Cinema Memória - O Super-8 na Paraíba nos Anos 1970 e 1980

Transcrição

Cinema Memória - O Super-8 na Paraíba nos Anos 1970 e 1980
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
Reitora
MARGARETH DE FÁTIMA FORMIGA MELO DINIZ
Vice-Reitor
EDUARDO RAMALHO RABENHORST
Diretor do CCTA
JOSÉ DAVID CAMPOS FERNANDES
Vice-Diretor do CCTA
ELI-ERI MOURA
EDITORA DA UFPB
Diretora
IZABEL FRANÇA DE LIMA
Vice-Diretor
JOSÉ LUIZ DA SILVA
Supervisão de Editoração
ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JÚNIOR
Supervisão de Produção
JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO
CONSELHO EDITORIAL DA UNIVERSIDADE DA UFPB
Maria de Fátima Agra (Ciências da Saúde)
Jan Edson Rodrigues Leite (Linguística, Letras e Artes)
Maria Regina V. Barbosa (Ciências Biológicas)
Valdiney Veloso Gouveia (Ciências Humanas)
José Humberto Vilar da Silva (Ciências Agrárias)
Gustavo Henrique de Araújo Freire (Ciências Sociais e Aplicadas)
João Marcos Bezerra do Ó (Ciências Exatas e da Terra)
Celso Augusto G. Santos (Ciências Agrárias)
Ricardo de Sousa Rosa (Interdisciplinar)
2
Lara Santos de Amorim e
Fernando Trevas Falcone
organizadores
CINEMA E
MEMÓRIA
O SUPER-8 NA PARAÍBA
NOS ANOS 1970 E 1980
Editora da UFPB
João Pessoa
2013
3
CE
EXPEDIENTE
Coordenadores
Colaborador
Lara Santos de Amorim e Fernando Trevas Falcone
Águia Mendes
Gerente do Projeto
Projeto gráfico e diagramação
Paulo Henrique R. Sousa
João Faissal / Imaginária
Assistente Técnico
Revisão
Chico Salles
Danielle Vieira
Telecinagem
FOTOS
Roberto Buzzini (RB MovieHouse)
Imagens retiradas a partir do acervo fílmico
C574
Cinema e memória: o super-8 na Paraíba nos anos
1970 e 1980 / Lara Amorim e Fernando Trevas Falcone,
organizadores. - João Pessoa: Editora da UFPB, 2013.
164p. Il.
ISBN:
1. Cinema - memória. 2. Imagem em super-8 - produção Paraíba. 3. Tecnologia e estética. 4. Temática social. I. Amorim,
Lara. II. Falcone, Fernando Trevas.
CDU: 791.43
Todos os direitos e responsabilidades dos autores.
EDITORA DA UFPB
Caixa Postal 5081
Cidade Universitária - João Pessoa – Paraíba – Brasil - CEP: 58.051 – 970
www.editora.ufpb.br
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
4
ÍNDICE ÍNDI
PÁGINA 6
PÁGINA 102
APRESENTAçÃO
A contribuição francesa do Cinema
Direto
PÁGINA 10
Cinema e as condições de produção
da imagem em Super-8 na Paraíba:
aproximações possíveis entre acervo
imagético e memória
Lara Amorim
PÁGINA 34
A experimentação cinematográfica
superoitista no Brasil:
espontaneidade e ironia como
resistência à modernização
conservadora em tempos de ditadura
Rubens Machado Jr.
PÁGINA 56
Terceiro ciclo de cinema na Paraíba:
tradição e rupturas
Pedro Nunes
João de Lima Gomes
PÁGINA 116
Cinema engajado: a temática social
como marco da produção paraibana
dos anos 1960, 70 e 80
Fernando Trevas Falcone
PÁGINA 134
Jomard Muniz de Britto – um livre
pensador a serviço do cinema e da
cultura
Entrevista com Jomard Muniz
PÁGINA 150
Preservando o “cinema puro”
Entrevista com Roberto Buzzini
PÁGINA 156
FILMOGRAFIA
PÁGINA 86
Tecnologia e estética: o Super-8 funda
a estilística do direto no cinema
paraibano nos anos 1980
Bertrand Lira
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esentação
POR Lara Amorim e Fernando Trevas Falcone
Em 2010, em parceria com a Balafon Produtora, o Laboratório de Antropologia Visual – Arandu e o Núcleo de Documentação Cinematográfica – NUDOC, ambos da UFPB, produziram em João Pessoa a Mostra Jean
Rouch, uma retrospectiva da obra do antropólogo cineasta que passou por várias capitais brasileiras entre 2009 e 2010. A “volta de Rouch à Paraíba”, com
37 filmes, entre eles filmes inéditos e desconhecidos de muitos pesquisadores da área de cinema e antropologia, movimentou a relação de muitos de nós,
professores da UFPB, com o cinema paraibano.
Afinal, em 1979, uma cooperação entre Rouch e a Universidade Federal da
Paraíba plantou no meio acadêmico e cultural da cidade uma maneira de registrar
imagens em audiovisual que, ao mesmo tempo em que lançou frutos como os que
veremos no acervo digitalizado, provocou também polêmicas entre realizadores
quanto ao estilo do Cinema Direto e ao uso do Super-8. Em meio a esta percepção, alguns professores do curso de antropologia e de cinema da UFPB resolveram
pesquisar e recuperar um pouco desta memória que envolveu aquele momento
efervescente de produção audiovisual na Paraíba. A ideia foi “tornar público” (no
sentido de dar ao público o direito de ter acesso) filmes e registros que foram feitos
no final da década de 1970 e ao longo de 1980 e que estavam depositados no acervo do NUDOC, na UFPB, além de arquivos particulares. Assim nasceu este projeto que se propôs a catalogar e digitalizar em torno de 100 filmes e registros (filmes
sem nenhum tipo de edição) – nem todos chegaram a ser digitalizados devido ao
estado físico do filme – em película, que, a partir de agora, estarão disponíveis em
um website para serem assistidos e visualizados por qualquer interessado, sejam
especialistas ou leigos.
6
apresen
Resultado do patrocínio do Programa Petrobras Cultural, Cinema Paraibano: Memória e Preservação traz para a discussão teórica e para a apreciação do público filmes realizados na Paraíba nas décadas de 1970 e 1980. A filmografia pesquisada,
com 92 títulos, é em sua maioria constituída de produções na bitola Super-8, que
estavam distantes dos circuitos exibidores, mesmo os mais alternativos. O mesmo
acontecia com os poucos títulos produzidos em 16 mm.
Em alguns desses filmes não identificamos ano, produção, direção ou título.
Considerando que se trata de acervo, optamos por catalogar e mesmo exibir
estes filmes sem que esta informação pudesse ser confirmada, pois a ideia é
recuperar a memória do filme, de sua realização e a questão autoral, neste caso
se tornaria uma informação que se perdeu no processo. Tais lacunas poderão
ser preenchidas com a circulação dessa publicação ou com a visita ao nosso
website, através de informações fornecidas por pessoas ligadas às produções com
ficha técnica incompleta.
Quase todos os filmes Super-8 aqui destacados não possuíam cópias, sendo, portanto, matrizes únicas. A sua projeção convencional, no caso de algum
dano, poderia comprometer a integridade autoral dos filmes. Dessa forma, fazia-se necessário transpor os filmes para o formato digital, possibilitando a sua
exibição e preservando as matrizes.
A parceria com o fotógrafo Roberto Buzzini foi fundamental para a materialização de um dos objetivos do Cinema Paraibano: Memória e Preservação. Buzzini foi
o responsável pela telecinagem dos filmes coletados ao longo da pesquisa empreendida entre os anos de 2012 e 2013 no acervo do NUDOC e em arquivos particulares. Aliando apuro técnico e sensibilidade artística, a telecinagem permitiu
7
resgatar uma parte significativa do cinema paraibano relegada ao esquecimento,
uma vez que estava fora de circulação há pelo menos 25 anos. Em entrevista, ele
deixa nesta publicação seu depoimento sobre a relação que estabeleceu com a
película e com o nosso projeto.
Indo além dos limites da filmografia aqui levantada e detalhada em sinopses
e fichas técnicas no final do livro, os autores dos textos desta publicação trazem
argutas reflexões sobre a produção cinematográfica paraibana e brasileira no formato alternativo do Super-8.
Abrindo o debate, a antropóloga Lara Amorim apresenta o Projeto Cinema Paraibano: Memória e Preservação, refletindo sobre a pesquisa que embasa os diferentes
momentos que vão da catalogação do acervo de filmes depositados no NUDOC,
telecinagem, realização da mostra de filmes em João Pessoa e editoração deste
livro à publicação final do conteúdo em um website. Neste sentido, relaciona os
ciclos de produção do documentário paraibano com questões que envolvem a memória e a patrimonialização de acervos imagéticos. Enfatiza, sob uma perspectiva
antropológica, a relação entre a produção audiovisual e questões de identidade e
a possibilidade de se pensar o produto audiovisual como um “bem patrimonial” e
um “dispositivo de memória coletiva”.
O texto inédito de Rubens Machado revela, em tom intimista, o desenvolvimento de um circuito de filmes e festivais no Brasil, em plena ditadura militar.
Machado ressalta o caráter provocativo e renovador da produção superoitista e seu
diálogo com as artes visuais, com a indústria cultural veiculada pela televisão e sua
relação com a revolução comportamental deflagrada na década de 1960.
Integrante de uma geração de realizadores paraibanos surgida no final da década de 1970, Pedro Nunes ressalta o tema da sexualidade e da subversão da
linguagem documental mais convencional em filmes do início da década de 1980.
É dele também a entrevista inédita aqui publicada, com o cineasta e agitador cultural pernambucano Jomard Muniz de Britto, autor de uma vasta filmografia em
Super-8, tendo atuado também na Paraíba como professor e realizador.
Bertrand Lira aponta a estruturação, na Paraíba, de um núcleo de produção fílmica baseado nos conceitos do Cinema Direto. Fruto de convênio entre
a Universidade Federal da Paraíba e a francesa Associação Varan, esse núcleo
possibilitou o desenvolvimento de uma geração de realizadores, em sua maioria ainda em atividade, caso do próprio Bertrand, autor de documentários e
mais recentemente, de filme ficcional.
Em seu texto, João de Lima Gomes, também cineasta da geração surgida em
fins da década de 1970, detalha os caminhos percorridos entre franceses e paraibanos para a implementação de Atelier de Cinema Direto na Paraíba, que resultou
na criação do NUDOC. A dupla condição de realizador e pesquisador não o impediu o trio de exercer a observação crítica de quem conhece profundamente os
filmes e o período em estudo.
Fechando a reflexão que esta publicação propõe, Fernando Trevas Falcone des8
taca a importância da temática social na produção paraibana, desde a eclosão do
ciclo de cinema documentário na Paraíba com o clássico Aruanda, passando pelos
filmes realizados nas bitolas Super-8 e 16 mm nas décadas de 1970 e 1980, enfatizando questões ligadas à miséria urbana, lutas camponesas, trabalho, política
cultural e meio ambiente.
Foi, portanto, fundamental para o nossa empreitada a estreita colaboração dos
autores desta antologia, outra proposta do Cinema Paraibano: Memória e Preservação.
Todos eles, desde o início, mostraram-se receptivos ao projeto, colaborando não
apenas com a cessão de seus textos, mas também com sugestões e incentivos. A
todos, nosso agradecimento.
Devemos fazer também menção à inestimável cooperação do professor João de
Lima Gomes, coordenador do NUDOC. Além de facilitar nosso acesso aos arquivos da instituição, ajudou-nos ao longo de várias etapas da pesquisa, revelando-se
parceiro desde a concepção inicial do projeto.
Alex Santos, Ana Glória Madruga, Elisa Cabral, Henrique Magalhães, Jomard
Muniz de Britto e Pedro Nunes generosamente emprestaram filmes de seus acervos
para o projeto. A eles, nossa gratidão. O produtor executivo deste projeto, Paulo
Henrique R. Sousa, atuando em sintonia com as diretrizes do mesmo, possibilitou-nos uma relação produtiva com a Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão
da UFPB – FUNAPE, nosso braço burocrático e proponente do projeto junto ao
Ministério da Cultura e à Petrobras, fundamental para a viabilidade da pesquisa.
No trabalho de garimpagem dos filmes selecionados para a telecinagem e
no processo de catalogação dos filmes contamos com o suporte eficiente e atento de Chico Sales. Cineasta e pesquisador, Sales revelou entusiasmo constante na tarefa nem sempre fácil de projetar, minutar e observar detalhes de mais
de uma centena de fitas, muitas delas sem título ou qualquer outra referência.
Além disso, foi o responsável pela inserção das cartelas de apresentação dos filmes
em suas versões digitalizadas.
O esforço em buscar detalhes desses títulos pode ser observado na filmografia
que ora publicamos, restrita, como dissemos, às fitas digitalizadas pelo projeto, não
sendo um levantamento definitivo, mas efetivamente parcial da produção paraibana dos anos 1970 e 1980. Nela estão ausentes nomes importantes do cinema da
Paraíba, como Vladimir Carvalho, Machado Bittencourt, Manfredo Caldas, entre
outros, que pelas mais diversas razões não foram objeto da pesquisa empreendida.
Mais que uma tentativa de mapear a produção paraibana como um todo, nosso
projeto é um recorte temático que, pelas condições práticas permitidas ao longo do
projeto – de apenas 18 meses de trabalho efetivo –, permitiu-nos chegar a essa filmografia, que deixamos à disposição de pesquisadores dispostos a percorrer novos
caminhos a partir dos filmes digitalizados.
Além do material impresso, o projeto disponibiliza ao público, através do website
www.cinepbmemoria.com.br, os textos aqui apresentados, e uma seleção de
filmes que poderão ser vistos em sua integralidade.
9
Cinema e as
condições de
produção da
imagem em
Super-8 na
Paraíba:
aproximações possíveis entre
acervo imagético e memória
POR Lara Amorim
10
Lara Amorim é Dra. em
Antropologia pela UnB e
professora do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/UFPB) e do
Curso de Antropologia da
UFPB/Litoral Norte.
Festa de Oxum
Everaldo Vasconcelos,
1982.
11
Introdução
1
Os dois autores
do projeto são
Lara Amorim
e Fernando
Trevas. Ambos
são professores
do curso de
graduação em
Antropologia
da UFPB/Litoral
Norte, o qual
possui uma
habilitação em
Antropologia
Visual. Lara
Amorim é doutora
em Antropologia
pela Universidade
de Brasília
e Fernando
Trevas estudou
jornalismo na
UFPB na segunda
metade dos anos
1980 e, em 1995,
concluiu mestrado
na ECA/USP com
a dissertação “A
Critica Paraibana
e o Cinema
Brasileiro - Anos
50 e 60”.
12
Em 1960 Aruanda, de Linduarte Noronha, colocou a Paraíba no mapa do cinema
brasileiro. Depois dele seguiram-se outros documentários, que formaram o chamado
Ciclo do Cinema Paraibano. Nas duas décadas seguintes, iniciativas isoladas e o trabalho articulado de realizadores e da Universidade Federal da Paraíba resultaram na
formação de acervo de filmes nas bitolas Super-8 e 16 mm, acervo reunido atualmente
no Núcleo de Documentação Cinematográfica – NUDOC/UFPB.
Em 2010, entendendo que este material encontrava-se isolado do seu público
natural, isto é, dos paraibanos e de todos os interessados no cinema brasileiro, dois
integrantes do Laboratório de Antropologia Visual – Arandu/UFPB/Litoral Norte
elaboraram um projeto que se propôs a empreender pesquisa e catalogação do conteúdo deste acervo, para em seguida digitalizar, através de processo de telecinagem, os
filmes selecionados1. O Projeto concorreu ao Programa Petrobrás Cultural em 2010
e recebeu um prêmio de R$ 309.282,65 na rubrica PRESERVAÇÃO E MEMÓRIA
– Memória das Artes.
Com o objetivo de divulgar o acervo referido para um público ampliado, o projeto denominado Cinema Paraibano: Memória e Preservação está sendo realizado em quatro
etapas, produzindo a partir disso, quatro produtos. A primeira etapa consistiu na
pesquisa e catalogação do acervo depositado no NUDOC e na telecinagem de, no
mínimo, 20 horas de filmes em Super-8 e 16 mm. A segunda etapa propôs a elaboração de uma publicação cujo conteúdo reuniria textos analíticos de especialistas no
tema e informações detalhadas sobre os filmes pesquisados durante a primeira etapa,
com sinopses e fichas técnicas de cada um deles.
A realização da mostra (a terceira etapa) prevê ainda a realização de uma mesa
redonda com reflexões sobre o cinema brasileiro e sobre os filmes que compõem o
acervo em Super-8 e 16 mm. Na quarta etapa, será publicado o website com o conteúdo resultante da pesquisa realizada pelo projeto: filmes digitalizados, textos analíticos, fotos do evento e outras ferramentas para a ampla difusão do acervo. Desde o
início do projeto, um blog tem feito a divulgação do andamento das etapas da pesquisa. Uma vez concluída a pesquisa, todo o acervo de filmes digitalizados será publicado no site. Este material ficará no ar durante dois anos após a finalização do projeto.
O projeto, que terá a duração de dois anos, se justifica por entender que com os
filmes restaurados e disponíveis para difusão, e com o apoio do material de reflexão,
parte significativa da produção audiovisual da Paraíba poderá ser ponto de partida
para trabalhos de pesquisadores e realizadores do audiovisual e de outras áreas do
conhecimento, tendo em vista a diversidade temática dos filmes.
Outro resultado importante desta pesquisa será a difusão do acervo pesquisado
para novas gerações e também para outras regiões do país e do exterior, graças à
divulgação do material através de um website. É neste sentido que se pretende propor,
no âmbito desta reflexão, que um acervo audiovisual também pode ser considerado
um patrimônio cultural, uma vez que, ao ser pensado como um conjunto de imagens
produzidas por um determinado grupo social em um dado momento histórico, adquire a característica de um acervo dotado de memória e visibilidade, capaz de revitalizar
valores e práticas culturais que correm o risco de serem esquecidas, ou mesmo permanecerem desconhecidas por determinados segmentos sociais.
O acervo do NUDOC digitalizado refere-se a filmes em formato Super-8 e 16 mm
que foram produzidos na Paraíba entre as décadas de 1970 e 1980 em um momento
de efervescência cultural local, ligado, em sua maioria, à dinâmica da Universidade
Federal da Paraíba e ao Convênio do Atelier Varan com a UFPB. Ao se propor uma
reflexão sobre esta produção, propõe-se também oferecer visibilidade a um momento
da produção audiovisual da Paraíba pouco conhecido da população local e das novas
gerações, uma vez que a circulação deste material ficou restrita aos círculos do que se
convencionou chamar de Cinema Direto e Cinema Marginal.
A possibilidade de refletir e discutir sobre o que foi registrado em película naquela
época, faz com que surja uma memória sobre a produção audiovisual na Paraíba e,
neste sentido, acrescenta ao repertório brasileiro de produção audiovisual mais um
conceito de cinema e de produção audiovisual regional, local, praticamente desconhecido no restante do país.
O projeto conta com a parceria local de instituições que possuem grande potencial de difusão e divulgação de uma mostra e do material impresso produzido no
âmbito da cidade de João Pessoa e do Litoral Norte da Paraíba. O NUDOC, o Laboratório de Antropologia Visual – Arandu, ambos da UFPB e a Fundação Espaço
Cultural (Funesc) – compartilharão o material resultante da pesquisa e da digitalização dos filmes, ampliando o acesso dos estudantes e do público local à mostra e à
publicação impressa.
Com o intuito de discutir alguns dos objetivos da pesquisa que deram origem ao
projeto Cinema Paraibano: Memória e Preservação, pretendo, ainda que de forma preliminar, sistematizar neste artigo algumas das questões teóricas – éticas, estéticas e antropológicas – que norteiam a pesquisa do acervo de audiovisual produzido na Paraíba
entre os anos 1970 e 1980.
Produção audiovisual na Paraíba
A produção de filmes em Super-8 e 16 mm na Paraíba, movimento posterior ao
Ciclo Paraibano de Cinema, liderado pelos documentaristas Linduarte Noronha e
Vladimir Carvalho, resultou em acervo depositado no Núcleo de Documentação
Cinematográfica - NUDOC da UFPB.
Afirmar que o filme Aruanda, do cineasta Linduarte Noronha, colocou a Paraíba
no mapa do cinema brasileiro, é reconhecer a relevância de uma produção audiovisual realizada no nordeste no início da década de 1960, que foi precursora do
Cinema Direto2, mas não é suficiente para se fazer justiça à importância do que
aconteceu, em seguida, na Paraíba, depois que o filme de Linduarte foi exibido no
circuito centro-sul, como um exemplo de que os paraibanos sabiam fazer cinema
2
O conceito de
Cinema Direto
denomina, a
princípio, uma
nova técnica
de registro
da realidade
pré-fílmica.
Este termo –
que substitui o
vocábulo ambíguo
cinema verdade,
no início dos anos
1960 – se aplica,
além de uma
simples técnica, a
toda uma corrente
que revolucionou
os métodos de
realização antes
completamente
estandardizada
sobre o modelo
industrial
exclusivo. A esta
técnica responde
uma estética
fundada numa
volta à função
primordial da
palavra e no
“contato direto e
autêntico” com a
realidade vivida.
(LIRA, 1986, p. 8).
13
3
Refiro-me à
expressão utilizada
por Fernão
Ramos em “O
horror, o horror!
Representação
do popular no
documentário
brasileiro
contemporâneo”
em Mas Afinal...
o que é mesmo
documentário?
(2008).
4
Citado por
MARINHO, José.
Dos homens e das
pedras: o ciclo
do documentário
paraibano [19591979]. Niterói:
EdUFF, 1998,
p.165-167.
sobre o “outro popular”3 de uma maneira inovadora.
Quando o projeto descrito acima foi elaborado, a ideia era se debruçar sobre
um acervo capaz de representar uma identidade audiovisual regional específica,
considerando que a Paraíba tem uma história singular no que se refere à produção
audiovisual brasileira. Além do notório sucesso de Aruanda, discutido em todas as
publicações sobre Cinema Novo no Brasil e destacado inclusive por Glauber Rocha
em artigo publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil em 19604, a Paraíba foi palco também de uma experiência bastante marcante (eu diria, inclusive,
do ponto de vista antropológico): o convênio realizado entre a Associação Varan de
Paris, do cineasta Jean Rouch, com a UFPB, que culminou na criação do Atelier de
Cinema Direto do NUDOC.
A partir de uma perspectiva antropológica, portanto, a pesquisa pretende reconstituir a memória da produção audiovisual no estado da Paraíba entre 1970 e 1980,
reconhecendo em sua produção estética uma pluralidade de tendências e contradições, as quais podem vir a revelar possíveis representações de identidade de um
cinema paraibano, ao mesmo tempo regional e brasileiro.
Para isso foi necessário recorrer a publicações recentes sobre o tema, das quais
destaco o livro de Fernão Pessoa Ramos (2008), Mas Afinal... o que é mesmo documentário?, Documentário Nordestino: mapeamento, história e análise, de Karla Holanda (2008) e o
Relatório Final do documentário Renovatório, de Francisco Sales de Lima Segundo (2007),
trabalho realizado para a obtenção do título de Bacharel no curso de Comunicação
Social da UFPB. Outras referências, citadas também nas obras acima, foram fundamentais para a compreensão do cenário sobre o qual nos debruçamos: Dos Homens e
das Pedras: o ciclo do documentário paraibano [1959-1979] de José Marinho (1998), Produção
cinematográfica superoitista em João Pessoa e a influência do contexto social/econômico/político e
cultural em sua temática, de Bertrand Lira (1986) e Cinema paraibano. Um núcleo em vias de
renovação e retomada, Dissertação de Mestrado de João de Lima Gomes, UFPB (1991).
Os Ciclos do documentário paraibano
O pioneiro
Ao descrever as primeiras produções da história do cinema paraibano, Bertrand Lira lembra que foi por volta de 1918 que surgiram as primeiras realizações
cinematográficas na Paraíba, com o fotógrafo oficial do governo, Pedro Tavares,
registrando os acontecimentos mais importantes da cidade. Nessa mesma época,
Walfredo Rodrigues – que também incursionara pelo teatro, fotografia, literatura, arquitetura e urbanismo – se dedicava ao cinema, montando um laboratório
onde revelava e copiava seus inúmeros filmes sobre coisas típicas, especialmente trabalhos ligados à agricultura. Sua produção era essencialmente documental
e jornalística (LIRA, 1986, p. 2).
O cinegrafista realizou, entre 1917 e 1931, nove edições de um Cine-Jor14
nal que chamou de “Filme Jornal do Brasil”, e que eram apresentados na sua
própria sala de exibição. Mas foi em 1928 que Walfredo Rodrigues inaugurou o primeiro ciclo do documentário na Paraíba com o primeiro longa-metragem realizado no estado: Sob o Céu Nordestino, com 80 minutos. O filme demorou quatro anos para ser finalizado e foi produzido pela Nordeste Filmes,
empresa criada por ele em João Pessoa. O documentário foi constituído de oito partes sendo a primeira uma ficção sobre
a presença indígena na Paraíba. Segundo Holanda (2008) o filme descrevia desde
os primeiros habitantes indígenas da região, a fauna, a flora, até documentar o comércio e a indústria do estado. Registrou também a pesca da baleia no litoral e uma
descrição da cidade de João Pessoa, com seus monumentos, praças e jardins.
Seu último filme Reminiscência de 30, realizado em 1931, registrava os discursos, as
viagens pelo interior e o enterro de João Pessoa. Segundo Marinho (1998, p. 42-43),
a trajetória cinematográfica de Walfredo Rodrigues ficou obscura nas primeiras décadas do século, sendo recuperada somente após o lançamento de Aruanda, em 1960.
Depois do pioneirismo de Walfredo, não houve mais quem produzisse filmes na
Paraíba nas décadas seguintes, exceto esparsas produções feitas por equipes vindas
do vizinho estado de Pernambuco.
Cineclubismo e o efeito Aruanda
Em Renovatório, Francisco Sales relata que ainda na década de 1920, em alguns países da Europa e também no Brasil, nasce o cineclubismo, entendido como
um novo conceito de se pensar e fazer cinema. A atividade questionava os modelos que se instauraram na estética, na economia, e na relação do espectador com a
obra cinematográfica, transformada em mero produto comercial e em veículo de
alienação e dominação. Segundo ele, com os cineclubes, inicia-se um processo em
que criação, produção, distribuição e consumo não se configuram como coisas separadas, mas como um processo no qual se torna possível ver e entender de forma
completa o cinema (LIMA SEGUNDO, 2007, p. 12).
Segundo Sales o cineclubismo se constituiu em uma subversão do cinema comercial,
que se limitava a produzir e exibir, sem, em nenhum momento, relacionar esses processos. E continua: “diante disso, com a encíclica papal Vigilanti Cura, a Igreja Católica
passa a estimular a criação de cineclubes nas paróquias, nas associações católicas e nas
respectivas dioceses, provocando uma expansão de um movimento cineclubista com
esta orientação religiosa, no início da década de 50” (Ibid., p. 12).
Desta forma, a encíclica promoveu um movimento cultural que formou cineclubes em diversas cidades brasileiras, com desdobramentos que
refletem na história do cinema nacional.
Em João Pessoa, um grupo de jovens sob a liderança de José Rafael de Menezes e dos padres Antônio Fragoso e Luís Fernandes, criaram o Cineclube de João
Pessoa, em 1952, tornando-se o polo animador de discussões cinematográficas
15
na Paraíba. Segundo o relato de Holanda (2008), entre estes jovens na casa dos 20
anos estão Linduarte Noronha, Vladmir Carvalho, João Ramiro Melo, Wills Leal,
Wilton Veloso e Geraldo Carvalho.
Deste movimento, surgiu, em maio de 1955, a Associação dos Críticos Cinematográficos da Paraíba (ACCP), que, de certa forma, representou uma dissidência dentro do movimento cineclubista local, pois este era indiferente à orientação
católica do Cineclube de João Pessoa.
Segundo o relato de Francisco Sales,
A ACCP acompanhava passo a passo os debates e comparecia, através de seus membros, nas colunas diárias e nos suplementos dominicais com comentários críticos e
ensaios sobre os filmes vistos no cineclube e no circuito comercial. E, só em 1964,
a ACCP se estende para o interior do Estado e cria a seção Campina Grande, tendo
em seu quadro os irmãos Rômulo e Romero Azevedo, Luiz Custódio, José Umbelino e
Bráulio Tavares, grupo esse que, em seguida, passa a liderar as atividades cinematográficas naquela cidade, juntamente com Machado Bittencourt, este último também
realizador, desde os primeiros momentos (LIMA SEGUNDO, 2007, p. 13).
5
Ver filmes e
cineastas que
fizeram parte do
grupo de Campina
Grande em
HOLANDA, Karla.
Documentário
Nordestino:
Mapeamento,
história e análise,
2008, p. 138.
16
No início da década de 1950 foi criado o Serviço de Cinema Educativo, dirigido pelo fotógrafo e cinegrafista João Córdula, responsável pela formação de novos
pontos de exibição, destacando-se aí o Cineclube do Liceu Paraibano. Córdula conviveu com Humberto Mauro e Roquete Pinto, no Rio de Janeiro, no início de 1950,
quando estagiou no Instituto Nacional de Cinema Educativo – INCE. O trabalho de
Córdula era manter um acervo em sua maioria proveniente do antigo Instituto Nacional de Cinema e promover a exibição em colégios e centros operários, enquanto
também dava apoio ao movimento cineclubista, cedendo cópias de filmes, projetores
e outros equipamentos (MARINHO, 1998, p. 30-47).
A efervescente movimentação dos cineclubes em João Pessoa e Campina
Grande5 foi fundamental na formação de quadros para a produção que viria na
década seguinte. De tanto se discutir e falar sobre cinema, surgiu, naturalmente,
a necessidade de também realizar filmes, e neste sentido, a Universidade Federal
da Paraíba, fundada em 1955, pelo então governador José Américo de Almeida,
foi importantíssima tanto aglutinando discussões sobre possíveis produções, como
dando subsídios para que elas se realizassem.
Segundo os pesquisadores, todo este contexto faz parte do embrião que desaguou no Cinema Novo. Linduarte Noronha, que também participou do movimento cineclubista, era estudante de Direito, repórter do Jornal A União e crítico
de cinema no Jornal O Estado da Paraíba. O autor de Aruanda participou de várias
discussões sobre o cinema de John Grierson, Robert Flaherty, entre outros, e acreditava que filmar na Paraíba não era um sonho impossível. Em depoimento a José
Marinho, ele afirma:
Eu ficava revoltado quando começava a ler, começava a ter conhecimento do grupo
inglês de documentário de Grierson, de Cavalcanti, o National Film Board, etc., os
grandes trabalhos dos pioneiros do cinema e a gente perguntava: “E por que é que
a gente não faz aquilo também?”. Era um pessoal que começou sem nada, começou
sem equipamento, começou até “sem invenção”, incipiente num equipamento sem
origem, nomes como Murnau, como Flaherty. Não tinham absolutamente nada (apud
MARINHO, 1998, p. 63).
Com o roteiro em mãos, Linduarte segue para o Rio de Janeiro onde consegue
angariar o apoio de Humberto Mauro, então diretor do Instituto Nacional de Cinema Educativo, para usar o equipamento da instituição. Com a câmera em mãos,
Linduarte segue para o Instituto Joaquim Nabuco, em Recife, no intuito de conseguir o dinheiro necessário para a produção, e lá consegue a verba. Já o negativo foi
fornecido pelo industrial paraibano Odilon Ribeiro Coutinho, que se compadeceu
da situação, e também foi uma figura muito importante na finalização de Aruanda.
E, com o Governo do Estado, ele conseguiu transporte, hospedagem e alimentação
(LIMA SEGUNDO, 2007).
Assim, Linduarte Noronha, o fotógrafo do filme Rucker Vieira6, os roteiristas
João Ramiro Mello e Vladimir Carvalho partem para filmar o que se tornaria um
dos marcos do movimento do Cinema Novo brasileiro, juntamente com Rio 40 graus
(1955) e Rio Zona Norte (1957), ambos de Nelson Pereira dos Santos, e O grande momento
(1959), de Roberto Santos.
Mas “Aruanda”, é bom que se diga, deflagrou o movimento nacional [o Cinema Novo],
por força de uma proposta eminentemente social e nordestina por excelência, fazendo com que chegasse ao Sul a nossa mais crucial questão existencial, a seca no Nordeste; suas consequências econômicas oriundas de feitos socialmente rudimentares,
como os de Zé Bento do Talhado, enfim, toda a problemática que ainda hoje submete
e massacra o nosso povo. Tudo é representado no filme de Linduarte – protótipo de
uma geração ávida de denúncias. (SANTOS apud LIMA SEGUNDO, 2007, p. 15).
Aruanda conta a história de Zé Bento, que junto com mulher e filhos, sai em busca
da terra onde viver, chegando finalmente a Serra do Talhado, onde fundaria um
quilombo. A narrativa reconstitui a saga de Zé Bento deixando sua terra até o momento da constituição do sistema de produção criado por ele e sua família na Serra
do Talhado, onde começaram a plantar algodão. Neste sistema cabe à mulher a produção da cerâmica e utensílios domésticos de barro, os quais serão vendidos na feira
da cidade mais próxima, Santa Luzia. Mas a força das imagens do filme está no fato
de que este registra a problemática do escravo negro, após a libertação dos engenhos
e fazendas do Nordeste, onde a família de Zé Bento representa uma das tantas que
foram abandonadas à própria sorte.
Para Francisco Sales,
6
Rucker Vieira é
pernambucano
e trabalhou
como fotógrafo
no Instituto
Tecnológico da
Aeronáutica - ITA,
em São José dos
Campos, SP, em
1950. Realizou
curso de fotografia
para cinema
nos estúdios
da Kino Filmes,
patrocinado
por Assis
Chateaubriand.
Conheceu
Linduarte
Noronha quando
trabalharam juntos
na Rádio Tabajara,
Paraíba (HOLANDA,
2008).
17
7
Entre outros,
destacam-se
os seguintes
documentários
que compõem este
Ciclo: O Cajueiro
Nordestino, de
Linduarte Noronha
(1962); Romeiros
da Guia, de
Vladmir Carvalho e
João Ramiro Mello
(1962), A Cabra na
região semi-árida,
de Rucker Vieira
(1968); Os homens
do caranguejo
(1969) e A poética
popular (1970) de
Ipojuca Pontes, A
bolandeira (1967)
e Sertão do Rio
Peixe (1968), de
Vladimir Carvalho.
O gênero, definitivamente, faz escola e, a partir daí, surgem vários documentários na
mesma linha de Aruanda, com temáticas das mais diversas, como: Cajueiro nordestino
(1962), do próprio Linduarte Noronha; Romeiros da Guia (1962), de Vladimir Carvalho e
João Ramiro Mello; Os homens de caranguejo (1968), de Ipojuca Pontes; A bolandeira
(1967), de Vladimir Carvalho, entre tantos outros (LIMA SEGUNDO, 2007, p. 15).
Outros filmes tiveram destaque neste ciclo cinematográfico. Foi o caso de O
país de São Saruê (1971), de Vladimir Carvalho, que embarca na realidade do povo
do sertão do extremo oeste da Paraíba, retratando-o de maneira simples, no seu
trabalho diário e na luta pelo sustento. Carvalho retrata seus personagens como
homens e mulheres corajosos que apesar das precárias condições de vida, enfrentam as dificuldades impostas com coragem. “É um filme-denúncia, um tratado, um registro histórico, que valoriza o esforço daqueles que eram (e ainda são)
prejudicados pela miséria” (Ibid., p. 16).
Vladimir Carvalho, considerado o maior expoente dos cineastas paraibanos, focou inicialmente o seu interesse no homem nordestino. Em 1969 mudou-se para
Brasília, onde, até hoje, exerce a carreira acadêmica de professor da UnB. Mesmo
tendo realizado os filmes Incelência para um trem de ferro (1972) e A pedra da riqueza (1975)
em seu estado natal, quando já morava em Brasília – fazendo parte ainda do ciclo do
documentário paraibano, depois de alguns anos na capital federal, acabou voltando-se para o Centro-Oeste em seus filmes, tratando os mesmos problemas da terra
em regiões desconhecidas. Constam em seu currículo 22 filmes, dos quais seis são
de longa-metragem e outros seis fazem parte do Ciclo do Documentário Paraibano
(HOLANDA, 2008).
Ainda segundo Karla Holanda, com Aruanda inicia-se o Ciclo do Documentário
Paraibano que se encerra com o Homem de Areia (1979), de Vladimir Carvalho7.
Atelier Varan e Jean Rouch na Paraíba
Em 1980 a Universidade Federal da Paraíba criou o NUDOC (Núcleo de Documentação Cinematográfica), que durante três anos realizou um trabalho que consistia
em desenvolver uma política de produção de documentários e cursos de formação de
mão de obra (MARINHO, 1998).
De acordo com a Enciclopédia do Cinema Brasileiro, o NUDOC surgiu graças a
um convênio estabelecido entre a UFPB e o Centro de Formação em Cinema Direto
de Paris (Associação Varan). Karla Holanda reproduz o seguinte texto da Enciclopédia:
O convênio previa a implantação de um ateliê de Cinema Direto em João Pessoa e o
estágio dos alunos locais na capital francesa [...]. O projeto, que tinha à sua frente o
diretor do Comitê de Filme Etnográfico da França, Jean Rouch, consistia na aquisição
de um sistema completo de produção em bitola Super-8. A proposta acabou por divi18
dir os cineastas locais, que acreditavam que as metas estabelecidas por Rouch divergiam das propostas traçadas pela geração documentarista dos anos 60. Eles viam no
NUDOC a possibilidade da retomada da produção em bitolas mais profissionais (SOUZA
apud HOLANDA, 2008, p. 140).
No entanto, os pesquisadores observam que o acordo firmado entre a Universidade e a Associação Varan era que esta última iniciaria suas atividades em Super-8, já que, para os franceses, esta bitola seria ideal nos países onde não havia
uma infraestrutura desenvolvida de audiovisual, mas que posteriormente passariam a oferecer uma estrutura de 16 mm à UFPB. Esta parte do convênio foi
cumprida apenas parcialmente, provavelmente em função dos custos de se montar
uma estrutura completa de 16 mm.
Bertrand Lira descreve como foi realizado o primeiro treinamento oferecido pelo
Atelier Varan aos alunos da UFPB, em 1982:
Este primeiro treinamento teve aproximadamente quatro meses de duração e consistia em uma introdução teórica, quando se assistia e discutia filmes, na sua maioria
documentários, e vários deles produzidos durante estágios semelhantes em Paris. No
restante do curso, era dada ênfase à prática de realização: nos primeiros quinze dias
de aulas o aluno era estimulado a realizar um pequeno exercício de câmera sobre uma
ação qualquer (uma pessoa que entra numa cantina e bebe um café, por exemplo).
Aproximadamente um mês depois, fazia-se o segundo exercício, esse com o tema
escolhido pelo próprio aluno que deveria colocá-lo em discussão antes de filmá-lo.
Para isto eram fornecidos dois cassetes (cartuchos) em Super-8 com 3 minutos de
duração e o equipamento necessário. O terceiro exercício ou filme final não tinha,
teoricamente, limite em relação aos cartuchos utilizados e cada estagiário poderia,
portanto, utilizar quantos fossem indispensáveis. Mas a prática mostrou que quem
não conseguia apresentar um filme acabado, utilizando cerca de 20 cartuchos, acabava desistindo de fazê-lo no decorrer do curso. (LIRA, 1986, p. 8).
Em artigo sobre a produção cinematográfica superoitista da Paraíba, Bertrand
Lira faz uma análise crítica dos preceitos técnicos e estéticos do Cinema Direto. O
produto desses estágios realizados entre 1981 e 1983 era de filmes voltados para uma
abordagem sociológica do sujeito, cuja tônica era a relação do homem com a família, o trabalho e a questão da sobrevivência. Enquadram-se nesta linha documental
filmes como Ciclo do Caranguejo, de Elisa Cabral (1982), que descreve o processo de
comercialização do caranguejo desde a sua pesca na cidade de Livramento até a sua
comercialização em bares e restaurantes de João Pessoa, e Emergência, de Torquato
Joel. Emergência retrata a vida de camponeses que habitam na bacia do açude de Orós
(interior do Ceará) na época da grande estiagem de 1981. Ele enfoca o problema da
migração e das secas na região (LIRA, 1986).
A influência do Atelier de Cinema Direto entre o movimento superoitista na Pa19
raíba teve uma faceta bastante polêmica. Não havia unanimidade quanto aos princípios do Cinema Direto no contexto da produção cinematográfica paraibana, o que
gerou reações adversas dentro e fora do NUDOC. A mais clara delas foi a criação
da marca NUCI (Núcleo de Cinema Indireto), por Jomard Muniz de Britto, que já
produzia filmes experimentais em Recife, como O palhaço degolado (1977), ou ainda o
Inventário do feudalismo cultural nordestino (1978).
No NUCI, Jomard rompe totalmente com os conceitos estabelecidos frente à estética
e à linguagem cinematográficas, até então vigentes na Paraíba: filmes que sugerem
uma mutação entre o real e o imaginário, e entre a ficção e o documentário. Um cinema que se joga totalmente no espetáculo do espontâneo – o cinema do inusitado.
(LIMA SEGUNDO, 2007, p. 23).
Entre os filmes realizados por Jomard, destaca-se Paraíba Masculina Feminina Neutra
Visões do
Mangue (1983), que toca de forma direta nos tabus da província, com personagens que desa-
Elisa Cabral, 1982.
20
fiam padrões morais estabelecidos de forma irônica e irreverente.
Em seu estudo realizado para filmar Renovatório, Francisco Sales afirma que o
Atelier de Cinema Direto foi responsável por grande parte da produção superoitista da época, tendo É Romão pra qui é Romão pra colá (1981), de Vânia Perazzo, e
Festa de Oxum (1982), de Everaldo Vasconcelos, como exemplos de filmes que seguiram à risca os preceitos do Cinema Direto. Os movimentos sociais urbanos
também são temas de vários filmes, como A greve (1983), de direção coletiva dos
estagiários do NUDOC. Já Elisa Cabral produz num projeto que ela mesma denominou de “Cinema e Sociologia”, com Visões do mangue (1982) e Tele-visões (1986),
entre outros. (LIMA SEGUNDO, 2007).
Holanda, por sua vez, conclui que a Paraíba teve uma fase superoitista entre os
anos 1970 e 1980, na qual o NUDOC foi o responsável pela formação de boa parte
da nova geração de realizadores. Enumera, por fim, os nomes de alguns realizadores
que surgiram e se fortaleceram através do NUDOC, sendo atuantes até hoje: Marcus
Vilar (24 Horas, 1986), Torquato Joel (Itacoatiara – a Pedra no Caminho, 1987), Vânia
Perazzo (Palácio do Riso, 1989), Eliza Maria Cabral (Com passos de moenda, 2001) e Bertrand Lira (Bom dia, Maria de Nazaré, 2003) (HOLANDA, 2008).
O movimento superoitista
O Super-8 chega ao Brasil em um momento politicamente delicado e de
grave crise econômica. Foi em plena ditadura e logo após a instauração do
Ato Institucional Nº 5, decretado pelo então presidente Costa e Silva, em dezembro de 1968, que o Super-8 terminou por reorientar o fazer cinematográfico, com a simplificação do processo de produção, em que qualquer
um teria condições de manusear uma câmera.
De acordo com Francisco Sales, diretor do documentário Renovatório sobre o movimento superoitista na Paraíba, os produtores culturais enfrentaram, na época, uma
situação de aderir ou desvencilhar-se da cultura oficial, manipulada pela censura.
Ele observa que:
Na contramão da história e engrossando o caldo da cultura marginal, a “imprensa
nanica”, os poetas de mimeógrafo, os grupos teatrais mambembes, tratavam de
subverter as relações de produção da cultura. E junto com o Super8, fizeram parte
de um mesmo esforço de descoberta e ocupação de espaços alternativos para
produção artística e intelectual, em tempos de “vazio cultural”, arrocho político,
dispersão e crise de utopias. (LIMA SEGUNDO, 2007, p. 18-20).
Para o cineasta, a produção audiovisual independente da década de 1970, no
Brasil, passa a se dividir em duas vertentes básicas: os documentaristas, muito
ligados ainda à apreensão de temas relacionados à cultura popular e a questões sociais, quase num prolongamento das discussões pré-tropicalistas da década anterior,
e onde o 16 mm ainda se apresentava como bitola ideal; e os superoitistas, que utilizaram o Super-8 na busca de novas formas de linguagem e estética cinematográficas,
subvertendo, assim, as relações de produção e circulação de suas obras, devido ao
barateamento e ao fácil acesso da bitola (Ibidem).
21
Na Paraíba, as primeiras produções em Super-8 surgem a partir de 1973, feitas
por pessoas que já tinham experiência com 16 mm ou mesmo que trabalhavam em
jornais, fazendo crítica cinematográfica. Para essas pessoas, o Super-8 era apenas
uma contingência da época. Já que não havia condições de se produzir em 16 mm,
e muito menos em 35 mm, a pequena bitola se tornou na única possibilidade para
produção de filmes na Paraíba. Mas é só em 1979 que o cinema Super-8 surge em
forma de movimento. (Ibid., p. 20).
Com o início da abertura política, a partir de 1979, e a diminuição da censura
prévia à Imprensa, um novo cenário se configura no Brasil. Foi neste contexto
político que João de Lima e Pedro Nunes, então estudantes do curso de Comunicação Social da UFPB, realizam Gadanho (1979), iniciando o que será reconhecido
como movimento superoitista paraibano. Documentando a atividade dos catadores do Lixão do Roger, o filme renderá comparações com Aruanda (1960), “não do
ponto de vista estético ou da linguagem, mas como deflagrador de um novo ciclo
cinematográfico” (LIRA, 1986, p. 5).
Para Bertrand Lira, Gadanho deu um impulso nesta nova fase da produção de
cinema da Paraíba:
Esse filme foi para o cinema superoitista, no final da década de 70 e início de 80, o
que Aruanda representou para o cinema paraibano na década de 60. Não se quer aqui
comparar os dois filmes em termos de estética ou linguagem cinematográfica, mas o
que cada um representou para o movimento cinematográfico da Paraíba quando foram realizados. Talvez a comparação pareça absurda pela importância e repercussão
que Aruanda teve para o cinema documental brasileiro. O que se quer deixar bem
patente aqui é a relevância que esse curta-metragem teve para o cinema superoitista.
A partir dele, o cinema paraibano em super-8, já que a produção nas bitolas profissionais (16 e 35mm) se deu em pequeno número nesse período, ressurge em forma de
movimento. (LIRA, 1986, p. 6).
Em meio ao clima de subversão deflagrado pela produção de Super-8, a exibição não podia ficar de fora, considerando a marginalidade do material produzido,
em relação à rede exibidora tradicional. Foram criados, portanto, diversos festivais
de filmes Super-8, como o Festival Nacional de Primeiros Filmes, realizado em 1970,
e o Super Festival Nacional do Filme Super-8, realizado pelo GRIFE (Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais), entre 1973 e 1983, ambos em
São Paulo, e que teve, neste último, a grande vitrine do Super-8 nacional.
A produção superoitista foi caracterizada, entretanto, por uma pluralidade estética, como define Francisco Salles em seu Relatório Final sobre o documentário:
A multiplicidade e diversidade de experimentos são marcas distintivas da produção
audiovisual superoitista, impostas, em parte, pela segmentação fragmentária das experiências, forçada pelo regime político autoritário. Um ponto marcante desta produ22
ção é a riqueza e a variedade das mais diversas proposições estéticas: o cinema rudimentar, o cineviver, a antropofagia erótica, o terrir, o cinema ovo, o megalomaníaco
neocinemanovíssimo, o cinema de salão, o anarco-superoitismo, etc. Estas propostas
são idealizadas por realizadores das mais diversas partes do país, como Jomard Muniz de Britto, Torquato Neto, Hélio Oiticica, Ivan Cardoso, Amin Stepple, entre tantos
outros. (LIMA SEGUNDO, 2007, p. 19).
Surgem neste contexto de abertura, grupos de militância sexual, racial e partidária, que devido à conjuntura política anterior, não tiveram a chance de se manifestar.
Em João Pessoa, destaca-se o grupo Nós Também, integrado por militantes homossexuais com a proposta original de militar através da arte. “O grupo atuou por quase
três anos, publicando boletins, envelopes de arte (envelopes que continham fotos,
poesias, arte-xerox etc), pichando muros, fixando outdoors e com a produção e realização de um filme: Baltazar da Lomba” (LIRA, 1986, p. 6).
Segundo Bertrand Lira, a discussão sobre a sexualidade no cinema paraibano
começa com Esperando João (de Jomard Muniz) em 1981 e passa por Perequeté (Bertand
Lira) no mesmo ano, mas vai atingir uma abordagem mais ampla com Closes de
Pedro Nunes, o qual se tornou o filme, em Super-8, mais discutido na Paraíba. Para
Lira “o misto de documentário e ficção desse cineasta não traz nada de novo em ter-
Baltazar
da Lomba
Direção coletiva,
1982.
23
mos de linguagem cinematográfica, mas contribuiu, inquestionavelmente, para uma
ampla discussão da homossexualidade”. Closes aborda o relacionamento amoroso de
dois rapazes que, ao optarem pela homossexualidade, são severamente reprimidos. A
inovação está na abordagem documental que apresenta depoimentos de habitantes
da cidade e transeuntes.
