aqui - CARTOLA - Agência de Conteúdo

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PALAVRA DAS EDITORAS
Uma escola com conteúdo
Copa para quem?
E
N
Clarissa Barreto - [email protected]
Diretora da Cartola - Agência de Conteúdo
m 2014, a Cartola - Agência de Conteúdo faz
cinco anos. Nesse período, além de termos escapado da estatística que indica que 60% das
empresas fecham antes de completarem meia década,
nós escrevemos. E muito. E desenhamos, fotografamos,
diagramamos, filmamos. E dividimos tudo isso em revistas, livros, portais de notícias, campanhas publicitárias, fanpages.
Mas a gente percebeu que só estávamos dividindo o bolo
quentinho, lindo e delicioso, pronto para ser consumido.
E se começássemos a dividir as receitas? E se, mais do
que isso, criássemos essas receitas com mais gente, que
sugerissem novos ingredientes, novos formatos?
É dessa vontade de dividir e aprender, de ensinar e absorver conhecimento que surge a Escola com Conteúdo, o braço de aprendizagem da Cartola, para quem quiser vir com a gente.
Nosso primeiro curso, a Seleção Cartola de Repórteres, propôs um jeito diferente de olhar um dos maiores eventos
que já aconteceram em Porto Alegre. Para os próximos,
já estamos bolando novidades cheias de conteúdo.
Esse é só o começo.
Marcela Donini - [email protected]
Editora da Cartola - Agência de Conteúdo
ão, este não é mais um texto anti-Copa, pelo
contrário. Somos a favor da Copa do Mundo
- tanto que queríamos credenciamento para
todo mundo da redação!
O desejo de participar de alguma forma desta cobertura veio ao encontro de outro sonho, bem mais antigo:
lançar um núcleo de cursos e oficinas da Cartola. Nos
demos conta de que, se a gente estava louquinho para
trabalhar na Copa, imagina um estudante ou colega
recém-formado!
E assim nasceu nosso primeiro curso, com a vontade de
proporcionar uma experiência memorável para quem ficou de fora do credenciamento - e pelo viés de que ficou
de fora do estádio. Nossos 12 repórteres acompanharam
o primeiro jogo da Copa do Mundo 2014 em Porto Alegre dos mais variados lugares: de um piquete do Acampamento Farroupilha à Sauna Guaíba, passando ainda
pela Festa da Bergamota, no Vale do Taquari.
Nos encontros pré-jogo, falamos sobre lide, texto e pauta. Durante o jogo, resolvemos pequenos pepinos que
fazem parte de uma cobertura desse tamanho - como
uma pauta que cai e obriga o repórter a correr para outro
lugar da cidade. Por fim, no último encontro presencial,
com a redação da Cartola cheinha e os textos em edição,
enquanto os repórteres trocavam suas experiências, percebemos quanta história tínhamos para contar.
Esperamos que se divirtam com a leitura como nos divertimos naquele inesquecível 15 de junho.
Expediente
Cartola - Agência de Conteúdo
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55 51 3377-5341 3557-5341
Curso Seleção Cartola de Repórteres
Repórteres: Camila Capelão, Diogo Zanella,
Juliana Spitaliere, Kathlyn Moreira, Luiza Menezes,
Marcelo Rota, Mariana Staudt, Marília Pereira,
Renata Fernandes, Rodrigo Sartori, Thais Böhm
e Vinícius Bühler
Editores: Clarissa Barreto, Marcela Donini
e Sebastião Ribeiro
Designer: Marcelo Brocker
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Sumário
O jogo a 148 metros de altitude....................................................................................................................4
O jogo a 160 quilômetros da capital...........................................................................................................7
O jogo dentro do Acampamento Farroupilha........................................................................................10
O jogo em uma quadra de samba.............................................................................................................13
O jogo pelos olhos dos vovôs......................................................................................................................16
O jogo dentro da Fan Fest............................................................................................................................19
O jogo em Porto Alegre - em números...................................................................................................22
O jogo no meio de um (míni) protesto...................................................................................................25
O jogo ao longo dos 3,5km do Caminho do Gol................................................................................28
O jogo pelas câmeras de segurança.........................................................................................................31
O jogo dentro dos shoppings.....................................................................................................................34
O jogo dentro de uma “casa de espetáculos”.....................................................................................37
O jogo a 148 metros de altitude
No Morro Santa Tereza, a vista para o estádio divide
a atenção com o pôr do sol no Guaíba
Diogo Zanella - diogoz [email protected]
I
nício da tarde do dia 15 de junho de 2014. No
Morro Santa Tereza, na zona sul de Porto Alegre, uma movimentação atípica. Do alto dos
seus 148 metros de altitude, é possível enxergar o
estádio Beira-Rio, onde, em poucos minutos, começaria a primeira partida do mundial da FIFA,
França X Honduras.
licial da Brigada Militar há 28 anos. “Estamos fazendo ronda para o jogo. A comunidade é grande,
aqui é uma área de risco”, diz sobre um dos bairros
mais violentos da capital gaúcha. No local, também
há uma unidade móvel da 8ª companhia do Batalhão Copa, do Exército, com 30 homens de Bento
Gonçalves.
Lá em cima, o capitão do Tetra e treinador do insucesso brasileiro na Copa de 2010, Dunga, concede
entrevista para a rede de televisão mexicana Azteca,
enquanto fãs aguardam em fila indiana para conseguir uma foto com o ídolo. No parquinho, crianças
brincam nos balanços e gangorras. Adultos tomam
chimarrão perto do mirante, de onde se vê não só o
estádio, mas parte do Centro e o Guaíba.
São 16h e começa o jogo lá embaixo. Ao lado do mirante, o pipoqueiro Maicon Pinto Nunes, 29 anos,
bota fogo na 17ª panela de pipoca - já ultrapassou
a média de 12 em um dia normal de trabalho, que
dura das 10h às 17h30min. Acompanhado da avó
Catharina Fernandes Pinto, 68 anos, da irmã Cassiana Pinto Nunes e da pequena Mônica, sua sobrinha de nove meses, ele não para um segundo de
trabalhar para dar conta do movimento. O cunhaEnquanto o jogo não começa, boa parte da vizi- do, Robson Vieira da Silva, o ajuda na demanda.
nhança bebe cerveja, fuma e joga conversa fora no
“bar do seu Dilson”, o Pôr do Sol. Morador da co- No mirante, os comentários são sobre o som do
munidade, Dilson Lemos, 51 anos, mantém o bar estádio que falhou e impossibilitou a execução dos
há duas décadas. Entre as mesinhas de ferro, uma hinos das duas seleções. Com poucos minutos de
mesa de sinuca, quatro máquinas caça-níquel e al- jogo, já tem gente deixando o Morro Santa Tereza.
guns quadros pendurados nas paredes, um deles Uma Kombi com quatro chilenos, vinda de Santiaexibe um típico gaúcho do campo que lembra Dil- go do Chile e dirigida por Oliver Kittsteiner, de 24
son, o empresário que atende os clientes e amigos anos, troca a vista do estádio pela estrada, rumo a
de bombacha e alpargata.
Florianópolis, em Santa Catarina.
Do lado de fora, Wellinton, 13 anos, aguarda para
bater uma foto com Dunga. É mais um dia de sorte
para o guri, que ganhou um par de ingressos para
assistir ao jogo do dia 22 de junho, entre Argélia e
Coreia do Sul. Ele estuda na escola estadual Santa
Rita de Cássia, que fica ali no bairro e foi uma das
901 instituições de ensino públicas das 12 cidadessede nas quais o Ministério da Educação sorteou
ingressos. Wellinton foi um dos 5.814 sortudos de
Porto Alegre. Mas hoje, vai curtir a Copa do Mundo no morro.
A única bola rolando por enquanto é a dos quatro meninos que jogam futebol na rua de baixo. Ao
lado de uma viatura da Brigada Militar, dois policiais conversam alheios às três meninas com idades
entre nove e 13 que oferecem pedaços de bolo e de
pizza por R$ 3 cada. Perto dali, um trio de garotos
brinca de flanelinha, fazendo sinais para os motoristas que não param de chegar e já não encontram
mais vagas. Luís Fernando da Silva, 50 anos, é po-
Os chilenos não eram os únicos estrangeiros no
mirante. Um dos clientes de Maicon neste dia é o
norte-americano Will Duggan, 24 anos. Vindo do
Uruguai, Will está há dois meses no Brasil. Hoje
mora na Cidade Baixa e trabalha como barman
num bar da rua João Alfredo, uma das mais agitadas do bairro. Ele pretende ficar mais um mês na
cidade antes de partir para Florianópolis. Mesmo
destino dos chilenos, a ilha que não receberá nenhum jogo da Copa costuma encantar mais turistas gringos do que a capital gaúcha, distante a cerca
de 100 quilômetros do mar.
Will conta à Cassiana que mora em Washington,
onde seu pai é proprietário de um bar chamado
Madam Organ. Com Mônica no colo, enrolada
num cobertor para enfrentar os 19ºC, Cassiana se
esforça para entender o portunhol do americano,
que explica que o bar da família é “conhecidíssimo” e, há 23 anos, reúne apreciadores de blues.
