo da sala de aula e a avaliação curricular. Até essa época André (1995) comenta que os estudos da sala de aula eram conhecidos como “análises de interação” pois a observação visava o registro de comportamentos de professores e alunos numa situação de interação. A alternativa encontrada para superar a observação baseada em esquemas de interação foi a incorporação da abordagem antropológica nas investigações de sala de aula. “A investigação de sala de aula ocorre sempre num contexto permeado por uma multiplicidade de sentidos que, por sua vez, fazem parte de um universo cultural que deve ser estudado pelo pesquisador” (ANDRÉ, 1995, p.37). O estudo se daria pela observação participante da sala de aula utilizando os registros de campo, entrevistas, análises de documentos, imagens de vídeo e gravações de áudio. É míster nas pesquisas de cunho etnográfico considerar que os dados são sempre inacabados. Pois o pesquisador não pretende comprovar teorias nem generalizar seus dados. O etnógrafo busca, em seu trabalho investigativo, descrever, compreender a situação revelando seus múltiplos significados. Ao longo das décadas a pesquisa etnográfica tornou-se amplamente difundida na área educacional podendo ser considerada como um modismo 45 em descrever atividades de sala de aula com base nos pressupostos etnográficos. Em defesa da utilização da pesquisa etnográfica em educação André (1995) aponta que esta permite que: “se chegue bem perto da escola para tentar entender como operam no seu dia-a-dia os mecanismos de dominação e de resistência, de opressão e de contestação ao mesmo tempo em que são veiculados e reelaborados conhecimentos, atitudes, valores, crenças, modos de ver e de sentir a realidade e o mundo” (ANDRÉ, 1995, p. 41). Mattos (2005) afirma em seus estudos sobre a utilização da etnografia como abordagem teórico-metodológica que para estudar a realidade do aluno e da aluna, faz-se necessário um olhar minucioso sobre a escola e, particularmente, sobre a sala de aula, que serve como pano de fundo para essa realidade, pois ela é o espaço físico eleito pela sociedade moderna para o exercício da comunicação e disseminação de sentido e valores sócioculturais. Um outro ponto a ser considerado nos estudos etnográficos diz respeito à isenção de valoração da realidade estudada. Uma interpretação ou uma descrição etnográfica não estão isentas das características de quem a faz, tais como: idade, sexo, cor, naturalidade, grau de instrução entre outras. Senna ao analisar o conceito de categoria à luz das práticas de pesquisas qualitativas, em especial as de natureza etnográfica, faz uma crítica quanto a descrição etnográfica e a natureza “alegórica” dos procedimentos analíticos indutivos. 46 O autor expõe a Etnografia enquanto: “um ramo de pesquisa que se institui a partir da ruptura com a metodologia clássica dos estudos históricos, impondo-se como prática de leitura de mundo em devir, como prática, portanto, de olhar e interpretar as dinâmicas sociais e os fatores simbólicos que lhes determinam nas intenções interacionais” (SENNA, 2005, no prelo). Ele aponta ainda, que pela indissociabilidade da Etnografia e da pesquisa qualitativa que na escrita interpretativa, característica das análises indutivas realizadas em etnografia, “perpassa necessariamente o julgamento de valor, um olhar não neutro, não cartesiano, em outras palavras”. Embora as críticas sejam relevantes e pertinentes para se pensar os estudos etnográficos ainda encontramos na etnografia uma abordagem teóricometodológica-epistemológica que tem como premissa dar voz aos atores pesquisados e que permite ao pesquisador uma troca genuína de significados com o participante ao descrever de modo significativo a realidade estudada. Assim, acredito ser a etnografia não apenas uma técnica de pesquisa, mas um aporte teórico que possibilita uma leitura da realidade. Portanto, elegemos a Etnografia para subsidiar este estudo por permitir a compreensão do espaço da escola e a dinâmica das interações de sala de aula tendo em vista o fato de que para isto é necessário estar o mais perto possível desse cotidiano a fim de melhor visualizar o interagir diário entre alunos e professores. Dessa forma será possível: “apreender as forças que a impulsionam ou que a retêm, identificando as estruturas de poder e os modos de organização do trabalho escolar e compreendendo o papel e a atuação de cada sujeito nesse complexo interacional onde ações, relações, conteúdos 47 são construídos, negados, reconstruídos ou modificados” (ANDRÉ, 1995, p. 41). A dinâmica de sala de aula, assim como as práticas pedagógicas, carecem de estudos que possibilitem uma visão ampla e específica sobre o impacto da escolarização de alunos e alunas em risco sócio-educacional. Vale ressaltar que este estudo e aqueles que serviram de base teórica para o mesmo foram realizadas no âmbito de instituições públicas, por entendermos que estas requerem atenção especial por parte dos pesquisadores. Por ser aquela que deveria oferecer a todos indiferente da classe social, cor e gênero um espaço para o desenvolvimento de suas potencialidades intelectuais. 48 3.3. Justificativa A escolha do objeto de estudo foi feita considerando as práticas pedagógicas exercidas no interior da sala de aula. No cenário da Educação encontramos estudos (MATTOS, 1992, PATTO, 1984, CARRAHER e colaboradores, 1991, PERRENOUD, 2004) apontando que apesar da implementação de políticas públicas e propostas pedagógicas (por exemplo, os ciclos) “inovadoras” a perspectiva de superação da exclusão escolar não se mostra efetiva no desenrolar das práticas de sala de aula. Devemos considerar que muitas das propostas que o sistema escolar brasileiro recebe foram construídas para a realidade escolar de outros países e quando utilizamos pelo nosso sistema não apresentam resultados positivos e acabam por criar mais dificuldades entre os professores e alunos. Exemplo disso é a proposta de ciclo de aprendizagem. De um lado, os professores que não compreendem a idéia central da proposta e de outro, os alunos que se tornam vítimas de propostas que não modificam o processo de ensino – aprendizagem em favor do aluno. Dessa forma as questões relacionadas ao fracasso escolar e às práticas pedagógicas utilizadas pelas professoras passam a ser vistas como algo que não pode promover uma educação de qualidade para os alunos da rede pública de ensino, em especial as escolas do município do Rio de Janeiro. A 49 questão da classe social, dos valores transmitidos pela família, a convivência na comunidade, a relação com os professores e com a escola tangenciam as discussões sobre as possíveis causas para o fracasso escolar. Contudo, ainda, não é possível delinear formas de superação dessa realidade excludente com que convivem esses alunos. Dessa forma, a escolha pelo objeto de estudo se faz necessária uma vez que a prática pedagógica em sala de aula está pautada em mecanismos coercitivos e de controle para que o aluno aprenda sobre a égide do medo e da punição. A realidade da escola pública que nos é apresentada nos estudos de (MATTOS, 1992 e PATTO, 1984) concorre para o fato de que as práticas pedagógicas são autoritárias e injustas, promovendo a exclusão e injustiça social. Para tal, reforçamos a idéia de que o professor precisa estar em contato com a diversidade presente na sala de aula e na escola e promover neste espaço propostas voltadas para a superação das desigualdades educacionais de alunos e alunas em risco sócio-educacional. 50 3.4. Objetivos Os objetivos do presente trabalho foram: 3.4.1 Objetivo Geral • Descrever e analisar os fatores que interferiram no controle exercido pela professora sobre os seus alunos e alunas na classe de 4ª série. 3.4.2 Objetivos Específicos • Analisar a relação entre o controle exercido pela professora e o processo de avaliação através do conselho de classe e do cotidiano de sala de aula. • Observar, analisar e descrever criticamente o comportamento do aluno frente ao controle exercido pela professora e como esse comportamento interferiu na relação dele com a professora e com os outros alunos e dela com os outros alunos. • Descrever e explicar a natureza interacional das ações entre as pessoas da comunidade, as da escola, a professora e os alunos da 4ª série estudada, isto é, como se dá a dialética interativa entre eles. 3.5. Questões de pesquisa As questões que orientaram a pesquisa de campo realizada foram: Qual a natureza do controle exercido pela professora em sala de aula, como ele interfere na avaliação do aluno? 51 Como as relações de poder existentes na escola foram determinantes para o sucesso ou o fracasso do aluno? Quais foram as suas manifestações? Como a utilização de instrumentos de vigilância e controle cria no ambiente escolar um espaço de exclusão? 3.6. Instrumentos Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram: • Observação participante, como principal instrumento (visitas semanais); • Microanálise do contexto; • Análise documental (legislação, atas escolares, fichas de alunos). A observação participante consistiu em visitas semanais à escola e à sala de aula no horário da manhã que foram previamente combinados e autorizados pela professora e pela direção da escola. Além da rotina da sala de aula acompanhamos os conselhos de classe realizados bimestralmente durante o ano. A observação participante em Etnografia possibilita ao pesquisador um aprofundamento da dinâmica interativa entre os sujeitos objetos de pesquisa. A microanálise é considerada como micro porque se estuda particularmente um evento ou parte dele, ao mesmo tempo em que se dá ênfase ao estudo das relações sociais em grupo como um todo holisticamente (LUTZ, 1983 apud MATTOS, 2001). 52 Análise documental privilegiou a organização do material produzido em sala de aula pelos alunos. Analisamos as leis comentadas nos conselhos de classe e as pautas de reuniões periódicas que eram realizadas com a secretária municipal de Educação e transmitida aos demais professores da escola. A leitura desse material foi feita para ampliar o entendimento da dinâmica escolar com as instâncias administrativas do governo municipal. Para a efetivação deste projeto de pesquisa foram utilizados: material para anotação das observações (caderno e caneta esferográfica), gravador digital para a gravação de áudio, câmera e fitas de vídeo para análise através de imagens de vídeo. O uso das imagens de vídeo contribuiu para um maior entendimento das ações ocorridas nos eventos interativos de sala de aula. Os dados coletados em videoteipe permitiram o registro mais detalhado do contexto estudado auxiliando na compreensão que temos dos eventos, ações, atos, fatos e falas que implicaram em mudanças na rotina dos sujeitos pesquisados. O vídeo permite a recursividade ao ambiente pesquisado. Isto é, o evento pode ser revisado quantas vezes se fizerem necessárias pelo pesquisador. O pesquisador deseja, ao usar esse tipo de análise, determinar se as conclusões e generalizações identificadas num determinado evento recorrente são pertinentes e validadas particularmente para cada evento no contexto estudado, assim como, para outros contextos. Este procedimento facilita a identificação de pontos importantes de contraste e semelhança 53 entre eventos recorrentes, assim como eventos raros. O pesquisador deve manter sua atenção a todos esses eventos. O uso do vídeo facilita a descrição de conjuntos de ações complexas e difíceis de serem descritas, pois em geral exigem vigilância atenta do observador que pode não conseguir captar alguns detalhes interativos das situações rotineiras. Por exemplo, observar o movimento de professores e professoras, de alunos e alunas em uma sala de aula ou observar uma reunião de conselho de classe. Os procedimentos de filmagens envolvem pelo menos cinco fases (ERICKSON, 1992). Inicialmente o foco é no evento como um todo, o pesquisador está interessado na seqüência completa da cena, sem pausa ou diminuição da velocidade do vídeo. Anotações de campo são revistas e novas anotações são feitas enquanto o vídeo é re-visitado, desta forma, novas informações de campo sobre o contexto são inseridas. As notas são utilizadas na identificação e localização aproximada das principais atividades dentro do evento e das seqüências da ação verbal e não verbal que possam ser de interesse. A segunda fase envolve a identificação das principais transições (limites) entre os eventos. Movimentar a fita de vídeo para frente e para traz é o procedimento geralmente utilizado para identificar essas transições entre os eventos. Existem pelo menos três pontos seqüenciais principais em um evento: o início, o foco principal da ação e a conclusão. 54 Por exemplo, as mudanças na arrumação físicas do setting de pesquisa podem fornecer pistas para mudanças na natureza da atividade no evento. A postura, troca de olhares e distância interpessoal que definem os padrões das relações físicas entre os participantes, chamadas por Kendon (1979), de formações em F. Os papéis sociais, identidades sociais e hierárquicas são aspectos do padrão total da organização social, chamado de enquadre ou estrutura de participação (GOFFMAN, 1981, ERICKSON e SHULTZ, 1977, ERICKSON, 1982). A terceira fase de análise de vídeo envolve os aspectos de organização do evento. O pesquisador define, nesta fase, a estrutura de participação social em detalhes ainda maiores do que no estágio dois, especificando as contribuições relativas dos vários participantes do evento. Por exemplo, a fala e a ação não verbal são identificadas pela freqüência em que aparecem no discurso do participante em várias situações de sua rotina. As falas típicas são associadas a ações que elas envolvem ou podem ser definidas pela seqüência de ação não verbal. O que caracteriza esta fase é a dialética interativa entre os participantes, a influência mútua entre eles ou elas no evento, não as ações de pessoas individualmente consideradas isoladas das ações umas das outras. Destacamos que na participação interativa pode existir um participante primário e dois ou mais diferentes participantes secundários (audiência). Na estrutura de organização do evento o foco vai ser selecionado de acordo com a sua importância para o evento. 55 A fase quatro tem como foco as ações individuais através da descrição detalhada do comportamento verbal e não verbal dos participantes na ação identificada na fase anterior. O tipo de transcrição realizada para esta fase é a mesma feita por lingüistas, analistas de discurso e pesquisadores em comunicação não verbal. É uma transcrição teoricamente guiada por convenções de transcrição e por propósitos analíticos definidos previamente pelo pesquisador e deve mostrar as relações entre as atividades dos vários participantes. Por exemplo, se a fala de uma pessoa é mostrada, as ações não verbais simultâneas de um ouvinte podem ser mostradas na transcrição de tal modo que, não somente a ocorrência da ação não verbal é evidenciada, mas sua posição seqüencial em relação à fala do participante. O que se pretende dar atenção são as diferenças culturais evidentes nas formas de organização da interação. Tais diferenças podem produzir para os eventos, diferentes ambientes para as pessoas de diferentes origens ou disposição temperamental. Portanto, uma compreensão detalhada da organização comportamental dos eventos interacionais tem significado potencial na pesquisa educacional: pode nos ajudar a entender como diferentes tipos de interação nas situações de ensino e aprendizagem podem ser vivenciados. A quinta e última fase propõe uma análise comparativa das situações selecionadas como recorrentes e sua pertinência no corpo de análise da pesquisa como um todo e em outras situações externas à pesquisa. As interações, típicas ou atípicas, que ocorrem em todas as interações gravadas 56 em vídeo são comparadas ao que foi observado e documentado nas notas de campo, mas não foi registrado. Tal comparação pode ser realizada identificando situações através de diferentes eventos e das diferentes fases dentro deles. Separa-se uma das cenas a ser microanalisada e após essa comparação é identificada sua representatividade dentro do âmbito da totalidade dos eventos selecionados. As notas gerais feitas nos estágios um e dois da revisão do vídeo servem como um índice para a essa comparação. Por exemplo, todas as tarefas realizadas por um determinado grupo de alunos e alunas podem ser selecionadas e revisadas. Esta revisão pode ter como foco uma função ou atividade específica (ex: se durante a execução da tarefa o aluno ou aluna demonstrou um artifício – verbal ou não – para persuadir alguém no grupo). Os eventos, típicos e atípicos, podem ser comparados e suas freqüências relativas são relatadas em quadros sinóticos ou quadros de freqüência. Deste modo o pesquisador identifica as discrepâncias que poderiam validar ou invalidar as conclusões e que podem ser inadvertidamente ignorados. O uso de imagens de vídeo nesse trabalho foi feito por auxiliar na pesquisa educacional nas discussões com o orientador e o grupo de pesquisa suscitando novas interpretações ou ainda, interpretações adicionais derivadas da observação participante. É possível, ainda, que o uso do vídeo forneça uma nova dimensão às pesquisas sobre as interações face a face, 57 ampliando as lentes de visualização e significação dos fenômenos psicossociais nessas interações (MATTOS & CASTRO, 2004). 58 3.7. Participantes No que se refere à relação entre os participantes do processo de pesquisa etnográfica, a utilização dos termos objeto ou sujeito se dá, nesse estudo, de modo espontâneo e colaborativo. O participante é entendido por Geertz (1989) como um indivíduo que elabora conhecimentos sobre a realidade que o circunda e, deste modo, pode contribuir para significar os dados de pesquisa e interpretá-los. Foram participantes primários dessa pesquisa a professora, alunos e alunas de uma 4ª série de Ensino Fundamental Público do município do Rio de Janeiro. São participantes secundários os outros professores, diretores e membros da comunidade escolar, as famílias e pessoas responsáveis pelas crianças e jovens estudados e os membros dos conselhos de classe assim como membros da comunidade onde se localiza esta escola sempre que os mesmos se envolverem com os alunos estudados durante o período de coleta de dados e sempre que necessário para esclarecer alguma dúvida. Os alunos da 4ª série do ensino fundamental com idades variando entre 09 (nove) e 11 (onze) anos são, em sua maioria, residentes da comunidade onde está localizada a escola estudada. São alunos dessa escola desde o início do processo de escolarização, apenas 2 (dois) alunos dessa sala eram novatos tendo vindo um do nordeste do Brasil e o outro do norte fluminense. 59 Os pais dos alunos, em geral, não possuem escolaridade completa, são em sua maioria oriundos da região nordeste do país. Eles têm como ocupação funcional trabalhos ligados à construção civil, transporte de cargas, atividades religiosas (muitos são pastores das igrejas locais) e atividades domésticas. Há ainda, na escola pais e mães que se encontram em regime carcerário e os filhos são criados por familiares ou vizinhos. A professora da sala de aula estudada colaborou com a pesquisa auxiliando no entendimento da prática pedagógica. Ela foi bastante cordial com a pesquisadora fornecendo explicações, sempre que solicitada, para significar o material coletado. Contamos ainda, em nossas visitas com a participação dos professores da escola, da diretora e vice-diretora e coordenadora pedagógica. Os encontros com esses atores se davam, especialmente, durante as observações dos conselhos de classe. Vale ressaltar o agradecimento à professora Sheila7, aos alunos e alunas e funcionários da escola pela cordialidade com que nos receberam e pela colaboração com a nossa pesquisa. 7 Assim chamada a fim de preservar a identidade dos participantes da pesquisa. 60 3.8.Setting A escolha do lócus de estudo está relacionada à importância de aprofundar os estudos sobre a sala de aula mesmo que esta se apresente de forma amplamente conhecida por nós. A análise produzida por Mattos e Castro (2005) sobre a visão da sala de aula demonstra que apesar de possuirmos em nosso imaginário uma descrição nítida desse espaço existem aspectos que carecem de um estudo aprofundado. Tal familiaridade nos desperta a sensação de que as imagens que construímos podem ser enganadoras, quando revivemos cenas que nos marcaram a vida toda. Como pessoas portadoras de um conhecimento vivido sobre a sala de aula e, sobretudo o mais que acontece nesse espaço, o que é meramente evidente, não podemos simplesmente “enquadrar” a imagem que nos vem à mente. Podemos, portanto, afirmar que as nuances das cenas vividas em sala de aula são enganadoras aos olhos de quem vive cotidianamente essa experiência. É necessário, para descortinar essas imagens mais tênues da sala de aula, um olhar mais atento para as sutilezas das práticas pedagógicas por meio das quais ambientes de aprendizagem são constituídos interativamente. (MATTOS & CASTRO, 2005). A escola onde realizamos o trabalho de campo está localizada na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de uma escola pública – Centro 61 Integrado de Educação Pública – com funcionamento em horário integral para alunos de 1ª a 4ª série do ensino fundamental. A sala de aula que visitamos durante quatro meses de trabalho de campo é 4ª série do ensino fundamental. Ainda, durante o ano de 2004 freqüentamos os Conselhos de Classe que aconteciam na sala de leitura. As visitas aos conselhos de classe completavam o entendimento que possuíamos da rotina de sala de aula e o modo como os alunos são avaliados. As análises dos conselhos nos deram, ainda, pistas sobre o funcionamento da escola com atores externos tais como: a comunidade, a Secretaria Municipal de Educação, a Coordenadoria Regional de Ensino e demais instâncias governamentais. 62 3.9. Processo de análise e interpretação dos dados 3.9.1. Reflexividade do pesquisador: trabalho de campo à deriva Reflexividade8 é o processo de refletir sobre a própria prática. Em etnografia o pesquisador utiliza a reflexividade para proceder as análises de dados. A utilização da abordagem etnográfica requer longos períodos de observação do campo estudado. Após esse período de contato com os participantes da pesquisa é comum sentir-se parte do local integrando-o ao seu campo de conhecimento. As considerações a seguir foram traçadas a partir da minha experiência enquanto pesquisadora. Acredito que os momentos de tensão onde o pesquisador esteja extremamente concentrado em seu trabalho de campo e não seja possível preservar a postura do pesquisador com relação ao pesquisado, ou seja, sem realizar interpretações a priori do campo, ele deve se afastar, de modo que aconteça um terceiro momento em sua pesquisa. Considerei em meu trabalho de pesquisa três momentos. O meu primeiro momento do trabalho de campo foi o contato com a escola, a entrada no campo, a coleta de dados; o segundo foi o início do processo de análise e 8 “A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias praticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. (GIDDENS, 1991, p.45) 63 categorização dos dados e o terceiro momento foi o afastamento em busca de re-significação dos dados à luz das teorias que sustentam a prática de pesquisa a partir da intersubjetividade que foi criada no setting9 pela subjetividade do sujeito pesquisado. Esse momento de saída do setting ocorreu a fim de não ficar a análise dos dados “contaminada”, transformada em mera especulação de dados e apreensões que não estivessem pautadas em uma abordagem teórica que pudesse oferecer sustentação para a análise de dados. Inicialmente foi criado um setting um espaço analítico para que fosse possível estabelecer uma relação entre o pesquisador e o sujeito. Portanto, de acordo com a definição utilizada, a postura do pesquisador determina o setting a ser explorado. A seguir durante a finalização do processo de coleta de dados, houve uma negação dos dados. Freud (1969) nos explica que essa negação ocorre quando: “o ego se encontra em posição de desviar alguma exigência do mundo externo que acha aflitiva, e que isto é feito por meio de uma negação das percepções que trazem ao conhecimento essa exigência oriunda da realidade” (FREUD, 1969, Edição Eletrônica). Sabemos que o trabalho etnográfico requer um grande número de visitas e envolvimento com o material pesquisado, citando Geertz (1989), onde o pesquisador estuda o campo no campo, resultando num aprofundamento diário da rotina pesquisada. 