Renovatório, documentário de 20 minutos realizado por Francisco Sales de Lima
Festa de Segundo, faz uma reflexão criativa e reveladora sobre esta geração que foi protagoOxum nista do segundo ciclo de cinema paraibano, o chamado movimento superoitista,
Everaldo
Vasconcelos, 1982.
que foi também o mesmo grupo de jovens cinegrafistas que foram formados nos
princípios do Cinema Direto disseminados pelo Atelier Varan no Brasil. Em seu filme, Francisco Sales traz 18 títulos que pertencem ao acervo do NUDOC e procura
elucidar algumas tendências estéticas e éticas daquela produção.
Patrimônio e bem patrimonial
Vale salientar ainda no que diz respeito à vocação do projeto aqui debatido, que
se trata de um projeto de preservação de memória audiovisual, o que revela, portanto, o fortalecimento recente das políticas públicas de valorização, preservação e
difusão dos acervos de audiovisual no Brasil. Neste sentido, a ideia de patrimônio se
24
insinua como um “dispositivo de memória coletiva”, isto é,
Tanto o patrimônio cultural, quanto a memória coletiva e seus suportes materiais –
bibliotecas, museus, arquivos – devem estar enraizados em práticas culturais concretas, e é essa imersão no cotidiano que imprime aura e significação social e política a
ambos, e que também os conecta com a cidadania – enquanto prática e exercício do
direito de acesso aos bens patrimoniais e aos dispositivos da memória coletiva
(VELOSO, 2008, p. 137).
Entende-se o conceito de patrimônio a partir da definição que faz Fonseca
(1997) em O Patrimônio em Processo, quando afirma que este deve ser compreendido
a partir dos processos, das práticas e dos atores que contribuem para a formulação do que vem a ser a política de preservação do Patrimônio Cultural, uma vez
que as políticas de patrimônio atuam, basicamente, no nível simbólico.
Segundo Fonseca,
A noção de patrimônio é, portanto, datada, produzida, assim como a ideia de
nação, no final do século XVIII, durante a Revolução Francesa, e foi precedida, na
civilização ocidental, pela autonomização das noções de arte e história. O histórico e o artístico assumem, nesse caso, uma dimensão instrumental, e passam a ser
utilizados na construção de uma representação de nação (FONSECA, 1997, p. 37).
Assim, atualmente a ideia de patrimônio não está focada apenas no conjunto
de objetos que o constituem e nos conjuntos de discursos que o legitimam, mas na
percepção de que os bens patrimoniais estão permeados de um valor que envolve
um sentimento de pertencimento a uma comunidade, a uma nação. Estes bens
patrimoniais viriam, portanto, legitimar essa comunidade ou nação.
Por meio da publicação do Decreto Nº 3.551, de agosto de 2000, o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, instituiu o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro e criou o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Esta iniciativa procurou instituir “um instrumento legal destinado ao reconhecimento e à valorização do patrimônio imaterial”.
Trata-se de uma iniciativa oficial que abre novas frentes de pesquisa e de recursos
para a documentação, registro e reconhecimento de manifestações culturais que têm
características performáticas e itinerantes. Em decorrência disso, acredito que novas
políticas públicas podem ser desenvolvidas a partir desta experiência.
É, portanto, na tensão entre forças sociais contraditórias que se constitui a realidade contemporânea e que, ainda assim, podem florescer possibilidades mais criativas e dinâmicas de se testemunhar uma cultura. Reconhecer a diversidade cultural e
legitimar a identidade e as formas de pertencimento associadas a narrativas de memória excluídas e subalternas significa reconhecer os sujeitos sociais representativos
de um segmento social legítimo.
25
A possibilidade de se incluir acervos de imagens, de músicas, de fotografias e manifestações artísticas, em geral, entre as possíveis narrativas de uma memória cultural
a qual corresponda bens patrimoniais é mais um desafio que se apresenta para a
antropologia da imagem e do cinema.
Itacoatiara
- a Pedra no
Caminho
Torquato Joel,
1987.
26
Memória subterrânea e sentimento de pertencimento
Não é novidade para a antropologia que o que sobrevive enquanto memória coletiva
de tempos passados não é o conjunto dos monumentos e documentos que existiram, mas o
efeito de uma escolha realizada pelos historiadores e pelas forças que atuaram em cada época
histórica (LE GOFF, 1995).
No artigo “História Oral, uma metodologia para o estudo da memória”, Menezes relaciona
a contribuição dos estudos de Halbwachs e Pollak para o estudo da memória. Halbwachs
entende que a memória individual está sempre relacionada à memória do grupo. No entanto,
a afirmação da coercitividade da memória coletiva não é aceita por outros teóricos.
Pollak compreende a memória como um campo de forças e sua história diversa e conflituosa. Enquanto Halbwachs fala de uma negociação entre memória coletiva e individual, Pollak
identifica o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva e nacional.
A perspectiva teórico-metodológica de Pollak reabilita a periferia e o que é marginal na
história oficial, assim, não adere à visão de dominação exclusiva de um sobre o outro, no
campo da memória, mas à possibilidade de resistências constantes em um campo de forças
materiais e simbólicas (MENEZES, 2005, p. 33).
E por fim, ambos os autores reconhecem a relação entre memória e identidade social, considerando o caráter seletivo da memória. Seria, portanto, neste sentimento de pertencimento a um grupo, comunidade ou nação, que se constituiria
o conceito de identidade.
Neste momento surge a ideia de uma memória subterrânea, de uma memória
marginalizada que pode finalmente vencer a resistência da dominação da história oficial e revelar uma memória e uma identidade social que foi invisibilizada, silenciada ou
mesmo excluída em meio a um processo seletivo de construção de uma “comunidade
imaginada”, de uma Nação, ou de uma cultura nacional.
Em 1933, o filósofo alemão Walter Benjamin já percebia, de maneira visionária, a
revolução que iria percorrer os meios de comunicação da sociedade moderna.
Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos, uma depois da outra, todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo de seu valor para recebermos em troca a moeda
miúda do “atual” (BENJAMIN, 1985, p. 119, grifo nosso).
As artes, o cinema, a publicidade e o jornalismo assimilaram aquilo que Benjamin chamou de nova forma de comunicação: a informação. Benjamin afirmava que enquanto a informação aspira a uma verificação imediata, outra forma de comunicação,
como a narrativa, recorre ao miraculoso. Ao afirmar, de dentro da primeira metade
do século XX, que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos, ele escreve:
O saber que vinha de longe – do longe especial das terras estranhas, ou do longe temporal
contido na tradição –, dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse
controlável pela experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de
mais nada, ela precisa ser compreensível “em si e para si”. (BENJAMIN, 1985, p. 202- 203).
E termina o mesmo parágrafo com a seguinte afirmação: “Se a arte da narrativa é hoje
rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio”. Benjamin
entendia que as formas de comunicação de seu tempo estavam cada vez mais a serviço da
informação, e quase nada do que acontecia estava a serviço da narrativa, a qual, por sua
vez, era considerada por ele uma arte que evitava explicações, uma forma artesanal de
comunicação. Em outro momento desse mesmo texto O Narrador, Benjamin refere-se ao
ritmo do trabalho artesanal como sendo um tipo de trabalho que envolve o “dom de narrar”, pois enquanto se trabalhava, se contava histórias, se cantava ou se confraternizava.
27
8
A respeito
da narrativa
homogênea
da nação, ver
Anderson (1979).
Sobre uma reflexão
da formação da
identidade pósmoderna, ver Hall
(2000), Chatterjee
(2004) e Canclini
(1997). Ainda sobre
algumas narrativas
possíveis de
identidade
nacional brasileira,
ver Veloso e
Madeira (1999) e
Vianna (1995).
Ele conclui então: “com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade de
ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as
histórias não são mais conservadas.” (BENJAMIN, 1985, p. 205).
Benjamin se mostra apreensivo com a mudança da sensibilidade do homem moderno
e a esta sensibilidade opõe a oralidade e a Epopeia, uma narrativa que ainda não conhecia a previsibilidade e o individualismo que invadirá o Romance. Sua abordagem nos faz
notar que a sensibilidade do homem moderno de fato o afasta de suas tradições. Mas em
plena era da globalização, podemos dizer que algumas estratégias têm sido traçadas para
diminuir o impacto desta mudança.
Relações econômicas e sociais descontínuas estão em jogo no capitalismo tardio, e fluxos de informação cada vez mais acelerados interferem nas antigas narrativas homogêneas sobre a identidade, antes estáveis e portadoras de uma verdade absoluta que era disseminada e facilmente aceita por instituições e atores
sociais acostumados à estabilidade.
Portanto, as narrativas de identidade são hoje articuladas a partir de novos arranjos e estratégias simbólicas, decorrentes do cenário econômico e social que se instalou
no fim do século XX, influenciado pela difusão em massa das novas tecnologias e
pela transnacionalização dos capitais. Canclini (1997) e Harvey (2005) abordam esse
fenômeno a partir do viés teórico da economia política, contribuindo para que não
se perca de vista a fundamental influência dos meios de produção capitalista sobre a
atual distribuição de signos culturais e étnicos ao redor do planeta.
Sérgio Costa (2002) discute as novas configurações pós-nacionais que estão substituindo hoje um consenso de Estado-nação construído na Europa, no século XIX,
e no Brasil, ao longo do século XX. Costa mostra como as novas configurações simbólicas de consciência nacional e comunidade política estão segmentadas e desterritorializadas, se constituindo de forma heterogênea em democracias maduras, como
as europeias, e em países latino-americanos, como o Brasil.
Neste sentido, não há dúvida que as “comunidades imaginadas” às quais se refere
Anderson (1979) estão hoje em intenso processo de reformulação8. Seja a partir das
novas identidades fragmentadas e descentradas que teriam surgido na modernidade
tardia, às quais se refere Hall, ou a partir do conceito de tempo heterogêneo e irregular, sugerido por Chatterjee, fruto de sua abordagem sobre a experiência indiana
de projeto de nação.
O Acervo
De acordo com cineastas da cidade, a Paraíba possui outros acervos de filmes,
que devido a questões legais encontram-se inacessíveis, é o caso dos filmes do Cinema Educativo, realizados na década de 1950, e o acervo do cineasta Machado
Bittencourt. Este projeto se propôs a fazer um trabalho abrangente de preservação,
pesquisa e difusão do acervo do NUDOC, devolvendo à circulação, filmes que marcaram a produção audiovisual de uma geração que se empenhou em fazer cinema
28
em película com os meios disponíveis.
O acervo restaurado e telecinado está estimado em cerca de 80 títulos em formato
Super-8 e 4 títulos em 16 mm. São narrativas fílmicas curtas em diferentes gêneros,
reunindo registros sem nenhuma edição, documentários, vídeos institucionais e algumas poucas ficções.
O número total de horas estimado para a telecinagem do acervo é de 25 horas,
incluindo 2 horas de material em 16 mm. A pesquisa delimitou alguns critérios para
a catalogação dos filmes: a) Condições materiais da película do filme: os filmes que
apresentaram danos materiais irrecuperáveis causados pelo tempo foram excluídos
do processo de telecinagem; b) A maioria dos títulos do acervo são registros de eventos e documentários. Foram criadas categorias capazes de contemplar a diversidade
das temáticas apresentadas pelos filmes: trabalho, manifestações tradicionais e religiosas, eventos históricos e cívicos, eventos artísticos, registros institucionais, animação, sexualidade, registros urbanos e registros do meio ambiente; c) As categorias
criadas para catalogar o acervo têm como objetivo representar uma produção em
película que caracterizou a identidade e a especificidade da produção cinematográfica do estado da Paraíba entre 1970 e 1980.
Considerações Finais
Entendendo que o cinema revela um imaginário cultural e é também produto da
cultura, as ações de recuperação, restauração, telecinagem e difusão do acervo de
filmes aqui descritos adquirem uma relevância histórica e cultural bastante ampla,
visto que se constituem em um painel diversificado da cultura, sistema de valores e
do cotidiano da Paraíba no período.
Ao delimitar o cenário de produção do cinema paraibano em três ciclos, ao longo
do século XX, algumas questões se insinuaram de forma significativa na pesquisa.
Dentre estas, o debate sociológico na produção das imagens e a polêmica sobre o Cinema Direto, o uso da bitola Super-8 como uma alternativa de “desmistificação” do
cinema (tanto no âmbito da produção, como da exibição) e a questão da sexualidade
(ou da homossexualidade) como uma temática que, inexistente no primeiro ciclo, foi
filmada a partir de uma linguagem que não se adequava aos princípios do Cinema
Direto. A este respeito vale considerar a abordagem de Rubens Machado (2004) em
Realismo e desprendimento, grotesquerie e sublimação, quando ao se referir ao “primarismo
estético” e ao “realismo antológico” da produção audiovisual exibida no “Mix Brasil” em São Paulo, na década de 1970, nos dá algumas pistas dos elementos estéticos
e escolhas narrativas que permeiam o material digitalizado dos realizadores paraibanos que aderiram ao cinema experimental ou marginal.
A relação entre os meios de produção da imagem, a conjuntura política brasileira
e a linguagem estética são alguns dos elementos que norteiam boa parte do debate
travado sobre a produção audiovisual na Paraíba durante os três ciclos que se desenvolveram no século XX. Os diferentes ciclos deflagrados pela produção de Aruanda,
29
em 1960, e do movimento superoitista, em 1979, com Gadanho e a atuação do Centro
de Formação em Cinema Direto de Paris (Associação Varan), em 1980, demonstram
que a produção cinematográfica paraibana respondeu a determinado contexto político e econômico regional e nacional, onde os meios de produção da imagem, bem
pouco acessíveis até a década de 1970, deixaram de ser escassos e passaram a estar
disponíveis para a classe universitária, a partir da iniciativa do Estado, como foi o
caso do Convênio que possibilitou a formação do Atelier Varan (através da atuação
das universidades tanto brasileira quanto francesa).
O fato de o Atelier Varan disponibilizar equipamentos mais acessíveis como o Super-8 foi também motivo de crítica e polêmica entre os realizadores, pois teria afastado a possibilidade destes terem acesso a equipamentos e películas mais profissionais,
como o 16 mm, por exemplo. Segundo Rubem Machado (2004), haveria sim uma
relação entre o realismo e o “primitivismo” que caracterizaram a estética do cinema
marginal e o uso de equipamentos mais acessíveis economicamente como o Super-8.
Em seu livro Mas afinal... o que é mesmo o documentário? Fernão Ramos discute o
conceito de Cinema Direto, esclarecendo de forma bastante convincente a diferença
entre as terminologias cinema verdade e Cinema Direto. Sem tempo, no âmbito deste artigo, para entrar no cerne do debate, gostaria de destacar a abordagem de Ramos sobre o Cinema Direto de Jean Rouch. Segundo o autor, “em seus filmes mais
significativos, para além do etnólogo, Rouch trabalha o outro na forma do cinema,
tornando-se também cineasta no sentido pleno da palavra: aquele que nos remete a
uma tradição estilística e narrativa particular” (RAMOS, 2008, p. 310).
Ramos argumenta que nos principais filmes de Rouch encontram-se opções estilísticas particulares, que tensionam de modo periférico os limites da representação
da alteridade, nos campos conceituais delineados pela etnologia. Ele acredita que
Rouch “carrega nas costas um peso que sua obra não suporta: o de definir os limites
epistemológicos do que seria uma ciência, a etnologia” (Ibidem). Neste sentido, devemos problematizar a sensação que o Atelier Varan causou entre uma geração de
realizadores paraibanos: a sensação de que o Cinema Direto, com seus princípios de
contato direto e autêntico com a realidade vivida, não permitia a utilização da criatividade e
dos recursos da linguagem da ficção. A obra completa de Rouch é o principal argumento contra essa percepção da influência de Rouch como cineasta.
No que concerne ao acervo, uma vez digitalizado e disponibilizado em um site
construído a partir de um design acessível e criativo, a pesquisa resultante desse projeto pretende alcançar um público jovem, talvez especializado, mas que costuma ser
assediado por uma indústria cultural hegemônica e massificadora. O acesso a este
acervo de documentários feitos em condições de produção alternativa e marginal há
mais de três décadas atrás, com temáticas e tendências estéticas diversas e inovadores talvez só seja possível devido ao processo de tecinagem e de disponibilização do
acervo para domínio público em um website, que contará com estratégias de divulgação. Temáticas como festas populares urbanas e rurais, manifestações culturais
tradicionais, sexualidade, aspectos da cultura popular, registros urbanos e da vida
30
e do trabalho cotidiano no sertão e no interior da Paraíba e ficções que revelam os
mais diferentes olhares sobre a vida na região nordeste estarão disponíveis como um
acervo digital da memória da cultura regional.
O projeto ambiciona ampliar o acesso do público de estudantes e pesquisadores
do estado da Paraíba a um relevante acervo audiovisual e cinematográfico, o que
poderia contribuir para a formação de uma massa crítica de pesquisadores e realizadores, capazes de articular uma reflexão sobre a efervescente produção audiovisual
das décadas de 1970 e 1980 em meio à profusão de signos globalizados e fetichizados
da produção audiovisual contemporânea.
A produção do website, por sua vez, prevê uma maneira de disponibilizar o acervo
em questão não só para o Brasil, mas também em um tempo e espaço global, uma
vez que o conteúdo estará disponível para usuários de qualquer parte do mundo, a
exemplo do que ocorre com o website portacurtas.com.br.
Por fim, entendemos que dar visibilidade a um acervo de audiovisual desta natureza, permitiria o intercâmbio de arquivos de filmes em formato digital (como
acontece com o MP3), possibilitando ao estado da Paraíba receber mostras de outras
regiões e países, que por sua vez também terão acesso aos filmes realizados na região.
É neste sentido, por fim, que o acervo de imagens aqui discutido deve ser percebido como um “bem patrimonial” e um “dispositivo de memória coletiva”, no
sentido de legitimar uma produção estética local como patrimônio cultural do
estado e do país. “Em seus edifícios, quadros, e narrativas, a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver à cultura. E o que é mais importante: ela
o faz rindo. Talvez esse riso tenha aqui e ali um som bárbaro. Perfeito”.
(BENJAMIN, 1985, p. 119, grifo nosso).
31
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33
A experimentação
cinematográfica
superoitista no
Brasil:
espontaneidade e ironia como
resistência à modernização
conservadora em tempos de
ditadura
POR Rubens Machado Jr.
Rubens Machado Jr. é pesquisador, curador e professor
titular de Teoria e História do
Cinema da ECA-USP.
34
Agrippina é
Roma-Manhattan
Hélio Oiticica, 1972.
35
Há uma geração (à qual pertenço) que já começou a crescer vendo TV, se a partir dos anos 1950 vivesse em cidades grandes ou metrópoles regionais brasileiras e,
claro, sendo de classe média para cima na pirâmide social. Geração que em 1968,
com o recrudescimento da ditadura após o AI-5, era ainda adolescente e só foi cursar
faculdade já nos anos 1970. Viu então a modernização conservadora do país no progresso da TV colorida e de um cinema que lhe pareceu diversificado e interessante,
principalmente o dos circuitos mais alternativos, que se desenvolviam nas maiores
cidades regionais. Era um cinema que ecoava em efeitos de maturação e ironia os
ventos utópicos recentes dos anos 1960, destilando sua acidez e fermentação em
calmaria paradoxal. Eram tempos de inquietude, restritivo mundo afora, de repressão mais ou menos ostensiva e de refluxo social que se exprimiam com inteligência
controversa, por vezes provocadora até mesmo no cinema estadunidense, mas, sobretudo no europeu e no minoritário nacional que podíamos ver.
Com os anos 1970 chegam às lojas os projetores e câmeras Super-8, tornando
mais acessível econômica e tecnicamente o registro doméstico ou a realização de experiências criativas como “cineasta”. Sua rápida apropriação por artistas plásticos, e
inesperados jovens cineastas mais ou menos selvagens, vão aos poucos afigurar aventuras pessoais ou coletivas um tanto contraditórias e, contudo, promissoras. Este movimento era silencioso, subterrâneo de início, e sua inquietude só foi ganhar espaços
de repercussão mínima na recepção de alguns festivais e sessões de certos cineclubes
mais para a segunda metade dos anos 1970. Se não foi muito exibido, foi realizado
com maior liberdade que os outros tipos de produção audiovisual, já pelo seu caráter independente e amadorístico, constituindo experiências marcantes para públicos
específicos. Os festivais de Super-8 ao longo da década se proliferariam em mais de
meia dúzia. Os do Grife, organizados em São Paulo por Abrão Berman, duraram de
1973 até os anos 1980, e foram o primeiro, maior e mais longevo evento superoitista,
trazendo, por incrível que pareça, estrelas de Hollywood ao Brasil, coisa que mesmo os maiores festivais profissionais não lograram. Certas sessões foram para mim
inesquecíveis; pude ali ver filmes como Cubo de Fumaça (1971), de Marcello Nitsche,
e Grátia Plena (1980), de Carlos Porto de Andrade Jr. e Leonardo Crescenti Neto. Ou
nas Jornadas de Salvador, em que pude ver O Rei do Cagaço (1977) e Exposed (1978), de
Edgard Navarro, ou Céu sobre Água (1978), de José Agrippino de Paula.
Mas o Agrippina é Roma-Manhattan (1972), que Hélio Oiticica realizou em Nova
York, bastante conhecido nos últimos dez anos, só pude ver em 1992, numa de suas
primeiras projeções públicas, na grande mostra de cinema marginal brasileiro realizada por Neville d’Almeida e Júlio Bressane, em Paris (Retrospectiva de Hélio
no Jeu de Paume). A surpresa com a fita me convenceu em definitivo da importância
do Super-8 para a compreensão do cinema experimental brasileiro em seu conjunto “naturalmente” disperso. Ainda hoje, entretanto, mesmo com as facilidades das
redes virtuais, quem se interessar pela história do cinema experimental ou de vanguarda realizado no Brasil, encontrará dificuldades de acesso, além de uma filmografia desigualmente mapeada em seus vários lugares e épocas, aspectos e verten36
tes. Vai encontrar bibliografia e debates do maior interesse sobre certos momentos,
autores e movimentos – o Limite, de Mário Peixoto, o Cinema Novo, o Marginal.
E os anos 1970 configuram, em todo caso, uma espécie de apogeu dessa produção, pelo menos do ponto de vista quantitativo. A produção experimental realizada
em Super-8 nessa década é enorme, se comparada ao vídeo ou ao 16 e 35 mm.
E não tem sido vista desde então, quando foi por seu turno muito mal vista. Foi
projetada só em sessões alternativas, alguns festivais de modo atomizado; e, depois
disso, não mais. Nem o público cinéfilo ou de especialistas, nem mesmo os pesquisadores da área experimental ou vanguarda conhecem essa produção. Portanto, é
difícil a tarefa de expor algo que ainda não está integrado ao debate, não possui
abordagens comparativas, algo sequer recenseado sistematicamente, quanto mais
historiado e criticado, reverberado por alguma fortuna crítica. Eu próprio; não faz
tanto tempo que iniciei a pesquisa e, em meio a outras, com interrupções grandes,
posso falar algo do que pude processar até aqui.
Se falarmos de vanguarda no cinema brasileiro moderno, o Cinema Novo (e o
Marginal, quase como um eco invertido dele) fornecem ao longo dos anos 1960 a
régua e o compasso que vão repercutir até os dias que correm. Falo aqui de vanguarda e experimental sem nas suas teorias me aprofundar, o que implicaria em esforço
considerável, já que existem aspectos e compreensões bastante diferentes, disseminados sem maior sistematização enquanto debate específico. Faço uso, então, dos
termos num âmbito genérico em nossa tradição cultural. Vanguarda e experimental
são por vezes dois termos sinônimos, outras vezes antagônicos, segundo o contexto.
Pode-se abstrair que, em geral, a ambição do experimental (com inúmeras exceções)
é menos explícita que os vanguardistas no campo político ou das instituições sociais,
e por fim também no aspecto projetual, no sentido de articular o fazer artístico da
criação a um horizonte histórico, de modo manifesto e conceituado, racionalizado.
Se a postura experimental se dissemina pelo país a partir do final dos anos 1960,
junto com o Tropicalismo e o recrudescimento da ditadura, assumindo contornos
de vanguarda nos mais diferentes sentidos, isto tudo se pode discutir, mas não quer
dizer que possamos verificar nas obras resultados à altura das pretensões. Avaliar esse
problema é entrar no campo da crítica, da análise de filmes e da estética realizada
nos filmes – não apenas na proposta ou convicção dos autores, adotando-as (como,
aliás, de hábito se tem feito).
Há muitas coisas diferentes debaixo desse conceito guarda-chuva do cinema experimental, em que cabe um pouco de tudo (filme de artista, agit-prop, cinema de
poesia, amadorismo radical, etc.). Aqui é como se fala no futebol: é preciso pôr a
bola no chão. E, partir dos filmes, sobretudo, o elementar objeto e terreno, para
que consigamos estabelecer algum debate mais produtivo, para além do tiroteio
surdo. Ou seja, tomar o objeto em sua própria medida. Trata-se evidentemente
de uma discussão de longo prazo, que não poderá dispensar os estalos e sobressaltos intempestivos, embora hoje apenas comece a engatinhar, levantando os filmes, vendo e procurando estabelecer os seus parâmetros próprios – tanto em face
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das expectativas autorais, como dos olhares de hoje confrontados aos da sua época,
seja da parte do público ou da crítica. A produção audiovisual dos anos 1970 tem,
contudo, essa marca de grande fenômeno, de estruturação espetacular da televisão como rede, e o avanço da Rede Globo dentro dessa transformação. O alcance
e a importância industrial que a TV brasileira ganha nos anos 1970 fazem com
que o cinema se perceba bastante sobrepujado em termos de indústria cultural no
país. Digamos que este é o pano de fundo que temos em mente, difícil para se lidar,
mas sobre o qual – aliás, atrás do qual, à margem do qual – se desenvolveria o ci-
Céu nema mais inquieto, livre, contestatário, radical. É preciso, enfim, compreender o
sobre água que acontecia no país, para sabermos o que o afetava e o que faziam aqueles que
José Agrippino de
Paula, 1978
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se opunham de algum modo a esse status quo.
No campo do cinema, a Embrafilme se estrutura a partir de 1969. Os filmes
que ela produz têm muito a ver com uma opção dos cinemanovistas, de fortalecimento do mercado como resistência do cinema nacional. Artisticamente busca-se
na literatura brasileira, por exemplo, ou em gêneros populares de narrativa cinematográfica, um diálogo com a identidade brasileira e, ao mesmo tempo, industrialmente tenta-se algo mais comercial e de diálogo com o grande público. Em
paralelo ao cinema comercial propriamente dito, à pornochanchada e a um resto
do cinema industrial que podia sobreviver, alcançou-se por fim, com a Embrafilme,
um exercício industrial considerável nos termos da tradição brasileira. Consolidaram-se algumas modalidades de gênero, como a própria pornochanchada. Então,
Globo, Embrafilme, pornochanchada e certo cinema de mercado que evoluiu nos
anos 1970 constroem de certo modo um fortalecimento da indústria cultural. Houve participação importante de intelectuais de esquerda em novos arranjos, com ou
sem cooptação (esse debate iria longe). É a maneira pela qual o poder civil-militar
dá certo espaço, utiliza essa força produtiva intelectual para os desígnios da construção de uma identidade nacional. Será importante considerarmos isso, pois tudo
o que é feito, então, se relaciona à tradição criada nos anos 1960, àquela de um
cinema de maior pretensão questionadora, que procura interrogar de maneira mais
radical o sentido da vida brasileira, da atualidade – do próprio sentido do audiovisual brasileiro, ou mesmo de se estar criando um filme, como chega a fazer
Fernando Coni Campos em Ladrões de Cinema (1977).
O cinema independente, de então, era uma das formas de se opor à voga dominante num país que se integrava pela modernização conservadora. Em sua maior
radicalidade, os independentes acabavam se contrapondo também às oposições e
às esquerdas mais integradas à indústria cultural. Esse rótulo de cinema independente é um entre vários que se davam na época. Eu fui cineclubista e participei,
na segunda metade dos anos 1970, da criação de uma oposição mais à esquerda,
o grupo Deflagração, que quase ganhou as eleições do Conselho Nacional dos
Cineclubes em 1978, congregando trotskistas, anarquistas e independentes contra
a tradicional frente liderada pelo PCB e apoiada por cineclubes mais conservadores. Nossa proposta, para usar uma só palavra, seria assembleísta, buscando
integrar o público à estrutura da atividade de programação e debate. Visávamos
formar não só culturas cinematográficas alternativas, ligadas a cada específica
comunidade frequentadora, mas também formar entre os expectadores esboços
de um laboratório de análise crítica ou de práticas de discussão, práticas insipientes, mas necessárias para que se fizesse jus ao nome Cineclube. A escolha da
programação seria assim em parte do público, incluindo a produção dominante
nos cinemas e na TV. Pensávamos em nos desembaraçar de uma ideia viciosa de
programação pré-fabricada. O cineclube seria não só o Sistema de veiculação (eventual circuito de fitas engajadas ou nacionais), mas a Formação de críticos, cineastas e
públicos, aptos a debater em seus diferentes círculos de participação, dos pequenos
núcleos de atividade ao público maior das sessões.
Depois de 1978, com a derrota da chapa Deflagração na Jornada Nacional de
Caxias do Sul, foi-se implantando um sistema de distribuição importante para a
construção de uma difusão paralela do cinema brasileiro, que vai da Dinafilme, nos
anos 1970, aos dias de hoje, com a Programadora Brasil. Desde então cineclube é,
como hoje, circuito de exibição paralelo, e raramente um circuito de interação comunitária, circuito de debates e de formação de uma cultura audiovisual crítica. O
modelo de Dziga Vertov, com O Homem da Câmara (1929), que inspirava a Deflagração, assim como a revista Cine-Olho (1976-1980), de que fui editor, nos parecia formidável. Sugeria algo como distribuir varas de pescar em vez de peixes. Em lugar de
um filme de Pudovkin, ou algum realismo socialista, que já trariam “a visão correta”,
teríamos a visão entusiástica de como se fabricam imagens. Havia experiências que
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apontavam nesta direção no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Goiás
e no Nordeste, como as iniciadas na USP pelo Cineclubefau e o Luz Vermelha, da
ECA, que formaram em 1977 um circuito de cineclubes universitários, o Cinusp.
Salvo engano, tais esboços se pulverizaram demais como política cineclubista de lá
para cá. O CAC, da PUC-RJ, onde nasceu a Cine-Olho, era um dos modelos mais
interessantes, e um dos poucos a trazer farta programação superoitista.
Na Cine-Olho participamos de uma busca difusa por um cinema mais livre, em que
havia um jogo para se designar ou adivinhar um movimento não comprometido com
os padrões do mercado, ainda não era bem o do Cinema Marginal, mas que deveria
incluí-lo. Até se chegar a alguma aceitação do nome “cinema marginal”, por exemplo, foram cogitados diversos outros, “cinema do lixo”, “cinema cafajeste”, “cinema
da boca”, “udigrudi” (que o Glauber adaptou de underground para caçoar da nova
onda como velha colonização). Também era um cinema que não existia ainda, que seria uma espécie de nova opção, oscilava entre várias designações, desarticulado como
movimento de fato (no sentido praticado pelo Cinema Novo nos tempos da “Estética
da Fome”, bandeira agora substituída pela “Mercado é Cultura”). Então se pensava:
“cinema alternativo”, “cinema não alinhado”, “cinema experimental”, “cinema marginalizado”, “cinema diferente”, ou mesmo “cinema independente”. São incontáveis:
só numa linha mais irônica teríamos “cinema ovo”, “megalomaníaco neo-cinemanovíssimo”, “vanguarda acadêmica”, “antropofagia erótica”, “terrir”, etc.
Sobre essa designação variada temos uma produção enorme, na qual se incluem
os filmes em Super-8, mas também os feitos em outras bitolas. Às vezes em vídeo,
um pouco mais no fim dos anos 1970, e mais nos anos 1980, quando se torna opção
dominante. E o 16 mm, sem dúvida, também continua importante. Essa produção
independente não está muito bem mapeada e, por vezes, nem sequer levantada.
Sabemos generalidades do tipo: predominam nessa época fitas de curta duração e
em preto e branco, à exceção do Super-8, que se populariza já em colorido. Não há
muitos trabalhos de reflexão; eles são em geral manifestações pontuais: o cinema de
Arthur Omar ou João Batista de Andrade, que agora está sendo estudado; enfim,
temos pouca coisa discutida sobre o tema.
A filmografia Super-8 ainda tem um problema: ela vai desaparecer por desafiar
o próprio estatuto do que é cinema. É mais perecível, realizado artesanalmente, depois veiculado e guardado em casa. A projeção do filme não é a de uma cópia; você
projeta o original. Isso concorria para que as sessões fossem raras já na época, e de lá
para cá com a quebra dos projetores, que são eletrodomésticos frágeis, baratos, obsolescentes, para o pai de família mostrar a viagem, o churrasco que filmou. Eles se
estragavam com facilidade já na projeção. Fica aquele típico arranhado, para sempre
visível! Era mesmo um perigo, arranhar não é nada, se a engrenagem do projetor
arrebenta a película, você perdeu parte da fita. Aqueles fotogramas, nunca mais,
tchau! Se a polícia apreende? Houve alguns casos. O transporte extraviou? Esqueceu
na cadeira do bar? Numa gaveta da chácara? Há filmes em Super-8 desaparecidos
por falta de cópia, ou negativo – mandar fazer uma cópia em celuloide ou em vídeo
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poucos praticavam, eram ainda caras, e bastante ruins.
Aquela história que conhecemos da reprodutibilidade técnica, ensejando a perda
da aura, pensada por Walter Benjamin diante do cinema, é uma questão interessante
de se pensar no caso do Super-8. Ao circular, o autor já acaba preferindo ir junto
com o filme, seja por receio de extravio, ou medo da polícia pegar, paúra de que o
projecionista vá mutilar, mascar seu filme; acaba por levá-lo debaixo do braço, irá
postar-se ao lado do projetor, ou vai querer ele mesmo projetar com suas próprias
mãos. Alguns ficavam divididos entre ficar colado ao projetor ou posicionar-se para
sentir a plateia, afinal sabia ser uma rara oportunidade para captar reações. Superoitista, então, não ficava emprestando o filme; temia estrago, perda; ele levava e
projetava. Então, de certo modo, isso faz com que as sessões tivessem sido irrepetíveis
com o hic et nunc, um aqui-e-agora raro – implicando algum tipo de aura. São sessões
de que as pessoas se lembram como experiência ímpar: “eu vi esse filme aí!”, “mas
você viu mesmo esse filme?”. Então se imporia uma discussão em torno do conceito
de exposição da obra de arte, que estudamos no célebre texto de Benjamim, “A obra
de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Há um valor de exposição numa
projeção do Super-8 que é diferenciada, isso acaba repercutindo de alguma forma no
modo como se concebe e se percebe um filme. Então, se dimensiona uma espécie de
radicalidade já na opção de se fazer um Super-8, diante da precariedade e do risco
que se assume; em diversos aspectos isso acaba afetando as estéticas que se desenvolvem entre os superoitistas e o seu público.
É importante falar disso, porque é um fator que diferencia. Em princípio, muitos
filmes em Super-8 poderiam ter sido feitos em 16 ou 35 mm, não seria tão decisivo
assim no âmbito do seu resultado final. Em sessão de bitolas misturadas, como as
que tínhamos na Jornada de Salvador, só um olhar meio perito distinguiria a textura
de cada exata bitola projetada. Porém, o que se conseguiu a partir dessa precariedade técnica de câmeras amadoras, em que era só apertar o botão e sair filmando,
multiplicava-se como certa experiência social numa cultura de massa, na qual todos
pareciam circunscritos, ainda que se considere, como se deve, toda exclusão inerente.
A sua novidade técnica dentre as câmeras amadoras está em descartar um saber técnico mínimo que ainda se exigia para operá-las. Isso faz com que uma série de desdobramentos estéticos destes amadorismos técnicos fosse se desenvolvendo ao longo
dos anos 1970, e diferenciasse de fato essa produção das outras.
Uma específica estética do precário vai se incorporando também nas outras bitolas, existe uma mimese entre os diferentes suportes, que faz com que, em diferentes
práticas, possa se encontrar uma estética indelével do Super-8. Por exemplo, em
filmes como A Rainha Diaba (1973), de Antônio Carlos de Fontoura, ou no curta de
Glauber Rocha sobre o Di Cavalcanti, Di (1977), há procedimentos de soltura da
câmera 35 mm que mostram a impregnação de novos repertórios gestuais do olhar
cinematográfico, difíceis de verificar antes do Super-8. Isso se pode afirmar independente de sabermos que Glauber já tinha filmado em Super-8 no exílio; e de Fontoura
ter declarado combinar então com o seu fotógrafo, José Medeiros, uma deliberada
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imitação da câmera Super-8. Há, com efeito, uma questão que eu estou aqui delineando, compreender a técnica junto com toda uma época, seus humores e aqueles
determinados fatores que se compõem: a contracultura, o sufoco ditatorial, a simpatia pelo espontâneo, a abertura lenta, gradual e relativa – mas que seria prudente e
preciso discutir mais concretamente a partir dos filmes realizados.
Pois bem, o que podemos chamar então de um efeito Super-8, se insinua e grassa como certa facilitação técnica, a redundar em faturas rústicas, mas desenvoltas, explorando e elaborando o que o estrito profissionalismo em voga chamaria
de erro, mera barbeiragem ou incompetência técnica. Ver na espontaneidade
expressiva do Efeito Super-8 a fatura incompetente – como se ouvia no métier
– viria em duplo sentido corresponder ao ponto de vista “bitolado”. Apertar o
botão e sair filmando, eis o gesto libertário! A frase de Oswald de Andrade sobre
a “contribuição milionária de todos os erros” pode agora se converter em prática, melhor dizendo, fará parte da nova práxis do cinema. Diferente das câmeras
amadoras – desde as 16 mm e as Pathé Baby nos anos 1920 até as Regular 8 – antigas 8 mm fabricadas ainda nos anos 1960, as Super-8 vêm facilitar sobremaneira
o manuseio. Dado que a exposição automática da película dispensa medições e
regulagens, o foco, já se está vendo diretamente pela objetiva e se corrige na hora,
fica difícil tomar imagens difíceis de ver, depois dessas câmeras com autofotometragem e zoom por visor reflex. Na prática, qualquer criança pode sair filmando,
apenas tendo uma intuição do que é filmar – o que é um pouco congênito para
quem, desde os anos 1950, nasceu assistindo a TV, com os filmes e reportagens
que ela veio incorporar. O que aconteceu a partir da invenção do Super-8, em
1965, foi uma comercialização com preço acessível, similar ao das câmeras digitais de hoje. A consciência dessa precariedade no contexto histórico brasileiro, cultural ou artístico, deu um significado especial a essa produção feita com
pouco. Tal como, aliás, num patamar anterior, o fizera o chamado Cinema Marginal, ainda que ali respeitando mais certos padrões convencionais, como o 35 mm,
o longa-metragem. Quando Rogério Sganzerla, no final dos anos 1960, propunha
espirituosamente que no Brasil passássemos a fazer filmecos (palavra inequívoca e assumidamente depreciativa), glosava e traduzia em miúdos ideias de Glauber Rocha
que marcaram o Cinema Novo. Mas a sua radicalização visionária não podia então
prever que na década seguinte isso se concretizaria de fato; e, sobretudo, via Super-8.
Escrito em 1965, o manifesto “Uma estética da fome”, de Glauber Rocha, propunha a seu modo fazermos frente à indústria cultural, não tendo que imitar modelos hollywoodianos, estandardizados, com filmes caros e localmente complicados,
produção alambicada, como se tentou por aqui no pós-guerra e, aliás, desde sempre.
Talvez a história tenha se restringido a salientar uma leitura política mais imediatista
naquele texto de Glauber, dando relevo à efetiva tática anti-imperialista de grande
impacto naquele contexto. Os pressupostos do manifesto que devem se salientar são
os de que, no Brasil, como em geral no Terceiro Mundo, não teríamos uma indústria
cinematográfica, nem cultura técnica e nem política cultural suficiente para resolver
42
a curto ou médio prazo as necessidades requisitadas por aqueles modelos dos países
mais desenvolvidos. O resultado ao longo do século XX são filmes muito artificiosos,
atavicamente engessados e soando falsos, descompassados entre intenção e fatura,
proposta e performance, como os que já analisara em seu livro de 1963, Revisão crítica
do cinema brasileiro. Não haveria condição estética, política nem cultural no Terceiro
Mundo que sustentasse de uma hora para outra a realização cinematográfica nos
padrões tradicionais do mundo desenvolvido. Não se pode, por conseguinte, construir uma experiência histórica capaz de alimentar tais padrões técnicos teimosamente
idealizados na periferia do Primeiro Mundo.
Como, então, se resolveria o problema de não termos em horizontes próximos
uma indústria e, no entanto, seguidamente tentarmos um padrão industrial (ou pseudo industrial), com suas estratégias de produção, ambições técnicas e programas estéticos? A resposta desenhada no manifesto passa pela convocação ao trabalho com
a técnica concretamente existente, praticável (e já de algum modo praticada) em
nosso contexto cultural e artístico. Técnica não é aqui só o aparato, a tecnologia, a
aparelhagem velha e obsoleta. É também a cultura técnica sedimentada num sentido
mais amplo, é gente capacitada artisticamente para interpretar certos papéis como
ator; gente formada para manipular com destreza, criatividade, aquelas máquinas
e aparelhos já disponíveis. Neste sentido, o que repercutiria do manifesto se traduz
no plano prático de modo antagônico à nossa tradição mais colonizada, como se
pudéssemos agora dizer: “precisamos parar de conceber a técnica como ideologia”,
Exposed
Edgar Navarro,
1978
43
“vamos baixar a bola, começar o trabalho a partir do que a gente já sabe e tem condições de fazer”, “chega de fetiche hollywoodiano”. O que urge, então, é romper
de vez com idealizações inatingíveis, assumir a precariedade de recursos, mas fazendo algo elaborado, algo esteticamente rico com essa pobreza dos meios. E o Cinema Novo,
de determinada maneira, já vinha construindo um capítulo importante nessa conquista desde seus primeiros filmes. Glauber, quando escreve, já reflete sobre o que ele
próprio e a sua geração vinham fazendo até ali. Coisas como certa apropriação inusitada de temas locais, argumentos originais e contemporâneos, enredos otimizando
atributos conhecidos e talentos inexplorados de atores e técnicos, além da invenção
da famosa “luz estourada” no sertão. E, enfim, o próprio lema maior do movimento:
“Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”.
Depois, sabemos que o Cinema Marginal vai até radicalizar isso em vários aspectos
porque vai filmar com ainda menos dinheiro, estrutura e condições. E o Super-8 é,
então, nessa linhagem, aquilo que Glauber nem chegou a supor em seu manifesto, não
a esse ponto. Malgrado datem do mesmo ano a escrita daquele revolucionário manifesto e o lançamento nas lojas ianques da simpática bitola caseira, ninguém imaginaria, em 1965, tal convergência. No entanto, aí descortinaríamos no plano da criação
de formas cinematográficas talvez a mais funda repercussão da Estética da Fome em
termos de realização poética. Uma particularidade que me parece singular desta produção superoitista foi a de entrelaçar artistas, poetas e irrequietos cineastas iniciantes.
É provável que fique mais evidente na práxis superoitista que nas outras o interesse
estético do defeito técnico ser visto como efeito técnico, sua prazerosa incorporação com
o sinal invertido. É significativo o fato de que os artistas plásticos brasileiros se interessem demais, sobretudo entre 1970 e 1975, pela nova bitola, inscrevendo alguns de
seus filmes nos primeiros festivais de Super-8, desde 1973, quando começaram. Ainda no início dos anos 1980 estão interessados em mostrar seus filmes nesses festivais
artistas de proa, como o recifense Paulo Bruscky.
Esse fato de artistas plásticos participarem dos festivais de cinema contribuiu para
uma mistura bem mais heterogênea. Tal experiência de alteridade por parte do público
e dos próprios cineastas propunha uma espécie de sessão-salada que, embora particularmente provocativa, não era bem uma novidade se pensamos no quadro cultural
da segunda metade dos anos 1960, no Febeapá – Festival de Besteiras que Assola o
País – descrito na imprensa da época pelo cronista Stanislaw Ponte Preta. Era o estado
de rebaixamento à diversidade permitida, difundida nos meios de comunicação pós
Golpe de 1964. Havia também os Festivais de MPB televisionados, os programas do
Flávio Cavalcanti, do Chacrinha; o próprio Tropicalismo eclode na TV, mais do que
no rádio. Entretanto os filmes dos artistas, vocacionalmente esquisitérrimos o mais das
vezes, devem ter tido a sua importância nos festivais de Super-8. O público podia não
entender nada daquilo, mas eles estavam lá concorrendo. Penso na interação de filmes
de artista, via de regra mais exigentes e elaborados, com os demais, e com os jovens cineastas querendo iniciar sua carreira, seu próprio caminho. A espécie de amadurecimento
estético que se processa implicando com o uso dessa arte da precariedade técnica. O
44
convívio das imagens tremidas, montadas de modo inusual, não raro ingênuo, cada
vez mais riscadas pelo projetor, desde as primeiras projeções, não impede que possa
dar resultados estéticos de interesse, de riqueza, questionadores e de uma interrogação
forte. Cheguei a ouvir na época de um jovem poeta, não me lembro do nome, acho
que era o Tavinho Paes, viera do Rio para um evento literário em São Paulo, algo
que retive como uma boa definição do Super-8. Ele tinha acabado de improvisar um
happening, mijando do alto das escadarias do Teatro Municipal com pose de anjinho
barroco, e veio nos dizer com empolgação uma frase que repeti muitas vezes, dado
que tínhamos na mão uma filmadora: “O que eu adoro no Super-8 é aquele acontecimento, aquela luz imprevisível estourando na tela, o ruído-crcrcrcrcr, as imagens
cheias de riscos, tremidas, desfocadas, desbotadas”.
A produção em Super-8 é numericamente grande, e até hoje não faz parte da história
do cinema brasileiro. É ignorada em parte por boas razões, em parte por más. Comecei
a fazer um levantamento completo e logo desisti; era muito mais filme do que supunha,
fiquei só com o filme experimental. Vinham dos festivais, em geral desde o momento
da inscrição, as quatro categorias: Ficção, Documentário, Animação e Experimental.
Quando isso ainda era livre e o festival era quem classificava, não raro encontrava-se
na categoria experimental tudo o que causava dúvida, não encaixava em nenhuma das alternativas anteriores, uma espécie de prateleira “outros” ou por mesclar os gêneros, ou
por não respeitar seus cânones típicos. Logo se descobriu ser menos embaraçoso deixar
que o autor escolhesse. Então, experimental passava a ser o que o realizador pretendia que
fosse experimental. Torna-se imponderável a variedade de critérios no caso; dos mais
singelos aos mais complicados. Todos sabemos que depois de O Bandido da Luz Vermelha
(1968), de Rogério Sganzerla, ficou mais fácil reencontrarmos aquela dúvida reversível que o filme reverbera, fórmula, aliás, emprestada às crônicas de Nelson Rodrigues:
“Poucos saberão dizer se é um gênio, ou uma besta”.
Em meados da década de 1970 fui aluno de Paulo Emílio Salles Gomes na USP, e
me lembro de ouvir seu entusiasmo com um festival de Super-8, chegando para os alunos com uma inusitada conclusão: “Saí com uma impressão curiosa de que os cineastas
sempre eram mais interessantes que os seus filmes”. Embora inesperada, pareceu-me
justa a observação, uma ideia muito provocadora, cujo sentido ultrapassava a mera maledicência que o senso comum podia apreender. Mas depois, frequentando a diversos
festivais pelo país, vi que aquela impressão estava longe de ser exclusiva do mundo superoitista. Em algum sentido diz respeito ao fazer cinema no Brasil. Essa exuberância
talvez fosse notória e sintomática de questões importantes de se discutir historicamente,
mas como? Há uma charge do Jaguar que marcou nossa geração, na Revista Civilização
Brasileira, em 1965, e que desde então ficou muito comentada. Virou um clássico da
charge brasileira e figurou no imaginário dos debates sobre a vocação problemática do
cinema nacional. Víamos nela dois indivíduos na saída movimentada de um cinema.
Um vira para o outro e diz: “O filme é uma droga, mas o diretor é genial”1. Jaguar me
disse recentemente que a charge causou reações no meio cinematográfico e reprimendas pessoais de Glauber Rocha, que vinha de lançar Deus e o Diabo na Terra do Sol.
1
JAGUAR, Sérgio
Jaguaribe.
Festival do
Cinema Brasileiro.
Revista Civilização
Brasileira. Ano
I, n. 5/6, p. 204,
nov. 1965. Há uma
versão digital
disponível em:
www.socine.org.br/
rebeca/
fora.asp?
C%F3digo=102
Acesso em: 22 set.
2013.