Apoiado na bicicleta trazida dos Estados Unidos
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e com a qual se desloca em Porto Alegre, ele conta
que, em 12 de junho, dia do jogo de abertura da
Copa, entre Brasil e Croácia, o pneu de sua bicicleta foi furado por manifestantes quando ele passou
pelo Mercado Público e se deparou com um protesto contra a Copa.
Com uma câmera fotográfica pendurada no pescoço e os olhos divididos entre a movimentação
no mirante, o estádio e a vista para a cidade, Will
come a pipoca comprada por R$ 2 no carrinho do
Maicon. O papo foi longo, e a partida já está em 3
a 0 para a França.
Às 17h30min, o jogo se encaminha para o final,
mas é para o pôr do sol no Guaíba que Will mira
sua câmera, chamando a atenção da criançada e
do vendedor de pipoca, que recomenda ao gringo
guardar seu equipamento, pegar sua bicicleta e retornar à Cidade Baixa. Will sorri, despreocupado.
Maicon também ri - fez 25 panelas de pipoca. “Já
estamos nos recolhendo. Nunca passamos das seis
horas (da tarde)”.
A noite chega, o jogo termina, e as pessoas começam a sair do local. O pipoqueiro e sua família também. Will ainda fotografa. Ao lado da mãe, Wellinton volta para casa com a foto tirada com Dunga
no celular e a expectativa para o jogo do dia 22, que
acompanhará de dentro do estádio. Will não para
de tirar fotos. Os carros vão descendo o morro; o
Exército deixa o local. Com as luzes do Beira-Rio
ainda acesas, só permanecem no mirante o gringo
e sua câmera.
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O jogo a 160 quilômetros da capital
Na Festa da Bergamota, dono de tradicional lanchonete removida
dos arredores do Beira-Rio não quer saber de Copa
Rodrigo Sartori - [email protected]
E
nquanto a bola rolava para França e Honduras no Beira-Rio, na primeira partida da
Copa do Mundo 2014 em Porto Alegre,
a banda Tchê Sarandeio tocava mais uma música
na Festa da Bergamota, na pequena cidade de Vila
Fão, com menos de 300 habitantes, no interior de
Lajeado, região do Vale do Taquari no Rio Grande
do Sul.
Na tarde de 15 de junho, milhares de pessoas comemoravam a goleada da França em cima de Honduras por 3 a 0 na capital gaúcha, que voltava a receber
um jogo de Copa após 64 anos. Já em Vila Fão, a
160 quilômetros dali, o clima de Copa do Mundo
não conseguiu superar os balaios cheios de bergamotas, os chopes gelados e os produtos coloniais
que rolavam aos montes na Festa da Bergamota.
Sem televisores ou rádios que pudessem transmitir
os lances da partida histórica, os participantes da
“Fão Fest” não se preocupavam com o vencedor
entre França e Honduras, nem com as camisetas
do Brasil e bolas de futebol sorteadas no evento.
Só queriam saber quem levaria o grande prêmio do
fim da tarde: uma moto de 125 cilindradas.
Enquanto o estádio colorado vibrava com o terceiro gol francês, o ginásio municipal de Vila Fão
explodia em aplausos ao anúncio do vencedor do
tão esperado prêmio: o único anão da cidade, Luiz
da Costa. Entre o público extasiado, estava Aurio
Giovanella.
Aurio é o proprietário da lanchonete Mek Aurio,
que ficou por mais de 20 anos ao lado do Beira-Rio,
na avenida Padre Cacique. No mesmo dia em que a
França bateu Honduras, Aurio celebrou seu aniversário de 48 anos em Vila Fão, o mais longe que conseguiu ir do estádio. Queria passar a data ao lado
dos familiares, na sua cidade natal. Além disso, não
poderia trabalhar mesmo: no dia 7 de maio, o Mek
Aurio foi demolido. “Quando vi as máquinas, me
deu um aperto no peito. Senti vontade de chorar”,
disse Aurio, que acreditava que o ponto seria um
dos grandes destinos dos torcedores que chegassem
ao Beira-Rio durante o Mundial.
onde ficava a lanchonete é pública. Segundo a Procuradoria Geral de Porto Alegre, Aurio é o locatário do espaço desde 1989 e teria contrato para
permanecer até 2017. Já para a prefeitura municipal
de Porto Alegre, a permissão de uso na área foi
concedida em 1993 para Aurio, que poderia ficar lá
por cinco anos.
O empresário conta que se sentiu surpreso quando
recebeu o aviso prévio de que a lanchonete seria
colocada abaixo, em abril de 2014. “Fui surpreendido com a notificação. O que eles tinham me dito
era que eu não poderia trabalhar. Estávamos negociando para mudar o local para a Rua A”, relembra.
No entanto, a prefeitura garante que, desde 2009,
conversa com o empresário, e que naquele ano ainda avisou Aurio que ele deveria deixar o local visando reformas para a Copa do Mundo. Depois de
uma longa discussão entre as partes, foi acertado
que o novo Mek Aurio será construído na Rua A,
ao lado do Beira-Rio, entre as avenidas Padre Cacique e Edvaldo Pereira Paiva. Com uma ressalva:
a construção só poderia ser iniciada depois do término do torneio.
Expectativa, realidade
Antes de saber que o Mek Aurio não estaria em pé
nos dias de Copa do Mundo, o empresário resolveu
preparar os funcionários. Todos os trabalhadores
da lanchonete fizeram cursos de qualificação para
receber melhor os turistas. “Padrão FIFA” para o
restaurante, segundo ele.
Longe de Porto Alegre, em Vila Fão, Aurio lamentava ter sido excluído da Copa do Mundo em Porto
Alegre. “Todo mundo está fazendo festa, e eu estou
triste em não poder trabalhar. Era uma chance de
ser mais conhecido. De mostrar a cultura do nosso
xis para o resto do Brasil e para o mundo”. Em dias
de grandes jogos do Inter no Beira-Rio, Aurio chegava a vender até 80 caixas de cerveja, sem contar
as outras bebidas e os lanches. Imagina na Copa.
Embora a expectativa de Aurio fosse grande, o
reflexo do primeiro jogo da Copa do Mundo no
Beira-Rio no entorno do estádio não foi como o
O Mek Aurio foi demolido para a instalação de esperado. O Tele-X, lanchonete que fica em frente
estruturas temporárias para a Copa do Mundo. O ao antigo Mek Aurio, sofreu prejuízo no dia da parimbróglio se arrastou por um bom tempo. A área tida entre França e Honduras. “Como foi colocado
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um cordão de isolamento na avenida Padre Cacique, as pessoas não puderam nem chegar perto do
estabelecimento. Para o nosso comércio foi péssimo. Pensamos que íamos faturar mais do que o esperado, por isso contratamos pessoas para esse dia
em especial, mas acabamos perdendo muito mais”,
reclamou a funcionária Gabriela Souza. Normalmente, 12 funcionários trabalham no Tele-X; para
a ocasião, foram contratadas mais cinco pessoas.
O maior descontentamento de Aurio não é com o
fato de não poder trabalhar, nem com a FIFA. O
que mais aborrece o empresário são os políticos,
que, segundo ele, agiram “fora da lei” para tirar o
Mek Aurio do seu tradicional ponto. Essa mágoa
tirou o seu entusiasmo com a Copa do Mundo.
Além de desistir de comprar ingressos e de fazer
os tradicionais churrascos em uma das quadras de
futebol de que é dono, Aurio não quis nem saber
dos jogos, principalmente em Porto Alegre. Assistiu somente à festa de abertura da Copa do Mundo.
O jogo do Brasil contra a Croácia apenas espiou.
Durante a partida entre França e Honduras, ficou
todo o tempo longe de qualquer televisor. Só ligou
o rádio nos últimos cinco minutos, quando seu irmão pediu para saber do resultado.
Apesar do desinteresse pelos jogos, Aurio garante que não torce contra o Brasil, mas também não
quer que a seleção de Luiz Felipe Scolari conquiste o título. “Se o Brasil ganhar, vai encobrir muita
coisa que tem de errado na nossa política. Não temos saúde e nem segurança. E existe muita corrupção. As pessoas vão esquecer os problemas sociais
com o título da Copa. Mas, se o Brasil perder, acho
que o povo pode refletir um pouco mais sobre a
situação do país”, idealizou, em meio aos balaios de
bergamotas.
Com ou sem o hexacampeonato, o empresário projeta o novo Mek Aurio, que começará a ser construído nos últimos dias de julho, depois do Mundial, na Rua A, ao lado do Beira-Rio. A abertura no
novo endereço deve acontecer em agosto, quando a
lanchonete completará 29 anos. Longe do trabalho
e das televisões, Aurio torce mesmo é para que a
Copa acabe logo.
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O jogo dentro do
acampamento farroupilha
Fora do estádio mas dentro da porteira, o carteado vale mais que o futebol
Luiza Menezes - [email protected]
P
arece que São Pedro sabe quando o gaúcho
se prepara para o Acampamento Farroupilha. Mesmo quando ele ocorre três meses
antes. Organizado especialmente para o período de
Copa do Mundo no Brasil, o Acampamento Farroupilha Extraordinário foi inaugurado no dia 12
de junho e contou com a presença do seu visitante
mais inconveniente logo no segundo dia: a chuva.
sava eram os turistas. Bastava entrar, conversar e
experimentar: o chimarrão estava à disposição para
provar, além de roupas típicas para os estrangeiros vestirem e tirarem fotos. Na decoração, quatro pôsteres que falam da carne de charque e do
carreteiro. O piquete DTG Morro Tapera oferecia
aos visitantes a Oficina de Charque, que conta a
história da iguaria gaúcha, mas desde o dia que o
acampamento começou, nenhum visitante se inteO domingo 15 de junho entrou para a história de ressou pela atividade.