9 Em psicoterapia, assim como em pesquisa, o setting é o ambiente analítico, o todo que possibilita a análise. O Setting é o limite entre o espaço social e terapêutico, cria um novo espaço, com regras e papéis diferentes. (...) A postura do analista determina o setting. (MELLO FILHO, SILVA & Col., 1995, p.99). 64 O lócus do estudo não é o objeto do estudo. Os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças...), eles estudam nas aldeias. (GEERTZ, 1989, p.32) Tal envolvimento e aprofundamento causaram um descontentamento da pesquisadora com a realidade da escola e com as condições pedagógicas da sala de aula. Dessa forma, para que esse trabalho não fosse contaminado e descartado, ocorreu o afastamento e finalmente a preservação do setting havendo a possibilidade de resgatá-los sem a carga afetiva que impossibilita a interpretação dos mesmos. “A partir de uma análise da estrutura dos atos de fala, por meio da identificação de diferenças na textura da atividade dos participantes no decorrer do tempo e da especificação das alternativas que são culturalmente apropriadas nos pontos de mudança na textura, o analista se torna capaz de descrever as inferências feitas pelos participantes quando estes produzem a ocasião social. A elaboração de modelos, derivados empiricamente da organização do desempenho interacional com ênfase nas partes elementares das ocasiões e nas articulações entre elas é, portanto, o primeiro passo na direção do desenvolvimento de modelos da competência social dos participantes de uma interação. É adequado, portanto, trabalharse analiticamente do nível mais orgânico do plano para baixo, ao invés de partir do nível molecular da palavra, gesto, ou frase – ou mesmo do ato de fala – para cima” (ERICKSON & SHULTZ, In RIBEIRO & GARCEZ, 1998, p.147). Durante o trabalho de campo enquanto assistíamos às aulas e aos conselhos de classe, pensávamos como seria possível alfabetizar ou trabalhar pedagogicamente em condições tão precárias. Depois de um certo tempo, durante minhas observações, começava a pensar sobre o meu processo de alfabetização, minha escola e meus professores. Isso se deu por entender que haviam inúmeras mudanças a serem implementadas para 65 que aquele local pudesse oferecer melhores condições sócio-educacionais para seus alunos e alunas, professoras e demais funcionários. Ao fim das observações de campo nos sentíamos parte daquele lugar. Os sentimentos de raiva e angústia tomaram conta das análises. Por muitas vezes, questionamos como seria possível alcançar as metas que são previstas pelas leis educacionais sentíamo-nos deslocados no meio de falas, gritos, comportamentos que caracterizavam a prática pedagógica daquele ambiente escolar. Teríamos que transformar o conhecimento das práticas da sala de aula e dos conselhos de classe em teorias significativas e construí-lo com esforço permanente na passagem da teoria à prática de maneira dialética contando com a colaboração da abordagem etnográfica de pesquisa. “Não temos a possibilidade de entender tudo o tempo todo. Mas o importante é sabermos reconhecer que estamos sem entender, perdidos dentro do material, sem que isso nos cause maiores aflições, já que faz parte do processo. Devemos nos dar conta destes momentos e não perder a perspectiva, mantendo a capacidade de estarmos atentos, na expectativa de voltar a entender, assim que possível” (MARCHEVSKY, 1995, p. 27). Para analisar o processo de ruptura com esse trabalho, mergulhamos nos acontecimentos circundantes do mesmo estudamos a realidade social da escola, as leis, a proposta pedagógica, re-visitamos o setting pela microanálise de vídeo e chegamos às categorias desse trabalho. Isso culminou com o entrelaçamento das categorias / temas com a educação pelo controle. 66 Foi preciso ampliar os sentidos que nos guiaram em meio às tempestades para conseguir re-significar o material e transformá-lo em dado passível de análise. 67 3.10. Apresentação das categorias temáticas A análise de dados partiu das observações da interação em sala de aula entre professora e alunos e dos conselhos de classe que culminaram nas categorias. A palavra categoria, em grego, significa atribuir uma qualidade a um sujeito (caráter, espécie). Atualmente, este sentido de atribuir uma qualidade surge com a finalidade de “possibilitar” a análise do objeto ou campo de estudo. Porque eu atribuo a sujeitos distintos a mesma qualidade posso assim agrupá-los. Em pesquisa, este agrupamento se dá a partir das semelhanças que encontramos entre as diferentes manifestações do objeto. No nosso trabalho, a partir da interação professor – aluno e professor – professor nomeamos as categorias à medida que analisávamos o material transcrito das imagens de vídeo. Este foi o primeiro momento de nossas análises. Num segundo momento re-visitamos as transcrições e contabilizamos o número de vezes que cada categoria emergiu indutivamente10 das interações em sala de aula e nos conselhos de classe recursivamente, num procedimento de ir e vir procurando fazer sentido do que era aparente no vídeo. Tal procedimento foi feito à luz do que constava em nossas notas de 10 O método indutivo baseia-se na crença de que é possível confirmar um enunciado universal (lei) através de um certo número de observações singulares. O argumento indutivista baseia-se na crença no princípio da indução que, dentre outras formas, pode ser enunciado como: "Se, em dadas condições, um determinado fenômeno, sempre que pesquisado, se repetiu, em futuras verificações o mesmo sucederá” (FILHO, p.5). 68 campo, com a ajuda da nossa memória do local pesquisado. Embora determinadas categorias tenham tido um padrão de recorrência maior que outras, isso não invalidou a sua importância em função da inter-relação existente entre elas e a temática central. Derivadas das categorias de análise apresentaremos os resultados sob a forma de vinhetas etnográficas11. A vinheta etnográfica é uma forma peculiar de descrição narrativa onde o pesquisador utiliza-se da fala do informante para sustentar suas hipóteses, e as hipóteses das teorias que emprega como pressuposto de suas análises teóricas. As vinhetas etnográficas são utilizadas em nosso trabalho para ilustrar os momentos onde evidenciamos a prática controladora por meio das categorias elencadas. A apresentação dos resultados da análise de dados foi dividida em dois momentos: a sala de aula e os conselhos de classe. A divisão foi estabelecida porque durante a análise do material percebemos a existência de uma inter-relação entre os acontecimentos ocorridos no cotidiano de sala de aula e as decisões tomadas nos conselhos de classe. Os nomes das professoras, dos alunos e demais funcionários da escola aqui retratados são fictícios no intuito de preservar a ética na pesquisa. Nenhuma associação com nomes é intencional ou deve ser inferida. 11 Vinhetas etnográficas são ilustrações produzidas a partir das descrições e interpretações dos dados de campo acompanhadas de material de ligação e interpretação consubstanciadas ou não por elementos teóricos (MATTOS, 2001). 69 Na sala de aula encontramos as seguintes categorias descritas abaixo, o seu padrão de recorrência, a tipicalidade dos fatos ou fenômenos, eventos, ações e falas na sala de aula. Dessa forma, organizando as categorias pela recorrência e tipicalidade foi possível identificar e nomeá-las para efeito de análise12. Quadro I – Categorias temáticas da sala de aula Freqüência Categoria Significado temática 74 45 31 21 14 10 Corpo Tarefa Agressão Espaço Barulho Tempo Refere-se ao controle exercido sobre o movimento dos corpos dos alunos em sala de aula. Apresenta-se como a dificuldade dos alunos em compreenderem o sentido da tarefa. Agressões verbais e físicas em sala de aula entre professor x aluno e aluno x aluno. Determinação do espaço ocupado pelos alunos dentro e fora da sala de aula. As conversas de alunos e professores dentro e fora das salas de aula. A delimitação/ordenação do tempo pela professora para a realização das atividades dos alunos e necessidades fisiológicas. Nos Conselho de Classe evidenciamos nos eventos, ações, cenas, fatos, atos e falas dos professores, coordenadora pedagógica, diretora e vicediretora as seguintes categorias: 12 Os quadros foram baseados nos pressupostos Spradley (1980) e no processo bottom-up Mattos (1992). 70 Quadro II – Categorias temáticas do conselho de classe Freqüência 102 Categoria temática Problemas de aprendizagem 74 Problemas familiares 71 Faltas 60 Espaço 52 Medicalização 51 Tempo 50 Violência 44 Estigma 36 Nota 10 Conselho Tutelar Significado Dificuldades apresentadas pelos alunos e apontados pelos professores como problemas de aprendizagem Responsabilização dos pais, pelos professores, por problemas psíquicos e de aprendizagem apresentados pelos alunos. Atribuição aos alunos de baixo rendimento escolar devido a freqüência. Definição pelos professores e coordenadores dos espaços a serem utilizados pelos alunos na escola. Atribuição do espaço como fator de dificuldade na interação de sala de aula. Encaminhamento de alunos para diagnóstico clínico. Definição de parâmetros médicos para identificar a ação e / ou aparência de alunos Identificação do tempo para as atividades dos alunos. Violência relacionada ao: funcionamento da escola; relações com a comunidade; relacionamento entre alunos e professores; relação entre alunos. Atribuição de estereótipos aos alunos a partir de características pessoais e familiares. Atribuição de notas de acordo com critérios não acadêmicos: comportamentais, de utilização do tempo, de atividades relacionadas à violência. Utilização do Conselho como uma instituição de punição fora do alcance da família; ameaça de encaminhamento de pais e alunos faltosos para o Conselho. Foi a partir da definição de quais categorias guiariam o nosso processo de análise que pudemos observar o entrelaçamento que elas possuíam. A temática central do trabalho – controle – está diretamente relacionada com 71 as categorias uma vez que elas passam a ser objetos e objetivos do exercício do controle. Selecionamos cenas, eventos, fatos, atos, ações e falas do material coletado que possibilitassem o entendimento dos mecanismos de controle utilizados tanto em sala de aula como nas interações entre professores, coordenação e direção da escola. Foi somente após a leitura criteriosa e profunda do material que se estabeleceram as categorias de análise e as cenas que explorassem a temática do trabalho. Na sala de aula entendemos por controle dos corpos o estabelecimento pela professora de limites para a circulação dos alunos nesse espaço. Presenciamos, durante nossas visitas, solicitações da professora para que os alunos se mantivessem em suas carteiras, que não andassem pela sala e que sentassem “com modos”. Sheila: Quer sentar direito? Dá pra sentar com modos? A categoria tarefa tornou-se objeto privilegiado de nossas análises, uma vez que percebemos sua dupla funcionalidade. Ela aparece ora como objeto de controle da professora, ora como mecanismo utilizado pela mesma. A tarefa é objeto de controle quando a professora através do controle dos corpos e do espaço, sobretudo, maneja a turma para o engajamento no trabalho escolar. Por outro lado, a tarefa se constitui enquanto mecanismo de controle, quando a partir das mudanças constantes na atividade proposta, a professora mantém o controle sobre os alunos para que eles estejam 72 engajados na tarefa em sala de aula sem a dispersão habitual com assuntos relacionados ao cotidiano deles. Consideramos agressão todos os eventos em que se tornou evidente pela interação professor x aluno e aluno x aluno onde um dos atores envolvidos é lesado na sua integridade física ou moral. A utilização de expressões populares para ameaçar os alunos quanto a uma possível reprovação representa uma agressão verbal assim como a solicitação de silêncio: “Cala a boca”, o escrutínio dos alunos: “Você lê muito baixinho” e lições do tipo “você já tá bem grandinho” e quando a professora, numa postura autoritária, intimida os alunos com uma régua. Isso ocorre quando ela anda por entre as carteiras batendo a régua na mão e nas mesas, alertando quanto ao tempo gasto para as tarefas. A agressão física é percebida na sala de aula na interação entre os alunos quando estes agridem uns aos outros. Tal comportamento tumultua o ambiente da sala de aula e a solução é a ameaça de expulsão da sala. O evento abaixo é um dos momentos onde eles iniciam uma briga e o aluno denominado Breno é solicitado a sair da sala de aula. André: Ô tia, olha aqui tia, tá me atrapalhando. Breno: Você só fica falando, bate logo. A definição do espaço a ser ocupado em sala de aula pelos alunos torna possível a vigilância e controle dos corpos, uma vez que é a professora que delimita a ocupação deste espaço. Ocorre, entretanto, que ao infringir os 73 limites estabelecidos por ela, o aluno é expulso de sala e passa a utilizar o corredor como espaço na escola para a aprendizagem. Na categoria barulho destacamos dois momentos distintos. A elevação da entonação de voz e o tráfego intenso de veículos nas proximidades da escola atuam diretamente sobre as condições de ensino-aprendizagem. Inicialmente levantamos a hipótese de que a altura da voz da professora estava relacionada ao fato de existir um barulho constante e excessivo da rua dentro da escola. Por este motivo, a professora para ser ouvida pelos alunos precisava de um tom de voz elevado. Contudo, percebemos que tal elevação ocorria nos momentos em que ela tentava retomar o controle da turma pela imposição de voz, fato este que estava relacionado com a dinâmica da sala de aula e não com o tráfego de veículos. Ao considerar o barulho externo estamos mencionando um fato que interfere na dinâmica da escola como um todo, uma vez que existe por parte dos professores tal consideração nos conselhos de classe. A reclamação de rouquidão é freqüente entre professores e direção que atribuem a esse fluxo de veículos a causa de ter necessidade de elevar a voz a todo instante. A dimensão temporal é explorada em nossas análises como fator de delimitação do tempo gasto para a realização de cada atividade e para a satisfação das necessidades fisiológicas. O tempo gasto para a realização da tarefa é entendido aqui como sendo utilizado para medir a capacidade do aluno no cumprimento da tarefa, 74 inviabilizando o seu tempo de aprender. Tempo este que difere de um indivíduo para o outro. Outro tempo controlado é o de ir ao banheiro. O aluno ao solicitar à professora a ida ao banheiro recebe uma resposta negativa. A solução encontrada nos conselhos de classe para as idas ao banheiro foi a de marcar no relógio e vigiar na porta o tempo gasto pelos alunos para irem ao banheiro e retornarem à sala de aula. A solicitação dos alunos para saírem da sala e irem ao banheiro é inicialmente negada pela professora sob a alegação de que ele não retornará para a sala e ficará passeando pelos corredores da escola conseqüentemente importunando os alunos de outras salas. A solução encontrada nos conselhos de classe foi a de delimitar no relógio o tempo gasto entre a saída de sala e o retorno à mesma. As categorias encontradas nos conselhos de classe estão ligadas à percepção que as professoras, a coordenadora e a direção possuem sobre os alunos. É comum encontrarmos nos conselhos de classe o que Mattos (2005) define como orquestração; “A orquestração caracteriza-se por expressões articuladas, de forma interpolada, em conjunto, pelo grupo, constituindose numa decisão final sobre o sucesso ou fracasso do aluno ou da aluna” (MATTOS, 2005, p. 215). Isto é, a percepção de um professor a respeito de determinado aluno é acatada pelos demais em um processo que leva à estigmatização e a eminente exclusão escolar do mesmo. 75 Nos conselhos de classe visitados, percebemos constantemente situações em que os professores se reportam ao histórico comportamental, familiar e de saúde física e mental dos alunos, para sustentar a sua argumentação, na maioria dos casos negativa, com relação ao aluno. Tal discurso dos professores acaba por definir o futuro escolar desses alunos, como a reprovação iminente. A reprovação é determinada por fatores que tangenciam as interações em sala de aula, mas não podem ser tomados como condição sine quo non para tal. Dentre esses fatores encontramos os seguintes: problemas de aprendizagem, problemas familiares, faltas, espaço, medicalização, tempo, violência, estigma, nota e Conselho Tutelar. A discussão pedagógico x clínica surge nos conselhos de classe para justificar que as dificuldades de aprendizagem, inerente ao processo de aprender de todo aluno, encontram-se fora do contexto escolar. Os problemas de aprendizagem se caracterizam por serem uma incapacidade ou impedimento temporário ou permanente para aquisição da lecto-escritura, cálculo ou aptidões sociais. Contudo, o conceito é tomado pelos professores sem que para isso haja a devida constatação clínica, ou seja, um diagnóstico sobre o problema. Um exemplo encontrado em nossas análises é a associação da ansiedade de uma aluna com um diagnóstico de dislexia. Na definição de Mousinho (2004) a dislexia é um transtorno específico de leitura que não está ligado a fatores tais como: dificuldades visuais, auditivas, problemas emocionais, distúrbios neurológicos ou dificuldades socioeconômicas. 76 A participação da família na escola cria um espaço de diálogo que auxilia no rendimento escolar do aluno. Contudo, percebemos que o contato com a família do aluno é utilizado como uma ferramenta de exclusão escolar. Os problemas familiares são evocados pelos professores nos conselhos também como alternativa para encontrar um culpado para as dificuldades escolares dos alunos. A questão “de quem é a culpa do fracasso escolar” ainda permeia as discussões dos professores que tendem a projetar toda e qualquer dificuldade encontrada no âmbito escolar para fatores externos a ele. Os professores associam o comportamento dos filhos às atitudes e comportamento dos pais quando de sua ida à escola. E ainda, com os irmãos e demais parentes que estão matriculados na mesma escola. A falta escolar é prevista em lei (LDB) como sendo um direito tanto de professores quanto de alunos. O ano possui 200 dias letivos e o limite de faltas do aluno é de 25%, o equivalente a 50 dias. Os professores afirmam nos conselhos de classe que as faltas prejudicam os rendimentos escolares. Concordamos com esta afirmativa dos profissionais em parte, pois existe um limite de faltas que eles não consideram ao associar o aluno faltoso com o aluno “fraco”. Nossos estudos evidenciaram que os alunos tidos como faltosos não ultrapassaram o limite de faltas previsto. Assim sendo, podemos inferir que se as faltas previstas em lei dificultam ou prejudicam o rendimento escolar do aluno, o problema 77 não está na quantidade de faltas que ele tenha, mas no estabelecido pela lei como o número permitido de faltas que não devem influenciar nos resultados escolares. A categoria espaço evidenciada na fala das professoras nos conselhos de classe aponta uma preocupação com o espaço a ser ocupado em sala de aula – as carteiras – e com a movimentação na estrutura física da escola que é limitada pelas regras estabelecidas pela direção, dentre as quais destacamos: a não permissão ao aluno para circular pelos corredores, entrar em salas de aula de outros professores e utilizar a quadra de esportes durante o recreio ou atividades esportivas. A distinção entre ocupação e movimentação no espaço escolar está relacionada com o controle do espaço pela visibilidade. Na sala de aula observada é permitido ao aluno somente permanecer sentado no espaço de sua carteira, o que facilita a identificação do mesmo pelo professor e o controle sobre a sua movimentação dentro da sala de aula. No espaço físico da escola um acontecimento que nos chamou a atenção foi quanto à impossibilidade de utilização da quadra pelos alunos. O argumento utilizado pela direção e coordenação foi o de que a quadra de esportes estaria situada fora da visibilidade das janelas da escola. Uma vez que os alunos estão na quadra não é mais possível controlá-los. Os exemplos acima elucidam uma forma de controle a partir do espaço físico e determina, na visão dos professores, que a partir da visibilidade adquirida 78 por tal controle seja possível determinar o grau de rendimento que o aluno terá na sala de aula. O aluno que permanece sentado em sua carteira e não anda pelos corredores é um aluno que tem possibilidade de apresentar resultados escolares satisfatórios. Com isso, queremos destacar que a prática recorrente entre os professores de atribuir fatores secundários ao desempenho escolar também se evidencia na delimitação do espaço físico. A medicalização como categoria está implicada na atribuição de aspectos médicos aos eventuais problemas encontrados na sala de aula. Quando analisamos os problemas de aprendizagem apontados, ressaltamos a importância de um diagnóstico médico adequado para a constatação de algum desses possíveis problemas. Entretanto, ao destacarmos a medicalização como uma categoria em nossos estudos, fazemos referência a uma prática dos professores em considerar doença todo e qualquer problema que o aluno venha a apresentar em seu processo de aprendizagem. Reportamo-nos novamente ao exemplo onde a professora associa a dislexia à ansiedade e esta como causa da dificuldade de aprendizagem da aluna. Tal fato nos revela um duplo equívoco por parte dos docentes: o diagnóstico fundamentado em saberes empíricos e a falta de conhecimento acerca dos fatores que caracterizam uma doença e o tratamento adequado a ser dado. O recorte desse evento no conselho de classe demonstra tais equívocos e ainda ao invés de proporcionar um encaminhamento adequado, as professoras estão baseando o diagnóstico de dislexia em materiais recolhidos entre elas. 79 Se no discurso está presente a tentativa de esgotar na escola as possibilidades de solução de um suposto problema (dislexia), na prática isso pode acarretar dificuldades mais profundas no cotidiano desse aluno. Até que seja encontrada uma solução para o problema levantado, o aluno portará o diagnóstico atribuído a ele, possivelmente causando outros problemas em sala de aula. Coordenadora: Josy, a Rose está desconfiada de que ela tem dislexia. Vice-diretora: ela é muito ansiosa. Rose: eu acho que ela tem dislexia sim. Coordenadora: eu acho, aliás, que quem tiver algum material, a gente tá recolhendo material pra tentar resolver o problema, contribuições. O professor deve, juntamente com os outros membros escolares, esgotar as possibilidades do processo de aprendizagem na prática pedagógica, que está no âmbito de sua atuação. Caso se apresentem dificuldades que extrapolem seus conhecimentos acadêmicos, este deve buscar a orientação de um profissional que lhe pareça mais adequado ao diagnóstico inicial dado por ele. O tempo é tido pelos professores como fundamental no controle das atividades gerais da escola, tais como: o tempo que os alunos utilizam em sala de aula para a execução das tarefas pedagógicas, o tempo utilizado para as necessidades fisiológicas, para a merenda e o caminho percorrido para a sala de aula. Nesta categoria podemos afirmar que o tempo a que se referem às professoras é regido pelo chronos. Entretanto, um outro tempo o 80 qual não é referido na fala dos professores, mas em que está imbricado o processo de ensino – aprendizagem é o chamado tempo Kairós. Chronos, em português, é o radical das palavras cronologia e cronômetro. A noção de tempo advém da Grécia Antiga e está ligada à prepotência, orgulho, arrogância e domínio. Tais idéias nos oferecem subsídios para entender o caráter controlador que o tempo adquire nas instituições de ensino. É preciso controlar o tempo para manter a produtividade e atingir bons índices de rendimento. Kairós se refere na antiguidade grega aos aspectos qualitativos do tempo, ao momento certo para a realização de determinadas atividades. É uma noção de tempo que não está ligada à opressão de chronos onde as coisas devem ser feitas dentro de um tempo delimitado. Kairós permite essa flexibilização do tempo abrindo caminhos para a concretização das atividades no tempo oportuno. Posto isto, percebemos que no ambiente escolar os alunos e alunas recebem um tempo (chronos) para realizarem suas tarefas. A todo o momento a professora questiona quanto ao final da tarefa não permitindo que o aluno desenvolva suas potencialidades em seu próprio tempo (kairós). Vale ressaltar que o reconhecimento de kairós no processo de ensinoaprendizagem não nega ou anula o tempo chronos, apenas o relativiza colocando no bojo desse processo o aluno e não a tarefa a ser cumprida. O professor nas atribuições de sua função em sala de aula deve estar ciente da necessidade de se respeitar o tempo de aprendizado de cada aluno e 81 manter uma dinâmica de sala de aula que fomente a criatividade e a individualidade de cada aluno. Um aspecto da realidade social que atinge cada vez mais o funcionamento das instituições de ensino é o aumento dos índices de violência nas grandes cidades. Um fator que é determinante para a convivência com a violência é a proximidade com áreas consideradas de risco pelas entidades de segurança pública. Embora o termo violência sugira atos violentos e vandalismo, na escola ele assume diferentes papéis. Em nossos estudos, constatamos que alguns alunos são apontados pelos profissionais da escola como sendo os responsáveis pela criação no espaço escolar de núcleos de violência. Esses núcleos se caracterizam pelas lideranças em sala de aula, brigas entre alunos e favoritismo junto à direção, coordenação e demais profissionais da escola em função de uma possível ligação com o tráfico local de drogas. Nos conselhos de classe, a violência doméstica também serviu de pano de fundo para expor o comportamento dos alunos na escola. Tais exposições dão início a um processo de estigmatização do mesmo. A categoria estigma aparece em nossas análises para demonstrar como uma característica atribuída ao aluno num determinado momento pode acompanhá-lo em toda a sua trajetória escolar. Tais denominações são freqüentes e servem para identificar mais facilmente os alunos e alunas e seus respectivos parentes matriculados ou não na escola. 