45
O surto superoitista coincide com a Ditadura, do seu pior momento às “Diretas
Já”. Na pesquisa que fiz, levantei cerca de 600 títulos de filmes supostamente experimentais em Super-8, realizados entre 1969 e 1985. Deles, cheguei a ver uns 400, para
selecionar os 120 do panorama Marginália 70: o experimentalismo no Super-8 brasileiro,
promovido pelo Itaú Cultural entre 2001 e 2003. Daquelas quatro categorias usuais, ou institucionais, talvez só o número de animações pudesse ser comparado aos
experimentais; a quantidade de documentários e ficções seria provavelmente umas
dez vezes maior. Na pesquisa decidi adotar, em princípio, um critério abrangente,
Zona Sul acolhendo generosamente todos os tipos de cinema experimental, ou pseudoexpeHenrique
Faulhaber, 1972
46
rimental, incluindo os que apenas desconfiava serem experimentais, mesmo que alguns realizadores reagissem contra, falando “não, eu nunca fiz cinema experimental;
não tenho nada a ver com isso”. Claro que não os acatei. Parti daquele princípio
segundo o qual o autor é o menos autorizado a falar sobre o seu próprio filme, tem
menos isenção, distância. Eu acho que é preciso, nesse caso, assumir um ponto de
vista crítico como historiador, e não ficar a reboque do que dizem jornalistas, realizadores e mesmo a própria crítica. Cada um deve assumir um olhar crítico próprio,
como analista, curador, historiador, pedagogo, ensaísta: vejo entre todas essas figuras
um substrato crítico igualmente necessário.
Em nome justamente dessa experiência crítica pretendida como um trabalho
público o mais transparente possível, republicano no melhor sentido que possamos
compreender, é que eu vejo a necessidade de fornecer um quadro múltiplo de dife-
rentes propostas, para podermos observar suas amplas interações. Num país como o
nosso, e mais ainda num terreno pouco conhecido e debatido como esse, parece-me
fundamental a riqueza de podermos comparar, apreender um momento histórico
em sua diversidade máxima. Temos, por um lado, uma História do Cinema Experimental, assim nomeada, que começa a ser escrita mundialmente só no início dos
anos 1970. Antes disso, apenas livros e ensaios parciais, localizados, do underground
estadunidense, das vanguardas dos anos 1920 contempladas de um pós-guerra europeu, a arte deste ou daquele realizador e sua geração, etc. De toda a história mundial do cinema experimental que pude cotejar, só um traço pude, em princípio,
identificar com o panorama que eu estava investigando (mesmo assim só descobri
depois, e por acaso): cerca de um terço da produção experimental é filme de artista plástico, em média, desde os anos 1920. No mais, toda diferença parece falar
mais alto que as semelhanças.
Fundamental também é integrar ao panorama experimental como no de vanguarda o filme político, o agit-prop, o filme militante – com frequência observadores daquele princípio básico atribuído a Maiakovski: “Não há conteúdo revolucionário sem forma revolucionária”. Com isto, mesmo os mais “conteudistas”
intuem que é preciso mexer com a forma também; a forma convencional, suspeita-se, não vai mexer muito com os velhos conteúdos. Há aí uma vontade artística
que se vincularia à vontade política, num encadeamento em que uma passa a exigir
a outra, ainda que tardiamente, ainda que demore o tempo de uma maturação
pessoal e coletiva do processo de trabalho criativo. Além disso, existirá uma série
praticamente infinita de diferentes modalidades do cinema de vanguarda ou experimental a pensar, incluindo-se as já pensadas. Eu englobei tudo, em princípio,
nesse grande conceito guarda-chuva de cinema experimental como estratégia crítica,
até para poder comparar eles todos entre si, mas, sobretudo, sabendo que muita
coisa que não se quer de vanguarda, pode sê-lo; e vice-versa. Em terra de cineastas tão cultuados quanto pouco analisados e debatidos – como os “primitivos”
Ozualdo Candeias e José Mojica Marins, sem dúvida visionários e antecipadores
–, é preciso, no mínimo, atenção maior.
A diferença conhecida dos filmes experimentais para com o restante dos filmes de
esquerda feitos no país é notável. Entretanto, a zona limítrofe entre um campo e outro não me parece muito fixa e estabelecida. Isto se deve, de algum modo, ao pouco
interesse e mesmo pouco preparo da crítica para a discussão tanto do aspecto político
quanto do formal e estético do nosso cinema mais experimental. A boa crítica, como
disse Siegfried Kracauer, não é a que conhece só cinema, é a que conhece também
o assunto dos filmes, exigindo uma formação dupla do analista, em arte e em sociedade. O cientista social ingênuo em estética e cinema não terá muito que dizer sobre
um filme experimental, mesmo que se interesse. Um crítico de cinema pode, enquanto cinéfilo típico, avaliar bem uma obra estilisticamente, mas pouco terá a dizer de
um filme além de clichês sobre o ponto de vista político, histórico, psicológico, etc.
O filme experimental é aquele que tenta fazer aquilo que é potencialmente possível
47
com o cinema – mas que nenhuma prática está fazendo; aquilo que é potencial do
cinema e ultrapassa ou surpreende os parâmetros com que a crítica está trabalhando.
Um dos interesses centrais do cinema experimental tem sido o de fazer aquilo
que interroga o que estamos fazendo; seja na sociedade, seja na própria atividade
cinematográfica. Como definição provisória, estamos diante de algo que é difícil
de ser definido, pois depende de circunstâncias singulares e do que está sendo
praticado; é nesse caso uma questão viva a ser resolvida. A teoria do ensaio como
formalização do pensamento é indispensável no auxílio a esse debate. A partir
do momento em que você começa a praticar determinadas leis de construção
formal do filme, dentro de um estilo convencionado, de uma modalidade, isso
passa a não ser mais experimental, isso é trabalho acadêmico. Então, a questão
da vanguarda se repõe, pois ela nega por programa o que se convencionou. Nem
todo filme experimental pode se pretender de vanguarda, ou deveria de fato ter
vínculos com alguma vanguarda, pois ao contrário do que nela se propõe, ele
não constrói junto com a obra um programa manifesto de conceitos, implicando
ruptura ou negação para com um legado prático ou teórico. Por isso, o conceito
de experimental seria mais abrangente que o de vanguarda. Ele admite também
gente que está tateando num fazer artístico extraordinário, às vezes de grande
invenção, mas sem a ambição manifesta de dialogar necessariamente com esse
ou aquele conceito, tradição ou proposta - isso viria a ser um gesto posterior da
interpretação crítica, e porventura fora da experiência autoral de criação.
O que eu quero dizer com isso tudo é que a produção mais questionadora
do status quo no período que nessa hipótese seria, sobretudo, a experimental vai
ter um perfil escapando muito dos parâmetros mais sólidos com que a esquerda
ou a teoria social pensava no campo cinematográfico. Se formos aos termos mais
gerais da vaga tropicalista (um termo que logo colou, e demais até, abrangendo com abuso coisas muito distintas entre si) mesmo alguns dos mais penetrantes
artigos de recepção da onda experimental no fim dos anos 1960 se interessaram
mais pelos seus limites que pelas suas virtudes. Um texto brilhante e incontornável como o de Roberto Schwarz, “Cultura e política, 1964-1969”, pode ser considerado ainda hoje o mais paradigmático ou representativo dessa resistência da
esquerda contra o tropicalismo, fornecendo argumentos, intuições e instrumentos
conceituais, embora ultrapasse essa questão e revelou-se sob certos aspectos atual
(e mais ainda com Gilberto Gil chegando ao Ministério da Cultura). É enorme, todavia, a sua utilidade para se pensar a produção cultural e artística pós-68 no país incluindo-se a que estamos aqui abordando.
Neste artigo, em vez de analisar obras a fundo, tal como o ensaísta costuma fazer
de modo singular e singularizante, em crítica imanente, circunstanciada em perspectiva social apoiado em lapidar detalhamento formal, sensível e nuançado, o objeto aqui é algo como uma experiência direta da eclosão tropicalista. Constitui certa
morfologia de um conjunto de obras reconhecíveis, porém relativamente anônimas.
Isto é, não são ali nomeadas ou, em todo caso, não discutidas criticamente enquanto
48
obra experienciada em sua unidade forte ou inteireza. Os atributos formais presentes
nesta análise de obra coletiva, amalgamada na descrição, correspondem ao conjunto
das obras instauradoras ou, em determinado sentido, às mais ruidosas do movimento
todas do seu início, dado que o ensaísta escreveria entre 1969 e 1970, já no exílio.
Toma o Tropicalismo como uma resposta à participação, um desdobramento ou
contrapartida ao processo promissor que se instaurava ao longo de um aprendizado
proposto pela década de 1960. Nem poderia se dar de outra maneira sua aproximação, uma vez que o seu percurso e o substrato essencial da tarefa crítica, então
mobilizado, articularia exigente leitura crítica, de intervenção, num momento de
particular culminância da história cultural e política de toda uma geração. Ademais,
justifica-se tal reação intelectual pelo caráter promocional mercadológico assumido
pelo fenômeno tropicalista, ainda que contraditoriamente. A unidade conjuntiva se
incrementaria pela ação fetiche dos media. Isso ajuda a conferir inequívoca coerência
ao que Schwarz descreve, enfim, àquele amálgama que se estabelece e se enuncia
entre as obras no seu conjunto, em seu próprio modo de veiculação.
O que se pode objetar é que muito embora a sua crítica se vincule à parte bastante considerável do que se produziu, certas obras, já num primeiro momento e,
sobretudo, na sua sequência, questão de meses ou anos, se distinguem e fornecem
experiência de significado inovador mesmo na direção crítica reclamada por parte da esquerda, ou pela perspectiva no ensaio delineada. E isto não se pode suspeitar muito a partir daquela descrição inicial proposta por Schwarz - a qual, no
Caravelas
Carlos Porto
de Andrade
Jr. e Leonardo
Crescenti Neto,
1978
49
2
Vejam-se tais
noções já
nos primeiros
trabalhos
panorâmicos
sobre o Cinema
Marginal:
FERREIRA,
Jairo. Cinema
de Invenção.
São Paulo: Max
Limonad, 1986.
RAMOS, Fernão.
Cinema Marginal
(1968-1973): a
representação no
seu limite. São
Paulo: Brasiliense,
1987.
BERNARDET, JeanClaude. O vôo dos
anjos: Bressane,
Sganzerla. São
Paulo: Brasiliense,
1990.
50
entanto, permanece via de regra surpreendentemente válida, ainda que faltem
ali as usuais análises formais de seu mais característico viés de crítica imanente.
O que irrompe de contemporâneo em muitas das obras artísticas provocará entrementes centelhas de interrogação: seu espalhafato inventivo, por vezes visionário ou histérico2, deixa imaginar nexos de experiência histórica bastante curiosos.
Qualquer que seja o nome que se dê no futuro para o conjunto e os subconjuntos de obras daquele período tropicalista (ou pós-tropicalista), devem ser incluídos
por certo filmes como os de Rogério Sganzerla.
Sganzerla mesmo talvez intuísse algo nessa direção, ao manifestar-se sempre
avesso ao movimento tropicalista tal qual se alastrava. Bressane, por seu turno, se
perfilará também um tanto indiferente, a certa distância um tanto blasé, na verdade
escolhendo entre vagas de erudição mais ancestral, destilando uma visão própria.
Glauber só se manifestaria a favor do Tropicalismo num segundo momento, ou senão já exilado, em plenos anos 1970. Porém, sua defesa do movimento em 1969 é
discrepante do que se tornou comum escutar, filiando-o à tradição da vanguarda
surrealista e, no Terceiro Mundo, fazendo remontar o que seria o cinema tropicalista
ao marco do trabalho mexicano de Buñuel, a partir dos anos 1940. É bom lembrar,
a propósito de distâncias e ângulos de observação, que se passaram duas décadas até
que um crítico da importância de Jean-Claude Bernardet reconheça que a crítica,
incluindo ele próprio, não tinha instrumentos para falar dos filmes do Cinema Marginal. Dizia ele que, a seu ver, isso ajudaria a explicar o silêncio não só da época
como posterior sobre um cinema bem visto, senão pelo público em geral, por boa
parte da crítica e do público universitário. Isso não quer dizer que não houvesse ao
longo dos anos 1970 discussão e até bate-boca; entre realizadores, por exemplo, nos
festivais, sobretudo naqueles que reuniam os diversos formatos e bitolas. É o caso da
Jornada de Salvador, que costumava passar numa mesma sessão filmes de 35 mm,
16 mm e Super-8, sem diferenciação. E tínhamos debate diário com realizadores e
críticos depois das sessões, com ampla participação. Havia altercações memoráveis,
“quebra-paus”, e não só porque “baiano gosta de falar”.
Fato memorável, uma das principais polarizações que se davam ali era entre o
pessoal superoitista e os do 16 mm, os quais correspondiam grosso modo à tradição recente do documentário engajado, e/ou à tradição (não tão recente) da esquerda mais ortodoxa. Já os do 35 mm nem se exprimiam muito nesse foro; sabese que eram filmes mais caros, financiados em geral pelo Estado, sobre temáticas
mais sedimentadas, incontestavelmente nacionais, como o patrimônio histórico, o
perfil de luminares pátrios, etc. Dentre os superoitistas baianos mais iconoclastas
estava sem dúvida a turma de Edgard Navarro, Fernando Bélens, José Araripe
Junior e Pola Ribeiro, o qual ainda se diverte ao recordar o que na época eles
repetiam, e continuam achando muito engraçado lembrar: “A gente dizia assim,
que o pessoal do 35 mm está preocupado em construir monumentos, o pessoal do 16
mm está interessado em questionar monumentos, e nós superoitistas chegamos para
jogar merda nos monumentos”. O que diverte nisso não seria só o lado escatológico ou
grotesco, se bem que inextricável do humor de seus filmes - mencione-se apenas
esse chef d’œuvre que é O Rei do Cagaço (1977), de Edgard. Mas temos ainda uma
espécie de coragem criativa, tentativa de encarar o mais inexplorado, o arriscado, até como viés programático, quase vanguardístico, postura em progressiva
difusão. Parece ir junto com a inclinação mais visceral dessa postura um expor-se
praticamente intrínseco ao fazer filmes naquelas condições assumidas, tão imediatistas e pessoais. Por exemplo, o mesmo Edgard que apresentou em 1978 um
desabafo íntimo e estupendo, o sintomático Exposed e, inquirido pelo público no
final dos debates acabou por tirar a roupa diante dos holofotes. Este intuicionismo
artístico, necessária e intrinsecamente irresponsável (como, aliás, na arte radical
de diferentes épocas)3, levará ali em direção ao selo de porra-louca. A nomeação
vinha da esquerda mais convencional; entretanto, por boa parte dos radicais era,
naquela altura do campeonato, assumida de bom grado.
Em 1979 dois artistas plásticos pernambucanos, Daniel Santiago e Paulo
Bruscky, filmam O Duelo, filme do primeiro, em Super-8. Protagonizam um duelo
tal como a literatura de séculos anteriores representa. Dois homens escolhem as
armas só que as armas eram aqui filmadoras típicas, uma 16 mm e a outra, uma
Super-8. Eles tomam distância, dando-se as costas na clareira de uma floresta,
há ao menos alguns discretos guinchos de macaco. Caminham passos calculados
com uma concentração solene, pseudoaristocrática; pensando bem, não: a
concentração soa mais para uma corriqueira obsessão, quase prosaica. Viravamse com frieza e apertavam o gatilho. Em vez de estampidos, o conhecido chilreio
das filmadoras. Iam ambos então se aproximando, olhos no visor. Como se a
proximidade fosse mais letal, no caso. Os planos frontais filmados mutuamente
de cada um deles, surpreendiam-lhes por trás das objetivas, alternando-se com
aquele plano de antes, perpendicular e equidistante como num olhar impostado
de juiz. Tudo isso vai articular a construção equilibrada, de um tom neutro e
contido do filme. Se bem que a simetria lembra algo improcedente como de um
arbítrio arbitrário! E os dois se aproximando, acabam batendo de frente, com
estrídulo, um barulho áspero de vidro quebrando, etc. Quem detectou a diferença
das câmeras coisa minimamente assegurada no circuito a que se destinaria tal
obra - poderia dar um segundo passo e também se perguntar em que formato se
apresentava aquele filme: copiou-se o 16 mm em Super-8 ou vice-versa? E a parte
do juiz, como se filmou? Dois artistas locais de expressão, sob influxos múltiplos
do concretismo, do conceitual, do pop, do happening, do dada, etc. - e hoje bastante
reconhecidos, mesmo nacionalmente ali, colocando filme em festival de cinema?
O que se atesta com isso? Theodor Adorno dirá que a arte radical guerreia. Essa
estranha piada meio alienígena que o filme traz parece falar do ambiente dos
próprios festivais. Reflete sobre o fazer filmes que ali se instaura. Até independente
das bitolas, é o duelar-se que moveria a criação mais polêmica?
Isso faz com que o pessoal mais sério, ou mais engajado, do Partido Comunista ou dos partidos mais tradicionais de esquerda, vissem o pessoal do Super-8
3
Própria da
experimentação
na arte radical,
para Theodor
Adorno a
irresponsabilidade
“faz lembrar o
ingrediente do
jogo, sem o qual
a arte, tal como a
teoria, não pode
ser concebida.
Enquanto jogo,
a arte procura
expiar a sua
aparência. Além
disso, a arte é
irresponsável
enquanto
cegueira,
enquanto spleen
e, sem ele, de
nenhum modo
existe.” ADORNO,
Theodor W. Teoria
estética. Tradução
de Artur Morão.
1982, p. 52.
51
como ultraesquerdista ou anarquista. Na verdade, seria necessário trabalhar mais
sobre este espectro radical. Trata-se, à primeira vista, de uma miríade de posturas diferenciadas e na prática irredutíveis ao espectro da vida política institucional. Além de um Paulo Bruscky ou um Edgar Navarro, vamos passar a alguma outra peça dessa constelação: no Rio, Sérgio Péo, antes dele Ivan Cardoso,
Torquato Neto, Hélio Oiticica, este em Nova York, ou José Agrippino de Paula;
pensando nas diferenças, Flávio Del Carlo, Jomard Muniz de Britto, Rui Vezzaro, Jorge Mourão, Henrique Faulhaber. Vendo-se hoje, de repente e desavisa-
Nosferatu damente, o filme de Sérgio Péo, Esplendor do Martírio (1974), podemos levar um
no Brasil susto, enquadrá-lo numa visão de mundo foquista, terrorista ou ultraesquerdista,
Ivan Cardoso,
1971
52
algo do gênero. É um filme que tem uma pegada de agit-prop meio insólita, pois
soa desarticulado, difícil e propositalmente obscuro. Tem também algo do desbunde, da curtição, cujos precursores no Rio foram jovens como Ivan Cardoso
ou Giorgio Croce, Henrique Faulhaber.
Nesta extremidade diametral da contracultura vamos encontrar estimulantes
eclipses parciais ou totais da polis ou da política. Veja-se o caso de José Agrippino
de Paula. Considerado um precursor do Tropicalismo com a narrativa pop de
seus romances e a inovação de suas montagens teatrais, o paulista realiza em 35
mm o longa Hitler, Terceiro Mundo (1968), pouco após o lançamento da sua obra
referência, o livro PanAmérica (1967). Depois de passar pela África, Europa, EUA
e América Latina, dando um tempo, como tantos outros na diáspora artística
em tempos de exílio pós-68, roda em Super-8 no litoral da Bahia Céu Sobre Água
(1978). Nas águas de Arembepe (localidade ainda hoje conhecida pela experiência
comunitária hippie), vemos uma mulher ora grávida, ora não, uma criança em seu
colo, e poucas aparições masculinas vão se alternando em temporalidade elíptica.
A dançarina Maria Esther Stockler, então sua mulher e colaboradora desde os
trabalhos cênicos do final dos anos 1960, movimenta-se na água de maneira a
integrar-se com densidade rítmica ao espaço da natureza. É num certo sentido
o filme mais hippie que eu conheço, talvez o único em certo sentido: Não sobre
hippies, ou com hippies. É um filme hippie no sentido de que ele simbolizaria
uma experiência concreta de vida hippie. A sua estrutura nos desafia a propor
nexos simbólicos entre os elementos moventes, da presença dos corpos e da
Natureza, que se relacionam em fluxos dialogantes.
De Agrippino, além do Hitler, Terceiro Mundo, pude ver ainda outros filmes,
todos Super-8 e posteriores àquele, mas anteriores ao de Arembepe. Alguns
deles, sobre ritos tribais filmados na África, como Candomblé no Togo ou Timbuctu e Mopti, possuem um trabalho bem coerente da câmera, que parece
preparar a contemplação dinâmica do filme baiano. Há uma suspensão do
tempo comparável. Só que aqui o caso seria diferente dos africanos, embora pelo movimento dos corpos também se atinja uma empatia entre o olhar
da câmera e o ritual filmado. A câmera de Agrippino reage, portátil como
um pincel, e pode se submeter à presença física mais imediata dos corpos.
Sua relação com as coisas que filma supõe uma entrega àquele momento;
momentos em que o corpo vai proporcionar a visão que temos. É um tipo
de impressionismo que se desprende dos cânones da representação para
entrar numa empatia transcendental com os corpos.
Um paralelo possível desta experiência pode ser buscado no Super-8 de Hélio Oiticica, Agrippina é Roma-Manhattan, de 1972, inspirado em Sousândrade,
Haroldo de Campos e Agrippino (pensemos, sobretudo, em O Guesa, Galáxias
e PanAmérica). Foi uma tentativa de Hélio de trabalhar com uma câmera algo
tátil, que recuperou talvez dos primeiros filmes de Neville d’Almeida, mas em
diálogo com o vanguardismo de Glauber Rocha e possivelmente o underground
nova-iorquino de Jack Smith e Andy Warhol. Creio que estes dois filmes, Agrippina
e Céu sobre Água são importantes na constelação que me esforço por montar. Não
como “influências” (há no mundo estanque da Ditadura pouca interação artística), mas para balizar a compreensão do experimentalismo superoitista que vai se
desenvolver no Brasil até o início dos anos 1980. Creio ser possível configurar um
novo patamar de propostas estéticas diferenciadas tanto do Cinema Novo como
do Marginal, ainda que ligado a eles umbilicalmente. Uma história do cinema
experimental, assim como a do audiovisual brasileiro, precisa começar a se interessar pelas centenas de filmes inventivos rodados em Super-8 nos anos 1970, e
ignorados pelo surto (no sentido patológico inclusive) industrialista que nos tem
acometido. A história local do cinema e da crítica talvez não nos ofereça ainda os
53
tais instrumentos conceituais suficientes.
Céu sobre Água é um home movie telúrico em que o lar é a Natureza em temporalidade transcendental, e uma lenta coreografia se integra em superenquadramentos diagramados com harmonia gestáltica muito particular. A expressividade
desse trabalho da câmera merece análise, pois parece discursar sobre as relações
estabelecidas de um olhar não só para com um espaço mítico da Natureza, mas
também com proximidades corporais, que se entrelaçam aos elementos físicos
locais. Nas relações que se estabelecem entre corpos e espaço, um parece proporcionar o acesso ao outro, numa interação em que eles se fornecem mutuamente
critérios de apreensão. No desafio de descrevermos o que se passa neste filme de
ritmo e gesto coreográfico repousa a possibilidade de discuti-lo como obra singular, situá-lo perante as tradições do cinema experimental e das estéticas em vigor
no campo artístico (e comportamental), cultural (e contracultural). Toda a criação
que se desvencilha das tradições convencionadas por intuição a elas rebelde, com
ou sem projeto manifestado, merecem ou deveriam merecer a maior atenção de
quem se interessa por arte, pelo fazer artístico, ou ainda pelo papel social da arte.
Trata-se do estatuto e do estado atual do olhar crítico. Constate-se que a política
andou meio abandonada pelo debate cultural e artístico desde os anos 1980 e este
se desabilitou de abordar o que fuja do senso comum, o que não seja mais explicitamente tema, conteúdo político.
54
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55
Terceiro ciclo
de cinema na
Paraíba:
tradição e rupturas
POR Pedro Nunes
56
“Fizemos cinema como resposta à realidade que a gente dispunha...
Aprendemos a fazer cinema enquanto
linguagem quando muitos cineastas paraibanos continuam a pensar que cinema é encenação de fazer filme. Fomos
ladrões de cinema... Enfrentamos a ira
dos cineastas locais. Fizemos um cinema muito leve.
O cinema é uma escrita muito simples. Somos uma geração diferente.
Cumulativamente somos um avanço a
relação à geração passada. Não podemos encarar o mundo e a nossa produção sob a ótica do que eles teorizaram.
Temos que teorizar a nossa geração...
Optamos por uma maneira libertária
de pensar cinema... Os filmes que queremos fazer são diferentes.”
Everaldo Vasconcelos
Pedro Nunes é cineasta e
prof. Dr. do Programa de
Pós-graduação em Comunicação (PPGC/UFPB) e do
Departamento de Comunicação do CCTA/UFPB.
Tá na Rua
Henrique
Magalhães, 1981.
57
No final dos anos 1970, ainda em plena vigência do regime militar brasileiro sob
o comando do General Ernesto Geisel, a Paraíba vivenciou o surgimento de um
terceiro ciclo de produção cinematográfica com características narrativas e modos
de circulação distintos dos movimentos de cinema predecessores. Trata-se da retomada quantitativa e qualitativa em termos da produção de filmes que integram um
surto audiovisual caracterizado como “Cinema independente” (NUNES,1988). Esse
Vladimir surto de filmes revela marcas de ruptura simbólica quanto aos modos de produção,
Carvalho natureza da bitola, temática voltada para critica social e sexualidade e exibições dos
em cena de
Cinema Paraibano
– Vinte Anos
58
filmes através de circuitos paralelos ou itinerantes.
A consolidação do então “novo” movimento de cinema na Paraíba brota no
esteio referencial de uma forte tradição de cinema dos movimentos passados ancorados desde as experiências pioneiras de cinema na Paraíba, articulações cineclubistas,
crítica cinematográfica e o ciclo de cinema documentário envolvendo a realização
de filmes basilares para a cinematografia nacional, a exemplo de Aruanda (1960), de
Linduarte Noronha, e O País de São Saruê (1971), de Vladimir Carvalho, dentre outras
iniciativas no campo do audiovisual. Ou seja, o terceiro ciclo de cinema na Paraíba
é motivado e precedido historicamente por um conjunto de ações, fatos, acontecimentos e iniciativas que auxiliam direta e indiretamente nesse processo de retomada
da produção cinematográfica na Paraíba com marcas expressas de artesanalidade
da produção, originalidade, inventividade no campo das construções narrativas e
transgressões temáticas.
Também é importante destacarmos que outros fatores interferiram de forma direta
no processo de retomada da produção audiovisual em forma de movimento. Neste
sentido, a Universidade Federal da Paraíba tem um papel de destaque com a criação
do Curso de Comunicação Social (1977) e a implantação do Núcleo de Documentação
Cinematográfica, que encampou um convênio de cooperação com o Cinema Direto. Outro aspecto importante é que em Campina Grande a então Universidade
Regional do Nordeste com seu Curso de Comunicação Social (1974) também se
destacou com várias iniciativas no campo do cinema centralizadas, principalmente
por Machado Bittencourt, através da produtora Cinética Filmes.
A UFPB, amparada a essa forte tradição de cinema de base documental, incorporou ao seu quadro institucional integrantes da segunda geração de cinema,
como o diretor Linduarde Noronha, o fotógrafo Manuel Clemente, o crítico Paulo Melo, Jomard Muniz de Britto, Lindinalva Rubim, Pedro Santos, o montador
Manfredo Caldas, Jurandir Moura e José Umbelino. Esses profissionais com atuações diversificadas no campo do cinema e do audiovisual, presentes no Curso
de Comunicação Social, Coordenação de Extensão e Núcleo de Documentação
Cinematográfica da Universidade Federal da Paraíba contribuíram, de forma
decisiva, para a formação de uma terceira geração de cineastas na Paraíba que
compreende o período de 1979 a 1983.
Podemos dizer que o terceiro ciclo de cinema na Paraíba apresentou uma feição
extremamente heterogênea, integrando realizadores com destacada vivência profissional que interagiram com cineastas principiantes. O traço distintivo do terceiro
ciclo de cinema na Paraíba é então essa pluralidade de vozes que se agrupam em
torno da reflexão sobre a natureza do cinema paraibano, processo de produção e
circulação de filmes, tendo com predominância a utilização da bitola Super-8.
Nessa fase de retomada da produção audiovisual na Paraíba, o Brasil, através
do poder político militar, ainda amargurava com as ações da censura imposta aos
meios de comunicação, livros, filmes, peças teatrais, perseguições aos artistas e militantes, realização de torturas, repressão aos movimentos sociais e perseguição aos grupos
sociais e indivíduos contrários ao regime militar e intensa repressão ao movimento estudantil. Concomitante aos atos de repressão e cerceamento da liberdade de expressão
vigentes ao longo da década de 1970, Geisel sob crescente pressão política e protestos
de segmentos da sociedade civil implementou o que denominou como um “processo
de abertura política”, tendo como lema a “abertura lenta, gradual e segura”.
É então neste contexto sociopolítico que brota o terceiro ciclo de cinema paraibano
com dinâmicas próprias de funcionamento, traços de ruptura temática no processo
de codificação, bitola, temática voltada para crítica social e veiculação da mensagem
através de circuitos não convencionais. São produções acabadas intencionalmente
para ocupar “outro” circuito paralelo, adquirindo em seu conjunto uma dinâmica
própria de funcionamento.
59
Essas produções audiovisuais de caráter nitidamente regional situam-se num contexto do surgimento de outras narrativas experimentais com linguagens provocativas: edições marginais, grafites, atividades teatrais, quadrinhos, pintura, imprensa
alternativa... que quase sempre questionavam a moral estabelecida. No âmbito internacional, eclodiram de maneira pluralista os movimentos denominados alternativos: ecológico, pacifista e antinuclear. É o aflorar explícito dos movimentos sociais e,
consequentemente, o seu enfrentamento com o Estado.
O ciclo em questão apresenta marcas artesanais bem expressas, cujos filmes
nascem basicamente no seio da Universidade, que contribuiu com empréstimos de
equipamentos e liberação de filmes virgens, muito embora uma parcela mínima dos
realizadores efetivasse trabalhos às suas expensas com total liberdade de criação na
elaboração de propostas audiovisuais.
Cenários dos novos ciclos de cinema Super-8
Torquato Neto, com seu espírito inventivo e dilacerador, conclamava o público leitor
de sua coluna Geléia Geral para debater/realizar produções em Super-8. Símbolo de uma
geração que começa a desconfiar das posturas estéticas linearmente engajadas, o poeta da
alegoria “suicida” vislumbrava na minibitola Super-8 a possibilidade de exercitação criativa dizendo: “Qualquer filme é a projeção de um sonho reprimido. E eu quero que esse
sonho seja liberado, seja livre sem nenhum limite. O cinema é feito por cineastas, filmakers
e eu quero que ele seja feito por todo mundo. Super-8... oito crianças... Isso será cinema”
(NETO, 1982, p. 26).
O fervor cultural dos anos 1960 (atuações do Centro Popular de Cultura – CPC/
UNE, Movimento de Cultura Popular – MCP trabalhando as ideias de Paulo Freire, movimentos sindicais e estudantis) era interrompido, eclodia numa outra esfera e com uma
performance anárquica, o tropicalismo; que nas entrelinhas de sua irreverência, combatia
a militância ortodoxa populista, lançando preocupações com a transformação individual.
São os fenômenos culturais acompanhando o processo de mutação da vida social.
Com o recrudescimento político (Lei de Imprensa e Lei de Segurança Nacional) servindo de suporte auxiliar para o “milagre econômico brasileiro” e a construção de um
“Brasil Grande”, o Estado arquiteta seu ideário político de mutilação artística e passa a
subvencionar a produção cultural de seu interesse.
Os produtores de cultura enfrentam uma situação paradoxal no sentido de aderir ou
desvencilhar-se das exigências da “cultura oficial” com o selo forte e imperativo da censura. A dinâmica da cultura brasileira é então afetada a partir de 1968, com um novo golpe
de Estado. Nos anos 1960, conforme argumenta Heloisa Buarque de Holanda:
O cinema fora talvez a manifestação mais crítica e questionadora do papel do artista dentro das relações de produção. Na década de setenta é o cinema que adere
mais sintomaticamente às novas exigências da política cultural do Estado. Alguns dos
princípios representantes do cinema novo lançam-se à produção cinematográfica em
60
grande escala e, além da qualificação técnica justificam-se pela divulgação de conteúdos supostamente populares (HOLANDA, 1981, p. 92).
O Brasil regido pela doutrina de segurança nacional respira um clima tenso com
a instauração dos Atos Institucionais, o cerco incisivo do Estado às manifestações
políticas contrárias ao regime militar, atuações da censura sob a chancela oficial interferindo diretamente nas produções culturais. O impacto dessa nova ordem política gera situações de verdadeiro terror, mas ao mesmo tempo produz formas de
resistência cujo delineamento se opera em contraponto à cultura oficial e ao próprio
estado repressor da época.
Jornais como Pasquim, Opinião, Flor do Mal transgridem os sacramentos da grande
imprensa evidenciando a não neutralidade dos fatos, a parcialidade, a questão da
subjetividade e, sobretudo, com uma linguagem voltada para o questionamento de
situações da realidade brasileira. Heloisa Buarque de Holanda observa o seguinte:
É exatamente num momento em que as alternativas fornecidas pela política cultural
oficial são inúmeras que os setores jovens começarão a enfatizar a atuação em circuitos alternativos ou marginais. No teatro aparecem os grupos ‘não empresariais’,...
na música popular os grupos mambembes de rock, chorinho etc; no cinema surgem
as pequenas produções, preferencialmente em super-8 e, em literatura a produção de
livrinhos mimeografados... É importante notar que esses grupos passam a atuar diretamente no modo de produção, ou melhor, na subversão das relações estabelecidas
para a produção cultural (HOLANDA, 1981, p. 96).
É nesse movimentado cenário político-cultural de agudez política e crise econômica que surge a minibitola Super-8, favorecendo a eclosão de surtos regionais com
a produção de filmes que provocam uma espécie de reorientação quanto ao fazer
cinematográfico em diferentes regiões brasileiras.
Assim o Super-8 passa a cumprir um papel relevante na dinâmica cultural dos
anos 1970 até meados de 1980, visto que as obras audiovisuais são frutos de pequenas equipes de trabalho e se firmam enquanto produções de baixo orçamento. O Super-8 simplifica o processo de filmagem em relação às demais bitolas profissionais de
cinema. Thomas Farkas assegura que: “A grande novidade consiste numa nova ideia
de filmagem, colocando o cinema como atividade criativa nas mãos de qualquer
pessoa... A filmagem passa a ser um simples ato de visão e observação sem passar por
problemas técnicos” (FARKAS, 1972, p. 56-57).
Sabemos que o surgimento e aperfeiçoamento do sistema Super-8 enquanto bem
de consumo foi resultado de estratégias econômicas com vistas a um maior faturamento e não simplesmente contribuir para o desenvolvimento de um novo meio de
expressão artística. O Super-8 se caracterizou enquanto um instrumento que possibilitou que jovens realizadores pudessem fazer cinema de maneira mais desamarrada
e com possibilidades de exercitação criativa.
61
Enquanto um produto em oferta no mercado resultante do processo de miniaturização tecnológica, o Super-8 tornou-se acessível e menos dispendioso em relação à
bitola semiprofissional 16 mm e à profissional 35 mm. Esse novo invento possibilitou
uma reviravolta no modo de se produzir filmes apresentando-se enquanto um possível instrumento de ação social. Como toda tendência nova, o Super-8 provocou reações polarizadas entre os jovens cineastas iniciantes adeptos da bitola e os cineastas
com filmes em bitolas profissionais.
Vários movimentos foram deflagrados tendo por base o Super-8. É interessante
observar que esses movimentos de produção audiovisual extrapolam o eixo Rio de
Janeiro-São Paulo com o surgimento de produções descentralizadas em vários estados brasileiros, além da formação de associações, cooperativas e cineclubes que se
empenharam de forma organizada no sentido de lutar pelo reconhecimento do
cinema Super-8. As mostras de cinema e festivais nas várias regiões brasileiras
adaptam-se às exigências próprias da nova bitola.
O preconceito alimentado por alguns críticos de cinema mais conservadores e
cineastas profissionais formulados sem qualquer ponderação quanto às reais potencialidades do Super-8 foram frequentemente rebatidos como se pode perceber
no artigo na revista Close Up:
Para desfastio de uns e desagrado de outros, lucro de alguns e até realização artística dos demais, prossegue o movimento de super-8 mm, em experiências arrojadas,
pirotécnicas, algumas originais arregimentando novos adeptos com suas mostras,
ocupando espaços em jornais e formação espontânea de uma crítica especializada. O
super-8 começa a ser reconhecido como cinema... ninguém pode recusar-se a ver na
bitola um novo meio de expressão (CLOSE UP, 1977, p. 15).
Na Paraíba, em 1973 é que surgem as primeiras realizações em Super-8 por
autores que de alguma forma já tinham passado pelo 16 mm ou mesmo pela
crítica de cinema. Dentre os trabalhos da primeira fase Super-8 na Paraíba, destacam-se: A Última Chance (1973), de Paulo Mello, O Estranho Caso de Leila (1973),
de Antonio Barreto Neto, Yoham e Lampiaço, de José Bezerra, A Greve e Absurdamente
(1975/1976), de W.J. Solha, sendo o último em parceria com José Bezerra, e ainda A Guerra Secreta, de Antonio Barreto Neto e Sílvio Osias. São trabalhos pouco veiculados e encontram-se em precárias condições de conservação, consequentemente,
totalmente desconhecidos pelos realizadores contemporâneos.
Ainda, além de O Coqueiro (1977), de Alex Santos, os filmes mais conhecidos dessa fase inicial de utilização do Super-8 na Paraíba são a trilogia de Archidy Picado: Desencontro, O Garoto e Elegia para um Homem só, que foram exibidos na Jornada
Paraibana de Super-8 (1980).
Mas foi em Campina Grande onde se concentrou um permanente esforço para
uma produção regular de cinema em 16 mm. A criação do curso de Comunicação
Social em 1974 pela Universidade Regional do Nordeste possibilitou o aglutinamen62
to de cineclubistas e profissionais da área, o que resultou em iniciativas concretas no
campo da produção cinematográfica.
O conjunto dessas produções campinenses tem como líder o cineasta Machado
Bitencourt, que chega a implantar uma empresa de produção, revelação e montagem - a Cinética Filmes Ltda. Machado é considerado um dos únicos profissionais
sediados na Paraíba que conseguiu manter uma produção regular, pela preocupação
que teve de instaurar uma infraestrutura pessoal, em que pode mediar o lado comercial de seu trabalho e, por outro lado, a feitura de projetos culturais não comerciais.
De 1975 a 1978 são concretizados cinco filmes 16 mm por Machado Bitencourt
com temática diversificada, seguindo quase sempre um estilo linear: O Último Coronel
(1975), Campina Grande, da Prensa do Algodão, da Prensa de Gutemberg (1975), Crônica de
Campina Grande (1976), o longa-metragem Maria Coragem (1977) e finalmente o curta
Fiação primitiva do Nordeste (1978). Já em João Pessoa com o apoio da UFPB, Fernando
Pereira elabora A Compadecida (1977) em 35 mm sem qualquer avanço do documentário no plano da linguagem cinematográfica.
No entanto, é só no ano de 1979 que de fato teremos a rearticulação do movimento de cinema seguido por um período de mais quatro anos com um fluxo contínuo de
produções em Super-8 vinculadas aos movimentos de contestação.
O filme Gadanho (1979) sobre os catadores de lixo do Baixo Roger, dirigido por
Pedro Nunes e João de Lima, é considerado o precursor desse novo surto de cinema
com marcas poéticas diferenciais e transgressão quanto a sua abordagem temática.
Gadanho
João de Lima
e Pedro Nunes,
1979.
63
Coincidentemente nesse mesmo ano ocorre a VIII Jornada Brasileira de Curta Metragem, transferida de Salvador para João Pessoa. É também nesse mesmo ano de
1979 que a Kodak declara oficialmente a falência do Super-8 projetando uma sobrevida da bitola por em média cinco anos. Esse era o prenúncio para nova era do vídeo
com um sistema de codificação distinto do cinema, assentado em base eletrônica.
Nessa fase de retomada da produção de cinema na Paraíba com a bitola Super-8,
as experiências em 16 mm declinaram de forma sintomática, restringindo-se ao grupo de Campina Grande e aos cineastas paraibanos residentes fora do estado.
Essa força do Super-8 em forma de movimento também presente em outros
estados brasileiros pode ser identificada com a realização do longa-metragem em
Super-8 Deu Prá Ti Anos 70, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, que recebeu o
prêmio de melhor filme no Festival de Gramado em 1981. A obra provocou um impacto junto ao público e crítica especializada pela criatividade dada no tratamento
da linguagem e do tema, acerca de um grupo de adolescentes que desperta para
curtir a vida num período de repressão militar. Deu Prá Ti Anos 70 concorreu com
vários outros filmes em 35 mm.
Na Paraíba, com a irrupção do terceiro ciclo de cinema quebra-se a visão de
cinema grandiloquente com a aparição de táticas novas de intervenção cultural.
A noção de cinema é radicalizada a partir do fazer cinematográfico associado ao
processo simplificado de recursos técnicos. É a partir da “abertura” política que o
movimento de cinema cresce com uma preocupação mais comprometida com os
movimentos sociais que despontam da sua situação de clandestinidade. Nesse período um total de 55 filmes são produzidos por autores, com apoio da UFPB, Cinética
Filmes e outros apoiadores. Esses filmes abarcam temas ligados ao cotidiano dos
setores oprimidos e promovem o questionamento do próprio momento político de
crise econômica que atravessava o país.
Há visivelmente um aumento quantitativo e qualitativo da produção cinematográfica com temáticas regionais que reinterpretam e reencenam as dinâmicas de
realidades locais conflitantes.
Retrato verbal dinâmico do
terceiro ciclo de cinema na Paraíba
O terceiro surto de cinema na Paraíba trouxe, de forma desordenada, o desejo de
mudanças, a renovação no quadro cinematográfico, a necessidade de afirmação da produção e a preocupação latente em criar narrativas audiovisuais enfocando os diversos
aspectos da vida social. Percebe-se por parte dos jovens envolvidos no terceiro ciclo de
cinema um aprendizado gradativo quanto ao manejo da linguagem e à crescente inquietação com a ruptura temática e narrativa nos filmes.
Há também, conforme o andamento dessas realizações, uma repulsa às produções polidamente engajadas. A tematização dos filmes volta-se inicialmente para abordagem dos
64
conflitos e contradições sociais aproximando nessa primeira fase do terceiro ciclo a uma
tradição mais documental de cinema. Na sequência temos a existência de um conjunto de
filmes com temáticas relacionadas à sexualidade que tendem à experimentação da ficção.
A quase totalidade desta produção cinematográfica do terceiro ciclo foi concluída por
jovens cineastas estreantes que optaram por efetuar leituras bem singulares da realidade
paraibana. Isso demonstrou efetivamente a renovação no quadro cinematográfico com a
entrada em cena de novos protagonistas no processo de produção cinematográfica.
Conforme afirmamos, os grupos em atuação do terceiro ciclo do cinema não vivenciaram uma luta política formal de esquerda. São filhos bastardos do regime militar. Mas isto não quer dizer que não houve uma preocupação dos realizadores
quanto ao resgate de problemas sociais e problemas quanto à censura de filmes e
censura imposta às Mostras de Cinema.
Há sem dúvida, nos documentários/registros da fase inicial desse ciclo, um traço
forte de crítica ao regime militar. Identificamos um engajamento mais libertário. Os
movimentos sociais, greves, passeatas, acampamentos de posseiros ou mesmo as disparidades urbanas, são elementos temáticos frequentemente abordados no conjunto dessa
produção cinematográfica.
A intenção expressa é registrar a dinâmica de aspectos da realidade paraibana, vinculando estas representações de práticas culturais à própria dinâmica da sociedade.
Num segundo momento a orientação temática dos filmes volta-se para o tratamento da
questão da sexualidade, homossexualidade, amor, solidão e o questionamento visceral
das formas de poder que castram a liberdade do indivíduo na sociedade contemporânea. Essa característica de abordagem temática enfatiza as marcas de transgressão
presentes nesse novo ciclo de cinema.
Além do caráter artesanal desta produção, constatou-se uma permanente preocupação entre os próprios cineastas com o intento de ativar a produção local. Se houve
por um lado a necessidade patente de afirmação da produção, por outro, o surto em si
é uma resposta a uma crise de produções locais.
Mesmo com a iniciativa dos integrantes do novo surto em imprimir impulso voltado
para “o fazer” cinematográfico em si, o grosso dessa produção traz marcas profundas de
precariedades financeiras. Apesar do relativo barateamento do material fílmico em Super-8, e da impossibilidade de se experimentar em 16 mm, há uma grande dificuldade
de produção. Essa dificuldade gerava quase sempre impasses na finalização dos filmes
da forma como foram originalmente concebidos, tendo como resultante verdadeiras
improvisações. Reclamava-se constantemente o apoio da Universidade e dos órgãos estatais para que não houvesse um cessar no ritmo continuado da produção de filmes.
As condições de produção dos filmes estão dispostas da seguinte forma: filmes de
produção do autor; filmes produzidos com apoio Institucional da Universidade (UFPB) – Núcleo de Documentação Cinematográfica – NUDOC/UFPB, Programa Bolsa Arte MEC/UFPB, Núcleo de Pesquisa Popular – Nuppo/UFPB, Cursos
de Comunicação Social e Educação Artística/UFPB e Campus II/UFPB/CG e URNe
– Universidade Regional do Nordeste, CG (Curso de Comunicação Social URNe/
65
CG), filmes com produção da Cinética Filmes CG e em menor grau filmes produzidos com apoio da Igreja através do SEDOP (Serviço de Documentação Popular).
Quadro Demonstrativo da Produção Cinematográfica
PRODUÇÃO
UFPB
AUTOR
ANO
NUDOC
AUTOR/BOLSA ARTE
CAMPUS II
CINÉTICA
OUTROS
1979
1
—
1
1
2
1
1980
1
—
3
—
2
—
1981
3
8
—
—
2
1
1982
3
8
—
1
—
1
1983
4
8
—
—
2
2
TOTAL
12
24
4
2
8
5
O quadro acima mostra as condições de produção encontradas ou criadas pelos
realizadores de cinema integrantes do terceiro ciclo de cinema na Paraíba. Desse total,
12 filmes foram finalizados com recursos financeiros próprios ou com incentivo material
de filmes e equipamentos, sem que houvesse uma interferência no processo de criação.
Jomard Muniz de Britto descreve as suas condições de produção destacando a facilidade de se fazer Super-8 em termos econômicos:
1
Entrevista com
Jomard Muniz de
Britto concedida
ao autor. Recife,
06/10/85.
66
É claro que muita gente tinha vontade de fazer 16 mm, 35 mm ou 3ª dimensão, mas
não se tinha condições econômicas. Eu pude fazer vários filmes com recursos próprios
com meu salário de professor, sem ajuda de Instituição. Consegui tirar do meu salário
para produzir filmes, quer dizer, entrava na produção atores que nunca ganharam
dinheiro comigo (BRITTO, 1985)1.
Poucos realizadores autofinanciam sua produção: Jomard Muniz de Britto com
Esperando João (1981), Cidade dos Homens (1982) e Paraíba Masculina Feminina Neutra
(1982), Lauro Nascimento com Acalanto Bestiale (1981), Miserere Nobis (1982) e Terceira Estação de uma via Dolorosa (1983), Alberto Júnior com Contrastes da Vida (1980),
Pedro Nunes com Closes (1982) e Henrique Magalhães com Era Vermelho o seu Batom, todos em Super-8; nesses filmes há claramente a preocupação de cada autor
em trabalhar o cinema enquanto instrumento criativo. No caso de Jomard Muniz
e Lauro Nascimento percebe-se uma preocupação no tratamento da imagem e
uma maior fluência narrativa em termos de arranjos formais com a finalidade de se
obter maior atenção do espectador.
Observando o quadro constatamos que o maior quantitativo desses filmes foi produzido com o apoio da Universidade Federal da Paraíba interessada em ampliar sua
participação na comunidade, sobretudo no âmbito da extensão cultural, principalmente através do Programa Bolsa Arte, Campus II e do Núcleo de Documentação
Cinematográfica – NUDOC com 24 filmes finalizados.
Antes da implantação do NUDOC na UFPB em 1980, as primeiras realizações deste terceiro ciclo de cinema foram montadas de forma rudimentar, sem auxílio de editor/
moviola. Esses filmes são basicamente documentários: Gadanho (1979), de João de Lima
e Pedro Nunes, Imagens de Declínio ou Beba Cola e Babe Cola (1980), de Torquato Lima e
Bertrand Lira, Contrapontos (1980), de Pedro Nunes e Contrastes da Vida (1980), de Alberto
Júnior. As propostas, através de seus realizadores, receberam o incentivo do programa
Bolsa Arte da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da UFPB.
Com o convênio assinado entre a Associação Varan-Paris e a UFPB, este panorama de dificuldades alteraria de forma significativa favorecendo o incremento
da produção cinematográfica local. A implantação da infraestrutura completa em
Super-8 (câmeras, tripés, iluminação, gravador, gerador, editores, telas e projetores) atenuou parte das dificuldades habitualmente encontradas pelos realizadores.
A Universidade através do NUDOC limitou-se a financiar apenas os exercícios/
filmes dos integrantes matriculados no curso de Cinema Direto e apoiar projetos
que dependiam do uso de equipamentos de gravação ou montagem. Em termos de
produção do NUDOC, a maioria dessas realizações apresenta deficiências técnicas de filmagem, montagem e som. Em seu conjunto são exercícios fílmicos inacabados, embora haja experiências que conseguem transpor o mero registro de imagens e falas. O rigor dessa produção se concentra muito mais na escolha temática
sempre angulando um personagem real.