Porto Alegre e do acampamento. O primeiro jogo
da Copa 2014 na capital gaúcha encheu de esperan- Passados 50 minutos, o almoço estava pronto. No
ça os patrões dos piquetes em receber mais turis- cardápio, coxa e sobrecoxa de frango assadas com
tas, mesmo que a movimentação não tenha sido tão batatas no forno e moranga caramelada. Só desviaintensa.
ram os olhos dos pratos para a televisão por causa
da falha técnica que impediu a execução dos hinos
Com os caminhos cobertos de brita e ao som de de França e Honduras.
músicas gauchescas, o Parque Harmonia estava
mais brasileiro do que nunca. A tradicional fumaça A bola já rolava há 15 minutos quando todos, quer
do churrasco recebia o público como todos os anos, dizer, quase todos enfim estavam em frente à TV.
mas o que chamava a atenção nessa edição eram as O patrão, Paulo Olympio, 63 anos, fala ao celular.
bandeiras do Brasil espalhadas pelos piquetes e lo- Na varanda do piquete, duas pessoas conversam
jas, lado a lado com as do Rio Grande do Sul, além, alheias ao jogo.
é claro, de TVs, telões e rádios ligados nos jogos do
Mundial.
“Tá torcendo para quem, Tom?”.
“Tô torcendo para a França, não quero que o Brasil
Frequentado normalmente pelas famílias donas ganhe”.
dos piquetes e seus convidados, os piquetes do “Mas tu não é brasileiro?”
Acampamento Farroupilha estavam de portas aber- “Não. Sou gaúcho!”.
tas pela primeira vez, à espera de visitantes locais e
estrangeiros interessados em conhecer um pouco O movimento de visitantes no DTG Morro Tapera
mais sobre a cultura gaúcha. A trilha sonora tam- era fraco. Surgiam apenas vendedores de doces e
bém era diferente. Com a FIFA Fan Fest a 1 qui- gente que já faz parte da associação. Mas do lado
lômetro dali e sua intensa programação de shows e de fora, havia um público significativo caminhanperformances, novos sons invadiam o acampamen- do pelo acampamento - não tanto quanto em seto sobrepondo as músicas tradicionalistas emitidas tembro, mas considerado bom para um evento fora
pelas caixas espalhadas pelo parque. Mesmo assim, de época. Ainda nos 45 minutos iniciais, a França
isso não desanimava os patrões dos piquetes e dava fez o seu primeiro gol, e uma comemoração tímiaté um ar mais descontraído a um ambiente nor- da foi registrada no local. Poucos minutos depois,
começava o intervalo. Hora de colocar na panela o
malmente tão regrado pelas tradições gaúchas.
pinhão, que só ficaria pronto no final da partida.
Faltava pouco mais de uma hora para começar a
partida de França e Honduras, no estádio Beira Times em campo, começava o segundo tempo e,
-Rio, marcado para as 16h, e o piquete DTG Morro de repente, ouviu-se sons estranhos... As pessoas se
Tapera, da Associação dos Servidores da Justiça do entreolharam dentro do piquete, alguns riram. Era
Rio Grande do Sul, começava os preparativos para o patrão, Paulo Olympio, que dormia e roncava na
o almoço. O jogo que estava por vir não chamava frente da TV. Nem os dois gols da França o acordamuito a atenção de quem se encontrava no piquete. ram. Mas bastou um vivente deixar cair uma forma
Ali e nos outros 75 montados, o que mais interes- de metal no chão para ele despertar.
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Durante todo o jogo, apenas um visitante entrou
para assistir à partida. Não se manifestou muito,
bebeu duas latinhas de cerveja e foi embora antes
de transcorridos os 90 minutos. O movimento no
Acampamento Farroupilha foi aumentando, e o interesse pelo jogo era cada vez menor.
“Quem tá a fim de jogar uma cartinha?”.
Duplas feitas, cartas embaralhadas, e o morto separado. Começava então, o jogo de canastra, a salvação dos dias de chuva na praia e dos jogos desinteressantes da Copa.
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O jogo em uma quadra de samba
Ao lado do estádio Beira-Rio, na Saldanha, a batucada abafou os gritos de gol
Kathlyn Moreira - [email protected]
É
o primeiro dia de jogo da Copa do Mundo 2014 em Porto Alegre. Uma massa de
gente se aproxima em fila do estádio Beira-Rio. Eles riem, tiram fotos, observam o estádio
e a multidão que se forma enquanto caminham. É
uma mistura de gringos e brasileiros. Passando o
palco onde a bola vai rolar em poucas horas, o samba começa a ser ouvido na avenida Padre Cacique.
Na quadra da Banda da Saldanha, o dia também é
de festa, mas não é o futebol que é destaque, e sim
a ceva gelada e o ritmo de carnaval.
Se logo no início da cerimônia de França e Honduras o hino não tocou, na Saldanha, a técnica garantiu o samba durante a tarde toda. A banda não
parou nem na hora do jogo - para a alegria dos visitantes, que não estavam preocupados com a partida
ali do lado.
Luciane Ribeiro já é frequentadora da Saldanha,
mas era a primeira vez que levava a mãe, Cleuza
Ribeiro. A estudante de Administração nem sabia
quem estava jogando. “Eu gosto é do samba, da
ceva gelada e de encontrar meus amigos”. Já Cleuza
resolveu que não ia ficar muito, queria ver o movimento no entorno do Beira-Rio.
E por falar em movimentação, o acesso a pedestres, que era para ser liberado pela Brigada Militar,
dificultou a entrada na quadra. O jeito foi usar a
criatividade ou pedir ajuda de fora. Luciane pensou
rápido. “A gente viu o pessoal chegando em um dos
ônibus e se misturou. Daí começaram a revistar o
pessoal e eu só disse para ela (Cleuza) ‘vem comigo’!
Passamos caminhando e conseguimos entrar. O
que não dá é pra sair correndo” – ensina, piscando
o olho. Depois disso, ela exigiu uma foto: “Como
assim reportagem sem foto?!”, reclamou, já posando em frente ao símbolo da Banda da Saldanha na
parede.
Cíntia Vargas também teve problemas na hora de
chegar na Saldanha. Ela é namorada de um dos
cantores da banda e estava fazendo churrasco com
mais 15 pessoas. “Tivemos que ficar 40 minutos esperando próximo ao viaduto novo (viaduto Abdias
Nascimento na avenida Pinheiro Borda). O dono da escola teve que vir e dar uns telefonemas para liberar”. A comerciante ainda lamentou que 30 pessoas
que estavam junto desistiram de ir. Desapontada,
não quer voltar nos dias de jogos.
Além de Cíntia, cinco passistas foram barradas pelos policiais na passagem para a sede da Saldanha.
Elas estavam próximo ao Parque Marinha do Brasil. “Explicamos que íamos trabalhar, mas mesmo
assim não liberaram. Daí vimos um casal pulando a grade e decidimos pular também”, confessa
Fernanda Rocha, umas das sambistas. Enquanto
contavam a história da entrada, as meninas se preparavam para “quebrar tudo” com a Banda da Saldanha mais tarde. O frio que vinha do Guaíba não
intimidou as moças, que pareciam estar a caminho
de um desfile no Porto Seco: muito brilho, maquiagem caprichada, braços e pernas de fora.
Enquanto isso, a partida entre França e Honduras
já havia começado no estádio Beira- Rio. As televisões de plasma nas churrasqueiras mostravam
o jogo, além de um telão na área coberta da quadra. As atitudes dos frequentadores não mudaram
quando o juiz apitou para a bola rolar. As mais de
50 pessoas seguiram conversando, bebendo cerveja e acompanhando com o corpo o ritmo da banda. Apenas um homem estava sentado em frente
ao telão, mas parecia mais interessado na cadeira
disponível do que no jogo. Da TV, não se ouvia
a narração esportiva. Em vez de Galvão Bueno, o
batuque dos músicos servia de trilha para os chutes
e dribles. Quem olhasse a quadra diria que era um
dia normal de festa na Saldanha, exceto pela grande quantidade de bandeirinhas do Brasil espalhadas pelo lugar. O samba não morreu com a Copa
- mas abafou os gritos de gol no vizinho Gigante.
Em uma das churrasqueiras, um grupo grande
estava animado com copos nas mãos. Era o aniversário de Rodrigo Rodrigues. Eles também não
vieram muito interessados no jogo, apenas aproveitaram a movimentação para comemorar na Saldanha. Quando questionados sobre para que seleção
estavam torcendo, o amigo de Rodrigo, Vinícius, é
enfático: “Honduras claro! França nunca! Não esqueço que ela eliminou a gente em 1998”. Os dois
amigos tinham esperança de que os turistas fossem
participar da festa mais tarde. E garantiram que
iriam ficar até o final.