82 O conceito, por sua vez, constitui-se como um dos principais elementos do controle escolar. É através desse ato de atribuir valores ao desempenho acadêmico que o professor mantém o aluno sob a égide do medo de ser reprovado. A utilização do termo conceito prevê uma avaliação global do aluno, incluindo comportamento e participação na sala de aula. Porém, a avaliação comportamental é demasiadamente utilizada pelos professores na classificação conceitual de alunos e alunas, sobrepondo-se aos demais aspectos a serem considerados na dinâmica de sala de aula. O Conselho Tutelar (CT) surge como mais uma instância externa à escola para solucionar questões no âmbito educativo. Está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente que o CT deverá atuar quando estiverem esgotadas as alternativas escolares que visem a solução da problemática apresentada. Contudo, o que se percebe, nos conselhos de classe é a utilização do CT como mecanismo de controle e ameaça aos pais e alunos. O Conselho Tutelar que é uma instância jurídica a ser utilizada em benefício do aluno acaba por se tornar uma ameaça aos mesmos, uma vez que estes não possuem o devido esclarecimento acerca da função e objetivo dos CTs. A descrição das categorias encontradas nas análises de dados serviu de base para a apresentação dos resultados do trabalho. Na segunda parte do mesmo faremos a apresentação das vinhetas etnográficas utilizando as 83 descrições das categorias encontradas em sala de aula e nos conselhos de classe observados. 84 PARTE II 1. Análise e resultados Nesta segunda parte da dissertação, faremos uma análise das categorias / temas relacionadas ao tema central encontradas nas falas de professores e alunos em sala de aula e nos conselhos de classe. A análise e a apresentação dos resultados foi dividida em dois contextos; a sala de aula e os conselhos de classe. Percebemos como a avaliação dos alunos feita nesses conselhos de classe exerce influência direta na rotina da sala de aula. Assim, foi necessário um acompanhamento tanto da sala de aula quanto das reuniões bimestrais desses conselhos. As categorias de sala de aula são: corpo, tarefa, agressão, espaço, barulho e tempo. A análise da sala de aula privilegiou as cenas, eventos, fatos, atos, ações e falas que eram freqüentes na rotina pedagógica da professora e dos alunos. Durante nossas visitas estabelecemos um contato diário com os atores escolares primários o que possibilitou o entendimento dessa rotina e a definição de categorias encontradas durante o processo de análise. 85 1.1. A sala de aula A sala de aula é o local destinado ao aprendizado e onde, a partir da relação professor e aluno, mediado pelo processo de ensino e aprendizagem, é definido o sucesso e o fracasso desse aluno. Na análise de dados da sala de aula exploramos a interação professor – aluno, onde destacamos as cenas rotineiras e significativas para o nosso trabalho à luz dos pressupostos etnográficos. A seguir, faremos uma descrição analítica das cenas destacadas durante a análise de resultados. 1.1.1. Corpo: rebelde ou docilizado? “Em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (FOUCAULT, 1987). Em Foucault, a descoberta do corpo é tida como objeto e alvo de poder. O corpo passa de uma noção de suplícios e de castigos para uma idéia de reforma e disciplina. Nesse sentido, saem de cena as punições físicas e entra a disciplina dos corpos marcada pela escolarização. A configuração das salas de aula, desde o seu surgimento até os dias atuais, sofreu modificações em sua estrutura física sem, contudo, abandonar seu caráter primordial de docilizar os corpos (FOUCAULT, 1987). A disposição das carteiras em sala de aula, filas para locomoção dos corpos, posição das mãos para trás, cabeças baixas e posição do corpo ao sentar 86 (sempre virados para frente) são indícios de controle dos corpos objetivando a disciplina na sala de aula pela individualização destes. Uma vez ordenados em fileiras e sentados, a vigilância da professora torna-se mais eficaz, podendo ela localizar o aluno que desejar a qualquer momento. O controle dos corpos sugere ainda a noção de vigilância também presente na obra de Foucault, ou seja, a organização dos corpos no espaço físico permite a melhor visualização e, portanto o controle eficaz sobre os mesmos. Os corpos podendo ser vistos de qualquer ângulo da sala de aula facilitam a identificação daqueles que se encontram fora dos limites estabelecidos para eles. O corpo como categoria surgiu em nosso trabalho na tentativa de evidenciar os métodos coercitivos que são aplicados sobre os corpos dos alunos para a obtenção do controle em sala de aula. Na sala de aula estudada percebemos como a movimentação dos corpos dos alunos e alunas, seus gestos e suas atitudes são medidos e avaliados pelo olhar atento da professora. O “sentar com modos” é uma fala utilizada pela professora na sala de aula na tentativa de controlá-los, sem, contudo, deixar claro o seu objetivo sobre qual a posição a que ela estaria se referindo. “Vira para frente” e “senta no seu lugar” são também falas utilizadas pela professora para conter os corpos dos alunos e alunas em suas carteiras. Os alunos, a seu modo, ora sentam ora continuam de pé, dependendo do interesse na atividade que está sendo proposta pela professora. 87 Ocorre que tal investimento de controle dos corpos é interiorizado pelos alunos e alunas ao longo do seu processo de escolarização. Sendo assim, ele sabe que deve estar em fila, sentado na sua carteira e realizando a tarefa proposta pelo professor. Fazendo uma análise comparativa da sala de aula estudada com a obra de Foucault podemos tecer algumas considerações relevantes para o nosso trabalho no que se refere ao corpo. Nos estudos de Foucault (1987) encontramos uma passagem de uma visão do corpo como alvo de punições e castigos para a de disciplina e vigilância. Tais considerações são feitas a partir de instituições totais (GOFFMAN, 2005) e escolas ao longo dos séculos, podendo ser trazidas para os dias de hoje. As instituições escolares evoluíram no que se refere à estrutura física que aprisionava e à extinção da aplicação de punições aos corpos. Contudo, tal estrutura física e punições foram substituídas por uma forma moderna de disciplina que seria o controle dos corpos funcionando de maneira silenciosa internalizando normas e regras nesse corpo. Ao lançarmos mão dos estudos de Foucault (1987) para melhor compreendermos a sala de aula da atualidade, devemos considerar as características intrínsecas a esta. O corpo de cada um desses sujeitos entra em um processo de docilização / disciplinização de forma e em momentos variados e há ainda aqueles e aquelas que resistem a este processo. A disciplinalização e a docilização inscrevem marcas nesse corpo que o tornam investimento de poder submetido à escolarização. Nem sempre os 88 corpos que se pretende docilizar de fato serão. Esses corpos que resistem são diferentes do contingente dos que se adaptam, sem resistência, sem contestação, a esse processo promovido pela escola (PERRENOUD 1995, GIROUX 1997). Silenciosos e obedientes os que se docilizam e se disciplinalizam são considerados bem sucedidos. Nossos estudos apontam que para se obter o controle dos corpos em sala de aula a professora utiliza falas de ordem para os alunos e alunas. A individualização dos corpos nas carteiras e a vigilância quanto a sua movimentação indicam a postura da professora no controle da sala de aula. O controle do corpo na sala de aula é permeado pela execução da tarefa com os alunos e alunas sentados em suas carteiras. Sheila: Vamos sossegar aí? Gerson (erra o nome do aluno)... vamos parar com a necessidade de se aparecer! Vamos sentar...Eu quero vocês sentados... Gerson: Mas eu tô sentado... Sheila: Felipe, você já fez sua tarefa? Senta no seu lugar! Sheila: Olha só, não quero ninguém em pé. Senão não consigo ver. (Nesse momento todos os alunos estão sentados) Nos três eventos de fala destacados a professora procura manter a turma sentada, entendendo que nos lugares destinados a eles a tarefa proposta estaria sendo realizada. Tornou-se comum tal preocupação que mesmo estando os alunos sentados ela solicita que os mesmos ocupem seus lugares. 89 A organização dos corpos está relacionada com a ocupação do espaço físico. Os corpos devem estar dispostos de forma a serem vistos e a atividade executada ser controlada pelo olhar. Em outro evento destacado em nossas análises a interação entre a professora e o aluno ocorre pela retirada da cadeira do aluno que se dirigiu até ela para olhar o livro que ela estava lendo para a turma, como parte da tarefa a ser executada por eles. Sheila: Marcelo, vai sentar no seu lugar. Marcelo: Não quero sentar não. Sheila: Você não quer ficar sentado não? Então vou tirar sua cadeira e vou te deixar em pé até o final! Tá bom assim? Ela arrasta a cadeira para frente da sala. Ele fica passeando pela sala. Sheila: Mas também você vai ficar parado aí! Ela retoma o texto e Marcelo deita no chão, colocando a mochila como apoio. Sheila: Marcelo, você vai parar de palhaçada ou vou ter que tirar você da sala de aula? (agora o aluno está de joelhos e apoiado na mesa). Pega sua cadeira! Vai lá. (o aluno não se levanta e a professora pega a cadeira) 90 A não submissão à ordem de sentar acarretou na retirada da cadeira e o aluno recebendo a ordem de permanecer em sua carteira, deita no chão apoiando a cabeça na mochila e retomando a atividade proposta. Ao sugerir que o tiraria da sala de aula, o mesmo se apóia nos joelhos e volta a escrever sob a mesa. Qual o sentido de tal punição? No entendimento de Sheila, o sentido residiria no fato de que ao retirar a cadeira, o aluno permaneceu no espaço destinado a ele. De outra forma, o mesmo aluno ao terminar suas tarefas se levanta e fica andando pela sala. A professora esboça preocupação com o movimento dos corpos na sala de aula, dentro e fora da escola. Ela chama a atenção para o fato de que sentados ela pode “controlar melhor a coisa” (palavras da professora). Os métodos utilizados por ela denotam que o controle só é atingido por meio de punições. Assim, as saídas da escola para passeios, como museus, exposição, não ocorrem devido à preocupação da professora com o comportamento que os alunos irão adotar fora dos muros da escola. Podemos ainda acrescentar que a professora também apresentaria dificuldades de controlar os alunos pelos métodos que comumente utiliza na sala de aula. Qual seria o comportamento a ser seguido em circunstâncias como uma visita a um museu? Em visitas a museus o professor ou acompanhante é o responsável pelo acompanhamento e orientação dos alunos. 91 Sheila: O que as pessoas vão pensar... se forem a um museu. Eles não sabem se comportar. No evento destacado, a professora comenta sobre a percepção de outras pessoas com o comportamento da turma. Se as visitas acontecem sob a orientação da professora da turma, nesse caso, ela não assumiria o risco por se tratar de alunos que ela solicita que sentem a todo o momento. O espaço da sala de aula é ocupado pelos alunos de maneira organizada e de acordo com a orientação da professora. Mesmo que já tenham finalizado sua tarefa ou estejam sentados, ela solicita que eles permaneçam em suas carteiras. A disposição dos corpos na sala de aula implica numa adequação às normas escolares, tais como sentados e executando as tarefas propostas; o contrário é visto como rebeldia e é punido pelos gritos de ordem, expulsão da sala de aula ou retirada da cadeira. 92 1.1.2. Tarefa: “o dever” do aluno Entendemos que a tarefa nunca deve ser analisada de forma isolada, mas sempre em conjunto com outros elementos do processo de ensino aprendizagem. De fato, a tarefa é parte do processo e é reflexo do tipo de abordagem metodológica, da relação professor e aluno e dos recursos didáticos disponíveis, culminando na ação do aluno. Afinal, a tarefa deve ser a produção escolar do aluno. A tarefa concebida aqui no sentido pedagógico e em conexão com os demais elementos do processo de ensino - aprendizagem requer um estudo dos diferentes níveis dentro da escola em que ela se constitui até chegar na sala de aula e ser aplicada ao aluno. Etimologicamente a palavra tarefa vem do árabe tareha significando trabalho que há de se concluir num certo tempo. Por essa definição percebemos a transmissão da idéia de que a tarefa do aluno é um trabalho que exige o seu cumprimento num período estipulado, no caso, pelo professor. O planejamento pedagógico da escola propõe uma orientação para a rotina da escola (PASSOS, 1995 e MELLO, 2004). A professora organizará sua dinâmica de sala de aula para atingir os critérios estabelecidos pelo currículo mínimo13. Para tal, o professor deve conjugar o atendimento das exigências da política pedagógica e do currículo mínimo em sala de aula para a 13 O currículo mínimo é a organização dos conteúdos que devem ser seguidos pela escola nas diferentes etapas da escolarização de alunos e alunas. 93 distribuição das tarefas escolares. O cotidiano escolar é então permeado pela necessidade de se cumprir o programa estabelecido para as atividades escolares. A tarefa em nossos estudos surgiu de duas maneiras: a tarefa enquanto cumprimento de um dever e a tarefa enquanto ofício do aluno (PERRENOUD, 1995). Enquanto cumprimento de uma obrigação, a tarefa se caracteriza como execução de uma proposta de trabalho da professora para os alunos e alunas. Isso acontece da seguinte forma, a professora lança uma proposta de atividade e os alunos devem executá-la dentro do tempo previsto e em suas devidas carteiras. Ocorre que a proposta não é absorvida pela turma. Durante nossas observações de sala de aula percebemos que sistematicamente a tarefa tem início com a exposição no quadro do que deverá ser copiado pelos alunos e depois resolvido por eles. Durante a cópia do exercício do quadro eles conversam entre si e andam pela sala. A professora ao notar a dispersão, ameaça que irá apagar o quadro. Os alunos em coro dizem que “ainda não copiaram” e retornam para a atividade em suas carteiras. Encerrada a cópia do quadro, os alunos se dispersam novamente ao invés de iniciaram a resolução dos exercícios propostos. Tadeu: “tia, vou ter que copiar esse todo aí?” Sheila: Claro, é o texto de hoje! Tadeu: sim, não, sim, não. Laura: Oh tia, não apaga não que eu comecei agora hein. 94 Sheila: Roger cadê seu trabalho? Roger: não fiz... poxa eu comecei agora. Percebemos que a tarefa é utilizada pela professora como uma forma de controle pela ameaça. Ela, ao perceber que os alunos não estão copiando, alerta-os dizendo que apagará o quadro. Assim, o controle da tarefa é obtido, uma vez que a professora também possui tarefas a serem cumpridas. Ela controla a turma pela tarefa e controla a tarefa dela mesma para cumprir sua obrigação. Isto se dá porque a professora, inserida num sistema sócio-educativo no qual é necessário o cumprimento de um currículo mínimo pré-estabelecido e imposto, distribui as tarefas em sala de aula sem considerar a aprendizagem real do aluno. Dessa forma, percebemos que a professora acredita estar desempenhando seu papel enquanto profissional que possui deveres estabelecidos a serem cumpridos em detrimento do binômio ensinaraprender. Os alunos e alunas, por sua vez, entendem que a tarefa é um dever que eles possuem em sala de aula, não perpassando por um entendimento maior quanto à utilidade dela. Os alunos e alunas entendem a tarefa como uma atividade enfadonha que sendo cumprida o mais rápido possível, ou não cumprida, os libera para a realização de atividades mais agradáveis, longe das exigências da sala de aula. A tarefa que acreditamos ser um dos elementos chave no processo de ensino aprendizagem fomentadora da atividade pedagógica acaba por se 95 tornar um engodo, uma vez que, nem professora e nem alunos entendem essencialmente o seu significado para a formação dos mesmos. Buscamos entender, a partir da interação professor aluno, o porquê da tarefa possuir tal entendimento. Na fala da professora encontramos uma explicação. Ela sugere que antes de trabalhar qualquer conteúdo em sala de aula existe a necessidade de se trabalhar o campo afetivo - social dos alunos e alunas ainda que o ambiente de sala de aula não se configure como ideal para o desenvolvimento de relações mutuamente saudáveis e de qualidade do ponto de vista acadêmico. Concordamos que a criação de um ambiente saudável – a professora expondo de maneira a ser compreendida por seus alunos e alunas, estes por sua vez, assimilando o seu significado realizando a tarefa – pode favorecer positivamente o desenvolvimento afetivo social do aluno. Na fala da professora Sheila sobre auto-estima está presente a justificativa tanto para os baixos rendimentos escolares quanto para a falta de engajamento na tarefa pedagógica pelos alunos. A expressão “auto-estima”, nesse caso, está relacionada com o fator social, ou seja, o fato dos alunos residirem em locais pobres da cidade. Ela relata a preocupação que tem com o nível de aprendizagem e com a auto-estima dos alunos: Sheila: É uma turma heterogênea. Estão mais ou menos no mesmo nível de leitura e escrita. O problema é que eles são desestimulados. Primeiro eu trabalho a auto-estima com eles, porque senão não dá. 96 Mas eles já chegam na escola muito cansados e eu nem sei porque, não deveria né? As relações pessoais de qualidade dão ao indivíduo acesso a pensamentos, sentimentos e comportamentos de alto nível e saudáveis. O estado da mente, estabilidade, confiança e cuidado de professores são pré-condições para o estabelecimento do senso de “pertencimento” (belongness), autorespeito, auto-aceitação e clima positivo para aprender. Níveis saudáveis de pensamento são aqueles que são menos auto-conscientes, inseguros, irracionais e/ou auto-depreciativos. Auto-estima e aprendizagem são mutuamente reforçadas. Quanto mais o aluno aprende mais ele / ela se sente interessado na tarefa e auto-consciente de seu desempenho. A aprendizagem e a auto-estima são altas quando os indivíduos mantêm relações de “cuidado”, “atenção” com outros que vêem seu potencial, apreciam genuinamente seus talentos individuais e os aceitam como indivíduos. Contudo, percebemos que nas interações de sala de aula embora a professora evoque a necessidade de se “trabalhar” a auto-estima, esta é a última instância a ser trazida para a relação professor e aluno, uma vez que a professora não demonstra respeitar a individualidade dos alunos e alunas para o pleno desenvolvimento da mesma. Percebemos como a professora desestimula a iniciativa de uma aluna para a leitura argumentando que a mesma não lê bem (“Eu quero uma que lê legal”) e a dispensa por ler em voz baixa. 97 Sheila: Alguém poderia ler... Alunos se oferecem: Eu, eu ... Sheila: Eu quero um que lê legal. (Ela escolhe uma aluna e outro reclama) Sheila: Eu pedi alguma coisa? Ela que se ofereceu? A aluna lê muito baixo, ela agradece e diz que ela tinha que ter lido mais alto. A professora expõe a aluna perante a turma avaliando-a pela altura da voz. Este tipo de “avaliação relâmpago”, leitura em voz alta, são rotineiras na sala de aula estudada e revelam a natureza injusta e inadequada da prática pedagógica, uma vez que a professora expõe a necessidade de motivar os alunos pela auto-estima. No evento acima, a professora não tece comentários significativos nem do ponto de vista acadêmico e nem do afetivo. A aluna sabe apenas, após a leitura, que seu tom de voz é baixo. Os dois últimos eventos de sala de aula que retiramos de nossas observações denotam a incoerência entre o discurso e a prática. O que vemos é que o discurso é atual, e a prática é medieval. Atualmente, o uso do termo auto-estima está em voga nas discussões sobre aprendizagem sendo que, na prática, em nossas observações, a professora se utiliza de ferramentas de aprendizagem pela intimidação. Esta incoerência ainda hoje tão marcante nas relações que se estabelecem entre professores, alunos e alunas nos remete à necessidade de (re) pensarmos constantemente a prática educativa. Um outro aspecto relacionado com a tarefa na sala de aula é o início de uma nova atividade sem a finalização da anterior. Observamos durante nossas visitas que a professora expõe uma série de conteúdos alternando entre 98 tarefas diferentes. No decorrer da aula a professora finaliza uma tarefa onde somente ela compreende o sentido da mesma. Após a exposição no quadro da tarefa, os alunos passam a conversar entre si e não executam o seu dever. A professora, então, ao perceber a movimentação da turma e a despreocupação com a atividade, inicia uma nova atividade abandonando a anterior apenas para a cópia. Os alunos iniciam a cópia da nova atividade sem obterem os resultados da anterior. Isso ocorre sucessivamente até a finalização do tempo de aula. Num dia de visita à sala de aula a professora inicia as atividades do dia com uma tarefa no quadro em inglês. Eram palavras e números que eles deveriam copiar. No decorrer da aula, após copiarem o exercício a professora é questionada quanto à continuidade da tarefa. Tiago: Eu sei escrever, quero ver falar. Sex=six (compara as palavras e ri) Fabiano: Ô professora, ô professora, a gente sabe escrever, e pra falar hein? E pra falar? A professora não responde a pergunta dos alunos e começa a apagar o quadro. Os alunos reclamam que ainda não terminaram de copiar e a professora inicia a verificação dos alunos presentes pela chamada. Apaga todo o quadro e inicia uma nova temática com operações matemáticas para os alunos solucionarem. Ivan: Professora, a senhora apagou aonde eu estava (abaixa a cabeça). Então eu não vou fazer mais nada não. (fecha o caderno) Ivan: Ô tia, você apagou ali. Sheila: Eu apaguei o que Ivan? Ivan: A senhora apagou tudo. 99 Durante nossas visitas percebemos que a professora, no cumprimento das exigências do currículo mínimo, reduz o sentido da tarefa apenas para a cópia. Os alunos e alunas ao terminarem ou não a cópia da tarefa do quadro não recebem o feedback pelo seu trabalho e a professora não demonstra se incomodar em fornecer a correção a eles. É importante que o aluno conheça o que é considerado acerto e erro com relação ao que está sendo estudado, pois no ambiente escolar o conhecimento das normas com relação aos conteúdos de sala de aula e na própria escola é fundamental para a aprendizagem do ofício do aluno. O entendimento do ofício do aluno – adequar-se às expectativas dos adultos e tornar-se um bom aluno – é inerente ao convívio social e escolar pressupondo a existência de regras a serem seguidas tanto nesta quanto naquela. Assim como a Constituição brasileira que prevê que todos os sujeitos sociais gozam de direitos e obrigações, as escolas também orientam o seu cotidiano em função dessas duas instâncias. A tarefa na escola denota esse caráter dos deveres existentes na sala de aula. É direito do aluno ter acesso à educação implicando igualmente a obrigação no cumprimento de seus deveres. No que diz respeito ao cumprimento da tarefa, esta, parte do ofício do aluno, Perrenoud (1994) coloca que a tarefa se constitui como sendo “um recurso permanente às recompensas ou às sanções externas (notas, competição, promoção, punições) para por os alunos a trabalhar”. O mesmo aconteceu 100 na sala de aula observada onde a iminente reprovação surge no não cumprimento das tarefas propostas, sendo esta a certeza que possuem da sala de aula e do trabalho acadêmico. Uma forma recorrente de controle da tarefa é a mudança dessa sem um fim específico, podendo ser caracterizada como uma forma de controle usado pela professora na gestão da classe. Somente ela sabe o que deve ser feito, retirando do aluno o domínio da tarefa, do tempo ou espaço em que a atividade acadêmica ocorre. O surgimento de tal categoria em nosso trabalho suscita a discussão sobre o entendimento que o aluno possui sobre o fazer pedagógico. É sabido que o trabalho realizado na escola deve considerar outras instâncias da vida do aluno no intuito de promovê-lo acadêmica e socialmente. O conhecimento construído no âmbito escolar deverá transpor os muros da escola e acompanhar o aluno em todo o seu desenvolvimento enquanto sujeito individual e social. 