O Núcleo de Documentação
Cinematográfica e o Cinema Direto
Tanto a criação de um núcleo de produção na Universidade (NUDOC), como a instalação do Atelier de Cinema no NUDOC, que direcionaria toda sua produção para o
Super-8, ambas as iniciativas nascem nesse contexto de rearticulação de movimento de
cinema na Paraíba ocorrido a partir da VIII Jornada de Cinema. Essas duas propostas
receberam o aval dos integrantes da “geração sessenta” que projetavam criar as bases
para uma estrutura profissional de cinema. Vale destacar que a presença da geração do
terceiro ciclo do cinema nos debates e rumos do cinema paraibano só viria acontecer no
início dos anos 1980.
O Núcleo de Documentação Cinematográfica desde a sua criação na gestão do
Reitor da UFPB Lynaldo Cavalcanti, direcionou a formação de recursos humanos a
partir do curso de Cinema Direto com filmes produzidos em Super-8. Se por um lado
a iniciativa abria as portas para iniciantes incursionarem no aprendizado de técnicas
67
introdutórias ao cinema, por outro entrava em choque com as diretrizes traçadas por
Manfredo Caldas, Vladimir Carvalho, Jurandy Moura, Linduarte Noronha, Ipojuca
Pontes, entre outros. Segundo parecer de Manfredo Caldas:
Miserere
Nobis
Lauro Nascimento,
1982.
Uma coisa que eu também achei que foi uma distorção nesse movimento foi a entrada
do Atelier de Cinema Direto. Fui contra porque ele atravessou por oportunismo de
pessoas daqui, que deram mais ênfase a esse convênio em nível de experimentação
do Super-8, que tudo bem poder fazer isso, mas teria que ser uma coisa paralela.
Isso foi muito mal conduzido, não podia em detrimento de uma estrutura profissional
que estava se criando, você dar ênfase a uma coisa experimental de mistificação da
linguagem que é toda a teoria do Cinema Direto. Reservo-me no direito de achar que
foi uma grande bobagem (CALDAS, 1987).
O projeto inicial de cooperação entre o Centro de Formação e Pesquisa em Cinema Direto - Associação Varan-Paris e a Universidade Federal da Paraíba, além da
implantação de um sistema completo para produção em Super-8, previa a doação
pelo governo francês de um moviola em 16 mm, um gravador profissional e um
laboratório de ampliação de Super-8 para o 16 mm, cláusula essa não cumprida. A
68
contrapartida dessa infraestrutura profissional foi uma condição apresentada para a
efetivação do projeto, feita diretamente ao cineasta francês durante a VIII Jornada,
por vários cineastas paraibanos:
Nós fizemos pessoalmente uma série de exigências ao Jean Rouch quando ele veio
com uma proposta que tinha sido recusada em diversos estados do país. Mas era
desprestígio pra ele voltar sem ter feito um convênio com qualquer Universidade
brasileira. Então a que estava pintando ser mais fácil era a daqui. [...] Teria que vir
um equipamento em 16 mm, não seria só Super-8, pra somar com o que a gente
tinha conseguido, e isso ele concordou e não cumpriu (CALDAS, 1987).
Dos vários estágios realizados na França por alunos e professores indicados
pelo NUDOC, apenas foi ministrado um curso em 16 mm para três alunos.
O NUDOC passa a atuar então com uma infraestrutura de espaço físico e material de consumo da UFPB e com material doado para implantação do Atelier de
Cinema na Paraíba. Funciona como ponto central de discussão e encontro dessa
nova geração que despontou a partir da realização dos estágios nesse Núcleo. No
período funcionou concedendo empréstimo de equipamentos e de filmes para a
comunidade, capacitando pessoal técnico além de produzir filmes na linha do Cinema Direto, registrando as atividades de pesquisa e extensão mais importantes
da Universidade.
Além de Pedro Santos como coordenador, atuou também ao seu lado o cineasta Manfredo Caldas, que no período de sua permanência em João Pessoa passou
a incentivar os novos realizadores no sentido de lutar não só por uma atuação
profissional no campo de cinema, mas despertando a necessidade de organização
política em torno da ABD/PB (Associação Brasileira de Documentaristas) criada
em 1982 durante a realização do Festival de Arte na cidade de Areia-PB.
Documentação de aspectos da realidade
Como já afirmamos com o início da abertura política no país, novos ventos indicam
um reaquecimento da produção cinematográfica na Paraíba. O ressurgimento desta
produção toma corpo de forma espontânea a partir de 1979 ainda sob a influência da
tradição documental predominante nos anos 1960 e 1970. Assim as primeiras realizações do novo ciclo são expressamente de linhagem documental trazendo à tona temáticas sociais que evidenciam as complexidades da realidade. Os problemas urbanos, o
desemprego, os movimentos sociais e o homem frente aos diversos níveis de exploração
são pontos preferidos para enfoque por vários cineastas.
O momento político torna-se favorável para elaboração de produtos culturais
abordando a problemática social, sobretudo pela mobilização efervescente dos setores populares da sociedade. A retomada ou mesmo o ressurgimento da produção de
cinema na Paraíba com características de combate surge num contexto de crescen69
Ciclo do tes mobilizações, retorno do movimento estudantil, articulação dos movimentos de
Caranguejo liberação e custo de vida.
Vânia Perazzo,
1982.
2
MAGALHÃES,
Henrique.
Entrevista a
Bertrand Lira
– Cadernos do
CCHLA , n. 8, p. 8.
70
Neste primeiro momento da retomada da produção fílmica temos um bloco de filmes que captam os conflitos presentes na grande cidade. São filmes realizados totalmente em espaço aberto tendo o próprio ambiente natural como cenário. Em cada um dos
filmes, o realizador assume o papel de repórter que não aparece, investigando os fatos
eleitos para enfoque.
Imagens do Declínio ou Beba Coca e Babe Cola (1981), de Bertrand Lira e Torquato
Joel, é uma mistura de documentário e ficção que mostra a dura realidade das favelas
e a presença das multinacionais no Brasil. É uma versão realista adicionada de alguns
elementos de deboche... Já Gadanho (1979), de João de Lima e Pedro Nunes, é o primeiro filme deste novo ciclo, baixo orçamento e com ampla repercussão no estado.
Segundo Henrique Magalhães:
Um dado importante foi a realização de Gadanho, pois a partir dele se rompeu com
estagnação do cinema na Paraíba. A gente só tinha conhecimento do que foi produzido durante o movimento do cinema novo. Havia uma produção em Super-8, mas não
era sistemática e alcançava um número muito limitado de pessoas. A partir de Gadanho houve uma retomada do cinema na Paraíba porque se alcançou um público maior
e muita gente se interessou em fazer Super-8 (MAGALHÃES, 1986, p. 8).2
O filme tem como cenário o lixão de João Pessoa localizando no Baixo Roger e
presença dos catadores, seres humanos que disputam com os urubus a primazia do
lixo. O documentário consegue despertar um amplo interesse nas escolas públicas
da rede estadual e nas escolas privadas pela força das imagens com pessoas que se
perdem na fumaça do lixo.
Procurando ainda desnudar a dinâmica da engrenagem urbana, Contra-pontos (1981) e Registro, de Pedro Nunes, enfatizam as disparidades do espaço urbano em João Pessoa e a primeira greve estudantil a partir de 1968
ocorrida na Paraíba, respectivamente.
Mas é o Núcleo de Documentação Cinematográfica – NUDOC que desponta
com um maior número de realizações acabadas após a finalização de três estágios
do curso de Cinema Direto.
As obras produzidas pelo NUDOC privilegiam também o universo cotidiano com a captação do som direto. Os filmes são verdadeiros
registros brutos da realidade.
O Mestre de Obras (1981), de Newton Araújo Jr., retrata a vida e as dificuldades
de um trabalhador da construção civil com sua residência ainda inacabada. Um
dado expressivo no trabalho é uma música composta por Chico César especialmente para o filme. Enfocando o homem e sua situação de miséria e criatividade, Vânia Perazzo filma É Romão pra qui é Romão pra colá em 1981. Romão é um
músico artesão que confecciona seu próprio instrumento de trabalho (berimbau)
exibindo suas criações musicais em feiras livres do interior paraibano.
A reflexão em torno das condições de vida do ser humano é um traço muito
marcante nos demais filmes produzidos pelo NUDOC. As Cegas (1982), de Maria
Antonia, Bernadete (1983), de Maria Graça Lira e O Menor (1983), de João Galvíncio
Jr., são filmes de crítica social explícita. Em todos os trabalhos as precariedades técnicas são bem visíveis. O primeiro destaca a convivência de três deficientes visuais
pedintes na cidade de Campina Grande. Já Bernadete discorre acerca da vida de uma
lavadeira, seus problemas e o sonho de um dia poder trabalhar em São Paulo. Em
O Menor, o autor confronta depoimentos de representantes de órgãos oficiais com a
fala de menores.
Na linhagem de sempre orientar suas produções para registro da realidade regional, o NUDOC enfatiza o tema movimentos sociais urbanos nos seguintes filmes: A
Greve (1982) direção coletiva, sobre o movimento paredista de professores, alunos e
funcionários da UFPB, Quando um Bairro não se Cala (1983), de Marcus Vilar, sobre o
trabalho do movimento de bairro desenvolvido pelo grupo Fala Jaguaribe que tem
como meta trabalhar a educação através da arte junto à população.
Ainda no âmbito do NUDOC, Elisa Cabral elaborou vários filmes num projeto que autodenominou “Cinema e Sociologia”. Ciclo do Caranguejo (1982)
retrata a infraestrutura econômica da pesca do caranguejo, Visões do Mangue (1982) a tentativa é abordar a visão de mundo e os mitos dos pescadores e
Sobre a evolução das Sociedades (1983).
Mas dessa produção do NUDOC vale destacar do conjunto, duas películas realizadas em 1981 no primeiro estágio de Cinema Direto: Perequeté (1981), de Bertrand
71
Lira, e Sagrada Família (1981), de Everaldo Vasconcelos. Em Perequeté, o autor documenta a vida, as fantasias e as dificuldades do artista paraibano Francisco Marto.
Enquanto discorre acerca de seu esforço no campo do teatro, cinema e dança e do
preconceito enfrentado pelos artistas, é mostrado cenas de diversos momentos de
seu trabalho. Em a Sagrada Família a câmera apresenta-se constantemente inquieta e
Tá na Rua aos poucos viola o espaço sagrado da família revelando seus conflitos neuróticos e o
Henrique
Magalhães, 1981.
72
choque de gerações. Os dois filmes apresentam preocupações de linguagem quanto
à fotografia, procedimentos de montagem, além de transgredirem a própria linha do
Cinema Direto, notadamente em Sagrada Família. Dos filmes produzidos pelo NUDOC nos três estágios do Curso de Cinema Direto, pode-se considerar como propostas mais amadurecidas com traços diferenciais em relação aos demais trabalhos
ou exercícios fílmicos.
Outros filmes também conseguem transgredir a linha mestra do Cinema Direto
pela abordagem temática se encaixando também dentro deste espírito de ruptura
dos trabalhos anteriores. São eles: Música sem Preconceito (1983), de Alberto Júnior, que
numa fusão de documentário e ficção com depoimentos de músicos e ensaios de grupos mostra a importância do rock para a juventude e a sua penetração na sociedade,
Pedro Osmar em Carne e Osso (1982), de Otávio Cássio, enfoca a experiência de pesquisa
musical criativa desenvolvida pelo músico Pedro Osmar juntamente com o grupo
que faz parte do “Jaguaribe Carne”. Caminhando também na contramão e fugindo
do enfoque sociológico, Henrique Magalhães realiza Canto do povo de um Lugar (1981).
O filme é um cartão postal de João Pessoa com a música de Caetano Veloso e Tá na
Rua (1981) um documentário que registra a passagem do grupo teatral Tá na rua em
João Pessoa, liderado por Amin Hadad. A interação atores e espectadores é pontilhada tornando clara a quebra com o teatro tradicional. Finalmente, Sonho Destrela
(1983) foge à concepção de abordagem sócioantropológica adotada pelo Cinema
Direto. Segundo Bertrand Lira (1986, p. 11): “Sonho Destrela é a vida de um artista
de interior sem perspectiva de profissionalização e nem acesso aos produtores
de discos. A frustração de não ser famosa a deixa profundamente descrente. É o
filme final do autor de peças teatrais Eliézer Rolim”.
Com esses trabalhos os respectivos autores mostraram que seria possível utilizar os recursos do Cinema Direito e driblar as suas convenções
muito mais direcionadas para a captação crua e com pouca interferência
de aspectos da realidade social.
Há também um grupo de filmes feitos dentro e fora do NUDOC que se
afastam da temática urbana e seguem para um levantamento de questões
pertinentes à zona rural. Nos estágios do NUDOC, dois filmes seguem esta
orientação: Emergência/Seca (1982), de Torquato Joel, relata a vida de um grupo
de camponeses que vivem nas proximidades do açude de Orós-CE em pleno
período de seca e Manipueira (1982), de Maria Aparecida, que mostra o processo
artesanal de colheita da mandioca e a feitura da farinha de mandioca. O que eu
conto do sertão é Isso (1979), 16 mm de José Umbelino e Romero Azevedo, realizado
na cidade de Campina Grande, também se desloca da zona urbana para o campo
e revela a miséria do sertão nordestino. Anos mais tarde, José Umbelino filmaria
o documentário longa-metragem em 16 mm Lutas de Vida e Morte (1982) com
a colaboração da Arquidiocese da Paraíba, onde discute questões referentes às
Ligas Camponesas na Paraíba. Além desses trabalhos que dão preferência em
sua abordagem à questão rural, duas outras películas produzidas fora do NUDOC,
A luta do Povo de Capim de Cheiro (1982), direção coletiva com a participação de Pedro
Nunes, Sedi Marques e do grupo de “Atuação no meio Rural do Centro de Educação
– PRONASEC-UFPB” e Camucim Cinco Anos de Luta (1983), de José Barbosa, versam
sobre os conflitos de terra na região de Capim de Cheiro e Camucin-PB.
Neste novo ciclo verifica-se que as produções em 16 mm são numericamente bem
reduzidas. Dois trabalhos nesta bitola vêm lançar elementos de discussão em torno
do fazer cinematográfico na Paraíba, da necessidade de uma infraestrutura básica
para incremento da produção local e lançam também um painel da própria História
de luta do cinema feito na Paraíba: Cinema Paraibano – Vinte Anos (1983), de Manfredo
Caldas e fotografia de Valter Carvalho, e Cinema Inacabado (1981), de Machado
Bittencourt e Alex Santos. Cinema Paraibano – Vinte Anos resgata em suas imagens e
depoimentos a discussão do ciclo paraibano de filmes dos anos 1960 iniciado por
Aruanda. Segundo Alex Viany:
73
3
Depoimento
de Alex Vianny
a Manfredo
Caldas no Rio de
Janeiro. O filme
recebeu o prêmio
Glauber Rocha e
prêmio de melhor
documentário
na XII Jornada
Brasileira de Curta
Metragem (1983
em Salvador-BA).
4
Texto distribuído
pela Cinética
Filmes de Campina
Grande – s/d.
74
Esse documentário “Cinema Paraibano – Vinte Anos”, eu não sei se há ou se já foi feito
um filme semelhante porque é um documentário sobre um ciclo, como parte dele. Na
verdade, é uma coisa que procura falar de um ciclo, não somente com depoimento,
mas com reflexão de linguagem, de propostas e está tudo muito inteiro. [...] Esse
filme é vivo, é reprodutivo, está em reprodução. [...] Não é uma coisa de jeito nenhum
reflexiva sobre um passado acabado, é sobre uma coisa viva e que vai ajudar não só
na discussão, mas no trabalho mesmo (VIANNY, 1983).3
O outro filme que se enquadra nesta mesma abordagem é Cinema Inacabado, que procura
questionar o porquê de tantos projetos fílmicos inconclusos na Paraíba. Na medida em
que os depoimentos ocorrem são exibidos trechos dos filmes inacabados como: Libertação,
de Carlos Aranha, Uma Aventura Capitalista, de Antonio Barreto Neto, Arribação, de Alex
Santos, O Adro, de Pedro Santos e fotos de Contraponto sem Música, de Paulo Mello e Virginius
da Gama e Mello e fotografia de Machado Bittencourt. Ainda no filme, temos a presença
marcante do cineasta e fotógrafo João Córdula que depõe sobre a trajetória do Cinema
Educativo na Paraíba, além de depoimentos do crítico Wills Leal e cineasta Linduarte
Noronha que falam do ciclo espiritual do cinema, ou seja, dos filmes e roteiros que jamais
foram concretizados. Para Machado Bittencourt, um dos diretores do filme, a obra:
Mostra o esforço dos inacabados enquanto explica porque esses filmes não foram
concluídos na Paraíba. Além dessa abordagem, o filme abre espaço para depoimentos
de Pedro Santos e Wills, esse último depondo sobre outro ciclo de cinema na Paraíba
– o ciclo do cinema espiritual (CINÉTICA FILMES, s/d.).4
Machado Bittencourt junto a sua atividade comercial, a produtora Cinética Filmes
em Campina Grande, elabora outros trabalhos de cunho cultural em 16 mm. Por sinal,
é o único cineasta até então que consegue desenvolver uma produção regular nessa
bitola. Em Teares de São Bento (1979), o autor destaca o fabrico de redes na pequena
cidade de São Bento na Paraíba, sendo esta a principal atividade econômica local. Em
1980 finaliza dois curtas com alunos do curso de Comunicação Social da Universidade
Regional do Nordeste – URNe: Com a palavra, a Mulher, o documentário retrata o papel
da mulher, da liberdade, do casamento, da existência do romantismo; e Festas Juninas,
que é o trabalho que mostra os costumes nordestinos nas festas de S. João e S. Pedro em
Campina Grande. A Seca no Cariri (1983) e Miguel Guilherme (1983) são trabalhos seguintes
do autor. O primeiro mostra o flagelo da seca no Nordeste, particularmente na região
do Cariri, este está enquadrado no bloco de filmes que fogem da temática urbana; o
segundo relata a vida do artista plástico Guilherme dos Santos, reconhecido por suas
esculturas e pinturas nos tetos das igrejas.
Os filmes produzidos por Machado Bittencourt são pouco conhecidos pelo público.
O projeto de divulgação maior foi dedicado a Cinema Inacabado e O Caso Carlota (1981),
longa-metragem em ficção a partir de dados reais versando a questão da sexualidade.
Experimentação da Ficção:
A explosão temática da sexualidade
Após a etapa de filmes que se orientam para o estilo documental, pode-se destacar
no elenco das realizações desse novo ciclo um bloco significativo de filmes que tratam a
questão da sexualidade com inclinações para a ficção. A explicação para esta escolha está
no fato de que sexualidade sempre foi um tema tabu, estando bem presente nas relações
de dominação da sociedade patriarcal. A própria esquerda de um modo geral sempre considerou a sexualidade como um assunto de pauta não prioritário em suas discussões nos
anos 1970. Os grupos homossexuais e, sobretudo os grupos feministas da época, procuram
avançar na compreensão do tema, valorizando o prazer, lutando contra a discriminação,
combatendo a visão de sexualidade unicamente para fins de reprodução.
Em João Pessoa, a conjuntura política do país contribuiu de certa forma para o afloramento de produções que investigaram a sexualidade. Para Henrique Magalhães:
A importância dessa fase é a contemporaneidade com o que o cinema respondeu à
efervescência das mudanças políticas, sociais e existenciais do início dos anos 80. O
cinema na mão de cineastas envolvidos diretamente com esta nova realidade, tornou-se um objeto de reflexão, militância e provocação, conseguindo com eficiência
suas respostas, através do grande fluxo do público às exibições e gerando discussões
em torno das ideias transmitidas (MAGALHÃES, 1987, p. 2).
Neste período, final dos anos 1960 e início dos anos 1980, surgem os grupos:
Maria Mulher, cuja linha de atuação se orientou no sentido e refletir a opressão da
mulher e grupo homossexual; Nós Também, que desde a sua criação em 1980 se
emprenhou em direcionar sua força contra qualquer tipo de discriminação expressando-se principalmente pela livre opção da sexualidade através da arte. Isto é o que
também confirma Bertrand Lira:
É também nesse contexto de abertura que surgem grupos de militância sexual, racial
e partidária, entre outros, que antes, devido a conjuntura política, permaneciam sem
se manifestarem. Em João Pessoa, é criado o ‘Nós Também’ um grupo de militantes
homossexuais, que tinha como proposta original, a de militar através da arte (envelopes que continham fotos, poesia, arte-xerox etc.), pichando muros, fixando outdoors
e até com a produção e realização de um filme: ‘Baltazar da Lomba’ ... Fruto de longas
discussões entre os componentes do grupo, responsável pela sua produção, direção e
realização, resultando num filme bem acabado (LIRA, 1986, p. 8-9).
Do conjunto de 13 filmes que manejam acerca da questão da sexualidade, o enfoque escolhido em 10 deles é a abordagem da homossexualidade5. São filmes que
apresentam informações reveladoras sobre o assunto, fazendo uma leitura crítica dos
5
Filmes sobre
sexualidade:
Esperando João,
de Jomard
Muniz de Britto,
Acalanto Bestiale,
Miserere Nobis e
Terceira Estação
de uma Via
Dolorosa, de
Lauro Nascimento,
Closes, de Pedro
Nunes, Cidade
dos Homens e
Paraíba Masculina
Feminina Neutra,
de J. M. de Britto,
Baltazar da
Lomba, do Grupo
Nós Também,
Era Vermelho
seu Batom,
de Henrique
Magalhães, O
caso Carlota,
de Machado
Bittencourt,
Na Cama, de
Romero Azevedo,
Flagrante Delito,
de Rômulo
Azevedo,
Perequeté, de
Bertrand Lira.
75
6
Henrique
Magalhães
em entrevista
concedida ao autor
observa que alguns
filmes de produção
do autor receberam
apoio do NUDOC
quanto à utilização
de equipamentos:
“Inclusive Baltazar
da Lomba que
foi proibido pela
Polícia Federal, mas
passou no NUPPO
(Núcleo de Pesquisa
Popular) sob a
responsabilidade
da UFPB”. Situando
apenas um exemplo
também como
contrapartida, os
filmes de Jomard
Muniz de Britto
não receberam
o aval da UFPB,
o realizador foi
diretamente
pressionado pelos
agentes da Censura
Federal tendo que
submetê-los ao
crivo dos censores
locais para exibição
pública. De igual
modo, Pedro Nunes
com o filme Closes
foi obrigado a
submeter o referido
filme à censura
com a presença de
agentes policiais
federais com armas
em punho.
76
padrões morais e sociedade e suas crescentes formas de punição e controle. Quando
confrontados aos filmes de cunho documental da primeira fase desse mesmo ciclo,
esses filmes são considerados ousados e até pioneiros pela coragem dos realizadores
de trazer à tona o debate sobre a prática sexual entre indivíduos do mesmo sexo, sem
as caricaturas ou deboches presentes em grande parte da produção cultural voltada para o mesmo tema. Além da inserção de elementos de experimentação; maior
cuidado com a fotografia e montagem, a característica marcante nestas realizações
é examinar os condicionamentos autoritários e as regras de comportamento ditadas
pela escola, família, igreja, trabalho... refutando os valores retrógados que imperam
na sociedade com relação à homossexualidade. Neste sentido esses filmes são extremamente ousados e transgressores principalmente pela forma como apresentam ou
debatem os espectros da sexualidade humana.
Um dado novo observado nessa retomada da produção cinematográfica na Paraíba é, também, a experimentação da ficção. São filmes produzidos em sua maioria
com recursos financeiros do próprio autor obtendo maior repercussão em relação
aos trabalhos anteriores direcionados de forma mais acadêmica para o registro social
da realidade paraibana.
Mesmo tendo em conta que parte dos realizadores tenha sofrido restrições de
órgãos oficiais inviabilizando apoios de produção, negando espaços públicos para
exibição de filmes ou isentando-se quanto ao apoio aos realizadores quanto às perseguições da Polícia Federal, esses filmes obtêm uma grande aceitação do público6.
A partir deles, o Cinema Independente na Paraíba amadurece enquanto proposta,
passa a discutir a possibilidade de implantação de uma infraestrutura profissional.
Em decorrência desse amadurecimento há, como já dissemos, uma atenção explícita
dos realizadores quanto à escolha temática, além da inserção de elementos novos de
linguagem, sem cair no didatismo linear dos filmes da primeira fase.
O enfoque temático da sexualidade inicia-se com dois filmes de ficção bem distintos: Esperando João (1981), de Jomard Muniz de Britto e O Caso Carlota (1981), de
Machado Bittencourt. Os dois, em nada se afinam; o primeiro, em Super-8 ironiza
agilmente valores conservadores incrustados na província antecipando o filme de
Tizuka Yamasaki – Paraíba Mulher Macho (1983) com grande sucesso no circuito comercial. No filme, Jomard Muniz de Britto utiliza três atores e três atrizes que vivem
o papel de Anayde Beiriz, amante de João Dantas e responsável pelo assassinato de
João Pessoa, governador da Paraíba na época. Anayde, no filme aparece na eterna
espera de João Dantas e se transforma a cada vez que um mágico retira de sua cartola revelações sobre a cidade.
Para Lauro Nascimento:
O mágico que habita a cidade é um VAMPIRO TRITURADOR que analisa e manipula dados
escondidos entre-grades, entre-muralhas, entre-abertas verdades nas janelas mentirosas. [...] Trata-se muito mais de um acender de luzes da cidade em pleno dia para que se
leia uma estória dentro da história que sequer igual e repetitiva (NASCIMENTO, 1981, p. 2).
O segundo filme, O Caso Carlota, possui uma narrativa extremamente convencional. Baseado em episódio ocorrido na cidade de Areia-PB em meados do século
XIX. Carlota torna-se amante de Quincas Leal, político oposicionista do partido
liberal, chocando a sociedade local por sua desenvoltura amorosa. Ofendida publicamente por um integrante do partido conservador, Carlota planeja seu assassinato
como vingança. Levada para prisão em Fernando de Noronha após cometer o assassinato, consegue indulto pelo envolvimento amoroso com o diretor do presídio.
Recheado de cenas eróticas, o filme não consegue avançar para o aprofundamento
do tema que se propõe investigar em forma de ficção.
Ainda em 1981, Perequeté, de Bertrand Lira, retrata o preconceito que sofre o artista na província paraibana. Embora sendo um documentário, incluso na primeira fase, o autor mescla sua obra com elementos de ficção demonstrando a discriminação de segmentos da sociedade em relação aos indivíduos que exercem
livremente a sua preferência sexual.
Já Henrique Magalhães, depois de concluir em parceria com Torquato Joel o filme
Les Etoiles (1983) durante um estágio em Paris no Atelier de Cinema Direto da Universidade de Nanterre, elabora Era Vermelho seu Batom (1983). Em 15 minutos, o filme mostra
o relacionamento de dois homens num acampamento de carnaval. No vale tudo da
movimentação carnavalesca, um deles flagra o outro fantasiado de mulher. A relação
se deteriora face a discriminação do parceiro. Segundo o próprio realizador, o filme Era
Vermelho seu Batom traduz as inquietações de uma geração também preocupada com os
conflitos existenciais como o amor e a solidão e com os grupos ligados a movimentos de
libertação de minorias, no caso, homossexual” (MAGALHÃES, 1983)7.
O grupo de militância homossexual Nós Também realiza o curta de 18 minutos
Baltazar da Lomba (1982) sobre a inquisição de um homossexual na Paraíba no período
do império. No entendimento de Gabriel Bechara:
Baltazar da Lomba foi o primeiro produto de um grupo que abria mão de uma militância política no sentido tradicional e achava por bem que a linguagem artística era
a mais adequada para tratar da questão homoerótica. [...] A preocupação nesse filme
é resgatar a história da perseguição, da intolerância em relação à homossexualidade
na primeira década da existência da inquisição na Paraíba em 1595. A rebeldia a nível
pessoal de Baltazar é uma rebeldia em relação a todo um modus vivendis que as elites
portuguesas tentam implantar na Colônia. Eu diria mesmo que Baltazar é o início da
irreverência brasileira de tantos outros perseguidos pelos autos inquisitoriais (BECHARA, 1987).8
Retratando ainda a mesma temática da homossexualidade, Closes (1982), de Pedro Nunes, consegue obter um grande impacto junto ao público, imprimindo uma
dimensão mais séria para o Super-8. O filme se impõe frente à crítica local, que
sempre agiu com reservas e ironias em relação ao Super-8, tornando a discussão da
homossexualidade ainda mais ampla. Misto de documentário e ficção, Closes reúne
7
MAGALHÃES,
Henrique. Cinema
e Província, João
Pessoa, A União,
25/05/1983.
8
Entrevista com
Gabriel Bechara
concedida
ao autor.
João Pessoa,
14/01/1987.
77
Era Vermelho em sua parte documental depoimentos diversificados sobre preferências pelo mesmo
o seu Batom sexo. Os depoimentos chocam-se, complementam-se e se contradizem. Na parte de
Henrique
Magalhães, 1983.
ficção, exibe a relação sexual entre dois rapazes onde um deles é obrigado a abandonar a cidade devido às pressões de família, da imprensa e da sociedade. Segundo
Jomard Muniz,
O grande rebuliço na província de João Pessoa foi realizado pelo filme Closes. Era a
temática nova, a problemática nova em termos de sexualidade, pela beleza formal do
filme tinha um encantamento visual muito grande. Isso foi um grande motivo para
acender a chama dessa sexualidade recalcada noutros filmes (BRITTO, 1985).
Percebe-se nesta fase a existência de um grupo compacto de realizadores intencionados em fazer filmes inovadores, não só em sua temática, mas também em exercitar o aprendizado da linguagem cinematográfica. Esta exercitação e ousadia temática estão bem mais presentes nesta fase de resgate da ficção.
A maioria desses filmes com gestos explícitos de transgressão temática associada à
ficção é de obras de produção de autor.
Apenas Perequeté dribla a orientação do estágio de Cinema Direto realizado no
NUDOC/UFPB em 1981, abordando o tema da sexualidade, lançando elementos
de ficção em sua obra.
Seguindo esta linha de se confeccionar trabalhos artísticos inventivos, dois auto78
res sobressaem-se do conjunto por atuarem exclusivamente no campo da ficção:
Lauro Nascimento e Jomard Muniz de Britto.
Lauro Nascimento trabalha a sexualidade sob o prisma da religiosidade. O
sagrado e o perverso fundem-se através da ótica barroca sensitiva do irrequieto
artista plástico. Em Acalanto Bestiale (1981) e Miserere Nobis (1982) o autor faz uma
fusão mística do imaculado e do profano, da pureza e da transgressão envoltos
numa ambiência religiosa. De um lado a imaginação de um garoto que materializa Jesus e o ama docemente. De outro, um Jesus contemporâneo adota a filosofia
“qualquer maneira de amar vale a pena”. Completando a trilogia ficcional, Segunda
Estação de uma Via Dolorosa (1983) é a investida seguinte de Lauro Nascimento com
a finalidade de mostrar o lado cru da prostituição masculina entre um intelectual
e um michê adolescente que mantém relação sexual unicamente por dinheiro. O
lado plástico, a cor, a luz, os cenários e o depuramento da imagem são aspectos
importantes enfatizados na trilogia de Lauro Nascimento.
Já Jomard Muniz ocupa um lugar de destaque na história do cinema paraibano e do cinema pernambucano. Agitador cultural dos anos 1960 e grande guru
e realizador da geração do terceiro ciclo de cinema dos anos 1980, imprimiu em
toda sua obra de literatura e cinema uma visão crítica e anárquica da cultura
brasileira. É autor de mais de 40 curtas em Super-8. Em sua trilogia paraibana
de filmes sobre sexualidade Esperando João (1981), Cidade dos Homens (1982) e Paraíba Masculina Feminina Neutra (1982), Jomard Muniz questiona os preconceitos
enraizados no cotidiano da província. Cidade dos Homens mostra a forte presença
masculina na cidade, nos bares, nas ruas, no trabalho, nas praças... na construção do
controvertido Espaço Cultural da cidade de João Pessoa.
Mas o filme mais importante do conjunto de realizações de Jomard Muniz de
Britto é Paraíba Masculina Feminina Neutra, o terceiro de sua trilogia e o único que
consegue realmente radicalizar a linguagem cinematográfica. Esta afirmação
é também endossada por Bertrand Lira: “Paraíba Masculina Feminina Neutra é sem
dúvidas o mais criativo desse cineasta que vive em constante atividade experimental no cinema. É com ‘Paraíba M.F.N.’ que Jomard demonstra maior intimidade
com a linguagem cinematográfica” (LIRA, 1986, p. 8).
Nesta obra, o autor investe contra a moral cotidiana, recortando ironicamente a
realidade e sempre colocando em xeque o discurso militante. O filme é construído a
partir de um discurso fragmentário composto por elementos díspares e imaginários,
tais como: um chicoteador que se rende aos pés de Maria Bonita, um professor conservador e uma professora marxicóloga, gerando impacto no espectador pela agressividade das imagens e do discurso verbal. O filme, em três tempos (presente, passado
e futuro) agrupa 12 personagens em constante metamorfose que percorrem favelas,
becos e vielas de João Pessoa. É o único que consegue realmente lançar elementos
novos em termos de provocações da linguagem cinematográfica e da sexualidade.
Três outros filmes de restrita divulgação podem ser citados no campo da ficção:
Na Cama (1981), de Romero Azevedo, Faon (1983), de Gabriel Bechara e Flagrante
79
Delito, de Rômulo Azevedo.
A importância desse ciclo marcado pela ampla receptividade do público se caracteriza pela busca de uma estética própria. Embora não tenha existido uma subversão no tocante ao avanço depurativo da linguagem, houve as iniciativas que
se encaminharam neste sentido, e o que é muito importante, exercitou-se a ficção
discorrendo sobre a homossexualidade.
A ruptura fundamental presente nessa produção é o enfoque temático em torno da sexualidade e a passagem, sob forma de ensaios, para a elaboração da ficção. Isto representa
um dado novo muito forte, pois a Paraíba sempre carregou desde décadas anteriores o traço notadamente documental em sua filmografia. É o que confirma Henrique Magalhães.
Baltazar
da Lomba
Direção coletiva,
1982.
A mudança proporcionada pelo uso do Super-8 como veículo dos novos experimentadores em cinema, deu-se pela preferência de se traduzir suas mensagens através da
ficção, rompendo a tradição documental da Paraíba. [...] A opção pela ficção seria um
sintoma desse novo tempo, na medida em que ela abre mais espaço para viagens e
universos particulares e interiores do cineasta (MAGALHÃES, 1987, p. 2).
A escolha pela ficção é aqui entendida não unicamente enquanto produtos culturais
com um roteiro criando imaginariamente novas situações, mas sim algo que se nutre e
extrapola as próprias contradições da realidade cotidiana.
Os documentários Perequeté, de Bertrand Lira, e Sagrada Família, de Everaldo Vasconcelos, foram elaborados no sentido de documentar o dia a dia de um ator e de
80
uma família respectivamente, findam por registrar e ficcionar criativamente recortes
de realidades humanas específicas. Isto comprova a dificuldade de se conceituar o que
é um filme documentário e o que é um filme de ficção. Há um embaralhamento de
gêneros embutido em ambos os filmes. Essa mistura que funciona como recurso criativo. No caso específico de Sagrada Família, o filme não aborda aparentemente a questão
da sexualidade visto que aparece oculta, de forma reprimida; o seu realizador explora
as tensões psicológicas de sua família, conseguindo a partir da seleção de ângulos, tomadas e estruturação das imagens, uma situação limítrofe de ficção e documentário.
Enquadram-se também nesta perspectiva de misturas entre gêneros os filmes de
Jomard Muniz, cujas obras adquirem vida própria ao tomar como pano de fundo
alguns pontos e locais estratégicos da cidade João Pessoa. Ficção e realidade também se entremesclam com a presença de atores que se inserem performaticamente na realidade e se confundem com os transeuntes.
Ao reunir situações díspares como: cultura marginal e cultura oficial, travesti
e policial machão, sempre reportadas ou extraídas de situações regionais, locais
ou nacionais, Jomard Muniz dispara através de suas narrativas uma avalanche
de informações que atuam como nocaute aos valores cristalizados da província.
Percebe-se então na leitura de sua obra que documento e ficção se interpõem.
Enfim é interessante observar que alguns desses filmes que versam sobre a
sexualidade conseguem mobilizar o público, chamar a atenção da imprensa e
formadores de opinião por trazer temas polêmicos para o debate. A mobilização
em torno desses filmes extrapola o estado da Paraíba a exemplo de Closes, que
percorreu vários estados brasileiros e circulou pela América Latina. Nesse período foram construídas alternativas de exibição em forma de animação cultural.
Essa iniciativa de circulação dos filmes se distinguia pela busca de canais paralelos junto às escolas, sindicatos, associações de bairro, periferias da zona urbana,
zona rural e interior do Estado. É um cinema itinerante onde cada realizador ou
integrante da comunidade encontrava fórmulas improvisadas para divulgação e
exibição dos filmes, ao ar livre ou mesmo em recintos fechados. Alguns desses
filmes também integraram as quatro Mostras de Cinema independente realizadas
no contexto do terceiro ciclo de cinema e que possibilitaram o contato com realizadores e filmes de outros estados brasileiros.
Considerações Finais
O terceiro ciclo cinematográfico na Paraíba representou a oportunidade de articulação espontânea de grupos de jovens principalmente junto à Universidade Federal
da Paraíba, que mobilizaram para produzir cinema enxergando o seu potencial como
expressão libertadora.
A marca deste novo surto ficou caracterizada pela utilização da minibitola Super-8,
adotada por uma geração emergente que utilizou o cinema como ferramenta de traba81
lho ideal para expressão dos conflitos políticos-existenciais em um contexto histórico de
renovação da cinematografia paraibana.
O resgate do Super-8 enquanto bitola apropriada para experimentação da linguagem e reflexão da realidade regional consistiu numa forma alternativa de gerar
conhecimentos, atingindo proporções amplas.
A flexibilidade da minibitola ampliou o quantitativo de produções audiovisuais possibilitando a entrada e a capacitação de um maior número de
pessoas no processo de criação de filmes.
Apesar da relevância do terceiro ciclo de cinema, o uso regular da bitola provocou reações preconceituosas por parte de jornalistas e cineastas da segunda geração do cinema, que reclamava a montagem de uma infraestrutura profissional
de cinema. Essa polêmica resultou em dois manifestos polêmicos de Pedro Nunes
e Everaldo Vasconcelos, além dos frequentes posicionamentos publicados na imprensa por integrantes do terceiro ciclo de cinema. Diante dessas questões Jomard
Muniz argumenta o seguinte:
É ridículo essa coisa que tem na Paraíba de muita gente não considerar o Super-8
como cinema, isso é um preconceito absurdo. Os grandes cineastas do mundo usam
Super-8, é a possibilidade de se fazer cinema experimental, tanto curta-metragem,
como a bitola Super-8 ou vídeo, você tem um campo mais livre para experimentação
(BRITTO, 1985).
Henrique Magalhães também reage às críticas formuladas contra o movimento:
Alguns críticos e intelectuais insistem na concepção de que o Super-8 não é cinema,
fechando os olhos para o que está surgindo de novo no cenário cinematográfico paraibano. Comparativamente, seria o caso de se dizer que o vídeo cassete não é televisão.
Mas como, se em ambos os casos os recursos de linguagem são os mesmos? Apela-se
então em invocar o argumento de que o Super-8 é um instrumento amador e que os que
o manuseiam agem amadoristicamente diante das possibilidades do cinema de captação de imagens paradas e transmissão de ideias em movimentos. Ora, conheço muitos
filmes dessa nova safra made in Pb que valem muito mais do que centenas de filmes
profissionais em 35 mm que inundam nossas salas de projeção e a cabeça de muitos.
Este raciocínio de que estas produções superoitistas não têm valor recai no preconceito que têm as gerações mais velhas e alguns jovens retardatários de que a produção
antiga é sempre de melhor valor e que qualquer nova produção é desacreditada talvez
pelo simples argumento de que é novo. E desacreditar também que através do Super-8
alguns possam desenvolver linguagem (ou várias) tão original que se torne revolucionária. É pôr água fria na fervura. Se os meninos estão se achando cineastas porque
estão fazendo Super-8 é porque eles são cineastas (me incluo nos meninos).
O cinema que os meninos estão fazendo é duma realidade interior tão grande que pode
até ser chamado de mal acabado, mas nunca pode deixar de ser chamado cinema.
82
Querer que se faça cinema que se fez 23 anos atrás, é como querer que nossos músicos
de hoje cantem como Vandré na época de “Caminhando”, e aí corre-se o grande risco
de não ser contemporâneo e cair numa real banalidade, como o foi Simone cantando
“Pra não dizer que não falei das flores”. (MAGALHÃES, 1983).
A Paraíba tem demonstrado ao longo da história uma vitalidade significativa voltada para o campo do cinema e do audiovisual. A ausência de uma sólida infraestrutura sedimentada por recursos técnicos e financeiros é uma constante que perpassa
os distintos ciclos da produção audiovisual no âmbito da Paraíba. A cada novo surto,
os protagonistas do processo iniciam pela estaca zero. Tanto as produções do ciclo
pioneiro liderado por Walfredo Rodrigues como as do ciclo Aruanda apresentam precariedades de recursos técnicos e financeiros, equipe de trabalho sempre reduzida.
O amadorismo e improvisação estiveram presentes nos três ciclos de cinema embora
com traços bem distintos.
As falhas detectadas nessa produção do início dos anos 1980, como registro linear
dos fatos, filmes inconclusos, impossibilidade de exercitação em 16 mm, são condicionantes da ausência de uma infraestrutura básica no Estado e da falta de preparo
profissional no campo audiovisual.
Se por um lado houve um retrocesso em relação ao formato da bitola e a não criação de uma infraestrutura profissional, por outro lado cabe afirmar que não existiu
um recuo em termos de construções narrativas e busca de uma estética própria como
marca distinta de uma geração.
A violentação desse surto se faz presente quanto à escolha temática que serviu
como fator de provocação e debate, ensaio da ficção e, consequentemente, o rompimento com a tradição do filme documental na Paraíba, as condições precárias
de produção e a inserção desses produtos culturais de cunho expressamente artesanal junto aos movimentos populares e diversos setores da comunidade. Com
uma bitola marginalizada, os realizadores lançam mão da potencialidade audiovisual do cinema e passam a utilizá-lo enquanto instrumento de ação social criando
situações de participação efetiva do público.
Há nesse conjunto de filmes um valor histórico de construção de memórias mesmo
em se tratando dos trabalhos que tiveram a preocupação de registro. Esses filmes são
memórias compartilhadas e representam em sua extensão um grande documento visual polipartido de época. Revelam nuances subjetivas de um contexto de época em que
atravessa o político, o econômico, o existencial e os gestos criativos de realizadores que
trafegam de maneira conflitante entre tradição e os procedimentos de ruptura.
83
REFERÊNCIAS
BECHARA, Gabriel. Entrevista concedida ao autor. João Pessoa, 14 jan. 1987.
BRITTO, Jomard Muniz de. Entrevista concedida
ao autor. Recife, 06 out. 1985.
CALDAS, Manfredo. Entrevista concedida ao autor. João Pessoa, mai. 1987.
FARKAS, Thomaz. Cinema Documentário: um método de trabalho. Tese de Doutorado, São Paulo:
ECA/USP, 1972.
HOLLANDA, Heloísa B. Impressões de Viagem –
CPC Vanguarda e Desbunde: 1960/70. São Paulo:
Brasiliense, 1981.
LIRA, Bertrand. A Produção Cinematográfica
Superoitista em João Pessoa e a Influência do
Contexto Social / Econômico / Político e Cultural
em sua Temática. Caderno de Textos, nº. 8, João
Pessoa: CCHLA/UFPB, 1986, p. 5-12.
MAGALHÃES, Henrique. Cinema e Província. A
União, João Pessoa, 25 mai. 1983.
MAGALHÃES, Henrique. Entrevista concedida à
Bertrand Lira. Cadernos do CCHLA, n. 8, 1986, p.
8.
MAGALHÃES, Henrique. Entrevista concedida ao
autor. João Pessoa, 1987.
NASCIMENTO, Lauro. João-Mar de Água e Fogo.
II Mostra de Cinema Independente. João Pessoa,
1981, mimeo.
NETO, Torquato; SALOMÃO, Waly (Org.). Os Últimos dias de Paupéria. São Paulo: Max Limonad,
1982.
NUNES, Pedro. Violentação do Ritual Cinematográfico: Aspectos do cinema independente na
Paraíba – 1979-1983. Dissertação de Mestrado,
S. Bernardo do Campo: UMSP, 1988.
84
85
TECNOLOGIA
E ESTéTICA:
O Super-8 funda a estilística do
direto no cinema paraibano nos
anos 1980
POR BERTRAND LIRA
86
A captação da imagem em sincronia com o som foi uma aspiração dos
documentaristas no mundo a partir da
década de 1930, o que veio a se concretizar plenamente nos anos 1960. As
inovações tecnológicas da época fundaram a estética do Cinema Direto/verdade. Na Paraíba, apenas em 1979 é realizado o primeiro documentário com
som sincrônico. Na década seguinte, o
Super-8 proporciona uma significativa
produção de documentários com procedimentos estilísticos do direto, sedimentando essa forma de fazer cinema
até os dias atuais no estado.
Bertrand Lira é cineasta
e prof. Dr. do Programa de
Pós-graduação em Comunicação (PPGC/UFPB) e do
Departamento de Comunicação em Mídias Digitais do
CCHLA/UFPB .
É Romão pra
qui é Romão
pra colá
Elisa Cabral, 1982.
87
INTRODUÇÃO
As inovações tecnológicas no campo do registro da imagem e do som cinematográficos vão redundar em novos procedimentos estilísticos nos anos 1960 com a
consolidação do Cinema Direto. É o período compreendido entre os anos de 1960
e 1963, com produções de Jean Rouch e Mario Ruspoli (França), do grupo capitaneado por Robert Drew (Estados Unidos) e das pesquisas do National Film Board (Canadá), que vão definir essa nova forma de abordagem do real que viria a configurar
o estilo documental dos anos subsequentes.
O novo estilo documental, levado a cabo nos países acima citados, é fruto dos
avanços tecnológicos na captação da imagem e do som iniciados nos anos do pósguerra, que redundaram no aparecimento na França, Canadá e Estados Unidos do
chamado “grupo sincrônico ligeiro”, ou “grupo sincrônico cinematográfico leve”,
como prefere Gauthier (2011). O primeiro a ser criado na França foi em 1960, com
o encontro de André Coutant (idealizador da câmera Éclair - cujo protótipo é de
1959) e o etnógrafo Jean Rouch, do Comitê Internacional do Filme Etnológico e
Sociológico do Museu do Homem de Paris. Ramos (2008) enumera uma série de
aperfeiçoamentos que levaram ao surgimento do grupo: câmera menor e mais leve,
que a libertou do tripé e possibilitou a “câmera-na-mão”; rolos de filme virgens mais
extensos permitindo tomadas mais longas; películas mais sensíveis que poderiam dispensar ou minimizar o uso de aparatos de iluminação; isolamento acústico da câmera para evitar a interferência do seu próprio ruído (blimpagem); e a substituição do
som ótico pela banda magnética e sua sincronização na tomada estão entre as mais
significativas conquistas dos realizadores do período.
A portabilidade dos equipamentos de cinema permite aos realizadores o exercício
de uma ética documental mais engajada no corpo a corpo com o real. Crônicas de um
verão (Jean Rouch e Edgar Morin, 1960/1961) torna-se o filme-marco do que viria
a ser chamado, num primeiro momento, de cinéma verité pelos franceses. Em breve,
mais exatamente a partir de 1963, os franceses vão adotar a nomenclatura “Cinema
Direto” (direct cinema) dos anglo-saxões, segundo Da-Rin (2004), por proposição de
Mario Ruspoli, que a considera mais neutra: era o “o cinema em tomada direta sobre a realidade”. Os anglo-saxões, por sua vez, vão se deixar fascinar pela denominação cinéma verité. As duas escolas, no entanto, seguem modos de abordagem distintos
na representação do real. A tendência observacional do Cinema Direto, predominante no Canadá e Estados Unidos, enfatiza a tomada em recuo, o distanciamento
do cineasta do tema abordado. O Cinema Direto francês (participativo), ao contrário
da escola anglo-saxã, usa procedimentos estilísticos que revelam a intervenção do
cineasta e sua interação com os sujeitos e tema de sua representação.
Como “cinema verdade”, a ideia enfatiza que essa é a verdade de um encontro em vez
da verdade absoluta ou não manipulada. Vemos como o cineasta e as pessoas que
88
representam seu tema negociam um relacionamento, como interagem, que formas de
poder e controle entram em jogo e que níveis de revelação e relação nascem dessa
forma específica de encontro (NICHOLS, 2005, p. 155).