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Um futuro para a Saldanha
Quase que a festa não saiu. A quadra da Banda da
Saldanha e a das escolas de samba Praiana e Imperadores deveriam ter sido retiradas do entorno do
Beira-Rio. O plano era que a área fosse um estacionamento para os dias de jogos. Em troca pelo
terreno, seria construído um Centro Cultural a cerca de 200 metros da frente da sede da Saldanha na
avenida Padre Cacique. Dedicado ao samba, deveria integrar todas as quadras, mas o projeto não foi
adiante a tempo.
O vice-presidente da Saldanha, Diogo da Fonseca, acredita que a banda ficará com a sede até dezembro, mas o futuro depende da prefeitura. Para
a Copa, houve um investimento do governo municipal para a manutenção da quadra. “Não foi um
investimento de construção ou alvenaria, foi mais
de limpeza do espaço mesmo”, esclarece.
No dia da estreia do Brasil na Copa, mil pessoas
estavam na quadra. Diogo observa que o público
se empolga mais quando a seleção brasileira joga.
A ideia é continuar realizando festas nos dias de
jogos, mas ainda não havia sido decidido se todos
os eventos teriam entrada franca, como é usual.
Já estava quase no final do jogo em Porto Alegre. A
França vencia Honduras por três a zero. Uma voz
no microfone chamou a bateria da Banda Saldanha
para o centro da quadra. As cinco passistas desceram a escada do mezanino. A banda se reuniu e
seguiu para fora da sede. No caminho, as meninas
são abordadas para tirar fotos várias vezes, como
celebridades. Parecem estar desfilando, só que não
na passarela do samba, mas na avenida do futebol.
Durante o trajeto, o ritmo da bateria é tímido, mas
cresce no momento em que o grupo chega em frente ao estádio. Os torcedores que saíam foram recebidos com um carnaval fora de época. Os gringos
enlouqueceram com as sambistas. Tiravam fotos,
gravavam vídeos, dançavam junto.
Ter ingresso na mão já não fazia mais diferença
para participar da megafesta.
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O jogo pelos olhos dos vovôs
No Asilo Padre Cacique, vizinho do Beira-Rio, telão,
pipoca, a Copa de 1950 e Aznavour
Juliana Spitaliere - [email protected]
N
o topo da escadaria de entrada, que alterna degraus verdes e amarelos, três cadeiras estão posicionadas para o estádio
Beira-Rio, a 500 metros dali. Apenas o assento
do meio está ocupado. Jethro Santa Helena assiste
atenciosamente à movimentação, que marca a volta
da Copa do Mundo a Porto Alegre, enquanto aproveita para tomar sol após o almoço de domingo.
Hoje com 84 anos, tinha apenas 20 quando acompanhou pelo rádio os jogos realizados na capital em
1950. Essa é sua quinta Copa dentro do Asilo Padre
Cacique, uma instituição sem fins lucrativos, referência no acolhimento e inclusão social de idosos
há 116 anos. Nunca o cenário de uma partida esteve
tão próximo.
uma das laterais, um casal chamava atenção pela
cumplicidade. De braços dados e vidrados na tela,
aguardando o início da partida, o casal septuagenário Paulo Meirelles e Shirley Pereira torcia pela
seleção de Honduras apenas por um motivo: as
cores da bandeira do país latino-americano são as
mesmas do time do coração de ambos, o Grêmio.
Do lado oposto, Maria Beatriz Habbib, 65 anos, é
a que mais espera pela execução do hino da França - que acaba não vindo. Sua adoração pelo país a
acompanha mesmo antes de nascer, diz ela. Espírita, tem absoluta certeza de que fez parte da elite
europeia em vidas passadas. “Adoro músicas francesas. Às vezes escuto Charles Aznavour, fecho os
olhos e me imagino dançando, em um daqueles
Cores, batuques, gritos e sorrisos. Os olhos de Je- grandes bailes, usando belos vestidos e joias brithro não desgrudam dos milhares de torcedores, lhantes. Me sinto francesa, torço pela França”.
vindos por todos os lados, convergindo ao Beira
-Rio. Visões do presente mesclam-se a lembran- Mesmo após o início da partida, o movimento fora
ças de um passado que cobria de água a área que do refeitório ainda é grande. Alguns idosos descanatualmente é ocupada pelo estádio. Era naquela sam no jardim, outros se dirigem para seus quartos.
vizinhança que seu pai costumava comprar porcos Na ala masculina, o eco produzido pelos diversos
para alimentar os 14 filhos. Porto-alegrense, acom- rádios ligados ao mesmo tempo sugere a preferênpanhou todas as mudanças que viriam nas décadas cia por acompanhar o jogo no conforto do próprio
seguintes: o aterramento do local, a construção do quarto. De um deles, emana apenas a luz de um
estádio, o desenvolvimento das vias de acesso. Gre- abajur, que desvela timidamente uma grande quanmista, nunca pisou naquele campo.
tidade de fotografias, documentos e máquinas de
escrever em um pequeno recinto. O jornalista Her“Alguns dos meus colegas foram conferir mais de mínio D’Andrea, 89 anos, faz questão de mostrar
perto essa festa toda. Eu prefiro ver tudo daqui o local onde, há nove anos, produz o jornal O Camesmo”, conta ao justificar os lugares vazios ao seu cique, publicação voltada a moradores e visitantes
lado.
do asilo. A última edição, recém impressa, estampa
manchetes sobre a Copa 2014, acompanhadas de
Falta meia hora para o jogo entre França e Hondu- textos em inglês e espanhol pensados para os turisras quando os colegas de Jethro retornam ao asilo tas. Apesar de reconhecer a grande importância do
após um passeio pelos arredores do estádio. Acom- evento, principalmente para a cidade, revela que já
panhados de funcionários, cerca de 10 moradores não tem mais tanto fascínio pelo esporte.
caminharam pela avenida Padre Cacique encantados com a multidão que se aglomerava na entrada “Infelizmente o futebol se transformou em um
do estádio e com a festa dos estrangeiros. Agora, mercado, em dinheiro. São milhões de reais envolvoltavam para acompanhar tudo pelo telão instala- vidos, antes não era assim”, conta Hermínio, lemdo no refeitório especialmente para o campeonato. brando dos tempos em que foi correspondente de
O verde e o amarelo ainda tomavam conta do sa- diversos jornais gaúchos. O relógio de cabeceira
lão, resquícios da decoração para o primeiro jogo marca 16h23. Ao se dar conta de que o jogo já hado Brasil, três dias antes.
via começado, decidiu ir até o refeitório, precisava
ficar por dentro do que estava acontecendo. EntraNo estádio, os jogadores entram em campo; no va em campo seu espírito jornalístico.
refeitório, o cheiro de pipoca invade o local. Em
| 17
Na área feminina, predominam as rodinhas de
conversa e de chimarrão. Em um dos quartos, uma
janela vertical apresenta uma vista privilegiada para
o estádio. Capaz de dar inveja a qualquer colorado, era, porém, vislumbrada todos os dias por uma
gremista. Iracema Pires, 71 anos, não desgruda de
seu cachecol estampado com bandeiras brasileiras
e conta que adora esses momentos de descontração
no asilo. Apesar de acompanhar a disputa, não tem
preferência por nenhum dos dois times. Na partida, há algo que desperta mais sua atenção. “Olha
esse juiz, que bonito!”, brinca, já se dirigindo ao
refeitório para assistir ao restante do jogo.
Segundo tempo
Já no segundo tempo, o refeitório começa a lotar.
E o segundo gol de Benzema, o terceiro da França,
não é o ponto alto do final da tarde. Às 17h27min,
chegam as cumbucas de sopa quentinha, abrindo o
jantar. Os idosos dividem seus olhares entre a TV,
em um lado do salão, e o telão, do outro. Nadir
Jardim, 77 anos, parece ser um dos poucos impressionados com o placar e o repete várias vezes, entoando “Três a zero”. Só tem algo que o deixa mais
deslumbrado: o fato daquelas imagens transmitirem uma partida realizada tão perto dali. “Como
colorado, fico muito feliz de um jogo assim estar
acontecendo em nossa casa”, conta, ao lembrar que
ainda não visitou o Beira-Rio depois das reformas,
algo que fará assim que acabar a Copa.
A noite cai, e as colheres já raspam os pratos de
inox quando o apito final ressoa. Timidamente,
os torcedores vão saindo do salão já se preparando para dormir. Pelos corredores, os chinelos arrastando interrompem vez ou outra o silêncio, que
predomina à medida em que as portas dos quartos
batem. De um lado, apenas uma imagem de Santo
Antônio iluminada por uma luz artificial. De outro, a voz rouca de um torcedor:
“Terça-feira tem mais!”.
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O jogo dentro da Fan Fest
Evento oficial da Fifa reuniu hondurenhos, franceses e fãs do Belo
Mariana Staudt - [email protected]
Q
uem queria encontrar pessoas de diversas
nacionalidades no primeiro jogo de Porto
Alegre na Copa do Mundo de 2014, mas não tinha ingresso para ir ao estádio, era
só passar na Fan Fest. Gringos e brasileiros reunidos em um mesmo local, sem qualquer tipo de rivalidade e com um objetivo em comum: fazer festa. O
evento oficial da FIFA, realizado no Anfiteatro Pôr
do Sol, foi uma combinação de shows e transmissão das partidas do Mundial. Além disso, o público
foi, igualmente, atração. Australianos, argentinos,
mexicanos, uruguaios e, claro, franceses e hondurenhos, os donos do combate do Beira-Rio daquele
domingo.