101 1.1.3. Agressão: a norma pela força “A sociedade adulta não se preocupa com que os professores, aos quais delegou essa função ao mesmo tempo nobre e ingrata, se utilizem de forma exageradamente explícita de parte da violência, doce ou menos doce”(PERRENOUD, 1999). Agressão em nosso trabalho assumiu uma nova forma de punir os alunos pela invisibilidade da marca deixada pela agressão simbólica (BOURDIEU 2005). A definição de poder simbólico de Bourdieu pressupõe a existência de um poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força e só se exerce se for reconhecido. A agressão aqui é entendida a partir das manifestações na relação professor e aluno de coação mútua em função do controle no cumprimento das normas de sala de aula. No que tange as punições físicas, Goffman (2005) explica que tiveram início no século VI, quando São Bento determinava que deveriam receber castigo corporal os que cometessem erros durante as orações. Essa maneira de corrigir os erros de ensinamentos permaneceu nas escolas da sociedade ocidental. Só nas últimas décadas, as escolas norte-americanas passaram a definir os meninos como “objetos que não deveriam ser tocados, a não ser por seus pais, no caso de castigos” (p. 164). Os castigos corporais foram substituídos por outras formas de punição. O entendimento de que o espaço da sala de aula não é destinado a tais práticas não anula a importância da aplicação de punições corporais dos pais em seus filhos. 102 Historicamente as escolas reservaram o poder de castigar os alunos aos pais, não mais cabendo a eles corrigir seus alunos por punições físicas. Em seu lugar surgiram formas de punição que atuariam na modificação do comportamento pelo caráter psicológico que possuíam. Nesse sentido histórico, Giroux e McLaren (1995) sugerem que: “uma pedagogia crítica da representação pode ajudar os / as estudantes a questionar a maneira por eles / elas, como atores sociais individuais e coletivos, estão localizados na história, de forma que ser um servo do poder do estado é, com freqüência, ser sua vítima involuntária” (In SILVA & MOREIRA, 1995, p.153). A simbologia das punições acontece por meio de discursos morais proclamados pelos professores. Na sala de aula estudada foi possível visualizar uma forma silenciosa de agressão aos alunos e alunas. Chamamos de agressão silenciosa porque ela se manifesta a partir de falas e comportamentos e não por agressões corporais. Em um evento na sala de aula, a professora, ao avaliar a leitura dos alunos, demonstrava para a mãe de uma delas ressaltando o avanço que a aluna conseguiu. Após o término da demonstração, a professora comenta sobre as faltas excessivas da aula ressaltando a importância da presença da mesma na sala de aula. A mãe ao saber do número de faltas, utiliza o espaço da sala de aula para punir fisicamente a filha. A professora alerta para o fato, já internalizado por professores, de que na escola não é possível aplicar castigos corporais nos alunos e alunas, mas que em qualquer outro lugar tal prática é permitida. Esse discurso reforça a secularização dos castigos e punições corporais como forma de correção para qualquer erro. Acredito que 103 se a referida aluna adquiriu a capacidade de leitura, tal imposição subliminar de castigo proposta pela professora torna-se desnecessária, pois o objetivo foi alcançado: a aluna está lendo. Roseli: (...) Ontem eu botei os meninos pra ler: Aí olha sua filha tá lendo. Eu mostrei pra ela: Você tá vendo. Ela até deu uma bronca na menina, foi até pra dar uns tapas, mas eu falei: Aqui não. Lá fora é outra coisa. O aluno ao longo de seu percurso acadêmico adquire um conhecimento relativo às estratégias que precisa para não ser reprovado. Ele sabe que o seu comportamento em sala de aula será decisivo na sua avaliação pelo professor. Sheila: Ibraim não faça eu me aborrecer com você! Ah você vai repetir. Sheila: É muito simples... é só reprovar todo mundo botar todo mundo pra fazer a 4ª série novamente (...). Nesse evento a reprovação torna-se instrumento de agressão na fala da professora para intimidar a turma mencionando a simplicidade de seu ato de reprovar a turma toda. Contudo, sabemos que tal medida não é possível legalmente. Se a professora reprovar toda uma turma ela teria que justificar a medida perante o conselho de classe e a respectiva Coordenadoria Regional de Educação (CRE). Reprovar um aluno ou aluna pela inadequação de seu comportamento em sala de aula não é previsto pela LDB. A avaliação do comportamento integra os itens que a professora deve considerar nos resultados finais, sem ser decisivo na atribuição de conceitos escolares. Assim a adoção de procedimentos de avaliação pelo professor 104 deve ser feita não apenas por aspectos do cotidiano escolar, mas pelo aspecto pedagógico das interações que ocorrem entre professor e aluno. “Os procedimentos de avaliação pedagógica constituem, segundo Bernstein, um revelador privilegiado do modo pelo qual os códigos do saber escolar podem contribuir para a construção da identidade individual e para a gênese da ordem social. No contexto dos códigos seriais a avaliação efetua-se geralmente segundo critérios altamente explícitos e repousa sobre um leque bem definido de conhecimentos e de competências: sabe-se antecipadamente o que são uma boa e uma má respostas, um bom e um mau desempenhos. No contexto dos códigos integrados, deve-se tomar em consideração níveis mais profundos da personalidade, aptidões e atitudes gerais, mais do que saberes ou savoir-faire pontuais. Sob as aparências de abrandamento e de liberação, isto pode significar de fato, sugere Bernstein, um modelo de socialização mais envolvente e mais global. Do mesmo modo o abrandamento dos “enquadramentos”, ao atenuar a separação entre os saberes escolares e os saberes da vida cotidiana, pode ter o efeito paradoxal de fazer entrar no campo do que é pedagogicamente interessante uma parte crescente daquilo que é e daquilo que faz o indivíduo enquanto pessoa privada e ampliar, assim, as tarefas da socialização escolar” (FORQUIN, 1993, p.91). Com esta citação confirmamos os nossos pressupostos sobre a prática avaliativa em sala de aula. Uma outra cena identificada em nossas análises relaciona-se com a agressão física. Durante a execução das tarefas com os alunos sentados em suas carteiras, a professora de posse de uma régua caminha entre as fileiras batendo a régua na mão e vez ou outra nas mesas. Ela adota uma postura de intimidação com um objeto – régua. Ao observar a cena, logo nos remetemos, à figura de um comandante de tropas militares. No comando de suas tropas ele vistoria os soldados, corrigindo qualquer desvio observado. 105 Nota-se que nesses momentos em que a professora percorre a sala, os alunos estão sentados e executando a tarefa, tornando tal atitude em princípio desnecessária. No discurso a professora sentia necessidade de enfatizar determinados aspectos de sua fala tocando o corpo dos alunos. Ao explicar que a cabeça deveria estar cheia e não o caderno ela sacode a cabeça do aluno sentado à sua frente. O mesmo permanece sentado e imóvel. A professora, demonstrando exaltação, prossegue a aula e os alunos se dispersam na sala de aula, levantam e conversam uns com os outros. Sheila: o que tem que ta cheio é isso aqui ó... (sacode a cabeça do aluno) A agressão ocorrida, que pode ser considerada tanto verbal como física, não foi reconhecida como legítima pelos alunos, tendo em vista a preferência por atividades recreativas na sala de aula e não as relacionadas à tarefa pedagógica. 106 Mesmo enfatizando a importância da aquisição de conhecimento – cabeça cheia – ela retoma a tarefa de cópia do exercício do quadro sem finalização ou correção da mesma até a finalização da aula. Percebemos uma incoerência no discurso da professora, uma vez que ela demonstra essas explosões na sala, mas não muda o planejamento da sua aula. Ela apenas expõe a tarefa, intimida, agride física e moralmente os alunos, inalterando o rendimento da turma com tal comportamento punitivo. No conselho de classe a coordenadora explica que a questão da agressividade está ligada ao fato de afetar outrem ou a si mesmo e é determinante na atribuição de valores ao desempenho do aluno. O comportamento agressivo do aluno ou a agressão por ele sofrida é o que será “levado em conta” no momento da avaliação do professor. Coordenadora pedagógica: Agressividade de afetar o outro e ser afetado. É isso que tem que ser levado em conta, tanto para dar nota alta quanto para obter uma nota baixa. Os alunos, de certa forma, sabem que se ficarem quietos na sala de aula receberão o aval da professora para realizarem atividades que não estejam ligadas à tarefa. Durante essa discussão no conselho de classe sobre a agressividade dos alunos nas salas de aula, a professora da 3ª série expõe a dificuldade dela em lidar com seus alunos. Alda: As questões mais difíceis para mim são de relacionamento entre eles, sabe, e alguns comigo. Tem crianças que com tapa ou beijo reagem da mesma forma, alguns são muito arredios, não 107 cedem nunca. Entre eles acho que existe uma agressividade muito grande, sabe, se você não quer emprestar um lápis, é chute e soco o tempo todo, eles já sobem a rampa, assim. Ela considera que o tratamento dispensado aos alunos é indiferente, uma vez que eles reagem da mesma maneira a um tapa ou a um beijo. A dificuldade com alguns alunos é que estes não cedem nunca, “são arredios”. Não cedem à normatização da escola e da professora sendo portanto considerados alunos difíceis de lidar na sala de aula. Ocorre que pela necessidade de se estabelecer normas disciplinares, a professora se utiliza de formas agressivas para o controle da turma tais como gritos, ameaça de reprovação, expulsão da sala de aula e encaminhamento de alunos para a coordenação pedagógica da escola. A utilização desses mecanismos reflete uma prática pedagógica voltada para uma agressão invisível exercida para a normatização em detrimento da aprendizagem. 108 1.1.4. Espaço: o controle da movimentação e da ocupação “Cada coisa se encontra, por assim dizer, em um espaço de coisas possíveis” (WITTGENSTEIN, 1992). Na análise de dados, a categoria espaço surgiu tanto nos conselhos de classe quanto na interação professor e aluno em sala de aula. A preocupação em controlar o espaço – como lugar ocupado e como movimentação – foi registrada nos dois momentos de observação na escola. Nos dois ambientes observados foi possível visualizar a maneira como os professores privilegiam o controle da ocupação desse espaço em detrimento da relação pedagógica e das necessidades individuais de alunos e alunas. As considerações acerca do espaço físico e de movimentação que ocorrem nos conselhos de classe são comprovadas através da prática pedagógica do professor em sala de aula. Portanto, a categoria espaço será trabalhada nos dois espaços observados de forma dialógica. A categoria espaço evidenciada na fala das professoras nos conselhos de classe aponta uma preocupação com o espaço a ser ocupado em sala de aula – as carteiras – e com a movimentação na estrutura física da escola que é limitada pelas regras estabelecidas pela direção, dentre as quais destacamos: a não permissão ao aluno para circular pelos corredores, entrar em salas de aula de outros professores e utilizar a quadra de esportes durante o recreio ou atividades esportivas. 109 A distinção entre ocupação e movimentação no espaço escolar está relacionada com o controle do espaço pela visibilidade. Na sala de aula observada é permitido, ao aluno, somente permanecer sentado no espaço de sua carteira, o que facilita a identificação do mesmo pelo professor e o controle sobre a sua movimentação dentro da sala de aula. Outro evento de demonstração de controle do espaço pela visibilidade é quanto à impossibilidade de utilização da quadra esportiva. O argumento utilizado pela direção e coordenação foi o de que a quadra de esportes estaria situada fora da visibilidade das janelas da escola. Uma vez que os alunos estão na quadra não é mais possível controlá-los. Mesmo estando os alunos acompanhados do professor de Educação Física, a direção da escola aponta uma série de prováveis acidentes, inclusive se algum aluno utilizasse o banheiro que fica atrás da quadra, e elas não poderiam visualizar para prestar socorro. Tal evento da quadra de esportes aponta a importância da visibilidade na escola e sala de aula. Os argumentos utilizados seriam pertinentes no caso de acidentes se os alunos freqüentassem o local sem a presença do professor de Educação Física, o que não acontece durante as aulas. Os exemplos acima elucidam uma forma de controle a partir do espaço físico e determina, na visão dos professores, que a partir da visibilidade adquirida por tal controle seja possível determinar o grau de rendimento que o aluno terá na sala de aula. O aluno ao permanecer sentado em sua carteira e não 110 andar pelos corredores é um aluno que tem possibilidade de apresentar resultados escolares satisfatórios. Com isso, queremos destacar que a prática recorrente entre os professores de atribuir fatores secundários ao desempenho escolar também se evidencia na delimitação do espaço físico. A definição de espaço físico de Bourdieu (1997) nos auxiliou no entendimento dessa categoria encontrada tanto na sala de aula estudada como na escola como um todo. “O lugar pode ser definido absolutamente como o ponto do espaço físico onde um agente ou uma coisa se encontra situado, tem lugar, existe. Quer dizer, seja como localização, seja, sob um ponto de vista relacional, como posição, como graduação em uma ordem. O lugar ocupado pode ser definido como extensão, a superfície e o volume que um indivíduo ou uma coisa ocupa no espaço físico, suas dimensões, ou melhor, seu entulhamento (como às vezes se diz de um veículo ou de um móvel)”. (BOURDIEU, 1997, p. 160). Ao definir a localização e a forma que um aluno irá ocupar na sala de aula a professora está, além de controlando o espaço físico como também os corpos, derivando assim o espaço de movimentação. A definição da categoria espaço engloba duas concepções: a de espaço físico e a de espaço de movimentação. Por espaço físico entendemos ser toda a estrutura da escola, da sala de aula incluindo as carteiras e banheiros. Esse espaço é o lugar ocupado unicamente por um sujeito, é onde ele está localizado, por exemplo, na sala de aula; o aluno está sentado em sua carteira ou o aluno está em pé no fundo da sala. Assim na sala de aula cada aluno possui a sua carteira – o seu espaço – e nela deverá permanecer até o final de suas atividades. 111 O controle do espaço físico está relacionado com o papel vigilante que o professor exerce em sala de aula. Em nossas análises não consideramos o espaço apenas como lugar ocupado, pois deixaríamos de lado a dimensão de controle que existe neste termo. Controlar o espaço pelos alunos e alunas é ao mesmo tempo controlar os corpos, o tempo e a tarefa. Controlar os corpos significa controlar o lugar, ou seja, espaço ocupado. Enquanto controlar o espaço pelo tempo está ligado ao controle de tempos em tempos da atividade que está sendo executada naquele local. No que concerne o espaço da escola e da sala de aula, podemos afirmar que, de uma maneira ou de outra, todos nós já vivemos uma situação, um evento, uma cena em sala de aula. Observadas algumas diferenças geográficas e regionais, as salas de aula no último século não mudaram muito em aparência, são muito similares, especialmente tomando por referência as escolas públicas. Portanto, conhecemos suas características físicas e podemos, sem muito esforço, imaginar uma cena de sala de aula. Nesse retrato vemos uma construção retangular, com janelas em pelo menos uma das paredes, um quadro-negro na frente e uma porta ao lado, também na frente, na parede oposta à da janela. Nessa configuração não rara as carteiras escolares estão dispostas em frente ao quadro-negro e enfileiradas e posicionadas frente ao professor e à professora, e de costas para o colega uns atrás dos outros (MATTOS & CASTRO, 2005). Essa 112 descrição do espaço físico da sala de aula nos auxiliou no processo de análise de dados uma vez que tais características físicas contribuem para o exercício do controle pela professora. É no espaço escolar que o aluno irá desenvolver algumas de suas potencialidades intelectuais e sociais. Ele utilizará o espaço de sala de aula para participar das atividades propostas pela professora e para interagir com outros alunos ampliando sua rede social de conhecimento. O que percebemos na escola que estudamos foi o estabelecimento de regras de ocupação desse espaço que possibilitassem o controle do espaço e dos corpos. Os alunos devem ocupar o espaço de suas carteiras e assim permanecerem até o encerramento das atividades do dia. Percebemos que isso não acontece. Na tentativa de impedir essa circulação em sala de aula a professora expõe o aluno perante a turma. Um exemplo foi retirado dessa cena; Sheila: “Ai caramba. Vou colocar pra fora. Olha o nome que eu colocar aqui é de quem vai ficar aqui na aula de educação física e depois da hora, vai sair depois do meio dia. Ah perai! Eu vou botar você! (anda em direção do quadro) Você vai ficar aqui!” A punição pela utilização do espaço da sala de maneira inadequada é realizada pela prática de expulsar o aluno para fora da sala de aula. Nos casos que presenciamos, o espaço de aprender passa a ser a porta da sala e o corredor. Outros alunos se encaminham para a sala da direção. O objetivo que fica claro nessa cena é o de retirar o aluno agent provocateur 113 da sala e assim prosseguir pela ameaça o controle do espaço da sala de aula. Sheila: Rodrigo sai. Rodrigo: mas é só eu? Sheila: Rodrigo sai, quem vai escutar gritando aqui é você. Vai me escutar gritando. O aluno que está sentado na mesa discute com a professora que o coloca para fora da sala de aula, o mesmo tampa os ouvidos, afirmando que prefere sair a ouvir os gritos da professora. Ele se posiciona na porta da sala para copiar a tarefa do quadro mesmo estando expulso da sala de aula, permanecendo na porta até que a coordenadora solicita à professora que ele retorne para a sala. 114 A professora comunica à turma o destino dado ao aluno que foi expulso da sala de aula. Ao retirar o aluno da sala, a professora desloca a problemática do aluno que não se submeteu às normas impostas por ela de ocupação do espaço físico para fora da sala de aula. O espaço da coordenação ou os corredores da escola são o destino daqueles que não ocuparam o espaço da sala de aula como a professora solicitou. Um outro evento que surgiu nas análises do espaço foi quanto à mudança constante pela professora da posição da sua mesa. Ela posiciona a mesa ao lado da porta da sala de modo que ao entrar e sair da sala os alunos passariam por ela. A professora justifica a mudança da posição da mesa ao ser questionada pelos alunos com a seguinte fala: Sheila: É, daqui eu posso controlar melhor qualquer coisa. (Sheila explicando a localização da mesa) Nesse sentido, o controle do espaço, ocorre pelo olhar minucioso da professora que se posiciona de maneira a visualizar todos os movimentos. Pela fala da mesma, ela afirma que poderia “controlar melhor a coisa”, coisa esta que seria a sala de aula com os alunos. As diferentes formas de controlar a ocupação do espaço estariam relacionadas com a movimentação dos alunos, estar sentado ou em pé, o tempo de ocupação dos banheiros, por exemplo. Dessa forma, com horários estipulados e locais a serem ocupados pelos alunos os professores monitoram pela visibilidade o controle do espaço escolar. 115 1.1.5. Barulho: as vozes da sala de aula “Cala a boca e faz o seu trabalho” Nos primórdios da civilização o homem associava todo ruído a situações perigosas. O barulho o alertava sobre a proximidade de animais e/ou predadores enquanto dormia, assim a identificação de ruídos ativava seus sinais de alerta a fim de preservá-lo contra possíveis ameaças. Os predadores não representam, nos dias de hoje, ameaça ao homem, porém, sempre que escuta um ruído alto o sistema de defesa do homem aumenta a liberação de adrenalina fazendo subir a pressão arterial e ocasionando estresse instantâneo. As explicações para o processo de defesa do organismo humano são encontradas em estudos da Associação Brasileira de Qualidade de Vida sobre os efeitos do stress urbano. O aumento da liberação de adrenalina é decorrente da estimulação do sistema nervoso simpático. A liberação gera entre outras, a elevação da pressão arterial e dos batimentos cardíacos, um maior grau de atividade mental, aumento do metabolismo, dilatação dos brônquios pulmonares, dilatação das pupilas e aumento no teor de glicose sangüínea para suprir a maior demanda de energia das células, o que poderia ser considerado saudável. Porém, se o organismo permanecer sobre constante liberação de adrenalina ele entra numa fase denominada “fase de exaustão”, e passará dos estímulos benéficos para o esgotamento e a exaustão, quando o 116 organismo apresentará baixa imunidade, podendo desenvolver hipertensão arterial e correr riscos de sofrer de doenças como infarto do miocárdio, alergias e úlceras. Sendo assim, a ativação do estado de alerta pela identificação de ruídos pelo ser humano pode tanto auxiliar quanto prejudicar sua saúde e bem-estar ao ultrapassar os limites toleráveis que afetam o equilíbrio do corpo. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) o limite estabelecido como suportável pelo ouvido humano é de 65 decibéis. Esse limite quando ultrapassado é considerado prejudicial ao organismo. Para o ambiente escolar, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) estabeleceu o limite de 40 a 50 decibéis. Limites que não são respeitados na maioria dos casos. O ser humano é frágil em meio à turbulência da vida dos grandes centros urbanos. Diversos fatores devem ser considerados ao se estabelecer limites de barulho para o ser humano tais como: o aumento do número de veículos circulando pelas ruas e o aumento da população. Em pesquisa realizada por Baring (1998), sobre a conscientização pelo Poder Público para a diminuição dos ruídos nas escolas, foram identificados níveis acima dos limites estabelecidos e dos prejuízos que acarretam. Foi criado pela Prefeitura Municipal de São Paulo o Programa de Saúde Auditiva, iniciando um trabalho de controle de ruídos nas escolas com alunos e professores. Tal controle seria realizado pela aplicação da disciplina nas 117 salas de aula, o que não representa a nossa visão para a solução da problemática do barulho nesse trabalho. A análise do barulho em nossos estudos envolve outras esferas que tangenciam o ambiente da sala de aula, além da disciplina. A estrutura física de uma sala de aula não foi projetada adequadamente para uma aula de qualidade. Na maioria das escolas o prédio das salas de aula está localizado próximo a ruas e estradas que elevam consideravelmente o barulho no interior da escola. Além do barulho externo a professora eleva o tom de voz constantemente para se dirigir aos alunos para controlar o barulho, os corpos e o espaço físico. A constante elevação da voz acarreta o aparecimento de calos nas cordas vocais e laringite, além de irritabilidade, ansiedade, excitação, desconforto, medo e tensão. Dessa forma, há um somatório de barulhos que acarretam sérios prejuízos à aprendizagem e à saúde de alunos e professores. Sem o devido entendimento dos distúrbios provocados pelo barulho excessivo na sala de aula é criado, então, um círculo vicioso: os alunos conversam paralelamente, a professora fala cada vez mais alto e soma-se ao barulho externo tanto o de outras turmas como o da rua, de automóveis, entre outros. A situação de barulho intenso na escola é agravada pela estrutura arquitetônica, onde as paredes não atingem o teto, sendo praticamente abertas. Tal círculo passa despercebido na gestão da turma 118 pelo professor; ele continua tentando controlar a turma pelo tom de voz cada vez mais elevado. Ao considerarmos as condições ideais que um ambiente deve oferecer para o desenvolvimento da aprendizagem, verificamos que o mínimo de ruído é o ideal. Ao observar que tais limites estão prejudicando a aprendizagem, o professor poderá oferecer propostas que visem a melhoria do ambiente escolar, como falar mais baixo quando o barulho está excessivo. Foi possível identificar em nossas visitas que a professora apenas alerta, aos gritos, para que os alunos parem de conversar entre si. Sheila: Você veio para a escola para estudar e não para conversar, vira pra frente. O espaço escolar representa mais do que a aprendizagem da lecto-escritura. O aluno não se dirige à escola apenas para estudar, como afirma a professora, mas também para criar vínculos sociais. A permanência na escola envolve aprendizagem cultural, social e acadêmica e o desenvolvimento de suas potencialidades. Pois como afirma Perrenoud (1995) um adulto, ao evocar suas memórias escolares, relatará os momentos de socialização com os amigos, as brincadeiras, o carinho da professora, raramente ele se lembrará apenas da tarefa de sala de aula. Dessa forma onde o autor afirma que o ofício do aluno envolve não somente o trabalho acadêmico como também os momentos agradáveis que ele vivenciou no espaço escolar. 