A rigor, o documentário participativo teria origem nas propostas estéticas de O
homem da câmera (Dziga Vertov, 1929), onde vemos acontecer esse encontro entre cineasta e o tema representado na tela. A introdução do termo cinéma verité entre os
franceses é atribuída ao crítico e historiador Georges Sadoul, a partir de um termo
ambivalente de Vertov (o Kino Pravda, cinema verdade) com o qual o cineasta soviético nomeara seu suplemento cinematográfico do jornal La Pravda. O próprio Sadoul
(apud GAUTHIER, 2011, p. 92) reconheceria o erro numa autocrítica: “Eu me
deixei enganar por uma tradução literal e apressada numa época em que eu ignorava todos os textos de Vertov”. No contexto ideológico do momento, a denominação
“cinema verdade” passa a ser incômoda para a escola documental francesa do direto.
No Brasil, o percurso no emprego do som sincrônico foi mais árduo e marcado por improvisações da parte dos nossos documentaristas e técnicos por motivos
óbvios: um país periférico, sem um contexto favorável de “experiência histórica/
progresso técnico/liberdade de criação” que, como observa Gauthier (2011, p. 85),
proporcionou aos canadenses (com o Office national du film, em Montreal), aos franceses (com o Comitê do Filme Etnográfico, em Paris) e aos estadunidenses (com o
grupo de Leacock e Drew) uma produção efervescente do Cinema Direto.
É o sueco Arne Sucksdorf que vai introduzir no Brasil a tecnologia da “câmera
maneira” e do gravador Nagra com a formação de técnicos locais. Ramos (2008)
observa que, embora o “som sincrônico na tomada” fosse um fetiche tecnológico
dos documentaristas da nova geração de realizadores, seu uso não se deu de forma generalizada devido às dificuldades técnicas do seu emprego. A voz over do
documentário clássico, segundo o autor, ainda vai dominar a produção documentarista brasileira dos anos seguintes. Na Paraíba, como veremos, o uso do som sincrônico só vai acontecer no final da década de 1970. Portanto, não é de estranhar
esse aparecimento tardio, já que a tecnologia iria se estabilizar nos países centrais
a partir de meados dos anos 1960.
Na Paraíba, O que conto do Sertão é isso (1979) de José Umbelino e Romero Azevedo
inaugura a estilística do Cinema Direto entre nós com o uso, pela primeira vez, de
falas sincrônicas. O título anuncia, de certa forma, a presença dos sujeitos da fala,
isto é, os atores sociais. A tradição de duas décadas de voz over no cinema documental paraibano, no modo da abordagem do real denominado por Nichols (2005) de
“expositivo” e por Ramos (2008) de “ética educativa” para o que conhecemos como
“documentário clássico”, dá lugar a entrevistas e depoimentos de pessoas comuns
no papel de atores sociais, abandonando a postura de um sujeito onisciente que faz
asserções, supostamente imparciais, sobre um determinado tema e emergindo um
sujeito que intervém, participa e interage.
O documentário de José Umbelino e Romero Azevedo, iniciado em 1978 e fina89
lizado em 1979, é uma produção da Universidade Federal da Paraíba, onde ambos
eram professores no campus de Campina Grande. Com 32 minutos de duração, o
filme foi rodado em 16 mm e com um gravador modelo Stellavox SU8. É o próprio
Umbelino que nos informa sobre essa incursão no sincrônico:
Usamos o som direto no “O que eu conto do sertão é isso...”, logo no início do filme
quando a personagem fala do sertão e dá o título ao filme. Fizemos outras cenas com
som direto: o discurso do líder sindical, encerrando o filme. Enfim, o padre e etc. Porém, numa grande parte do filme o som entra em off, e por fim, optamos usar a fala
da camponês como narrador (UMBELINO, 2013).
Outro documentarista, que se aventurou no som sincrônico para o registro de
depoimentos de realizadores sobre o cinema paraibano dos anos 1960 desde Aruanda,
foi Manfredo Caldas. Parte dos depoimentos foi filmada em 1979 para aproveitar
a presença de realizadores paraibanos em João Pessoa durante a VIII Jornada de
Cinema da Bahia sediada, pela primeira vez, fora do estado de origem. Cinema paraibano – vinte anos, segundo Caldas (2013), “tem 90% das filmagens em som direto,
realizadas na capital paraibana. O filme foi uma produção da extinta Embrafilme
em coprodução com a UFPB”.
Na década de 1970, uma produção documentária, anterior às aventuras no som
sincrônico de 1979 com O que conto do Sertão é isso e Cinema paraibano – vinte anos, é
narrada pela voz de um dos seus personagens, “Barra Limpa”, apelido de José dos
Santos em A pedra da riqueza (Vladimir Carvalho, 1975). Percebemos aí um desejo do
direto no encontro do realizador com o seu tema. Sobre o filme, Marinho observa:
Em A pedra da riqueza, de Vladimir de Carvalho, o tratamento direto e verticalizado
do problema da relação do homem com o trabalho de exploração do minério não
descuida de um tratamento poético da imagem, que dá à obra um valor estético não
muito comum nos filmes que tratam de temas semelhantes (MARINHO, 1998, p. 102).
Não há som sincrônico nesse filme rodado em 35 mm, com 15 minutos de duração, mas o depoimento do personagem tem a espontaneidade de alguém que dialoga
com um interlocutor, que não vemos e não escutamos como viria a ser uma constante
no Cinema Direto. Além da fala de “Barra Limpa”, ouvimos as sonoridades assíncronas do ambiente da mina de xelita pontuadas com a música atonal e minimalista
de Fernando Cerqueira. No Cinema Direto, o diretor adquire, às vezes, o status de
personagem, sobretudo na sua vertente participativa/interativa. Acreditamos que
Carvalho teria se tornado um personagem nesse filme se a tecnologia estivesse à sua
disposição naquele momento.
90
O SUPER-8 E A SEDIMENTAÇÃO DO CINEMA DIRETO NA PARAÍBA
O ano de 1979 traz também dois acontecimentos importantes para o cinema
paraibano cujos desdobramentos vão se dar na década seguinte: a realização da VIII
Jornada Brasileira de Cinema da Bahia que, excepcionalmente, acontecia em João
Pessoa em setembro daquele ano, e a criação do Núcleo de Documentação Cinematográfica da Universidade Federal da Paraíba (NUDOC) que dará um impulso
à produção local no campo do documentário, sobretudo na estilística do direto da
escola francesa. A vinda da Jornada da Bahia à cidade envolveu a Universidade
Federal da Paraíba, através da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários, Ministério
da Educação e Cultura, Funarte, Embrafilme, Itamarati e Governo do Estado da
Paraíba. Pelo número de entidades envolvidas percebe-se a relevância da realização
da Jornada para o cinema paraibano.
Durante o evento, um grupo de cineastas paraibanos promoveu um encontro entre o reitor da UFPB, Lynaldo Cavalcanti, o governador do Estado, Tarcísio Burity
e o diretor geral da Embrafilme, a fim de reivindicarem um apoio à produção cinematográfica da Paraíba. O resultado dessa mobilização foi a criação do NUDOC e a
posterior aquisição de equipamentos de produção audiovisual (uma câmera 16 mm,
câmeras, projetores, editores e gravadores para a bitola Super-8) pela UFPB. Parte
desse material veio do Centro de Formação em Cinema Direto de Paris, depois do
acordo feito durante a Jornada, entre a UFPB e o Comitê do Filme Etnográfico de
Paris, representado por Jean-Rouch e o cineasta Jacques D’Arthuys, para a criação
de um Atelier de Cinema Direto na universidade, no campus de João Pessoa.
Após o regresso dos professores Pedro Santos e Jurandy Moura de Paris, onde
frequentaram o Centre de Recherche et Formation au cinéma direct de Paris, que oferecia
estágios regulares de formação em cinema documental no estilo direto, tem início
a elaboração do projeto para o primeiro estágio de realização em documentários
diretos em João Pessoa, o que só se concretiza em março de 1981 no recém-criado
Núcleo de Documentação Cinematográfica. Este estágio pioneiro teve aproximadamente quatro meses de duração e consistiu em uma introdução teórica, com a
exibição e análise de filmes, na sua maioria documentários, com vários deles produzidos durante estágios semelhantes em Paris. No restante do curso, era dada ênfase à
prática de realização: nos primeiros 15 dias de aulas o aluno era estimulado a realizar
um pequeno exercício com câmera Super-8 sobre uma ação qualquer (uma pessoa
que entra numa cantina e bebe um café, por exemplo). Aproximadamente um mês
depois, fazia-se o segundo exercício, este com o tema escolhido pelo próprio aluno
que deveria colocá-lo em discussão antes de filmá-lo. Para isto eram fornecidos dois
cassetes (cartuchos) em Super-8 com três minutos de duração e câmera que registrava sincronicamente som e imagem. O terceiro exercício (o filme final) não tinha,
teoricamente, limite em relação aos cartuchos utilizados e cada estagiário poderia
utilizar quantos fossem necessários.
91
Durante o estágio em Cinema Direto realizado em João Pessoa, em 1981, e em
Paris, no verão de 1982, no Centro de Pesquisa e Formação em Cinema Direto na
Association Varan, o conceito de Cinema Direto nos foi passado através de um texto
de Marie e outros (1975) intitulado Lecture du Film. Aqui foi traduzido pelo professor
Pedro Santos, fotocopiado e distribuído entre os estagiários. Os autores discutem estratégias a serem adotadas na realização de um documentário direto numa tentativa
de sistematizar procedimentos e técnicas que envolveriam esse modo de abordagem
do real na sua linha interativa (ou participativa) adotada pela escola francesa.
Os procedimentos estilísticos do direto enfatizam o registro sincrônico da imagem
e do som e a ideia de que é o próprio ato de filmagem que gera o evento fílmico.
Gauthier (2011) observa que sem a existência dessa “técnica nova”, a do Cinema
Direto (som sincrônico, câmera leve, etc.), os realizadores não poderiam ter logrado
a intimidade, o corpo a corpo, com os sujeitos de suas obras. E cita o neorrealista
italiano Cezare Zavattini que, em seu diário de 1952, expressava essa necessidade, só
satisfeita, como vimos, a partir dos anos 1960 com o som sincrônico e câmeras mais
leves e portáteis. Isso possibilitou, segundo Ramos, que o documentário passasse a
“enunciar por asserções dialógicas”, ou seja,
O mundo parece poder falar por si, e a fala do mundo, a fala das pessoas, é predominantemente dialógica. A tendência mais participativa do Cinema Direto/verdade
introduz no documentário uma nova maneira de enunciar: a entrevista ou o depoimento.[...] A voz do saber, em sua nova forma, perde a exclusividade da modalidade over. Ainda tempos a voz over, mas os enunciados assertivos são assumidos por
entrevistas, depoimentos de especialistas, diálogos, filmes de arquivo (flexionados
para enunciar as asserções de que a narrativa necessita). O documentário, portanto,
se caracteriza como narrativa que possui vozes diversas que falam do mundo, ou de
si (RAMOS, 2008, p. 23-24).
Neste sentido, é o Super-8 que vai potencializar a abertura do documentário
paraibano, nos anos 1980, para uma narrativa dialógica, onde as vozes dos sujeitos
representados contribuem de forma decisiva para a representação do tema enunciado.
A tecnologia do cinema superoitista leva ao extremo a portabilidade e leveza dos
equipamentos de captação de som e imagem, já que incorpora à câmera o registro
do som. Considerada uma tecnologia amadora pelos profissionais do cinema, o
Super-8 possibilitou a formação de uma geração de realizadores em todo o mundo.
Na Paraíba, a estética do Cinema Direto, iniciada com O que eu conto do Sertão é isso,
na década anterior, passa a ser usada de forma sistemática na década de 1980, com
a aquisição de câmeras, microfones e ilhas de edição para os estágios promovidos
pelo NUDOC da UFPB, em convênio com o governo francês, que garantiu a vinda
de realizadores como Jacques D’Arthuys, Philippe Constantini, Séverin Blanchet e
Mirelle Abramovici para a formação de novos realizadores em João Pessoa.
Dentro dos preceitos técnicos e estéticos do Cinema Direto, foi realizada toda a
92
produção em Super-8 do NUDOC durante os três estágios de treinamento, entre
1981 e 1983, com a formação de mão de obra para a realização cinematográfica. O
produto desses estágios eram filmes voltados para uma abordagem sócio-antropológica dos temas enfocados, cuja tônica era a relação do homem com a família, com
seu trabalho, a questão da sobrevivência e também suas crenças e imaginário religioso. Enquadra-se nesta linha documental o filme Visões do Mangue (Elisa Cabral, 1982)
que trabalha as lendas e mitos dos pescadores de caranguejo em Livramento – vilarejo do litoral paraibano, mais precisamente a entidade Batatão, o “dono do mangue”.
A Seca, de Torquato Joel, trata-se de um documentário sobre a vida de camponeses que habitam na bacia do açude de Orós (interior do Ceará) na época da grande
estiagem de 1981. Ele enfoca, através de uma família, o problema da emigração
causado pelas secas naquela região e as frentes de trabalho criadas pelo governo.
Entre os personagens que relatam seus infortúnios com a falta de chuvas, destaca-se
um personagem singular: um barbeiro que vive da troca de seu trabalho por objetos
e alimentos que vão garantir sua sobrevivência. Ele nos dá informações sobre a vida
simples e sobre os modos de trabalho de um Sertão arcaico à época da realização do
documentário.
Percebemos, nesses filmes, uma preocupação com a condição do homem na sociedade e em denunciar a sua situação de oprimido. Lira (1986) observa que na época em que foram realizados, o país se encontrava em processo de redemocratização
de suas instituições políticas e sociais. Toda essa geração havia tomado consciência,
há pouco tempo, dos anos de obscurantismo político por qual passara o Brasil nos últimos 20 anos. Esses temas eram constantemente discutidos pela imprensa e também
nas salas de aula dos cursos da área de Humanas. Daí a preocupação em analisar e
refletir esses problemas que afetavam a sociedade brasileira.
A vida de um trabalhador da construção civil é o núcleo do filme Mestre de obras
(Newton Araújo Júnior, 1981). Logo na primeira cena, ouve-se a voz do cineasta
perguntando o que Seu José, o mestre de obras do título, gostaria que as pessoas
soubessem dele. Daí o filme segue essa orientação do personagem, mostrando a sua
família – morando numa casa inacabada – e seu relacionamento com os amigos da
construção civil. Newton encomendou a música ao cantor e compositor Chico César,
na época estudante do Departamento de Comunicação e Artes da UFPB, como era
também parcela significativa dos estagiários do NUDOC. Essa intervenção direta do
cineasta, oferecendo ao personagem a possibilidade de conduzir a narrativa de sua
própria história, é uma das marcas do estilo direto.
Seguindo ainda uma temática sociológica temos É Romão pra qui é Romão pra colá
(Vânia Perazzo, 1981). Romão é um trabalhador do campo que tem apreço pela
música e tenta fazer dessa arte um meio de vida. Perazzo, em seu filme, registra momentos interessantes da vida deste “músico”, que constrói seu próprio instrumento
musical – uma espécie de berimbau de lata, madeira e arame, com o qual realiza
seus “recitais” nas feiras das pequenas cidades do Brejo paraibano. A ingenuidade
do personagem confere ao filme certo lirismo, evidenciado na cena em que Romão
93
Visões do passeia numa roda gigante de um parque de diversões na cidade de Areia.
Mangue
Durante o segundo estágio, em 1982, mais quatro filmes, além do Visões do Mangue
Elisa Cabral, 1982.
94
(Elisa Cabral), optaram pela abordagem de problemas sociais: O menor, Manipueira,
Bernadete e Do oprimido ao encarcerado. O filme de João Galvíncio Júnior, O menor, põe
em conflito o discurso de crianças e adolescentes marginalizados e o discurso das autoridades governamentais sobre a polêmica questão do menor abandonado em João
Pessoa. Manipueira, de Maria Aparecida, também aluna do Curso de Comunicação
Social, descreve o processo de colheita da mandioca até a fabricação da farinha – de
modo artesanal e com instrumentos rudimentares – que abastecerá o mercado das
pequenas comunidades. Com Bernadete, Maria das Graças Sousa dá voz a uma lavadeira de roupas que relata sua luta para sustentar sua mãe e seus três filhos, frutos
de dois casamentos desfeitos, e que fala de seus sonhos de viver em São Paulo “onde
pagam melhor e assinam documentos”. A partir da leitura do livro da professora
Maria Salete - dissertação de mestrado sobre uma experiência realizada num presídio de João Pessoa, baseada na metodologia do educador Paulo Freire, Marcus Vilar
realizou Do oprimido ao encarcerado - um filme que os próprios presidiários ajudaram a
fazer, participando como iluminador ou técnico de som.
Outros documentários enfatizaram mais os conflitos pessoais e familiares
de seus personagens ou focalizaram o trabalho artístico dessas pessoas: Perequeté
(Bertrand Lira, 1982) radiografa a vida do ator e dançarino Francisco Marto que,
demonstrando muita garra, tenta superar o preconceito contra o artista na província.
Através de depoimentos de Francisco Marto, cujo apelido vem de uma peça infantil
em que interpretou o coelho Perequeté, constata-se que o preconceito não é
contra o artista em si, mas contra a livre orientação sexual de cada indivíduo.
“As pessoas acham que todo homem que faz dança é homossexual e que toda
mulher é uma prostituta ou lésbica”, diz Perequeté em voz over numa das
cenas em que aparece dançando.
Sagrada Família (Everaldo Vasconcelos, 1981) é a câmera violando o próprio
lar do realizador, descobrindo conflitos e revelando as neuroses de uma família de
classe média baixa em João Pessoa. É um filme tenso e dramático que demonstra
a grande intimidade do cineasta com a sua câmera e o objeto filmado. Tá na rua
(Henrique Magalhães, 1981) mostra, em 15 minutos, o trabalho de experimentação de um grupo de teatro em novos campos da dramatização. O autor teve sérios
problemas em realizá-lo porque o grupo vindo do sudeste do país estava participando de um encontro de teatro e Magalhães teve de fazer todas as filmagens
em apenas uma semana sem poder ver o resultado do que havia filmado para
estruturar melhor sua narrativa. As falhas técnicas não puderam ser contornadas
e o diretor usou o material que tinha em mãos.
Sonho Destrela (Eliezer Rolim, 1983) é a vida de uma cantora de interior sem
perspectiva de profissionalização e nem acesso aos produtores de discos. A frustração de não poder ser famosa a deixa profundamente descrente. Pedro Osmar em
carne e osso (Otávio Cássio, 1982) e Música sem preconceito (Alberto Júnior, 1983) são
mais dois filmes que fogem à abordagem sociológica dos anteriores. O primeiro
fala dos experimentos musicais e da vida do compositor Pedro Osmar e a sua atuação
no grupo Jaguaribe Carne. O segundo trata do rock como forma de interação entre um
grupo de jovens de classe média alta de Tambaú, praia de João Pessoa.
O Super-8 permitiu esse corpo a corpo com o real, a imersão do realizador na
realidade documentada com uma menor interferência na cena em relação aos equipamentos maiores, inclusive por dispensar, na maioria das vezes, o aparato de iluminação. Ramos (2008, p. 289), observa que “o núcleo comum da estilística do direto é
ancorado nas novas tecnologias que permitem a aderência do sujeito-da-câmera ao
transcorrer da ação e seu som na tomada”.
A vida poderia ser captada, a partir de então, em seu curso natural. No entanto, é bom assinalar que a estilística do diretor não prescinde da encenação. Estamos nos referindo a uma das encenações possíveis num documentário, denominada por Ramos de “encenação-locação”, quando é solicitado ao sujeito que refaça
(encene), para a câmera atividades que fazem parte do seu cotidiano e que o diretor ou o personagem deseja ver representadas no filme. Ações que os personagens não estariam efetuando naquele momento. No entanto, mesmo que estivessem, vão ser refeitas (encenadas) mais de uma vez para que se adéquem ao registro
desejado pelo sujeito-da-câmera.
No filme Perequeté, há sete momentos onde as situações foram criadas para o filme,
embora três delas façam parte do cotidiano do personagem que foi solicitado por
mim a encená-las na “circunstância do mundo” onde o personagem (ator social)
95
vive sua vida. O encontro de Francisco Marto com Antonia e Galvíncio Jr., que lhe
fazem perguntas sugeridas pelo diretor como pretexto para que o personagem falasse
de sua vida, seus descontentamentos com o que as pessoas pensam da profissão de
ator e dançarino, seus anseios e sonhos. Marto também encena para a câmera um
exercício de direção de atores do seu grupo e um encontro descontraído com duas
amigas da universidade numa sala de aula. Depois da cena onde dá aula de dança,
Marto dança para a câmera. E num intervalo da filmagem de Paraíba masculina feminina neutra (Jomard Muniz de Britto, 1983) ele dança mais uma vez, caracterizado da
personagem Anayde para a câmera e ouvimos sua voz over falando da paixão pela
dança e do preconceito social.
Outro documentário produzido no estágio em Cinema Direto, desta vez em Paris, traz diversos momentos de autoencenação e de momentos criados para o filme.
Celso Pós Celso Pós Milagre (Vânia Perazzo, 1982) tem como personagem o economista e profesMilagre sor Celso Furtado, vivendo em Paris onde se exilou depois do Golpe Militar de 1964.
Vânia Perazzo,
1982.
96
Nos seus 20 minutos de duração, vemos Furtado (auto)encenando seu cotidiano, às
vezes timidamente: caminhando pelas ruas de Paris, no mercado, conversando com
um parente da diretora, recebendo estudantes em sua casa, passeando por um jardim da cidade. Discutindo sobre a autenticidade de uma autoencenação, Gauthier
afirma:
Diante da câmera, não se é totalmente si mesmo – ou então se está no limite de si
mesmo – nem totalmente outro – se não for um personagem de imaginação. Cabe ao
cineasta saber se ele quer que o personagem seja ele mesmo – vertente documental – ou um personagem oriundo de sua própria imaginação – vertente romanesca
(GAUTHIER, 2011, p. 151).
Antes dos estágios em Cinema Direto do NUDOC, o Super-8 chega à Paraíba
com o documentário Gadanho (João de Lima Gomes e Pedro Nunes, 1979), sem a
utilização do som sincrônico, mas, como em A pedra da riqueza, sobrepondo sobre
as imagens depoimentos e ruídos ambientes mixados de forma precária, às vezes
com cortes bruscos. Percebemos aí o desejo de dar voz aos personagens. Isso não
acontece, por exemplo, em Festa do Rosário de Pombal (Jurandir Moura, 1976),
realizado um ano depois de A pedra da riqueza, de Vladimir Carvalho. Jurandir
optou por um narrador profissional do rádio (Gilson Souto) em voz over, no típico documentário expositivo clássico, alternando a narração em voz de Deus
com as sonoridades da festa.
Gadanho reintroduz no cinema paraibano a bitola de 8 mm, agora Super-8, em
1979, pois no início e meados da década de 1970 algumas experiências foram ensaiadas em curtas de ficção e documentais por cineastas que já haviam trabalhado
com 16 mm (José Bezerra e Jurandir Moura) e realizadores estreantes. As primeiras películas em 8 mm, na época ainda chamada de “minibitola”, são produzidas
em 1973. A bitola de oito milímetros ainda não dispunha da banda magnética
para registro do som em sincronia com a imagem, o que só se concretizou com o
advento do Super-8 no final da década. Lira (1986) divide a produção paraibana
na “minibitola” em duas fases: a primeira fase corresponde aos filmes produzidos
a partir do seu surgimento em 1973 e vai até 1976, e a segunda fase (1979 a 1983),
com a produção de Gadanho e na década seguinte com os estágios do NUDOC.
Influenciados por Gadanho, Bertrand Lira e Torquato Joel, realizam, em 1981,
Imagens do declínio ou Beba coca, babe cola, produzidos pelo Programa Bolsa-Arte da
Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da UFPB.
No Brasil dos anos 1970, o Super-8 se apresenta como uma enorme produção
experimental em relação às outras bitolas e formatos (vídeo, 16 ou 35 mm), mas
pouco vista, segundo Machado (2011). Na Paraíba desse período, poucos filmes
foram realizados nesta bitola. A produção chega com força, como vimos, a
partir de 1981, com os documentários oriundos do NUDOC e as ficções de Jomard
Muniz de Brito e Lauro Nascimento, entre outros realizadores não alinhados com as
propostas estéticas do Cinema Direto. No contexto nacional, Machado observa que:
A multiplicidade de proposições estéticas é uma das marcas distintivas da produção
audiovisual na década de 1970, imposição, em parte, de uma segmentação fragmentária de experiências, forçadas pela ditadura civil e militar que se implantou no país
em 1964 e que recrudesceu a partir de 1968. Ao lado da vigorosa expansão da TV e do
97
relativo sucesso da Embrafilme, houve também uma proliferação de experimentalismos jamais vista, o mais das vezes localizados e circunscritos, implicando microesferas comunitárias, como no caso dos festivais intermitentes, certos cineclubes, mostras
artísticas, e de uma miríade de pequenos eventos (MACHADO, 2011, p. 29).
No universo local, a produção superoitista chegou ao público através das avantpremières e das três edições da Mostra de Cinema Independente, promovidas pelo
núcleo de realizadores da Oficina de Comunicação do antigo Departamento de
Comunicação e Artes (DAC) da UFPB, coordenada por Pedro Nunes. Foi Nunes
quem realizou pela primeira vez um documentário em Super-8 com procedimentos
de abordagem do direto fora dos estágios do NUDOC. Closes (Pedro Nunes Filho,
1982) faz uso do som sincrônico para ouvir seus personagens. Entre depoimentos
para a câmera, seus atores sociais falam de suas impressões sobre a experiência
de viver a homossexualidade numa sociedade preconceituosa. Com o Super-8 e o
som sincrônico, a relação dialógica entre o sujeito-da-câmera (sujeito enunciador)
e os demais sujeitos, objetos de sua enunciação, se torna possível. A partir daí, uma
grande parcela do cinema paraibano adota o modo de abordagem que Nichols
(2005) denomina de “participativo” e Ramos (2008) de “ética interativa”. Nichols faz
uma diferenciação sutil entre duas tendências do modo participativo:
Os cineastas que buscam representar seu próprio encontro direto com o mundo que
os cerca e os cineastas que buscam representar questões sociais abrangentes e perspectivas históricas com entrevistas e imagens de arquivo constituem dois componentes importantes do modo participativo. Como espectadores, temos a sensação que
testemunhamos uma forma de diálogo entre cineasta e participante que enfatiza o
engajamento localizado, a interação negociada e o encontro carregado de emoção
(NICHOLS, 2005, p. 162).
No nosso entender, Closes se encaixa nessa linha que se propõe a representar questões sociais, no caso, o histórico preconceito social em relação aos que assumem uma
orientação sexual desviante da conduta heteronormativa. Nunes coletou diversas falas para construir sua “voz” sobre o tema. Voz aqui no sentido de que Nichols (2005)
dá a um conjunto de procedimentos éticos e estéticos no discurso cinematográfico
documental ou ficcional que revela a perspectiva (o ponto de vista) do realizador
sobre o tema abordado. São escolhas que vão do enquadramento, passando pela
composição da cena, ângulo de tomada, seleção dos sujeitos das falas (entrevistas/
depoimentos), uso do som direto ou da voz over, cronologia da narrativa, estilo de
abordagem, etc., aos diversos recursos possibilitados pela montagem.
Realizado antes dos estágios em Cinema Direto do NUDOC, Imagens do declínio
ou Beba Coca, Babe Cola trabalha uma abordagem documental e ficcional para denunciar as condições miseráveis de vida de comunidades pobres de João Pessoa, ao
mesmo tempo que esboça uma crítica debochada à presença de multinacionais no
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país, através de um dos seus símbolos mais conhecidos, a Coca-Cola. Na parte documental, vemos imagens de vielas de uma favela da cidade ao som de Invocação em defesa
da Pátria, de Heitor Villa Lobos, cujos versos impregnados de ufanismo exaltam o
país, contrastando ironicamente com a miséria mostrada. Nos momentos ficcionais,
a música atonal, com poema concretista de Décio Pignatari (Beba Coca, Babe Cola),
anima arrotos, masturbação com uma garrafa de Coca-Cola simulando um pênis
em ejaculação e uma flatulência para a câmera. A partir do slogan do refrigerante, o
poema de Pignatari desmonta palavras, muda fonemas, forma novas palavras e, ao
se somar a essas imagens, compõe uma crítica ácida ao então símbolo máximo do
imperialismo. Depois desse filme de estreia, Bertrand Lira e Torquato Joel passam
a integrar os estágios de Cinema Direto do NUDOC, em João Pessoa, e do Atelier
Varan, em Paris, contribuindo para a produção de documentários no estilo direto
produzidos na Paraíba.
CONCLUSÃO
A partir de 1960, com Crônicas de um verão, de Rouch e Morin, o Cinema Direto
inaugura uma nova forma de abordagem do real que marcará definitivamente o
fazer documental. Na Paraíba, no final dos anos 1970, O que eu conto do Sertão é isso
inaugura o som sincrônico, e o Cinema Direto é adotado como estilo em um documentário paraibano. A bitola Super-8 vai proporcionar, no início da década seguinte,
uma produção razoável de documentários que vão adotar a estilística do direto. A
maior parte dessa produção superoitista veio do NUDOC, que realizou três estágios
voltados para a formação de cineastas nessa estética. A proposta do Cinema Direto
era de uma não-sofisticação da linguagem, colocando o cinema como instrumento
e veículo de expressão para as pessoas que quisessem fazer uso dele. Durante os três
estágios, 25 filmes foram realizados pelos alunos, além de outros, cuja produção se
deu com o apoio do NUDOC, com empréstimos de equipamentos de captação de
imagem e som e ilhas de edição.
Na impossibilidade de acesso a tecnologias mais sofisticadas, o Super-8 proporcionou aos novos realizadores cinematográficos a possibilidade de se expressar
com equipamentos de produção mais portáteis e de fácil manuseio. De início, visto com maus olhos pelos realizadores veteranos por considerarem uma tecnologia
amadora, o Super-8 terminou sendo, em determinado momento, usado por eles
mesmos pela dificuldade de se produzir com equipamentos em 16 ou 35 mm. O
Super-8 foi, gradativamente, substituído pelo vídeo analógico ainda na década de
1980 e toda a década seguinte, quando chega a tecnologia (digital), que vai revolucionar a produção cinematográfica em toda as esferas de sua cadeia produtiva
(produção, distribuição e exibição).
99
REFERÊNCIAS
CALDAS,
Manfredo.
Contato
e
informações.
[mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<[email protected]> em: 06 jun. 2013.
DA-RIN, Sílvio. Espelho Partido: tradição e transformação do documentário. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004.
GAUTHIER, Guy. O documentário: um outro cinema.
Campinas, SP: Papirus, 2011.
LIRA, Bertrand. A produção cinematográfica superoitista em João Pessoa de 1979 a 1984 e a influência do contexto social/econômico/político e
cultural em sua temática. João Pessoa: Caderno de
Textos n. 8, CCHLA/ UFPB, set. 1986. p. 5-12.
MACHADO JR., Rubens. O inchaço do presente: experimentalismo Super-8 nos anos 1970. Rio de
Janeiro: CTAv. Filme Cultura, n. 54, mai. 2011. p.
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MARIE, Michel et al. Lectures du film. Paris: Albatros, 1975.
MARINHO, José. Dos homens e das pedras: o ciclo
do cinema documentário paraibano (1959-1979).
Niterói, RJ: Eduff, 1998.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal...o que é mesmo
documentário? São Paulo: Senac São Paulo, 2008.
UMBELINO, José. Contato e informações. [mensagem
pessoal].
Mensagem
recebida
por
<[email protected]> em: 05 jun. 2013.
100
101
A contribuição
francesa do
Cinema Direto
POR João de Lima Gomes
Pedro Santos
102
em Cinema Paraibano –
Vinte Anos
João de Lima Gomes é
cineasta e prof. Dr. do Programa de Pós-graduação em
Artes Visuais (PPGAV/UFPB/
UFPE), do Departamento
de Comunicação do CCTA/
UFPB e coordenador do
NUDOC.
103
O cinema no âmbito universitário da Paraíba remonta ao ano de 1955. Havia no programa pedagógico do curso de graduação em Filosofia uma disciplina
de Filmologia na Faculdade de Filosofia de João Pessoa, ministrada pelo crítico de
cinema José Rafael de Menezes.
A faculdade era mantenedora do Curso de Filosofia pela congregação das irmãs
Lourdinas, e tinha caráter privado. Em seguida, a Faculdade foi estadualizada e depois federalizada. Além disso, eram oferecidos ainda cursos de extensão com o título
de “Introdução ao Cinema” nas cidades de João Pessoa e Campina Grande para
uma grande quantidade de estudantes. As faculdades isoladas foram o embrião do
que futuramente seria a Universidade Federal da Paraíba.
A Faculdade era também espaço de politização. O debate orientado para o assunto
“Cinema - Universo - Povo”, promovido pelo diretório acadêmico da Faculdade de
Filosofia, foi embasado nas opiniões de Álvaro Vieira Pinto e Nelson Werneck Sodré.
Em termos genéricos, a leitura do texto-base, publicada em 1963 sob a forma de
plaquete, para orientação do debate, explicava que a Universidade brasileira, além
de uma questão política, era também uma questão de política.
Senão vejamos os termos do texto, provavelmente redigido por Pedro Santos, no qual se elencavam os debatedores Wills Leal, Juarez Batista, José
Rafael de Meneses e Paulo Pires:
A reforma da universidade num país subdesenvolvido, que necessita sacudir o jugo
das pressões imperialistas que o entravam, e criar com plena liberdade a sua cultura
própria, não tem primordialmente finalidade pedagógica, mas visa antes de tudo a
finalidade política. A Universidade da Nação oprimida em esforço de libertação vê-se
constrangida a passar por esta fase de atuação preferencialmente política, para atingir, quando o país houver se consolidado numa realidade social justa e independente,
a fase em que poderá, como e de sua natureza, consagrar-se por inteiro aos seus fins
culturais, identificados, em tal momento, à política geral da sociedade. [...] A forma
da futura Universidade brasileira está sendo decidida muito mais num comício de
camponeses do Nordeste do que nas salas de reuniões dos Conselhos de Educação
(SANTOS, 1963, p. 4).
Essa politização não deixaria de fora o cinema. No texto do debate, uma citação exemplar (indicada pelas letras J.A., provavelmente retirada de Jorge Amado): “Os inimigos do cinema brasileiro são os mesmos inimigos do povo brasileiro”
(SANTOS, 1963, p. 3).
Na UFPB, com o golpe militar de 1964, foi extinto o Serviço de Cinema, do
Departamento Cultural da Universidade, criado dois anos antes e que tinha à sua
frente Linduarte Noronha. O setor adquiriu inclusive uma filmadora 35 mm russa,
além de película virgem. Os projetos do Serviço foram abortados com o golpe. O
episódio da câmera russa foi rememorado no perfil cinematográfico sobre Linduarte Noronha, dirigido por Manfredo Caldas, intitulado Cineasta da terra, produção da
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Folkino, que foi realizada para a grade de programação do Canal Brasil em 2009,
na série Retratos Brasileiros.
Somente no mês de janeiro de 1977 é que o cinema seria debatido novamente num
espaço próprio na Universidade, após a extinção do Serviço de Cinema. Em promoção do Museu da Imagem e do Som da UFPB, naquele ano realizou-se o simpósio
Universidade – Cinema, pretendendo-se o estabelecimento de uma política de cinema
na Universidade, espaço no qual quase nada estaria sendo feito. “O potencial de linguagem cinematográfica é desconhecido e, portanto, relegado como forma auxiliar às
atividades de ensino, e sobretudo de pesquisa” (MOURA, 1977, p. 4).
O texto originado do evento é repetitivo nesse aspecto: “Praticamente nada vem
sendo desenvolvido neste setor, tanto em termos de realização como de cursos e de
exibições”. Após o diagnóstico, detalham-se os itens de uma política de ação - de um
projeto de infraestrutura de equipamentos à execução de ações no âmbito do cinema.
As linhas que seriam implementadas estariam voltadas para: a) filmes de registro;
b) filmes de pesquisa e c) filmes culturais ou documentários. “E em conformidade com
o interesse [...] os filmes poderão ser realizados nas bitolas 8, 16 e 35 mm, a cores ou
preto e branco, de curta, média ou longa-metragem” (MOURA, 1977, p. 5).
Uma leitura atenta do documento demonstra existir nele a semente do que seria
posteriormente o NUDOC. Comparando-se com outro documento, na Carta de João
Pessoa (1979), vê-se que ambos partem de um mesmo diagnóstico: a estagnação da
produção local. Há diferença em relação ao contexto. No texto de 1979 há referência
ao debate em torno da regionalização e descentralização cultural na Embrafilme, e a
congregação de representação política durante o evento da Jornada de Cinema, evento
no qual veio à lume a Carta.
Foi no NUDOC que introduziu-se a proposta de introdução do Cinema Direto, nos moldes preconizados por Jean Rouch uma vez que, embora oficialmente só existisse meses depois, o Núcleo passou a ser a referência em formação
cinematográfica da Universidade.
A abertura do texto da Carta firma-se uma necessidade de “criar condições locais
para participar do programa oficial de regionalização da produção cinematográfica que
vem sendo levado a efeito pela Embrafilme e na qual todas as regiões participantes deverão atuar em nível decisório”. Embora não citado explicitamente, é com lastro no filme
de Linduarte Noronha, Aruanda, que se segue a reivindicação de que é preciso “a retomada do ciclo de documentários paraibanos que ofereceram uma grande contribuição
à história do cinema brasileiro através do esforço espontâneo de jovens e da eventual
colaboração de instituições várias”.
A Universidade é citada várias vezes no teor da Carta. Em relação à infraestrutura,
reivindica-se “a aquisição de equipamentos completos de cinema pela UFPB e Governo
do Estado, da mesma forma como vem acontecendo em outros Estados”.
No tocante à formação, propõe-se na Carta a “realização de convênios, estágios, cursos de extensão e concessão de bolsas de estudo que permitam a conformação de quadros
técnicos que servirão de base à infraestrutura necessária à revitalização do cinema parai105
bano à qual se encontra praticamente inativo” (O NORTE, 1979, p. 3).
Quando criado o NUDOC, que seria um dos pontos de apoio para efetivação do
Polo de Cinema da Paraíba, a UFPB já era multicampi e tinha uma feição inter-regional,
possuía mais de 20 mil alunos, 70 cursos de graduação e 39 cursos de pós-graduação,
além de 31 núcleos de pesquisa e extensão em diversas áreas do conhecimento.
Aliado à importância regional, o reitorado da época continuava expandindo as cooperações internacionais e celebrando convênios com diversas universidades do país e
exterior. Um indicador de seu destaque no cenário das outras instituições universitárias
federais era seu orçamento, o maior da região Nordeste e um dos maiores do país.
A expansão das cooperações encontrou na oferta do realizador francês Jean Rouch,
durante a Jornada de Cinema, mais uma oportunidade de aumentar o número de convênios que naquele momento somava mais de uma dezena de países do mundo envolvendo
diversas áreas do conhecimento. Entre tais países, destaque para os EUA, França, Canadá, Japão, Alemanha e Holanda.
Na discussão da proposta francesa de introdução do Cinema Direto, inicialmente o
principal ponto de divergência era sobre a bitola Super-8, proposta em função de Ateliers
mantidos pelos franceses em Paris e Maputo.
Conforme Manfredo Caldas, estiveram presentes à discussão ocorrida durante a Jornada ele próprio, Vladimir Carvalho, Cosme Alves Neto, Jurandy Moura, Pedro Santos e
Paulo Melo. Os três últimos tiveram participação direta no intercâmbio, sendo que Paulo
Melo, primeiro coordenador do convênio com o NUDOC e redator do projeto do Atelier local, desligou-se da UFPB para acompanhar o reitor Lynaldo Cavalcante, após este
sair da Universidade ao fim do mandato. Jurandy Moura e Pedro Santos fizeram estágio
em Paris por conta da cooperação.
O NUDOC, espaço privilegiado de formação fílmica
Um dado curioso é que foi suprimida a bitola Super-8 na competição das obras na
VII Jornada de Cinema de Salvador. O questionamento sobre o Super-8 resultou na
inclusão do 16 mm, na parte referente à infraestrutura básica e de formação (com câmeras, uma mesa de montagem e gravador Nagra).
Mesmo em Paris, o fato de se trabalhar com o Super-8 motivou questionamentos por
parte da revista Films et documents, questão à qual o próprio Jean Rouch respondia dizendo: “le probléme du format n’a rien à voir avec le probléme du moyen d’expression...”
(MARCORELES, 1981, p. 27).
Para explicitar a ideia do Atelier, Jean Rouch falou da experiência no Departamento
de Estudos de Comunicação da Universidade de Maputo. Quatro realizadores-formadores, que trabalharam com ele em Nanterre, estiveram em Moçambique entre junho
e setembro de 1978 em missão cultural do ministério do exterior francês (Ministere des
Affaires Etrangeres, conhecido aqui pela sigla MAE) e lá realizaram vários filmes.
Philippe Costantini, que veio ao Brasil duas vezes ministrar cursos,
assim falou a Louis Marcorelles:
106
L’intérêt de l’àventure: des gens partent de zéro, sur un terrain neuf. Ce n’est pas tellemente une question de format. Nous amenons aussi avec nous des films en 16 millimétres que nous montrerons dans les villages. Ce qui compte, c’est 1’état d’espirit:
vivre avec des gens partage quelque chose avec eux, et finalraent apprendre autant et
plus qu’eux. Je leur mettrai des cameras dans 1es mains (MARCORELLES, 1981, p. 23).
Louis Marcorelles viu aí uma forma de realizar “le vieux rêve de Jean Rouch, qui ne
voulait plus que le cinéaste monopolise 1’observation des choses. Il sera a son tour observé”.
O entusiasmo de Jean Rouch pelo Super-8 já fora anteriormente exposto numa
entrevista que concedeu à Miriam Alencar quando veio ao Brasil participar da I
Mostra do Filme Etnográfico do Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro:
A imagem é que vai falar e nesse caso, o Super-8 tem todas as condições para esse
tipo de trabalho, na medida em que há maiores facilidades de filmagens. O movimento da câmera deve caminhar em função do que vê. E o filme etnográfico deve ser feito
também em função do sentimento do autor diante de um homem e sua civi1ização.
Através de sua subjetividade se chega à objetividade científica. Essa objetividade vai
ser observada no momento em que se projetar o filme para os que foram filmados.
Eles vão dizer se sua realidade foi ou não captada (ALENCAR, 1975, p. 2).
Nesse ponto, Jean Rouch penetra na divisão por demais discutida entre dois campos de conhecimento: o cinema e a ciência. Com base em seus estudos e na sua experiência na África, defendeu o ponto de vista de que a filmadora substitui o bloco de
notas dos antropólogos que fazem observação de campo. Sabemos que em decorrência disso, pode acontecer uma série de problemas: desde uma inevitável associação
da antropologia clássica com o colonialismo numa perspectiva política, e também a
luta de autonomia por ambos os campos - o cinema e a ciência, com abordagens de
ambos os lados em vista dos seus fundamentos.
Em 1981, os formadores da Associação Varan, responsáveis pela cooperação com
a UFPB, falavam em “antropologia recíproca” em seu texto-manuscrito, traduzido
por Pedro Santos, do original francês1.
O Super-8 seria ideal, para os franceses, nos países onde não havia infraestrutura de meios audiovisuais desenvolvida no plano das tecnologias de acesso ao cinema. No aspecto das derivações do termo documentário, uma abordagem vinculando essa possibilidade fílmica ao que conceitualmente seria
mais apropriado - o Cinema Direto.
A primeira publicação da UNESCO sobre o tema do Super-8, datada de 1976,
foi editada tendo em conta o viés da tecnologia de acesso ao audiovisual e inaugura
esse casamento entre uma tecnologia “modesta” e sua relação com o Terceiro Mundo. Além das possibilidades expressivas do que o autor Jonatah Gunter nomeadamente intitula de “cinema verité”.
A publicacão francesa Films et Documents questiona bastante o Super-8. Em certa
1
Antropologie
partagée, no
original.
107
altura da entrevista concedida ao periódico, Jean Rouch declara:
Nous n’avions aucune autre pretention, et quand tu parlais tout à l’heure des Africains, non, il est très mauvais, je pense, de proposer a des pays qui n’ont pas encore
de cinéma, de passer par le cinéma super 8, ce serait vraiment proposer le cinema au
rabais, le cinéma, il est trés difficile de le diffuser.
Segundo o professor João Carneiro, convidado da UFPB para falar de literatura
e artes no contexto africano, em 1979 as realidades moçambicana e brasileira eram
diferenciadas:
Quando chega a independência, por exemplo, Angola já tem um parque gráfico de
grande sofisticação. Já com uma indústria de cinema, televisão, com rádio muito desenvolvido. Em Moçambique a situação é ligeiramente diferente, pois o desenvolvimento dos meios de comunicação é bem menor. Nas outras colônias é insignificante
(GOMES & NUNES FILHO, 1980).
De acordo com Carneiro, não havia acesso, com raríssimas exceções - e estas
exceções são só Angola e um pouco em Moçambique - aos órgãos de informação de
nativos das colônias. “E, mais ainda, não havia acesso de nativos negros. Isso não por
condições de estrutura social, mas também por condições especificamente de instrução, porque os índices de alfabetizados eram mínimos, insignificantes”.
No mesmo ano da VIII Jornada, presente também ao Festival de Brasília, Jean
Rouch fez declarações publicadas no Jornal do Brasil, considerando as diferenças e as
possibilidades do Atelier da Paraíba na matéria intitulada “Jean Rouch e Nanterre
em ligação direta”, datada do dia 20 de outubro:
Nessa experiência serão levadas em conta as condições econômicas, políticas e sociais do lugar. Pretendemos ouvir nossos companheiros, corresponsáveis do projeto
que determinarão as modalidades da experiência. Existe no país, e particularmente na
Paraíba, uma tradição cinematográfica que modifica muito o nosso trabalho.
A afirmação do realizador francês apenas em parte foi considerada ao longo dos anos,
vez que do lado francês a implementação do 16 mm foi efetivada apenas em nível de formação, no último estágio oferecido em Paris, em 1986.
Isso, contudo, não se constituiu um problema, pois as produções em 16 mm começaram a ser feitas no NUDOC, após a cooperação terminada, numa demonstração de que
o movimento inicial de Jean Rouch foi decisivo para concretização de um salto tecnológico
no interior da própria UFPB. A nosso ver, o problema maior seria compatibilizar duas cinematografias fortes no âmbito do cinema em ambiente cultural-universitário, com a profusão
de filmes no estilo do Cinema Direto em grande quantidade. Tal circunstância, propiciou
um debate quase constante sobre os rumos da tradição paraibana e das estéticas possíveis do
108
cinema documentário - e também da ficção - nas terras de Aruanda.
Entre os anos de 1981 e 1985, as principais definições do projeto passaram a ser feitas por
Jean Rouch e Jacques D’Arthuys, na França, e Pedro Santos, no Brasil.
Montar ateliers em vários países no mundo (em 1981 registravam-se Maputo, Niamey,
Tenerife, Manágua, Cidade do México e João Pessoa) pode ser indicador de uma natural
expansão do cinema francês e recupera a tradição expansionista dos franceses, fortíssima e
de escala mundial na primeira década do século XX.
Em países como Moçambique, a empreitada incluía laboratórios de revelação e copiagem, o que permitiu nos seus cursos uma quase instantaneidade do processo lá implementado. Considere-se ainda o incentivo de grandes agências de financiamento e de difusão
cultural como a UNESCO. No caso brasileiro, o financiamento teve aporte para instalação
do Banco do Nordeste do Brasil e do governo estadual.
A publicação Super-8: the modest medium é a primeira a tratar de tecnologia comunicacional
numa série daquele órgão. Embora o autor ressalte que seu trabalho não reflete necessariamente as opiniões da Instituição, o fato de ter sido a primeira de uma série que trata de forma
simples as questões operativas da tecnologia acessível aos países do Terceiro Mundo, indica
que naquela agência de fomento antevia-se no Super-8 possibilidades inúmeras no processo
de comunicação desses países. Funcionaria como uma espécie de manual a ser seguido. E
o seu autor, Jonathan Gunter, foi consultor de projetos de comunicação no Equador e na
Colômbia.
Em Super-8: the modest médium, Gunter discute as qualidades do Super-8: economia, versatilidade, flexibilidade e fácil operação. Define a tecnologia, basicamente, como um “production
médium, not a distribution médium”.
Se consideramos que o autor equivocou-se em relação ao que previu em 1976, especialmente ao não considerar a velocidade com que a plataforma tecnológica mudaria em escala
global, ao tratar da difusão, no plano ideológico, sustentava ainda a divisão do mundo em
blocos hegemônicos ao considerar a denominação de Terceiro Mundo, por exemplo, para
países diferentes em continentes também diversos.
Contudo, as orientações contidas no livro sobre problemas técnicos foram explicitadas de
modo bastante didático. Tipos de películas, câmeras, iluminação, processamento de laboratórios e edição - além de comparativo com outros meios.
Nas conclusões que ele apresentava vejamos o que escreveu:
In the developing countries the possible uses of 8 mm are numerous, most of them
not fully explited. An 8 mm Project can provide film training economically for universities or training centres concentrating on film or film to television production for
educationar culture. 8 mm can provide quick, lowcost programme inputs for existing
television stations. 8 mm can be taken to the bush or the isolated farms for on-thespot reportage or cinema verité (grifo do autor) essays. 8 mm can reflect the depth
and variety of culture to its own people even using separated sound tracks on cassete
for the many dialects spoken. As a mother of fact, the more 8 mm cinematographes
keep away from the ‘established practices of filming in the industrializated countries,
109
the more they can created new possibilities and applications of the medium... In the
Third World especially, the possible innovations with 8 mm are considerable and very
likelly it is in the Third World that the 8 mm revolution will have its greatest impact
(GUNTER, 1976, p. 85).