A Fan Fest agradou tanto aqueles que vieram de
longe só para assistir aos jogos e sentir o clima de
uma cidade-sede, quanto os grupos de meninas
porto-alegrenses que não se importavam com o
futebol que se fazia presente por todos os lados.
Só queriam saber de curtir o show do cantor Belo,
marcado para aquela tarde.
Quando a bola começou a rolar, até o sol resolveu aparecer. O público já era grande no anfiteatro,
mas, no meio da multidão, três pessoas chamavam
a atenção de todos por serem talvez os únicos hondurenhos na Fan Fest. “Vamos Honduras! Vamos
a ganar”, cantavam. Com os rostos pintados, pulando, batendo palmas e enrolados nas bandeiras
de Honduras e do Brasil, a animação era tão contagiante que outros torcedores se uniam a eles.
Há 30 anos, Oscar Sevilla foi para a cidade gaúcha
de Pelotas fazer um intercâmbio, quando se apaixonou pela brasileira Magda Garcia. Deste encontro que se transformou em casamento, nasceram
Gabriela, Francis e Shani. Hoje, vivem em cidades
diferentes: o casal mora em Dom Pedrito, a filha do
meio em São Paulo e o mais novo em Rio Grande.
E o local escolhido para torcer por Honduras foi a
cidade da filha mais velha, na Fan Fest, o mais perto que conseguiram chegar de onde a sua seleção
tentava quebrar a superioridade da França.
Para Oscar, é normal ouvir que Honduras é considerada a seleção mais fraca da Copa. “Temos muita
garra, mas falta futebol”, admite. O que não tira
as esperanças da família. “Vamos passar para as
oitavas”, diz Oscar. A filha Francis é ainda mais
otimista. “Não só isso, vamos até a final!”. Entre
gritos de “olé”, apostavam em um simples e suficiente 1x0.
Enquanto o confronto entre França e Honduras
não começava, o movimento nos estandes dos patrocinadores e na praça de alimentação era grande.
Tinha brincadeira de “gol ao alvo”, informações
turísticas, espaço para as crianças, distribuição de
adereços verde e amarelo de todos os tipos e muitos
litros de cerveja. Se a bateria do celular terminasse
na hora da selfie com os novos amigos estrangeiros,
não tinha problema. Um dos locais disponibilizava Entre o público, a torcida se dividia e, apesar dos
cabos USB para a recarga e pufes para relaxar en- olhos atentos ao telão, rolavam muitas fotos entre
quanto se esperava.
grupos de diferentes países e figuras caracterizadas
de formas inusitadas para representar suas nações.
Difícil saber quem era turista ou não, pois muitos
brasileiros vestiam camisetas de outras seleções. A Já tinham se passado 30 minutos desde que o árbimaioria dos franceses e hondurenhos que vieram tro brasileiro apitou o início da partida, e a família
a Porto Alegre estavam ali perto, a pouco mais de hondurenha continuava vibrando a cada ataque do
dois quilômetros de distânica, no Beira-Rio, mas seu time. Aos 43 minutos, porém, as mãos que se
alguns marcaram presença na Fan Fest. O francês agitavam no ar foram à cabeça e os cânticos cessaDidier Martin, morador há 20 anos do Brasil, conta ram. Um pênalti foi marcado para a França, e um
que acompanhou um grupo de conterrâneos até o jogador de Honduras foi expulso. Muitas vaias para
entorno do estádio e se arrependeu de não ter ga- o craque Benzema e olhos atentos ao telão de novo.
rantido o ingresso para a partida. Antes mesmo de Não adiantou. França um, Honduras zero.
o jogo começar, o professor de francês e torcedor
do Rennes vibrava animado com sua bandeira da Outro uniforme amarelo
França e apostava em um resultado de 2x0 para a No intervalo da disputa, o acúmulo da chuva dos
sua seleção.
dias anteriores em Porto Alegre fez com que come| 20
çasse a “chover” em uma parte do palco, seguindo assim até os shows da noite. Grudadas na grade bem em frente, com casacos na cabeça para se
proteger da água que respingava, estavam Mariana,
Juliana, Deise e Katiele. O uniforme era amarelo,
mas não era da seleção brasileira. A camiseta era do
fã clube Além do Limite do cantor de pagode Belo.
dos poucos hondurenhos que, apesar de insatisfeitos com o resultado, seguiam esperançosos com o
futuro da sua seleção na Copa.
Mas certeza mesmo, só uma: a Fan Fest vai até o
final.
Elas chegaram à Fan Fest às 11h para assistir ao
show que começaria somente às 18h. Perguntadas
se estavam acompanhando a partida, a resposta foi
negativa. “A gente ficou conversando, mas quando
deu o gol, até comemoramos junto com o pessoal
aqui”. Antes de chegar, nem sabiam qual jogo estaria acontecendo. “Só estou acompanhando os do
Brasil. Acho que a Copa não deveria ser aqui, foi
um investimento errado, não tem nenhuma preparação e o país só vai passar uma imagem ruim
para o resto do mundo”, comenta Deise. As meninas podiam não gostar nada de futebol, mas sabiam
qualquer coisa sobre o Belo. Inclusive que o cantor
tem um time com o qual joga com os amigos, o
Belo Futebol Show.
O placar da segunda etapa, que logo passou a ser
dois a zero para a França, deixou os hondurenhos
preocupados, mas não os impediu de continuarem
a curtir a Fan Fest. Colorados presentearam a família de Honduras com uma camiseta do Internacional e celebraram todos juntos como se fosse gol
classificatório e, claro, com muitas fotos.
Registrando tudo em sua filmadora, um grupo peruano, mesmo sem ter sua seleção na Copa ou ingresso, também quis acompanhar o evento de perto. “Es muy hermoso”, dizia um deles, ressaltando
que o Mundial no Brasil é muito importante para
os sul-americanos. Alguns deles estavam torcendo
pela França, outros por Honduras, mas a aposta de
quem seria o campeão era unânime: Brasil.
Durante as 10 horas de evento, mais de 17 mil
pessoas passaram pelo Anfiteatro Pôr do Sol. Estivessem elas sentadas apreciando um chimarrão,
pulando com a torcida de algum país, curtindo as
atrações nos intervalos dos jogos, treinando o inglês, falando portunhol ou arranhando o francês, o
final em três a zero para a França pouco importou
- com exceção dos franceses que comemoravam e
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O jogo em Porto Alegre - em números
Veja os números que marcaram o dia 15 de junho de 2014 dentro e fora do estádio
Vinícius Bühler - [email protected]
Porto Alegre não parou para assistir ao primeiro jogo da Copa do Mundo na capital. Enquanto 43 mil
torcedores miravam as equipes de França e Honduras dentro do campo, fora do estádio, números de todos os tipos não pararam de crescer. Nas redes sociais, nos hospitais, nos bares e, claro, dentro do estádio
Beira-Rio, algarismos e mais algarismos acumulavam-se servindo como mais uma forma de registrar o
dia histórico.
Nosso contador só não girou no entorno do estádio, onde não se registrou nenhum acidente durante os
90 minutos, segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Mas no resto da cidade,
contabilizamos um nascimento na hora do jogo, 17,5 mil pessoas na Fan Fest, 80 voluntários no estádio
Beira-Rio e 200 litros de chope vendidos em um restaurante onde 240 pessoas assistiram ao jogo.
Confira, no infográfico, números curiosos que marcaram o dia 15 de junho em Porto Alegre:
Números
do jogo
3x0
frança - honduras
43.012
mil pessoas
compareceram,
sendo o público
máximo
Karim Benzema
(pênalti)
Noel Valladares
(Gol Contra)
Karim Benzema
45’
48’
72’
de 43.394
HAVIA 80
Voluntários
no Estadio
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Fora do estádio,
durante os
90
ZERO acidentes
NAS Imediações
DO Estádio
(Centro Histórico, Menino Deus e Orla do Guaíba)
1
minutos...
nascimento nas
Três principais
maternidades públicas
10 chegadas
e 9 partidas no
Aeroporto Salgado Filho
200 L de chope vendidos
no Barranco, um dos
restaurantes mais
tradicionais da cidade
são 2,2 L por minuto
e 800 ml por cliente
17.500 pessoas
passaram pela FIFA Fan Fest*
*Ao longo do dia
Fontes: EPTC, assessoria de imprensa do Aeroporto Salgado Filho, restaurante Barranco
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NAS REDES SOCIAIS
22,4%
739 menções ao jogo
no Twitter, na região
de Porto Alegre, durante
dos tweets
os 90 minutos
eram originais ou
da partida**
21,5% citaram a falha
na execução dos hinos
compartilhados de
portais de notícias
18,4% disseram que França e Honduras
era o pior jogo da Copa até então
10,2% dos posts manifestavam apoio a Honduras.
9,3% dos posts manifestavam apoio à França.
10,3% dos tweets citavam jogadores
(O mais citado foi Karim Benzema)
8,3% citaram
outros Assuntos
Para cada tweet elogiando a partida,
12 eram postados criticando
o desempenho das duas equipes.
X
Foto: Portal da Copa
** Foram contabilizados tweets com as palavras ‘França’, ‘Honduras’ e ‘Copa’
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O jogo no meio de um (míni) protesto
Com manifestantes divididos, marcha que se dirigiu até o estádio foi fraca
Renata Fernandes - [email protected]
A
concentração era grande no início do dia 15
de junho de 2014. O time já se reunia no
Parque Farroupilha horas antes do evento.