119 A professora na gestão da classe solicita aos alunos que façam silêncio e executem o trabalho acadêmico. Sheila: Cala a boca e faz o seu trabalho. A ordem para calar surge no intuito de silenciar a turma para a execução do trabalho, que seria a tarefa, na sala de aula. Há que se considerar que o uso de certas expressões, como calar a boca, carregam um tom de desaforo quando em circunstâncias de desentendimentos. Durante a exposição de um exercício de matemática no quadro, os alunos ao chegarem ao resultado final deveriam conferir a que letra tal numeração correspondia. Ao final das operações as letras formariam uma frase. Ocorre que durante a execução da tarefa, um aluno aponta um erro em uma das operações, pois o resultado não era correspondente a nenhuma letra. A professora inicialmente não atenta para o fato de o aluno tentou mostrar o erro para ela. Sheila: Gente, essa conta aqui é menos! (corrige no quadro) Pablo: Então o que eu tava falando pra senhora. A senhora não tava acreditando. Sheila: tava tanto barulho que não dava nem pra prestar atenção (justificando o exercício de matemática que estava errado no quadro). Após verificar que os alunos deveriam subtrair para obter o resultado correto, ela justifica a sua desatenção pelo barulho excessivo na sala. Durante a exposição no quadro, os alunos permanecem em pé ou copiando. 120 O erro do aluno é atribuído à sua incapacidade enquanto o da professora é ocasionado por fatores ambientais, como o barulho, que prejudica a atenção da mesma. A credibilidade do aluno não foi reconhecida por ela, onde o mesmo afirma que ela não estava acreditando nele. Assim, o barulho suplanta as falas e as interações entre os alunos existindo apenas o som do comando para “calar a boca”. 121 1.1.6. Tempo: chronos ou kairós? O tempo descrito nas categorias encontradas evidenciou-se, assim como o controle do espaço, nos dois ambientes observados, tanto nos conselhos de classe quanto na sala de aula. O interesse pelo tempo advém de épocas muito remotas, existindo diferentes explicações nas áreas de conhecimento. A discussão sobre a temporalidade é extensa envolvendo inúmeros questionamentos. Contudo, o interesse sobre o tempo em nosso trabalho é a delimitação temporal para as atividades escolares e como esse tempo é administrado em função das necessidades dos alunos. As horas do relógio, os dias e as noites, o calendário, entre outras formas de orientação foram criadas para nos auxiliar na localização temporal. Giddens (2005) aponta que nas sociedades modernas, o zoneamento de nossas atividades é fortemente influenciado pelo tempo do relógio. Ele cita os monastérios do século XIV como tendo sido as primeiras organizações que esquematizavam as atividades de maneira precisa ao longo dos dias e semanas. O planejamento das atividades de acordo com as horas, para Giddens (2005), é fundamental para o “zoneamento” das atividades nas instituições. 122 O horário de início, os intervalos e o fim dessas atividades são previamente estabelecidos para o cumprimento das mesmas por todos. Em uma instituição escolar, o professor e os alunos possuem horários delimitados para o cumprimento da carga horária. Os que se atrasam, seja professor ou aluno, são prontamente advertidos e orientados quanto ao horário estabelecido para eles. A preocupação com o controle do tempo pela delimitação e aproveitamento do mesmo está presente em quase todas as atividades realizadas na escola. Percebemos que esta forma de entender o tempo está relacionada com a cronologia distribuída no calendário acadêmico. Entretanto, existe ainda a dimensão individual para o entendimento e a incorporação das atividades distribuídas na escola e na sala de aula. Dizemos que cada aluno possui o seu “tempo” de aprendizagem e este não está diretamente relacionado ao planejamento escolar. Consideramos, em nosso trabalho, que no âmbito escolar coexistem duas dimensões que envolvem o controle do tempo. Este se divide em tempo cronológico (Chronos) e tempo oportuno (kairós). A distinção entre o tempo cronológico estabelecido pelo calendário escolar e o tempo de aprendizagem de cada aluno se fez necessário no intuito de evidenciar as práticas escolares voltadas apenas para o cumprimento do currículo estabelecido. 123 Assim descrito anteriormente Chronos e Kairós são dimensões temporais que regem o cotidiano escolar. Retornando à descrição feita das categorias desse trabalho denominamos Chronos o tempo cronológico pelo qual a professora controla as tarefas em sala de aula e a movimentação dos alunos e Kairós o tempo imbricado no processo de ensino – aprendizagem que é diferenciado para cada aluno. Na sala de aula estudada observamos que a professora distribui a tarefa enquanto os alunos, em suas carteiras, copiam para o caderno e posteriormente iniciam a execução. Ocorre que, após distribuir a tarefa, alguns alunos não permanecem atentos ao que está sendo proposto pela professora. Ela denota impaciência, passando a questionar o tempo gasto por eles na realização de qualquer tarefa apontando o grau de dificuldade das mesmas. Sheila: Pedro você ainda não acabou...Pedro você já acabou? Pedro: Mas eu não faço rápido tia? Mas eu to fazendo tia. Sheila: Mas está batendo muito papo. A descrição da categoria tarefa nos auxilia no entendimento desse tempo que rege a sala de aula. A tarefa proposta, não fazendo sentido para o aluno, passa a ser mascarada pelos mesmos frente a constante cobrança da professora para a realização da mesma. Essa fala “eu faço rápido” denota a entrada do aluno no jogo do tempo cronológico suplantando a aquisição do conhecimento específica para cada um. 124 Após algumas solicitações de término da atividade a professora inicia uma nova atividade no quadro desconsiderando a anterior. Esse ciclo ocorreu durante todo o nosso período de observações evidenciando a invalidação do tempo de aprendizagem de cada aluno em função do tempo cronológico. No decorrer das atividades em sala de aula e das interações entre alunos e professora, surgem as necessidades fisiológicas. As solicitações para ir ao banheiro e beber água são as mais freqüentes. Edgar: oh professora, posso ir no banheiro? Sheila: Você veio pra cá foi pra estudar não foi, então vamos estudar. Na fala da professora Sheila, foi possível visualizar a anulação da necessidade fisiológica do aluno justificando que este veio para a escolar para estudar. Ocorre que a professora, no cumprimento das determinações estabelecidas no Conselho de Classe, somente permite a saída de um aluno de cada vez e controla o tempo que ele leva para utilizar o banheiro ou beber água e retornar para a sala de aula. A sugestão feita por uma professora na reunião é a de estabelecer horários para ir ao banheiro. Estes horários ocorrem duas vezes no período de aula, no início e no final, desconsiderando que as necessidades fisiológicas não funcionam ao mesmo tempo em todos os alunos. Amélia: A minha turma é assim, quando dá 9:30 vão dois meninos e duas meninas ao banheiro, olho na porta, controlo o tempo, não sobe. Depois eles vão ao banheiro de novo 11:30, mesma coisa, 125 olho, controlo, eles não sobem. Há duas semanas atrás o banheiro das meninas estava interditado... (Conselho de classe). Se por um lado tal medida parece ir contra as necessidades dos seres humanos por outro, a escola é o espaço de socialização que privilegia o estabelecimento de regras. Os alunos passam a ter contato com novas regras de socialização pautadas na forma como a escola organiza suas funções burocráticas e administrativas, ou seja, horários de entrada, saída, merenda, recreação e conteúdos pedagógicos. O estabelecimento de regras na escola se dá a partir de uma situação que foi considerada problemática pela direção da escola e pelos professores. As regras são criadas levando em consideração a necessidade de controle e bem estar escolar definido pelos docentes. Se permanecer fora da sala de aula por muito tempo causa transtornos ao ambiente escolar, tal tempo passará a ser delimitado e controlado. Isso significa que as regras são criadas por uma realidade que se torna problemática, sobretudo, na perspectiva dos professores. A real problemática nessas saídas da sala de aula consiste no fato de que o aluno não vai somente ao banheiro, ele também, anda pelos corredores, em alguns casos chamando alunos de outras turmas para conversar. Dessa forma, tornou – se necessária a implementação do controle do tempo de saída e retorno para a sala e da movimentação pelos corredores. Essa medida que nos pareceu, num primeiro momento, uma forma de rigidez 126 quanto às necessidades fisiológicas que nem sempre ocorrem no horário determinado pela professora, num segundo momento, foi vista como sendo uma forma de controlar o espaço escolar. Pensamos que as saídas da sala de aula para o atendimento das necessidades fisiológicas deveriam ser organizadas de maneira menos rígida permitindo que os alunos saiam de modo a não comprometer o funcionamento das demais turmas da escola. O controle do tempo tem a ver com uma sociedade aprisionada num tempo cronológico. O tempo gasto pelos alunos, por exemplo, para se encaminharem para a sala de aula após a utilização do refeitório é, em dada medida, importante para o início da compreensão da necessidade de cumprir horários. De certa forma, o controle das atividades pelo tempo prepara o aluno para a inserção na sociedade cronológica. O tempo kairós foi desconsiderado na escola em sua funcionalidade, tendo em vista, a suplantação do tempo oportuno do aluno pela cronologia do calendário acadêmico. Percebemos que na escola estudada o tempo passível de controle por parte dos professores é aquele que pode ser mensurado: o tempo de cópia da tarefa, o tempo de entrada e saída da sala de aula, a hora da merenda, o horário de ir ao banheiro e beber água. O tempo de aprendizagem, por exemplo, não permite medidas exatas em função do seu caráter subjetivo e, portanto, não pode ser controlado. 127 “Tempo é chronos e kairós. É chronos como tempo horizontal e kairós como tempo transversal, que atravessa a temporalidade cotidiana e usual, dando-lhe especial significação” (NOVAES, 1994). Significação essa, que na escola estudada, foi dada apenas em função do zoneamento das atividades por chronos. Uma vez analisados os aspectos que regem a dinâmica do controle na sala de aula passaremos para a análise das categorias distintas que emergiram nos conselhos de classe. Foi possível visualizar na sala de aula estudada um entrelaçamento entre as categorias apontadas ora ressaltando a importância de uma ora a de outra. No centro encontra-se o aluno no cumprimento de seu dever que, em nossas análises, ocupa a última posição na hierarquia escolar. Hierarquização construída da seguinte forma: coordenadora pedagógica, vice-diretora, diretora, professores e alunos, funcionando para fins de controle do ambiente escolar e do aluno. 128 1. 2. O Conselho de classe O conselho de classe é uma reunião dos professores das turmas da escola juntamente com a direção e coordenação pedagógica da escola. O conselho de classe foi instituído oficialmente no Rio de Janeiro em 19/02/1972 através do Parecer 1.367 do Conselho Estadual de Educação. Atualmente os conselhos funcionam em todos os estabelecimentos de ensino do Estado e na rede particular. Os conselhos de classe acontecem ao final de cada bimestre com o intuito de avaliar os alunos. Essa avaliação deve ser global visualizando as potencialidades dos alunos, sendo ele um ser humano único e diferenciado. Portanto, não se deve esperar que todos os alunos atendam às expectativas de aprendizado da mesma maneira. O que se pretendia com a criação dos conselhos de classe era; “Uma reforma com o objetivo declarado de democratizar o ensino que almejava organizar um sistema escolar fundado na observação sistemática e contínua dos alunos com vistas a oferecer a cada um o ensino que corresponda a seus gostos e aptidões” (Institut de Recherche et Documentation Pédagogiques INRD – 1971 In ROCHA, 1984, p. 19). Foram participantes das reuniões de conselho de classe: a diretora, a vicediretora, a coordenadora pedagógica, todos os professores da escola, um representante dos pais de alunos, um representante da comunidade local e um representante dos alunos. Porém, o que percebemos nesses encontros foi a formação de uma hierarquia de controle onde o aluno ocupa a posição menos privilegiada. Na 129 análise de dados dos conselhos nos perguntávamos o que foi para aquele grupo o aluno. Qual o perfil que elas traçaram a partir da avaliação que promoveram dos alunos? E ainda, entender essa hierarquia que determinou a relação entre diretores, coordenadores, professores e alunos. Observamos durante nossas visitas a formação de uma hierarquização de poder de controle de professores e alunos. As funções foram definidas de acordo com a liderança adquirida na escola. Nesse caso, a coordenadora pedagógica articulou, além das suas atribuições, uma rede de poder entre professores, direção e alunos. Ela representou a figura central na escola. Os professores atuaram no controle da sala de aula atentos às normas e procedimentos estabelecidos nas reuniões de COC14. A direção atuou de forma neutra se considerando uma “pessoa muito gostada na comunidade”. A vice-diretora atuou juntamente com a coordenadora pedagógica na articulação das atividades da escola. Por fim, os alunos encontraram-se sob o julgo de decisões pensadas longe das prioridades deles. As dimensões familiares e sociais foram determinantes no seu processo de avaliação. Pela situação de excluídos dos alunos, os professores desacreditaram as chances deles em se tornarem bem sucedidos e acabaram por fracassá-los. É a chamada profecia auto- 14 Sigla esta, como afirma Senna (2004) que pela ambigüidade dos sentimentos que se encontram nessas reuniões o surgimento da sigla COC é desconhecido (p.9). 130 realizadora: sempre fracassando aqueles de quem esperam baixo desempenho. Ao avaliar o aluno os professores acrescentaram dados relacionados ao diaa-dia da comunidade, à dinâmica e ao histórico familiar. Na maioria dos casos relatados esses dados são utilizados para estigmatizar o aluno e reproduzir na escola a situação de miséria e exclusão em que vivem, inviabilizando o desenvolvimento social, cultural e acadêmico do aluno. A avaliação realizada foi impregnada de fatores secundários ao desempenho escolar do aluno. Foram consideradas, sempre que possível, todas as dimensões da vida do aluno, sem, contudo, privilegiar uma em detrimento de outras. Os preceitos da gestão democrática da escola que visam promover a participação da comunidade e da família no ambiente escolar acabaram por se tornar, nesse caso, como mais uma ferramenta de exclusão do aluno. Os membros da comunidade ao participarem dos conselhos de classe forneceram informações sobre a participação dos alunos nas atividades do tráfico de drogas, os familiares doentes, a circulação dos alunos pela comunidade no horário de aulas e ainda, atividades de trabalho que realizaram com a permissão dos pais. 131 1.2.1. Problemas de aprendizagem: a discussão clínicapedagógica “É melhor vocês aprenderem alguma coisa” (Professora Sheila). O problema de aprendizagem é um assunto discutido desde a sua constatação nos meios escolares. Embora compreendamos que tais problemas, assim como a própria aprendizagem, não sejam uma prerrogativa da escola, é nesse ambiente que ela se destaca, seja porque o aluno de fato possui alguma dificuldade que necessite de auxílios específicos dentro ou fora da escola, ou seja, porque os profissionais da educação dentro do ambiente escolar utilizam-se desta expressão para avaliar, caracterizar o aluno. Entendemos problema de aprendizagem no ambiente escolar como sendo uma dificuldade encontrada pelos alunos na aquisição dos conteúdos escolares. Para melhor definir a natureza dos problemas de aprendizagem utilizamos o estudo realizado por Figueiredo (1992) onde a autora faz uma análise comparativa entre a concepção de Visca (1987) e de Pain (1985). De acordo com Pain (1985) os problemas de aprendizagem estão diretamente ligados aos problemas surgidos nas instituições escolares, enquanto para Visca (1987) estes se relacionam à construção e à interação que coloca em jogo a pessoa total. 132 Na perspectiva de Visca (1987) o problema de aprendizagem é “o que emerge da personalidade em interação com o sistema social ou seus mediadores”. É decorrente da interação que ocorre no meio que o sintoma irá se manifestar. Pain (1985), por sua vez, define que “os problemas de aprendizagem se manifestam na resistência às normas disciplinares, na má integração no grupo de pares, na inibição mental ou expressiva, etc”. Os problemas ou distúrbios de aprendizagem podem ocorrer por diversos fatores e em épocas diferentes deste processo. Os principais são a dislexia, a disgrafia e a dicalculia. A dislexia se apresenta como uma falha no processamento da habilidade da leitura e da escrita durante o desenvolvimento do indivíduo. A disgrafia seria uma falha na aquisição da escrita, implicando numa inabilidade ou diminuição no desenvolvimento da mesma. A discalculia seria uma falha na aquisição da capacidade e na habilidade de lidar com conceitos e símbolos matemáticos. Esses problemas de aprendizagem são recorrentes no âmbito escolar, contudo, o desconhecimento por parte do corpo docente acerca dos sintomas que caracterizam cada uma das disfunções ligadas à aprendizagem faz com que estes atribuam toda e qualquer dificuldade apresentada na sala de aula a um distúrbio de aprendizagem (grifo nosso). 133 Haveria, portanto a necessidade da entrada da interdisciplinaridade na análise e tratamento dos problemas de aprendizagem. A proposta de Visca, para que seja possível apontar os problemas de aprendizagem é de que se deve lançar mão da pauta formal, ou seja, os programas escolares para a aprendizagem sistemática exigida pra o aluno, a idade cronológica e o nível de pensamento alcançado. Krell (In FIGUEIREDO, 1992) sugere que ao detectar o sintoma ou problema de aprendizagem, deve-se vê-lo já como a expressão de situações mais profundas que não chegam a se organizar no indivíduo. Autores como Visca, Pain, Correia e Martins (2005) também apontam que ao observar um sintoma deve-se analisar a história de vida do sujeito, buscar compreender a estrutura do pensamento e o nível em que se encontra, como é a adequação perceptivo-motriz, sua lateralidade, transtornos neurológicos, metabólicos ou genéticos. No conselho de classe foi possível visualizar a análise feita de um determinado aluno quanto às suas características no processo de aprendizagem que não consideram as etapas sugeridas pelos autores que apontamos. A professora expõe o trabalho que é realizado com ele nos momentos em que ele comparece às aulas. A seguir a vice-diretora coloca que a dificuldade não estaria relacionada às faltas do aluno, mas a um distúrbio de aprendizagem pelo qual ele foi encaminhado para atendimento psicológico. 134 Graça: a Gislaine (fica folheando o caderno). A Helen assim (faz um gesto de mais ou menos com a mão) sabe o quê que acontece? , você bate bate bate aí quando ele pega, ele some (apóia a cabeça com a mão) é uma situação difícil sabe. Vice-diretora:tem até um distúrbio não tem? Graça: tem sim (volta a olhar o caderno) Vice-diretora: foi até pra psicóloga com distúrbio de aprendizagem. (Conselho de Classe) Vale ressaltar que neste evento de fala percebemos uma orquestração característica dos conselhos de classe estudados por Mattos (2005) onde os professores, na avaliação do aluno, apresentam características que são reforçadas pela fala das outras professoras e ao final, produzem uma avaliação que irá definir a situação de fracasso ou sucesso do aluno. A vice-diretora avalia que o aluno possui um distúrbio e a professora afirma que o aluno possui de fato um distúrbio e é reforçado pela constatação de que o aluno foi ao psicólogo. Elas recorrem a uma instância fora da escola para justificar o distúrbio do aluno, utilizando–se de uma informação da procura de um profissional que se sobrepõe à avaliação da professora. Esta inicialmente atribuiu a dificuldade do aluno à sua ausência da sala de aula. Dentre outros eventos que confirmam nossa análise anterior destacamos um que substancia essa atribuição de diagnósticos na escola. Em um dos conselhos de classe analisados, a professora apresenta o que ela considera a dificuldade da aluna para a leitura. Enquanto ela expõe que a aluna dá a falsa impressão de que lê, a coordenadora sugere que a aluna 135 tem dislexia e a vice-diretora acrescenta que a referida aluna é muito ansiosa. Marly: e a Catia, a Catia que a Catia dá a falsa impressão de que está lendo, mas não está. Fotografa as a palavras e aqui diz ali está escrito papai, né tia, é entendeu?! Coordenadora (falando junto com a professora): a Catia, a Rosália está desconfiada de que ela tem dislexia. Vice-diretora: ela é muito ansiosa. Rosália: eu acho que ela tem dislexia sim. Coordenadora: eu acho, alias, que quem tiver algum material, a gente tá recolhendo material pra tentar resolver o problema, contribuições. O ato de fotografar palavras deu à professora o significado de uma falsa impressão de leitura ou dislexia. Para solucionar o problema da aluna, a coordenadora solicita às professoras contribuições com materiais sobre o tema. A ansiedade da aluna é apontada pelas professoras como sendo um diagnóstico de dislexia. Nesse evento, apesar da atribuição de um diagnóstico a partir da leitura fotográfica da aluna, a coordenadora solicita materiais para o entendimento da possível dislexia. Outra forma de lidar com os problemas apresentados pelos alunos é o encaminhamento para profissionais da área de saúde. O encaminhamento dos alunos para psicólogos e médicos refere-se a uma tendência a deslocar problemas do âmbito escolar para instâncias exteriores a ela que dêem suporte às justificativas por eles encontradas. Coordenadora: O Jorge eu vou encaminhar. O Jorge eu vou tentar encaminhar pro psicólogo porque o problema dele eu acho que é psicológico. 