2
Ver MATTELART,
Armand;
DELCOURT, Xavier;
MATTELART,
Michèle. A
cultura contra
a democracia?
O audiovisual
na época
transnacional.
São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1987.
110
Voltando ao tema da expansão da cinematografia francesa, podemos aferir que o
aspecto da introdução do projeto na África também não foi sem polêmica, notadamente
em sua feição antropológica.
Rui Duarte de Carvalho comenta em O Camarada e a Câmara que Jean Rouch personificou uma reação de esmagadora maioria opondo-se ao cinema etnográfico. Os nomes
de Ohnsein e Sambene são citados como destaques dessa reação que remete, segundo
Rui Duarte, à Carta de Argel, de 1959 e ao I e II Congresso de Escritores e Artistas Negros - vetores importantes, segundo Duarte, para edificar uma cinematografia nacional.
Enunciados os argumentos de cada parte, Rui Duarte afirmou que em fins dos anos
1980 do século passado os ânimos serenaram, mas no caso angolano a produção de uma
cinematografia especializada não atenderia à enorme necessidade do país no campo audiovisual por essa época.
Em depoimento ao Seminário “Para entender melhor Angola” (1988), Rui Duarte
afirmou que em relação à sua própria obra foi preciso escrever o livro O Camarada e a
Câmera para demonstrar que não se tratava de cinema antropológico.
Do ponto de vista francês, é raro encontrar por essa época documentos oficiais do Ministério do Exterior em que o expansionismo no campo do audiovisual seja evidenciado.
Apenas um, que trata da cooperação nesse ramo e da radiodifusão foi publicizado pelos
autores do livro Cultura contra democracia? - O audiovisual na época transnacional2. Do capítulo
dedicado ao fluxo cultural entre os países do Primeiro e do Terceiro Mundo, transcrevemos abaixo:
As operações de cooperação assumidas essencialmente pelo Ministério da Cooperação
e o Ministério das Relações Exteriores para responder as necessidades extremamente
diversificadas exprimidas pelos países demandantes, assumem formas diferentes conforme se trate de formação profissional ou de assistência técnica. Mas todas servem
de apoio a uma política de promoção dos Programas franceses de televisão e de ajuda
para sua difusão, quer seja em bases culturais ou comerciais. Elas favorecem também
uma penetração de nossas técnicas e de nossos materiais nas redes estrangeiras
de rádio e de televisão ficando entendido que se elas podem às vezes contribuir de
maneira direta para a realização de uma operação de vendas de equipamentos visam
antes de mais nada, preparar o terreno para nossos industriais e sensibilizar nossos
interlocutores para as qualidades das técnicas audiovisuais e do material francês. A
partir de uma época recente, a formação se tornou, além disso, um produto que pode
ser vendido da mesma maneira que qualquer um de nossos bens culturais, porque
possuímos um savoir-faire que interessa nossos interlocutores estrangeiros (exemplo: países árabes, México) (MATTELART; DELCOURT; MATTELART, 1987, p. 87).
Em relação a Moçambique, diante de como se apresentava a cooperação, seria necessário um suporte diplomático e Jacques D’Arthuys era o adido cultural da França naquele
país. A sua experiência na área garantia o suporte político necessário, inclusive em Paris, para
implementação dos Ateliers de Cinema Direto.
No caso brasileiro, é preciso entender que era bastante anterior o interesse pelo Brasil manifestado por Jean Rouch. “É preciso contextualizar que esse movimento representava um gesto de aproximação efetiva à imagem que guardava da cinematografia
brasileira na França”.
No início dos anos 1970, Rouch já falava em rodar filmes no país, nas cidades de Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, contando com o provável apoio de Thomas Farkas,
produtor de série Brasil Verdade.
Ao que parece, a perspectiva comercial de venda de equipamentos em Super-8 apresentava um descompasso na época com a estratégia comercial da Kodak, que detinha praticamente o monopólio de películas virgens na bitola no Brasil.
Se no caso moçambicano fora decisiva, no Brasil, em 1980 a Kodak interrompeu a comercialização de filmadoras e projetores sonoros, equipamentos importantes para a cooperação nos moldes do Cinema Direto.
A deduzir pela Carta de Intenções (1979), assinada quando houve a VIII Jornada, a
proposta de Jean Rouch não mencionava aquisição de tecnologias como condição da cooperação, o que o exime da crítica sobre obrigatoriedade de compra de equipamentos de
Super-8 feita na época.
Um segundo ponto a considerar seria que se tomarmos por base o manifesto traduzido
por Pedro Santos, texto este que representava em parte o pensamento dos formadores da Associação Varan, de 1981, a polêmica se instaurou pelo viés da institucionalização de saberes
no âmbito artístico e acadêmico. E o cinema não estaria imune a esse poder de institucionalização que o conhecimento gera em ambientes universitários e artísticos.
A deduzir pelos exemplos dos filmes exibidos nos estágios na França, ao comparar com
os termos do documento de 1981, nota-se que não havia um consenso total pairando sobre
o que se discutia em termos do Cinema Direto, sequer no interior da própria Associação
Varan, onde os formadores imprimiam seu ponto de vista naquilo que essencialmente Jean
Rouch definia como “antropologia recíproca”, segundo a tradução livre do maestro Pedro
Santos. Isso repercutiu em áreas onde a expansão ia se fazendo. O próprio perfil dos formadores imprimia uma inclinação pessoal a uma orientação genérica sobre o Cinema Direto.
Uma vez que pudemos participar diretamente de duas fases, em Paris, do intercâmbio,
podemos constatar que houve um salto evolutivo em relação aos primeiros movimentos do
grupo de Varan, que, no entanto, já em 1984 demonstrava ter fissuras internas que influenciariam o desdobramento dos eventos relacionados ao atelier de João Pessoa, por exemplo.
No aspecto pedagógico, a partir do Plano del curso3, distribuído aos participantes
de uma avaliação mundial feita em 1984, vê-se uma ampliação em relação ao leque
de práticas do documentário, tendo em vista “as necessidades específicas de cada
centro” e “a prática de outros gêneros cinematográficos mais aptos à demanda destes
(Filmes tecnológicos, pedagógicos, documentários, reportagens...)”.
3
DIVERSOS - Plano
del curso. Apostila
mimeografada
distribuída
no estágio de
aperfeiçoamento
em Paris, França.
Ateliers Varan,
1984. Autoria
do grupo Varan
no estágio de
primavera de
1981.
111
No caso brasileiro, este perfil ia se delineando em João Pessoa com Severin
Blanchet, Mirreil Abramovici, e Philippe Costantinni, sendo que este último atuou
na fundação do atelier de João Pessoa e Fortaleza.
De forma sucinta, poderíamos convidar o espectador a refletir sobre como, no
Atelier de João Pessoa, filmes tipo Música sem preconceito e É Romão pra qui é Romão
pra colá, de Alberto Jr. e Vânia Perazzo, respectivamente, têm propostas estéticas
Música sem distintas. Eles foram produzidos em cursos nos quais as orientações dos formadores
preconceito franceses eram diferentes, não se mostrando assim tendências monolíticas na forma
Alberto Jr.,
1984.
112
de uma pedagogia do Cinema Direto.
No Atelier de Fortaleza, para onde foi estendida a cooperação com o aporte de
50.000 francos oferecidos pelo governo francês, em equipamentos, a análise dos filmes se tornaria mais complexa uma vez que a coordenação local de Euzélio Oliveira
sugeriu ao reitor da Universidade Federal do Ceará interromper o acompanhamento
da finalização das obras dos alunos, levando à suspensão dos trabalhos de orientação
da montagem dos filmes na última etapa dos trabalhos.
De forma genérica, pode-se considerar para reflexão, no entanto, duas características comuns nos filmes advindos dos estágios brasileiros: a) a grande parte dos
filmes era de perfis abordando artistas que mobilizavam algum tipo de linguagem.
Em consequência, a própria prática dessa linguagem supria as “deficiências” expres-
sivas desse tipo de trabalho fílmico; b) ao realizar um filme onde o próprio sujeito é o
personagem da narração, cria-se um vínculo ético que limita a ação, estimulando o
plano-sequência que evitaria ou amenizaria a manipulação dos conteúdos.
Algumas produções dos brasileiros na França, realizadas na Associação Varan,
podem ser acessadas pelo site do Instituto Nacional do Audiovisual, especialmente os
filmes com um apelo mais universalista.
La crise est mondiale (Pedro Santos, 1980, realizado em Super-8) foi o primeiro
título de brasileiro na França, realizado na forma de uma carta-postal cinematográfica, narrado em primeira pessoa pelo autor, contando suas impressões da
Paris da época.
Superando a perspectiva da técnica, o próprio NUDOC tratou de avançar a
partir dessa base propiciada pela cooperação na medida em que passou a produzir curtas e médias-metragens na bitola 16 mm e 35 mm, com financiamentos de
diversas naturezas, ou mesmo, mais recentemente, no formato digital; filmes que
têm ainda assim marcas do período em que o intercâmbio com os franceses foi
efetivo.
Pensando o projeto sob a perspectiva do próprio Núcleo, é curioso como o
maestro Pedro Santos enfatizava que os franceses esperavam uma contribuição
nossa, embora que sobre o Cinema Direto já existisse no centro-sul do país um
debate que remontava aos anos 1960.
Contudo, ao retornar de um estágio em Paris, o maestro Pedro Santos assinalou que discutiu com os seus colegas franceses um viés bastante curioso para a
época: o de que com o Super-8 quebra-se a hierarquia da obra fílmica de padrões
industriais. O filme realizado permite que o autor seja o dono da própria obra e,
portanto, não alienado em relação a ela. Ademais, o filme Super-8 continha uma
forma de subversão do uso da tecnologia complexa do cinema; este uso deveria
ter uma perspectiva de reversão, de encarar a tecnologia como lixo da sociedade
industrial, fazer tal como o artesão nordestino que se apropria de produtos industriais (um pneu) e transforma-o artesanalmente em objeto utilitário.
Embora refletisse uma política de expansão do governo francês, foi sintomático
que com o falecimento dos principais entusiastas do projeto, Pedro Santos (1987) e
Jacques d`Arthuys (1989), praticamente desapareceram as forças pessoais e institucionais que mantinham efetiva a cooperação.
Contudo, há que ser considerado ainda que o ano de 1983 foi difícil para as universidades brasileiras (em 1982 ocorreu uma greve que interrompeu parcialmente as
atividades do Atelier de João Pessoa) e para o governo francês. É o que consta no relatório da Assessoria Internacional da UFPB, assinado em 27 de dezembro de 19834.
Antes de falecer, D`Arthuys ainda fez o esforço de, através de uma instituição
(Garsilaso de La Vega, com sede em Paris), articular brasileiros, mexicanos, bolivianos e equatorianos em produções fílmicas internacionais.
Vânia Perazzo, cineasta paraibana que participou desde cedo da cooperação e
tornou-se orientanda de Jean Rouch na Universidade de Nanterre, também tentou
4
Correspondência
administrativa
assinada
por Jacques
Ramondot. Acervo
do maestro
Pedro Santos,
catalogado
no Núcleo de
Documentação
e Informação
Histórica Regional
da UFPB. Pasta
APS-CD6.
113
5
Em entrevista
curta que nos
concedeu em
setembro de
2003, disse
que esse tipo
de cooperação
seria uma “porta
aberta”. Arquivo
pessoal, registro
em áudio.
Colaboraram
também Bertrand
Lira e Marcos de
Souza Mendes.
Salvador-BA,
set. 2003. Acervo
pessoal.
114
rearticular institucionalmente o convênio, porém tal iniciativa não logrou êxito.
Fazendo hoje uma reflexão ante a facilidade com que as pessoas terão acesso aos
filmes, entrando no universo do projeto que ora disponibiliza na web grande parte
dos filmes paraibanos, realizados durante a cooperação, podemos aquilatar possibilidades infinitas na revisão das ideias em curso naquela época. Instaura-se uma nova
leitura de imagens e propostas trazidas pelos franceses que aqui aportaram, gerando
agora interfaces daquela época com os acontecimentos recentes.
O “viver com as pessoas”, que nos falava Philippe Constantinni, realiza-se mais
uma vez, agora com o apoio da tecnologia de acesso digital, numa triangulação sensível da memória afetiva dos personagens reais que aparecem nos filmes, no discurso
fílmico dos diretores que realizaram as obras e, principalmente, no distanciamento
crítico necessário que permitirá ver nos trabalhos dos alunos o empenho dos formadores franceses que conosco conviveram.
Em abril de 2010, em João Pessoa, numa realização do NUDOC e Balafon,
a Mostra Jean Rouch foi a maior retrospectiva já programada de um cineasta da
contemporaneidade na nossa região. O cineasta francês, no entanto, já era falecido.
O programa de filmes foi encerrado com a projeção e debate do filme Jean Rouch et
Germaine Dieterlen, l`avenir du souvenir, dirigido por Philippe Costantinni, que a nosso
ver explicita bem essa continuidade de um cinema voltado para a compreensão dos
povos e suas memórias, mesmo que elas estejam distantes da nossa memória.
Em 2003, quando da realização em Salvador de mais uma Jornada de Cinema da
Bahia, na qual Rouch seria homenageado por diversos cineastas brasileiros participantes do evento, entrevistei Jean Rouch. Indagado sobre a cooperação com o cinema paraibano, de pronto nos respondeu que o intercâmbio era uma “porta aberta”5.
REFERÊNCIAS
ALENCAR, Miriam. “Para fixar o primitivo o cinema não precisa de palavras, só imagens”. Jornal do Brasil, Caderno B, Rio de Janeiro, 20 ago.
1975. Entrevista com Jean Rouch.
GOMES, João de Lima; NUNES FILHO, Pedro. Cadernos de comunicação e realidade brasileira.
João Pessoa, PB: EdUFPB, 1980.
GOMES, João de Lima. Cinema paraibano. Um
núcleo em vias de renovação e retomada. 1991.
Dissertação de mestrado - Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São
Paulo, SP, 1991.
GUNTER, Jonathan F. Super-8: the modest medium. Paris: UNESCO, 1976.
“JEAN Rouch e Nanterre em ligação direta”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 out. 1979.
MARCORELLES, Louis. Des ateliers super-8 em
France et au Mozambique. Films et documents,
n. 333, Paris, França, 1981.
MATTELART, Armand; DELCOURT, Xavier; MATTELART, Michèle. A cultura contra a democracia? O
audiovisual na época transnacional. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
MOURA, Jurandy. Universidade - Cinema: proposta para uma política de cinema da UFPB.
Documento mimeografado. Acervo NDIHR-UFPB,
João Pessoa, PB, 1977.
SANTOS, Pedro Pereira et al. Cinema - Universidade - Povo. Plaquete mimeografada, Diretório
Acadêmico da Faculdade de Filosofia. Serviço de
Cinema da Universidade da Paraíba. João Pessoa, PB, 1963.
115
CINEMA
ENGAJADO:
A temática social como marco
da produção paraibana dos
anos 1960, 70 e 80
POR FERNANDO TREVAS FALCONE
116
As produções em 35 mm voltadas para
a zona rural, marco das décadas de
1960 e 1970, são sucedidas pelos filmes
em Super-8 com temática diversificada,
mas a questão social persiste no cinema paraibano do final dos anos 1970 e
da década de 1980.
Fernando Trevas Falcone é
jornalista, professor do Curso
de Cinema da UFPB e mestre
em Cinema pela ECA-USP.
Abril
Marcus Vilar,
1984.
117
O cinema paraibano chega ao final da década de 1970 com uma filmografia
expressiva para um estado pobre e periférico. O Ciclo do Cinema Documentário,
iniciado com grande repercussão com Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) aponta
para um cinema voltado às questões sociais da zona rural.
Uma comunidade quilombola, vivendo da fabricação de utensílios de barro, isolada de tudo e de todos é apresentada ao Brasil do início da década de 1960, que se
moderniza com a construção de Brasília, a implantação da indústria automobilística
João Córdula
em ação no
Cinema Educativo
118
e outras bossas. Na era JK, Aruanda introduz o ritmo marcante dos pífanos e acentua
a vida dura dos habitantes da Serra do Talhado, no sertão paraibano.
As imagens fortes e cruas de Aruanda, a trilha musical gravada na região e as paisagens áridas e inóspitas são contrastadas pelo texto acadêmico, falado no tom solene
de um narrador profissional – o próprio Linduarte Noronha, que além de escrever
diariamente uma coluna de cinema nas páginas do jornal oficial A União, era locutor
da Rádio Tabajara, emissora governamental.
Assim como quase todos os filmes realizados na Paraíba nas décadas de 1960 e
1970, Aruanda não foi realizado com som sincronizado, mecanismo técnico que só
chegaria ao Brasil alguns anos depois da realização do filme.
A despeito da tentativa do diretor domesticar as imagens e a música, que formavam um conjunto de inédita força no cinema brasileiro de 1960, Aruanda está inscrito
na nossa cinematografia como um dos primeiros documentários a abordar temas
sociais a partir de uma perspectiva crítica.
Salvo uma frustrada tentativa do mesmo Linduarte, de documentar em 1956, em
parceria com o crítico e pesquisador Wills Leal, a geografia exuberante da Ponta do
Cabo Branco, ponto extremo oriental das Américas situado em praia de João Pessoa,
o cinema paraibano, até a realização de Aruanda, permanecera adormecido desde a
aventura de Walfredo Rodriguez na década de 1920.
Fotógrafo de grande habilidade técnica, Rodriguez realizou em 1928 o longa-metragem Sob o Céu Nordestino. O filme foi exibido com sucesso na Paraíba e
chegou ao Rio de Janeiro e Bahia, e mostrava diversas faces da Paraíba. Dele
restaram algumas sequências que somam aproximadamente 15 minutos.
Os fragmentos de Sob o Céu Nordestino trazem registros de momentos da pesca
da baleia em Cabedelo, de uma vaquejada nos arredores da cidade de Cabaceiras
e imagens da feira de algodão de Campina Grande. Dos trechos desaparecidos
há relatos de cenas que reproduzem o modo de vida dos primitivos habitantes da
Paraíba. Os indígenas são “interpretados” por atores brancos, conforme indica
uma fotografia da produção publicada por Leal (2007), que traz ainda um precioso registro das sete partes que comporiam o roteiro do filme.
Deve-se registrar, na história do cinema feito na Paraíba, a figura de João
Córdula. Na primeira metade dos anos 1950, no governo de José Américo de
Almeida, Córdula documentou ações governamentais em diversas regiões do estado. Responsável pelo Cinema Educativo da Paraíba desde a sua criação em
1955, não pode finalizar a maior parte dos seus filmes por falta de equipamentos
básicos – não dispunha sequer de moviola para montar seus trabalhos.
Foi portanto a partir de Aruanda que o cinema paraibano passou a documentar
com regularidade alguns aspectos do estado, enfatizando comunidades rurais e
populações desfavorecidas das periferias de sua capital.
Em Romeiros da Guia (1962), João Ramiro Mello e Vladimir Carvalho, assistentes de direção de Noronha em Aruanda, registram em imagens poéticas a procissão
marítima que parte do forte de Santa Catarina, ao lado do porto de Cabedelo,
num ritual que se estende até a noite, e tem como cenário a bela igreja de Nossa
Senhora da Guia e a festa que se segue às celebrações religiosas.
O tom poético também marca Cajueiro Nordestino (1962), em que Noronha,
a partir de texto de Mauro Mota, mostra como o caju transforma-se em doces e bebidas, e como a sua castanha é usada como brinquedo pelas crianças de
bairros populares de João Pessoa.
A poesia dá lugar à dureza da atividade dos catadores de caranguejo dos arredores da capital paraibana, cujos corpos se confundem com a lama em uma luta inglória pela sobrevivência. Os Homens do Caranguejo (Ipojuca Pontes, 1967) expõe a vida
miserável de trabalhadores que nos impressionam com seu esforço em uma prática
degradante, cujas imagens remetem a um balé quase surrealista.
Dos mangues o cinema paraibano nos transportou à aridez sertaneja no longa119
metragem O País de São Saruê (Vladimir Carvalho, 1971). A miséria estampada nos
rostos e nos corpos dos camponeses abatidos pela seca e pela fome teve tamanho
impacto que o filme permaneceu censurado durante oito anos.
Se Aruanda chocara a democrática era JK, Saruê escancarou a falta de esperança e a fome dos sertanejos, tornando-se um documentário mais que incômodo,
firmando-se como uma contundente denúncia da farsa do milagre econômico
protagonizada pela ditadura civil-militar no início da década de 1970.
A miséria persiste em cena. Pelas ruas de João Pessoa, em uma cadeira de rodas empurrada por dois meninos, um religioso munido de uma varetinha pede esmolas para a sua grande obra: uma casa e um hospital
destinados aos mais pobres.
Padre Zé Estende a Mão (Jurandy Moura, 1974) acompanha o trabalho incansável, quase obsessivo, do religioso Zé Coutinho, que supera as suas limitações
físicas para ajudar as centenas de pessoas que buscam abrigo, alimentação e cuidados médicos.
Recebe de volta um carinho expresso em cuidados redobrados daqueles a
quem protege. O filme ressalta essa relação ao registrar o momento em que os
“moradores” do instituto Padre Zé o ajudam a se preparar para dormir.
Ao lançar seu olhar sobre a figura do padre e de sua quixotesca ação social em uma cidade repleta de indigentes, Moura produz um documento de raro valor, certamente a incomodar os adeptos do Brasil Grande
- estávamos no final da ditadura Médici - e reitera a vocação do cinema paraibano em produzir filmes apontando as mazelas de um estado pobre da região
mais subdesenvolvida do país.
A temática social, desenvolvida nos anos de 1960 e 1970 em documentários
preto e branco, com captação de som não sincronizada, feita em 35 mm - com
exceção de Padre Zé Estende a Mão, filmado em 16 mm - será ainda o grande assunto da década de 1980. Mas com novos protagonistas, diferentes cenários e com um
aparato de filmagem mais simples e barato.
CIDADE E CAMPO, CORES E SONS: SUPER-8 EM AÇÃO
Ao se referir ao cinema realizado em Super-8, o cineasta pernambucano Jomard
Muniz de Britto ressaltava que este era “mais íntimo e econômico”. A essa intimidade e economia somou-se, na Paraíba, a criação do NUDOC, núcleo da Universidade
Federal da Paraíba voltado ao ensino e fomento da produção, possibilitando o surgimento de uma nova geração de realizadores, e uma maior abrangência temática.
As câmeras com películas de 8 mm, usadas para filmar eventos domésticos, diminuíram consideravelmente o custo de produção de um filme. De filmadoras
fadadas a registrar casamentos, batizados e outros eventos familiares e sociais, as
câmeras passaram a utilizar películas com bandas sonoras, abrindo uma nova perspectiva de realizações. Surge em 1965 o Super-8, tornando possível realizar filmes
120
que iam além das efemérides.
No Brasil o Super-8 possibilitou a experimentação e democratizou a realização
cinematográfica, limitada pelos custos altos dos equipamentos para filmagem em
películas de 35 mm, predominante no circuito comercial, e bem menores que os fil-
mes de 16 mm, usados no telejornalismo e em algumas produções cinematográficas
a partir da década de 1960.
Filmou-se em Super-8 em vários estados do Brasil, e a experimentação destes
filmes baratos e muitas vezes ousados é destacada por Rubens Machado Jr. (2011). A
tecnologia de Super-8, pelo seu baixo custo e facilidade de manipulação, teve efeito
semelhante às câmeras digitais nos anos recentes, possibilitando a proliferação de
filmes em todo o Brasil.
Na Paraíba, dois estudantes universitários, com parcos recursos nos bolsos e uma
câmera Super-8 nas mãos filmam o cotidiano dos catadores de lixo do bairro do Roger, próximo ao centro de João Pessoa. Gadanho (João de Lima e Pedro Nunes, 1979)
inaugura uma nova fase do cinema paraibano.
No momento em que o regime autoritário em crise inicia a sua “abertura”, com
o fim do famigerado AI-5, ato que institucionalizou a ditadura, implantando a lei da
mordaça por uma década, a dupla de realizadores volta-se para a face mais cruel do
modelo concentrador de renda, que tornou ainda mais dura a vida dos mais pobres
Gadanho
João de Lima
e Pedro Nunes,
1979.
121
no Brasil, sobretudo os do Nordeste.
Gadanho mantém a contundência temática do cinema paraibano, mas agora o
cenário é urbano e os realizadores, sem se fixar em um personagem, esboçam o
quadro geral de uma situação social catastrófica. A cartela de texto avisa que o filme
é oferecido às “vítimas da MISÉRIA, SUBNUTRIÇÃO, DESEMPREGO, reflexo
da atual Estrutura Social Brasileira, montada num sistema de opressão e repressão,
renegando a condição mínima de um ser humano: a subsistência”.
Esse texto, que precede as cenas de adultos e crianças brigando com os urubus
pelas sobras de alimentos e outros produtos com o gadanho, instrumento usado pelos
catadores, e uma melancólica trilha musical indicam a necessidade de não apenas
mostrar com imagens, mas enfatizar o absurdo da “estrutura social brasileira”. Em
lugar do preto e branco dos anos 1960 e 1970, que parecia suavizar a miséria, o
Abril colorido de Gadanho grita na tela, a partir das imagens menos definidas, porém mais
Marcus Vilar,
1984.
122
enfáticas do Super-8.
No mesmo ano de 1979, conforme detalham Bertrand Lira e Pedro Nunes neste
livro, João Pessoa sedia a VIII Jornada de Cinema da Bahia, que não pode ser realizada em Salvador, e a UFPB cria o NUDOC – Núcleo de Documentação Cinematográfica. A nova instituição adquire equipamentos de filmagem e assina acordo com
o Comitê do Filme Etnográfico de Paris, ligado ao cineasta Jean Rouch.
O NUDOC realiza cursos de formação em cinema documentário. Alguns dos
estagiários prosseguem sua formação em estágio no Centro de Pesquisa e Formação
em Cinema Direto na Association Varan, em Paris.
Na primeira metade da década de 1980 o NUDOC torna-se o mais importante
produtor de filmes Super-8 na Paraíba. A partir de seus estágios são realizados documentários abordando temáticas relacionadas à religiosidade, trabalho, sexualidade e
questões urbanas, entre outras.
Tem-se então, na Paraíba, um cenário rico de possibilidades para o cinema documentário. A geração que sucede a Linduarte Noronha e Vladimir Carvalho tem a
possibilidade de uma formação feita a partir das técnicas do Cinema Direto.
Nota-se, no conjunto dos filmes realizados pelos estagiários do NUDOC, a adoção de outro procedimento caro aos preceitos do Cinema Direto, além do sincronismo do som: a ausência do narrador, classificado por Nichols (2005) como sendo
um substituto do cineasta, “o narrador com voz de Deus”.
Este recurso é utilizado em Aruanda, assim como em Os Homens do Caranguejo e
O País de São Saruê. Já Gadanho, realizado sem som sincrônico, antes do início dos
estágios desenvolvidos com técnicas do Cinema Direto na Paraíba, sinaliza uma
nova forma de narrativa, ao abolir “a voz de Deus”.
Ao defender a adoção da expressão “Cinema Direto” ao invés do ambicioso
“cinema-verdade”, Gauthier (2011) ressalta sua especificidade, o registro simultâneo de som e imagem:
A expressão Cinema Direto, em virtude, provavelmente, da modéstia das suas pretensões, durou mais, porém ela deixava de lado todos os documentos de arquivo
que são um material importante dos filmes ditos “documentários”. Além disso, ao
lado da televisão, grande consumidora de tomadas de cenas feitas ao vivo, ela
introduz uma confusão, já que “direto”, nesse sistema, não implica nada além da
transmissão simultânea com a tomada de cenas, inclusive para uma peça de teatro. (GAUTHIER, 2011, p. 15)
A relação feita por Gauthier entre o Cinema Direto e a televisão pode ser
observada em Abril (Marcus Vilar, 1984). Feito no calor da hora, mostra detalhes
da manifestação realizada no centro de João Pessoa em favor da aprovação pelo
Congresso Nacional da emenda que restabelecia eleições diretas para Presidente
da República. O evento acontece no dia que os parlamentares votam a proposta.
Antes da manifestação algumas pessoas que estão no local falam sobre a expectativa em relação aos acontecimentos de Brasília. Discursos são registrados de longe,
e o som é uma profusão de falas e ruídos da multidão. Jornalistas, políticos, ativistas
culturais são entrevistados sobre o tema.
Como em 1984 João Pessoa não tinha emissora de TV local, apenas repetidoras
das redes nacionais, Abril tornou-se, a saber, o mais completo registro audiovisual da repercussão de momento importante da história recente brasileira na capital paraibana.
123
Ao registrar cenas da multidão, o realizador não se apega aos inúmeros detalhes
que o ato público pode gerar, como expressões faciais, aplausos, vaias, optando por
valorizar as entrevistas que possam nos fazer entender o que de fato está acontecendo.
O que faz o filme ir além do registro é a atitude do realizador em dar conta da
complexidade da situação: uma vigília cívica que precisa ser explicada. Mas não se
vai buscar explicações de especialistas em ciências políticas. Iguala-se, na montagem,
a voz do aposentado humilde, a do jornalista, do político e do artista.
Em um registro que vai além da superficialidade quase inerente ao telejornalismo
praticado pelas emissoras de televisão privadas no Brasil, Abril torna-se um documento histórico na acepção que Ferro (2010) apontara em texto de 1976:
Hoje se vê uma nova etapa com a multiplicação das câmeras super-8: o cinema pode
tornar-se ainda mais ativo como agente de uma nova tomada de consciência social,
com a condição de que a sociedade não seja somente um objeto de análise a mais,
objeto que pode ser filmado brincando de bom selvagem para de um novo colonizador, o militante-cameraman. Outrora “objeto” para uma “vanguarda”, a sociedade
pode de agora em diante encarregar-se de si mesma. Esse poderia ser o sentido de
uma passagem dos filmes de militantes para os filmes militantes. (FERRO, 2010, p. 17)
Mesmo não sendo filme militante, a opção de Vilar em filmar aqueles que apoiam
em praça pública a volta das eleições diretas revela-se um gesto político, um ato de
militante de um cinema voltado a temas de amplo interesse social.
REGISTROS DO MOVIMENTO ESTUDANTIL
Em 1979 estudantes da Universidade Federal da Paraíba entram em greve
contra o aumento dos preços do restaurante universitário. O movimento, o primeiro a acontecer no Estado desde 1968, é acompanhado pelo cineasta Pedro
Nunes e resulta em Registro, produzido pelo Diretório Central dos Estudantes DCE. Já em seu título o filme deixa claro sua intenção de transformar aquele momento importante da Universidade e do país em um documentário a serviço da
memória do próprio movimento.
Na abertura, o filme explicita em uma cartela de texto seu objetivo, antes mesmo
do desfile das imagens e dos depoimentos colhidos ao longo das filmagens: “Este
trabalho é dedicado aos companheiros ‘fura-greves’ e aos que se omitiram da luta,
entendendo que o conjunto de reivindicações contra o ensino pago, por melhores
condições de ensino, por uma universidade democrática e contra o projeto de autarquias especiais imposto pelo MEC, é uma luta ampla que compromete todos os
estudantes na construção de uma nova sociedade”.
O filme não nos informa dos resultados da greve, das suas perdas ou conquistas
– em entrevista, líder estudantil fala do décimo terceiro dia do movimento, nos indicando que a paralisação continuou depois das filmagens concluídas. Registro assinala
124
um novo momento na história do Brasil, quando depois de uma década de feroz
repressão aos movimentos de trabalhadores e dos estudantes, o país vê nascer uma
nova geração de lideranças nesses segmentos.
Há uma sequência que sintetiza a força do movimento estudantil: em marcha,
estudantes vão ao prédio da Reitoria – ainda em construção – e se reúnem com o
reitor e outras autoridades universitárias. Enquanto o prédio da nova sede do poder
universitário se constrói, percebe-se também a construção de uma nova forma de
atuação política conquistada pelos estudantes, que obrigam a cúpula da universidade
a recebê-los em uma reitoria aberta, sem paredes, com o reboco à mostra. Cena emblemática da gestação de um novo processo de interação política, em que o cenário
das decisões não é mais o gabinete restrito e fechado, mas o salão aberto, ocupado
pela massa estudantil.
Registro sai do campus universitário e acompanha a manifestação dos estudantes
em frente à fundação responsável pela manutenção do restaurante. Os manifestantes
marcham pelas ruas centrais de João Pessoa. Em frente ao cinema Municipal, o cartaz anuncia a exibição de Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (Hector Babenco, 1977)
e Nos Embalos de Ipanema (Antonio Calmon, 1979). A sala, como inúmeras outras em
diversas cidades brasileiras, foi desativada, e essa breve imagem é hoje uma relíquia
para a história do circuito exibidor de cinema comercial em João Pessoa.
No mesmo ano de 1979, cineastas com suas câmeras leves de 16 mm registravam
as greves deflagradas no ABC paulista. Os metalúrgicos de São Bernardo do Campo,
liderados por Luís Inácio Lula da Silva, lutavam contra o arrocho salarial e testavam
os limites da abertura política anunciada pelo general João Figueiredo, último presidente da ditadura iniciada em 1964. Braços cruzados, máquinas paradas (Sérgio Toledo
Segall e Roberto Gervitz, 1979), Dia nublado/Greve de março (Renato Tapajós e outros,
1979) e Greve (João Batista de Andrade, 1979), analisados por Bernardet (2003), são
diferentes visões de um movimento de ampla repercussão, sobretudo por projetar a
liderança sindical e política de Lula.
Distantes na geografia e no universo social, Registro e as produções paulistas apontam para a importância de um cinema feito no calor da hora, que acompanha, sem
deixar de lado seu engajamento, movimentos sociais que podem ser analisados hoje
a partir dessas produções audiovisuais, entre outros documentos.
Além de Registro, dois outros filmes documentaram movimentos grevistas na Universidade. Em Greve na UFPB (Direção coletiva, 1982), um narrador informa que os
estagiários do Atelier de Cinema Direto do NUDOC interromperam suas atividades
para filmar a paralisação de professores e funcionários da instituição.
Chama a atenção o uso da narração em off, pouco usual nas produções dos estagiários, o que pode ser entendido como uma necessidade de supressão de uma norma
do Cinema Direto em favor da produção de filme de tom didático, a ser usado como
instrumento de mobilização da greve. Curiosamente Pedro Nunes, que não participou dos estágios de Cinema Direto do NUDOC, não usa o narrador no estilo “voz
de Deus” em Registro.
125
Greve de Fome (João de Lima e Marcus Vilar, 1984), filme mudo, de apenas três
minutos, mostra a persistência dos problemas dos estudantes com o restaurante universitário. Alguns alunos, entre eles o cantor e compositor Chico César, recorrem ao
jejum como forma de protesto e são acompanhados por um grupo de colegas. No
lugar da mobilização, a imobilidade. Não há passeatas, está em cena a solidariedade
contida dos outros estudantes e passantes.
Construção
do Espaço
Cultural
UMA CIDADE QUE MUDA
Elpídio Navarro,
1980-1.
Nas produções do NUDOC e de produtores independentes há uma série de registros que, passadas três décadas da sua produção, transformaram-se em importante
referência para o estudo de aspectos variados da vida cotidiana de João Pessoa.
Em Cidade Verde (direção não identificada, 1982), um narrador afirma ser João
Pessoa “a cidade verde” e somos conduzidos a um passeio por vários bairros da
cidade. O espectador, conhecendo ou morando em João Pessoa, vai perceber como
a expansão urbana, marcada pela verticalização, mudou consideravelmente a paisagem da capital paraibana, com uma expressiva diminuição da cobertura vegetal. A
começar pelo seu título, o filme guarda as imagens e a memória de uma cidade que
não mais existe.
126
Em Construção do Espaço Cultural (Elpídio Navarro, 1980-1) o realizador narra, em
tom epistolar, o abandono do Teatro Santa Roza, prédio do final do século XIX,
e critica a construção do monumental Espaço Cultural. Ao mostrar o contraste entre os dois equipamentos culturais, Navarro faz um registro da memória do
velho teatro, e o seu discurso verbal relaciona o novo prédio ao autoritarismo do
gestor que o constrói.
Por ironia, no segundo semestre de 2013, ambos os prédios estão fechados
para reforma, deixando João Pessoa sem seus dois principais locais destinados ao
teatro, música e exposições.
O CAMPO EM TRANSE
Como vimos, a vida no campo é o tema principal do cinema paraibano dos
anos de 1960. Se nos filmes do período os conflitos pela posse da terra não foram retratados, coube a uma produção carioca, do Centro Popular de Cultura
da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE), filmar a vida e a morte de João
Pedro Teixeira, líder sindical assassinado em Sapé, em 04 de abril de 1962.
Dirigido por Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer foi interrompido
pelo Golpe de 01 de abril de 1964. A ficção inacabada tornou-se o documentário
finalizado em 1984, um dos mais significativos filmes do cinema brasileiro.
Nas décadas que se seguiram ao assassinato de João Pedro a tensão na zona
da mata paraibana não diminuiu. Com a abertura política do início da década
de 1980, trabalhadores se organizam na luta pela posse da terra, em uma batalha
árdua contra grandes proprietários, estes apoiados pelo Estado.
Uma dessas lutas tem como cenário a fazenda Camuçim, no munícipio de
Pitimbu, no litoral sul da Paraíba. Através do Centro de Comunicação, Educação
e Documentação Populares (CEDOP) criado em dezembro de 1978, a Igreja
Católica da Paraíba passa a usar o cinema como instrumento de incentivo à luta
dos trabalhadores urbanos e rurais.
Produzido pelo CEDOP, Nós, os Agricultores de Camuçim (Diretor não creditado,
1982) torna-se instrumento dos trabalhadores estigmatizados pela imprensa, ameaçados fisicamente pela polícia e pelos capangas da Destilaria Tabu, e acusados de
agitação política pelo então governador da Paraíba, Tarcísio Burity.
Crianças, mulheres e homens relatam a difícil situação que vivem, e o filme registra o acampamento montado pelos agricultores na Praça João Pessoa, em frente ao
Palácio da Redenção - sede do governo estadual -, entre dezembro de 1981 e janeiro
de 1982. Vemos os trabalhadores em tarefas domésticas em plena praça, observados
por curiosos e por policiais militares que guardam o palácio.
Uma narradora relata a luta dos agricultores pela posse da área. Na fazenda Camuçim, os atos de violência da polícia e dos proprietários são contados em detalhes
pelas suas vítimas. A estrutura do filme é centrada em uma marcha, composta em
sua maioria por crianças, que ao som marcante de tambores, percorrem Camuçim.
127
Nós, os Agricultores de Camuçim é um marco de cinema engajado na Paraíba, e ao mesmo tempo, um documento da importância da atuação da ala progressista da Igreja
Católica no estado, que àquela altura, com a guinada à direita promovida por João
Paulo II, estava ameaçada.
No ano seguinte aos acontecimentos de Camuçim, na cidade de Alagoa Grande,
a sindicalista Margarida Maria Alves é assassinada em frente a sua casa. O crime
choca a opinião pública e tem repercussão nacional. Duas décadas depois da morte
de João Pedro Teixeira, a zona canavieira da Paraíba continua a eliminar lideranças
que lutam pela posse de terra e melhoria de vida dos trabalhadores rurais.
Margarida Sempre Viva (Cláudio Barroso, 1983) acompanha os dias tensos que
se seguiram ao assassinato da presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de
Alagoa Grande, a começar pelo enterro do seu corpo, em que vemos e quase não
ouvimos o discurso comovido do viúvo Casimiro Alves.
Em João Pessoa Casimiro encontra-se com o deputado Assis Camelo e com
Fernando Milanez, Secretário de Segurança Pública. Este elenca as providências
que estão sendo tomadas pela polícia local. Em 16 de agosto de 1983, quatro dias
depois do assassinato, uma grande manifestação acontece em Alagoa Grande,
reunindo trabalhadores rurais, sindicalistas e políticos, entre eles o deputado paulista Airton Soares (PT). Uma multidão acompanha os discursos.
Ainda no mês de agosto, debaixo de chuva, centenas de trabalhadores rurais
de Alagoa Grande reúnem-se para dar início à campanha de reajuste salarial. Em
imagens de arquivo, Margarida afirma: “só paro de falar quando estiver morta”.
Trinta anos depois de seu assassinato, o crime permanece impune.
Margarida continua em cena no longa-metragem Uma Questão de Terra (Manfredo Caldas, 1988). Ela é uma das protagonistas do filme, produção filmada em
16 mm pelo mesmo realizador de Cinema Paraibano – Vinte Anos (1983), que faz
um balanço do cinema documentário realizado no estado nas décadas de 1960
e 1970.
Coproduzido pela Fundação do Cinema Brasileiro com o apoio do CENTRU
– Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural – produtora de Margarida Sempre Viva – da Cinemateca do MAM e do NUDOC, Uma Questão de Terra
mapeia os diversos conflitos agrários em curso na Paraíba na segunda metade da
década de 1980.
Acompanhamos o acampamento de agricultores na sede do INCRA em João
Pessoa, e viajamos pelas zonas rurais dos municípios de Belém, Caaporã, Bananeiras,
Alagoa Grande e Campina Grande. Na exuberante paisagem verde, vemos desfilar
rostos tristes e sofridos. Homens e mulheres relatam as agruras de uma vida dura,
marcada pela luta pela terra e pela fome e opressão.
Rostos e relatos que lembram em muito os depoimentos dos trabalhadores rurais
de Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1964-66), em que o analfabetismo é o ponto de
partida para mostrar a vida miserável da maioria dos camponeses brasileiros. Com o
uso pioneiro do som direto, conforme aponta Ramos (2008), o filme de Hirszman dá
128
voz ao homem do campo, ao analfabeto, aqueles que constituem a maioria absoluta
da população brasileira.
Há imagens da ainda nova Brasília, centro do poder que com o Golpe Militar e o
enorme retrocesso das conquistas sociais conseguidas no país, parece bem distante da
realidade do campo. Passadas mais de duas décadas, Uma Questão de Terra nos revela
um retrato do campo não muito distante daquele de Maioria Absoluta.
Brasília também está presente em Uma Questão de Terra. O filme nos leva ao
Congresso Nacional, detalhando os momentos cruciais da votação sobre a questão
agrária na Assembleia Nacional Constituinte. Depois de percorrermos uma Para-
íba conflagrada por disputas de terra, somos apresentados ao poder político dos
representantes dos grandes proprietários rurais, reunidos pela União Democrática
Ruralista, a UDR, liderada por Ronaldo Caiado. Os ruralistas vencem no voto e a
reforma agrária não virá. Aos depoimentos dos trabalhadores em luta por um pedaço de terra na Paraíba, somam-se os discursos de lideranças políticas e sindicais
decepcionadas com a derrota.
O detalhe da lustrosa bota de um dos ruralistas presentes na votação, os rostos
marcados por sorrisos triunfantes, em contraponto com tudo o que assistimos em
Uma Questão de Terra sintetiza a aguda crise social e política que o Brasil vive no final
da década de 1980.
Margarida
Sempre Viva
Cláudio Barroso,
1983.
129
Pela sua abrangência e engajamento, Uma Questão de Terra reafirma, agora em um
tom explicitamente mais político, o compromisso social do cinema paraibano.
A BALEIA E A CANÇÃO
Entre os filmes recuperados pela pesquisa Cinema Paraibano: Memória e Preservação um dos mais instigantes do ponto de vista histórico e estético é Caça a Baleia
(Moacyr Madruga, 1978-79). Professor de Geografia da UFPB, Madruga realizou uma bem cuidadosa produção em Super-8, documentando as atividades do
barco pesqueiro em ação no litoral paraibano.
O filme não tem som direto, e logo em seu início um narrador nos informa
que o navio Katsumaru, com 26 pessoas a bordo, entre japoneses e brasileiros, vai
à busca de baleias no litoral norte paraibano.
As imagens em Super-8 captam o exato instante em que uma baleia é atingida
pelo arpão. A trilha musical acentua a dramaticidade do momento. O mar fica
tingido de vermelho, causando grande impacto no espectador. Com as limitações
técnicas da câmera Super-8, as imagens da baleia em agonia, - captadas pelo realizador e pelo cineasta paulista Augusto Sevá, que à época realizava na Paraíba o
curta-metragem Oro - vistas de longe, ganham contornos dramáticos acentuados
pelo rock progressivo da trilha.
Já em terra firme, enquanto a baleia é retalhada, o narrador detalha o histórico da companhia japonesa que controla a pesca da baleia na Paraíba. Nessa
sequência, onde vemos os trabalhadores rapidamente transformar uma enorme
baleia em pedaços pequenos que desaparecem no pátio da empresa, o narrador
é substituído pela canção de Paulo Ró, redimensionando, em sua melancólica
poesia, o triste espetáculo que acabamos de assistir.
No reino de seu Netuno
Tá havendo uma invasão
Por causa de uns mamíferos
Que por lá ainda estão
A invasão está tirando
Por quem só podia ser?
Pelos tais capitalistas
Não querem deixar viver
Nem homens, nem animais
Até parecem canibais
Na calma vida dos pobres
O narrador alerta sobre a possibilidade da extinção das espécies capturadas no
litoral paraibano, e fala da dependência dos habitantes do município de Lucena da
atividade. A pesca da baleia foi proibida no Brasil em 1985, e hoje Lucena vive da
130
pesca artesanal, da fruticultura e do turismo.
Ao optar por um documentário conduzido por uma trilha musical e sonora distante do realismo, Caça a Baleia foi além do registro histórico e geográfico, cativando o
espectador com um tratamento dramatizado de um tema ecológico e social de grande repercussão para a Paraíba. Visto hoje, mostra-se bem mais impactante e crítico
que o padrão dos documentários sobre vida natural exibidos nos canais pagos como
Discovery ou National Geographic.
Marcada pela diversidade temática e pelos formatos – indo do 35 mm ao Super-8
– percebe-se o traço comum do engajamento social no cinema paraibano das décadas de 1960, 70 e 80. Dos trabalhadores explorados por multinacional japonesa no
litoral, aos excluídos da capital e do campo, passando por lutas estudantis, há um movimento constante dos realizadores no sentido de captar momentos importantes da
luta por uma sociedade diferente daquela limitada pela pobreza e pelo autoritarismo.
Caça a Baleia
Moacyr Madruga,
1979.
131
REFERÊNCIAS
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do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz
e Terra, 2010.
GAUTHIER, Guy. O documentário: Um outro cinema. Campinas, SP: Papirus, 2011.
LEAL, Wills. Cinema na Paraíba, Cinema da Paraíba. João Pessoa: Edição do Autor, 2007.
LIMA, Maria José Cordeiro de. Documentação
Popular: a Trajetória dos Que Redefiniram o Seu
Próprio Caminho – uma visão crítica a partir da
experiência do CEDOP. Dissertação de mestrado
– Pós-Graduação em Biblioteconomia, Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa: UFPB,
1996.
MACHADO JR., Rubens. O inchaço do presente:
Experimentalismo Super-8 nos anos 1970. Rio
de Janeiro: CTAv. Filme Cultura, nº 54, mai. 2011.
p. 28-32.
MARINHO, José. Dos Homens e das Pedras: o ciclo do cinema documentário paraibano (19591979). Niterói, RJ: EdUFF, 1998.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário.
Campinas, SP: Papirus, 2005.
RAMOS, Fernão Pessoa. Mas afinal... o que é
mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2008.
SILVA, Maria das Graças Amaro da. Imagens em
Movimento: CEDOP e o Vídeo Popular. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação
em Educação, Universidade Federal da Paraíba.
João Pessoa: UFPB, 2002.
132
133
Jomard Muniz
de Britto
um livre pensador a serviço do
cinema e da cultura
POR pedro nunes
Foto por Fred Jordão
134
“Sobrevivemos pelo
desencantamento
do mundo e
reencantamento
das linguagens.”
JMB
Jomard Muniz de Britto pode ser
descrito como um livre pensador que
incorpora a dimensão de um poeta irreverente. Habitualmente esse filósofopoeta caminha na contramão dos acontecimentos. Esse guru acadêmico que
vislumbra possibilidades estranhas e radicais no campo da arte, consegue reinventar o seu próprio cotidiano através
da inscrição de marcas libertárias e de
resistência cultural muito bem expressas
em seus manifestos, filmes, declamações, performances e discursos que começam pelo avesso, livros, experimentos
e manifestos. Esse seu perfil singular é
impregnado por essas diferenças que se
proliferam na contracorrente. A sua singularidade criativa e intelectual resulta
de um eu plural com múltiplas faces.
135
1
Texto apresentado
no Encontro
de Estudos
Multidisciplinares
em Cultura,
realizado no
período de 23 a 25
de maio de 2007,
na Faculdade
de Comunicação
da Universidade
Federal da Bahia,
Salvador/BahiaBrasil.
136
Paulo Cunha, em A pesquisa cultural nas margens: universidade, vanguarda, periferia1, faz a
seguinte observação sobre a produção conceitual de Jomard Muniz de Britto:
Parece claro que o traço unificador mais genérico da produção de Jomard Muniz de
Britto é a ruptura com as esferas tradicionais da cultura e a instituição do sentido do
novo como produtor do novo sentido. Há um permanente elogio da experimentação,
das vanguardas - embora esse elogio seja problematizado pelas próprias contradições que ele expõe. Trata-se, muitas vezes, de uma espécie de antissaudosismo
militante em que o novo se localiza como desafio.