Em clima de descontração, batiam uma bola. Poderia ser um pré-jogo da Copa não fosse essa versão de
Gal Costa: “Ô balancê, balancê. Escuta o que eu vou
lhe dizer: polícia fascista, vai se fuder e leva a Copa
com você!”
No caminho do Beira-Rio, onde aconteceria o
primeiro jogo da Copa do Mundo 2014 em Porto
Alegre, entre França e Honduras, a cada esquina,
dezenas de viaturas da polícia já aguardavam os manifestantes anti-Copa. O jogo deles demorou para
começar. Até então unido e com apenas uma bandeira, o grupo acabou dividindo-se em dois: havia aqueles que torciam pela marcha em direção ao estádio e
os que preferiam continuar o bate-bola ali mesmo,
no parque. Apesar disso, ambos compartilhavam do
mesmo objetivo - criticar consequências da Copa do
Mundo, como as remoções forçadas e os gastos abusivos. Mesma causa que, no dia 12, data da abertura
da Copa, havia mobilizado 300 pessoas em um só
ato no centro de Porto Alegre que gritavam “Copa
sem povo, estamos na rua de novo”.
Três dias depois, a situação era diferente. Enquanto
o Bloco de Luta pelo Transporte Público propunha
um ato cultural distante do estádio - com teatro, música, capoeira e até futebol -, grupos independentes
queriam uma caminhada com o objetivo de chegar
o mais perto possível do Beira-Rio. No Facebook,
desde a madrugada de 14 de junho, os dois eventos
online tiveram a presença confirmada por cerca de
700 pessoas. Mas nem 10% apareceram no ato. E
das menos de 100 pessoas que se encontraram na
Redenção por volta das 13h, apenas metade decidiu
tentar chegar perto do estádio.
A assembleia
O capitão a favor da marcha era Fabrizio Arriens,
que vestia uma camisa 7 verde e amarela, com a
hashtag #naovaitercopa estampada e uma máscara de carnaval azul brilhante. Os representantes do
Bloco de Luta, que eram maioria, vestiam camisetas
de partidos e pediam a atenção dos manifestantes
a todo momento. O primeiro a conseguir ser ouvido foi o camisa 7. De cima da escultura em frente
ao Monumento ao Expedicionário, popularmente
conhecido como Arco da Redenção, ele convocou:
“Pessoal, vamos marchar até o Beira-Rio em instantes. Quem vai conosco?”. Confusos, alguns questionavam: “Vão marchar com essa miséria de gente?
Nunca vão conseguir! Vão apanhar da polícia”.
Para virar o jogo, um representante do Bloco de
Lutas decidiu repetir o ato e subir no mesmo pilar.
“Galera, faremos uma votação. Quem quiser ficar
e participar das atividades culturais que levante a
mão”, pediu. O placar terminou empatado. Metade
foi às ruas onde a polícia estava a postos, a outra preferiu ficar no zero a zero e permaneceu na Redenção.
A marcha
Como bom brasileiro, Arriens não desistia. Discursou mais uma vez na tentativa de ampliar o time que
seguiria para o Beira-Rio: “Não seremos ouvidos
se ficarmos parados aqui. Se não temos força para
caminhar, pelo menos teremos força para dialogar
com a polícia”.
Mesmo sendo alvo de comentários do tipo “meia
dúzia de gato pingado marchando?” e “mas já está
tendo Copa, o que eles querem agora?”, os manifestantes não se micharam. O fominha Arriens, que havia chegado à Redenção por volta das 14h, comandou todo o trajeto e não largou um minuto a bola de
futebol com o símbolo do anarquismo desenhado.
Ao longo de toda a marcha, ele fazia embaixadinhas
e ensaiava dribles em frente ao Batalhão de Choque.
Ao passarem pela avenida João Pessoa, a impressão
era de que o grupo teria facilidade para chegar ao
Beira-Rio. Mas foi só virar à direita na rua Venâncio
Aires que os problemas começaram. Ao fundo, na
esquina com a rua General Lima e Silva, já era possível ver filas de policiais do Batalhão de Choque a pé,
a cavalo e dentro de viaturas. Pela proporção de militares, mais parecia uma marcha de 7 de setembro.
O trajeto, então, precisou ser mudado. Obrigados a
entrar na Lima e Silva, os manifestantes aumentaram a voz e se fizeram vistos e ouvidos pelos turistas
que estavam dentro dos bares para assistir ao jogo.
A marcha tirou a atenção das televisões e encheu as
janelas dos prédios de curiosos. “No Beira-Rio, enquanto a bola rola, não tem saúde, não tem emprego,
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não tem escola”.
O cerco só foi definitivamente fechado quando o
grupo chegou à avenida Loureiro da Silva, por volta das 15h40 - antes mesmo da partida no BeiraRio
começar. Em roda, eles se questionavam: “pra onde
vamos agora? Não acredito que vamos acabar aqui”,
enquanto um helicóptero sobrevoava o lugar, e estrangeiros fotografavam da porta de um hotel.
Bateram bola, conversaram, cantaram mais um pouco e então resolveram voltar ao ponto de partida, resignados. O caminho de volta foi quieto e um tanto
triste, sem música de protesto e sem bola, que ficou
para trás, junto com o Batalhão de Choque - mais
um motivo de indignação para Arriens, autointutilado Canarinho Block.
A partida dos manifestantes terminou exatamente
às 16h28, quando o grupo retornou ao Parque Farroupilha. Com aplausos, Arriens agradeceu a participação das cerca de 40 pessoas. Celebrou inclusive
a desproporção entre o número de manifestantes e
policiais. “Foi lindo. Tudo aquilo só para nós”.
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O jogo ao longo dos 3,5km do caminho do gol
No Beira-Rio, 43 mil pessoas; no Caminho do Gol, o mundo inteiro
Marília Bissigo - [email protected]
ano atrás havia sido palco de protestos populares e
o descer da Estação Mercado da Trensurb, conflitos com a polícia dava lugar à alegria contano centro de Porto Alegre, por volta das giante do mundial.
15h, foi possível perceber a movimentação
fora do comum para uma tarde de domingo. Aquele realmente não era um domingo qualquer: era dia Primeiro tempo
da cidade receber o seu primeiro jogo da Copa do A Brazuca, bola oficial desta edição do evento, roMundo de Futebol FIFA 2014, que começaria den- lava no campo. No asfalto, o burburinho em diferentes sotaques. Enquanto caminhava devagar em
tro de uma hora.
direção ao estádio, vi um grupo de argentinos se
As seleções da França e de Honduras já se encon- divertindo. Brasileiros passavam por eles e comtravam no estádio Beira-Rio, e as ruas se enchiam provavam a rivalidade entre os dois países: ouvi
com o zum-zum-zum convidativo de torcedores e frases como “não trouxeram o Messi” e “não pascuriosos. As conversas e risadas alheias me acom- sam das quartas de final”. O tom parecia de brinpanharam durante os 3,5 quilômetros do Caminho cadeira saudável.
do Gol, um trajeto para pedestres entre a prefeitura
e o estádio pela avenida Borges de Medeiros, ex- A proprietária da loja Cantinho da Gringa, Neli
clusividade da cidade-sede Porto Alegre. Nos dias Guedes, tinha motivos extras para exibir o sorriso
de jogos da Copa no Beira-Rio, meia-pista ficava que não desaparecia nem quando colocava a boca
interditada para tráfego de veículos nessa região, na bomba do chimarrão: as vendas não poderiam ir
deixando livre o acesso a pedestres, artistas de rua melhores. O estabelecimento fica na Borges de Mee vendedores ambulantes previamente cadastrados. deiros e vende artigos como luvas, toucas, cachecóis, brinquedos e eletrônicos. “Eu não achava que
Para guiar os não-iniciados na geografia das ruas viriam tantos estrangeiros para a cidade. A maioda capital gaúcha, um pórtico inflável próximo ao ria dos clientes de hoje são de outros países. Estou
Largo Glênio Peres, próximo ao terminal , marcava adorando”, comemorava. Ela não tinha intenção
o início da caminhada. A iniciativa foi inspirada em de abrir a loja no domingo, mas percebeu o moviuma ação semelhante realizada na Copa do Mundo mento no Caminho do Gol e não se arrependeu.