136 O problema do aluno foi solucionado com um plano de encaminhamento para um especialista. A situação acusada pela professora foi a de o aluno está agressivo na sala de aula com ela e com os demais alunos. O entendimento de que os problemas de aprendizagem não ocorrem isoladamente torna os problemas familiares e a medicalização instâncias que se relacionam entre si e atuam na vida escolar do aluno. Em nosso trabalho destacam-se os problemas familiares e a medicalização como prerrogativas para o fracasso escolar. Pesquisas realizadas por Mattos (1992) e Patto (1993) apontaram um contingente de alunos que recebem, em virtude do meio social, a atribuição de fracassados pela escola. “Os destinatários destes diagnósticos serão, mais uma vez, as crianças provenientes de segmentos das classes trabalhadoras dos grandes centros urbanos, que tradicionalmente integram em maior número o contingente de fracassados na escola”. (PATTO, 1993, p. 67). No contexto do trabalho de Patto sobre a medicalização do ensino encontramos uma das atribuições que são feitas aos alunos que fracassam na escola. A justificativa encontrada é a de que estes seriam oriundos de famílias de classes baixas e não apresentam condições de superação da realidade excludente em que vivem. Estes são os que, em suas dificuldades nas salas de aula, recebem o diagnóstico de alunos portadores de alguma anormalidade. Tal diagnóstico define a situação desse aluno na escola, sendo ele considerado inapto para as funções escolares. 137 “As dificuldades de aprendizagem escolar da criança pobre decorrem de suas condições de vida. Este pressuposto, bem como várias afirmações derivadas, encontra-se em plena circulação no pensamento educacional, o que mostra que ainda estamos sob a influência da teoria da carência cultural, em sua versão que afirma a presença de deficiências ou distúrbios no desenvolvimento das capacidades e habilidades psíquicas da clientela. Este postulado tendo sido um dos princípios norteadores da maneira atual de pensar os problemas da escola e sua solução” (PATTO, 1999, p. 121). Em nosso trabalho percebemos que a atribuição de um problema de aprendizagem ocorre quando o professor estabelece padrões de um aluno ideal e os outros alunos se afastam desse padrão. Nesse ínterim, emerge o controle como uma forma de garantir a adequação dos alunos aos padrões estabelecidos. Os que não se encaixam nesses padrões recebem o rótulo dos problemas de aprendizagem e são encaminhados para atendimento fora da escola. Desse modo, os problemas de aprendizagem apresentados pelos alunos em nossas análises não receberam a avaliação, o diagnóstico e o tratamento adequado, uma vez que, as professoras e a direção não possuíam o devido entendimento do que seriam os problemas de aprendizagem e como eles se apresentam na sala de aula. 138 1.2.2. Problemas familiares: justificativa para o fracasso escolar “Eles são realmente difíceis, tem problemas sérios, os que não tem problemas de aprendizagem, tem problemas sociais” (Coordenadora pedagógica). Os problemas familiares não ocorrem de forma isolada em nossas análises. Estes se relacionam diretamente com a compreensão dos professores acerca dos problemas de aprendizagem. Isto é, os problemas familiares, assim como a medicalização, atuam na dinâmica escolar como justificativas reais para os problemas de aprendizagem apresentados pelos alunos. Em todo momento no conselho de classe os participantes relacionam as características dos familiares com as condições sociais precárias em que vivem os alunos freqüentam a escola. Os pais são sempre inferiorizados sem condições de proporcionar aos filhos recursos mínimos para que eles superem a situação de miséria em que nasceram e estão crescendo. Para essas professoras, a herança cultural é fator preponderante para definir a condição de fracasso dos alunos. “Justificar o “êxito escolar” de alguns alunos, aludindo à bagagem inicial de docência de suas famílias, serve para questionar claramente a “ideologia do dom” ao se pôr em evidência fenômenos de herança cultural, mas essa explicação não acrescenta nada em relação a essa bagagem docente inicial num dado momento da história da escola e nem aos métodos empregados para transmiti-la”. (LAHIRE, In MARCHESI & GIL, 2004, p. 70). Encontrar justificativas para a situação escolar dos alunos pela bagagem escolar de seus pais e demais familiares é reafirmar um espaço de exclusão na escola. A citação de Lahire (2004) nos remete ao destino que é dado 139 àqueles alunos que durante o seu processo de escolarização são freqüentemente comparados aos seus familiares no que tange à carreira acadêmica. À atribuição de fracassos à condição familiar dos alunos, os professores associam o comportamento dos membros da família ao comportamento do aluno na escola. Durante a descrição da visita do pai de um aluno à escola, a coordenadora justifica o comportamento do aluno pelo do pai. De qualquer forma sendo o aluno bem ou mal comportado na escola a associação leva a considerar que, se o aluno se comporta de determinada maneira foi em função da similaridade com os familiares. Coordenadora: mais olha só, veja pelo lado bom, quando você viu o pai com aquele comportamento, você entendeu porque a criança era daquele jeito né! Tudo se iluminou na sua cabeça. A alteração do pai em uma visita à escola contribuiu para o entendimento do comportamento do aluno. A “iluminação” que a coordenadora e a professora receberam com a visita do pai do aluno foi utilizada para enquadrar o aluno em função do seu meio familiar. A escola, que deveria oferecer condições de superação, apenas atribui a causas externas os problemas de alunos sem novas possibilidades. Ele será entendido, em toda a sua dimensão, pelo comportamento apresentado pelo pai. 140 O conhecimento da vida familiar não é obtido para excluir o aluno, mas para entender o aluno em sua totalidade. Ele, ao chegar na escola traz as experiências que adquiriu ao longo de sua socialização primária. Isso implica em experiências positivas para um desenvolvimento saudável, mas também em traumas que, por vezes, dificultam a socialização de acordo com as regras escolares. Um tema que suscitou nosso interesse foi o tratamento dispensado a um determinado aluno que protegia os irmãos por uma passagem de abuso sexual ocorrida com um deles. Todos estudam na mesma escola e em salas distintas. O irmão mais velho recebeu a incumbência dos pais de proteger os irmãos mais novos. Embutido de tal responsabilidade, o referido aluno se envolvia constantemente em brigas na escola em função dos irmãos. Coordenadora: eu vou só explicar essa situação, que eu já venho reparando isso a algum tempinho. É o seguinte: o Rafael é o filho mais velho dessa família, depois que o irmão sofreu com a questão do abuso sexual, a mãe e literalmente o pai “incubiu” ele de superproteger os irmãos. Então qualquer coisa que qualquer dos irmãos fale que acontece, sumiu um lápis, por exemplo, ele se sente na obrigação de ir lá procurar o lápis e tomar uma providência. Então a gente tem que dar uma...mas isso aí ta vindo de casa, a mãe e o pai tão dando essa incumbência para ele. Ele é o responsável por tudo que acontece com os menores. A definição encontrada sobre abuso sexual é a de que este remete: “(...) à palavra sedução, ligada à idéia de uma cena sexual em que um sujeito, geralmente adulto, vale-se de seu poder real ou imaginário para abusar de outro sujeito, reduzido a uma posição passiva: uma criança ou uma mulher, de modo geral”. (ROUDINESCO e PLON, 2004, p. 696-697). A dimensão da problemática do aluno envolve, de acordo com o evento de fala da coordenadora: o abuso sofrido por um dos irmãos, a incumbência 141 dos pais para que o aluno proteja os irmãos e, em função dessa proteção, ele agride outros alunos que importunam os irmãos. Ao afirmar que esta situação é oriunda do meio familiar, a coordenadora retira da escola a solução para a dificuldade apresentada na escola pelo aluno. Mais uma vez, ocorre a externalização dos problemas escolares. O modo como a escola enfrenta a problemática de seus alunos não representa uma forma de compreensão e possibilidade de enfrentamento dos mesmos. Os professores apenas atribuem uma carga de culpa à família e ao aluno sem oferecer caminhos para a superação de problemas que acabam por afetar o seu desempenho enquanto aluno. 142 1.2.3. Faltas: presenças controladas “Você fica impressionada com o número de faltas” (Coordenadora pedagógica). A garantia governamental de acesso à escolarização para todos os brasileiros faz parte de muitas campanhas educativas. Paralelo à criação de vagas nas escolas existe a obrigatoriedade de freqüência às aulas salvo em condições justificadas e mediante o conhecimento dos pais ou responsáveis. A Constituição Federal afirma que o controle pedagógico da freqüência é obrigação da escola e compete ao poder público o seu acompanhamento. “Artigo 208 – § 3° - Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela freqüência à escola”. Sabemos ainda, que o acompanhamento das faltas é de interesse público na condição de controle dos benefícios que são concedidos mediante a comprovação de matrícula regular na rede pública e freqüência escolar. Não podemos afirmar se o interesse em zelar pela presença escolar estaria relacionado à importância do ensino ou à atribuição de benefícios sociais. Contudo, sabemos que perpassa pela freqüência escolar um controle da escola e das instâncias governamentais. A implicação do aluno presente ou não na sala de aula não é considerada sob o aspecto pedagógico. O aluno, mesmo que possa aprender em qualquer ambiente, ao estar presente na sala de aula recebe novas 143 informações que vão, ao longo do seu processo de escolarização, constituindo a sua bagagem escolar. O problema das faltas excessivas é fator de preocupação constante nos conselhos de classe observados. Ocorre, ainda, a associação do excesso de faltas com os baixos rendimentos escolares. Yolanda: A 1202 está se preparando aqui (procurando os óculos)... Essas crianças, elas estão com um problema seríssimo que é o problema das faltas, tipo assim... Coordenadora: Esses fracos coincidem com os que mais faltam? Yolanda: Yasmim 29 faltas, Douglas 23, Helana 20, Raquel 27, Eduarda 24, Fanny 22, entende?, mas é que aí, dentre esses, a gente vai destacar o problema do Carlos.. A divergência quanto ao número de faltas que o aluno tem direito suscita dúvidas e não há um acordo entre a direção e os professores. Após um número de faltas consecutivas o aluno é reprovado. Os pais são comunicados pela direção da escola ou encaminhados ao Conselho Tutelar. O CT funciona como uma instituição externa ao ambiente escolar no controle das faltas. Assim como a gestão democrática que prevê a participação da comunidade na escola e em conselhos de classe. A participação de membros da comunidade nos conselhos de classe se tornou um instrumento de denúncia da vida cotidiana dos alunos. Quando uma professora mencionar o problema de faltas de um aluno no COC, o membro da comunidade presente possui uma explicação para a ausência do mesmo à escola. 144 Eles são pessoas conhecidas na comunidade local além de possuírem respeitabilidade no meio escolar. Possuem informações sobre familiares, locais freqüentados pelos alunos, atividades laborais dos familiares e dos alunos. O interesse dos professores surge uma vez que podem punir o aluno com tais informações. Membro da comunidade: o que eu posso dizer é que a minha preocupação com o Bruno nunca a favela esteve assim... como dizem os meninos por aí a favela tá um favo de mel como dizem os meninos por aí a favela tá um favo. Nunca a firma faturou eu to aqui a 18 anos nunca teve tanto comércio e faturamento como agora. Quando aumenta o faturamento e o comércio aumenta a oferta de mão-de-obra que tá cada vez mais para vez mais de baixa idade mas a mão-de-obra mais oferecida agora é pra muleques de 10 anos ... é o que mais se vê agora é muleque de 10, 9 anos com AR15 na mão, então a oferta de trabalho tá sabe, nas minhas contas hoje se tem mais de 1200 pessoas trabalhando para o tráfico hoje, mas de 80% tem menos de 14 anos de idade. E a mãe do Bruno eu digo porque eu conheço ela, ela é minha vizinha conheço ela desde a época que ela foi porta-bandeira do Quilombo, ela já perdeu um filho com 15 anos pro tráfico, tem um que tá trabalhando, ele dá muita bobeira, dá muito mole, sabe ela tá dando muito mole com o Iago ela passa a mão do Bruno e não é só com relação ao Iago não é com relação a uns 20 ou 30 alunos que tem aqui, Vitor que saiu. Então ta 145 muito fácil ganhar 200 reais por semana e ganhar status na comunidade15. Na cena destacada dos conselhos de classe estão os representantes da comunidade, dos pais, da associação de moradores e a dos alunos da escola. O entendimento dos motivos que levaram o aluno a estar ausente na sala de aula, no evento destacado não poderá ser considerado como fator de avaliação dos alunos. Os membros da comunidade apontam os alunos que fazem parte de atividades ilegais na comunidade, mas que ainda assim são considerados como justificativas para o controle das faltas dos alunos. As professoras descrevem os alunos associando faltas e baixo desempenho acadêmicos, os “fracos”. Poliana: Essas crianças, elas estão com um problema seríssimo que é o problema das faltas, tipo assim... Coordenadora pedagógica: Esses fracos coincidem com os que mais faltam? Poliana: Adonias. 29 faltas, Antonio 23, Isabele 20, Luan 27, Ivo 24, Jaqueline 22, entende? Mas é que aí, dentre esses, a gente vai destacar o problema do Al. Você bate bate bate aí quando ele pega, ele some (apóia a cabeça com a mão) é uma situação difícil sabe. No relato acima, o baixo rendimento dos alunos está relacionado com o número de faltas, sendo a relação aprendizado e presença na sala de aula fundamental para o rendimento dos alunos. O processo de aprendizagem é um fenômeno do dia-a-dia, que ocorre desde o início da vida, talvez até 15 Na fala acima coube destacar o significado de algumas expressões ligadas ao tráfico de drogas. Favo de mel significa que a venda de drogas aumentou e não há interferência policial; firma e comércio: tráfico, grupo que atua na comunidade local; mão-de-obra: pessoas que vendem drogas ou exercem outras funções no tráfico local; AR15: arma de guerra utilizada pelo tráfico local; a mãe perder um filho para o tráfico: o filho foi morto em algum confronto com a polícia ou com traficantes rivais. 146 mesmo antes do nascimento. Nesse sentido, a justificativa dos baixos rendimentos escolares a partir do número de faltas seria apenas uma forma de mascarar as práticas de sala de aula que não perpassam o entendimento do aluno. Se o referido aluno tivesse realmente “pego”, ou agregado conhecimento necessário dos conteúdos transmitidos pela professora, ao retornar para a sala de aula ele seria capaz de recordar o que lhe foi ensinado. A aprendizagem implica numa mudança proveniente de algum tipo de treinamento, que supõe repetições, exercícios e prática. Contudo, não se pode prever, a priori, o tempo de aprendizado de cada aluno e as estratégias que ele utiliza para aprender. Acreditamos que o aluno seja capaz de aprender independente de sua presença em sala de aula, uma vez que eles podem aprender pelo esforço dos professores ou por eles mesmos. Desse modo, relacionar a presença do aluno na sala de aula com níveis de aprendizagem torna-se uma estratégia segregadora, pois se ele falta e depois retorna é excluído da atividade diária considerando que ele esqueceu o que aprendeu. Devemos considerar que muitas vezes o espaço de sala de aula não se apresenta com um local que propicie concentração e esforço para aprender. Na sala de aula atuam concomitantemente à aprendizagem o barulho excessivo, as discussões da professora com outros alunos e as interrupções constantes nas aulas por outros funcionários da escola e alunos. 147 1.2.4. Medicalização “Encaminha ele ué” (Vice-diretora) O desenvolvimento das ciências médicas no final do século XVIII e o século XIX contribuíram para os avanços nos estudos da psiquiatria sobre a conceituação e tratamento das doenças mentais. Foucault em seus estudos também aponta a ocorrência da medicalização como forma de atribuir normas de conduta aos sujeitos sociais. “Por pensamento medicalizado, eu entendo uma maneira de perceber as coisas que se organiza em torno da norma, isto é, que separa o que é normal daquilo que é anormal, o que não coincide exatamente com a repartição entre o lícito e o ilícito; o pensamento jurídico distingue o lícito do ilícito, o pensamento medicalizado distingue o normal e o anormal; ele se atribui os meios de correção que não são exatamente os meios de punição, mas meios de transformação dos indivíduos, toda uma tecnologia do comportamento do ser humano que está ligada a eles” (FOUCAULT, 2005, p 65-66). A norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção. A norma não tem por função excluir, rejeitar. Ao contrário, ela está sempre ligada a uma técnica positiva de intervenção e de transformação, a uma espécie de poder normativo. Assim, a escola também adotou a nomenclatura médica para encaminhar os problemas apresentados em seu interior. Nos estudos de Patto (1998) o termo medicalização do fracasso escolar se refere ao destino dado aos problemas escolares. A medicalização ou patologização do ensino é tema recorrente nos debates sobre a Educação. Os problemas enfrentados pela escola e que não são 148 passíveis de solução imediata passam a ser explicados pela ótica da doença. É evidente que, em determinados casos, um diagnóstico realizado por um profissional especializado faz-se necessário. De qualquer forma, o que nos interessa em nossas análises é o número de encaminhamentos feitos na escola e que não foram devidamente identificados como um problema de saúde. A professora, durante o conselho de classe, relata a conversa que teve com a mãe de uma aluna que esquecia os conteúdos da aula anterior. A professora afirma que a aluna esquece rapidamente apagando da memória dela. A professora, então, sugere que a mãe a leve a um médico para que este administre um remédio para memória para a aluna. Janete: eu conversei com a mãe dela, perguntei pra mãe dela: a senhora já levou ela ao médico, pra tomar um remédio pra memória, porque hoje ela sabe você ensinou a ela, ela sabe vem amanhã, amanhã ela não sabe mais. Ela esquece rapidamente, ela apaga da memória dela Vice-diretora: é ela tinha que ir Janete: Aí eu fiquei até de fazer, quando eu conversei com a mãe dela o relatório pra dar, pra mãe dela levar ‘ah leva aqui no postinho mesmo’ só que precisa marcar, então a senhora leva e pede um remédio pra memória. Porque eu coloquei no relatório da menina, não consegue ler, as vezes médico sempre ajuda. Eu não sei que recurso usar com ela, a garota não aprende, então essa criatura eu dei I. Pro cara que no início do ano não sabia ler D e hoje lê dado pra mim, é lógico que ele evoluiu pra caramba, então pra ele eu dei R, Beatriz: ela eu lembro, ela não retia as coisas que ela lia A professora não específica qual o profissional adequado para avaliar a aluna, podendo a mãe levá-la ao posto de saúde ao lado da escola. Nesse caso, o diagnóstico de perda de memória da aluna requer um tratamento especializado e a longo prazo. 149 Cabe ressaltar no evento acima a orquestração dos professores para afirmar o problema apresentado pela aluna. A professora Janete relata o problema de memória da aluna, logo depois a vice-diretora sugere um encaminhamento e, ao final, uma segunda professora, Beatriz, acrescenta que a mesma aluna não retém o que lê. Outro encaminhamento freqüente nos conselhos de classe é para atendimento psicológico. Em alguns casos, os alunos já foram encaminhados outras vezes, mas pela falta de informação sobre a demanda de atendimento psicológico, os pais não atendem o pedido da escola. Vice-diretora: tem que encaminhar ele para o psicólogo Coordenadora: ele já foi encaminhado dezena de vezes Vice-diretora: mas a mãe não leva...é outra que só vem reclamar de bolsa, disso aquilo... A vice-diretora aponta que a preocupação da mãe está relacionada com questões financeiras, como a bolsa escola, e não se interessa pelo tratamento do filho. Por vezes, a situação sócio-econômica da família suplanta certos problemas surgidos, tais como, os que ocorrem na escola. Patto (1998) sugere que a educação crie, “mecanismos de avaliação psicológica e de encaminhamento escolar justos, a escola se encarregue de criar uma nova mentalidade nas novas gerações, cabendo aos professores destruir algumas ficções democráticas e levar os cidadãos à aceitação do que os autores chamam de a “dura realidade dos fatos” (PATTO, 1999, p.70-71). Entendemos que na tentativa de solucionar as ocorrências que se apresentam na sala de aula sem uma avaliação criteriosa das mesmas, os professores invalidam o fato de que muitas vezes os alunos apresentam 150 dificuldades ao longo do processo de escolarização que não estão relacionados a problemas de saúde. 151 1.2.5. Violência “O que eu to colocando aqui é que tem que ter uma ação mais coercitiva do professor” (Professora Dora) A violência nos centros urbanos apresenta a cada dia índices alarmantes. A mídia apresenta fatos violentos que estão relacionados a situações que ocorrem na sociedade e que, na maioria dos casos, a escola está localizada próxima aos locais considerados de risco pela ocorrência diária de tais situações. A questão da violência na escola está relacionada, em muitos casos, a aspectos concernentes à desigualdade na sociedade atual e que se refletem na exclusão sócio-educacional do sujeito social. A violência surge, no cenário escolar, como uma reação desses sujeitos na tentativa de denunciar as condições desiguais e excludentes em que se encontram. Segundo Dubet (2003) as desigualdades sociais existem desde sempre, mas foi somente, a partir da Modernidade16, que elas passaram a serem consideradas relevantes, como um problema que envolve todas as dimensões da vida humana e das relações sociais. Com a centralização da exclusão na dimensão social, a busca de entendimento para essa realidade parte de uma situação social que se torna problemática. Tomemos a situação violenta do Rio de Janeiro com notícias diárias sobre confrontos entre jovens e a polícia, aumento do número de 16 Modernidade refere-se ao estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. (GIDDENS, 1991). 152 homicídios, proliferação de favelas, que a cada dia ocupam mais espaços nos grandes centros urbanos. Essa transformação social ocorre em função do descaso com que a violência é tratada pelas autoridades policiais, judiciais e educacionais. A violência pode ser caracterizada por uma expressão que diz que seria como um “elefante na sala de jantar”. A expressão foi cunhada na África à época do extermínio de elefantes para o comércio do marfim. As autoridades foram tão negligentes que se dizia que um elefante poderia estar na sala de jantar que eles não notariam a sua presença. O mesmo ocorre quando, ao relatar fatos relacionados a fechamentos de escola e alunos envolvidos no tráfico de drogas ou mortos, a escola comenta o fato e este acaba por passar despercebido no cotidiano escolar. O sujeito é situado nas marcas da exclusão e violência que são atribuídas a ele. Dubet (2003) cita ainda o reforço “sofrido” pelos indivíduos (alunos e professores) para construir autonomia e identidade17 numa sociedade (ou instituição) em processo de transformação e de “decomposição”. “O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo, cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa dentro de uma infinidade 17 Entendemos a identidade como um conjunto de imagens, representações, conceitos de si, e consideramos, especialmente, o caráter dialético de sua construção, a saber, da importância da alteridade nesse processo, fez-se também necessária a inclusão de procedimentos que possam fornecer dados para a compreensão da importância do outro nesse processo. 153 de possibilidades também não é uma perspectiva atraente. Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser “identificado” de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto” (BAUMAN,2005, p.35) A construção da identidade dos jovens e crianças que residem em áreas consideradas violentas pela população é mediado pelos valores familiares, da escola e acima de tudo do tráfico local de drogas. Esta construção é dialética; além de determinada é também determinante, pois o jovem tem um papel ativo, quer na construção desse contexto a partir de sua interação, quer na sua apropriação. A identidade só pode ser construída a partir da interação. Interessa, portanto, a percepção da interação dos alunos na sala de aula e na escola e da violência na qual estão inseridos em seus locais de moradia e na escola. ““Identificar-se com...” significa dar abrigo a um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar” (BAUMAN, 2005, p. 36). Nos conselhos de classe a preocupação com a violência surge nos relatos das professoras sobre a inscrição das iniciais de facções criminosas que dominam a região onde a escola estudada está situada. Efetivamente elas não demonstram interesse pelo conteúdo do que os alunos escrevem sobre o tráfico de drogas e sim com a utilização do material escolar de forma inadequada e da utilização de uma boa caligrafia com atividades fora do contexto escolar. Sheila: “o cara gasta a tinta da caneta dele todo, rasga as folhas do caderno dele todo pra ficar escrevendo TCP, TCP com uma letra linda”. 