Jomard Muniz de Britto é um militante despojado que maneja com ideias inovadoras no campo da produção de conhecimentos e de sua produção cultural. Age
e pensa em ritmo de ruptura, confrontos e diálogos. Pode-se dizer que a sua condição de ser revela uma pessoa avessa às convenções, aos rituais e aos protocolos.
Integra esses protocolos, mas prefere as dobras, as margens, os paradoxos, a periferia e os percursos errantes. A sua produção intelectual reflete essas contradições
e conflitos de um Brasil utópico em busca de novas identidades: “O Brasil não é
meu país, é o meu ABISMO”, afirma. Essas posturas pensamentais e performances Jomardianas geram atritos, colisões e promovem a curiosidade. Desaguam e se
espraiam em toda sua produção conceitual e fazem do humano pensador Jomard
Muniz de Britto uma pessoa amada e odiada por proclamar o respeito às diferenças, por adotar posturas contra as farsas políticas, os valores morais, a hipocrisia
social e as imposturas acadêmicas.
Jomard Muniz de Britto é por natureza própria um protagonista da cena cultural,
polêmico, que se estrutura sob o paradigma da ousadia. Encampa outros adjetivos
qualificativos. Essa irreverência enquanto postura existencial de vida contra o que
sempre denominou de BURROcracia não impediu que ocupasse cargos públicos
de destaque, a exemplo de diretor da Fundação de Cultura da Cidade do Recife ou,
ainda, a sua atuação como diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco.
Seus textos, produções culturais e legados poéticos ressignificam a vida ao valorizar o contraditório, as posturas libertárias e os novos arranjos estéticos que violentam
as construções narrativas mais tradicionais.
Em um AUTORRETRATO verbal, Jomard Muniz de Britto relata o seguinte: “Eu sou sobrevivente da Bossa Nova, pra mim, a modernidade surgiu na Bossa Nova
e corresponde ao Cinema Novo...”.
Em 1964, ano de instauração do Golpe Militar Brasileiro, Jomard Muniz de
Britto lança Contradições do Homem Brasileiro, sendo logo em seguida o livro proibido,
tempos depois, o autor preso. Na condição de professor da Universidade Federal da
Paraíba respondeu a um inquérito policial em decorrência de uma palestra que teve
como tema o AMOR.
Autor de uma vasta obra literária destacando-se: Do Modernismo à Bossa Nova
(1966), Inventário de um Feudalismo Cultural (1979), Terceira Aquarela do Brasil (1982), Bordel
Brasilírico Bordel (1992), Arrecife de Desejo (1994) e Atentados poéticos (2002), entre outros.
Glauber Rocha, ao prefaciar Do Modernismo à Bossa Nova (1966), reeditado pela
Civilização Brasileira em 2009, nos traça um perfil afetuoso que revela o amplo espectro criativo de Jomard Muniz de Britto. Glauber Rocha assinala o seguinte:
O que me fez amigo de JMB foi nossa comum paixão pelo cinema, isso já faz dez
anos (em 1956, portanto), na decente Recife. Depois, nosso desencontro de temperamentos criou compensações: JMB veio escrever crítica de poesia numa revista literária que eu dirigia em Salvador, depois veio mesmo para a Bahia, onde agiu com
brilhantismo e polêmica nas rodas jovens das artes e letras locais. E assim foi, se
revelando palmo a palmo: o crítico de cinema era professor de filosofia, o teórico
de poesia era entendido de teatro, o esteta rigoroso era jornalista, o jornalista era
professor e o professor sambista, outra vez no teatro! Fascinante timidez evoluindo
por meandros táticos, aqui e ali exercendo sua função precisa, consequente. Outra
coisa que me fascina em JMB é a sua desaristocratização [...]. Sua erudição é diluída
no seu grande interesse pela vida, sobretudo pela vida que o cerca, a que vive nos
inesperados caminhos de hoje.
No campo da produção audiovisual, a obra de Jomard Muniz de Britto é igualmente perturbadora e mordaz. Em pleno auge de repressão do regime militar,
começa a produzir a partir do ano de 1974, filmes na bitola Super-8. A sua produção audiovisual em Pernambuco é constituída por 28 filmes irreverentes ou por
assim dizer, desestabilizadores. Destacamos alguns desses títulos: Ensaio de androginia (1974), Esses moços, Pobres moços (1975), Alto nível baixo (1977), O palhaço degolado
(1977), Inventário de um feudalismo cultural nordestino (1978), Jogos frugais frutais (1979)
e Jogos Labiais Libidinais (1979).
Em 1980, a ação que tramitava na Justiça garantiu a Jomard Muniz de Britto o direito de reintegração à UFPB. A partir daí passa a compor o quadro de
docentes do então Departamento de Artes e Comunicação, ministrando aulas no Curso de Comunicação Social. O Brasil desde 1978, em plena vigência do regime militar, se articulava a partir de grupos organizados em favor da
Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.
A presente entrevista com Jomard Muniz de Britto, realizada no dia 06 de junho
de 1985, retrata esse período de vivência intensa do autor em termos da efervescência cultural que forneceu suporte para a construção do terceiro ciclo de cinema na
Paraíba. Jomard Muniz de Britto foi uma das figuras de destaque desse movimento
por conta de sua sólida formação intelectual, produção de filmes Super-8, participações em seminários, debates e posicionamentos na imprensa. Ele integrou a segunda
geração de cinema paraibano, sobretudo com sua produção literária, fazendo uma
ponte entre João Pessoa e Recife e atuou de forma ativa junto aos protagonistas do
surto de produção audiovisual ocorrido na Paraíba de 1979 a 1983. Como contrar137
resposta ao Cinema Direto, Jomard Muniz de Britto ajudou a criar o Núcleo de
Cinema Indireto, estimulou a escritura de manifestos e produziu três filmes na bitola
Super-8 que são considerados basilares no contexto de uma produção audiovisual
na Paraíba, visto que apresentam marcas de experimentação e transgressão temática
envolvendo a sexualidade: Esperando João (1981), Cidade dos Homens (1982) e Paraíba,
Masculina, Feminina Neutra (1983).
No ano de 2007, a Universidade Federal da Paraíba outorgou o título de Professor Emérito a Jomard Muniz de Britto como forma de reconhecer a sua relevante
produção acadêmica prestada à ciência, à cultura e à instituição.
Na presente entrevista Jomard Muniz de Britto levanta questões conceituais sobre
o cinema, destaca as iniciativas regionais de produção audiovisual, põe em relevo o
papel da Universidade Federal da Paraíba, evidencia o contexto de época que circunscreve o Terceiro Ciclo de Produção Audiovisual na Paraíba, levanta os conflitos
em torno do Cinema Direto e do Cinema Indireto, fala dos filmes onde a sexualidade é posta em debate, critica as ações da censura no contexto da ditadura militar
e sinaliza apontando os principais desafios quanto à ausência de uma infraestrutura
necessária para a produção audiovisual na Paraíba. A entrevista inédita integra o
corpo da dissertação de mestrado, intitulada Violentação do ritual cinematográfico: Aspectos
do cinema independente na Paraíba - 1979 -1983, defendida no ano de 1988 na Universidade Metodista de São Paulo.
O que você considera como Cinema Independente e Cinema Alternativo? Você
faz alguma distinção entre esses dois
conceitos?
Associo muito esse problema de Cinema Independente ou Cinema Alternativo ao problema da cultura de um modo
geral. Fala-se muito de Poesia Marginal,
a Geração de Mimeógrafo, que foi em
70, chamada geração 70, quer dizer, um
bocado de poetas, escritores num sentido
mais amplo, mas preponderantemente
poetas, que com dificuldades de acesso
às grandes editoras, começaram a furar
o circuito de divulgação dos seus trabalhos, através de uma produção independente. Eles próprios, através de recursos
artesanais - mimeógrafo - iam divulgando seus trabalhos. Havia uma produção.
Tem a tese interessante chamada Retrato
138
de Época, que afirma de início: era uma
produção que estava ligada a grupos,
como Nuvem Cigana, Frenesi, quer dizer, poetas, cada um com sua característica própria, mas que se agrupavam. A
produção independente surgiu por uma
necessidade de expressão do pessoal, e de
furar o bloqueio das editoras. Todo o circuito, tanto a produção como a difusão
em si, iam aos bares vender seus livros,
para as portas de teatro, aos lugares onde
tinha um público, que eles achavam que
tinha identificação com essa proposta de
trabalho. O cinema que foi feito na década de 70, no nosso caso, sobretudo nos
meados de 70, que se pode chamar de
Produção Independente ou Alternativa
(esses rótulos são muito questionáveis)
que se coloca dentro dessa produção
mais ampla da cultura brasileira alternativa, marginal ou marginalizada dos
grandes circuitos, das grandes editoras,
das grandes produtoras, uma forma de
furar esse bloqueio. Poesia Marginal é
uma poesia que se fez à margem, ela foi
editada à margem das grandes editoras,
marginal neste sentido, ou alternativa,
com circuito de distribuição ou de consumo, todo o elo da comunicação desde a
produção até o consumo, se é que se deve
ter um público diferente, uma alternativa
diferente para aquela “produção industrial”, eu diria que uma coisa mais de um
certo resíduo de coisa artesanal. Na época da censura muito forte, essa “geração
mimeógrafo” na literatura... significava,
também, um confronto, uma “guerrilha
cultural” diante das tremendas frações
da censura.
Quer dizer que você situa o Cinema Independente dentro desse contexto mais
amplo, com outros movimentos, da poesia, teatro. Então, qual a relação de seu
trabalho com esses conceitos que você
teorizou de uma forma mais ampla, como
é que você associa seu trabalho com...
As peculiaridades de meu trabalho ou
particularidades eu já procuro um pouco
justificar, no caso de carecer justificativa,
pelo fato de eu ser professor de Comunicação, eu acho que há um certo estímulo
para os próprios alunos com os quais eu
trabalho, de que o professor não apenas
teorize ou discuta problemas de comunicação, mas que ele também se exercite
através dos meios de comunicação. Eu
gostaria muito de fazer programas de televisão, mas não tenho acesso à televisão;
eu participei um pouco de entrevistas de
televisão, até como entrevistador convidado da Globo durante algum tempo em
que entrevistei muita gente. Para mim
surge como necessidade desse comprometimento didático, de que o professor
deve também mexer com os meios de comunicação, e o professor, à medida que
faz coisas fracas, também, coisas criticáveis, e isso tudo mostra que ele está se
desmistificando também e que os alunos
achem que se o professor faz um filme ele
também pode fazer. Acho que é dentro
desse espírito muito pedagógico. Agora,
a coisa ao mesmo tempo extrapola a didática, a pedagogia. Eu sempre fui muito
voltado para o problema dos audiovisuais, eu me lembro, teve uma época em
que eu dava todos os meus cursos baseados em episcópio e pegava músicas, colagens... e eu me lembro de uma aluna que
participava de um curso meu na Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco e disse: “Isso parece Godard, essas
montagens que você faz”. Eu cheguei ao
cinema através de um trabalho audiovisual, música e colagens, uma montagem
que eu fazia com episcópio, eu treinava
muito em casa para que houvesse a coincidência do ritmo e da música com aquelas imagens que eu mesmo projetava. Eu
achei esse encaminhamento de chegar
ao cinema da década de 70, já que estava desligado desde fins de 50... época
dos debates dos filmes, cineclubismo, etc.
É uma motivação didática ligada a essa
paixão que eu tenho pelo audiovisual.
De 1978 a 1983 nós temos 55 filmes realizados na Paraíba, em sua maioria na
bitola Super-8 e alguns no formato 16
mm. A que você atribui esse surto de realizações?
São tantos fatores. Primeiro a necessi139
dade de retomar uma própria produção
que acabaria sendo pioneira na época do
Cinema Novo. Isso sempre ficou, apesar
de muitos cineastas paraibanos terem
ido radicar-se no centro-sul do país, mas
ficou dentro da ambiência cultural o desejo de retomar essa linha criativa, dessa
produção criativa do cinema. Esse seria
um dos elementos, outro, as Jornadas de
Cinema Direto, o convênio com a França gerou uma certa polêmica altamente
produtiva. Ao pessoal que era ligado ao
Cinema Direto eu colocava numa linha
paródica o Cinema Indireto, que é um
cinema oblíquo. Questionar um pouco
o perigo de um certo dogmatismo do
Cinema Direto. Mas, a Paraíba teve um
mérito, um mérito, inclusive, que acho
II Mostra Cinema em Salvador tinham um efei- importante, de ter recriado o Cinema
de Cinema to de demonstração... assim você via as Direto, de ter deturpado o purismo do
Independente produções que estavam se realizando nos Cinema Direto, a proposta do Cinema
em 1982
140
outros estados. Isso era uma fonte de estímulo para quem queria. Aqui em Recife,
a influência do crítico Fernando Spencer,
também cineasta, divulgava muito, como
também Celso Marconi divulgava a Jornada de Cinema de Salvador. As pessoas
queriam participar, iam, e para participar tinham que fazer filmes. Eu coloco
muito isso e também na Paraíba o problema da universidade que houve com o
Direto. Recriação incluindo tudo, aspectos de deturpação, de formação da proposta inicial do Cinema Direto, de uma
certa pureza do Cinema Direto. Então,
a Paraíba é um negócio... as impurezas
paraibanas, as impurezas do “masculino neutro”, como tem as impurezas do
branco do poeta Carlos Drummond de
Andrade, as impurezas do audiovisual
que são as manchas paraibanas, as tintas
paraibanas dentro de uma certa “ortodoxia diretivista” por parte dos franceses. E
depois, a facilidade de se fazer Super-8,
em termos econômicos, é claro que muita gente tinha vontade de fazer 16 mm,
35 mm, terceira dimensão, mas não se
tinha grana, não se tinha condições econômicas. Na década de 70 era uma coisa
viável, eu pude fazer vários filmes com
recursos próprios, com o meu salário de
professor, sem ajuda de nenhuma instituição; conseguia tirar do meu salário
para produzir esses filmes, quer dizer,
entrava na produção atores que nunca
ganharam dinheiro comigo, mas alguns
técnicos de montagens e cinegrafistas tinham um cachê simbólico que eles pediam, a parte de montagem... não era só
o filme virgem não, mas alguns técnicos
recebiam, e isso, com meu salário de professor, e hoje em dia a coisa seria muito
mais difícil. Estou colocando a Paraíba,
mas o intercâmbio entre Recife e João
Pessoa é muito grande, sobretudo, por
eu transitar semanalmente entre as duas
cidades... eu tenho que colocar a coisa
do ponto de vista da Paraíba e de Pernambuco também, inclusive retomando
aquele casamento tão ideal e tão perfeito
que foi o do fotógrafo Rucker Vieira com
o Linduarte Noronha, nas origens do Cinema Novo paraibano.
Observamos nos filmes paraibanos pioneiros e na segunda geração de cinema
uma tradição de cinema com uma perspectiva documental. Neste novo ciclo de
cinema produzido na Paraíba você consegue ver um corte nítido entre o documentário e a ficção, ou não?
Mais do que um corte, é uma ruptura
mesmo, e isso para os defensores de um
cinema, de uma linha da pureza documental. Essas pessoas, evidentemente,
se sentiam muito incomodadas, eu diria
talvez, agredidas. Havia uma tradição
sólida, muito forte, uma tradição cristalizada de um cinema feito por cineasta
antropólogo ou etnólogo, da linha muito mais Aruanda, da matriz Aruanda do
Linduarte... Pois quando surgiu essa
coisa ficcional, a abertura para uma
fantasia criadora, mistura de documento com ficção, gerando ficções
mais audaciosas. Isso naturalmente
bulia muito com as tradições do documentário, não só paraibano, mas
nordestino, brasileiro.
As produções independentes em Super-8 tendem para experimentação
com inovações da narrativa. É isso
que observamos no conjunto de produções emergentes em vários estados
brasileiros. No entanto, percebo no
conjunto das realizações paraibanas
a utilização de códigos convencionais
que tomam como modelo o cinema de
concepção dominante. Identifico uma
ausência de criatividade, falta ousadia para a grande maioria dos jovens da
terceira geração. Eu consigo enxergar
essa ousadia nos filmes de ficção ou propostas híbridas docuficcionais.
A linhagem documental, documentarista, tem as amarras históricas muito
nítidas. O documentário faz uma opção,
ou certo comprometimento, uma certa
amarração histórico-social, ou históricosociológica, ao passo que a ficção joga
com as asas da liberdade. Embora, toda
a ficção reflita um momento histórico. O
141
projeto ficcional é justamente o projeto
de jogar com o imaginário. Logo, a palavra que você usou antes, um comportamento mais audacioso, um desafio maior
para a parte inventiva, estaria na ficção,
embora sem tirar o mérito da criatividade que existe nos documentários. Mas,
eu acho que há um apelo mais veemente
de identidade criativa na ficção. O problema mais sério é a partir de quando,
por exemplo, Jean-Claude escreveu muito bem, por uma crítica ficcional, que
esses territórios de documentário e da
ficção já começam a estar muito minados, uma vivência, uma reflexão, não só
a vivência, mas uma reflexão metalinguística, coloca muito, sobretudo a contribuição de semiologia e da semiótica.
As análises, assim, freudianas, lacanianas, já mostravam que esses territórios
são territórios minados, e que não existem fronteiras rígidas, separando a ficção
do documentário. E esse documentário,
de qualquer forma, documenta o real, e
também o que existe de ficcional na própria intenção ou na própria linhagem do
documentarista. Eu acho que é a colocação mais forte a ser feita, justamente
isso é uma coisa da década de 70 pra cá,
é mostrar que não existe esse purismo
documentarista, e que o documentário...
ele aparentemente é um documentário, é
um reflexo... reflexão sobre a realidade,
mas tem muita coisa do delírio do autor,
do apriori ideológico do autor... ele vai ser
a realidade através de uma angulação sociológica (psicologia social) antropológica e isso condiciona a visão dele da própria realidade. As fronteiras se tornaram
muito fluidas, o campo de ambiguidade
tende a crescer cada vez mais nessas relações de documentário com a ficção.
142
Embora eu conheça muito bem o
seu trabalho, eu queria que você
falasse sobre os seus filmes e
temáticas perturbadoras.
Considerando num todo, num conjunto, ou num bloco, diria que é a problemática da crítica da cultura. É uma coisa
meio pernóstica, mas é uma coisa que
a gente tenta exercitar na universidade,
que é a coisa da crítica cultural, muito
ligada à cultura brasileira, especialmente. Eu procurei mobilizar o audiovisual,
especialmente o Super-8, dentro dessa
perspectiva de crítica cultural, que em
alguns filmes a coisa é bem evidenciada,
ela tem um destaque muito... talvez mais
do que óbvio, como Palhaço Degolado e
Inventário do Feudalismo Cultural, esses dois
filmes eu acho que definem bem. Outras
Cenas da Vida Brasileira, também. A minha
produção paraibana é uma produção
muito limitada, são três filmes de mais ou
menos 30 minutos, Esperando João, A Cidade dos Homens e Paraíba Masculina... O primeiro é uma tentativa de me antecipar ao
filme da Tizuka Yamasaki sobre Anayde
Beiriz, mais uma vez mostra a facilidade
do Super-8. Na verdade eu assisti a uma
palestra de José Joffily no Departamento
de Artes e Comunicação; durante a palestra uma professora e ex-aluna nossa,
Maria das Graças, fez uma pergunta ao
Joffily sobre o problema das ligações daquele assassinato de João Pessoa àquela
trama entre João Dantas, João Pessoa e
Anayde, se havia um comprometimento
ideológico, ou era mais um caso sentimental, um caso de amor, de uma paixão desvairada. Aquela pergunta, e até
a própria notícia de que a Tizuka estava
interessada em fazer um filme sobre a
Anayde Beiriz, me levou a ler o livro de
Joffily, e de fazer um autodesafio a mim
mesmo. Vamos fazer um filme antes do
filme da Tizuka. É... essa coisa que eu
diria assim: o espírito parodístico, a coisa
da sátira, da paródia, que a gente gosta
de usar muito como instrumental da crítica da cultura. E o que a gente pensou
foi o seguinte: dar uma versão pirandeliana da Anayde. Seriam seis pessoas ou
sete incluindo a narradora, seriam sete
imaginários da Anayde Beiriz, como eu
via, e como os autores tinham uma importância muito grande, cada um concebeu a sua Anayde, como o ator Francisco
Marto, que pesquisou muito. O Esperando
João é essa colocação. São três atores e
três atrizes, cada um encarnando, corporificando a Anayde Beiriz. É muito
como se fosse a ótica da cidade de João
Pessoa, através da mulher, da condição
feminina. Por isso eu fiquei interessado
em fazer dentro deste espírito parodístico
inspirado em Fellini de A Cidade das Mulheres, fazer A Cidade dos Homens, que foi
o segundo filme, mostrando a presença
predominantemente masculina na vida
da cidade, desde o amanhecer, os pescadores indo trabalhar, os operários que
estavam construindo, o tão controvertido Espaço Cultural, a manhã na vida
da cidade, os pontos que têm um aglomerado masculino maior, bares, Ponto
de Cem Réis. E o terceiro é a pretensão
de fazer uma síntese do primeiro com o
segundo, uma síntese que avançasse um
pouco mais. E a partir da música Paraíba
Masculina... misturando essa música com
uma leitura que faço barthesiana de um
livro chamado... Masculino Feminino Neutro. Eu fiz Paraíba Masculina... E que eu
acho que depois o que eu escrevi... (você
pega aquela página que saiu na edição
de IV centenário da Paraíba, em A União)
procurei teorizar mais a minha interpretação da cultura paraibana, dos modos
vivenciais paraibanos.
Eu queria que você fizesse uma leitura
geral desse bloco de filmes. Que elementos você considerou importante nesse
conjunto de realizações?
O grande corte, ou a grande ruptura
em relação à tradição anterior do filme
paraibano mais contaminado pelo
ideal de uma certa pureza documental,
foi justamente essa coisa da fantasia e
sobretudo a fantasia erótica, esses filmes
no conjunto dinamizavam esse dado da
fantasia erótica, o fantasma da fantasia
e do imaginário erótico, muito recalcado
na província, assim, as pessoas numa
leitura mais superficial, mais rápida
diriam: é o toque do homossexualismo,
inclusive gostei de ter criado a expressão
“Cineguei”, mas no sentido do Nego
da Paraíba, do verbo neguei, passado
do... Cineguei, quer dizer, várias leituras
dessa expressão. Mas não fica só nesse
toque homossexual, homoerótico, é
o problema do erotismo num sentido
mais amplo, dentro daquela visão
mesmo, muito questionada pelos pósfreudianos, que colocam essa dimensão
da sexualidade como sendo perversa e
polimórfica. Gostaria de citar, já que
falei em Freud, uma entrevista recente
de Wally Salomão que está dentro deste
pensamento, dentro da tropicália, até
essa produção independente, o Wally
Salomão disse: “eu quero ser, eu me
assumo”. E cita a expressão de Freud:
“O perverso e Polimórfico”. A perversão
143
é o dado polimórfico da sexualidade.
Essa é, pra mim, a contribuição mais
abrangente da fantasia erótica. Havia
também o sociólogo muito contestador,
ele quer ser, sobretudo, antissociólogo,
contra os modelos uspianos, ele tem uma
formação uspiana, mas tenta passar um
pouco de cuspe nessa formação dele, que
é o Gilberto Vasconcelos. Ele viu o filme
misturando no caldeirão dos mitos de
Braúlio Tavares, pra ver isso, essa coisa, esse
dado novo, que está muito ligado a toda
essa produção cultural independente, esse
aflorar, deflorar, transpirar a sexualidade
no sentido mais aberto, mais ambíguo, do
que eu chamaria da perversão, no sentido
positivo e da transgressão e da polimorfia.
Pedro Nunes do nosso caro amigo Manfredo Caldas, Por que a preocupação por parte dos refala ao público
no lançamento de
Closes, 1982.
144
Cinema Paraibano - Vinte Anos, que é uma
antropologia muito bem realizada, que
tem um dado muito importante, inovador,
joga homenagem a Dziga Vertov... o
Gilberto Vasconcelos assistindo ao filme
e depois a um debate que eu fiz na sala
de aula, fez o seguinte comentário: “mas
o cinema paraibano não tem um beijo!”.
Quer dizer que a sexualidade anda muito
reprimida, opinião do Vasconcelos, um
sociólogo antissociologal, um ensaísta da
cultura. Eu jogo isso, os dados do Freud,
do Wally Salomão, do Vasconcelos,
alizadores em abordar a questão da sexualidade? Existe um dado importante,
pois são esses filmes, que já conseguem
atingir um grande público, seu filme Esperando João... e um exemplo disso visto
que foi apresentado em quatro sessões.
É uma coisa interessante, muito importante, porque até então, havia uma letargia, e mesmo os outros filmes num
estilo mais documental, no sentido de
registrar a realidade, conseguiam certo
público, mas isso em nível de trabalhos
mais ligados à comunidade, aos mo-
vimentos de bairro... Mas os filmes que
abordam a sexualidade extrapolam isso
aí, criou-se em nível de público também.
Esses filmes que estão mais ligados às
comunidades são um cinema que pretende ser militante, mas é um cinema
de assistencialismo social, é o problema
do cinema como serviço social. Agora,
o que acho dentro dessa temática nova
dos curtas paraibanos, não tenha a menor dúvida, que não é apenas por motivação psicológica-sociais, mas em termos
de um marco objetivo, é o filme Closes,
que por coincidência foi realizado pela
pessoa que está me entrevistando agora. O grande rebuliço na província de
João Pessoa foi realizado pelo filme Closes. Era a temática nova, a problemática
nova, em termo de sexualidade, pela beleza formal do filme. O filme tinha um
charme, um encantamento visual muito
grande. Isso foi um grande motivo para
acender a chama dessa sexualidade recalcada nos filmes. Coloco isso objetivamente, foi Closes. Todos os meus filmes
são devedores do filme Closes. Acho que
os filmes de Henrique Magalhães, do
Lauro Nascimento, estão dentro dessa
linhagem, a partir do que Pedro Nunes
fez. Não era somente o filme exibido,
era todo um movimento antes de divulgação, de mobilização da comunidade, o interesse, os debates em rádio,
na universidade, no DAC, esse circuito
de divulgação, essa animação cultural,
que o filme Closes promoveu, propiciou,
e que nós pegamos, somos os afluentes
dentro desse movimento da animação
cultural closística.
Quanto à veiculação de filmes, qual
o papel da animação cultural, enquanto fator decisivo para o debate
dessas realizações?
O fato de estarmos ligados à universidade, as pessoas todas que participaram
desse movimento de curta-metragem, são
pessoas ligadas, direta ou indiretamente,
na condição de aluno-professor, de
professor-aluno, ao Departamento de
Artes e Comunicação da UFPB. Nós
vivemos o DAC na época das produções, um clima de animação cultural
muito grande. Essa animação cultural pré-existia aos filmes. O próprio
DAC era sinônimo de alguma coisa
bendita (por que não maldita?) dentro
da universidade, um corpo estranho
dentro da universidade. Toda essa
dinâmica, essa mobilização, filhos
bastardos do DAC. Então vejo essa
animação cultural como um projeto
muito intencional e não apenas como
uma missão pedagógica, mas como
um trabalho maior uma dinâmica
dentro da comunidade. O importante
é fazer a justiça histórica. O trabalho
nosso é de resgatar, não o passado glorioso ou esses momentos culturais, mas
resgatar a nossa contemporaneidade, a
memória do presente, a memória viva
do presente. O teu trabalho é importante enquanto isso. Não esperava fazer
uma revisão histórica desses filmes daqui
a dez ou vinte anos não. É na linha da
tese, da dissertação de Carlos Messeder,
Retratos de Época, que reflete o presente, é a contemporaneidade em Closes, o
Closes da contemporaneidade.
145
146
Nós tivemos alguns cineclubes, não de
forma tão organizada como nos anos
1960, mas tivemos alguns cineclubes
como: Cartaz de Cinema, Filipéia, SESC,
DCG. Esses cineclubes e as Mostras de Cinema tiveram um papel importante nesse terceiro movimento de cinema.
abre para propostas novas. É a universidade como um polo mais catalisador de
tudo isso, porque essas pessoas estão ligadas diretas ou indiretamente a uma convivência na universidade. A crítica cultural passa pela própria universidade, ela é,
sobretudo, uma autocrítica cultural.
Não tenho a menor dúvida. Mas depois de ficar tanto tempo sem uma prática de debate, as pessoas, os jovens, a
geração famosa do AI-5... esse pessoal
ainda está carecendo muito de prática
de debate, do que se fazia na década de
1960, os chamados cine-fóruns, havia
uma regularidade, um hábito de se debater. Hoje em dia, na sala de aula para
fazer um debate, o pessoal está desacostumado. Esse movimento de cineclubismo que surgiu, mesmo espaçadamente,
de uma maneira mais informal do que
aquele cineclubismo institucionalizado
das décadas de 1950 e 60, foi um fator
muito bom para as pessoas começarem a
falar, a perder o medo, perderem o acanhamento. Hoje em dia tem alunos que
dizem: “Que bom, professor, que a gente
teve a oportunidade de falar, quando eu
comecei a falar estava todo empulhado”.
Inibido não, empulhado mesmo. E com
a prática, os debates que aconteceram, a
imprensa... O papel da imprensa, especialmente na Paraíba, foi muito forte, a
imprensa dava uma força muito grande,
havia um espaço muito aberto para o
que a gente chama de animação cultural. Pessoas como Carlos Aranha, Walter
Galvão, participaram muito dessa polêmica cultural, desse debate cultural. Animação Cultural é tudo isso; é você ter espaço no rádio, na imprensa, na imprensa
governamental do jornal A União, que
A Censura Federal atuou com bastante
veemência em algumas ocasiões com
agentes federais armados com metralhadoras em punho, a exemplo da dispersão da II Mostra de Cinema Independente que coordenei em João Pessoa
no ano de 1981, ou mesmo atuação da
censura por ocasião do lançamento do
filme Closes, ou mesmo do seu próprio
filme Paraíba, Masculina Feminina Neutra. Eram ações intimidatórias com demonstração de força. Como você analisa
essas intervenções da censura?
Realmente. A censura estava sendo
competente, estava realizando seu papel.
Se existia uma censura ela tinha que se
exercitar como censura. Você tinha que
mostrar o filme antes. A censura era arbitrária e tinha que ser arbitrária, porque
a época era disso, de arbítrio. Essa pressão da censura, mais do que a pressão, a
repressão da censura, era o papel que ela
estava representando, era uma performance censória típica do regime militar.
Ela tinha que ser competente, mostrar
que era competente, que era exigente
e criava casos. O papel da censura era
reprimir. Diferente de como se coloca
agora, desse movimento de anistia e tudo
mais. Um personagem... eu acho que o
Dr. Pedro, que comandava essas ações,
merecia até um filme, um vídeo sobre
ele. E não somente essa censura institu-
cionalizada, a censura formal, mas também alguns jornalistas, não vamos dizer
que vivíamos num mar de rosas não,
alguns jornalistas conservadores, retrógrados, xenófobos, fizeram movimentos
mais impetuosos, mais virulentos, mais
sanguinolentos do que a própria censura,
o Wellington Aguiar não me deixa mentir, que fez um trabalho de uma crueldade censória absurda e absoluta... notável!
O Cinema Direto enquanto uma das atividades do Núcleo de Documentação Cinematográfica da UFPB... Como você analisa o Cinema Direto tendo se distanciado,
já um pouco mais...
Por mais que os franceses e alguns paraibanos afrancesados desejassem manter uma fidelidade rigorosa ao projeto do
Cinema Novo Jean Roucheano, a província paraibana era tão “torta”, troncha
e distorcida que ela distorceu esse projeto
logo no começo. Quando as pessoas defendiam, elas já defendiam sabendo que
era uma constatação, uma impossibilidade de se fazer Cinema Direto na Paraíba. Era um projeto impossível, ele tinha
que ser renegado, é esse comportamento
antropofágico. Era uma compensação da
falha do projeto, porque era um projeto manco, e à medida que, manco como
o Jango era manco, ele pendia para um
lado, e à medida que ele tinha que ser
realizado na Paraíba, ele já começava
a ser abortado, a ser visto... A proposta
do Cinema Direto é uma proposta que
vai sendo antropofagizada, quer dizer, os
paraibanos comendo os franceses, devorando os franceses. O Cinema Direto começou a ser minado: contaminado pelo
vírus paraibano, pelas negações, pelas
negatividades paraibanas. Dá para escrever uma tese: “Como o Cinema Direto
se torna Indireto na Paraíba”. Como o
Cinema Direto entrou nesse sistema antropofágico de deglutição, de devoração
de seus próprios deuses e mitos. Como
ele foi repensado, questionado na Paraíba, como ele possibilitou um movimento
paralelo a ele, de pessoas que estavam
ligadas a ele, mas que faziam a sua antítese. Foi bom. Foi um movimento vivo,
as picaretagens são muito comuns no
campo da cultura, os jogos de interesses, as facilidades, as barganhas. Se não
existisse essas picaretagens não existiria
cultura, a cultura ficaria numa redoma,
sacrificada, faz parte da vida cultural esses jogos de interesses, essas ligações perigosas entre o artista e o poder... O artista
querendo fazer uma coisa independente,
mas ele está atrelado ao esquema, à universidade, ao poder. E o negócio para
a província é um negócio fascinante. A
Europa, o mito da Europa. Esse convênio do NUDOC com o Cinema Direto
francês possibilitou esse frenesi cultural de
pessoas que ficavam: Vamos ver como
é a Europa, Paris cidade luz, vamos ter
transas europeias, vamos conhecer os homens e as mulheres francesas.
Quer dizer que você postula que houve
uma deformação da proposta, da matriz
do que seja Cinema Direto e ao mesmo
tempo isso despertou um desejo, uma
fascinação da questão de ir a Paris?
É difícil pra eu comentar mais porque não fui a Paris, o problema mais
sério é esse, mas é bom ouvir as pessoas
que foram, até mesmo mais de uma vez.
As pessoas que participaram do projeto
147
mais diretamente é que têm um melhor
depoimento a dar. Eu, numa visão vulgarmente chamada de despeitada ou
uma visão dos marginalizados, dos não
beneficiados, diria que esse pessoal que
teve oportunidade de ir à França, uma
mas o nível era bem elementar, parece
que o curso não funcionava bem, havia
muita pobreza técnica, e não uma pobreza intencional, uma pobreza por falta de
habilidade, por carência, eu sentia muito isso; o som direto não funcionava; em
Sessão de oportunidade muito boa, inegavelmen- princípio qualquer coisa com som direestreia de te de intercâmbio cultural, de conhecer, to era Cinema Direto, usou som direto
Closes de atualização, esse pessoal na volta não é Cinema Direto, não é. Os professores
em 1982
148
colocava muito, a não ser para grupos
pequenos de amigos, o que eles tinham
aproveitado lá, acho que deveria participar do convênio, de qualquer convênio,
as pessoas na volta dar uma geral do que
viu, isso é importante, as pessoas só falavam quando eram solicitadas, já devia fazer parte do esquema de trabalho. Agora,
sobre a produção do Cinema Direto, era
uma coisa tão variada, é difícil a gente
colocar, inclusive, o problema mais sério
era a deficiência técnica dos filmes, não
que eu esteja defendendo um tecnicismo,
que iam ou vinham não satisfaziam não,
o problema de língua, de linguística, um
negócio muito fraquinho em termos de
criatividade no plano da técnica, de um
modo geral. E esse sistema, esse exercício
de colocar logo as pessoas com a câmera
é bom, isso quando você tem filme, é o
de aprender fazendo, mas eles desmistificavam o problema técnico, é aquela
coisa muito francesa, de uma certa linha
francesa, de um certo enciclopedismo de
uma camada de cineasta faz tudo, e eu
acho que era muito papo furado, e o que
sempre caracterizou o cinema é ser uma
arte coletiva, toda angústia de criação é
uma angústia compartilhada, uma angústia coletiva, esmo o cinema que não
seja industrial, o cinema Udigrudi, o cinema é sempre uma proposta de criação
coletiva, então por que esse negócio de
uma só pessoa fazer tudo? Isso é uma
das bobagens do Cinema Direto, o camarada ser o autor da ideia, o diretor, o
fotógrafo, o cinegrafista, o montador, o
editor do filme, eu acho isso uma bobagem, porque pode ser o mito do Chaplin,
o gênio da criação, mas isso pode funcionar ou não, pode ser o Cinema Direto,
Indireto, Oblíquo, mas o cinema é basicamente uma arte coletiva. E essa coisa
da pessoa fazer tudo como aprendizado
é interessante, faz parte de certa inclinação, pessoas que gostam de fazer montagens outras não, pessoas que gostam de
trabalhar na trilha musical, embora que
no Cinema Direto não tenha esse negócio de trilha musical. Em síntese, existia
uma certa bitola, não no sentido da bitola Super-8, mas a bitola ação, ou um certo padrão, o que era Cinema Direto, por
mais que houvesse essa deturpação, no
bom sentido que estou falando, essa antropofagização do Cinema Direto Francês, mas as pessoas tinham na cabeça um
fantasma, o Cinema Direto é isso, um
certo modelo prejudica, castra a criatividade. Um pessoal jovem querendo ousar
mais, mas no modelo do Cinema Direto
havia aquela pressão em cima do que era
direto, o que não era direto, e tem alguns
que fizeram o Anticinema Direto, o não
Cinema Direto. Mesmo assim, foi tanta
coisa feita que eu não sei se conheço todos os filmes.
Considerando que essas realizações em
sua maioria foram feitas em Super-8,
que perspectiva se apresenta ante o surgimento de uma nova tecnologia que é
o vídeo?
O que muita gente está fazendo é
transcrever esses filmes em vídeo, em
que se começa a surgir um circuito de
vídeo, e eu confesso, não tenho me
motivado, não só pela falta de grana,
mas por preferir fazer filmes novos, do
que copiar. O vídeo agora está desempenhando o papel do Super-8, o fator
econômico mais uma vez, a facilidade
de se fazer Super-8 é relativa porque
o equipamento do vídeo é muito caro,
e você tem que depender de um amigo, de um grupo, mas no vídeo a fita é
muitíssimo mais barata, a dinâmica é
outra. Tudo pra mim é cinema, como
dizia Glauber Rocha: tudo é produto
audiovisual, cinema, TV, vídeo, Super-8, é ridículo essa coisa que teve de
muita gente não considerar o Super-8
como cinema, isso é um preconceito
absurdo. Os grandes cineastas do mundo usam Super-8. É a possibilidade de
se fazer cinema mais experimental, tanto curta-metragem como bitola Super-8
ou vídeo, você tem um campo mais livre
para experimentação.
149
PRESERVANDO O
“CINEMA PURO”
Entrevista com Roberto Buzzini
Por Lara Amorim
e Fernando Trevas Falcone
150
O processo de telecinagem dos
filmes catalogados pelo projeto Cinema
Paraibano: Memória e Preservação foi
conduzido por Roberto Buzzini. Diretor
de fotografia dos longas-metragens
Snuff, Vítimas do Prazer (Carlos Cunha,
1977) ao lado de Carlos Reichenbach
e Profissão Mulher (Carlos Cunha, 1984),
ele atuou como fotógrafo, produtor e
diretor de documentários institucionais
e filmes publicitários nas décadas de
1960, 1970 e 1980. Nesse período,
Buzzini trabalhou em produções de Jean
Mazon, famoso por seus filmes para
grandes empresas públicas e privadas, e
Jacques Deheinzelin, veterano fotógrafo
vindo dos estúdios de Vera Cruz e um
dos pioneiros na realização de filmes
publicitários na televisão brasileira, antes
de se tornar produtor independente.
Incentivado por Reichenbach, a
partir de 1993 dedicou-se a trabalhos
de revelação de filmes realizados em
Super-8 por profissionais e estudantes
de cinema. Em sua empresa, a RB
Movie House - misto de laboratório e
produtora -, Buzzini realiza telecinagem
de filmes Super-8 e 16 mm, além
de locar câmeras dessas bitolas para
produtoras de publicidade, realizadores
de documentários e filmes de ficção.
Aliando sua grande experiência e
habilidade técnica com a paixão pelo
“cinema puro”, termo que ele explica
na entrevista, Buzzini foi fundamental
para o sucesso do processo de telecinagem dos filmes do projeto Cinema Paraibano: Memória e Preservação.
151
Você faz parte de uma geração de realizadores formada em uma época em que
se trabalhava exclusivamente com a película. Como foi para você a chegada do
formato digital?
A introdução lenta do formato digital no mercado audiovisual levou um
tempo razoável para ser percebida pelos profissionais da área. Durante esse
período houve uma grande resistência,
principalmente para aqueles que, como
eu, preferem continuar a utilizar câmeras com o uso de películas. Esses caríssimos equipamentos já haviam sido pagos há muito tempo, e não havia ainda
uma boa razão para deixarem de continuar a serem utilizados durante esse
período de amadurecimento do digital.
As películas cinematográficas estão lentamente deixando de ser fabricadas,
restando apenas poucos tipos de filme,
mas tem-se a expectativa de que, pelo
menos com a continuidade desses produtos disponíveis ainda no mercado, continuem a suprir a necessidade daqueles
profissionais para que, como eu, amante do cinema puro, possam usufruir dos
maravilhosos encantos da imagem gravada em superfície de nitrato de prata,
transparente e com alma!
Quando você começou a trabalhar com
a manipulação e revelação do Super-8?
Houve algum evento que se destacou em
sua trajetória pessoal que te levou a este
caminho?
Em 1992, durante uma mostra
retrospectiva de filmes Super-8 no
Museu da Imagem e Som de São Paulo,
após a exibição de inúmeros filmes da
152
década de 1970, presenciei, junto com
Carlos Reichenbach, conhecido cineasta
paulista, e outros realizadores, grupos
de estudantes de cinema que estavam
maravilhados com os curtas assistidos. E
nós comentávamos, com muita decepção,
a decisão da Kodak brasileira de deixar
de revelar filmes Super-8 aqui no Brasil,
assim como o fechamento do único
laboratório que também processava esse
tipo de filme, obrigando os realizadores
e alunos de Cinema, a maioria da ECAUSP, a enviar seus rolinhos para os
Estados Unidos para serem revelados.
Nesse momento, o Carlão (Reichenbach)
que ministrava na época aulas de roteiro
na ECA, me perguntou se seria possível
pesquisar a possibilidade de processar
em meu laboratório fotográfico filmes
Super-8.
Após inúmeros e desgastantes testes
com esse tipo de filme, minha empresa
(Casa de Cinema, na época), instalada
em Itu, interior de São Paulo, por volta de 1994 ou 1995 e por amor ao cinema em película, iniciou a revelação
de cartuchos Super-8, para a alegria de
centenas de amantes dessa bitola, que na
época ainda era uma forma economicamente viável de produzir curtas. E ainda
trabalhamos durante alguns anos juntos
ao Festival de Gramado, incentivando a
galera amante do Super-8. Foi assim que
criamos na mesma época, na “Casa de
Cinema”, agora RB Movie House, a Divisão Super-8 e16 mm.
Ao conhecer seu laboratório, notamos
que você é um colecionador de câmeras,
projetores e material para revelação e
copiagem. Fale desse seu acervo pessoal.
As câmeras Super-8 e 16 mm são utilizadas por alunos de cinema e produtoras clientes da minha “Casa de Cinema”,
que locam esses equipamentos, utilizando principalmente as imagens produzidas em seus trabalhos escolares ou produções profissionais em todo o Brasil. E
há também realizadores independentes,
que querem inserir em seus documentários para a TV imagens captadas em
película. Algumas câmeras e projetores
muito antigos foram utilizados por mim
durante o início da minha carreira, na
década de 1950. Tenho verdadeiro fascínio pelos complicados mecanismos internos desses antigos equipamentos. Eles
são verdadeiras obras da arte, mecânica
pura, sem comando eletrônico.
Você refere-se habitualmente ao “cinema puro”? O que significa esta expressão
para você?
Na verdade, para mim, “cinema puro”
é aquela produção que tem suas imagens
captadas em película fotográfica, sensível
à luz. É o cinema de Lumiére, de Chaplin.
São centenas de profissionais como eu,
em todo o mundo, apaixonados pelas
imagens captadas dessa forma. Gosto de
usar a frase de um cineasta americano:
“tenho o celuloide no meu sangue”.
São essas pessoas que ajudam a mover
economicamente o meu laboratório, assim
como outros em todo o mundo. Afinal,
a película ainda está sendo utilizada e
demorará algum tempo para desaparecer.
Como foi o processo de restauração e telecinagem dos filmes do projeto Cinema
Paraibano: Memória e Preservação?
Devido ao complexo estado de alguns
filmes, tive que fazer adaptações em nosso telecine. Alguns trechos de filmes tiveram cuidados especiais. O importante é
que o resultado final, a imagem e, principalmente, o som, me agradou muito!
Que outros tipos de trabalhos você tem
feito para outros projetos, nesta mesma
linha de preservação e recuperação de
acervo de filmes realizados fora do circuito comercial?
Este é o primeiro grande acervo de
produções em Super-8 e alguns em 16
mm que digitalizamos, e que deu um
imenso prazer.
Os filmes catalogados pelo projeto foram
realizados, em sua maioria, no início da
década de 1980 e não têm cópias. As fitas foram exibidas em diversas ocasiões,
nem sempre em condições ideais. Como
você avalia o estado das películas? O
som e a imagem mantiveram uma boa
qualidade?
Embora as cores da maioria desses
filmes se encontrem desbotadas, conseguimos restaurar boa parte. Devido ao
som ter sido gravado em uma estreita
fita de gravador de poliéster, semelhante a uma fita de “mini cassete”, colada
na beirada do filme, o áudio permanece implacável durante dezenas de
anos! Por esta razão, percebemos uma
excelente qualidade de som.
153
154
A maior parte do acervo reunido pelo
projeto é de filmes Super-8. Quais as características desta bitola, comparada aos
filmes 16 mm e 35 mm?
Quais as grandes diferenças, em sua
opinião, entre os filmes realizados em
película e os feitos através do processo
digital?
Tanto a Kodak como a extinta FUJI
sempre fabricaram tiras de filme com a
largura de aproximadamente 70 mm,
que são cortadas duas vezes (35 mm)
ou quatro vezes (16 mm) ou ainda oito
vezes (8 mm). Quanto menor o fotograma, menor a definição da imagem.
Cineastas em todo o mundo, quando
esses filmes eram disponíveis com custos razoáveis, e em função da linguagem fotográfica que queriam imprimir
em suas realizações, escolhiam uma
dessas diferentes texturas.
No caso específico do Super-8, na
época da realização dos diferentes curtas do projeto Cinema Paraibano: Memória
e Preservação existiam dois tipos de filme
color positivo fabricados pela Kodak nas
década de 1970 e 1980. Um tipo, com
maior definição da imagem e das cores,
indicado para a luz do dia, escolhido
pela maioria dos realizadores, e resultando em uma qualidade muito boa! Outro
tipo com razoável definição, indicado
para ambientes com pouca iluminação.
A escolha dessa bitola na época se deu
pelo fato dos custos serem bastante reduzidos em comparação aos 16 mm e
35 mm. Filmar com som direto seria ter
o filme praticamente pronto sem despesas de pós-produção!
A praticidade do digital, associada
ao baixo custo de captação, com certeza
traz inúmeros benefícios, principalmente
para aqueles realizadores que se preocupam apenas em contar uma história. Afinal, o público não está muito interessado
na forma de captação, principalmente
em uma época em que a maioria dos diretores não resiste em fazer algum tipo
de efeito especial em seus filmes. Esta é a
principal diferença.
A Kodak é hoje a única empresa que
continua na fabricação de toda uma linha de filmes para câmeras 35 mm, 16
mm e alguns tipos de câmeras Super-8.
Nos Estados Unidos, a aquisição desse
material virgem é bastante acessível para
qualquer realizador que prefira trabalhar com película. O consumo desses
filmes pelas grandes produções americanas e mesmo da Europa são mais do
que suficientes para que a Kodak continue a fabricação dessas películas. Aqui
no Brasil os custos são muito elevados,
principalmente com a alta do dólar.
Como não existe praticamente diferença
entre o custo de produção em Super-8
para o filme de 16 mm, estamos fazendo o possível para viabilizar o 16 mm
a baixo custo, para aqueles como eu,
que preferem o cinema puro. Muitos
jovens interessados por cinema têm me
procurado, ansiosos por experimentar
a película. Segundo eles, o digital não
tem graça; eles sentem mais prazer em
captar imagens com filme.
155
GRAFIA
Abreviações
Dir = Direção
P = Produção
AP = Ano de Produção
D= Duração
CEDOP - Centro de Comunicação,
Educação e Documentação Populares
CTI - Centro de Trabalho Indigenista
DAC - Departamento de Artes
e Comunicações da UFPB
NUDOC - Núcleo de Documentação
Cinematográfica da UFPB
NUPPO - Núcleo de Pesquisa e
Documentação de Cultura Popular
PRAC – Pró-Reitoria de Extensão
e Assuntos Comunitários
UFPB – Universidade Federal da Paraíba
VARAN - Centre de Formacion Atelier Varan
As fichas técnicas foram elaboradas a partir
de informações contidas nas caixas dos filmes ou
nos créditos apresentados nos filmes. Os poucos
títulos que trazem créditos detalhados têm estas
informações reproduzidas nas fichas.