Sua única tristeza foi não ter produtos com as coda África, em 2010, na Cidade do Cabo.
res das bandeiras estrangeiras à venda. “Queríamos
mostrar aos turistas que não temos preconceitos e
Aquecimento
Vinte e dois jogadores franceses e hondurenhos se não vendemos só mercadorias verdes e amarelas.”
posicionavam para cantar os hinos de seus países
- que não foram reproduzidos por causa de uma A vendedora de bebidas e pinhão Raquel Silvério
falha técnica. Eles eram observados através de telas compartilhava do sentimento de euforia. Apesar da
no mundo inteiro, enquanto eu cuidava o vai e vem burocracia para conseguir se cadastrar para trabade brasileiros e estrangeiros que optaram por ca- lhar no Caminho do Gol, Raquel diz que esse é o
minhar pela avenida Borges indo ao encontro dos melhor momento dos três anos em que é ambulangritos cada vez mais altos que vinham do estádio te. “Passei por um sufoco para estar aqui e agora
e da Fan Fest. Nas cabeças, rostos e camisetas, a estou muito satisfeita. A interação com os turistas
é divertida. Não falo inglês, mas conseguimos nos
bandeira do Brasil predominava.
comunicar. Muitas pessoas que passaram por aqui
O Caminho do Gol iniciava com a subida e a curva não conhecem pinhão, mas eu ofereço amostras e
da Avenida Borges de Medeiros. O centro da cida- os ensino a comer.” A orientação se fez necessária
de, que costuma ser cinza, neste dia recebeu pince- depois que um australiano tentou comer o pinhão
ladas coloridas que deram uma maquiada no mau sem descascar.
estado do Viaduto Otávio Rocha. As pichações anti-Copa foram sobrepostas por camisas e perucas
azuis. Allez les Bleus. Aos poucos a avenida que um
Reconhecendo o gramado
A
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Intervalo
Momento de fazer os ajustes nos times. Nas arquibancadas, tremulavam bandeiras francesas e
hondurenhas. Do lado de fora, outras tantas eram
erguidas. Aproveitando o aglomerado de gente, ativistas entregavam panfletos escritos em português
e inglês com dicas para se levar uma vida vegana.
Havia espaço também para a pregação. Com cartazes e gritos que demorei para entender, um grupo
de jovens se aproximou de mim. Chamavam a atenção porque pareciam participantes de uma pequena manifestação política. Quando chegaram perto,
pude ouvir: “Jesus te ama”. Li frases evangélicas
em seus cartazes e, nas camisetas pretas, “Eu <3
Jesus”.
Até mesmo estrangeiros vieram a Porto Alegre movidos não pelo amor ao futebol, mas por uma causa.
Os peruanos Enrique Ormeno e Oscar Escate vieram com um grupo de 11 pessoas trabalhar como
voluntários na distribuição de panfletos sobre a
conscientização da exploração sexual de crianças e
adolescentes. “Não estou acompanhando os jogos
nem preocupado com os resultados das partidas”,
declarou Enrique. “Vim para cá trabalhar com esse
tema porque acredito na importância da proteção
das crianças e também por solidariedade.” O peruano trabalha como funcionário público do governo de seu país na área de educação e esportes
e passou por uma capacitação antes de viajar. “Os
brasileiros são bem receptivos”, elogiou.
Segundo tempo
A Copa do Mundo no Brasil já era chamada pela
imprensa internacional de “a melhor Copa de todos
os tempos”, e até o sol, que andava escondido atrás
das nuvens, apareceu para acompanhar o segundo
tempo da partida entre França e Honduras no Beira-Rio. A temperatura subia, apesar da brisa vinda
do Rio Guaíba. Ouvi uma senhora falando ao telefone: “tem muito turista na rua para ficar em casa”.
Brasil há quatro anos. “Viemos passear, olhar a integração dos povos, mas a Natalia está com medo
de tanto policial”, disse Magela. Outro casal que
queria “sentir o gostinho da Copa” eram os baianos
residentes de Porto Alegre Micaela Souza e Manoel
Luz. “Nós tentamos comprar ingresso para ir ao
estádio, mas não tivemos condições”, lamentou ele.
“Então estamos só do lado de fora, aproveitando a
oportunidade para ver gente diferente.”
Melhores momentos
Gente diferente não faltou. Uma adolescente de
meia-calça preta rasgada e batom vermelho caminhava devagar com seu tênis All Star de caveirinhas; um grupo de hippies arrastavam as barras de
suas roupas largas e de cores desgastadas pela avenida; prendas tomavam seu chimarrão; senhores
com um uniforme amarelo canário tiravam fotos
até da própria sombra; garotos com rostos pintados com cerveja nas mãos falavam alto; casais se
beijavam; homens cantavam mulheres; uma criança aprendia capoeira. A diversidade daquele dia até
era comparável a um típico domingo na Redenção,
mas ganhava de longe no quesito sotaques e idiomas diferentes.
A animação era visível nos rostos de brasileiros,
uruguaios, argentinos, franceses, australianos. Pedestres dividiam o espaço com bicicletas, patins,
skates, carrinhos de bebês, cachorros e seus donos. Mesmo aqueles que estavam de certa forma
alheios à muvuca, não pareciam deslocados da
cena. É como se cada tribo e cada país estivessem
representados por aquelas milhares de pessoas que
percorreram o Caminho do Gol naquela tarde de
domingo. Se o Beira-Rio só comportava as 43 mil
pessoas com ingresso, na Borges de Medeiros, cabia o mundo inteiro.
A Polícia Militar estava presente a cada poucos metros no Caminho do Gol e no entorno do estádio.
Policiais realizavam sua ronda a pé, a cavalo, em
viaturas e camburões. “Pena que não vai continuar
assim”, disse o vigilante Ângelo Amaral, que levava a sua filha, Natalia, 6 anos, para “ver coisa nova”.
A esposa, Magela Costa, é uruguaia, mas mora no
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O jogo pelas câmeras de seguranca
No Centro Integrado de Comando, 40 monitores: 39 nas ruas da cidade e um no jogo
Thais Böhm - [email protected]
P
orto Alegre, capital do Rio Grande do Sul,
domingo, 15 de junho. Primeiro jogo da
Copa do Mundo 2014 no Estado. França e
Honduras. Mais de 50 mil pessoas concentradas na
região central da cidade, dentre elas um chefe de
Estado e o secretário geral da FIFA. Ameaças de
protestos. Como garantir a integridade física dos
gaúchos e turistas?
dos 721 agentes da EPTC que foram habilitados
nas línguas inglês ou espanhol para lidar com os
estrangeiros em Porto Alegre.
Todos os movimentos - deslocamento de delegações, bloqueios de trânsito etc - são veiculado pelas
mídias sociais da EPTC e do CEIC. Uma dessas
movimentações coloca três telas em modo “privacidade”, quando as imagens deixam de ser visualizadas por todos e passam a ser de uso exclusivo da
Polícia Militar. O alvo das câmeras era o pequeno
número de pessoas em torno da placa “Não vai ter
Copa”, que saía da Redenção. Nos computadores, é
possível enxergar, de longe, o momento que a Brigada Militar, uns a pé, outros a cavalo, cercam os
manifestantes e os obrigam a mudar de rota. Em
marcha lenta, o protesto volta ao parque com escolta digna de chefes de Estado.
Faltam três horas para o início do jogo e, no Centro
Integrado de Comando (CEIC) da cidade de Porto Alegre, já se encontram a Polícia do Exército, o
centro de inteligência da Brigada Militar, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), a
Defesa Civil, a Empresa Pública de Transporte e
Circulação (EPTC), a Polícia Rodoviária Federal, a
Guarda Municipal, a Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre (Procempa) e o Departamento Municipal de Limpeza
Urbana (DMLU). Quarenta pessoas ao todo.
Uma hora antes do início do jogo é o momento de
maior tumulto nas ruas que levam aos portões do
No CEIC, a situação é de alerta devido ao gran- Beira-Rio. A Brigada Militar montou uma barreira
de número de pessoas em um mesmo espaço. São na rua Padre Cacique, próximo ao viaduto, onde
mais de 800 câmeras espalhadas pela cidade, mas limitava o acesso ao estádio. Passavam “apenas” os
nos 39 monitores de LED 32’’ do centro, os locais que tinham ingresso para assistir ao jogo. “Apenas”
de acompanhamento direto são as ruas Padre Caci- entre aspas mesmo, porque só esses contabilizavam
que, Olavo Dutra, José de Alencar, Borges de Me- 43.012 pessoas.
deiros, Viaduto Açorianos e o Anfiteatro Pôr do
Às 16h, o CEIC se acalma. França e Honduras
Sol, local de realização da FIFA Fan Fest.
estão em campo, os torcedores dentro do estádio
Uma câmera flagra uma placa no Parque Farrou- ou no anfiteatro Pôr do Sol, na Fan Fest. As ruas
pilha em que se lê “Não vai ter Copa”. Todos os se esvaziam. Os policiais preveem 90 minutos de
olhares se voltam para a pequena quantidade de descanso.
pessoas em volta. Surgem as primeiras risadas entre os plantonistas: “Alguém, por favor, avisa que já Minutos antes de terminar o jogo, as câmeras já
miram as pessoas que deixam o Beira-Rio. O esestá tendo Copa”.
coamento, jargão usado para se referir à saída de
Às 13h30min, o foco de atenção dos policiais mili- milhares de torcedores do estádio, termina às
tares e civis muda. Um grupo de franceses consegue 18h40. Engana-se quem pensa que o trabalho acadriblar a segurança e entrar com um Fusca conver- bou. Ainda há tempo para uma espiadinha na Fan
sível plotado com imagens de uma bola de futebol Fest, que funciona até as 22h.
no Caminho do Gol, espaço da avenida Borges de
Medeiros onde o trânsito foi interrompido em meia “O Centro Integrado de Comando é um auxílio
pista, como previsto para os dias de jogo na cidade. para os que estão nas ruas e muitas vezes não conseguem acompanhar tudo o que acontece. A partir
Outra cena: quase em frente ao estádio, é possível do momento que as pessoas avisam, através de ligaver um agente de trânsito abordando turistas e im- ções, é possível focar no local, voltar nas imagens
pedindo sua passagem. Pena que não tem áudio. Se e interpretar o que aconteceu e como solucionar o
tivesse, seria possível conferir o preparo - ou não - problema”, garante Roberta Rodrigues Obelheiro,
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coordenadora de comunicação social do CEIC.