154 Yolanda: “a gente tá com um grau... ficar escrevendo TCP (e dá um soco na mesa)”. Sheila: “aí ele bota terceiro e embaixo coloca TCP (...) gastou a caneta dele toda”. (Conselho de classe). A sigla escrita pelo aluno se refere ao Terceiro Comando Puro (Isto É Mai/04), facção criminosa que domina o tráfico local de drogas. Esse tipo de manifestação é freqüente na sala de aula. Os alunos, ainda, cantam músicas que fazem apologia ao crime organizado da comunidade local. Notamos como a professora e os alunos lidam com as manifestações que mencionam siglas violentas, onde nenhuma demonstração é coibida pela professora e por outro funcionário da escola. Em um encontro com a coordenadora pedagógica questionei como é comum à turma escrever siglas, como TCP e cantar músicas relacionadas à violência urbana. Ela cita o exemplo de um aluno que representa na sala de aula a maioria dessas manifestações. Coordenadora: É como se ele (Vitor) criasse um microcosmo da comunidade na sala de aula. A explicação da coordenadora nos fez pensar sobre a criação de um microcosmo na sala de aula. O termo é pensado partindo da noção de campo utilizada por Bourdieu (2004). “A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias” (BOURDIEU, 2004, p. 20). 155 O autor explica que o microcosmo se liberta das imposições externas – pressões externas, créditos, ordens, instruções, contratos – e passa a ter condições de reconhecer apenas suas próprias determinações internas. Cada vez mais o campo vai se tornando autônomo, derivando daí a explicação para o “microcosmo” criado pelo referido aluno. Ele circula pela sala de aula e pela escola de forma diferenciada dos demais alunos. A coordenadora acredita que a presença do aluno na escola dá um caráter comunitário à escola, uma vez que, ao cantar e desenhar siglas que aludem ao tráfico de drogas ele se torna um representante da comunidade local na escola e na sala de aula. Se considerarmos que a gestão democrática prevê a participação da comunidade na escola, a coordenadora está utilizando o termo “microcosmo” de forma errônea que não representa a idéia central da democratização do ensino. Tal aspecto representa um ato caracterizado como incivilidade, onde o caos impera. Em Debarbieux (In ARAÚJO, 2001) encontramos a associação da violência à incivilidade18, destacando a desorganização da ordem, a introdução do caos, a perda de sentido e de compreensão. O autor denuncia o fracasso da escola em cumprir seu papel na sociedade, uma vez que não apresenta condições favoráveis para que o aluno aprenda os conceitos transmitidos pelo professor. 18 Indelicadeza, falta de urbanidade e ausência do conjunto de formalidades que os cidadãos observam entre si quando são educados. 156 “É bem possível que a incivilidade de certos jovens seja uma incivilidade reativa à expressão de um amor decepcionado com uma escola incapaz de cumprir suas promessas de inserção” (DEBARBIEUX 1998 In ARAÚJO, 2001, p.27). A afirmação do autor aponta para o fracasso da escola em cumprir seu papel de contribuir com a formação cultural, social e acadêmica de seus alunos. Ao acreditar que a criação de um “microcosmo da comunidade” na sala de aula é algo positivo a escola está falhando no seu caráter transformador da realidade social violenta. Ela deixa de ser o diferencial numa comunidade dominada pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas e se transforma num espaço de reprodução (BOURDIEU, 1982) da realidade social excludente. 157 1.2.6. Estigma “Crianças de aparência absolutamente normal, aquela criatura não aprende” (Coordenadora pedagógica). A compreensão acerca do que venha a ser o estigma perpassa os padrões de normalidade presentes na sociedade. A definição de normalidade, por um lado, expressa a conformidade com um tipo médio e, por outro, a ausência de patologia. Entretanto, na atualidade, existe a formação de grupos e ou a formação individual que implica um padrão de normalização que se aproxima ou se afasta de determinado grupo ou pessoa. Tudo o que apresenta características que não se assemelham às nossas nos chamam a atenção. Quando nos deparamos com imagens que nos chocam por suas características grotescas estas nos causam estranhamento e tomamos tal imagem como referencial de diferença. Depois do estranhamento inicial procuramos manter esta imagem longe de nossos olhos, pois o que não é belo e semelhante não é aceito em nosso meio social. Tentamos sempre tornar invisíveis cenas que nos desagradam. Isso pode ser visualizado principalmente nos grandes centros urbanos, quando ao andarmos pelas ruas passamos por pessoas doentes, com feridas expostas, exibindo a falta de membros dos corpos ou até mesmo pessoas com aparência descuidada, usando roupas sujas e rasgadas. Nos deparamos todos os dias com essas imagens que, embora cotidianas e evidentes, são por vezes ignoradas porque ferem o que é considerado belo. 158 Goffman (1978) explica que o termo estigma foi criado pelos gregos para se referir a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava. Assim os ladrões, escravos e traidores eram identificados em locais públicos pelas marcas feitas com fogo e assim mantidos à distância das pessoas moralmente aceitas pela sociedade. A partir desta perspectiva, podemos inferir que as marcas feitas pela própria sociedade naqueles que fugiam a regra de conduta moral estabelecida tornavam-se vítimas do estigma. A partir de então, o diferente passa a ser ignorado, isto é, todas as pessoas que possuem uma marca. Na contemporaneidade, esta marca possui outras características: são marcas que advém do campo simbólico e consideram não somente a diferença no corpo físico, mas as diferenças sociais de um modo geral. Nesse sentido, o estigma se configura como um mecanismo de exclusão. Em Foucault (2001) encontramos modelos de exclusão e controle relacionados com as doenças tais como lepra e peste que, no final do século XVII e início do século XVIII, assolaram a Europa. Os indivíduos que possuíam alguma dessas doenças eram considerados perigosos para a sociedade e mantidos sob rigoroso policiamento para que não contaminassem as pessoas saudáveis. Essa exclusão, como afirma Foucault, implicava a desqualificação do indivíduo. A expulsão era então substituída pelo rigoroso policiamento e justificada como medida preventiva dentro da sociedade: 159 “Não se trata de uma exclusão, trata-se de uma quarentena. Não se trata de expulsar, trata-se ao contrário de estabelecer, de fixar, de atribuir um lugar, de definir presenças controladas” (FOUCAULT, 2001, p. 57). Foucault se refere ao controle imposto àquele que, ao ser considerado portador de alguma mazela, passa a ser monitorado para que não contamine outras pessoas com a doença que possui. A exclusão ocorre pela delimitação do espaço a ser ocupado pelos corpos estigmatizados tornando, assim, invisível à sociedade o sujeito do estigma. Na sociedade atual, a aparência denota essa característica própria do termo estigma. Retomamos a definição de Goffman (1978) para salientarmos que a aparência é a primeira idéia que nos vem à mente quando pensamos em estigma, mas está também relacionado com o comportamento, com a fala ou com o modo de se vestir. Tais aspectos nos causam estranheza e tendemos a excluir as pessoas que mantêm um modus vivendi avesso ao nosso. “As pessoas nos desgostam não só quando têm uma aparência grotesca, ou mau hálito, mas quando o seu ou seus comportamentos parecem vulgares, baratos e enjoativos quando personificam o contrário do que é puro, delicado e fino” (MILLER In HARGREAVES, 2004, p.184). Dessa maneira criamos padrões de comportamento que ao estarmos na presença de alguém tentamos manter e esperamos que os outros também sigam tais padrões. “O desgosto e seu contrário, a distinção, são emoções básicas da exclusão social: os meios pelos quais retrocedemos diante dos incapacitados, marginalizamos os que se encontram numa situação social ou econômica inferior, e expressamos repulsa diante de diferenças raciais étnicas” (GOFFMAN, In HARGREAVES, 2004, p.185 ). 160 Na escola como na sociedade podemos visualizar essa repulsa ao diferente. Os alunos, quando não se encaixam nos padrões de normalidade impostos pelos professores, recebem uma marca atribuída por eles, passando a ser reconhecido no meio escolar por tais atribuições. Há na fala dos professores um controle, que torna essa marca visível a todos que convivem com esses alunos. A estigmatização dos alunos é freqüente nos conselhos de classe que participamos. Ao receber uma marca atribuída pelo professor, o aluno passa a ser reconhecido no meio escolar por tais atribuições. Há, na fala dos professores, um controle dos que não se encaixam nos padrões de normalidade por eles impostos. Tal marca torna-se então visível a todos que convivem no ambiente escolar. Durante as discussões sobre o comportamento de um determinado aluno a professora o justifica com a fala: “A Porto da Pedra explica tudo”. Logo depois ela expõe qual seria a explicação da “Porto da Pedra”. Porto da Pedra é uma escola de samba do estado do Rio de Janeiro e que em seu enredo intitulado “No Reino da Folia cada louco com a sua mania” trazia uma ala – Ala camisa de força – com pessoas vestidas em camisas de força e cabelos desgrenhados. A referida professora comenta que esse aluno e sua família guardavam uma estreita semelhança com os componentes da 161 Ala camisa de força, por terem os cabelos desgrenhados e se vestiram com roupas velhas e rasgadas, apenas lhes faltando a camisa de força19. Célia: E a Cíntia... Diretora: Irmã da Carolina? Vice-diretora: não é a Liliane... 402. Célia: Acho que é da sala delas (apontando para as professoras da 401 e da 402) Diretora: não é irmã da Janaina não? Karla: Quem que é irmã? Célia: é uma alta magrinha, moreninha... Vice-diretora: A moreninha da 402. Karla: A Janaina é minha.. será que é a minha Janaina? Continuam tentando descobrir o parentesco da aluna. Enquanto a Célia fica folheando novamente o diário de classe Vice-diretora: entrou a pouco tempo? Diretora: Ah! Do Edvan do Porto da Pedra... Vice-diretora: Isso parente do Edvan... Eles saíram daqui todos pequenos, ficaram um tempo fora e agora voltou tudo de novo. As professoras comentam entre si rindo dos alunos. Diretora: Juliana, Cíntia e Jean... Terceira série Coordenadora pedagógica: Porto da Pedra explica tudo... Célia: a gente olha pra ela... ela é maluca! Coordenadora: não é? Célia: Ela caiu e bateu com a cabeça, a garota não vai, ela não engata a primeira. Coordenadora: Olha só ser parente do Porto da Pedra já explica metade de todos os problemas dessa criança (rindo) Célia tenta dar continuidade a avaliação da turma enquanto a Diretora, a vice-diretora, coordenadora e outras professoras falam sobre a suposta loucura da mãe da aluna e ainda sobre o seu modo de se vestir e pentear. Coordenadora: mas peraí o Porto da Pedra explica. Não teve um enredo logo no início sobre hospício? Que o povo vinha com o cabelo pintado de louro, aí Prof3 apelidou: é a componente da Porto da Pedra! Vice-diretora: então até hoje (ri) Rosália: aquela escola de samba que veio cheia de doido Coordenadora: então foi...Ta vendo como eu lembro da história! Aí né a escola veio cheio de pessoal do Pinel, e tal...aí a Rosália apelidou: aí ta vendo um componente da porto da pedra, escola de samba. 19 Espécie de camisa de tecido forte, que envolve os braços e impede movimentos agressivos de indivíduos agitados. 162 Para essas professoras, as condições familiares da aluna são preponderantes na determinação de seu sucesso ou fracasso na escola. Ao ser identificada pela suposta loucura da família, a aluna é considerada incapaz de aprender, de desenvolver suas habilidades no espaço escolar. Durante a discussão, as professoras tentam identificar sem sucesso a referida a aluna. Inicialmente pelo parentesco com outros alunos da escola, depois pela descrição física e de cor, ainda pela data de matrícula e finalmente pela marca atribuída ao irmão. Foi somente a partir de uma característica de loucura atribuída à família que foi possível avaliar a aluna. Nesse evento, quem é o aluno? Um integrante da ala Camisa de Força da escola de samba Porto da Pedra. A capacidade ou incapacidade dos alunos e alunas é enfatizada pelas professoras a todo o momento. A expectativa delas é a de que a cada atividade proposta, em sala de aula, todos sejam capazes de atendê-la prontamente. Ocorre que, incluir não significa que todos sejam iguais, mas que cada aluno, de forma diferenciada, tenha condições de aprender. Diante desse impasse o aluno é considerado pela professora como preguiçoso. Nádia: Aí tem uma observação que eu coloquei lá porque a menina começa a faltar e a Aluna1 é aquela você sabe né, é aquela que quer que o mundo acabe em barranco pra ela morrer encostada... Vanusa: preguiçosa né? Nádia: se eu não ficar em cima dela o tempo todo sabe, faz isso e cobro não sei o que... ela não faz nada, nada, nada, nada, então eu coloquei lá que teve um dia que ela ficou enrolou, enrolou e ela é espertinha pra caramba esconde o caderno, guarda, ela é toda articulada nesse ponto ela é. Aí eu me estressei fui lá peguei o caderno e (faz o gesto de escrever com a mão) e falei que a mãe dela tinha que assinar, falei com a mãe dela ontem. 163 A professora aponta a preguiça da aluna para as atividades propostas, mas a esperteza da mesma para tentar escapar da sala de aula. O controle à execução das tarefas e participação na sala de aula surge em forma de punição. A assinatura dos pais atesta a incapacidade deles em contribuir para o futuro escolar dos filhos e sem saber dão consentimento para a eminente eliminação por faltas. Coordenadora: olha só, gente brincadeira, a mãe da Deyse já foi avisada que a filha dela vai poder ser eliminada por falta? O espaço dos conselhos de classe torna-se um local de acusações onde o aluno é o réu sem direito a defesa. Em um outro evento destacado nos conselhos de classe está relacionado com a dificuldade da compreensão da proposta pedagógica de ciclos de aprendizagem. A dúvida está ligada à possibilidade de reprovar ou não os alunos com baixos rendimentos. A falta de entendimento da proposta pedagógica gera inúmeras contradições que prejudicam a avaliação da aprendizagem do aluno ocasionando desentendimentos até mesmo entre os professores e a direção da escola. A professora relata a experiência vivenciada por ela numa outra escola, onde todos os alunos da turma eram analfabetos. O desejo da professora era de reprovar todos os alunos, mas acrescenta que a diretora não permitiu. Para substituir o termo reprovação ela utiliza a expressão “segurar no ciclo”, 164 deixando implícito que os alunos passam de um ciclo ao outro sem a devida avaliação de sua capacidade de leitura e escrita. Hilda: eu tive uma turma... pergunte a Neide (quase gritando) que trabalhou comigo nessa escola eu tinha uma turma de 4ª série totalmente analfabeta, eu queria reprovar a turma a diretora não deixou, foi ou não foi Neide, analfabetos de carteirinha, segurasse no ciclo mesmo, eu queria reprovar, ela não deixou. Ao definir os alunos como analfabetos de carteirinha ela está relacionando a escolarização do aluno àqueles que na impossibilidade de assinar o nome utilizam a marca digital nos documentos. Os documentos de identificação dos analfabetos possuem apenas a marca digital do dedo polegar. Esses seriam analfabetos comprovados pela documentação que o identifica. Não se pode afirmar, a priori, o analfabetismo de uma turma inteira sem que haja uma avaliação prévia, donde se conclui que a fala da professora não está relacionada a nenhum dado empírico que comprove o índice apontado por ela. A referida professora apenas repete o bordão: “analfabetos de carteirinha” dando ênfase à incapacidade dos alunos. A percepção de um professor a respeito de determinado aluno é acatada pelos demais em um processo que leva à estigmatização e à eminente exclusão escolar do mesmo. Desse modo, acreditamos que a escola percorreu um longo caminho no sentido de promover a inclusão da adversidade presente em nossa sociedade, contudo, há ainda muitas considerações a serem tecidas rumo à um sistema educacional que proporcione a valorização da diferença e o respeito ao diferente. 165 1.2.7. Conceito x Nota “Segura no I” (Diretora). A categoria nota surge no trabalho como mecanismo de controle através da atribuição de valores ao desempenho acadêmico dos alunos. Na escola estudada foi implantado o sistema de conceitos, atribuição de notas através de letras, sendo elas: O de ótimo, MB de muito bom, B de bom, R de regular e I de insuficiente. A atribuição de tais conceitos está expressa no quadro abaixo fornecido pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Quadro III – Significado das letras / conceito O Ótimo - O aluno atingiu os objetivos propostos para o período, revelando envolvimento nas tarefas, interesse, assiduidade, organização e bom relacionamento com professores e colegas. Muito Bom - O aluno atingiu os objetivos propostos necessitando ainda ser trabalhado MB pedagogicamente em relação a um ou mais aspectos: envolvimento nas tarefas, interesse, assiduidade, organização e bom relacionamento com os professores e colegas. B Bom - O aluno atingiu parcialmente os objetivos propostos para o período, revelando envolvimento nas tarefas, interesse, assiduidade, organização e bom relacionamento com professores e colegas. R Regular - O aluno atingiu parcialmente os objetivos propostos para o período necessitando ainda ser trabalhado pedagogicamente em relação a um ou mais aspectos: envolvimento nas tarefas, interesse, assiduidade, organização e bom relacionamento com os professores e colegas. I Insuficiente - O aluno ainda não atingiu os objetivos propostos para o período. Fonte: Secretária Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Na escola estudada as professoras utilizam tais conceitos, expressos em letras, para avaliar os alunos e alunas. A nota ao ser atribuída à tarefa realizada pelo aluno em sala de aula ganha um caráter econômico e não mais acadêmico. Quanto maior a nota, maior será o valor do aluno no mercado. Coordenadora: O quê que adianta o cara acertar de ponta a ponta se ele é uma pessoa que não se relaciona bem com as pessoas? Esse 166 lado conta até porque não se diz que o preparo do aluno é para o mercado de trabalho. (Conselho de Classe) A coordenadora utiliza uma fala de que a escola prepara o aluno para o mercado de trabalho para afirmar a necessidade de ser a escola uma facilitadora nos relacionamentos que o aluno estabelece. Aqui, não importa a aprendizagem do aluno e o conteúdo pedagógico, interessa a qualidade dos relacionamentos interpessoais que ele irá estabelecer na escola. O evento de fala expressa um dos artigos do ECA: “A criança e o adolescente têm direito à educação, visando o pleno desenvolvimento de sua pessoa para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho” (ECA, art. 53). Contudo, uma instância não invalida a outra devendo a escola conjugar as diferentes áreas do conhecimento para a formação de seus alunos. Nos dados de campo da pesquisa etnográfica sobre o fracasso escolar realizada por MATTOS (1992-1996) encontramos que tal substituição de números por conceitos produz um efeito de falsa justiça. Sob a ótica do professor ou professora, atribuir um conceito E significa que o aluno não participou em nenhuma atividade de ensino, enquanto atribuir a nota 0 significa que o aluno não conseguiu completar nenhuma das tarefas que valiam para a nota. No limiar do fracasso, o aluno pode merecer um D ou um C, mas não merece um E, enquanto uma nota 5, 3 ou 0 são medidas exatas que sugerem reprovação, são notas no vermelho. Nossa interpretação da percepção dos professores e professoras sobre a atribuição de notas e 167 conceito sugere que eles ainda confundem “medir” com “avaliar” o que faz com que fiquem com impressão de terem sido imparciais. Este fato foi evidenciado não só em nossas pesquisas, mas em outros trabalhos sobre o mesmo tema. Em recente artigo sobre a avaliação significativa Bordoni confirma essa interpretação, “Avaliar não significa necessariamente medir e nem o referencial quantitativo significa necessariamente objetividade. A prática de uma educação positivista deixou-nos esse ranço. Aliás, quando tentamos traduzir em números ou ”conceitos" frios o que é incomensurável, as aberrações são evidentes. Que tipo de avaliação tem um aluno que "tirou" 5 ou C? Significa "suficiente", mas suficiente para que? O que ele não sabe, não vai fazer falta? Por que não sabe? A avaliação "medida" mais esconde do que mostra. E não adianta transformar nota em conceito, pois o que tem que mudar é o objeto da avaliação.” (BORDONI, 2004) Podemos também derivar dessa interpretação de que a avaliação continua sendo um fenômeno pouco entendido pelo professor/a como instrumento de ensino e aprendizagem, como nos afirma Hoffmann em seus estudos, os professores/as percebem a avaliação como um fenômeno indefinido, usam o termo atribuindo-lhes diferentes avaliativa tradicional: prova, significados, nota, conceito, relacionados à prática boletim, recuperação, reprovação. (HOFFMANN, 1993) O fato da avaliação se traduzir num resultado concreto para o aluno e os pais, faz com que, muitas vezes, seja utilizada pelo professor ou professora com o objetivo não só de medir seu rendimento, mas também de promover mudanças no aluno – corrigir desvios de comportamento, por exemplo. O aluno que resiste a esse controle é aconselhado a agir de acordo com as normas ou será punido, tanto com a 168 nota, quanto com a reprovação. O aluno resiste a estas normas e à própria prática avaliativa. Essa resistência do aluno se manifesta de diversas formas em situações de sala de aula e é comumente explicitada através da indisciplina. A supervalorização da nota está intimamente ligada à relação assimétrica de poder entre o professor ou professora e os alunos e alunas (ERICKSON, 1986). O professor ou professora tem dificuldade para lidar com pequenos grupos indisciplinados em sala de aula. Não sabem lidar com as lideranças negativas. O conteúdo e a nota são usados como instrumento de normatização, isto é, para ameaçar o aluno indisciplinado. O conceito, a avaliação e a nota se confundem com a percepção negativa sobre o comportamento do aluno. Além do fato de as professoras e a coordenadora utilizarem mecanismos de avaliação que não estão de acordo com os critérios para uma avaliação global do aluno. A professora ao atribuir um conceito Bom (B) ao aluno não poderá ao longo do ano mudá-lo para Regular (R). Ela deverá manter o conceito R durante o ano e ao final, se o aluno apresentar condições impostas por ela, poderá receber um B. O número de faltas está diretamente relacionado à nota que o aluno irá receber na avaliação da professora. Coordenadora: Por que ele está faltando tanto? Dalva: Porque ele é turista. Ele vem 2 vezes na semana e falta 3. Ele é turista. Coordenadora: Então ele tem mais do que 4 faltas... mas tem que colocar gente. Dalva: Então vou largar “I” nele, na Lourdes. Eles eram “R”. 169 Coordenadora: Mas tem que largar, ele vai continuar não vindo, ele vem um dia, falta dois. Você vai segurar o R o ano todo. Ele era pra ser I, mas ele foi R no primeiro. O que a gente conversou? Pra dar o R pra ele eu tenho que fazer as faltas dele desaparecerem. Tem 7 faltas ele não tem 30 pra ser eliminado. Pra dar R pra esse garoto tem que aparecer, você entende? A Lourdes.. Coordenadora: se você não quiser fazer isso com o outro não faça, faz com o Daniel porque a mãe sempre tem uma desculpa descabida pra não comparecer na escola e o irmão dele estudou anos aqui na escola e a mãe... (gesto de suar para a mãe aparecer) Vice-diretora: faz sim A expressão “largar I” denota um caráter distanciado dos pressupostos educacionais na avaliação dos professores. O outro evento de fala explícita essa atribuição de conceitos calcada em prejudicar o aluno no lugar de justificar as instâncias educacionais os conceitos atribuídos aos alunos. A professora no evento acima é orientada a manter o aluno durante todo o ano com um conceito para baixo. Se ele obtiver um conceito alto e depois for rebaixado para um conceito inferior, a escola deverá justificar o rebaixamento junto à Coordenadoria Regional de Educação (CRE). O conceito atribuído ao aluno não possui representatividade quanto ao desempenho escolar dele. A nota ou conceito é apenas um instrumento utilizado pela escola para aprovar, rebaixar ou reprovar o aluno. 