Os filmes que não são documentários estão
assinalados como ficção ou experimental.
156
Abril
A mobilização popular em torno da votação da
Emenda Dante de Oliveira, em abril de 1984,
no centro de João Pessoa. Depoimentos de populares e aposentados na praça João Pessoa. Dida
Fialho e Joana Belarmino cantam para o público.
Depoimentos do jornalista Carlos Aranha (cita
João Goulart) e do artista Nandy Lisboa. Representante do PDS (do governo militar) fala sobre a
posição do partido, que tende a apoiar a emenda.
Depoimentos de Pedro Gondim (ex-governador
da Paraíba), Nandy Lisboa (artista plástico), Paulo
Coelho (professor universitário), Vandinho Carvalho – participante do movimento de bairro Fala
Jaguabirbe – e do jornalista Carlos Aranha.
Dir: Macus Antonio (Vilar); P: NUDOC; AP: 1984; D:
19’; Super-8; Cor; Sonoro.
Créditos detalhados no filme: Câmera e Montagem:
João de Lima; Texto: João de Lima “O porquê,
ainda”; Som direto: Ari Kubistcheck, Francisco
Magalhães; Iluminação: Dinarte Varela, Carlos
Machado, Mourão; Créditos: Henrique Magalhães;
Fotografia adicional: João de Lima; Músicas:
“Menestrel das Alagoas” - Milton Nascimento
e Fernando Brant e “Caminhando” - Geraldo
Vandré; Apoio: DAC; ADUF-PB, FUNAPE, FUNARTE,
ANARTEA, API; Agradecimentos: Jornais “O Norte”
e “A União” e Rádio Universitária FM.
FILMOGRAF
Abrindo Brecha
Africanos
Em Guarabira (PB), a adolescente Bia escreve
peça teatral sobre família, questões de gênero e
machismo. O grupo faz entrevistas na rua, perguntando sobre a visão do que seja a família.
Cenas dos ensaios da peça “Filhos de Papel”. O
bispo de Guarabira, D. Marcelo Carvalheira, fala
sobre o papel da família na sociedade brasileira.
Bia desiste da peça por causa da repressão paterna. No teatro, a diretora anuncia que a peça não
será concluída por conta da proibição do pai de
uma das atrizes.
João Pessoa, Carnaval de 1981. João Batista do
Nascimento fala sobre o Bloco Africanos. A preparação do bloco. Desfile na Avenida Beira Rio.
Dir: José Barbosa da Silva; P: Não identificada; AP:
198?, D: 24’; Super-8; Cor; Sonoro. Docudrama.
Créditos detalhados no filme: Elenco: Fátima
Melo, Silvana Rodrigues, Aldemir Leal, Orlandil
Lima e populares; Desenhos: José Barbosa e
Paulo Matias.
Dir: Alex Santos; P: UFPB/NUPPO/FUNARTE/
FUNAPE; AP: 1981; D: 22’; Super-8; Cor; Sonoro.
Amor e Morte
Depoimentos de Selma Tuareg, Kubistcheck Pinheiro, Tadeu Franca, Edilson Dias e Henrique
Magalhães sobre amor e morte. Diálogos bizarros
entre Tuareg e Kubistcheck.
Dir: Torquato Joel; P: NUDOC; AP: 1985; D: 17’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Acalanto Bestiale
Ancião versus Sociedade
Mulher lê testamentos para filhas. Imagens da
sua casa.
No Lar da Providência, em João Pessoa, velhinhos, funcionários, médica e freira falam sobre a
condição do idoso em um abrigo. Surgem temas
como abandono familiar, solidão, doença. O filme
teve a colaboração da socióloga Joselita Rodrigues
Vieira.
Dir: Lauro Nascimento; P: Lauro Nascimento; AP:
1981; D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Rejane Maria Martins; P: NUDOC; AP: 198?; D:
17’; Super-8; Cor; Sonoro (problemas de áudio
em quase todo o filme).
157
Anistia
Baltazar da Lomba
Prisioneiro político, Emilson foi solto após a anistia em 1979. Ele torna-se produtor avícola, mas o
negócio não prospera. Depois administra depósito
de material de construção. O filme o documenta nestas atividades. Em reunião com anistiados
e em depoimentos gravados em som direto, fala
de suas lutas políticas. Enquanto relata como foi
preso e torturado em 1973, mostra filhote de jacaré em seu quintal. Cenas de uma reunião do PT.
Manifestação de rua e evento na Assembleia Legislativa da Paraíba.
Reconstituição do primeiro caso de repressão à
homossexualidade na Paraíba, durante o Brasil
colonial (1595), conduzido pela Igreja Católica.
O filme é ousado ao explicitar a proposta de atualizar o debate sobre a repressão à homossexualidade, especialmente na longa cena de sexo e ao
revelar os bastidores das filmagens realizadas pelo
coletivo Nós Também.
Dir: Edilson Dias; P: NUDOC; AP: 1981; D: 18’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Nós Também; P: Nós Também; AP: 1982; D: 18’;
Super-8; Cor; Sonoro. Atores: João Valença, Gabriel, Augusto, Carlos, Lauro, Arimatéia, Marcelo
Fidelis, Tutu, Fernando Peixe e Marcelo.
Baía da Traição
Índios potiguara dançam o toré ao som de música sem fonte sonora visível. O grupo caminha
pela mata com bandeira branca. Potiguara lê telegrama sobre demarcação. Outro fala de Odilon
Costa: “morreu, já se livramos desse” e da Companhia de Tecidos Rio Tinto.
Dir: Tiuré Índio Potiguara; P: CTI; AP: 198?; D: 10’;
Super-8; Cor; Sonoro. Edição: Edson e Vincent (Carelli?)
158
No final, cenas de carnaval em Pernambuco celebram simbolicamente a liberdade do personagem.
Banhistas de Tambaú
(registro)
Bonecos de Florismar
(registro)
Imagens da praia de Tambaú, em João Pessoa.
Banhistas e vendedores ambulantes. Dois destes
são entrevistados.
Exposição didática da produção e manipulação
de bonecos de luva feitos de papel machê, pelo
professor Florismar do Departamento de Artes e
Comunicação da UFPB.
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP:
198?; D: 06’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Cristina Moraes (orientação Prof. João de
Lima); P: DAC/UFPB; AP: 1984; D: 05’; Super-8;
Cor; Sonoro.
O Batom
Uma bela mulher, um homem misterioso, um
batom. Um experimento com duas soluções.
Dir: Fernando Trevas e Gliberto Martins; P: DAC/
NUDOC; AP: 1987; D: 05’; Super-8; Cor; Mudo. Experimental.
Bernadete
Mulheres de bairro periférico de João Pessoa falam das suas duras condições de vida: abandonadas pelos maridos, com filhos e até mães para
cuidar. Um retrato singelo da condição feminina
de trabalhadoras domésticas de uma capital nordestina.
Dir: Graça Lira; P: NUDOC; AP: 1983; D: 10 ’; Super-8; Cor; Sonoro.
159
Caça a Baleia
Caiana dos Crioulos
No alto mar o navio japonês Katsumaru “caça”
baleias. Imagens mostram detalhe da captura,
com muito sangue na água. O narrador informa o
número de tripulantes, 26, entre japoneses e brasileiros, e ressalta que o comando é dos japoneses. A trilha musical acentua a dramaticidade da
captura da baleia. Na praia de Costinha funciona
a Copesbra, companhia que explora a caça da
baleia. O narrador dá os detalhes do empreendimento comandado pelos japoneses, e que é a base
da economia de Lucena, um município pobre do
litoral da Paraíba. A música tema enfatiza o lucro
obtido pelos japoneses com a baleia, e a situação
de pobreza dos trabalhadores, além de alertar
para a possibilidade de extinção do mamífero.
O narrador aponta alternativas ao fim da caça à
baleia, como outras formas de pesca, reativação
do porto de Cabedelo e exploração do coco, fruto
abundante na região.
Na comunidade quilombola de Caiana dos Crioulos, em Alagoa Grande (PB), mulheres falam de
suas vidas. Na escola, crianças brincam. Comunidade realiza apresentação musical (coco de roda).
Dir: Moacyr Madruga; P: Gamela Filmes; AP: 1978-9;
D: 19’; Super-8; Cor; Sonoro.
Créditos detalhados no filme: Fotografia: Moacyr
Madruga e Augusto Sevá; Direção musical: Ana
Glória Madruga; Música tema: Paulo Ró.
160
Dir: Ana Lúcia Arcela; P:NUDOC; AP: 1981; D: 15’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Caldo de Cana (balé)
Bastidores da preparação do espetáculo da dança
“Caldo de Cana” no teatro Paulo Pontes do Espaço Cultural em João Pessoa. Imagens dos ensaios
e entrevistas com a coreógrafa Rosa Cagliani, o
diretor Fernando Teixeira, W. J. Solha, autor do
espetáculo, e os músicos Carlos Anísio e Odair
Salgueiro.
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP: 1985;
D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
Campanha política de Carnaval em Camalaú
Antônio Mariz (registro) Carnaval de rua no bairro de Camalaú, em CabeEm João Pessoa, uma grande passeata em apoio
à candidatura de Antônio Mariz (PMDB) a governador do estado inicia-se pelas ruas do bairro
popular de Cruz das Armas durante a noite, passa
pela Assembleia Legislativa, Lagoa e percorre a
Epitácio Pessoa, principal avenida da cidade. O
evento termina com o raiar do dia, na praia de
Tambaú.
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP:
1982; D: 13’; Super-8; Cor; Sonoro.
Cara x Coroa
Registro irregular (sem edição e com problemas
de captação de som) da campanha eleitoral de
1982 (Antônio Mariz x Wilson Braga). Imagens
de bairros pobres e depoimentos de moradores
sobre a política local. Comício de Mariz à noite e,
na praia, Mariz discursa em cima de caminhão de
som. Homem da cobra no centro vendendo ervas.
O dia da eleição, local de votação. Apuração no
clube Astrea.
delo (PB). Apresentação de blocos e “tribos indígenas” e cerimônia de premiação. Entrevista com
moradores do bairro.
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP:
1983; D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
Castelo Branco
Registro dos problemas do bairro do Castelo
Branco, ao lado do campus da UFPB, em João
Pessoa: ruas sem pavimentação, coleta de lixo irregular, ausência de áreas de lazer. Depoimentos de
moradores, entre eles o jornalista Walter Santos.
Dir: Joás Antônio; P: NUDOC; AP: 1982; D: 16’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Abelardo G. Oliveira, Roberto E. Oliveira e
Rosilde P. Oliveira; P: Não identificada; AP: 1982;
D: 15’; Super-8; Cor; Sonoro (algumas partes
sem som).
161
Cavalo marinho
do Mestre Gasosa
(registro)
Apresentação do cavalo marinho, manifestação
tradicional da Paraíba. Incentivador das manifestações tradicionais da região, Tenente Lucena
apresenta o Mestre, mas o depoimento deste é
inaudível.
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP:
198?; D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
Celso pós milagre
Em Paris, o economista paraibano Celso Furtado
fala da sua atuação na Sudene, instituição idealizada por ele, e de seus planos para participar
da vida política do Brasil. Vai a “sebo” de livros,
ao Instituto onde dá aulas, compra produtos em
feira de rua e caminha pelos parques da cidade.
Comenta sobre o futebol e numa longa sequência, brasileiros assistem ao jogo Brasil x Rússia na
Copa de 1982. Ao embarcar para o Brasil, revela
esperança com os novos rumos do país após a eleição a ser realizada em novembro.
Dir: Vânia Perazzo; P: Association Varan; AP: 1982;
D: 18’; Super-8; Cor; Sonoro.
As Cegas
Em bairro pobre de Campina Grande, três irmãs
cegas cantam e contam as dificuldades de sobrevivência. Relatam que pedem esmola desde a infância e que com a morte do pai a vida tornou-se
ainda mais difícil. Graças à ajuda de pessoas que
documentam a vida destas irmãs, elas compraram
uma casa modesta. Levadas pela mãe, elas vão a
uma rua movimentada cantar e pedir esmolas.
Dir: Maria Antonia; P: NUDOC; AP: 1982; D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
162
Ciclo do Caranguejo
Cidade dos Homens
O ciclo do caranguejo e seus personagens e cenários: duro trabalho dos catadores das comunidades ribeirinhas de Várzea Nova, Porto do Moinho, Forte Velho e Livramento. O filme ressalta o
contraste entre os catadores e os consumidores e
mostra a atuação dos intermediários e de trabalhadores que atuam no processo de extração da
carne de caranguejo, base do ensopado, qualificado como um “prato internacional”.
Com depoimento do ator e diretor Ednaldo do
Egito, o filme reflete sobre a presença masculina
na cidade de João Pessoa.
Dir: Elisa Cabral; P: NUDOC; AP: 1982; D: 14’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Jomard Muniz de Britto; P: Jomard Muniz
de Britto; AP: 1982; D: 25’; Super-8; Cor; Sonoro.
Ficção.
Créditos detalhados no filme: de uma ideia roubada de Luís Falcão; dedicado a Manoel José
de Lima (Caixa D’Água) e demais participantes
amadores; Entrevistas com Ednaldo do Egito e
Sérgio Castro Pinto filmadas por Pedro Nunes
Filho; Montagem e sonorização: Lima; Assistente de direção: Francisco Chagas Magalhães; Letreiros: Anacleto Eloi.
Cidade Verde
Em tom institucional, narrador exalta as virtudes
de João Pessoa, a cidade verde. Imagens do centro,
Praça João Pessoa, Lagoa, Cidade Universitária.
A narração alerta para o crescimento da cidade,
ameaçando as áreas verdes. Os dois depoimentos
são prejudicados pela edição. As imagens, possivelmente do início da década de 1980, formam
um importante registro da diminuição das áreas
verdes da cidade.
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP:
1982; D: 15’; Super-8; Cor; Sonoro.
163
Closes
Casal homossexual protagoniza cenas de amor.
Depoimentos de Lauro Nascimentos, Eleonora
Menicucci, Henrique Magalhães e de populares
sobre homossexualidade. As entrevistas foram
feitas no centro de João Pessoa e no campus da
UFPB.
Dir: Pedro Nunes; P: Pedro Nunes; AP: 1982; D:
32’; Super-8; Cor; Sonoro.
Comunicação e
Comunidade
Jornalistas, professores e alunos falam sobre o curso de Comunicação Social da UFPB. Depoimentos dos jornalistas Carlos Aranha e Walter Galvão,
dos professores Albino Rubin, Pedro Santos e Regina Saraiva e dos alunos Glória Rabay e Newton
Jr. Trabalho da disciplina Técnicas de Cinema, do
professor Manoel Clemente.
Dir: Coletiva; P: DAC/UFPB; AP: 1981; D: 19’; Super-8; Cor; Sonoro.
164
Construção do
Espaço Cultural
Contraponto entre a construção do grandioso
Espaço Cultural, no bairro de Tambauzinho, e o
abandono do Teatro Santa Roza, situado no centro de João Pessoa. A trilha sonora é um relato
crítico da situação, feito pelo próprio realizador,
em um tom quase epistolar. O filme aborda questões relativas à política cultural e de ocupação dos
espaços públicos na Paraíba.
Dir: Elpídio Navarro; P: Elpídio Navarro; AP: 19801; D: 07’; Super-8; Cor; Sonoro.
O Coqueiro
Narrador conta a história do coqueiro e de como
a árvore se espalhou pelo Brasil. Imagens de trabalhadores tirando o coco, descascando o fruto e
manipulando a palha. Caminhões são carregados
de coco seco. Empresário fala dos números da
produção do coco no município de Lucena, no
litoral norte da Paraíba.
Do Oprimido ao
Encarcerado
O trabalho da professora Maria Salete Van Der
Poel com detentos do presídio do Roger, em João
Pessoa.
Dir: Marcus Antonio (Vilar); P: NUDOC; AP: 1982;
D: 13’; Super-8; Cor; Sonoro (com problemas).
Dir: Alex Santos; P: Solama Filmes; AP: 1977; D:
13’; Super-8; Cor; Sonoro.
Créditos detalhados no filme: Prêmio “18 anos
de Sudene” no Primeiro Festival de Super-8 do
Recife, 1977; Narração e apresentação: José
Cornélio; Fotografia, Câmera e Montagem: Alex
Santos; Apoio: ACCP, Cinema Educativo da Paraíba e Antonio Barreto Neto.
Dança em João Pessoa
José Enoch fala do trabalho e das aulas do seu estúdio e do preconceito em relação aos bailarinos
do sexo masculino. O mesmo tema é explorado
por Zeta Farias, responsável pelo setor de dança
do Teatro Santa Roza, em João Pessoa.
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP:
198?; D: 12’; Super-8; Cor; Sonoro.
165
É Romão pra qui
É Romão pra colá
Romão, tocador de um instrumento musical rústico, é procurado pela realizadora. Ela o encontra,
ele toca o instrumento. Na feira, reúne pessoas em
torno de sua performance. No parque de diversões, acompanhado pela realizadora, embarca na
roda gigante. Depois, anda de aviãozinho.
Dir: Vânia Perazzo Barbosa; P: NUDOC/VARAN; AP:
1981; D: 13’; Super-8; Cor; Sonoro.
166
Em Qualquer Cidade
A partir de imagens de anônimos transitando no
centro de João Pessoa, realizador lê texto sobre as
desventuras de trabalhadores explorados na cidade.
Dir: José Barbosa; P: NUDOC; AP: 198?; D: 06’; Super-8; Cor; Sonoro. Experimental.
Era vermelho seu batom Esperando João
Relação homoafetiva no Carnaval de Baía da
Traição, no Litoral Norte da Paraíba. Desfile do
bloco “Virgens das Trincheiras”.
Dir: Henrique Magalhães; P: Henrique Magalhães; AP: 1983; D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
Ficção.
Créditos detalhados no filme: Fotografia: Torquato Lima; Montagem: Newton Junior e Henrique Magalhães; Som: Everaldo Vasconcelos;
Fotos de cena: Bertrand Lira.
Seis personagens, três homens e três mulheres
incorporam Anayde Beiriz, namorada de João
Dantas, assassino de João Pessoa. Os personagens
refletem sobre a condição da mulher na conservadora e machista sociedade paraibana. Livremente
inspirado no livro Anayde Beiriz, de José Joffily.
Dir: Jomard Muniz de Britto; P: Jomard Muniz
de Britto; AP: 1981; D: 28’; Super-8; Cor; Sonoro.
Ficção.
Créditos detalhados no filme: Glória Rabay,
Juanito, Annelsina Trigueiro de Lima Gomes
(Neta), Paulo Vieira, Ana Lúcia Toledo, Francisco
Marto (Perequeté); Participação especial: Lauro
Vasconcelos Nascimento; Textos: Anayde Beiriz,
José Joffily, Jurandy Moura, Eulajose Dias de
Araújo, João Ramiro Farias de Mello, Jomar Morais Souto, Maria José Limeira, Terezinha Fialho;
Narração: Conceição Accioly; Montagem e sonorização: Lima; Assistente de montagem: Heliane
Barros; Letreiros: Astrogilda Paes de Andrade;
Assistentes de produção: Pedro Nunes e Luiz
Carlos Vasconcelos.
167
Favela da Gauchinha
Festa de Oxum
Registro das obras feitas pelo governo do estado
da Paraíba na Favela da Gauchinha, comunidade
periférica de João Pessoa. Este trabalho é exaltado
pelo presidente da Associação de Moradores do
local. Uma moradora, ressaltando o interesse político eleitoral do governo, reconhece a atuação da
primeira dama Lúcia Braga e afirma que a favela
tornou-se um bairro, dizendo “temos praça, quem
quiser ir para a praça não tem flores não, mas a
praça taí”.
Preparação da comida para Oxum e outros orixás.
O ritual é acompanhado em detalhes: música, transe. Filmado no terreiro Oxum Neli, fundado em 24
de dezembro de 1981.
Dir e P: Aliene, Baltazar, Celiane Germano, J.
Ancheita, Lindalva e R. Nonato; AP: 1983-6; D:
08’; Super-8; Cor; Sonoro.1981; D: 13’; Super-8;
Cor; Sonoro.
168
Dir: Everaldo Vasconcelos; P: NUDOC; AP: 1982; D:
12’; Super-8; Cor; Sonoro.
Festa do Rosário
de Pombal
Aspectos do evento religioso e profano que acontece na cidade paraibana de Pombal, reunindo
uma grande multidão.
Dir: Jurandy Moura; P: UFPB/Museu da Imagem e
do Som/Fundação Nacional de Arte; AP: 1977; D:
22’; 16 mm; P&B; Sonoro.
Créditos detalhados no filme: Montagem:
Machado Bitencourt; Som: Aluísio Ferreira.
Filhos do Mundo
(registro)
Gadanho
A condição de exclusão social das centenas de
pessoas que vivem do lixo do Varadouro Municipal de João Pessoa. Discurso de Figueiredo sobre
imagens de crianças disputando lixo com urubus.
Música de Villa-Lobos e Piazzola contrastando
com a rotina do lixão. Depoimento de morador
que volta ao local depois de 12 anos no Rio, indignado com a exigência de carteirinha para quem
for catar o lixo. Fala da socióloga, tenta explicar a
situação dos lixões a partir da luta dos trabalhadores por melhores salários, achatados “em mais de
70%” desde 1964.
Dir: João de Lima e Pedro Nunes; P: Dos realizadores; AP: 1979; D: 20’; Super-8; Cor; Sonoro
(problemas de áudio em quase todo o filme).
Imagens de crianças perambulando pelo centro
de João Pessoa. Flagrantes de trabalho infantil.
Depoimentos de Mário de Moura Resende, juiz
de menores, e do delegado de menores Martinho
Lisboa. Trabalho da disciplina Técnicas de Cinema, do professor Manoel Clemente.
Dir: Coletiva; P: DAC/UFPB; AP: 1981; D: 16’; Super-8; Cor; Sonoro.
169
Greve de Fome
Grupo Terra
Registro da greve de fome dos estudantes da
UFPB contra o fim dos subsídios ao restaurante
universitário. Um dos estudantes em greve é o
músico Chico César. Manifestação em frente à
Fundação José Américo, responsável pela manutenção do restaurante.
Em São José do Rio Preto (SP), integrantes do
Grupo Terra participam de festival de teatro.
Na cidade paulista, Marcélia Cartaxo, Soia Lira,
Lincoln Rolim e Nanego Lira falam sobre o
trabalho do Terra.
Dir: João de Lima e Marcus Vilar; P: NUDOC; AP:
1984; D: 03’; Super-8; Cor; Mudo.
Greve na UFPB
Narrador explica que os alunos do curso de
Cinema Direto do NUDOC, em solidariedade
ao movimento de professores e funcionários da
UFPB, colocaram equipamentos e técnicos à
disposição da greve que paralisou a Universidade.
Registro de assembleias no auditório do Centro
de Tecnologia. Depoimentos do professor
Pedro Secatto e do funcionário Sérgio Botelho,
do estudante Avenzoar Arruda e de outros
professores. No centro de João Pessoa, pessoas
falam sobre a greve da UFPB.
Dir: Coletiva; P: NUDOC; AP: 1982; D: 35’; Super-8;
Cor; Sonoro.
170
Dir: Não identificada; P: Não identificada; AP: 1982;
D: 14’; Super-8; Cor; Sonoro.
O Incrível roubo
da torre Eiffel
Henrique Magalhães, Torquato Joel e outros simulam o roubo da Torre Eiffel, símbolo da cultura francesa. Curta experimental filmado em Paris
pelos estagiários do Atelier de Cinema Direto da
Associação Varan.
Dir: Everaldo Vasconcelos; P: Atelier Varan; AP:
1981; D: 05’; Super-8; Cor; Sonoro.
Itacoatiara A pedra no caminho
João Pessoa
Turística (registro)
As inscrições rupestres localizadas no município
do Ingá, na Paraíba, são discutidas pela arqueóloga Ruth Almeida, pelo artista plástico Raul Córdula, por um especialista local, João Zito, e pelo
enigmático Sr. K (Kubistchek Pinheiro).
Imagens de João Pessoa: a rodoviária, Praça João
Pessoa, Lagoa do Parque Solon de Lucena, ruas de
comércio, praias, Hotel Tambaú, Ponta do Cabo
Branco. O final é no aeroporto Castro Pinto.
Dir: Torquato Lima; P: UFPB/PRAC/NUDOC; AP:
1987; D: 15’; 16 mm; P&B; Sonoro.
Créditos detalhados no filme: Fotografia:
Manoel Clemente; Montagem: Manfredo Caldas.
Dir: Gilberto Pekala; P: NUDOC; AP: 198?; D: 06’;
Super-8; Cor; Sonoro.
La Crise Est Mondiale
Cartão postal sonoro de Pedro Santos. O realizador narra suas impressões de Paris. Ressalta ser
uma cidade de imigrantes, vítimas da crise europeia e chama atenção à vida privilegiada dos
cachorros parisienses. Pedro Santos se diz muito
satisfeito com a metodologia do estágio no Atelier
Varan, enfatizando o desapego da instituição. Em
francês, Jean Rouch (sentado no chão) debate com
alunos técnicas de filmagem.
Dir: Pedro Santos; P: Varan; AP: 1980; D: 05’; Super-8; Cor; Sonoro.
171
Manipueira
Margarida Sempre Viva
Homens arrancam mandioca da terra. Na prensa, extrai-se a manipueira, líquido venenoso, mas
que após depurado serve de alimento, e a goma,
vendida nas feiras e usada para o preparo de beiju
e da tapioca.
Crédito inicial: “este filme é dedicado às mulheres do
campo”. A morte de Margarida Maria Alves. Enterro
dela em 12/08/83. Casimiro Alves, viúvo de Margarida fala ao telefone. O deputado Assis Camelo fala ao
telefone ao lado do viúvo. Em seu gabinete, Fernando
Milanez, secretário de segurança pública, fala das providências da polícia, sendo observado por Casimiro.
Ato público em Alagoa Grande em 16/08/83 em
repúdio ao assassinato de Margarida, com cinco mil
pessoas presentes. Discursos do deputado Airton Soares (PT-SP) e de lideranças sindicais. Em 28/08/2013
tem início a campanha salarial dos trabalhadores
rurais de Alagoa Grande, com grande manifestação
embaixo de chuva.
Criança, testemunha do crime, conta como foi o assassinato, que é reconstituído. Narradora fala de Agnaldo Veloso Borges, do Grupo da Várzea e de seu
peso político. Um dos acusados do crime presta depoimento ao delegado Rosas.
Imagens de Margarida durante comício, em que pede
a reforma agrária, e em reportagem de TV: “só paro
de falar quando estiver morta”.
Depoimentos de Eleonora Oliveira (Mennecucci), do
delegado Gilberto Rosas, encarregado das investigações, de Maria da Penha, do presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Alagoa Grande e da
presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de
Cuitegi.
Dir: Maria Aparecida; P: NUDOC; AP: 1982; D: 12’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Cláudio Barroso; P: CENTRU – Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural – e PL Produções Visuais; AP: 1983; D: 41’; Super-8; Cor; Sonoro.
172
Maria
Matadouro
Maria e o policial.
Registro de uma vaquejada em local não identificado. Aspectos da festa. A derrubada dos animais
no curral. Em outro cenário, homens tiram couro
e retalham um bode.
Dir: Henrique Magalhães; P: Varan; AP: 1981; D:
01’; Super-8; Cor; Sonoro. Animação.
Dir: Luis Veríssimo; P: NUDOC; AP: 198?; D: 14’;
Super-8; Cor; Sonoro.
O Menor
Crianças de um bairro periférico dizem o que
querem ser quando crescerem. Representante do
poder público discorre sobre o problema social
dos menores que vivem nas ruas de João Pessoa,
muitos dos quais são infratores.
Dir: João Gauvíncio; P: NUDOC; AP: 1983; D: 10’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Mercado do Peixe
de Tambaú (registro)
No mercado da praia de Tambaú, em João Pessoa, pescadores e vendedores limpam peixes e falam da rotina da profissão. Registro de atividade
da colônia de pescadores de Tambaú, patrimônio
cultural do bairro praiano.
Dir: Não identificada; P: NUDOC; AP: 198?; D: 05’;
Super-8; Cor; Sonoro.
173
174
O Mestre de Obras
Miserere Nobis
Retrata o cotidiano do trabalho de mestres de
obras. Pedreiro em conversa com familiares diz
que está construindo casa para a filha e que precisa da ajuda de todos os membros da família. Ele
afirma para a família: “a casa é um patrimônio de
vocês”. Trilha musical de Chico César.
Um filme de temática homoerótica, primoroso na
construção simbólica da narrativa, cuja fotografia, montagem e trilha sonora se destacam entre
os filmes catalogados neste acervo. A Santa Ceia
ganha nova dimensão com a presença dos personagens apresentados ao longo do filme.
Dir: Newton Araújo Jr.; P: NUDOC; AP: 1981; D:
16’; Super-8; Cor; Sonoro (com problemas).
Dir: Lauro Nascimento; P: Lauro Nascimento; AP:
1982; D: 23’; Super-8; Cor; Sonoro. Ficção.
Misticismo – Folguedos Música sem
e Tradições
Preconceitos
Procissão marítima de São Pedro sai de uma praia
de Cabedelo, passa pelo estuário do rio Paraíba
e termina na praia fluvial de Jacaré. A narração
em off acentua um tom “institucional” que enaltece as manifestações populares dos pescadores –
como as Cambindas de Lucena e Coco Praieiro
– definido-as como manifestações folclóricas, religiosas e profanas.
Em estilo docudrama, jovem encontra amigo na
praia e marca encontro em casa para ouvir e tocar rock. No centro da cidade, pessoas falam sobre
música. Os jovens tocam música (captada parcialmente). Depoimento de Bráulio Tavares durante
apresentação musical. O realizador dá o seu depoimento. Na praia, garota viaja ao som do Pink
Floyd.
Dir: Alex Santos; P; Solama Filmes/NUPPO; AP:
1980-1; D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Alberto Júnior; P: NUDOC; AP: 1983; D: 26’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Mônica Passos
A cantora brasileira Mônica Passos no palco em
Paris. Em seu pequeno apartamento prepara refeição. No estúdio grava a música “Itaipu”. Fala
de sua revolta contra a usina, que agride a natureza. Em um parque, canta “Itaipu”. Sua voz poderosa reproduz sons de pássaros. Joga pedras na
água, criando analogia visual com ondas sonoras.
Com o marido violonista caminha, de modo brincalhão, distanciando-se da câmera.
Créditos detalhados no filme: Câmera: Alberto
Júnior, Pedro Nunes, Fernando Melo; Som direto: Fernando Melo, Fernando Falcone; Música: Queen, O Terço, Washington, David Gilmour,
Pink Floyd; Participação: Washington, Otávio,
Newton, Alberto Júnior, Juliana Vilar, Roberto
Chianca; “Dedico este filme a todas as pessoas
que curtem a música, e em especial aos roqueiros do Brasil”. Alberto Júnior.
Dir: Elisa Cabral; P: VARAN; AP: 1981-2; D: 23’;
Super-8; Cor; Sonoro.
175
Não se Preocupe, Mamãe Nós, os Agricultores
Estudante deixa a sala de aula do Departamento de Camuçim
de Artes e Comunicações da UFPB e vai para a
“república” em que mora. Lê carta da irmã. No
restaurante universitário, sobe na mesa, anuncia o
seu aniversário e propõe brinde. Canção de Chico
César, um dos realizadores.
Dir: Coletiva; P: Não identificada; AP: 1982; D:
04’; Super-8; Cor; Sonoro (mudo no final). Ficção.
Na zona rural do município de Pitimbu (PB),
famílias lutam pela posse da terra em confronto
com a destilaria Tabu. Os agricultores fazem vigília em frente ao Palácio da Redenção, sede do
governo da Paraíba. Depoimentos de trabalhadores ameaçados e espancados por capangas da
destilaria. Narrador comenta as ações do governador e a atuação da imprensa no caso. Crianças
relatam a ação violenta da polícia. Narrador lista
as exigências dos agricultores. O filme vai além
de um registro ou reportagem, transformando-se,
através do narrador, que se assume como um dos
agricultores, e da montagem, como sujeito ativo
da luta pela posse da terra. Nesse sentido é emblemática a estrutura do filme ser centrada em uma
marcha, composta em sua maioria por crianças,
que ao som marcante de tambores, percorrem a
fazenda Camuçim.
Dir: Não identificada; P: CEDOP; AP: 1981-2; D:
26’; Super-8; Cor; Sonoro.
176
Padre Zé Estende a Mão
Pássaros na Cabeça
O cotidiano do Padre José Coutinho, responsável
por abrigo e hospital que atende pessoas carentes
de João Pessoa.
José Altino faz gravura em seu ateliê. Exposição
no Núcleo de Arte Contemporânea da UFPB NAC. Depoimento de um crítico e de uma amiga
e do próprio artista. Voz feminina lê carta ao amigo: discorre sobre arte, cultura, fome e dinheiro.
Dir: Jurandy Moura; P: Jurandy Moura; AP: 1972;
D: 26’; 16 mm; P&B; Sonoro.
Créditos detalhados no filme: Fotografia: João
Córdula; Montagem: Manfredo Caldas; Títulos: J.
Altino; P: ACCP.
Dir: Manfredo Caldas e Marcus Antonio Vilar; P:
NUDOC; AP: 1985; D: 12’; Super-8; Cor; Sonoro.
Palco em Pauta
Pastoris
A história do teatro em Cajazeiras. Eliezer Filho
conversa com professor que fez teatro no passado. Ubiratan de Assis fala de grupos de teatro da
cidade. O jornalista Gutemberg Cardoso também
fala do tema. O ator Lincoln Rolim conta a passagem do Grupo Mickey para o Grupo Terra, que
teve espetáculo censurado em Campina Grande.
Marcélia Caaxo em cena. Buda Lira é entrevista por Ubiratan em programa de rádio. Créditos
sonoros.
Apresentação pastoril (cordão azul x cordão encarnado). Alguns intelectuais assistem ao evento.
Equipe: Oswaldo Trigueiro, Alex Santos, Ubiramar Vasconcelos, Roberto Coura; P: UFPB/PRAC/
COEX- Divisão de FolkComunicação; AP: 198?; D:
07’; Super-8; Cor; Mudo.
Dir: Everaldo Vasconcelos e Maria das Graças
Lira; P: ?; AP: 1982; D: 11’; Super-8; Cor; Sonoro.
177
Pedro Osmar
Piollin (registro)
O músico e agitador cultural Pedro Osmar em
casa com a família. Acorda, toma café e sai. Longo poema sobre a liberdade é lido em off. De carona vai ao Teatro Santa Roza, em João Pessoa,
onde fará show com Jarbas Mariz. Fala do movimento cultural Jaguaribe Carne. Depoimentos
de Jarbas Mariz, Chico César, Elba Ramalho e
da mulher de Pedro Osmar. Imagens do show no
Santa Roza. Entre uma canção e outra, Osmar
convoca plateia para participar de ato contra o
aumento das passagens de ônibus.
O palhaço Xuxu (Luis Carlos Vasconcelos) na
rua. Depoimento do ator Luis Carlos V. A Piollin
por dentro: sala, cinema, cartazes e teatro de mamulengo. Na parte externa do teatro, Ednaldo do
Egito apresenta cenas de circo para o público. Na
parte interna, aulas de teatro e dança e cenas dos
dormitórios.
Dir: Otávio Maia; P: NUDOC; AP: 1982; D: 28’; Super-8; Cor; Sonoro.
Primeiro de Maio
Perequeté
A vida do ator e dançarino Francisco Marto, o
Perequeté, que, com muita garra, tenta superar o
preconceito contra o artista e a homossexualidade
na província. Cenas das filmagens de Esperando
João, em que Perequeté atua.
Dir: Bertrand Lira; P: NUDOC; AP: 1981; D: 21’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Elpídio Navarro; P: Sol Filmes; AP: 198?; D:
30’; Super-8; Cor; Mudo.
Trem vai em direção a Bayeux (PB). Cenas de
bairro com casas de taipa e ruas alagadas. Essas
imagens são intercaladas com a encenação do
Calvário pela comunidade durante a Semana
Santa, denotando a intenção do filme de associar
o sofrimento da população ao martírio de Cristo.
Na principal avenida da cidade de Bayeux comunidades participam de manifestação do Primeiro
de Maio, empunhando cartazes com demandas e
reclamações. Aspectos de uma comunidade ribeirinha, com destaque para o trabalho em torno da
pesca de caranguejo e as atividades de um armazém comunitário. Presença de mulheres religiosas.
Uma missa celebrada ao ar livre reúne muitas pessoas, inclusive crianças.
Dir: Não identificada; P: CEDOP; AP: 1982/3; D:
37’; Super-8; Cor; Sonoro.
178
Quando um bairro
não se cala
Registro das atividades do Fala Jaguaribe, movimento de moradores de Jaguaribe, bairro de João
Pessoa. Depoimentos de Pedro Osmar e Vandinho – integrantes do movimento –, do artista
plástico Nandy Lisboa e do jornalista Sílvio Osias,
moradores de bairro. Osias foi convidado pelo realizador a assistir a uma reunião do Fala Jaguaribe. Representante do Círculo Operário comenta
divergências entre o Círculo e o Fala Jaguaribe.
Imagens de festa do dia da criança promovida
pelo movimento nas ruas do bairro.
Dir: Marcus Antonio Vilar; P: NUDOC; AP: 1983; D:
13’; Super-8; Cor; Sonoro.
Registro
“Este trabalho é dedicado aos companheiros ‘fura-greves’ e aos que se omitiram da luta, entendendo que o conjunto de reivindicações contra o
ensino pago, por melhores condições de ensino,
por uma universidade democrática e contra o projeto de autarquias especiais imposto pelo MEC,
é uma luta ampla que compromete todos os estudantes na construção de uma nova sociedade”.
Os estudantes da UFPB entram em greve contra
o aumento de 230% das tarifas do Restaurante
Universitário. Lutam ainda pelo ensino público e
gratuito e contra as taxas impostas pelo MEC. Os
estudantes vão em passeata ao centro da cidade,
passando pela sede da Fundação José Américo e
pelo Cinema Municipal, que exibe Lúcio Flávio e
Nos Embalos de Ipanema. Na Reitoria, reúnemse com o reitor e outros representantes da UFPB.
Em entrevista, líder fala do décimo terceiro dia do
movimento. Crédito final: A Luta Continua.
Dir: Pedro Nunes; P: DCE da UFPB; AP: 1979; D:
24’; Super-8; Cor; Sonoro.
Rodoviária
Comerciantes reclamam do valor do aluguel a ser
pago pelas lojas da nova rodoviária de João Pessoa. Imagens do novo terminal e da antiga rodoviária.
Dir: Marcus Antonio Vilar; P: NUDOC; AP: 1981/2;
D: 04’; Super-8; Cor; Sonoro.
179
Sagrada Família
Sem Título 1
A família do realizador é o tema do filme. O pai,
fala hesitante. Varre a casa. No quintal, faz um balanço melancólico da sua vida. A mãe, enquanto
descasca milho, revela timidez, cansaço, tristeza e
vaidade. Os irmãos fogem da câmera. A avó relembra a morte do marido. Um mergulho corajoso no universo pessoal.
Homem percorre mata e realizadora pergunta
qual a utilidade das folhas e cipós de algumas árvores. Na sua casa (de taipa), ele explica as fibras
e folhas que usou para construí-la. O tema central
gira em torno do trabalho extrativista.
Dir: Everaldo Vasconcelos; P: NUDOC; AP: 1981;
D: 14’; Super-8; Cor; Sonoro.
Seca
Na zona rural de Orós, Ceará, agricultores falam
da migração decorrente da seca e de seus planos
para o futuro. Um deles se refere ao fenômeno da
seca, citando a conversa com um compadre “os
astrônomos sabem menos que Deus uma coisinha
bem pouquinha”. Outro fala de migração para o
Centro e Sudeste do país: “Não é tanto por vaidade. É fome, meu amigo”. Mulher comenta a
importância da televisão na zona rural: “É muito bom para quem mora em sítio, onde não há
diversão”. Cabeleireiro executa seu trabalho em
troca de alimentos e relembra, com um dos seus
clientes, situações vividas em São Paulo.
Dir: Torquato Joel; P: Universidade Federal da
Paraíba, Núcleo de Produção Cinematográfica,
Atelier de Cinema Direto – NUDOC, Association
Varan de Paris; AP: 1982; D: 16’; Super-8; Cor;
Sonoro.
180
Dir: Vânia Perazzo; P: NUDOC; AP: 1981; D: 10’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Sem título 2
Mulher fala sobre sua condição homossexual. Depoimentos foram gravados na casa dela, na Casa
da Pólvora, monumento histórico no centro de
João Pessoa, e na Bica (zoológico da cidade), ao
lado da jaula dos felinos.
Dir: Não identificada; P: NUDOC; AP: 1981; D: 07’;
Super-8; Cor; Sonoro.
Sem título 3
Índios entram na Assembleia Legislativa da Paraíba. Grupo de indígenas demarca terras. Em
depoimentos, eles dizem que fazem o trabalho
por conta própria. No fundo, grandes tanques de
armazenamento do que parece ser uma destilaria.
Dir: José Humberto Nascimento (Tiuré); P: CTI;
AP: 198?; D: 07’; Super-8; Cor; Sonoro.
Sem título 4
Sinal Vermelho
Noilton, líder indígena da Bahia, fala das ações
dos índios pela posse das suas terras. O deputado
Mário Juruna faz discurso político em um povoado. Potiguara reclama de demarcação de terra
prometida pelo presidente Médici. Menciona
documento conseguido no Museu Nacional do
Índio.
“Um filme feito por ocasião da CF 87 ‘O Menor
e a Fraternidade’”. Garoto pobre é obrigado pelo
pai a se virar para comer. Tenta vender envelopes nos Correios, mas é expulso. Com colega perambula pelo centro de João Pessoa com fome. É
enxotado de restaurante, e vai cheirar cola com
outros meninos. Sonha jogar bola, com mesa de
comida e a família ao redor, na praia. É preso
após roubar homem. Na prisão, imagens fortes de
menores. No final, texto afirma a necessidade do
povo se organizar para lutar contra a miséria que
obriga crianças a roubar e matar para sobreviver.
Imagens iniciais e finais feitas com lente vermelha.
Dir: José Humberto Nascimento (Tiuré); P: CTI;
AP: 198?; D: 22’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Não identificado; P: CEDOP; AP: 1987; D: 30’;
Super-8; Cor; Sonoro. Ficção.
181
Sobre as Rendas
Sucata
Elza Oliveira fala sobre (e demonstra) processo
de confecção das rendas: ”muito trabalho, pouco
dinheiro”. Mostra fotos das rendeiras de Maceió,
onde morava.
A rotina de Geraldo Alexandre dos Santos, pescador do rio Sanhauá, que divide as cidades de
Bayeux e João Pessoa. O pescador mora com a
família em uma palafita.
Dir: Elisa Maria Cabral; P: NUDOC; AP: 198?; D:
06’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Elpídio Navarro; P: Sol Filmes; AP: 1981; D:
11’; Super-8; Cor; Sonoro. Créditos detalhados
no filme: Fotografia: Romeu Fernandes; Roteiro:
Assis Fernandes; Edição: Elpídio Navarro.
Sonho destrela
Em Cajazeiras, sertão da Paraíba, a cantora Núbia Galvão (nome artístico em homenagem a cantora Núbia Lafaerte) fala das dificuldades que enfrentou quando tentou carreira profissional. Em
1973 foi ao programa do Chacrinha, no Rio de
Janeiro, mas se frustrou por não ter conseguido
sucesso. Percorre sua cidade vendendo perfumes,
dando aulas de violão e ainda canta serestas.
Dir: Eliezer Filho; P: NUDOC; AP: 1982; D: 23’;
Super-8; Cor; Sonoro (problemas de áudio em
quase todo o filme).
182
Tá na rua
Tarô
O diretor e ator Amir Haddad conta a trajetória
do grupo teatral Tá na Rua, surgido na década de
1970, em pleno governo Médici, auge da ditadura
militar. Enquanto se preparam para mais um espetáculo, e ao som de clássicos da MPB, Haddad
diz que o grupo transformou um texto de louvação ao autoritarismo, escrito em 1936, “Morrer
pela Pátria”, em crítica ao autoritarismo brasileiro. “Por baixo do autoritarismo está o cadáver
do povo”. O Grupo apresenta-se para o povo no
Mercado Central.
A realizadora tenta entender os mistérios das cartas do Tarô. Em restaurante ela e Marcus Vilar
conversam, em francês, sobre a realização do filme. Em outra cena, sempre em francês, a realizadora se diz insatisfeita com a pesquisa. Imagem
do livro Jung and Tarot. Casal punk em Londres.
Dir: Henrique Magalhães; P: NUDOC; AP: 1981; D:
15’; Super-8; Cor; Sonoro.
Dir: Elisa Cabral; P: VARAN; AP: 1985; D: 20’; Super-8; Cor; Sonoro. Experimental.
Tele-Visões
Estimulados a falar sobre o que assistem na televisão, trabalhadores da Usina Santana dão seus
depoimentos sobre o assunto. Uma entrevistada
ressalta a importância de ser filmada e ter se visto na tela. Repete-se várias vezes a abertura da
telenovela Selva de Pedra, da Globo, e algumas
cenas da trama são exibidas. Outras cenas da
Globo: Jornal Nacional, seriado americano Duro
na Queda e abertura do Fantástico. Homem usa
bateria de trator para ligar TV. Nos créditos finais,
a realizadora entra em cena e grava sua imagem
manuseando fotos das entrevistadas. Os créditos
são apresentados “dentro” de uma TV. Um televisor “plantando” no chão liga-se à abertura da
novela.
Dir: Elisa Cabral; P: Elisa Cabral; AP: 1986; D: 22’;
Super-8; Cor; Sonoro.
183
TPF (registro)
Vaquejada
Uma Kombi percorre ruas com carro de som
exaltando a TFP – Tradição, Família e Propriedade – grupo de extrema direita ligado à Igreja
Católica. Destaque para a enorme bandeira da
TFP. Populares observam o carro. Militante entrega publicação para passageira de ônibus. Outro
conversa com padre.
A 21ª Vaquejada de Pombal, cidade paraibana.
Depoimentos de moradores da região. Cenas da
vaquejada. Um longo aboio “comenta” aspectos
do evento. No curral, vaqueiros derrubam os animais. Trechos mudos mostram pessoas dançando
no terreiro. Senhora conta que as vaquejadas do
passado eram “elegantes” e “decentes”. Uma dupla de repentistas confronta as vaquejadas do passado com aspectos das vaquejadas realizadas no
início dos anos 1980.
Dir: Carlos Alberto; P: Não identificada; AP: 198?;
D: 04’; Super-8; Cor; Sonoro.
Umbanda
Sobras do filme Festa de Oxum, do mesmo realizador.
Dir: Everaldo Vasconcelos; P: NUDOC; AP: 1982;
D: 12’; Super-8; Cor; Sonoro.
Um homem de Rádio
Em Paris, Claude, da Radio France, fala do seu trabalho como correspondente internacional. No estúdio cita Jean Rouch, Jacques Dartuy, Pedro Santos, Cinema Direto. Manifestação em Paris contra
atentado antisemita.
Dir: Pedro Santos; P: NUDOC; AP: 1980; D: 13’;
Super-8; Cor; Sonoro.
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Dir: Carlos Alberto; P: NUDOC; AP: 198?; D: 20’;
Super-8; Cor; Sonoro (algumas partes sem som).
23 Barões
Em frente ao bar Sinatra, professor fala da Associação dos Docentes da UFPB – Campina Grande.
Imagens do centro da cidade, com destaque para a
livraria Livro 7. Reunião da Associação, com discussão sobre uso de verba para cultura. Homem lê
texto de Revolução do Cinema Novo, de Glauber
Rocha. Grupo faz cartelas: 23 barões, Cinema Dínamo. O título refere-se a uma verba de 23 milhões
de cruzeiros antigos que a Associação dispõe para
atividades culturais. “Barão” era o nome popular da
cédula de milhão de cruzeiros antigos.
Dir: Rômulo Azevedo e Romero Azevedo P: Associação dos Professores da UFPB (Campina
Grande); AP: 1983; D: 10’; Super-8; Cor; Sonoro.
Ficção.
24 Horas
Visões do Mangue
Cenas ficcionais, imagens de registro e depoimentos discutem a questão do alcoolismo. Participações do jornalista Anco Márcio e do ator Fernando Teixeira.
Catador do mangue fala do “pai do mangue”, o
“batatão”, aquele que “se transforma em todas as
posições”: homem, gato, tocha de fogo, mas não
faz mal a ninguém, só espanta a pescaria. Outro
catador fala de sua opção religiosa e diz preferir
“a lei dos crentes que a lei dos católicos”. O filme
mostra imagens do mangue, evidenciando a dura
batalha de quem sobrevive da cata do caranguejo.
Um trabalhador afirma, enquanto descansa que
“se mangue não tivesse mosquito, muriçoca, maruim nem toco era pros ricos, não era pros pobres,
por que logo eles secavam logo um pedaço para
eles, pegava mais da metade”. Filmado em comunidade às margens do rio Sanhuá.
Dir: Marcus Vilar; P: UFPB/PRAC/NUDOC; AP: 1987;
D: 17’; 16 mm; P&B; Sonoro.
Créditos detalhados no filme: Fotografia: Manoel Clemente; Montagem: Carlos Cox.
Dir: Elisa Cabral; P: NUDOC; AP: 1982; D: 14’; Super-8; Cor; Sonoro.
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