Forças armadas
De acordo com o tenente coronel Ferraz, da coordenação de defesa de área, 3,8 mil homens do Exército estavam na cidade divididos entre batedores,
estratégicos, tropas de choque, defesa química biológica nuclear e radiológica e operações especiais.
São homens de Pelotas, Sapucaia, São Leopoldo,
Santa Cruz, São Gabriel, e Goiânia-GO. Segundo
o coronel, a maioria dos militares não aparecem
em frente ao público. Camuflados, são responsáveis pela fiscalização do estádio antes da abertura
dos portões. “Fazemos uma varredura, para ver se
não há perigo aos turistas, se não existe nenhuma
ameaça implantada. Somos nós que liberamos a entrada ou não”.
A tropa de choque fica à espreita. O pelotão alojado
dentro de um quartel só age quando há intervenção
do Governador do Estado, em casos de crises onde
exista perigo severo ao público.
Dentro do CEIC, dia 15 de junho de 2014, foi só
mais um dia comum de trabalho. A diferença era a
televisão ligada na Rede Globo para acompanhar,
de rabo de olho, o que ficou fora do alcance das
suas câmeras: o primeiro jogo de um mundial na
sua cidade.
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O jogo dentro dos shoppings
Nem todo mundo gosta de Copa, nem todo mundo conseguiu ingresso
Camila Capelão - [email protected]
D
omingo, 15 de junho, quatro horas da tarde em Porto Alegre. Depois de dois dias
chuvosos, o tempo abriu para receber
França e Honduras no estádio Beira-Rio. É Copa
do Mundo, amigos.
Não para todos. Enquanto o estádio enchia com
o público, os shoppings da capital viviam um dia
normal. “Só não trabalho em dias de jogos do Brasil. Quando é a Seleção, assisto no telão na rua”,
explica Newton Boa Nova, 60 anos, o taxista que
entrou no espírito da competição e fardou-se com
as cores verde e amarelo, pintou as rodas do carro,
colocou bandeiras e fitas e um altofalante na decoração de seu táxi, já acostumado a se camuflar em
datas festivas.
Newton trabalha no ponto de táxi do Iguatemi,
onde o comércio funcionava normalmente e muita
gente foi passear. Na zona norte da cidade, tudo
acontecia naturalmente. Nenhuma loja ou restaurante transmitia o jogo. A maior movimentação era
em uma loja de calçados com descontos de até 60%.
Na porta, havia muitos homens, entediados à espera de suas esposas e namoradas que aproveitavam
a “Copa do Mundo dos Sapatos”. Pais e crianças,
de mãos dadas, vestiam roupas casuais, nada de camisetas de seleções. E assim foram os 45 minutos
do primeiro tempo do jogo em Porto Alegre, no
Shopping Iguatemi.
No Shopping Praia de Belas, localizado na mesma
avenida do estádio onde acontecia o jogo, o clima
era um pouco diferente. No segundo tempo da partida, no térreo, os corredores estavam livres. Uma
cantina com três televisões que passavam o jogo
estava vazia, o movimento maior era na praça de
alimentação, onde um casal de amigos, descansava
depois de acompanhar o primeiro tempo do jogo
na Fan Fest. “Vim para Porto Alegre para fugir da
loucura do Rio de Janeiro, lá são muitas obras, muitas pessoas, muito tudo, não dá”, diz a estudante
Letícia Kohler, 23 anos. O amigo que a acompanhava é o porto-alegrense Maurício Machado, 27
anos, que apresentou a cidade a Letícia. O advogado elogiou a festa e confessou que queria mesmo
estar dentro do estádio, mas não foi sorteado para a
compra de ingressos.
Perto dali, três amigos ciclistas que aproveitavam
o domingo para andar de bicicleta e conferir como
estava a cidade no dia do jogo davam um tempo
no shopping. Fernando Silveira, 32 anos, não fazia
questão de ter ingresso, mas diz, sorridente, que
gostaria muito que a cidade ficasse organizada assim mais vezes. “Mexe com a cultura, com as pessoas, deixa-as mais educadas”, diz o engenheiro.
Fernando também saiu da Fan Fest e passou pelo
shopping com duas amigas para descansar.
Enquanto a maioria das pessoas que circulavam
pelos corredores passeavam, a vendedora Giovana
Martins, 27 anos, tirava a sua hora de folga. A jovem conta que o movimento do shopping durante
a semana foi aumentando gradativamente. Turistas
de vários lugares do Brasil e também estrangeiros
se aproximaram do estande onde trabalha para,
além de conhecer os deliciosos chocolates que
vende, saber um pouco da cultura gaúcha. “Acho
que o movimento vai aumentar assim que o jogo
terminar”.
E foi o que aconteceu.
Faltando 20 minutos para o fim da partida, o fluxo de pessoas com rostos pintados, camisetas de
times e seleções foi crescendo dentro do shopping.
Enquanto torcedores entravam no local para se alimentar, buscar o carro ou até mesmo passear, um
turista mexicano assistia a todo movimento de um
canto. Ele conta que costuma ir todos os dias no
centro comercial desde que está em Porto Alegre
para conversar e conhecer pessoas novas. Andres
Felipe, 26 anos, veio sozinho para o Brasil para
acompanhar diversos jogos em vários Estados. Começou a viagem por Porto Alegre, mas conta que
não verá nenhum jogo no Beira-Rio. “Embarco
na segunda-feira para Recife, desci aqui porque a
diferença da passagem estava muito grande”, disse
o mexicano, sem deixar de fazer uma provocação:
afirmou que está torcendo para Argentina sair campeã do Brasil. Mas por que um mexicano torceria
pela seleção de Messi? Os quatro anos que morou
na Argentina foram suficientes para se apaixonar
pelos hermanos e internalizar a rivalidade com os
brasileiros.
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Já são 18h, o shopping está lotado. Grande parte
do movimento está na fila de pagamento do estacionamento. Segundo a segurança do local, desde
três horas antes da partida, já não havia lugar para
estacionar. Com as ruas bloqueadas somente para
pessoas autorizadas, o Praia de Belas era uma boa
alternativa para os motoristas. A fila atravessava o
centro do saguão e seguia até o início de um dos
corredores que dão acesso à rua.
Os 90 minutos de jogo transcorreram tranquilamente para quem estava dentro do shopping. O
problema começou mesmo depois que o juiz apitou
o fim da partida: era hora de enfrentar a fila do
estacionamento e, no caso da vendedora de chocolates, voltar ao trabalho.
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O jogo dentro de uma “casa de espetáculos”
Jogo? Que jogo?
Marcelo Rota - [email protected]
“S
omos especialistas numa linguagem que é da graça. Os poucos torcedores franceses que chegaram
universal, meu bem, a linguagem do corpo”, após o jogo foram o suficiente para que elas pudessem,
resumiu a estudante de enfermagem que, enfim, dizer com propriedade um ça va, mon amour.
durante o dia, trabalha em uma conhecida “casa de espetáculos” de Porto Alegre. O básico para executar o
trabalho no dia do primeiro jogo da Copa do Mundo
2014 na capital gaúcha estava na ponta da língua: mon
amour, oh my god, te quiero.
O domingo em que ocorreria a partida entre França e
Honduras foi de grande expectativa na Sauna Guaíba.
Às 15h, uma hora antes de começar o jogo, o local já
estava com a televisão ligada em canal esportivo, cartazes de mulheres seminuas segurando uma bola de futebol com frases de efeito e bandeirinhas de países na
decoração.
Além de um calendário específico para o maior evento
esportivo do mundo, a empresa investiu até em uma
campanha publicitária especial: “Seleção Brasileira –
Confira nossa escalação especial para a Copa do Mundo”. E já no domingo do primeiro jogo na capital gaúcha, a casa contou com público acima da média, entre
os quais alguns estrangeiros curiosos para conhecer
essa seleção.
Para muitas profissionais do sexo, a visibilidade do trabalho durante a Copa do Mundo no Brasil é mais do
que sinônimo de aquecimento do mercado, representa
também a oportunidade para se discutir a profissionalização da profissão. Entre as conversas naquele domingo, algumas meninas até defendiam a legalização da
atividade, mas o foco era outro: os franceses. “Estamos
esperando o Didier Deschamps. Dizem que ele é bem
chegado numa festa”.
Desde o começo da Copa, já haviam feito uma visita
para conferir a “seleção especial da casa” turistas australianos, franceses, holandeses e argentinos. Segundo
as prostitutas, todos muito gentis e rápidos. “Eles vêm
aqui, fazem o que tem que fazer e vão logo embora”.
Diferente de outras casas e de outras cidades sede, as
profissionais não aumentaram o preço tampouco o local passou a cobrar mais do que os usuais R$ 110, com
direito a chope livre.
Naquele domingo atípico de trabalho - a sauna não costuma abrir no dia do churrasco da família -, com a TV
ligada no jogo, ninguém ali se importou para os 3 gols
da França em cima de Honduras, nem para a expulsão
do Palacios tampouco para as 14 faltas do jogo. As gurias também não ligaram para a ausência do treinador
da equipe francesa, Didier Deschamps, que não deu o ar
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