170 1.2.8. Para onde vão as faltas? Conselho Tutelar “Começar a anotar da agora e manda pro conselho tutelar” (Coordenadora pedagógica). A criação dos Conselhos Tutelares foi sancionada no Projeto de Lei do Senado Federal, em 31 de maio de 1990, que explicitava a finalidade dos mesmos: “O Conselho Tutelar é órgão administrativo, permanente e autônomo, não jurisdicional, tendo por finalidade o atendimento dos direitos da criança e do adolescente”. Assim, a função dos CTs foi estabelecida para o atendimento dos direitos da criança e adolescente baseado nos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente. O conselho tutelar nesse trabalho surgiu nas falas das professoras como uma instância capaz de intimidar e coibir as faltas dos alunos repreendendo os pais ou responsáveis. No cenário escolar marcado por faltas, onde esgotadas as possibilidades de controle da escola, o Conselho Tutelar surge como uma alternativa para a solução de tal problemática. Consta no Estatuto da Criança e do Adolescente Art. 56: Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: I – maus-tratos envolvendo seus alunos; II – reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares; III – elevados níveis de repetência. Torna-se obrigação da escola informar ao Conselho Tutelar quando o número de faltas do aluno ultrapassar 50% do percentual de faltas permitido 171 pela lei, sendo que o planejamento escolar prevê o mínimo de 200 dias letivos, o aluno poderia faltar, no máximo, a 50 dias de aula para cumprir os 75% de freqüência mínima para a aprovação. Sendo assim, caso o aluno ultrapasse 25 dias de falta (50% do total permitido pela lei), a escola deve comunicar o fato ao Conselho Tutelar, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público. A escola, instituição baseada em preceitos de liberdade e igualdade, passa a aplicar penalidades baseadas no poder judiciário. Nos conselhos de classe os professores se queixam excessivamente do número de faltas dos alunos. Alguns afirmam que o grande problema das turmas são as faltas. Porém não há entre eles um consenso, quanto ao real número de faltas que os alunos podem ter, gerando uma série de equívocos e justificativas sem embasamento legislativo. No artigo 12 da Lei de Diretrizes e Bases, inciso VII consta que: Art. 12. Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: (...) VII – informar os pais e responsáveis sobre a freqüência e rendimento dos alunos, bem como sobre a execução de sua proposta pedagógica. A atribuição de faltas e o encaminhamento para o Conselho Tutelar são medidas aplicadas de forma diferenciada dependendo das circunstâncias que envolveram as faltas. Nos conselhos de classe analisados destacamos falas que sugerem uma indefinição quanto ao número real de faltas, se o aluno é ou não para ser 172 reprovado, o que é a medida legal a ser adotada e quanto à omissão por parte do CT. Coordenadora: Anote as faltas justifique as faltas, é o primeiro bimestre ainda, é o primeiro COC, de repente a criança para ser reprovada e aí você aplica a falta com rigor e de repente você está reprovando a criança por falta. O nome dela vai para o Conselho Tutelar e manda o bom senso que a gente evite o máximo mandar para o Conselho Tutelar, porque até ameaça para a gente, eu não tenho medo não dessas coisas. Coordenadora: Se o aluno ta faltando começa a botar falta mesmo e chega lá e reclama no Conselho Tutelar, se ele ta muito fraco começa a notar e daí de agora... Haideé - Não depende das contas? Mais ou menos tem o número de faltas. Vice-diretora - No calendário tem o número de dias letivos. São 54 dias letivos e aí o que acontece, o pessoal não quer muito envolvimento com o Conselho Tutelar, as pessoas não gostam do envolvimento do Conselho Tutelar. Eu tenho criança com carta para a residência e que ainda não veio porque? É que mãe não quer chegar no Conselho Tutelar. Diretora: Então a gente vai fazer o que é legal. E o que é Legal? É mandar o nome dos faltosos para o Conselho Tutelar, nós fizemos isso e o Conselho Tutelar nada fez. Os eventos de fala destacados apresentam uma incoerência quanto ao que seria a medida a ser adotada nos casos onde os alunos excedem o limite de faltas. Num primeiro instante, segundo a fala da coordenadora, as professoras devem anotar e enviar os nomes para o Conselho Tutelar, num segundo elas devem recorrer ao “bom senso” e não enviarem os nomes para o CT. Por outro lado se os alunos estão “fracos” e faltosos os professores devem atribuir as faltas e encaminhar os nomes para o CT. Foi possível após a análise dos conselhos de classe que o Conselho Tutelar é utilizado como mecanismo de controle das faltas pela coerção. As 173 professoras sabem que os pais não querem os nomes de seus filhos e os seus envolvidos em processos do Conselho Tutelar. Apesar das professoras utilizarem “bom senso” e não enviarem os nomes para o CT, elas continuam afirmando aos pais que se os filhos continuarem faltosos, o encaminhamento a ser dado será mesmo o CT. Assim, os Conselhos Tutelares não estariam exercendo as funções a que se destinam aos casos de excesso de faltas na escola. Esta seria uma instância de controle para as faltas escolares dos alunos, sem um trabalho efetivo para tornar o espaço escolar um ambiente no qual os conflitos são valorizados no sentido de estabelecer um canal de discussão onde as regras sejam claras tanto para professores quanto para os alunos. 174 2. Resultados gerais A análise realizada neste trabalho permitiu visualizar as características da prática pedagógica em sala de aula ao direcionarmos nosso olhar para a relação professor e aluno bem como o modo como esta se estabelece baseada no controle. Questionamo-nos sobre para que o controle era exercido na escola, procuramos compreender a sua natureza e o seu funcionamento podendo desencadear o sucesso ou fracasso escolar de alunos e alunas pela vigilância do espaço escolar. Ao final entendemos que o controle ocorre para que alunos e alunas sejam mantidos de acordo com as normas escolares instituídas para educar pelo controle. Os estudos de Foucault (1987), Goffman (2005) e Giddens (2005) contribuíram para o entendimento sobre a relação da estrutura física das instituições influenciando as interações que se estabelecem em seu interior. A estrutura física do CIEP permite a circulação constante de vozes das professoras pela escola. Estas podem ser ouvidas em dois momentos das aulas: ao exporem os conteúdos pedagógicos e ao advertirem seus alunos e alunas quanto à conduta adotada pelos mesmos. Desse modo a direção e coordenação da escola podem controlar a dinâmica da sala de aula e interferirem quando acreditam ser necessário. 175 Se a direção controla a professora, e a mesma controla os alunos e alunas na sala de aula, podemos inferir que a dinâmica pedagógica está subjugada ao controle inserido nas estruturas de poder do espaço escolar. No interior da sala de aula foi possível perceber que o controle é uma tentativa da professora de conter os corpos dos alunos no espaço para a realização da tarefa, mas que este é burlado pela turma para a execução de atividades mais agradáveis do ponto de vista deles, tais como cantar e dançar pela sala de aula. As nuances dessas interações de controle visualizadas na interação professor e aluno foram retratadas nas categorias temáticas encontradas nas análises do espaço da sala de aula e dos conselhos de classe. A apresentação das categorias temáticas no trabalho foi desenvolvida em função do padrão de recorrência encontrado durante o processo de análise de dados. Contudo, o que ocorre no cotidiano escolar é a inter-relação entre as categorias e a totalidade da sala de aula em função do controle de alunos e alunas. Na sala de aula foi possível perceber como o controle era exercido pela professora a partir do corpo dos alunos e alunas, da tarefa a ser realizada por eles, das agressões verbais e físicas, do espaço da sala de aula e da escola, do barulho das vozes, do tempo chronos em detrimento do tempo kairós. 176 Ao passo que nos conselhos de classe foram encontradas como justificativas do desempenho acadêmico dos alunos e alunas os problemas de aprendizagem, os problemas dos familiares, as faltas escolares, a medicalização, a violência presente na escola, a estigmatização das avaliações dos professores de seus alunos, a atribuição de conceitos (nota) e a utilização do Conselho Tutelar enquanto instância de coerção para as faltas que excedem os 25% previsto pela LDB. A disciplinalização dos corpos de alunos e alunas é a forma como o controle é instituído pelo professor na sala de aula e na escola. Na interação professor e aluno tornou-se evidente a utilização de métodos coercitivos para que estes se adaptassem ao sistema formal de ensino. A didática utilizada pela professora explora a dimensão do controle pela ironia na tentativa de docilizar os corpos rebeldes de alunos e alunas na sala de aula. O olhar atento da professora ao movimento dos corpos dos alunos e alunas passa por uma internalização de regras e normas para que o papel docente se faça cumprir na escola perante a vigilância da direção e na sala de aula nas interações entre a professora e os alunos. Os procedimentos de controle objetivam a execução da tarefa, enquanto ofício do aluno, uma vez que esta é parte do processo de ensino aprendizagem. Em contrapartida está o “ofício” da professora de cumprir as exigências da política pedagógica e o currículo mínimo. Dessa forma o controle da tarefa pela professora incide sobre a execução do trabalho pela 177 turma e como cumprimento das suas obrigações enquanto docente, se manifestando em diferentes momentos na sala de aula. Ao tentar manter o controle da turma a professora se orienta pela coação da turma inserindo marcas de submissão ao processo de escolarização. Estas marcas seriam os discursos da professora proclamados na tentativa de instituir ou corrigir o comportamento dos alunos e alunas, atrelada à ameaça de reprovação pela inadequação deles. A agressão física está ligada à postura corporal adotada pela professora para enfatizar a sua fala. O que se caracterizaria como uma agressão física gratuita, uma vez que, a professora já está ameaçando pelo modo como grita com os alunos no espaço da sala de aula. A necessidade de controle da ocupação do espaço escolar ocorreu na sala de aula e na escola em detrimento da relação pedagógica. A sala de aula é um espaço por excelência, destinado ao processo de ensino-aprendizagem, mas foi identificado neste estudo como um lócus de gerenciamento da ocupação e movimentação dos alunos e alunas. Ao entender que alunos e alunas deveriam permanecer em suas carteiras e sentados a professora solicita a todo o momento que eles assim estejam até o término da aula. Acontece que os alunos na maioria dos eventos observados não atendem à exigência de permanecerem sentados passando a ocupar os corredores da escola em função de serem expulsos da sala. 178 Frente a isso o controle pela professora da ocupação e movimentação na escola e na sala de aula pelos alunos e alunas tornou-se uma estratégia de controle do espaço pela visibilidade dos corpos. O olhar atento da professora para o comportamento dos alunos detonava gritos de ordem sendo percebidos em nossas análises pela necessidade de controle ou descontrole frente à turma. A temática do barulho está relacionada, além das condições de controle do comportamento dos alunos na sala de aula, com a estrutura física da escola. As paredes e a localização da escola interferem no volume da voz dos funcionários e alunos da escola. Como já mencionamos, o aumento do volume da voz de um sujeito cria um círculo de aumento de vozes na sala de aula e na escola. Um fato paralelo, a se considerar no controle do barulho é o de que, muitas das vezes que estivemos presentes nas aulas, a professora se aproximava do aluno para gritar com ele. Pela proximidade entre a professora e o aluno o controle pelo barulho dos gritos poderia ter sido amainado. A questão do barulho não somente na sala de aula, mas na escola, estaria relacionada além do controle para obter silêncio para a tarefa, mas também com a estrutura física da mesma. A escola está situada nas proximidades de uma das principais vias de acesso ao Rio de Janeiro, tendo um fluxo intenso e constante onde tal questão é motivo de reclamações por parte dos professores nos conselhos de classe pelos efeitos maléficos à saúde que a 179 elevação de voz e o barulho constante provoca. Contudo, não há uma proposta efetiva para melhorar as condições sonoras da escola. A diretora solicita apenas que as professoras evitem gritar com as crianças, pedido este, que não é atendido pelas mesmas. A dimensão do controle do tempo na sala de aula denota uma outra instância dessa necessidade de zoneamento do ofício do aluno. O tempo surge também como mais uma forma de exercer controle na sala de aula, uma vez que, a professora delimita o tempo para todas as atividades inclusive as necessidades fisiológicas, onde a ida ao banheiro é controlada no relógio ou é entendida como não sendo necessária naquele momento. O tempo está também relacionado com o horário para os alunos irem para o almoço, pois se não estiverem “quietinhos” (barulho), em seus lugares e com a cabeça abaixada (corpos) eles não recebem permissão para almoçar. O tempo descrito nos conselhos de classe está relacionado à prática diária de sala de aula. As discussões que aconteceram nas reuniões foram agregadas à prática pedagógica da sala de aula observada. A categoria foi ressaltada na escola como um todo, uma vez que, o controle do tempo foi explicitado nos conselhos de classe como exigência para as professoras. A sala de aula observada apresentou o cumprimento de tais exigências na dinâmica diária da professora com seus alunos e alunas. Pela iminente impossibilidade de definir como os problemas de aprendizagem ocorrem, como se fazer um diagnóstico e qual o especialista 180 que cuidará do caso. Seguido a isto, os problemas familiares foram assim nomeados pela maneira como os professores, coordenadora pedagógica, diretora e vice-diretora caracterizam a família dos alunos e alunas da escola. A associação dos problemas familiares são naturalmente atribuídos aos alunos que freqüentam a escola. Torna-se, para elas, ao atribuir a causa da problemática dos alunos aos parentes destes, uma forma de compreender a os rendimentos escolares pela dimensão familiar e a social. As categorias temáticas problemas de aprendizagem, problemas familiares e medicalização encontram-se relacionadas da seguinte forma: a culpabilização de instâncias externas e circundantes à sala de aula dos fatores que atuam na mesma. A problemática do controle na escola estudada começa no entendimento da proposta pedagógica do ensino em ciclos de aprendizagem e termina com a evasão de alunos ao longo do ano. A falta de entendimento quanto à aplicabilidade da proposta, especialmente relacionada à retenção ou reprovação do aluno, acaba por contribuir com a exclusão no espaço escolar. É comum, na fala dos professores, atribuir ao professor do ciclo anterior o não cumprimento do currículo mínimo. Nos eventos, cenas, fatos, atos, ações e falas que estudamos os professores afirmam que os alunos passam de um ciclo ao outro sem dominar a leitura e a escrita. A testagem diagnóstica, realizada pela coordenadora pedagógica, aponta tal descumprimento do mínimo que o aluno deve possuir, uma vez que ele não 181 consegue estabelecer a intertextualidade do texto lido e dominar cálculos matemáticos considerados simples pela coordenadora. Em outro momento é atribuído ao aluno diagnósticos clínicos realizados sem a devida compreensão do problema apresentado ou apontando a família e o meio social miserável como a causa do sintoma. Em nosso trabalho, concordamos com a afirmação de Silva (1999) onde “o professor é percebido, sobretudo como profissional que reflete, questiona, problematiza, interroga permanentemente a sua prática político-pedagógica cotidiana” (p.48). Na avaliação das professoras os baixos rendimentos de seus alunos e alunas são associados às dificuldades de aprendizagem e para justificá-los recorrem a diagnósticos clínicos. A comparação dos níveis de aprendizagem entre alunos é constantemente utilizada como medida para caracterizar um aluno apto à aprendizagem ou não. Ao utilizar a comparação como base os professores estão invalidando a heterogeneidade inerente a todo e qualquer sujeito social. As categorias encontradas denotam a importância de se controlar o aluno em suas atividades, sejam pedagógicas, sociais ou individuais na escola. Acontece que, ao controlar a permissão e o horário para ir ao banheiro o professor retira do aluno a autonomia de suas ações. Constituir-se como ser autônomo e social faz parte do processo de desenvolvimento de todo indivíduo. 182 A partir dessa revisão foi possível visualizar o entrelaçamento das categorias em sala de aula exercendo umas sobre as outras influência mútua no controle dos alunos na sala de aula. Dessa forma ora, ele é o objeto controlador ora, é exercido sobre algo para alguma finalidade. Como exemplo a tarefa que por vezes é entendida como sendo um mecanismo de controle dos alunos em outras como objetivo de controle. Há ainda que se considerar o entendimento da hierarquia de poder existente na escola que determina a relação entre diretores, coordenadores, professores e aluno no entrelaçamento das categorias da sala de aula e dos conselhos de classe. Foi possível perceber nesse estudo que o intuito dos professores de controlar os alunos através do corpo, das agressões, do espaço, do barulho e do tempo é feito para que a tarefa seja executada pelos mesmos. Dessa forma, as categorias encontradas em cenas rotineiras na sala de aula estudada estão relacionadas ao cumprimento do ofício do aluno (PERRENOUD, 1994), o que implica, necessariamente, no seu engajamento no trabalho escolar. Acreditamos que o aluno vai para a escola para realizar a sua tarefa. Sendo assim, o objetivo principal da permanência na sala de aula é o trabalho escolar, que, portanto, é controlado pela professora em suas diferentes instâncias pelo; corpo, agressão, espaço, barulho e tempo. Por isso a ocorrência elevada de situações relacionadas ao corpo. Para Foucault 183 (1987) os corpos dóceis representam essa adequação ao trabalho, no nosso caso, ao trabalho escolar. Quanto mais controle for exercido sobre os corpos mais os alunos estarão executando suas tarefas. As agressões verbais e físicas representam neste estudo uma forma de intimidação dos corpos. Presenciamos diversas cenas onde a professora, ora ameaça os alunos com reprovação, ora anda por entre as carteiras batendo com a régua na mão e nas mesas. Tal comportamento se aproxima da definição de Bourdieu (2005) de violência simbólica, que seria essa adaptação invisível que fazemos à determinados contextos sociais. Portanto, entendemos que a inter-relação entre categorias temáticas e o controle na sala de aula acontece para que tanto o trabalho docente quanto o discente cumpra as exigências impostas a eles. 184 3. Considerações finais “Não há nenhum conhecimento absoluto, e aqueles que o reivindicam, sendo cientistas ou dogmatistas, abrem a porta à tragédia” (BRONOWSKI, J. 1974). A clientela atendida pela escola aumentou em número e em diversidade. Se antes somente os filhos das classes abastadas ocupavam os bancos escolares, com a revolução Industrial, os filhos das classes baixas passaram a integrar esses bancos. Senna explícita em seu trabalho que ainda é muito forte em nosso imaginário o princípio sintetizado no dito popular em que se declara ser preciso ir à escola para ser gente na vida, aludindo-se, assim, aos não escolarizados como não-gentes, como sujeitos desprovidos de Razão, como os outros. (SENNA, 2004). A importância da escola pela sociedade não é vista pela mesma ótica pelos professores que não vêem o seu papel como possibilidade de transformação de uma realidade social e escolar que não oferecem aos sujeitos uma alternativa para o que eles acreditam ser o destino. A profecia auto realizadora permeia o ambiente escolar e os índices brasileiros da educação comprovam que apesar dos esforços de reverter a exclusão há ainda muito que se fazer para mais do que manter crianças nas escolas. 185 Estar presente na sala de aula sem que seja criado um espaço de aprendizagem implica somente numa presença física onde o aluno não vê sentido na tarefa pedagógica. Do mesmo modo, ter acesso ao ensino não significa ter êxito e nem ao final, a certificação de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior não garantem o acesso à posições sociais privilegiadas. Se fracassarem fora da escola isso quer dizer que eles tiveram a sua chance, mas que não foram capazes de superar as dificuldades sociais que lhes são inerentes. Muitos acreditam que o tempo que passaram ou passam na escola é um tempo desperdiçado ou sem sentido. Se na escola e fora dela as condições de desigualdade permanecem, não vislumbram a importância do processo de escolarização como transformador da realidade social. O trabalho realizado ressalta uma preocupação, no âmbito escolar, do controle dos alunos em detrimento da aprendizagem, fato este que sempre acompanhou a escola desde o seu surgimento. Na sala de aula estudada tal característica surgiu como uma espécie de pano de fundo para o entendimento do ofício do aluno. Era mais importante para a professora cumprir as exigências do currículo mínimo estabelecido do que criar um espaço de aprendizagem na sala de aula. A professora no cumprimento de suas atribuições impõe ao aluno o seu tempo de execução das tarefas propostas desconsiderando o processo de ensino – aprendizagem de cada aluno. A professora também possui suas 186 tarefas e quanto mais rápido elas forem transmitidas ela também poderá estar livre para atividades menos exaustivas do que a gestão da sala de aula. Qualquer profissional, em suas atribuições diárias, sente a necessidade de desempenhar suas tarefas com êxito, porém ao estar consciente da importância de seu papel na sociedade ele deverá proporcionar aos seus alunos e alunas uma pedagogia voltada para a cidadania e a inclusão. O papel do professor é determinante no processo de aprendizagem e ele será o mediador entre as experiências individuais, sociais e acadêmicas de seus alunos. O educar pelo controle suplanta a possibilidade de uma escola inclusiva, no sentido, de explicar sem compreender as diferenças e fracassos daqueles que escapam à padronização escolar, mas ainda pela incoerência entre o discurso emancipatório e a prática pedagógica elitista. Freud, ao explicitar as dificuldades de sucesso encontradas em algumas profissões cita a Educação como uma delas. “Quase parece como se a análise fosse a terceira daquelas profissões impossíveis quanto às quais de antemão se pode estar segura de chegar a resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito tempo, são a educação e o governo. Evidentemente, não podemos exigir que o analista em perspectiva seja um ser perfeito antes que assuma a análise, ou, em outras palavras, que somente pessoas de alta e rara perfeição ingressem na profissão. Mas onde e como pode o pobre infeliz adquirir as qualificações ideais de que necessitará sua profissão? A resposta é: na própria análise, com a qual começa preparação para a futura atividade” (FREUD, 1969, Edição Eletrônica) 187 Assim, o professor ao se deparar com a realidade das salas de aulas das escolas públicas, em destaque nesse trabalho as escolas do Rio de Janeiro, deve não somente sentir-se parte da vida escolar de seus alunos e alunas, mas como desempenhando um papel fundamental na leitura de mundo desses que acreditam ser a escola o caminho para a superação das desigualdades sociais em que vivem. 188 4. Referências bibliográficas ANDRÉ, M. E. D. A. de. Tendências atuais da pesquisa na escola. Cad. CEDES, Dez. 1997, vol.18, no. 43, p.46-57. ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia na prática escolar. Campinas: Papirus, 1995. ANGELUCCI, Carla Biancha, KALMUS, Jaqueline, PAPARELLI, Renata et al. O estado da arte da pesquisa sobre o fracasso escolar (1991-2002): um estudo introdutório. Educ. Pesqui., Jan./Apr. 2004, vol.30, no.1, p.51-72. ISSN 1517-9702. ARAÚJO, C. 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